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Adonai Sant'Anna Matemática e Sociedade terça-feira, 18 de novembro de 2014 Patrick Suppes Na manhã de 2 de maio de 1994 defendi minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo. Durante o almoço, logo após a defesa, meu co-orientador, Professor Francisco Doria, perguntou: "E então? Quer ir pra Stanford?" Respondi com um imediato sim. Meses depois recebi uma carta de Patrick Suppes, com um convite para eu realizar estágio de pós-doutoramento na Universidade Stanford. Em 1995 eu desembarcava com minha (então) esposa e meu filho de quatro anos no aeroporto de San Jose, California. De lá pegamos táxi para um hotel em Mountain View, no Vale do Silício. No dia seguinte cheguei a Ventura Hall, em Stanford, e me apresentei a Suppes. Ele demorou alguns segundos para entender quem, afinal de contas, era aquele sujeito de sotaque esquisito. Afinal Suppes pronunciava meu nome como Édonai. Assim que a breve confusão foi desfeita, Suppes imediatamente chamou sua secretária para me ajudar na localização de um apartamento para alugar. Na época havia uma única opção: um apartamento de dois quartos, com uma ampla sala, pela bagatela de 925 dólares por mês. O apartamento ficava em Menlo Park, local que sedia a mais antiga estação ferroviária da California. Uma orientada de Suppes também foi convocada. Ela me deu carona de volta ao hotel e, de lá, a família toda se dirigiu ao apartamento. Suppes já havia conversado com a dona do imóvel por telefone. E, com um pouco de negociação, consegui convencê-la a alugar o apartamento a partir daquele mesmo dia. Logo depois retornei a Ventura Hall e conversei brevemente com Suppes. Ele tinha Início

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Adonai Sant'Anna

Matemática e Sociedade

terça-feira, 18 de novembro de 2014Patrick Suppes

Na manhã de 2 de maio de 1994 defendi minha tese de doutorado na Universidade deSão Paulo. Durante o almoço, logo após a defesa, meu co-orientador, ProfessorFrancisco Doria, perguntou: "E então? Quer ir pra Stanford?" Respondi com umimediato sim.

Meses depois recebi uma carta de Patrick Suppes, com um convite para eu realizarestágio de pós-doutoramento na Universidade Stanford. Em 1995 eu desembarcavacom minha (então) esposa e meu filho de quatro anos no aeroporto de San Jose,California. De lá pegamos táxi para um hotel em Mountain View, no Vale do Silício. Nodia seguinte cheguei a Ventura Hall, em Stanford, e me apresentei a Suppes. Eledemorou alguns segundos para entender quem, afinal de contas, era aquele sujeito desotaque esquisito. Afinal Suppes pronunciava meu nome como Édonai.

Assim que a breve confusão foi desfeita, Suppes imediatamente chamou suasecretária para me ajudar na localização de um apartamento para alugar. Na épocahavia uma única opção: um apartamento de dois quartos, com uma ampla sala, pelabagatela de 925 dólares por mês. O apartamento ficava em Menlo Park, local quesedia a mais antiga estação ferroviária da California.

Uma orientada de Suppes também foi convocada. Ela me deu carona de volta ao hotele, de lá, a família toda se dirigiu ao apartamento. Suppes já havia conversado com adona do imóvel por telefone. E, com um pouco de negociação, consegui convencê-la aalugar o apartamento a partir daquele mesmo dia.

Logo depois retornei a Ventura Hall e conversei brevemente com Suppes. Ele tinha

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compromissos naquele dia e me deu carona para fora do campus, em seu Mercedes-Benz. No caminho Suppes perguntou no que eu estava trabalhando. Expliquei queminha tese de doutorado era sobre teoria de categorias. Ele respondeu com umsimples aham. Naquele instante entendi que era ele quem decidiria no que eu deveriatrabalhar.

No dia seguinte Suppes explica que precisará viajar por alguns dias e recomenda queeu leia o livro The Quantum Vacuum, de Peter Milonni. Ele queria que eu trabalhasseem um modelo semiclássico para a física quântica, o qual havia iniciado em parceriacom outro brasileiro, José Acacio de Barros. Suppes tinha um interesse específico noefeito Casimir.

Meu conhecimento sobre física quântica, na época, se limitava ao regime não-relativístico. Eu não sabia coisa alguma sobre eletrodinâmica quântica. Mas tinha quedominar os requisitos necessários para começar a discutir sobre um possível modelocorpuscular para o efeito Casimir, até o seu retorno, que se daria em alguns dias.

Comprei o livro de Milonni na livraria de Stanford e um notebook Toshiba no Walmart.E então comecei a trabalhar. Por sorte a obra de Milonni era muito bem escrita,objetiva e clara. Todos os dias eu estudava na minha sala, em Ventura Hall, e emcasa.

Ao retornar de viagem, Suppes organizou seminários semanais sobre estatística efísica, com a participação de gente do calibre de Max Dresden, que na épocatrabalhava no Stanford Linear Accelerator Center (SLAC). Foi Dresden quem deu aideia que viabilizou a concepção do tal modelo corpuscular semiclássico para o efeitoCasimir.

Em um ou dois dias as equações básicas para o modelo estavam no papel. Suppes seempolgou com as contas iniciais. Mas, com o tempo, se mostrou bastante cético.Poucas semanas depois chega Acacio de Barros, que se envolve no projeto.

Suppes, Acacio e eu conversávamos diariamente. Para cada dia havia uma novaversão do artigo, que era exaustivamente analisada.

Acacio foi uma das pessoas mais criativas que já conheci. Era uma fonte inesgotávelde ideias e um curioso compulsivo. Paralelamente ao projeto sobre o efeito Casimir,ele pensava nas relações entre física clássica e o teorema de Bell, da mecânicaquântica.

Lá pela quinquagésima versão, o artigo foi submetido para publicação em Foundationsof Physics Letters. Lembro que eu havia questionado com Suppes sobre a origem denossa fórmula para a energia do estado de vácuo. Expliquei a Suppes que naqueleartigo não havia uma única justificativa para aquela fórmula, apesar do formalismo

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canônico usual da eletrodinâmica quântica permitir a dedução dela. Ele entãorespondeu: "Temos que assumir algum ponto de partida". Ou seja, Suppes sugeriu quenossa fórmula funcionava como uma espécie de postulado.

Semanas depois vieram os pareceres sobre o artigo. Um dos referees questionoujustamente a origem de nossa fórmula para a energia do vácuo. Suppes olhou paramim, com a carta do editor na mão, e perguntou: "A gente havia conversado algo arespeito disso, não foi?" E, ingenuamente, respondi: "Sim. O senhor havia dito quedeveríamos assumir algum ponto de partida." Suppes não gostou muito de minhaimpertinência.

Nesse meio tempo Acacio apresentou a ideia de provar a violação das desigualdadesde Bell no contexto da eletrodinâmica clássica. Achei aquilo muito esquisito, masSuppes se empolgou com a ideia.

Nós três começamos a trabalhar em dois novos artigos: um sobre o teorema de Bell naeletrodinâmica clássica e outro sobre o teorema de Bell no modelo corpuscularsemiclássico para física quântica.

Questionei tanto as ideias de Acacio que Suppes chegou a brigar comigo. Aquele foium dia realmente difícil. Senti-me uma espécie de criador de caso. Acacio, no entanto,encarava minhas críticas de forma completamente diferente. Ele percebia que provar aviolação das desigualdades de Bell em regime clássico era uma ideia extremamenteousada e, portanto, questionável. Mesmo assim o artigo foi submetido para publicação,desta vez em Physical Review Letters.

Por tremendo azar, aquele trabalho caiu nas mãos de um referee absolutamenteprimário, que sequer conhecia noções elementares sobre teoria de probabilidades.Acacio e eu ajudamos Suppes a escrever a resposta ao referee. Mas não teve jeito. Oartigo foi recusado.

Resumindo a história, o trabalho sobre o efeito Casimir foi publicado, bem como oartigo sobre o teorema de Bell no modelo corpuscular semiclássico. Mas o projetosobre violação das desigualdades de Bell na eletrodinâmica clássica se limitou a umpreprint ainda disponível na internet.

Após um ano, chegou o momento de retornar ao Brasil. Acacio já havia partido háalgum tempo. Em meu último dia em Stanford, Suppes deixou um artigo sobre minhaescrivaninha, na sala que eu havia dividido com um americano, uma chinesa e,posteriormente, com um casal de franceses. Era um texto sobre o papel do filósofo daciência na atualidade, que exerce forte influência sobre mim até hoje. Poucos diasantes, minha esposa, meu filho e eu jantamos com Suppes e uma de suas filhas. Ouseja, não ficaram mágoas, apesar dos atritos em uns poucos momentos.

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Em seu último livro, uma espécie de memorial de toda a sua obra em filosofia daciência, Suppes faz um agradecimento a mim, algo que me honra muito. Tambémrecebi pelo correio uma cópia deste livro com uma exagerada dedicatória.

Certamente não estou entre os colaboradores mais importantes de sua carreira. Maspelo menos guardo um pouco deste contato pessoal e profissional que durou um ano eque era praticamente diário, chegando a ocorrer até mesmo em alguns domingos.

Eu poderia ter escrito nesta postagem um texto melhor comportado, menos pessoal,destacando as contribuições de Patrick Suppes à filosofia, à matemática, à estatística,à psicologia, à educação, à neurologia e à física teórica. Poderia também ter detalhadopor que Patrick Suppes recebeu do Presidente George H. W. Bush a MedalhaNacional de Ciência, o mais importante prêmio científico dos Estados Unidos. Mas seique muitos escreverão sobre essas conquistas a partir do dia de hoje. Isso porqueontem Patrick Suppes faleceu, deixando um legado ainda muito ignorado no Brasilmas amplamente lembrado em todo o resto do planeta.

Aliás, a última vez em que vi Suppes foi justamente no Brasil, quando esteve emFlorianópolis, em evento que prestava homenagem a ele. São poucos os filósofosbrasileiros que conhecem algo sobre a magnífica obra de Patrick Suppes. Mas essespoucos bastaram para atrair a sua atenção para o nosso país.

Suppes conhecia melhor a produção de filósofos, físicos e matemáticos brasileiros doque a maioria de nós mesmos. E este é um dos aspectos que mais pude admirar nestegrande pensador.

Em contrapartida, quando tentei traduzir seu último livro para o nosso idioma, recebi deeditores a resposta de que esse tipo de literatura não interessa ao mundo acadêmicobrasileiro. Afinal, quem se interessa por isso já lê diretamente o texto original.

Houve desencontros sim, entre Suppes e eu. E esses desencontros são extremamentecomuns entre pesquisadores. Mas, no final das contas, ainda era o conhecimentocientífico que falava mais alto.

Suppes foi generoso o bastante para prefaciar meu primeiro livro, confiando em umbreve resumo em inglês que fiz da obra, hoje praticamente esquecida. Manteve-meatualizado sobre seus últimos estudos a respeito do cérebro humano, publicados emProceedings of the National Academy of Sciences. E, mais importante do que tudo,ensinou-me que o avanço da ciência depende fundamentalmente de riscos. Ser alvode críticas (vindas de referees ou mesmo de colegas) jamais deve ser traduzido naforma de covardia travestida de cautela.

Ciência é ousadia. E esta lição aprendi com Patrick Suppes (1922-2014), o mestre quehoje descansa fisicamente, mas que respira através de sua perene obra.

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Adonai às 04:26

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9 comentários:

Anônimo 18 de novembro de 2014 09:14Estou lendo o livro dele: Axiomatic set theory.Responder

Adonai 18 de novembro de 2014 10:51Anônimo

É uma excelente obra, com conteúdos muito raros em outros livros. Um clássico.

Joao Luiz Faria 18 de novembro de 2014 10:22"...covardia travessia de cautela...". Será que este anônimo sente algo similar?"Em contrapartida, quando tentei traduzir seu último livro para o nosso idioma, recebi de editores aresposta de que esse tipo de literatura não interessa ao mundo acadêmico brasileiro. Afinal, quem seinteressa por isso já lê diretamente o texto original."Na minha modesta opinião, este comentário dos editores está equivocado. Apesar da realidade doensino superior brasileiro, ainda creio que existiria público sim. Uma tradução bem feita pode estimularmuitos estudantes a assuntos mais complexos. Lamentável a visão de editores. Visão Money, cegueiraEducacion.Responder

Adonai 18 de novembro de 2014 10:50João Luiz

No Brasil existe uma lamentável desvalorização da língua portuguesa. Certamenteprecisamos de mais traduções para nosso idioma. Mas a culpa não é apenas de editores.Vivemos em um país que lê muito pouco.

Danimar Ribeiro 18 de novembro de 2014 14:14Um dos melhores textos que já li aqui, gostei bastante desse depoimento.Fiquei me perguntando porque o trabalho sobre "violação das desigualdades de Bell" foi esquecido, sevocê ainda acredita que o revisor do periódico estava errado? Ainda sou estudante de física, então não

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entendo muito sobre esse universo de artigos e revisões.Responder

Adonai 18 de novembro de 2014 14:39Danimar

Não acho que o revisor estivesse errado em suas conclusões. Ele apenas usou argumentosestúpidos. Mas ainda acho que as desigualdades de Bell não podem ser violadas naeletrodinâmica clássica. Não faz sentido. Por isso mesmo que afirmei achar esquisita estaideia de Acacio. Teorias clássicas de campos são realistas e locais. Essas duas hipótesesjuntas são inconsistentes com qualquer violação das desigualdades de Bell.

Mariia Espindola 18 de novembro de 2014 15:43Muito obrigada! Parabéns!Ainda estou engatinhando em fundamentos da Matemática e da Física, mas ter uma obra como"Representation and Invariance of Scientific Structures" do Professor Supess à disposição é algoincomensurável! Seria muito interessante a tradução...Responder

rebeldiametafisica 6 de dezembro de 2014 22:52Estou muito curioso acerca do artigo sobre o papel do filósofo da ciência nos dias atuais com que ohomenageado te presenteou em teu último dia em Stanford. Talvez outros leitores também estejam; osenhor poderia fazer a gentileza de nos informar o título (e o autor, caso não seja o Suppes)?Responder

Adonai 6 de dezembro de 2014 23:07rebeldiametafisica

O título do artigo é "Philosophy and the sciences". O autor é Patrick Suppes. E o artigo estáno livro Acting and Reflecting (editado por W. Sieg e publicado em 1990 pela KluwerAcademic; páginas 3 a 30). Há um trecho no artigo que diz o seguinte sobre o papel dofilósofo da ciência: "We are no longer Sunday's preachers for Monday's scientific workers, butwe can participate in the scientific enterprise in a variety of constructive ways. Certainfoundational problems will be solved better by philosophers than by anyone else. Otherproblems of great conceptual interest will really depend for their solution upon scientistsdeeply immersed in the discipline itself, but illumination of the conceptual significance of thesolutions can be a proper philosophical role."

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Adonai

Professor Associado do Departamento de Matemática da UFPR. Autor de dois livros sobre lógicapublicados no Brasil, e de dezenas de artigos publicados em periódicos especializados dematemática, física e filosofia, no Brasil e no exterior. Atualmente está trabalhando em dois projetos

cinematográficos, sendo que um deles visa uma crítica inédita às universidades federais brasileiras. Para maisdetalhes ver a página "Sobre o autor do blog".Visualizar meu perfil completo

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