passos, jose luiz - romance com pessoas

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PASSOS, José Luiz. Romance com pessoas: a imaginação em Machado de Assis. "a justa visão do outro desmantelada pelo império do autoengano" p. 31 "A introspecção imobiliza o olhar, vitrifica-o." p. 39 "enquanto no primeiro Machado a inconstância é uma falta moral que a narrativa pune pelo isolamento ou pela ironia, na sua segunda fase tal característica passa a dominar a composição do enredo e o caráter do próprio narrador, oferecendo-lhe método e vantagem" p. 49 "incapaz de formar uma família pela sua humilhante inconstância e pela debilidade da sua força de vontade" p. 51 "Os amantes em Machado são de dois tipos: há aqueles que olham para fora do eu, buscando consolar-se da solidão, da vergonha ou de ambições privadas; e há os que tomam o amor como método de mergulho dentro de si. Para estes, o autoconhecimento, mesmo iludido, é um modo de estar removido do mundo, cativando ou acusando seus pares pela memória ou introspecção. Esse é o caso dos heróis de cepa desalentada - não raro, quase trágica (...). Buscam a redenção dentro do eu, armando ou refazendo acordos com o que foram." p. 54

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Page 1: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

PASSOS, José Luiz. Romance com pessoas: a imaginação em Machado de

Assis.

"a justa visão do outro desmantelada pelo império do autoengano" p. 31

"A introspecção imobiliza o olhar, vitrifica-o." p. 39

"enquanto no primeiro Machado a inconstância é uma falta moral que a

narrativa pune pelo isolamento ou pela ironia, na sua segunda fase tal

característica passa a dominar a composição do enredo e o caráter do próprio

narrador, oferecendo-lhe método e vantagem" p. 49

"incapaz de formar uma família pela sua humilhante inconstância e pela

debilidade da sua força de vontade" p. 51

"Os amantes em Machado são de dois tipos: há aqueles que olham para fora

do eu, buscando consolar-se da solidão, da vergonha ou de ambições

privadas; e há os que tomam o amor como método de mergulho dentro de si.

Para estes, o autoconhecimento, mesmo iludido, é um modo de estar removido

do mundo, cativando ou acusando seus pares pela memória ou introspecção.

Esse é o caso dos heróis de cepa desalentada - não raro, quase trágica (...).

Buscam a redenção dentro do eu, armando ou refazendo acordos com o que

foram." p. 54

"Há, por outro lado, um tipo de amor que marca protagonistas de tendência ou

intenção cômica, na sua determinação em integrar-se ao mundo. Esses olham

para adiante. são representados, em geral, pelos personagens femininos ou

heroínas, para quem certa racionalização do amor lhes oferece a possibilidade

de superar seu passado." p. 54

"o amor em Machado possui uma disjunção ao mesmo tempo cronológica e de

gênero" p. 54

Page 2: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

Se toda literatura machadiana desenvolve "o tema do contrato do indivíduo

consigo mesmo (...) como os heróis se imaginam e se enfrentam às limitações

da própria consciência que têm de si" p. 59, a forma só se desenvolve

completamente quando a narração nega ao leitor a informação precisa de

quem o personagem é, deixando-nos apenas com o que ele pensa ser. Os

heróis de Machado enfrentam os "três impasses morais clássicos: conhecer o

outro, conhcer-se e deixar-se conhecer" p. 59

"me parece estar no cerne da relação entre personagem e pessoa: a

capacidade essencial que atribuímos a uma pessoa moral de dar-se conta de

si, assumir seus próprios desígnios e imaginar-se diferente" p. 64

A segunda exigência filosófica do conceito da pessoa humana elaborado pelo

século XX é de quem pessoa é um ser racional (primeira exigência) capaz de

assumir diversos estados de consciência, o que faz dota suas ações de

intencionalidade p. 65

"A dissimilaridade é a raiz do conceito da pessoa humana" e se realiza na

"aptidão do protagonista para imaginar-se desigual a si mesmo" p.66

"A ação social não é equivalente a toda e qualquer espécie de ação humana; é

uma atitude orientada pela expectativa de atuação dos demais." p. 75

"na narrativa a 'ação' tem pelo menos dois níveis de significado. Primeiramente,

|aquele que se refere às próprias atitudes dos personagens; aquilo que eles

realizam em determinado instante (...)" p. 76-77 O segundo nivel é o da

organização dessas decisões pontuais pelo enredo. Isso dota as ações de

sentido p. 77

Enquanto nos dois primeiros romances o desenlace negativo enforma uma

condenação moral à dissimulação, em A mão e a luva e Iaiá Garcia “o cálculo e

o caráter dissimulado das heroínas são responsáveis pelo estabelecimento de

famílias estáveis, transformando o desenlace num momento de conciliação

entre motivações românticas e necessidades práticas” p. 83. Isso sinaliza um

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acolhimento da dissimulação como componente necessário para a ordem

social.

“A dissimulação (...) é mais do que mero fingimento; é uma habilidade, um

modo particular de perceber e organizar motivações.” P. 84

“a conversa dos adultos denuncia o adolescente a si mesmo, oferecendo-lhe

uma visão mais complexa de seu eu. Ambos, Iaiá e Bentinho, amadurecem

pelos olhos e pela boca dos outros.” P. 89 Há nesse motivo a triangulação de

olhares de que trata ROCHA que permite o conhecimento, pois há uma

confirmação objetiva de uma percepção. Algo que os personagens apenas

intuíam, num nível pré-consciente, é lhes apresentado em nível consciente e

alarga sua capacidade de ver. Esta triangulação repete-se na velhice de Bento,

que se descobre Casmurro na fala do jovem.

“cisma como separação da coletividade, divagação perquiridora, prevenção

contra o outro e receio da má-fé.” p. 90

Iaiá Garcia “é a primeira protagonista de Machado a desenvolver agudeza

moral e capacidade de fingimento ― portanto, de multiplicação do eu ―

apenas observando a possibilidade da malícia alheia.” P. 90

“Machado propõe uma variante importante dentro da lógica que equaciona, em

Alencar e na sua própria primeira fase, a perspicácia das heroínas às suas

humilhações passadas e presentes. E tal variante é representada pelo fato de

que o desenvolvimento da jovem Iaiá Garcia não depende dos percalços de

uma experiência social instável, variada, ou mesmo desconfortável.” P. 104

Parafraseando Passos (p. 105), se as heroínas da primeira fase buscam no

controle racional de si e dos outros a forma de estabilizar as relações sociais;

os heróis da segunda fase denunciam a falha no projeto, pois a razão não lhes

garante nem mesmo a sanidade.

“Esses protagonistas almejam saber o que motiva seus pares, ao mesmo

tempo que se esforçam por mascarar as próprias intenções.” P. 113

Mascarar = ocultar (como o crânio em Os embaixadores)

Page 4: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

nos termos de sua própria linguagem, na qual somos expostos a

informações e percepções que nem sempre são claras para aquele

mesmo indivíduo.” P. 126

Passos (p. 107) crê que a crítica de Machado a O primo Basílio baseia-se no

critério da capacidade de a ficção induzir a uma experiência cognitiva. Essa

proposta consideraria que “o mérito ou demérito moral e a indução do bem não

são critérios nem necessários nem suficientes para o sucesso de um romance

enquanto obra de arte” (Id., ibid.). Já Rocha discorda desse posicionamento.

Passos (p. 110) também afirma que o argumento de Machado contra O primo

Basílio fundamenta-se na oposição entre emoções morais e sensações físicas.

Acreditamos que a questão seja menos fundamentada na ideia de oposição e

mais na ideia de hierarquização. Seguindo raciocínio de Passos, mas

ampliando e corrigindo algumas noções que nos parecem problemáticas,

poder-se-ia afirmar haver quatro tipos de estados psicológicos humanos, sendo

que três seriam provocados por emoções e um por sensações físicas. Entre

esses estados, parece haver uma hierarquia cuja concepção poderia se fundar

tanto em noções ético-culturais como em noções científicas. Os estados das

sensações físicas, como o sofrimento, a satisfação, a ansiedade e a volúpia,

são originados pela relação do homem com o corpo. Tanto numa organização

ético-cultural como científica do mundo, esses estados corresponderiam à base

da hierarquia, já que são experiências que os seres humanos compartilham

com as formas menos evoluídas de vida animal. Por sua vez, os estados

provocados por emoções podem ser diferenciados pelo objeto a quem se

direcionam. Há estados psíquicos provocados por emoções que têm como

objeto um ser definido fora do sujeito: amor, ódio, piedade e medo são algumas

dessas emoções. Por essa característica, podemos chamá-los de estados

psíquicos empáticos (envolvendo, nessa noção, tanto as emoções simpáticas

como antipáticas). Por também serem experiências que seres humanos

compartilham com algumas espécies animais, principalmente entre os

mamíferos, os estados psíquicos empáticos estariam acima dos estados

provocados pelas sensações, mas na camada inferior daqueles provocados por

emoções.

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Restam dois estados psíquicos emocionais a se descrever. Um deles

corresponde àquele conceituado por Passos (p. 110 - 111) como sendo

provocado por emoções de autoexame. O outro, associamos a emoções

transcendentes. O primeiro tem como objeto o próprio eu; o segundo não tem

um objeto específico. Passos elenca como exemplos do primeiro a vergonha, a

culpa, o remorso e o arrependimento ― todas emoções de cunho reprovativo.

Acrescentamos à lista a vaidade, o orgulho e a arrogância ― emoções

fundadas na autoaprovação. Exemplificamos o segundo com a felicidade, a

melancolia e a serenidade, emoções que não se dirigem a um objeto nem são

necessariamente provocadas por um estímulo externo específico.

Identificados esses dois estados como hierarquizá-los? Se

fundamentarmos essa tarefa tomando como base os valores ético-culturais da

sociedade judaico-cristã Ocidental, possivelmente as o estado psíquico

provocado pelas emoções transcendentes seria considerado superior, já que

tais valores reprovam o egotismo e a mesquinharia envolvidos nas emoções de

autoexame. Não obstante, se fundamentarmos essa tarefa tomando como base

critérios científicos, a situação parece inverter-se. As emoções de autoexame

envolvem capacidades cognitivas complexas que, mesmo entre humanos são

aprendidas. Enquanto crianças muito pequenas são capazes de entrar em

estado de serenidade ou de tristeza, apenas a partir de certas etapas do

desenvolvimento são capazes de vivenciar a vaidade ou a culpa. Isso porque

as emoções de autoexame envolvem a capacidade de se identificar como

indivíduo entre todos os outros, analisar-se, comparar-se com o outro, avaliar

as expectativas do outro sobre si, revisitar ações passadas e projetar sucessos

ou insucessos futuros. Envolvem, por isso, a capacidade de assumir

responsabilidade sobre sucessos e insucessos. Estão, portanto, ligadas à

autorreflexividade que a filosofia romântica tanto explorou.

Numa e noutra forma de hierarquização, as emoções de autoexame que

tematizam a obra machadiana ficariam acima das sensações físicas e das

emoções empáticas que, segundo sua crítica, movem a trama de Eça de

Queirós. Não porque os estados psíquicos produzidos pelas emoções de

autoexame sejam moralmente superiores aos outros, mas por serem

experiências específicas da vivência do humano. Considerando as ideias e

produção machadianas em conjunto, e as ideias e produções de Eça (no

Page 6: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

momento da escritura da crítica do futuro autor de Memórias Póstumas) e do

movimento de que na literatura lusófona são representantes, arriscamos

afirmar que os estados emocionais que fundamentam esses autores

constituem as margens opostas desse sistema hierárquico. No entanto, é

preciso que fique claro, isso não determina a superioridade do cabedal literário

de um sobre o do outro. Assinala, apenas, o grau de disparidade das visões de

mundo e de projeto artístico desses contemporâneos.

“O crime do padre Amaro e O primo Basílio possuem um enredo análogo:

tratam das consequências da chegada de um jovem solteiro a uma

comunidade (...) cujos valores são subvertidos pela irresponsabilidade moral

desse homem de fora.” P. 108

“não são punidos, nem exibem nenhum sinal de arrependimento ou remorso” p.

108

Machado “requeria um sentido de propósito para o ato, um contexto no qual

escolhas fizessem sentido e expressassem um encaixe entre crenças,

intenções e ações” p. 114

“a ficção realista nasce do esforço do romantismo para constituir universos

complexos e detalhados do ponto de vista histórico” p. 117

Machado dessemelhante de si (fases)

Passos (p. 119) recordando a função pedagógica das representações visuais

no ensino às crianças dos objetos e seres que compõem o mundo, aventa a

possibilidade de as representações verbais ― destacadamente o romance ―

ter socialmente funcionalidade análoga: “identificar ou nomear emoções,

perspectivas e mesmo experiências antes desconhecidas”. Essa funcionalidade

não faria, necessariamente, dos leitores seres humanos nem mais nem menos

éticos, nem mais nem menos empáticos com outras pessoas. Mas faria dos

seres humanos melhores leitores de outras pessoas: as de papel e as de carne

Page 7: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

e osso (e entre elas, o próprio sujeito). E isso, concordamos com Passos (p.

120) já não é pouco.

“no romance acompanhamos o desenvolvimento de vidas com uma minúcia

impossível a qualquer outro gênero. (...) às vezes dentro de sua cabeça, nos

termos de sua própria linguagem, na qual somos expostos a informações e

percepções que nem sempre são claras para aquele mesmo indivíduo.” P. 126

A questão da semelhança e da dessemelhança consigo está diretamente

ligada à ideia de herança, de hereditariedade, de unicidade, virtude e beleza.

Passos (p. 129) lembra que para a tradição cristã, o homem alienado da

santidade, isto é, a virtude, beleza do espírito, aliena-se de Deus, torna-se

dessemelhante daquele que o criou à sua imagem e semelhança; torna-se

dessemelhante do que realmente é. A relação de semelhança criador-criatura

se estende, por sua vez, à relação de semelhança entre pais e filhos, a qual

muitas vezes fundamenta não só o reconhecimento da hereditariedade como o

do direito de herança.

Dom C-> superposição de tempos (como o crânio sobre o retrato?)

“é diante do que fomos ou do que fizemos que nos medimos aos olhos dos

outros” p. 131

“o sujeito se conhece apenas quando capaz de se rever” p. 132

Discordamos da leitura de Passos (135) de que a dissimulação é herdada da

primeira fase, mas que é na segunda que se acrescenta no texto “uma

explicação que envolva o leitor num juízo sobre os motivos do narrador”.

Acreditamos ser justamente o contrário, a elipse dessa explicação um dos

fundamentos das novas feições da obra machadiana a partir de 1880, como,

inadvertidamente, o próprio Passos (p. 138 e p. 141) demonstra ao analisar a

retirada da epígrafe da primeira versão de Memórias Póstumas, a do folhetim e

ao concluir que Machado substitui o comportamento irônico pela narração

irônica.

Page 8: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

“A dissimulação é uma estratégia de elaboração de algo dessemelhante | a si

mesmo.” P. 137 – 138

No mundo inaugurado por MPBC “a falsidade, a mentira e o uso da máscara

são exigências da vida social em geral” p. 150

“A construção irônica da ação, que caracteriza a narração machadiana, pode

ser tomada em dois níveis: ao nível estilístico, como forma narrativa inovadora;

e ao nível histórico ou político, como desmontagem de discursos e perspectivas

comuns ao ideário cientificista que marcava os projetos de modernização

nacional no final do século XIX.” P. 154

Até Sílvio Romero recorre a termos cognatos na sua controvertida análise da

escrita machadiana, denominando-a por fotografia (1992 p 122)

“A autobiografia supõe o interesse ostensivo do sujeito na sua própria pessoa:

um interesse em sondar-se ou publicar-se com fins à nomeada ou à lição. A

exemplariedade, pela virtude ou pelo vício, motiva, na grande maioria dos

casos, o gesto da rememoração pública.” P. 183 Gênero problemático – não é

exemplariedade pelo vício, pois não é biografia de Capitu. Não é pela virtude,

pois o esposo não mostra a superação do caso, pela indiferença ou perdão.

1 fase: eventos que duram de 1 a 10 anos “apontavam em direção à unidade

da ação no tempo e à integração das protagonistas à sociedade” p. 189

“alegorias e comparações com outras obras de arte como modo efetivo,

embora às vezes enganoso, de solucionar o enigma da falta de unidade em

suas próprias vidas.” P. 189

“A melhor página não é só a que se relê, é também a que a gente completa de

si para si.” P. 198 e 199

Machado de Assis – primeira edição de Quincas Borba

Page 9: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

A partir de MPBC “Há um método para explicar os mecanismos da escolha

humana e a formação do caráter; o recurso a mundos imaginados ― com

frequência expresso por digressões alegóricas ― é o principal deles.” P. 203

“Certos seres humanos não podem ou não devem ser considerados pessoas

plenas: crianças e deficientes mentais, por exemplo, não podem responder aos

mesmos | critérios de atribuição de responsabilidade que usamos para mim e

para você (...). Há também, por outro lado, personagens que não forma

concebidos como pessoas: penso nos protagonistas do naturalismo.” P. 206 –

207

“a vida interior robusta é prerrogativa de sujeitos a quem podemos chamar de

pessoas. Ora, nem sempre o romance tem por objeto a vida interior.” P. 208

Dom Casmurro:

“auge da produção criativa de Machado” p. 210

“contado pelo mais sofisticado e inteligente dos narradores machadianos” p.

210

“escrito com vaga, ao contrário dos outros, escritos a passo de folhetim” p . 210

“composto quase integralmente no ineditismo” “Uma versão inicial, contendo

fragmentos dos capítulos 3, 4, 5 e 7, apareceu sob o título ‘Um agregado

(capítulo de um livro inédito) no jornal República, no número do dia 15 de

novembro de 1896” ”p. 211

“O final da redação do romance coincidiu com a organização do volume

Páginas recolhidas, saído poucos meses antes” p. 214 “Apesar de nem todos

os textos terem sido escritos por volta de 1899, sua seleção e a necessidade

de revisá-los para publicação em livro são suficientes para que se possa

argumentar em favor de uma ativa coincidência ― senão de uma influência ―

entre alguns desses contos e os temas afins explorados em Dom Casmurro.” P

214

“O caso da vara” = seminarista fugitivos = relações de favor e dependência

“O dicionário”, “Um erradio”, “Eterno!” = triangulação amorosa

“Missa do galo” – 1894

Page 10: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

São Bernardo, Avalovara e A hora da estrela “comungam da mesma

característica nascida com o narrador machadiano Bento Santiago: a memória

de ficção restaura o narrador ― ou o protagonista ― no confronto com as

próprias limitações, que expõem sua consciência moral pela fidúcia num

sentimento gorado, geralmente associado a uma mulher-enigma.

Curiosamente, em quase todas essas narrativas a autoanálise do herói ou o

escrutínio de suas motivações chega a ponto de invocar metáforas do sagrado

e uma reflexão contumaz sobre a relação entre benevolência e malícia, entre

viver e narrar-se” p. 224

Otelo foi muito popular no teatro brasileiro na primeira metade do século XIX. O

texto base foi a versão francesa, de leitura neoclássica de Jean-Françoise

Ducis. No entanto, essa versão, lida pela companhia de João Caetano, re-

romantizou o personagem, higienizado e embranquecido pelo adaptador

francês, devolvendo-lhe a energia emocional e a cor da pele (PASSOS, p.

232). O drama shakespeariano inaugurou um ciclo de peças sobre o ciúme,

responsável por fomentar “o primeiro drama romântico de qualidade ― a peça

Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias” (PASSOS, p. 233). Essa peça

baseia-se num episódio histórico português, no qual o duque de Bragança

acusara e condenara a esposa por adultério com um serviçal, punindo-a com a

morte. Analisando o texto, Passos (p. 233 – 234) observa que ele contém uma

postura crítica bastante avançada contra a opressão feminina e levanta

interessantes questões a respeito da origem da vilania na alma humana, já que

um diálogo entre a duquesa e o duque opõe o aprendizado social e o inatismo

de comportamentos e de valores éticos. Por esse motivo, a peça de Gonçalves

Dias seria “o primeiro momento em que a literatura brasileira medita, através do

tema do adultério, sobre a relação entre malícia e sociedade na composição da

motivação dos personagens” (PASSOS, p. 235).

“Gonçalves Dias dissolve Iago no ambiente social que envolvia os

protagonistas, tornando a heroína uma vítima de relações das quais ela não

pode escapar. A condenação de Leonor não pode ser explicada

exclusivamente pelo ciúme cego do duque, já que o casamento não estava

baseado no amor entre ambos. A duquesa foi vítima da sua posição” P. 235

Page 11: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

Destacando o papel do teatro na formação literária de Machado, Passos (p.

241) chama atenção para o papel do teatro realista, movimento que se

desenvolveu muito antes da literatura realista livresca, antecipando

características do realismo literário em cerca de vinte e cinco anos. Esse

movimento estético predominou na cena carioca entre 1855 e 1865, sendo

representado pelo Teatro Ginásio Dramático, para o qual Machado contribuiu

com a tradução de Suplício de uma mulher1, peça de Dumas Filho encenada

em 1865. A proposta realista debateu-se contra o teatro romântico,

representado pela companhia de João Caetano, e contra a comédia musical.

Do seu antecessor rejeitou a fantasia, a ambientação histórica e a teatralidade

exagerada, propondo a representação da sociedade contemporânea e da

família burguesa não só como tema, mas como forma, inclusive na técnica de

atuação (p. 237 – 238). Essa atualização temática foi responsável por um

descompasso no projeto do teatro realista que pode ter sido responsável pelo

seu curto fôlego: a pretensão de correspondência entre tema e realidade não

se realizava no Brasil, já que a família burguesa “autônoma, monogâmica,

formada por profissionais liberais, caracterizada por uma ética de conduta

racional e organizada pelos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade”

não correspondia à família “patriarcal, semirrural, baseada no princípio de

apadrinhamento e organizada, em sua economia e intimidade pelo trabalho

escravo” (PASSOS, p. 240).

“Por causa de sua ansiedade em representar situações racionais e

transparentes, o realismo no teatro procurou punir o vício e condenar a

dissimulação. A capacidade de enganar (...), de fingir-se (...), era um dos usos

impuros e antiéticos da razão” P. 241

Machado, então, teve que rever sua própria formação. Ele foi mais realista

que o realismo que o formou, pois representou a família brasileira tal

como era, mas só atingiu seu gênio quando foi menos realista que esse

realismo, quando passou a questionar a razão.

1 Passos (p. 239) destaca similitude entre o enredo dessa peça e o de Dom Casmurro: esposa e o melhor amigo da família cometem adultério e concebem uma criança que o marido traído crê ser sua filha. Descoberta a aleivosia, o marido pune os amantes expondo-os à opinião pública como exemplos da ingratidão e da infâmia.

Page 12: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

Treino para o romance = tradução Os trabalhadores do mar (Hugo, 1866) e

Oliver Twist (1870)

De Os trabalhadores do mar, parece que Machado reteve principalmente o

“repertório de imagens associadas ao motivo do vilão” (p. 251). No entanto,

como o romance foi concebido imediatamente após a publicação de seu ensaio

sobre Shakespeare, pode ter sido o francês também imediatamente afetado

por imagens do dramaturgo inglês, que associa a aleivosia à vaga. Segundo

Passos (p. 253) Machado conhecia a imagem antes de trabalhar com o texto

de Hugo, pois, orientado pela tradução francesa, emprega na crônica

Conversas com mulheres a expressão “Pérfida como a onda”, declarada por

Otelo após a morte de Desdêmona. A crônica foi publicada quase um ano

antes da tradução do romance francês.

O tempo, nos romances machadianos, é, em si, um deslocamento sutil: nem é

o tempo do passado histórico, nem é o tempo contemporâneo do escritor e de

seu público imediato.

Nos romances, as referências literárias são usadas por Machado “como modo

de aprofundar, por analogia e contraste, as motivações e o autoconhecimento

dos protagonistas (...) como usar a intertextualidade como maneira de imaginar

mundos em que a inocência não exclui a máscara” p. 260

Enquanto os romances da primeira fase de Machado têm um recorte temporal

mais estreito, os romances da segunda fase, como lembra Passos (p. 270)

ampliam tanto esse tempo narrativo como a função do passado. Na primeira

fase, o passado criou tensões que são resolvidas no presente. Na segunda

fase, o passado criou tensões que foram resolvidas no passado, mas cuja

resolução permaneceu insatisfatória, fazendo com que o tempo ido permaneça

vivo na impotência do protagonista diante de suas faltas.

Segundo Passos (278) a tradução de Shakespeare constante na biblioteca de

Machado é de Émile Montégut, considerada a mais acadêmica da época, pois

trazia muitas informações sobre o original e os caminhos da tradução. No caso

de Otelo, Montégut esclareceu as alterações por Shakespeare feitas no texto

Page 13: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas

do poeta italiano Giovanni Battista Giraldi, o Cíntio. Passos destaca duas

alterações shakespearianas: o deslocamento da revelação da malícia de Iago

para o início da diegese e a introdução do pai de Desdêmona. Esta dá ao

drama um subtexto social e político que não havia no original, pois vincula

Desdêmona à elite da república italiana e torna sua decisão de casar Otelo

sem o reconhecimento da família uma afronta às leis implícitas e explícitas do

organismo social. Este elemento faz Passo ver a figura de Desdêmona reviver

não apenas em Capitu, como é de costume, mas também em Bentinho. A

personagem shakespeariana e o narrador machadiano compartilhariam a

transgressão dar ordem social ao firmarem o relacionamento sem o

consentimento da família e ao se casarem “como quem estende um favor e

obtém, ou espera obter, em retorno a devoção do outro” (p. 280) a quem olham

de cima. Assim, a fusão de Desdêmona e Otelo em Bento tornam-no, em certo

ponto de vista, “vítima de si mesmo” (p. 281).

O romance, e aqui reduzimos a leitura de Passos (p. 280), tem como mola,

como tema a agonia da razão que tenta explicar a vida de modo a fazê-la uma

totalidade coerente: uma figura simétrica, dotada de unidade, como é a vida

nas narrações tradicionais. E essa é a agonia da própria ideia de que a arte

pode ser realista ou naturalista.

“Stanley Cavell interpreta Otelo como uma tragédia epistemológica”

“a relação entre autor e obra se apresenta para Bento, ou Dom Casmurro,

como uma relação de descendência; como a conexão entre criador e criatura,

na qual a última herda do primeiro os traços de sua própria natureza” p. 305

“Lida em concordância com o desenlace da obra, a ironia que Dom Casmurro

reverte ao inoportuno poeta da abertura do romance (...) revela o traço mais

amargo desse narrador: ‘Há livros que apenas terão isso [o título] dos seus

autores; alguns nem tanto’ ” p. 305 – 306

“Talvez, ser inexplicável (...) seja desafiar relações de semelhança e

continuidade” p. 326

Page 14: PASSOS, Jose Luiz - Romance Com Pessoas