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    PATRIMNIO IMATERIAL: DEBATES CONTEMPORNEOS

    Sylvia Couceiro

    Cibele Barbosa

    A CONSTRUO HISTRICA DE UM CONCEITO

    Resguardar a memria de uma poca, de acontecimentos e figuras

    importantes a partir de marcos fsicos que possam represent-las uma

    caracterstica comum a grupos sociais de vrias partes do mundo. Noo

    universal, a idia de monumento trabalha e mobiliza a memria coletiva da

    emoo e da afetividade, fazendo vibrar um passado selecionado com vistas a

    preservar a identidade de uma comunidade tnica, religiosa, nacional, tribal ou

    familiar.1

    Enquanto a idia de monumento est presente nas mais variadas

    sociedades, a noo de patrimnio histrico e artstico da forma como

    conhecemos hoje remete ao final do sculo XVIII e tem ligao direta com o

    surgimento da idia de nao. Utilizado com finalidades polticas, visando unir

    grupos econmica e culturalmente diferentes, integrar faces politicamente

    divergentes, no sentido de consolidar um projeto de nao, o conceito de

    patrimnio histrico nacional comeou a ser forjado durante a Revoluo

    Francesa. No decorrer das lutas revolucionrias, buscando defender da agresso

    e da pilhagem imveis e obras de arte pertencentes s elites francesas, grupos

    interessados comearam a discutir os meios necessrios para defender a

    integridade e manuteno desses smbolos.

    Doutora em Histria pela Universidade Federal de Pernambuco e pesquisadora da Fundao Joaquim Nabuco.

    Doutoranda em Histria pela Universidade Sorbonne, Paris IV, e pesquisadora da Fundao Joaquim Nabuco. 1 Ver SANTANNA, Mrcia. A face imaterial do patrimnio cultural: os novos instrumentos de

    reconhecimento e valorizao. In: Memria e patrimnio. Org. Regina Abreu e Mrio Chagas. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

  • 2

    A partir desse perodo e durante todo sculo XIX, vrias naes europias,

    em processo de consolidao das suas fronteiras e na luta pelo fortalecimento do

    sentimento nacionalista, iniciaram aes voltadas para a escolha e preservao do

    que se estabelecia na poca como patrimnio nacional. Os princpios

    renascentistas de beleza e importncia histrica, a idia de representao da

    nao a partir da grandiosidade e singularidade de construes e objetos de arte,

    norteavam, ento, a noo do que deveria ser considerado como patrimnio.

    Instituies pblicas, especialistas no tema e uma legislao especfica foram

    sendo criadas ao longo do sculo XIX pelos pases da Europa, em especial pela

    Frana, no sentido de identificar, conferir autenticidade e proteger bens avaliados

    como verdadeiros tesouros nacionais.

    Ao longo da primeira metade do sculo XX, a concepo de patrimnio e a

    conceituao de bem cultural se consolidaram no mundo ocidental como uma

    referncia ligada a bens tangveis, os chamados pedra e cal, s comeando a

    ser questionada de modo mais amplo no perodo ps-Segunda Guerra Mundial.

    Com o final do conflito as crticas ao nacionalismo imperialista e a derrota dos

    regimes nazi-fascistas, que pregavam um uso racista e excludente do passado, os

    debates em torno do tema geraram novos questionamentos. Instituies como a

    ONU - Organizao das Naes Unidas -, e a Unesco - Organizao das Naes

    Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura -, criadas aps o trmino da

    Guerra, deram visibilidade a diferentes demandas que surgiam por partes dos

    chamados pases dos Terceiro Mundo, das colnias e dos movimentos sociais que

    comeavam a se organizar em prol dos direitos civis.

    Nessa nova conjuntura poltico-econmica, a compreenso da noo de

    bem cultural comea a ser revista. importante destacar que a associao entre

    patrimnio a ser resguardado e a materialidade do bem, dificultaram a ampliao

    da conceituao de bem cultural passvel de ser salvaguardado, levando os

    especialistas a impasses e muitas divergncias. A relevncia da cultura imaterial,

    questionamentos relativos sua pertinncia e legitimidade enquanto nova

    categoria a compor as agendas das polticas pblicas na rea da cultura,

  • 3

    passaram a nortear os debates, sobretudo os congressos e convenes

    promovidas em nvel mundial pela Unesco.

    No Brasil o processo no se deu de forma muito diferente. Ainda nos dias

    de hoje, quando a expresso patrimnio histrico e artstico mencionada, a

    primeira idia que vem mente da maioria das pessoas um conjunto de

    edificaes ou monumentos antigos, como igrejas, prdios pblicos, casares, que

    por sua antiguidade, pela importncia artstica ou pela relao com fatos e

    personagens histricos importantes, so merecedores de serem preservados.

    A idia de considerar danas, manifestaes, aspectos ligados culinria,

    ofcios e diversos costumes de comunidades especficas, como merecedores de

    aes especiais de proteo e salvaguarda por parte das polticas governamentais

    uma idia com presena relativamente recente nos debates nacionais acerca do

    tema.

    Como na esfera mundial, o conceito de patrimnio imaterial ou intangvel,

    no surgiu no Brasil sem polmicas. Construdo ao longo de 70 anos, passando

    por precursores como Mrio de Andrade nos anos 1930 e Alosio Magalhes na

    segunda metade do sculo XX, a idia de bem imaterial acompanhou, ao longo de

    dcadas, as discusses do extinto Servio do Patrimnio Histrico Nacional

    SPHAN e do seu sucessor, o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    IPHAN.

    Mrio de Andrade, figura das mais destacadas das artes no Brasil, ativo

    participante da Semana de Arte Moderna de 1922, foi um dos primeiros

    intelectuais a reconhecer a importncia que os costumes, comportamentos

    cotidianos e outras manifestaes populares tm para a compreenso da cultura

    de um povo, inaugurando as discusses sobre o tema cultura imaterial no pas.

    Sua concepo de patrimnio, engendrada nas dcadas de 1920 e 1930, foi fruto

    das viagens pelo interior do pas e da experincia frente do Departamento de

    Cultura de So Paulo. No perodo em que dirigiu o rgo, Mrio de Andrade

    desenvolveu uma proposta inovadora e pioneira de recolha e registro do

    patrimnio no tangvel, utilizando-se das novas tecnologias de gravao e

  • 4

    filmagem para coleta e salvaguarda de documentao sobre as mais diversas

    formas de expresso da cultura popular brasileira.

    Andrade tambm esteve envolvido na criao do Servio de Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), cujo projeto orientava-se no sentido de

    aproximar e democratizar o acesso aos bens culturais, mantendo sempre o

    respeito quanto s suas peculiaridades. Foi a partir dessas discusses levantadas

    por Andrade que a idia de bem patrimonial e a necessidade da sua preservao,

    comeou a ser implantada no Brasil, resultando na assinatura, no governo de

    Getlio Vargas, do Decreto Lei 25 de 30/11/1937. O Decreto estabelecia a lei de

    tombamento de edificaes consideradas de excepcional valor para a cultura

    nacional. No artigo 1 o Patrimnio Histrico e Artstico Nacional era definido

    como:

    O conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cuja

    conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos

    memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valor

    arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico.

    Para a preservao do que se considerava ento como patrimnio histrico

    e artstico as construes monumentais e outras obras de arte o decreto

    institua a criao de quatro Livros de Tombo, onde oficialmente ficariam

    registrados os bens de reconhecido valor para a cultura nacional:

    Do Tombamento

    Art. 4 - O Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    possuir quatro Livros de Tombo, nos quais sero inscritas as obras a

    que se refere o art. 1 desta lei, a saber:

    1) no Livro do Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico,

    as coisas pertencentes s categorias de arte arqueolgica, etnogrfica,

    amerndia e popular e, bem assim, as mencionadas no 2 do citado art.

    1;

    2) no Livro do Tombo Histrico, as coisas de interesse histrico

    e as obras de arte histrica;

  • 5

    3) no Livro do Tombo das Belas-Artes, as coisas de arte erudita

    nacional ou estrangeira;

    4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se

    inclurem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

    As atividades dos sucessores de Mrio de Andrade, nos anos 50, estiveram

    ligadas Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, criada em 1947, durante o

    governo do General Eurico Gaspar Dutra. Desse movimento nasceu o Centro

    Nacional de Folclore e Cultura Popular em 1958.

    Nesse contexto, outra personalidade de grande importncia na ampliao

    da viso de bem patrimonial no Brasil foi Alosio Magalhes. Ao criar no pas,

    ainda nos finais da ditadura militar, o Centro Nacional de Referncias Culturais

    (CNRC), Magalhes trazia para o debate temas como a homogeneizao cultural,

    a assimilao de prticas culturais externas, a influncia das transformaes

    advindas com as inovaes tecnolgicas nos diversos aspectos da cultura

    nacional, dentre outros. Para Alosio Magalhes, era urgente repensar alguns

    critrios e conceitos estabelecidos acerca do que deveria ser preservado no pas,

    sob pena de, aos poucos, o pas perder o contato com o que ele considerava as

    autnticas razes da nacionalidade brasileira.

    Um dos grandes feitos de Alosio Magalhes foi a de ter contribudo para

    uma nova concepo de patrimnio cultural, que inclua segundo o mesmo, o

    gesto, o hbito, a maneira de ser da nossa comunidade2. Magalhes, portanto,

    conseguiu estender a proteo do Estado ao patrimnio no-consagrado,

    relacionado cultura popular e aos cultos afro-brasileiros.

    A EMERGNCIA DA CULTURA IMATERIAL NA AGENDA PATRIMONIAL

    O incio dos anos 70 marca uma pgina importante no processo de

    ampliao da agenda de polticas patrimoniais no mundo. O desafio da Unesco,

    2 MAGALHES, Alosio. E Triunfo?: A questo dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira; [Braslia]: Fundao Nacional Pr-Memria, 1985, p. 63.

  • 6

    naquele momento, consistia em garantir um acordo internacional de proteo aos

    bens que ultrapassasse o j desgastado conceito de patrimnio, cuja

    caracterizao estava assentada nos bens materiais. A 17 Conveno pela

    Proteo do Patrimnio Mundial, Cultural e Natural de 1972, foi um passo

    importante no processo de ampliao da noo dos bens a serem protegidos, ao

    incluir o meio ambiente no seu texto. No entanto a parte relativa aos bens culturais

    considerava como patrimnio apenas os bens mveis e imveis. Como atesta o

    artigo 1 da Conveno, eram considerados como patrimnio cultural:

    Os monumentos. Obras arquitetnicas, de

    escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de

    carter arqueolgico, inscries, grutas e grupos de elementos

    com valor universal excepcional do ponto de vista da histria, da

    arte ou da cincia;

    Os conjuntos. Grupos de construes isoladas ou

    reunidas que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integrao

    na paisagem tm valor universal excepcional do ponto de vista da

    histria, da arte ou da cincia;

    Os locais de interesse. Obras do homem, ou

    obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo

    os locais de interesse arqueolgico, com um valor universal

    excepcional do ponto de vista histrico, esttico, etnolgico ou

    antropolgico.

    Na esteira da Conveno de 1972, representantes da Bolvia apresentaram

    Unesco uma proposta voltada para a regulamentao da proteo e da

    promoo do folclore. importante lembrar que, na poca, o termo bem imaterial

    ou intangvel no compunha a pauta dos documentos oficiais nem despontava

    como um conceito.

    Desse modo, o princpio que norteou as aes voltadas para o patrimnio

    imaterial, no incio das atividades da Unesco, se inseriam no propsito das Naes

    Unidas em proporcionar os meios para a sobrevivncia da diversidade cultural em

    todos os pases. Esse intuito relacionava-se necessidade de evitar que culturas

    locais e grupos tnicos fossem alvo de perseguies polticas e mesmo religiosas,

  • 7

    fato que se sucedera ao longo do sculo XX. Outras preocupaes voltavam-se

    para efeitos da globalizao na uniformizao das culturas. Diante desse quadro

    etnocntrico e homogeneizante, era necessrio desenvolver propostas que

    fomentassem a diversidade e a liberdade das manifestaes culturais em diversas

    partes do mundo.

    Em 1982, durante a Conferncia sobre as Polticas Culturais ocorrida no

    Mxico, a idia de cultura imaterial passou a integrar os textos oficiais da Unesco.

    Nessa ocasio, a cultura era compreendida como a totalidade dos traos

    distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos. 3 No entanto, as aes

    mais efetivas com vistas regulamentao dos bens imateriais s foram levadas a

    xito no documento Recomendao sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e

    Popular da Unesco em 1989.

    Foram os pases orientais e os do chamado Terceiro Mundo os principais

    responsveis pelas reivindicaes em prol da ampliao do conceito de

    patrimnio. Como afirma SantAnna, quando nos anos 50, o Japo instituiu uma

    primeira legislao de preservao do seu patrimnio cultural, no foram obras de

    arte e edificaes o seu alvo, mas o incentivo e o apoio a pessoas e grupos.4 Em

    pases da sia, da Amrica Latina e da frica, as culturas tradicionais e orais

    desempenham um papel decisivo na formao das identidades locais. Desse

    modo, esses pases exerceram avanos na legislao de proteo s culturas

    tradicionais face Europa, que continuava mantendo a concepo clssica de

    patrimnio.

    O Brasil, antes mesmo da Recomendao Internacional de 1989, trazia no

    texto da sua Constituio de 1988, referncias ao patrimnio cultural brasileiro

    entendido como os bens de natureza material e imaterial, tomados

    individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao,

    3 Cf. Conferncia Mundial sobre as Polticas Culturais, Mxico, 1982.

    4 SANTANNA, Mrcia. A face imaterial do patrimnio cultural: os novos instrumentos de

    reconhecimento e valorizao. In. ABREU, Regina e CHAGAS, Mrio(orgs). Memria e patrimnio. Ensaios contemporneos.p 49.

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    memria dos diferentes grupos (...). 5 Apesar de o texto constitucional prezar pela

    abrangncia do patrimnio, as interpretaes em torno dos bens passveis de

    serem tombados ainda suscitavam debates e muitas vezes geravam obstculos

    aos avanos da legislao em torno do patrimnio imaterial. Porm em 2000, o

    Brasil deu um importante passo atravs do Decreto 3.551 o qual estabeleceu o

    Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimnio

    cultural brasileiro.

    O Decreto de 3.551 foi uma das aes pioneiras de registro de bens

    imateriais no mundo, antecipando-se Conveno para a Salvaguarda do

    Patrimnio Cultural Imaterial, realizada em Paris no ano de 2003, considerada um

    marco das aes de salvaguarda no mundo inteiro. O patrimnio imaterial

    definido na Conveno como o conjunto de:

    Prticas, representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas -

    junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que

    lhes so associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns

    casos, os indivduos reconhecem como parte integrante de seu

    patrimnio cultural.

    Uma das preocupaes dos relatores desse documento era a de esclarecer

    a aplicao do termo salvaguarda. Aparentemente o significado dessa expresso

    levaria a uma compreenso clssica do conceito de patrimnio, em que

    salvaguardar significa resgatar e preservar. No entanto a palavra preservao

    poderia levar a interpretaes que se aproximam da idia de museificao. No

    caso da cultura imaterial, por se tratarem de manifestaes mutveis,

    ressignificadas ao fio dos tempos, o adjetivo preservao adquiria um tom

    inadequado. Para evitar esse tipo de conceituao, a Conveno da Unesco

    definiu como salvaguarda:

    5 BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF:

    Senado, 1988.

  • 9

    As medidas que visam garantir a viabilidade do patrimnio cultural

    imaterial, tais como a identificao, a documentao, a

    investigao, a preservao, a proteo, a promoo, a

    valorizao, a transmisso essencialmente por meio da

    educao formal e no-formal - e revitalizao deste patrimnio em

    seus diversos aspectos.

    Dessa forma a salvaguarda se dedica a garantir a integridade dos meios

    que possibilitem a manifestao e a produo dos bens imateriais. A inteno

    garantir os meios de existncia e propagao desse patrimnio. Nesse aspecto,

    um dos primeiros passos do processo de salvaguarda o da criao de

    mecanismos que garantam o acesso informao e documentao sobre essas

    manifestaes culturais. No caso brasileiro, essas aes de salvaguarda se

    intensificaram com o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial, implantado pelo

    Governo Federal em parceria com instituies dos governos estaduais e

    municipais, universidades, organizaes no-governamentais, agncias de

    desenvolvimento e organizaes privadas ligadas cultura, pesquisa e ao

    financiamento.

    O texto produzido na Conveno de 2003 foi aprovado pelo Congresso

    Nacional brasileiro e promulgado pelo Governo Federal atravs do Decreto 5.753

    de 2006. Apesar de ser um passo importante para a incluso desse patrimnio na

    agenda jurdica, ainda h um longo caminho a ser trilhado no campo das polticas

    pblicas, bem como na elaborao de conhecimentos sobre a cultura imaterial no

    Brasil.

    LIMITES E APROPRIAES CONCEITUAIS

    Conforme foi ressaltado, a polissemia do conceito de cultura imaterial tem

    suscitado vrios debates, desde os anos oitenta quando a expresso adquiriu

    fora nas convenes da Unesco. O termo imaterial tambm chamado de

    intangvel na verso inglesa (intangible heritage), a princpio foi criado no intuito

  • 10

    de distinguir o patrimnio que ela recobre (imaterial), dos que j faziam parte das

    convenes da Unesco, os patrimnios materiais (fsicos) e naturais. Desse modo,

    as diferentes maneiras pelas quais as comunidades e grupos se representam e

    representam o mundo que os cerca, seriam tambm um patrimnio a ser zelado

    pela humanidade. Ritos, crenas, festejos e formas artsticas seriam apenas

    alguns exemplos da variedade de manifestaes que entrariam na definio de

    cultura imaterial. No entanto, o uso do termo apresenta alguns limites de

    aplicao. A questo que se coloca a seguinte: por que h a necessidade de se

    dividir a cultura em bens tangveis e intangveis se todas as crenas, hbitos e

    representaes presentes possuem um anteparo material? O prprio texto da

    Conveno da Unesco nos revela a resposta: essa diviso nasce da necessidade

    de incluir e ampliar as categorias de bens sujeitos s polticas patrimoniais. Para

    tanto, era preciso garantir a especificidade de determinados bens a fim de que

    recebessem uma maior ateno das aes de salvaguarda.

    No entanto, apesar dos limites do termo imaterial, o sentido que ele

    carrega, apresenta algumas consideraes que vo de encontro ao conceito de

    monumentalidade, prprio noo clssica de patrimnio. A noo de cultura

    intangvel permite considerar que no so os objetos os elementos mais

    importantes da cadeia do patrimnio, mas o processo envolvido na sua produo.

    Quando se afirma que uma determinada iguaria culinria, tal como o acaraj, pode

    ser considerada um bem imaterial, essa afirmao no se refere ao alimento em

    si, mas teia de significados e tradies envolvidas no seu preparo. Desse modo,

    a relao que os grupos estabelecem com seus artefatos, com o meio ambiente

    ou com os indivduos que se constitui a dimenso intangvel da cultura. Essas

    consideraes revelam um novo instrumental de valorizao de elementos que,

    durante muitos anos, sobretudo no Ocidente, estiveram relegados ao segundo

    plano. Elementos como as expresses corporais, os cnticos, a oralidade, os ritos

    etc. Nesse sentido, pensar a dimenso imaterial da cultura, perceber a

    importncia da contribuio de aspectos como a oralidade, os gestos e o papel

    dos atores. Os indivduos se tornam tambm um patrimnio. Essa concepo

  • 11

    permite uma maior valorizao do subjetivo face ao objetivo, dos produtores face

    aos produtos, da pessoa face ao objeto.

    Desse modo, as consideraes acerca do patrimnio imaterial permitem

    uma apreenso horizontal da cultura, colocando no mesmo patamar das aes de

    salvaguarda tanto as culturas escritas e monumentais como aquelas fundadas nas

    tradies dos gestos e da voz. Trata-se, portanto, de desfazer as hierarquias

    impostas pelas polticas patrimoniais e permitir um olhar mais plural e menos

    etnocntrico sobre a cultura.

    CULTURA IMATERIAL E CULTURA POPULAR

    comum haver a associao entre a definio de cultura imaterial e a

    cultura popular. De fato, boa parte dos bens inscritos nessa categoria fazem parte

    do rol de manifestaes prprias s comunidades tradicionais, cujas prticas esto

    assentadas na tradio oral e nas manifestaes ldicas.

    Historicamente as expresses das culturas tradicionais, foram alvo de

    diferentes tipos de perseguies e em vrios casos, a liberdade de exercerem

    suas prticas esteve cerceada por impositivos polticos e em alguns casos

    religiosos. Vrias referncias culturais de diferentes comunidades tradicionais

    estiveram, sob diversas situaes, reprimidas a ponto de perderem-se ao longo do

    tempo. Com vistas a evitar sobreposies culturais e cerceamentos polticos,

    rgos nacionais e internacionais esforam-se em garantir as condies para que

    as culturas tradicionais possam se manifestar e se reproduzir.

    No entanto, a noo de patrimnio relacionada s culturas populares, deve

    levar em considerao a teia de relaes envolvida na gerao, transmisso e

    consumo dos bens culturais. Alm disso, o grande desafio evitar que essas

    manifestaes se tornem padronizadas ou mesmo petrificadas. Para isso, o

    conceito de patrimnio imaterial permite considerar a mobilidade dos atores

    envolvidos, as diversas recriaes e ressignificaes desses bens a partir das

    diferentes geraes e camadas sociais. O objetivo evitar o intervencionismo

    governamental e permitir uma maior autonomia dos atores na apropriao de suas

  • 12

    manifestaes culturais. Essa dinmica requer um equilbrio de foras entre a

    ao do Estado, no sentido de patrimonializar esses bens, e as prticas e

    expresses das comunidades. A soluo desse impasse garantir uma poltica

    patrimonial cujo escopo seja o de fomentar, documentar e acompanhar as

    manifestaes da cultura imaterial a partir dos prprios valores que as

    comunidades portam sobre seus bens.

    Apesar da ntima relao entre os bens imateriais e as culturas populares,

    no plano conceitual, os bens intangveis referem-se a todas as prticas culturais

    que se constituem como marcos identitrios de quaisquer indivduos e/ou grupos

    sociais.

    O INRC E OS PROCEDIMENTOS DE IDENTIFICAO

    No Brasil um dos principais instrumentos para identificao, documentao

    e salvaguarda de bens culturais o Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    INRC. Elaborado nos finais dos anos 1990 sob a coordenao de Antnio Augusto

    Arantes, o INRC se constitui em um instrumento que visa: identificar e

    documentar bens culturais de qualquer natureza, para atender demanda pelo

    reconhecimento de bens representativos da diversidade e pluralidade culturais dos

    grupos formadores da sociedade, 6. Alm disso o INRC visa perceber as

    representaes e significados que os bens culturais assumem para os moradores

    de stios tombados, reconhecendo-os enquanto importantes atores no processo

    de preservao.

    Construdo com base em experincias anteriormente desenvolvidas, a

    exemplo do extinto Centro Nacional de Referncias Culturais (1975-1979) e outros

    projetos de levantamento realizados pelo pas, o INRC se constitui em um

    conjunto de procedimentos metodolgicos a serem aplicados sob a constante

    superviso do IPHAN. Um dos seus principiais objetivos subsidiar conceitual e

    tecnicamente grupos e entidades interessados na sistematizao de dados e na

    6 Ver Inventrio Nacional de Referncias Culturais. INRC 2000 - Manual de Aplicao. Braslia:

    IPHAN, 2000, p. 08.

  • 13

    produo de inventrios que promovero polticas de salvaguarda de bens

    culturais, sejam eles de natureza material ou imaterial.

    A partir de instrues que abrangem diversas etapas do processo, desde a

    identificao do bem cultural at o preenchimento de formulrios para a

    estruturao do inventrio, a metodologia proposta no INRC visa identificar,

    inventariar, documentar e registrar bens, com vistas a garantir as condies de

    produo e reproduo do patrimnio, sua proteo e/ou sua preservao.

    Etapa fundamental desse processo, o inventrio se baseia em uma

    investigao sistemtica e exaustiva de todos os dados que possam colaborar na

    montagem de uma espcie de dossi sobre determinado bem patrimonial. De

    acordo com o INRC, um inventrio dever ser estruturado a partir das seguintes

    categorias de bens culturais:

    Celebraes - Rituais e festas ligadas religio,

    civilidade, ao calendrio, etc, que marcam a vivncia coletiva de

    grupos. Ex: carnaval, So Joo, festas religiosas como a do Divino

    Esprito Santo ou a lavagem da escadaria do Bonfim na Bahia;

    Formas de expresso - Manifestaes literrias,

    musicais, plsticas, cnicas e ldicas que so marcadas por

    normas, expectativas, e padres construdos a partir do costume,

    reconhecidas por uma comunidade. Ex: o cordel, a xilogravura, os

    maracatus, a ciranda, as cantorias dos repentistas, etc

    Ofcios e modos de fazer - Conhecimentos de modos de

    fazer que identificam um determinado grupo a partir de tcnicas

    de produo ou pela utilizao de matrias primas especficas. Ex:

    a forma de cozinhar um alimento, o benzimento contra doenas e

    mal olhado, o modo de entalhar a madeira ou de fazer renda por

    diferentes comunidades;

  • 14

    Edificaes - Espaos construdos que, independente

    da sua qualidade artstica e/ou arquitetnica, concentram e

    reproduzem prticas culturais coletivas de significados para um

    grupo. Ex: mercados, praas, sede de um terreiro ou bloco

    carnavalesco;

    Lugares - espaos apropriados por atividades e prticas

    de natureza variadas por determinada comunidade. Pode ser uma

    rvore sagrada ou outro lugar da natureza considerado como

    referncia para um grupo, ou espaos como feiras e mesmo

    bairros inteiros.

    Alicerada na noo de bens culturais enquanto produtos histricos

    dinmicos e mutveis, a metodologia do INRC busca entender a abrangncia dos

    processos culturais e das transformaes dos padres e prticas em curso,

    percebendo que as tradies se transformam e se reiteram como condio

    necessria sua permanncia. O estabelecimento de aes de salvaguarda e a

    participao da comunidade so fatores ressaltados como fundamentais ao longo

    do processo.

    Assim, a noo de patrimnio imaterial, idealizada enquanto sistema

    complexo de significados marcantes que os indivduos reconhecem como parte de

    seu patrimnio cultural, abre novos caminhos, na medida em que rompe com a

    idia limitada de bem patrimonial, ampliando as questes referentes sua

    proteo e preservao.

    Contudo os desafios enfrentados no cotidiano pelas polticas pblicas e

    pela legislao criada no so poucos. Lidar com bens culturais sujeitos a uma

    dinmica de constantes e permanentes mudanas, elaborar diferentes formas de

    salvaguard-los, implementar, na prtica, critrios para bens to complexos e

    subjetivos no so tarefas fceis. Outras questes, referentes disposio, de

    certa forma, dicotmica, entre as noes de patrimnio material e imaterial,

    continuam alimentando os debates entre os estudiosos e interessados no tema:

  • 15

    Como separar de forma inequvoca o que seria um bem material e um imaterial?

    Como preservar bens intangveis, quando os mesmos esto sujeitos a tantas

    transformaes? Como lidar com a idia corrente de manuteno de uma suposta

    autenticidade desses bens intangveis? Com a ampliao da rea de

    abrangncia do conceito, como decidir sobre a escolha do que deve ser

    preservado?

    O momento de discusso e aprendizado diante das novas perspectivas

    que foram abertas. A metodologia do inventrio, longe de encerrar o debate, se

    constitui em experincia importante nos sentido de viabilizar aes oficiais e a

    destinao de recursos em programas governamentais para o setor cultural.

    BIBLIOGRAFIA

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