passos, e kastrup, v & escóssia, l - pistas do método d a cartografia

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pistas do método da. cartografia' JfráJjjS] Orgs. Eduardo Passos Virgínia Kastrup Liliana da Escóssia pesquisa-intervençã e produção de subjetMdac

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Aponta as pistas necessárias para seguir o proposto método cartográfico

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pistas do mtodo da. cartografia'JfrJjjS]Orgs.Eduardo Passos Virgnia Kastrup Liliana da Escssiapesquisa-interven e produo de subjetMdacPISTASDOMETODO DACARTOGRAFIAPesquisa- int erven o eproduodesubjetividadeC o n s e l h o E d i t o r i a ldoli vroPis t as d o m t o d o d a c a r t o g r a f i aMariaElizabethBarros deBarros Universidade Federal do Esprito Santo, Departamento de Psicologia, Programa de Ps-Graduao em Psicologia Institucional.MaurcioMangueira Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Psicologia, Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social.Srgio Carvalho Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Medicina Preventiva, Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva.TaniaGalliFonseca Universidade Federal do Rio Grande do Sul,Programas de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional e de Informtica na Educao.Apoio:UFRJUni versi dade FedsralFl uml nansaUFSPISTASDOMETODO DACARTOGRAFIAPesquisa-interveno eproduodesubjetividadeOrgs. EduardoPassos VirgniaKastrup LilianadaEscssia

aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com /isso no se abre mo do rigor, mas esse ressignificado. O rigor dof^caminho, sua preciso, est mais prximo dos movimentos da vida f r< -ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem.Apreciso"^no tomada como exatido, mas como compromisso e interesse,S------------.como implicao na realidade, como interveno.:(T-Em1982,SuelyRolnikagenciaavinda deFlixGuattari'v ao Brasil.Essa visita foiaocasiopara umimportanteexerccio cartogrfico.Osdoiscartgrafosapontaramdiferenteslinhasde composio daexperincia macroe micropolticabrasileira.No indicaram apenas os impasses e perigos que vivamos naqueles anosde finalizao da ditadura e de anncio do processo de democratizao institucional, tendo como pano de fundo a onda neoliberal e a globalizao capitalstica. Privilegiaram, sobretudo, as linhas flexveis edefuga queindicavam germenspotenciaisparaa mudana:os movimentos negro, feminista, gay, a Reforma Psiquiatra brasileira, as mdias alternativas, a autonomizao do partido dos trabalhadores. O mapa que foi traado a partir das andanas de Guattari pelo Brasil indicava menos o que era do que o que estava em vias de ser.O mapa cartografava nossas movimentaes micropolticas e dava pistas de como acompanhar esses processos de ao minoritria. O livro-rizoma que da resultou (Micropoltica.Cartografias do desejo. Petrpolis: Vozes. 1986) impactoTvfddeiramente os que estavam ali participando da tecedura daquelas redes.E tambm no fim dos anos 1980 que Suely Rolnik apresenta 24 figuras-tipo do feminino que do pistas ao cartgrafo que quer acompanhar as mutaes do capitalismo em sua relao com as polticas de subjetivao.Suely faz uma CartografiaSentimental do mundo em que vivemos, tomando as noivinhas como personagens conceituais que em sua deriva histrica -dos anos1950 aos1980-expressammovimentosde mudana,alteraesdosregimesde afetabilidade, reconfiguraes micropolticas do desejo. O trabalho de Suely Rolnik junto a Peter Pelbart e Luiz Orlandi garantiram ao11Ncleo deEstudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Ps-Graduados emPsicologia da PUC/SP grande importncia na formulao das direes do mtodo cartogrfico.No sul do Brasil, a pesquisa cartogrfica encontra importante laboratrio. A condio de extremo sul deve ter favorecido as experimentaes que desde o I Frum Social Mundial em Porto Alegre (2001) anunciaram o lema de uma nova esquerda internacional: T Frum.LtambmTniaGallitem conduzidoagrupalizaode pesquisadores interessados no modo de fazer da cartografi a. O livro r,v Cartografiaedevires.Aconstruodopresente] (PortoAlegre: UFRGS,2003) afirmou problemas cruciais para o campo da pesquisa nas cincias humanas: a) impossibilidade da transparncia do olhar do pesquisador e afirmaodo perspectivismo;b) crtica da separao entre sujeito e objeto e articulao do conhecimento com o desejo e implicao; c) recusa da atitude demonstrativa em nome do construtivismo entendido como experimentao de conceitos e novos dispositivos de interveno.Em Campinas, no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP,Srgio Carvalho e o grupo Conexes tm contribudo para a ampliao do debate cartogrfico no campo de pesquisa das prticas de ateno e gesto em sade. O mesmo acontece em Sergipe, com o grupo Prosaico, do Departamento de Psicologia da UFS^O i. mtodo da cartografia se apresenta, assim, como alternativa impor-itante para acompanhar o movimento da reforma sanitria brasileira e /as lutas macro e micropolticas para a produo de polticas pblicas no Brasil. Outros cartgrafos tm estendido esta aposta metodolgica no campo da sade pblica.Na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do Rio de J aneiro, o grupo de pesquisa Cognioe Subjetividade tomouo tema da cartografia comoproblema metodolgico, surgido frente aos impasses experimentados no campo dos estudos da cognio. Em nosso percurso, partimos do problema formulado no projeto de pesquisa A noo de subjetividade e a superao do12modelo da representao (CNPq, 95/96). Nesse momento, colocvamos em questo o pressuposto de que conhecer representar ou reconhecer a realidade.Configurava-se para nsaimportnciado binmiocognio/criao,oquenosexigiuinvestigarcommais detalheadimensotemporaldosprocessosdeproduodeconhecimento.Chegamos definio do conceito de cognio como criao,autopoiese(HumbertoMaturana&FranciscoVarela)ou enao (Francisco Varela). De acordo com tal perspectiva, os polos da relao cognoscente (sujeito e objeto) so efeitos, e no condio da atividade cognitiva. Com o alargamento do conceito de cognio e sua inseparabilidade da ideia de criao, a produo de conhecimento no encontra fundamentos num sujeito cognitivo prvio nem numsuposto mundodado,masconfigura,de maneira pragmtica e recproca, o si e o domnio cognitivo. Destituda de fundamentos invariantes, a prtica cognitiva engendra concretamentesubjetivi- dades e mundos. A investigao da cognio criadora coloca ento o problema do compromisso tico do ato cognitivo com a realidade criada. Produo de conhecimento, produo de subjetividade.Eis quesurgeo problema metodolgico.Como estudar esse plano de produo da realidade? Que mtodo nos permite acompanhar esses processos de produo?Emvezderegrasparaseremaplicadas,propusemosa ideia de pistas. Apresentamos pistas para nos guiar no trabalho da pesquisa, sabendo que para acompanhar processos no podemos ter predeterminada de antemo a totalidade dos procedimentos metodolgicos. As pistas que guiam o cartgrafo so como referncias que concorrem para a manuteno de uma atitude de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do caminhar no prprio percurso da pesquisa -o hdos-met da pesquisa.Nestevolume,enumeramosoitopistasparaa prticado mtododacartografia.Htrintaanos,Guattari(Oinconsciente maqunico.Ensaiosdeesquizoanlise.Campinas:Papirus,1988 [1979]) propunha os Oito princpios da esquizoanlise. Se o pri13meiro princpio foi No impedir, isto , no atrapalhar os processos emcurso,o ltimorecolocavaasbasesda enumerao proposta, dizendo:Toda ideia de princpio deve ser considerada suspeita. Era a ideia de princpio que se dissolvia na contundncia da aposta metodolgica de Guattari, fazendo com que no se pudesse esperar por uma garantia definitiva (tal como um fundamento) para o trabalho da anlise. Neste volume, enumeramos oito pistas para a prtica do mtodo da cartografia. Como destacou Regina Benevides, podemos dizer que mais do que a sintonia do nmero 8, as pistas que propomos agora nortearam-se por uma atitude atenta ao que j em1979 Guattari convocava.Aapresentaodaspistasnocorrespondeaumaordem hierrquica.Aleitura da primeira pista no pr-requisito para a leitura da segunda e assim sucessivamente. A organizao do livro corresponde a um rizoma. O leitor pode iniciar pela pista que julgar mais conveniente ou interessante e ler as outras na seqncia que lhe aprouver.Como no poderia deixar de ser, elas remetem umas s outras. Ainda como um rizoma, as pistas aqui apresentadas no formam uma totalidade, mas um conjunto de linhas em conexo e de referncias, cujo objetivo desenvolver e coletivizar a experincia do cartgrafo.A pista 1, A cartografia como mtodo de pesquisa-interveno, apresentada por Eduardo Passos e Regina Benevides. Baseada na contribuio da anlise institucional, discute a indissociabilidade entre o conhecimento e a transformao, tanto da realidade quanto do pesquisador.Apista2trabalhadapor VirgniaKastrupnotextoO funcionamento da ateno no trabalho do cartgrafo. Criando uma interlocuo entre Freud, Bergson e a pragmtica fenomenolgica, so definidos os quatro gestos da ateno cartogrfica: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento.Napista3,Laura Pozzana eVirgnia Kastrupdiscutema ideia de que Cartografar acompanhar processos. Baseado numa pesquisasobre oficinasde leitura comcrianas,otextoanalisaa14distino entre a proposta da cincia moderna de representar objetos e a proposta da cartografia de acompanhar processos, alm de apresentar um exerccioda(re)invenometodolgicanasentrevistas com crianas.Apista4vemapresentadanotexto deVirgniaKastrup e Regina Benevides: Movimentos-funes do dispositivo no mtodo da cartografia. As ideias de Foucault e Deleuze surgem mescladas com exemplos concretos extrados do campo da clnica e da pesquisa comdeficientesvisuais.Sopropostos trsmovimentos-funes: dereferncia,deexplicitaoedeproduoetransformaoda realidade.A pista 5 foi escrita por Liliana da Escssia e Silvia Tedesco. No texto O coletivo de foras como plano da experincia cartogrfica, as autoras apontam, apoiadas sobretudo em Gilbert Simondon e Gilles Deleuze, que ao lado dos contornos estveis do que denominamos formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano coletivo das foras que os produzem, alm de definirem a cartografia como prtica de construo desse plano.Apista6apresentada por EduardoPassoseAndrdo Eirado no texto Cartografia como dissoluo do ponto de vista do observador. O texto revela a preocupao em apontar que a recusa do objetivismo positivista no deve conduzir afirmao da participao de interesses, crenas e juzos do pesquisador, concluindo que objetivismo e subjetivismo so duas faces da mesma moeda.A pista 7,Cartografar habitar um territrio existencial, apresentada por J ohnny Alvarez e Eduardo Passos. Por meio do relato de uma pesquisa sobreoaprendizado da capoeira,otexto traz cena a importncia da imerso do cartgrafo no territrio e seus signos.A pista8aborda o tema daescritadetextosde pesquisa. EduardoPassoseReginaBenevidesapresentamemPoruma poltica de narratividade a ideia de que a alterao metodolgica proposta pela cartografia exige uma mudana das prticas de narrar.15Encerrandoa coletnea,otextoDiriodebordodeuma viagem-interveno de Regina Benevides e Eduardo Passos apresenta umexemplovivoda construocoletiva de uma pesquisa. Usandoumatrocadecorrespondnciaduranteumaviagemde pesquisa-interveno, discutem a utilizao do hors-texte.Como um balano final do livro, um Posfcio discute a formao do cartgrafo e as polticas cognitivas do pesquisador, alm de abrir novos problemas que continuam desafiando o pensamento e atentam para o rigor da pesquisa cartogrfica.Eduardo Passos, Virgnia Kastrup e Liliana da Escssia16Pista1ACARTOGRAFIACOMOMTODO DEPESQUISA-INTERVENOEduardo Passos e Regina Benevides de BarrosA cartografia como mtodo de pesquisa-interveno pressupe uma orientao do trabalho do pesquisador que no se faz de modo prescritivo,por regras j prontas,nem comobjetivos previamente estabelecidos. No entanto, no se trata de uma ao sem direo, j que a cartografia reverte o sentido tradicional de mtodo sem abrir mo da orientao do percurso da pesquisa.O desafio o de realizar uma reverso do sentido tradicional de mtodo no maisumcaminhar para alcanarmetasprefixadas(met-hdos), mas o primado do caminhar que traa, no percurso, suas metas1. A reverso, ento, afirma um hdos-met. A diretriz cartogrfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processodo pesquisar sobre o objetoda pesquisa,o pesquisador e seus resultados.Daspistasdomtodocartogrficoqueremos,nestetexto, discutir a inseparabilidade entre conhecer e fazer, entre pesquisar e intervir: toda pesquisa interveno. Mas, se assim afirmamos, precisamos ainda dar outro passo, pois a interveno sempre se realiza por um mergulho na experincia que agencia sujeito e objeto, teoria e prtica, num mesmo plano de produo ou de coemergncia o1 Met (reflexo,raciocnio, verdade) + hdos (caminho,direo).Dicionrio Etimolgicohttp://www.prandiano.com.br/html/fr_dic.htm(acessoem janeiro/2009).17que podemosdesignar comoplanoda experincia.Acartografia como mtodo de pesquisa o traado desse plano da experincia, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produo do conhecimento) do prprio percurso da investigao.Considerando que objeto, sujeito e conhecimento so efeitos coemergentes do processo de pesquisar, no se pode orientar a pesquisa pelo que se suporia saber de antemo acerca da realidade:o knowwhat da pesquisa. Mergulhados na experincia do pesquisar, nohavendonenhumagarantia ou ponto derefernciaexteriora esse plano, apoiamos a investigao no seu modo de fazer: oknow how da pesquisa. O ponto de apoio a experincia entendida como um saber-fazer, isto , um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experincia direciona o trabalho da pesquisa do saber- fazer ao fazer-saber, do saber na experincia experincia do saber. Eis a o caminho metodolgico.Essa tambm a direo indicada pelo movimento institu- cionalista quando afirma que se trata de transformar para conhecer, e no de conhecer para transformar a realidade. O que tem primado o plano da experincia enquanto interveno, em que esto sempre encarnadas as ferramentas conceituais ou os operadores analticos com os quais se trabalha. O institucionalismo, tal como formulado na Frana,acentuaa dimenso poltica da pesquisa,seja quando tratadotemadaproduodeconhecimento(asinstituiesda pesquisa, da escola, da cincia), seja quando se volta para a clnica (asinstituiesdomanicmio,da psiquiatria,da psicanlise,do grupo). Ren Lourau e Felix Guattari dedicam-se, cada qual, a uma dessas inflexes institucionalistas, mantendo em comum a direo da interveno.LouraueaintervenocomomtodoLourau, no texto Campo socioanaltico, primeiro captulo do livro Intervenes socioanaliticas de1996 (Lourau, 2004a), afirma que a questo domtodo coloca para a AnliseInstitucional (AI)18os temas da interveno e do campo que por ela aberto: o campo da interveno.Pensar essecampo exigeparao autor adefinio do que ele designa de paradigma dos trs Is que, tal como os trs mosqueteiros, so quatro: Instituio, Institucionalizao, Implicao e o ltimo, Interveno, sendo este o dArtagnan, j que ele que delimita o campo de ao ou o plano da experincia, como preferimos.Lourau diz que campo um conceito metafrico tomado de emprstimo (Lourau, 2004b, p. 218) atravs do qual a AI vai definir suas prticas enquanto campo de interveno e campo de anlise. O primeiro diz respeito ao espao-tempo acessvel aos interventores em funo de uma encomenda inicial e as modificaes deste espao- tempo face anlise da encomenda no processo de interveno. O trabalho da anlise vai modificando o campo, seguindo esta direo: da formulao de uma encomenda definio de uma demanda de anlise. Quem encomenda um trabalho de anlise institucional no necessariamente quem enuncia essa demanda. O trabalho vai modulando o campo de interveno onde todos esto includos (quem encomenda, quem demanda, quem e o que analisa).Kurt Lewin designava de pesquisa-ao o trabalho de/sobre o campo onde todos estavam includos. Lourau segue esse curso de problematizao das prticasde pesquisa e produodeconhecimento. O campo de anlise se distingue, mas no se separa do campo de interveno,sendo o sistema de referncia terico que se toma operatrioem umapesquisa-aoe,consequentemente,sempre encarnado em uma situao social concreta.A anlise aquise faz sem distanciamento, j que est mergulhada na experincia coletiva em que tudo e todos esto implicados. E essa constatao que fora o institucionalismo a colocar em questo os ideais de objetividade, neutralidade, imparcialidade do conhecimento. Todo conhecimento se produz em um campo de implicaes cruzadas,estando necessariamentedeterminadoneste jogodeforas:valores,interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenas, etc.A interveno como mtodo indica o trabalho da anlise das implicaes coletivas, sempre locais e concretas. A anlise das im19plicaes de todos que integram um campo de interveno permite acessar, nas instituies, os processos de institucionalizao. O que Lourau designa de implicao diz respeito menos vontade consciente ou inteno dos indivduos do que s foras inconscientes (o inconsciente institucional) que se atravessam constituindo valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenas, isto , as formas que se instituem como dada realidade. A anlise , ento, o trabalho de quebra dessas formas institudas para dar expresso ao processo de institucionalizao.Se o mtodo o da interveno, orientando um trabalho de pesquisaquediremospesquisa-interveno(jqueinsuficiente para ns a noo lewiniana de pesquisa-ao), a direo de que se trata nesse mtodo aquela que busca aceder aos processos, ao que se passa entre os estados ou formas institudas, ao que est cheio de energia potencial. Logo, na direo do mtodo cartogrfico, preferimos dizer que em um plano e no em um campo que a interveno se d (Passos e Benevides, 2000).Otrabalhodaanlise/intervenodesestabilizaaprpria noo de campo, j que modula seus limites e configuraes. Essa desestabilizao vai ficar mais evidente quando Lourau, na dcada de 90, se aproxima do pensamento de Gilbert Simondon, definindo ocampodeintervenoporsuametaestabilidadeoupelomodo como nele as oposies -seja esta entre sujeito e objeto, entre local e global, entre eu e o outro, indivduo e o grupo, etc. -se apresentam como uma dinmica transductiva, isto , uma dinmica de devir que potencializa resistncias atuaise atualiza existncias potenciais (Lourau, 2004b, p. 213).RenLourau,nessemomento,fazmodular opensamento daanliseinstitucional.Em especial,oconceitodeimplicao repensado em sua relao com o conceito de transduco proposto porSimondon.Oconceitodeimplicao jtomaraolugardos conceitosdetransfernciaecontratransfernciainstitucionais, radicalizandoacrticaneutralidadeanalticaeaoobjetivismo cientificista. No h neutralidade do conhecimento, pois toda pes20quisa intervm sobre a realidade mais do que apenas a representa ou constata em um discurso cioso das evidncias. No processo de produo de conhecimento, h que se colocar em anlise os atravessamentos que compem um campo de pesquisa. F.stas foras que se atravessamforaminicialmente designadaspeloinstitucionalis- mo de transferncia e contratransferncia institucionais, sendo em seguida pensadas como implicaes. Como disse Lourau em1973 (Lourau,2004c,p.85),oimportante paraoinvestigador no, essencialmente, o objeto que ele mesmo se d (segundo a frmula do idealismo matemtico), mas sim tudo o que lhe dado por sua posio nas relaes sociais, na rede institucional.O observador est sempre implicado no campo de observao, e a interveno modifica o objeto (Princpio de Heisenberg). No campo, a interveno no se d em um nico sentido. E essa ampliao dos sentidos da interveno que vaiaumentandoquandoseconsideraagora uma dinmica transductiva a partir da qual as existncias se atualizam, as instituies se organizam e as formas de resistncia se impem contra os regimes de assujeitamento e as paralisias sintomticas.E na dcada de 50 que podemos acompanhar, em torno dos gruposdo hospital St.Alban eda clnica La Borde, as condies de emergncia da virada do movimento institucionalista a partir da problematizao da dimenso inconsciente da instituio. Segundo Hess e Savoye (1993, p.13), ento que se entra verdadeiramente naAnliseInstitucional.Adinmica doprocessoprimriodas instituies destacada. No mesmo perodo, aparecem na Frana os primeiros escritos que se autointitulam socioanalticos e que propem uma abordagem psicanaltica dos grupos. Em 1962, no Colquio de Royaumont, G. Lapassade redige o que seria o primeiro trabalho so- cioanaltico de uma tradio que toma em questo as instituies, os grupos e as organizaes visando os processos de autogesto. nessa tradio que Lourau vai imprimindo uma progressiva intensificao dessa dimenso inconsciente das instituies, chegando finalmente a ampli-la, na dcada de 90, com o conceito de transduco proposto por G. Simondon em sua tese de 1958.21PistasmetodolgicasentreLouraueSimondonOilbert Simondon (1989), em seu estudo sobre os processos de individuao, faz uma crtica tradio do pensamento filosfico quepressupsumprincpiodeindividuaoanterior e orientador do processo de individuao. A forma de argumentao tradicional que esse autor denuncia a que toma como ponto de partida e d privilgio ontolgico ao indivduo constitudo, buscando suas condies de existncia, elas mesmas no menos individuais, o que fica evidente na noo de princpio. Como nos diz o autor:a noo de principio de individuao advm, numa certa medida, de uma gnese a contrapelo de uma ontognese revertida: para dar conta da gnese do indivduo com seus caracteres definitivos preciso supor a existncia de um termo primeiro, princpio, que traz nele mesmo isso que explicar que o indivduo seja indivduo e dar conta de sua hecceidade (Simondon, 1989, p.10).Simondon defende que a individuao no produz somente indivduo,oquenosobrigaaser cautelososevitandopassarde maneirarpidapelasetapasdeindividuao(princpio/operao de individuao/indivduo). E preciso apreender a ontognese emsua realidade demaneira aconhecer oindivduo atravsda individuao antesqueaindividuaoa partir do indivduo (p. 12). O indivduo , ento, uma fase do ser que supe uma realidade pr-individual queoacompanha.Oindivduo, mesmo aps a individuao,no existe s, j queseu processo de individuao no esgota os potenciais da realidade pr-individual, assim como a individuao no faz aparecer como seu efeito somente o indivduo, mas um par indivduo-meio.A individuaodeveser considerada comoresoluo parcial e relativa que se manifesta em umsistema comportando potenciais e guardando certa incompatibilidade22em relao a ele mesmo,incompatibilidade feita de foras de tens&o, assim como da impossibilidade de uma interao de termos de dimenses extremas (p.12).A ontognese , para Simondon, o processo a partir do qual o ser se torna uma realidade individuada num processo de devir do ser nadupla acepodessedoser:devir queaconteceaoser e devir de que consiste o ser. O devir entendido como dimenso do ser ou a capacidade de se defasar por relao a ele mesmo, de se resolver em se defasando (p.13). O que o autor nos faz entender que o ser em processo de individuao aquele no qual uma resoluo aparece pela sua repartio em fases, isto ,a partir de uma incompatibilidade inicial rica em potenciais.Mas, como pensar o primado da individuao ou uma individuaosem princpiopredefinido?SegundoSimondon,foinecessrio esperar por certos conceitos para que se pudesse entender o processode individuao sem a petiode princpio peloautor denunciada.oconceitodemetaestabilidade,emcontrastecom aquele de equilbrio estvel, que garante esse avano.Enquanto o equilbrio que o mais baixo nvel de energia potencial -exclui o devir, a metaestabilidade indica uma dinmica de devir que s se resolve em contnua transformao. Essa noo de metaestabilidade ganha um sentido especialquando tratamos de sistemas vivos nos quaiso processode individuaonoculmina,mantendoodevir emconstanteprocessualidade.SegundoSimondon,ovivoconserva nele uma atividade de individuao permanente, ele no s resultado deindividuao como o cristal ea molcula, mas teatro de individuao (p. 16). Sempre comportando energias potenciais, o indivduo vivo,segundoa frmula do autor,menosemais do que a unidade, j que se caracteriza por urna problemtica interior e por um jogo de ressonncias internas que o lana para problemticas mais vastas, sendo ele mesmo elemento em uma individuao futura a ele. nesse sentido que a individuao biolgica se resolve no no indivduo, mas numa outra individuao.A individuaopsquica23advm quando a problemtica interior do vivo o obriga a posicionar-se como elemento do problema atravs de sua ao, sendo essa a condio que lhe confere a posio de sujeito. Mas, se o processo ininterrupto, o ser psquico no resolve, ele mesmo, a sua problemtica, sendoforado a ultrapassar os seus prprios limites, agora numa individuao do coletivo. O indivduo psquico se associa ao grupopelarealidadepr-individualqueohabita.Individua-se agora uma "unidade coletiva. Segundo o autorasduasindividuaespsquicaecoletivasorecprocas,umaporrelaooutra;elaspermitemdefinir uma categoriadotransindividualquetendeadarcontada unidadesistemticadaindividuaointerior(psquico) edaindividuaoexterior(coletivo).Omundopsicos- socialdotransindividualnonemosocialbrutonemointerindividual;elesupeumaverdadeira operaode individuaoapartirdeumarealidadepr-individual... (p.19).A obra de Simondon nos convoca a pensar qualquer realidade individuada a partir desse fundo pr-individual em que se opera a criao. No vivo, no psquico e no coletivo, esse fundo permanece em latncia no indivduo, obrigado a resolver a sua problemtica existencialemindividuaessucessivas.H,portanto,um plano comum de imanncia que une, num mesmo phillum de individuao, a realidade viva, psquica e coletiva. Para construir essa tese, o autor lana mo de um mtodo. Simondon indica trs caractersticas metodolgicas para a pesquisa do processo de individuao que nos ajudam a entender o mtodo da cartografia: 1) tomar a relao como interna ao ser ou contempornea aos termos; 2) recusar os princpios do terceiro excludo e da identidade; 3) afirmar a dinmica de individuao como transduco.Queremosaquinosdeter naterceira caractersticametodolgica.A transduco a operao fsica, biolgica, mental ou social pela qual uma atividade se propaga de parte em parte, estru24turando um domnio. A partir de um sistema em rede aniplifcante, um grmen se propaga em vrias direes, de tal maneira que cada camada constitudaservedebaseestruturanteaumacamadaem formao. Tal dinmica transductiva tomada por Lourau para repensar o conceito de implicao. O trabalho de pesquisa, assim como o trabalho de interveno socioanaltica, pressupe uma forma de relao entre os termos que ainteragem (sujeito-objeto, analista- cliente, teoria-prtica), Os institucionalistas cada vez menos tomaro essa relao como o jogo interpessoal caracterstico da dinmica da transferncia e da contratransferncia.Sabemosqueaanliseinstitucionaltomadeemprstimo, inicialmente,oconceitodecontratransfernciaparapensar uma dinmica coletiva-institucional na qual toda a realidade em que os atores esto imersos se coloca como vetores determinantes na cena de anlise: sexo, idade, raa, posio socioeconmica, significaes socioculturaisqueatravessamsejaoanalista,sejaoanalisando. Com o conceito de contratransferncia institucional toda uma rede de afeces ativada. No entanto,esse conceito ser abandonado quando Lourau prope em seu lugar o de implicao. Apenas uma troca de palavras? Na verdade identificamos a um esforo de no somente se desvencilhar do subjetivismo inerente ao jogo transferenciai, como tambm a necessidade de dar conta de uma dinmica de relao na qual posies bem localizadas no tm mais lugar. Se na dinmica da transferncia e da contratransferncia ainda a relao dual que toma o centro da cena, marcando a distino dos lugares do analista e do analisando, com o conceito de implicao o trans e o contra se dissolvem. O campo implicacional indica, ento, esse sentido mais entre foras do que entre formas, no qual a dinmica se faz no por projeo, deciso, propsito ou vontade de algum, mas por contgio ou propagao, como prefere Simondon.Interessa a Lourau exatamente essa dinmica que podemos chamar instituinte. Todotrabalhodeintervenonasocioanlisevisa essadimenso inconscientedasinstituiesde tal maneira que podemosafinnar, no plano da experincia, uma inseparabilidade entre anlise das im25plicaes e interveno. Intervir, ento, fazer esse mergulho no plano implicacional em que as posies de quem conhece e do que conhecido, de quem analisa e do que analisado se dissolvem na dinmica de propagao dasforasinstituintes caracterstica dos processos de institucionalizao.E, portanto, no plano do concreto da experincia que estamos sempre implicados. O tema da implicao define uma direo clni- co-poltica ao trabalho de pesquisa-interveno. A cartografia deve ser entendida como um mtodo segundo o qual toda pesquisa tem uma direo clnico-poltica e toda a prtica clnica , por sua vez, interveno geradora de conhecimento. Esta relao que o mtodo cartogrfico estabelece entre pesquisa, interveno, clnica e poltica j ganhava expresso nos conceitos da AI que, desde os anos50, foravam uminteressantehibridismoentrepsicanlisee poltica, a anlisedo sintoma e a dasinstituies, tomandoo problema da implicao como pedra de toque para todo o trabalho de interveno.Aintervenosempreclnico-poltica: acontribuiometodolgicadeFlixGuattariGuattari em 1964, seguindo a mesma direo, prope o conceito detransversalidade para problematizar oslimitesdo setting clnico, definindo esse conceito como um aumento dos quanta co- municacionais intra e intergrupos em uma instituio. Fazer anlise , cada vez mais, o trabalho de desestabilizao do que se apresenta tendo a unidade de uma forma ou de um campo: o institudo, o indivduo, o social. Do uno ao coletivo, esta a direo da anlise. Direo a qu? No ao agrupamento, ao conjunto de indivduos, nem unidade do diverso, mas ao coletivo como dinmica de contgio em um plano hiperconectivo ou de mxima comunicao.Na clnica, por exemplo, a operao de transversalizao se apresenta num duplo registro: (1) o que a clnica acolhe , por um lado, um sujeito com sua histria, sua forma identitria, suas verdades e memria, mas no s isso. Acolhe tambm, por outro lado, um26processo de subjetivao em curso que vai se realizando pelas frestas das formas,l onde ointempestivo se apresenta,impulsionando criao. Nesse sentido, h sempre um quantum de transversalizao com que se pode contar, j que aforma definitiva (aidentidade, a individualidade, a verdade, o fato histrico acabado) apenas uma idealidadeoumetaaseralcanada;(2)a clnica,porsua vez, ela mesma um caso de transversalizao,isto , seu trabalho se d justamente desta maneira. A interveno clnica deve ser entendida como uma operao de transversalizao que se realiza na zona de vizinhana ou deindefinioentredois processos - osprocessos desubjetivaoquesepassamnarelaoanalista-analisandoe aqueles que se passam na relao ente a clnica e o noclnico:a clnica e a poltica, a clnica e a arte, a clnica e a filosofia, etc.(a transdisciplinaridade da clnica). Falar, portanto, de coeficientes de transversalizao da clnica intensificar/apostar mais, ou menos, nos devires que esto sempre presentes em diferentes graus de abertura e potncias variadas de criao.Com o conceito de transversalidade, Guattari prepara a definio do mtodo cartogrfico segundo o qual o trabalho da anlise a um s tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade. importante notar que o conceito de transversalidade se apresenta tambm tal qual o de implicao como uma amplificao perturbadora do conceito de transferncia em Freud.Como jdissemos,a transferncia,tradicionalmente,descreve a dinmica bidimensional ou intersubjetiva em que afetos e representaes atravessam de um polo subjetivo a outro, num movimento de rebatimento. O movimento institucionalista prope um sentido coletivo ou institucional para o conceito de transferncia, descrevendo outra dinmica. Guattari, em suas intervenes clni- co-institucionais, identificou esta dinmica coletiva como a de um grupo sujeito cuja comunicao se d de modo multidimensional. Operar na transversalidade considerar esse plano emque a realidadetodasecomunica.Acartografiaoacompanhamentodo traado desse plano ou das linhas que o compem. A tecedura desse27plano no se faz de maneira s vertical e horizontal, mas tambm transversalmente.O tema da transversalidade se desdobra no tema das redes que,neste primeiromomento,Guattaridescrevia como redes co- municacionais.Noentanto,pelaimportnciaqueassumeesta dimensoreticular na experincia clnico-poltica que a definio do mtodo vai modulando. Guattari desdobra a anlise da dinmica comunicacionalnasinstituiescolocando,ladoalado,oque distinto, tornando grupo sujeito e grupo sujeitado como dinmicas que diferem, mas no se separam. O que interessa o que se passa entre os grupos, nos grupos, no que est para alm e aqum da forma dos grupos, entre as formas ou no atravessamento delas. A rede conectatermos,dandoconsistnciaaoespaointermedirio.Os grupos, as instituies e as organizaes so redes de inter-relaes, isto , relaes entre relaes. O mtodo , ento, a cartografia do intermedirio.O mtodo da cartografia tem como direo clnico-poltica o aumento do coeficiente de transversalidade, garantindo uma comunicao que no se esgota nos dois eixos hegemnicos de organizao do socius: o eixo vertical que organiza a diferena hierarquicamente e o eixo horizontal que organiza os iguais de maneira corporativa. A natureza poltica do mtodo cartogrfico diz respeito ao modo como seintervm sobre a operao de organizao da realidade a partir dos eixos vertical e horizontal. Grosso modo, podemos dizer que a operao de organizao hegemnica/majoritria do socius se d na forma da conexo entre variveis menores em oposio a variveis maiores. Por outro lado, h outra operao, dita operao transversal, que conecta devires minoritrios.Esses dois modos de operar (majoritrio e minoritrio) podem ser pensados a partir da distino entre um sistema de coordenadas que organizam a realidade segundo um metro-padro e uma operao de transversalizao que cria a diferenciao do socius.O diagrama a seguir nos ajuda a traar as duas operaes:28A operao de organizao hegemnica do socius se faz pela oposioentreoseixosverticalehorizontal(coordenadashegemnicas), realizando o sistema de rebatimento ou de superposio das variveis maiores para a constituio de um metro-padro que equalizaa realidade.Assim,poressaoperao,humaequivalncia funcional entre homem, adulto, heterossexual, branco, rico, variveis maiores (dispostas no eixo vertical) que se rebatem umas sobre asoutras,gerando uma existncia ideal em oposio a qual sedefinemulher,criana,homossexual,negro,pobre,variveis menores(eixohorizontal).Nessesistemaderebatimento,uma mesma operao que se realiza. Essa operao hierarquiza opondo as diferenas (homem x mulher, adulto x criana, branco x negro, heterossexualxhomossexual,ricox pobre)ehomogeneiza,seja criandoumidealpelorebatimentodasvariveismaioresentresi (homem-adulto-branco-heterossexual-rico), seja pela identificao e sujeio dos diferentes do ideal (mulher submetida ao homem, criana ao adulto, negro ao branco, homossexual ao heterossexual, pobre ao rico).Por outro lado, os fragmentos do socius (as variveis) podem seconectar gerando umdesarranjodosistemadeorganizaoda realidade. Nesse caso, as variveis menores se tornam o meio (o mdium) de um devir minoritrio dotado de potncia heterogentica ou de diferenciao (o que Simondon designou de energia potencial).29No lugar do rebatimento ou da equalizao, um dos fragmentos do socius se apresenta, na situao, como um vetor de caotizao que gera novos arranjos da realidade. Guattari chamou estes movimentos de caosmose: desarranjos e novos arranjos de produo da realidade.Essas duas operaes ~ de rebatimento e de caotizaono entanto,guardam algo em comum que o seu funcionamento em rede de conexes. Mas preciso distinguir as redes quentes das redes frias.A noo de rede nessa sua dupla inscrio no contemporneo -rede fria e rede quente -nos fora a refletir sobre a operao deuma redefria,decima para baixo,isto, redeque,apesar deifuncionar por hiperconectividade e integrao, possui centro vazio identificado, seja ao capital enquanto regime de homogeneizao ou equivalncia universal, seja ao metro-padro resultante do jogo de rebatimento e de sujeio caracterstico da organizao hegemnica do socius (Passos & Benevides, 2004).Do ponto de vista clnico- poltico,a intervenos possvelnosmomentosquentesda rede, quando o sistema de rebatimento se desarranja, permitindo devires minoritrios atravs das variveis menores.AintervenocomocaminhoDefender que toda pesquisa interveno exige do cartgrafo um mergulho no plano da experincia, l onde conhecer e fazer se tornam inseparveis, impedindo qualquer pretenso neutralidade ou mesmosuposiode umsujeitoede um objetocognoscentes prvios relao que os liga. Lanados num plano implicacional, os termos da relao de produo de conhecimento, mais do que articulados, a se constituem. Conhecer , portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo, o que tem conseqncias polticas. Quando j no nos contentamos com a mera representao do objeto, quando apostamos que todo conhecimento uma transformao da realidade, o processo de pesquisar ganha uma complexidade que nos obriga a forar os limites de nossos procedimentos metodolgicos. O mtodo, assim, reverte seu sentido, dando primado ao caminho que vai sendo30traado sem determinaes ou prescries de antemo dadas. Restam sempre pistas metodolgicas e a direo tico-poltica que avalia os efeitos da experincia (do conhecer, do pesquisar, do clinicar, etc.) para da extrair os desvios necessrios ao processo de criao.Tal processo se d por uma dinmica de propagao da fora potencial que certos fragmentos da realidade trazem consigo. Propagar ampliar a fora desses germens potenciais numa desestabiliza- o do padro.Nesse sentido, conhecer a realidade acompanhar seu processo de constituio2, o que no pode se realizar sem uma imerso no plano da experincia. Conhecer o caminho de constituio de dado objeto eqivale a caminhar com esse objeto, constituir esse prprio caminho, constituir-se no caminho. Esse o caminho da pesquisa-interveno.RefernciasHESS,H&SAVOYE, A.UAnalyse Institutionnelle.Paris:PUF,1993.LOURAU, R. Campo socioanaltico.In: ALTO, S.(org.). Ren Lourau, Analista emtempointegral.Campinas:Hucitec,2004a, p.224-245.______ .Implicao-transduco.In:ALTO,S.(org.).RenLourau,Analista emtempointegral.Campinas:Hucitec,2004b, p.186-198.______ .Objeto e mtodo da Anlise Institucional.In: ALTO,S.(org.).RenLourau,Analistaemtempointegral.Campinas:Hucitec,2004c,p. 66- 86.PASSOS,E&BENEVIDES,R.Aconstruodoplanodaclnicaeo conceitodetransdisciplinaridade.Psicologia:TeoriaePesquisa.Jan-Abr 2000,vol.16,n.1,p.71-79._______.Clnica, polticae asmodulaes docapitalismo.Lugar Comum,n.19-20, jan-jun, 2004,p.159-171.SIMONDON, G. L individuationpsychique et colletive.Paris: Aubier,1989.2 Cf.L.PozzanaeV.Kastrup,Cartografaracompanhar processos,nesta coletnea.31Pista20 FUNCIONAMENTODAATENO NOTRABALHODOCARTGRAFOVirgnia Kastrup*A cartografia um mtodo formulado por Gilles Deleuze e Flix Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, e no representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de produo. De sada, a ideia de desenvolver o mtodo cartogrfico para utilizaoem pesquisasdecamponoestudoda subjetividade se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. No se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim. A cartografia sempre um mtodo ad hoc. Todavia, sua construo caso a caso no impede que se procurem estabelecer algumas pistas que tm em vista descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experincia do cartgrafo.A pista que tomamos aqui diz respeito ao funcionamento da atenodurante o trabalho de campo. Nose trata de buscar uma teoriageraldaateno.Aideia que,na basedaconstruode conhecimento atravs de um mtodo dessa natureza, h um tipo de funcionamentoda ateno quefoi em partedescrito porS.Freud (1912/1969) com o conceito de ateno flutuante e por H. Bergson (1897/1990)comoconceitodereconhecimentoatento.Atravs do recurso a esses conceitos, bem como a referncias extradas doAgradeo aos companheiros do grupo de pesquisa Cognio e Subjetividade e em especial aos amigos Andr do Eirado e Eduardo Passos, pelas discusses e sugestes que acompanharama elaborao deste texto. O texto resultado do projeto de pesquisa Ateno e inveno na produo coletiva de imagens, apoiado pelo CNPq.32campo das cincias cognitivas contemporneas, o objetivo analisar a etapa inicial de uma pesquisa, tradicionalmente denominada "coleta de dados. Ocorre que, do ponto de vista dos recentes estudos acerca da cognio numa perspectiva construtivista, no h coleta de dados, mas, desde o incio, uma produo dos dados da pesquisa. A formulao paradoxal de uma produo dos dados visa ressaltar que h uma real produo, mas do que, em alguma medida, j estava l de modo virtual'.H dois pontos a serem examinados. O primeiro diz respeito prpria funo da ateno, que no de simples seleo de informaes. Seu funcionamento no se identifica a atos de focalizao parapreparar a representaodasformasdeobjetos,massefaz atravs da deteco de signos e foras circulantes, ou seja, de pontas do processoem curso.A detecoe a apreensodematerial,em princpio desconexo e fragmentado, de cenas e discursos, requerem umaconcentraosemfocalizao,indicada por GillesDeleuze no seu Abcdaire atravs da ideia de uma ateno espreita, cujo funcionamento vamos procurar elucidar. O segundo ponto que a ateno, enquanto processo complexo, pode assumir diferentes funcionamentos: seletivo ou flutuante, focado ou desfocado, concentrado ou disperso, voluntrio ou involuntrio, em vrias combinaes como seleo voluntria, flutuao involuntria, concentrao desfocada, focalizaodispersa,etc.Embora asvariedadesatencionaiscoexistam de direito, elas ganham organizaes e propores distintas na configurao de diferentes polticas cognitivas (Kastrup, 2005).Chamamos de poltica cognitiva um tipo de atitude ou de relao encarnada, no sentido de que no consciente, que se estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo. Tomar o mun1 O conceito de virtual empregado aqui no sentido que lhe confere H. Bergson (1897/1990;1919/1990).O virtual se atualiza segundo umprocesso de criao e de diferenciao. Nesse sentido, distingue-se do possvel, que se realiza atravs de um processo de limitao e desemelhana.Para a distinodetalhada entre virtual-atual e possvel-real cf.Deleuze (1966). Um bom exemplo daatualizaodeuma virtualidade- comoproduodealgoque jestava l aproduo das mosde umpianistaatravs derepetidostreinos.33do como fornecendo informaes prontas para serem apreendidas uma poltica cognitiva realista; tom-lo como uma inveno, como engendrado conjuntamente com o agente do conhecimento, um outro tipo de poltica, que denominamos construtivista. Nesse sentido, realismo e construtivismo no so apenas posies epistemolgicas abstratas, mas constituem atitudes investigativas diversas, reveladas, conforme veremos, em diferentes atitudes atencionais. Trata-se aqui de ressaltar que a ateno cartogrfica -ao mesmo tempo flutuante, concentrada e aberta - habitualmente inibida pela preponderncia da ateno seletiva. O problema do aprendizado da ateno do cartgrafo tambm um caso de criao do que j estava l, tal como aparece na noo de aprendizado por cultivo, formulada por Depraz, Varela e Vermersch (2003).NosestudossobreatenorealizadosporW.J ames (1890/1945), que so at hoje referncia nessa rea de investigao, a seleo considerada sua funo por excelncia. A seleo operada pela ateno movida pelo interesse e concorre para a ao eficaz. Esse modo de compreender a ateno, como possuindo uma funo seletiva orientada pelo interesse e aplicada na ao, foi assimilado pela grande maioria dasabordagens psicolgicas,incidindoainda hoje sobre os recentes estudos sobre o TDA -Transtorno de Dficit de Ateno. Na atualidade, o exerccio da fora da vontade evocado para o tratamento de tais quadros cognitivos que, no contexto de certas tcnicas teraputicas e, aliado a medicamentos, configura o que vem sendo chamado de biologia moral da ateno (Caliman, 2006; Lima, 2004). Todavia, a questo da ateno do cartgrafo coloca um outro problema, que diz respeito a um funcionamento no recoberto pela funo seletiva. O prprio J ames reconheceu a flutuao da conscincia e da ateno ao propor o conceito de fluxo do pensamento. J ames comparou o fluxo do pensamento ao voo de um pssaro que desenha o cu com seus movimentos contnuos, pousando de tempos em tempos em certo lugar. Voos e pousos diferem quanto velocidade da mudana que trazem consigo (J ames,1890/1945, p.231). O pouso no deve ser entendido como uma parada do movimento,mas como uma parada no movimento. Voos e pousos conferem um ritmo ao pensamento, e a ateno desempenha a um papel essencial.A entrada do aprendiz de cartgrafo 110 campo dapesquisa coloca imediatamente a questo de onde pousar sua ateno. Kmgeral ele se pergunta como selecionar o elemento ao qual prestar ateno, dentre aqueles mltiplos e variados que lhe atingem os sentidos e o pensamento. A pergunta, que diz respeito ao momento que precede a seleo,seriamelhor formuladaseevidenciasseo problema da prpria configurao do territrio de observao, j que, conforme apontouM.Merleau-Ponty(1945/1999),aatenonoseleciona elementosnumcampoperceptivodado,masconfiguraoprprio campo perceptivo. Uma outra questo diz respeito a como prossegue 0 funcionamento atencional aps o ato seletivo. As duas perguntas-que incidem sobre o antes e o depois da seleo indicam a complexidade e a densidade da chamada coleta de dados, sublinhando a dimenso temporal da ateno do cartgrafo, a produo dos dados da pesquisa e o alcance de uma pesquisa construtivista.Dentreascontribuiestericassobrevariedadesatencio- nais envolvidas no estudo da subjetividade, destaca-se a de S. Freud sobre a ateno flutuante, apresentada no conjunto de seus estudos sobre tcnica. No texto Recomendaes aos mdicos que exercem aPsicanlise,Freud(1912/1969)aponta queamaisimportante recomendao consiste em no dirigir a ateno para algo especfico e em manter a ateno uniformemente suspensa. Freud argumenta que o grande perigo da escuta clnica a seleo do material trazido pelo paciente, operada com base em expectativas e inclinaes do analista, tanto de natureza pessoal quanto terica. Atravs da seleo, fixa-se um ponto com clareza particular e negligenciam-se outros. A indesejvelseleo envolve uma ateno conscientee deliberadamente concentrada. Mas Freud observa com preciso que ao efetuar a seleo e seguir suas expectativas, estar arriscado a nunca descobrir nada alm do que j sabe; e, se seguir as inclinaes, certamente falsificar o que possa perceber (Freud,1912/1969, p.150).Para Freud,a atenoconsciente,voluntria e concentrada,o grande35obstculo descoberta.Por outrolado, recomenda a utilizao de uma ateno onde a seleo se encontra inicialmente suspensa, cuja definio prestar igual ateno a tudo. Essa ateno aberta, sem focalizao especfica, permite a captao no apenas dos elementos que formam um texto coerente e disposio da conscincia do analista, mas tambm do material desconexo e em desordem catica.Em seu sentido mais conhecido, a ateno flutuante a regra tcnica que, do lado do analista, corresponde regra de associao livre da parte do analisando, permitindo a comunicao de inconsciente a inconsciente (Laplanche e Pontalis, 1976). O uso da ateno flutuante significa que, durante a sesso, a ateno do analista fica aparentemente adormecida, at que subitamente emerge no discurso do analisando a fala inusitada do inconsciente. Em seu carter desconexo ou fragmentado, ela desperta a ateno do analista. Mesmo que no seja capaz de compreend-la, o analista lana tais fragmentos para sua prpria memria inconsciente at que, mais frente, eles possam vir a compor com outros e ganhar algum sentido. Falando de um inconsciente receptor,a nfase do textofreudiano recai na ateno auditiva.Fazendo um balano acerca da contribuio do conceito de ateno flutuante para a discusso da ateno do cartgrafo, destaca-se a proximidade quanto nfase na suspenso de inclinaes e expectativas do eu, que operariam uma seleo prvia, levando a um predomnio da recognio e conseqente obturao dos elementos de surpresa presentes no processo observado.Alm disso,a ateno seletiva cede lugar a uma ateno flutuante, que trabalha com fragmentosdesconexos.Por outrolado,identifica-seumlimite da formulao freudiana, que voltada unicamente para a ateno auditiva.A utilizao pelo cartgrafo de outras modalidades sen- soriais alm da audio, como o caso da viso, exigir explorar umdesdobramentodacontribuiofreudiana.Outrolimitediz respeito ao aprendizado da ateno flutuante, que no recebe formulao especfica por parte de Freud e que se reveste de especial importncia para o avano do mtodo cartogrfico.36Oestudodaatenodesenvolvidonocampodascincias cognitivascontemporneas,maisespecificamentenosestudosda conscincia, tambm contribui para o entendimento da ateno do cartgrafo. Seguindo uma abordagem fenomenolgica, Pierre Ver- mersch (2002a; 2002b) destaca o carter de mobilidade da ateno, a qual definida como o fundo de flutuao da cognio. E no estudo da ateno que encontramos a possibilidade de pensar a modulao da intencionalidade. Segundo Vermersch, a ateno opera mutaes que modificam a estrutura intencional da conscincia. O conceito de intencionalidade est na base do entendimento da cognio como relao sujeito-objeto, mas o estudo da ateno revela uma nova faceta da conscincia, no como intencionalidade, mas como domnio de mutaes, inclusive da prpria intencionalidade. O interessante nessa formulao situar a flutuao como uma caracterstica da ateno em geral, e no, como Freud, como um tipo especfico de ateno -a flutuante. Pelo caminho das cincias cognitivas, a ateno, como flutuao de base da cognio, pode explicar as duas modalidades anteriormente citadas a seletiva e a flutuante. A partir de sua plasticidade e de sua capacidade de transformao atravs do exerccio, possvel abordar tambm o problema do aprendizado da ateno (Kastrup, 2004).Oconceitodesuspensofoiformuladopor E.Husserlno contextodomtododa reduofenomenolgica,quesignificaa colocao entre parnteses dos juzos sobre o mundo. A suspenso constitui uma atitude de abandono, ainda que temporrio, da atitude recognitiva, dita natural pela fenomenologia. Trata-se de uma suspenso da poltica cognitiva realista, onde o conhecimento se organiza a partir da relao sujeito-objeto.Depraz, Varela e Vermersch (2003) desenvolvem o que denominamde pragmtica fenomenolgica.SublinhamqueHusserl formulou teoricamente o mtodo da reduo,sem, contudo, ter se colocadoo problema de sua implementaoconcreta.Osautores argumentam que precisodesenvolver um verdadeiromtodode pesquisa da experincia e para isso descrevem e discutemalgumas37prticas como a meditao budista, a entrevista de explicitao, a viso estereoscpica e a sesso de psicanlise. Comentando a ltima, observam que a suspenso um gesto cognitivo que refreia o fluxo do pensamento do analista, para que este possa seguir o discurso do paciente. Realizada no incio da sesso, a suspenso no se mantm at o final. Durante a sesso, reflexes ou emoes do analista emergem, atravessando o campo cognitivo, e devem ser reiteradamente colocadasdeladoduranteoprocessodeescuta.Outroelemento queinterrompe asuspenso a polarizaodospensamentosdo analistapor algumaformulao terica,que evocada pelo material trazido pelo analisando. Ressalta-se ento um movimento de vaivm, articulando os sucessivos gestos de suspenso e as interrupes subsequentes. Apesar de tais dificuldades na prtica concreta, a ateno flutuante fica colocada como um horizonte tcnico. Outro ponto destacado que a escuta clnica situada, e isso num duplo contexto: o microcontexto da sesso e o macrocontexto do processo analtico como um todo. No caso da pesquisa cartogrfica, pode-se situar o macrocontexto como a dinmica de transformao do problema geral da pesquisa e os microcontextos como a autodefinio demicroproblemasaolongodasconsecutivasvisitasaocampo. Esses dois contextos funcionam de acordo com uma lgica recursiva, engendrando-se de modo recproco.Depraz,Varela e Vermerschapontamqueogestodesuspenso desdobra-se em dois destinos da ateno. O primeiro indica uma mudana da direo da ateno.Habitualmente voltada para o exterior,ela se volta para ointerior.Osegundo destinoimplica uma mudana da qualidade ou da natureza da ateno, que deixa de buscar informaes para acolher o que lhe acomete. A ateno no busca algo definido, mas toma-se aberta ao encontro. Trata-se de um gesto de deixar vir (letting go). Tanto a ateno a si quanto o gesto atencional de abertura e acolhimento ocorrem a partir da suspenso. Sendo assim, a suspenso, a redireo e o deixar vir no constituem trs momentos sucessivos, mas se encadeiam, se conservando e se eTfae\ aa.Tvdo.38Nocasodacartografia,amerapresena110campoda pesquisa expeocartgrafoainmeroselementossalientes,que parecem convocar a ateno. Muitos deles no passam, entretanto, de meros elementos de disperso, no sentido em que produzem um sucessivo deslocamento do foco atencional. Portanto, h que haver cuidado, pois, como afirmou Freud, a suspenso deve garantir que, no princpio, tudo seja digno de ateno. Mas para Freud a ateno flutuante segue com o ajuste fino da sintonia inconsciente.So as manifestaesdoinconsciente quedespertam a ateno aberta do analista, suscitando o gesto de prestar ateno. A abertura da ateno do cartgrafo tambm no significa que ele deva prestar ateno a tudo o que lhe acomete. A chamada redireo , nesse sentido, uma resistncia aos dispersores.Numa linguagemfenomenolgica,asuspensooatode desmontagem da atitude natural, que o regime cognitivo organizado no par sujeito-objeto e que configura a poltica cognitiva realista. importante sublinhar que, quando sob suspenso, a ateno que se volta para o interior acessa dados subjetivos, como interesses prvios e saberes acumulados, ela deve descart-los e entrar em sintonia com o problema que movea pesquisa.A ateno a si, nesse sentido, concentrao sem focalizao, abertura,configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado. A ateno se desdobra na qualidade de encontro, de acolhimento. As experincias vo ento ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem sentido imediato. Pontas de presente, movimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que h uma processualidade em curso. Algumas concorrem para modular o prprio problema, tomando-o mais concreto e bem colocado. Assim, surge um encaminhamento de soluo ou uma respostaaoproblema;outrasexperinciassedesdobram em microproblemas que exigiro tratamento em separado.Signossoacolhidosnuma atitudeatencionaldeativa receptividade.Soespecialmenteinteressantesquandoexpem um problema e foram a pensar. Nesse caso, constituindo o que F. areia (1995) chamou de breakdown, eles exigem que a ateno sedetenha, produzindo uma desacelerao de seu movimento. A ateno tateia, explora cuidadosamente o que lhe afeta sem produzir compreenso ou ao imediata. Tais exploraes mobilizam a memria e a imaginao, o passado e o futuro numa mistura difcil de discernir. Todos esses aspectos caracterizam o funcionamento da ateno do cartgrafo durante a produo dos dados numa pesquisa de campo. Um ponto no abordado por Depraz, Varela e Vermersch (2003), e que tambm nohavia sido por Freud, diz respeito ao funcionamento da ateno aps esse momento de acolhimento do elemento problemtico. Conforme veremos, no trabalho operado pela ateno que podemos identificar mais incisivamente a produo de dados de uma pesquisa e a dimenso construtivista do conhecimento.Quatrovariedadesdaatenodocartgrafo: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atentoTomando como ponto de partida a ideia de uma concentrao semfocalizao, pareceser possveldefinir quatro variedadesdo funcionamento atencional que fazem parte do trabalho do cartgrafo. So eles o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento.O rastreio um gesto de varredura do campo. Pode-se dizer que a ateno que rastreia visa uma espcie de meta ou alvo mvel. Nessesentido,praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar com metasem variaocontnua.Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele surgir de modo mais ou menos imprevisvel, sem que saibamos bem de onde. Para o cartgrafo, o importante a localizao de pistas, de signos de pro- cessualidade. Rastrear tambm acompanhar mudanas de posio, de velocidade, de acelerao, de ritmo. O rastreio no se identifica a uma busca de informao. A ateno do cartgrafo , em princpio, aberta e sem foco, e a concentrao se explica por uma sintonia fina com o problema. Trata-se a de uma atitude de concentrao pelo problema e no problema. A tendncia a eliminao da intermediao do saber anterior e das inclinaes pessoais. O objetivo atingir40uma atenomovente,imediata erenteaoobjetd-processo,cujas caractersticas se aproximam da percepo hptica.A percepo hptica foi estudada no domnio do tato por G. Revesz (1950). O tato uma modalidade sensorial cujos receptores esto espalhados por todo o corpo e que possuia qualidade de ser uma prximo-recepo, sendo seu campo perceptivo equivalente zona de contato. Diferente da percepo ttil passiva, em que a estimulao limitada ao tamanho do estmulo, a percepo hptica formada por movimentosdeexploraodocampo perceptivo ttil, que visam construir um conhecimento dos objetos. A percepo hptica ento um bloco ttil-sinestsico que envolve uma construo a partir de fragmentos seqenciais. Ela mobiliza a ateno e requer uma ampla memria de trabalho para que, ao fim da explorao, haja uma sntese, cujo resultado um conhecimento do objeto (Hatwell, Streri e Gentaz, 2000).Estendendo o alcance do conceito a outros domnios senso- riais, Deleuze distingue a percepo hptica da percepo tica. A percepo tica se caracteriza pela organizao do campo em figura e fundo. A segregao autctone faz com que a forma salte do fundo e instala uma hierarquia, uma profundidade no campo. Alm do dualismo figura-fundo, faz parte da percepo tica a organizao cognitiva no dualismo sujeito-objeto, que configura uma viso distanciada, caracterstica da representao. O tico no remete apenas ao domnio visual, mas este, em funo de suas caractersticas, a dominante. J a percepo hptica uma viso prxima, em que no vigoraaorganizaofigura-fundo.Oscomponentesse conectam lado a lado, se localizando num mesmo plano igualmente prximo. O olhotateia,explora,rastreia,o mesmopodendoocorrer com o ouvido ou outro rgo. De todo modo, a distino mais importante aquientre percepohpticaepercepotica,enoentreos diferentes sentidos, como a viso, a audio e o tato. Para Deleuze, o movimento da percepo hptica se aproxima mais da explorao de uma ameba do que do deslocamento de um corpo no espao. O movimento da ameba regido por sensaes diretas, por aes de41foras invisveis como presso, estiramento, dilatao e contrao. No o movimentoque explica a sensao, mas,ao contrrio, a elasticidade da sensao que explica o movimento (Deleuze,1981, p. 30). Como uma antena parablica, a ateno do cartgrafo realiza uma explorao assistemtica do terreno, com movimentos mais ou menos aleatrios de passe e repasse, sem grande preocupao com possveis redundncias. Tudo caminha at que a ateno, numa atitude de ativa receptividade, tocada por algo.O toque sentido como uma rpida sensao, um pequeno vislumbre,que aciona em primeira mo o processo de seleo.A ideia de uma seleo independente do interesse foi tematizada por E. Husserl no conceito de notar, que diz respeito ao contato leve com traos momentneos ou com partes mais elementares que um objeto e que possuem fora de afetao. O que notado pode tomar-se fonte de disperso, mas tambm de alerta2. Algo se destaca e ganha relevo no conjunto, em princpio homogneo, de elementos observados. O relevo no resulta da inclinao ou deliberao do cartgrafo, no sendo, portanto, de natureza subjetiva. Tambm no um mero estmulo distrator que convoca o foco e se traduz num reconhecimento automtico. Algo acontece e exige ateno. O ambiente perceptivo traz uma mudana, evidenciando uma incongruncia com a situao que percebida at ento como estvel. signo de que h um processo em curso, que requer uma ateno renovadamente concentrada. O que se destaca no propriamente uma figura, mas uma rugosida- de, um elemento heterogneo. Trata-se aqui de uma rugosidade de origem exgena, pois o elemento perturbador provm do ambiente. Segundo a distino estabelecida por Suely Rolnik (1999; 2006), a subjetividade do cartgrafo afetada pelo mundo em sua dimenso de matria-fora, e no na dimenso de matria-forma. A ateno tocada nesse nvel, havendo um acionamento no nvel das sensaes, e no no nvel das percepes ou representaes de objetos.2 Paraaclassificao dosgestosemHusserl,cf. Vermersch,2002ae2002be E.Husserl, De la sinthse passive.Grenoble, Jrme Milon,1998.42Numalinguagemanglo-saxniea,apsicologiacognitiva denomina mismatch o fenmeno de irrupo de algo no campo perceptivo que instala uma situao de decalagem em relao ao estado cognitivo anterior. A decalagem significa um desnvel na percepo presente. o mismatch que est na origem da captura reflexa, imediata e irrefletida, da ateno (Mialet, 1999). A ateno do cartgrafo capturada de modo involuntrio, quase reflexo, mas no se sabe ainda do que se trata. Tem lugar uma reao de orientao. Como observado nos animais,os receptoressensoriais se voltam para a fonte da mudana. E preciso ver o que est acontecendo.O toque pode levar tempo para acontecer e pode ter diferentes graus de intensidade.Sua importncia nodesenvolvimento de uma pesquisa de campo revela que esta possui mltiplas entradas e no segue um caminho unidirecional para chegar a um fim determinado. Atravs da ateno ao toque, a cartografia procura assegurar o rigor do mtodo sem abrir mo da imprevisibilidade do processo de produo do conhecimento, que constitui uma exigncia positiva do processo de investigao ad hoc.O gesto de pouso indica que a percepo, seja ela visual, auditiva ou outra, realiza uma parada e o campo se fecha, numa espcie de zoom.Um novo territrio se forma, o campo de observao se reconfigura. A ateno muda de escala. Segundo Vermersch (2002a), mudamos de janela atencional. No mbito dos estudos da ateno, a noo de janela atencional serve para marcar que existe sempre um certo quadro de apreenso. H um gesto que delimita um centro maispregnante,em tomo doqualseorganizamomentaneamente um campo, um horizonte, enfim, uma periferia. A janela constitui uma referncia espacial, mas no se limita a isso.Significa,antes de tudo, uma referncia ao problema dos limites e das fronteiras da mobilidade da ateno. A tnica do conceito a dinmica da ateno, visto que h mobilidade no seio de cada janela e tambm passagem de uma janela para outras, que coexistem com a primeira, embora comummododiferentedepresena.Vermerschenumeracinco janelas-tipo,pautadasemsuporteshistoricamenterelacionadosa prticas cognitivas, tcnicas e culturais. So elas a joia, a pgina do43livro, a sala, o ptio e a paisagem. A primeira uma janela micro, que funciona na escala da atividade do joalheiro, da bordadeira e do leitor minucioso. uma ateno que se caracteriza por uma atividade eminentemente focal.Sem se distribuir e percorrer outros espaos alm daquele visado, ela aumenta a magnitude do enquadramento e inibe as bordas do campo perceptivo. Sua traduo comportamental a cessao dos movimentos. Um de seus traos caractersticos que ela capaz de produzir o fenmeno de cegueira atencional (Mack e Rock,1998), que consiste na eliminao absoluta do entorno, ou seja, do que est fora do foco. A segunda a janela-pgina, atravs da qual se faz uma entrada no campo perceptivo, seguida de movimentos deorientao,comportando j indciosdedistribuioda ateno. A terceira a janela-sala, que j permite a ateno dividida. Comporta focalizao, mas tambm assimila uma multiplicidade de partes com graus de nitidez diferenciados. Aparece como ponto novo o movimento da cabea e do prprio corpo no espao. A janela-ptio tpica das atividades de deslocamento e orientao. Envolve deteco e preponderante na atividade do caador.A janela-paisagem uma janela panormica, capaz de detectar elementos prximos e distantes e conect-los atravs de movimentos rpidos.Cada janela cria um mundo e cada uma exclui momentaneamenteasoutras,emboraoutrosmundoscontinuemcopresentes. Cada visada atravs de uma janela d lugar, em sua escala, aos diversos gestos atencionais, possibilitando tambm mudanas de nvel. Cabe sublinhar ainda que o movimento que chamamos de zoom no deve ser confundido com um gesto de focalizao. Apenas ajanela- micro uma janela eminentemente focal. Quando a ateno pousa em algo nessa escala, h um trabalho fino e preciso, no sentido de um acrscimo na magnitude a na intensidade, o que concorre para a reduo do grau de ambigidade da percepo.De todo modo, preciso ressaltar queem cada momento na dinmica atencional todo o territrio de observao que se reconfigura.Oreconhecimentoatentooquartogestoouvariedade atencional.Oquefazemosquandosomosatradosporalgoque44obriga o pouso da ateno e exige a reconfigurao do territrio da observao?Se perguntamos o que isto? samos da suspensflo e retomamos ao regime da recognio.Aatitudeinvestigativado cartgrafo seria mais adequadamenteformulada como umvamos ver o que est acontecendo, pois o que est em jogo acompanhar um processo, e no representar um objeto.E preciso ento calibrar novamente o funcionamento da ateno, repetindo mais uma vez o gesto de suspenso.O que visamos com esta parada e como fica o funcionamento da ateno neste momento? H. Bergson (1897/1990) colocou essa questo, quando de sua discusso sobre o estudo da ateno promovido por T.Ribot3.A ateno havia entosido definida como um movimento de deteno, mas Bergson argumenta que isso no soluciona o problema de seu funcionamento, mas apenas o coloca, pois cabe ento explicar o trabalho do esprito correspondente, ou seja, como a ateno funciona quando ela se detm (Bergson, 1897/1990, p.80).Nessa direo,propea distinoentre oreconhecimento automtico e o reconhecimento atento. O reconhecimento automtico tem como base e como alvo a ao.Reconhecer um objeto saber servir-sedele.Osmovimentosprolongama percepopara obter efeitosteis enosafastamda prpria percepodoobjeto. Um exemplo transitar por uma cidade que conhecemos, onde nos deslocamos com eficincia sem prestar ateno ao caminho percorrido. Ora, no caso do cartgrafo, ntido que no pode se tratar de reconhecimento automtico, pois o objetivo justamente cartografar um territrio que, em princpio, no se habitava. No se trata de se deslocar numa cidade conhecida, mas de produzir conhecimento ao longo de um percurso de pesquisa, o que envolve a ateno e, com ela, a prpria criao do territrio de observao.Bergson afirma que o reconhecimento atento tem como caracterstica nos reconduzir ao objeto para destacar seus contornos singulares. A percepo lanada para imagens do passado conservadasThcodorRibot La PsychologiedeVattention.Paris:Alcan,1889.45na memria, ao contrrio do que ocorre no reconhecimento automtico, em que ela lanada para a ao futura. Bergson comenta sobre o reconhecimento atento: enquanto no reconhecimento automtico nossos movimentos prolongam nossa percepo para obter efeitos teis e nos afastam assim do objeto percebido, aqui, ao contrrio, eles nos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contornos. Da o papel preponderante,enomaisacessrio,queaslembranas-imagens adquirem (Bergson, 1897/1990, p. 78). Bergson afirma que sempre que o equilbrio sensrio-motor perturbado, h uma exaltao da memria involuntria. Constantemente inibida pela conscincia prtica e til do momento presente, isto , pelo equilbrio sensrio-motor, essa memria aguarda simplesmente que uma fissura se manifeste entreaimpressoatualeomovimentoconcomitanteparafazer passar suas imagens (Bergson,1897/1990, p.75). O interessante que o conceito de reconhecimento atento desmonta a noo tradicional de reconhecimento, pautada na ideia do rebatimento da percepo numa imagem prvia ou esquema correspondente. A originalidade da anlise bergsoniana apontar que o processo de reconhecimento no se d de forma linear,como um trajeto nico ou uma marcha em linha reta. No se faz atravs do encadeamento de percepes ou de associao cumulativa de ideias. O reconhecimento atento ocorre na forma de circuitos.De modo geral o fenmeno do reconhecimento entendido como uma espcie de ponto de interseo entre a percepo e a memria. O presente vira passado, o conhecimento, reconhecimento. No caso do reconhecimento atento, a conexo sensrio-motora inibida. Memria e percepo passam ento a trabalhar em conjunto, numa refernciademodupla,semainterfernciadoscompromissos da ao. Para Bergson, a memria no conserva a percepo, mas a duplica. A cada experincia com um objeto se formam dois registros:a imagem perceptiva e a imagem mnsica virtual. Quando do reconhecimento atento, a memria dirige percepo imagens que se assemelham a ela. Se essas no a recobrem totalmente, novo apelo lanado a regies mais afastadas da memria e a operao pode prosseguir indefinidamente.46Ogrficodoreconhecimentoatento(Bcrgson,1897/1990, p. 83) se articula em torno do objeto percebido e sua imagem-lem- brana, virtual e correspondente4.A partir desses dois pontos,so desenhados circuitos sucessivos, cada vez mais amplos, forjando uma ideia de irradiao progressiva da ateno.O circuitomais amplo corresponde ao sonho. Segundo Bergson, nos circuitos acionados no reconhecimento atento todos os elementos, inclusive o prprio objeto percebido, mantm-se em estado de tenso mtua como num circuito eltrico, de sorte que nenhum estmulo partido do objeto capaz de deter sua marcha nas profundezas do esprito: deve sempre retomar ao prprio objeto (Bergson, 1897/1990, p.83). A percepo nosegue um caminhoassociativo operando por adiessucessivas e lineares. Atravs da ateno, ela aciona circuitos, se afastando do presente em busca de imagens e sendo novamente relanada imagem atual, que progressivamente se transforma. O tecido da memria comporta um folheado, assim como o do objeto, que se refaz a cada instante. H mltiplos nveis ou planos que tem como efeito desmontar o esquema do reconhecimento baseado no princpio de correspondncia. Atiado pela perturbao que opera uma fissura no domnio sensrio-motor, o reconhecimento atento realiza um trabalho deconstruo.Percorrendomltiploscircuitosemsucessivos relances,sempreincompletos,realizadiferentesconstrues,cujo resultado um reconhecimento sem modelo mnsico preexistente. Enfimoimportantedoreconhecimentoatento,talcomodescrito por Bergson, c a revelao da construo da percepoatravs do acionamento dos circuitos e da expanso da cognio. A percepo se amplia, viaja percorrendo circuitos, flutua num campo gravitacional, desliza com firmeza, sobrevoa e muda de plano, produzindo dados que, enfim, j estavam l. A ateno atinge algo virtualmente dado (Bergson,1897/1990, p.84), construindo o prprio objeto atravs dos circuitos que a ateno percorre.4 NumtextoposteriorLesouvenirduprsentetlafaussereconnaissance areferncia aoobjetodesaparece.A experinciadlugaraumabifurcao entre presenteepassado,percepo e memria,quepassam a coexistir.Cf. H.Bergson L nergie spirituelle.Paris,PUF,1990.47Aatenocartogrficaeapolticacognitiva construtivistaA ativao de uma ateno espreita -flutuante, concentrada e aberta um aspecto que se destaca na formao do cartgrafo. Ativar essetipo de atenosignifica desativar ou inibir a ateno seletiva, que habitualmente domina nosso funcionamento cognitivo. A noo de aprendizagem por cultivo, proposta por Depraz, Varela e Vermersch(2003),indica uma noo deaprendizagem que no implica a criao de uma nova habilidade ou competncia.Trata- se,atambm,deativar umavirtualidade,depotencializaralgo quej estaval.Aatenoentendida como um msculoque se exercita e sua abertura precisa sempre ser reativada, sem jamais estar garantida. O cultivo da ateno pelo aprendiz de cartgrafo a busca reiterada de um tnus atencional, que evita dois extremos: o relaxamento passivo e a rigidez controlada. nessa mesma direo que Deleuze e Guattari (1995) sublinham que a cartografia no uma competncia, mas uma performance.Ela precisa ser desenvolvida como uma poltica cognitiva do cartgrafo.Procuramosdemonstrarquea produodosdadosocorre desde a etapa inicial da pesquisa de campo, que perde assim o carter de uma simples coleta de dados. preciso sublinhar que esse processo continua com as etapas posteriores, atravessando as anlises subsequentes dos dados e a escrita dos textos, continuando ainda comapublicaodosresultados.Parasermosbastanteprecisos, seria necessrio incluir tambm a circulao do material escrito e a prpria leitura do mesmo pelos interessados, tudo isso sem falar na contribuio dos participantes da pesquisa na produo coletiva do conhecimento.Quisemos,entretanto,apenasdiscutir,noslimites deste trabalho, que a construo ocorre desde o momento em que o cartgrafo chega ao campo. Naquele momento ele no apenas est desprovido de regras metodolgicas para serem aplicadas, mas faz ativamenteumtrabalhopreparatrio.Informaes,sabereseexpectativas precisam ser deixados na porta de entrada, e o cartgrafo devepautar-sesobretudonumaatenosensvel,paraquepossa,48enfim, encontrar o que no conhecia, embora j estivesse ali, como virtualidade.Atravsdadescriodadinmicaatencional,procuramos apontar que a cartografia constitui um mtodo que assume uma perspectiva construtivista do conhecimento, evitando tanto o objetivismo quanto o subjetivismo. Objetivismo e o subjetivismo so duas faces de uma mesma poltica de pesquisa, o realismo cognitivo. Alm de uma posio epistemolgica, o realismo uma poltica cognitiva cor- porificada em muitos pesquisadores, que por esse motivo parece uma atitude natural. A atitude de selecionar informaes por critrios supostamente objetivos ou subjetivos situa-se nesse contexto. Por sua vez, adotando uma poltica construtivista,a ateno do cartgrafo acessa elementos processuais provenientes do territrio -matrias fluidas, foras tendenciais, linhas em movimento -bem como fragmentos dispersos nos circuitos folheados da memria. Tudo isto entra na composio de cartografias, onde o conhecimento que se produz no resulta d representao de uma realidade preexistente. Mas tambm nose trata de uma posio relativista, pautada eminterpretaes subjetivas, realizadas do ponto de vista do pesquisador. Como defende Bruno Latour (2003), trata-se de um construtivismo que toma a srio os limites do saber e os constrangimentos da matria. O cartgrafo , nesse sentido, guiado pelas direesindicadas por qualidadesinesperadase pela virtualidade dosmateriais.A construo do conhecimento se distingue de um progressivo domnio do campo de investigao e dos materiais que nele circulam. Trata-se, em certa medida, de obedecer s exigncias da matria e de se deixar atentamente guiar,acatandooritmo eacompanhando adinmica do processo em questo. Nesta poltica cognitiva, a matria no mero suporte passivo de um movimento de produo por parte do pesquisador. Ela no se submete ao domnio, mas expe veios que devem ser seguidos e oferece resistncia ao humana. Mais que domnio, o conhecimento surge como composio.Enfim, o mtodo cartogrfico faz do conhecimento um trabalho de inveno, tal como indica a etimologia latina do termo inve-49nire -compor com restos arqueolgicos. A inveno se d atravs do cartgrafo, mas no por ele, pois no h agente da inveno. Ocorre que, ao final, realizando o que Bergson (1934/1979) denominou de movimento retrgrado do pensamento, costumamos esquecer o lento elaborioso processo de construo do conhecimento,chegandoa acreditar que ele no existiu e, se existiu, foi sem importncia para os resultados a que se chegou. Trata-se de uma iluso da inteligncia, que devemos procurar apagar, bem como a iluso de uma suposta atitude natural.Emseulugar, podeser cultivada a ateno cartogrfica que, atravs da criao de um territrio de observao, faz emergir um mundo que j existia como virtualidade e que, enfim, ganha existncia ao se atualizar.RefernciasBERGSON, H. Matria e memria. So Paulo: Martins Fontes, 1990 (texto originalmentepublicadoem1897)._______. L nergie spirituelle.Paris, PUF, Paris, PUF,1990 (texto originalmente publicadoem1919)._______.OpensamentoeomoventeIntroduo.Bergson.SoPaulo:AbrilCultural(Co 1.OsPensadores),1979(textooriginalmente publicado em1934).CALIMAN,L.V.Abiologiamoral daateno.A constituiodosujeito (des)atento. Tese de doutorado. Instituto de Medicina Social da Universidade EstadualdoRiode Janeiro,2006.DELEUZE,G.Lebergsonisme.Paris:PUF,1966._______.FrancisBacon:Logiquedelasensation2v.Paris:Ed.delaDiffrence,1981._______. 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Gilson estava com um avental colorido que tinha um bolso com livros e a palavra dinamizador1escrita nascostas.Usava bermuda,chineloemeia.Levandouma mala de livros, ia falando com alguns com quem cruzava ao longo do caminho.Interessante como era ele que chamava os outros e os cumprimentava. Num certo momento, algum brincou com ele:Vai viajar? Ele respondeu algo como: Sim, comaimaginao! Foilegal e espirituoso aquele gesto do Gilson, sempre sorrindo e se fazendo ver. Em outro momento: Vai paraoCirco du Soleil? Ele respondeu: Estou quasel! Esse modo de fazer carregava uma presena e anunciava uma prtica. Havia uma propagao, um contgio no ar, atraes de atenes. Logo chegamos Biblioteca Comunitria Sol Nas1 Pessoa quetrabalha diretamentecomas crianas na biblioteca comunitria.52cente e encontramos a Selma com algumas crianas. Fomos para a salinha de dentro, nos sentamos no ch8o e comeamos a entrevista.O relato anterior descreve a ida a campo de uma pesquisadora do projeto Elos na Rede para entrevistar um grupo de dinami- zadores das atividades que acontecem nas bibliotecas comunitrias do morro Santa Marta e do morro da Mangueira de Botafogo, no Rio de J aneiro. O projeto foi realizado pelo CIESPI Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infncia, em 2007-20082. Trata-se de um desdobramento do projeto Rede Brincar e Aprender, para investigar o que vem sendo produzido, em termos de elos, nas prticas realizadas com as crianas em bibliotecas e brinquedote- cas comunitrias. Buscamos verificar como o ler e o brincar, com as prticasque os cercam,sodispositivos4na criaode elos -elosentrecriana-famlia,criana-escola,criana-comunidade, criana-criana,criana-leitura,criana-brincadeiraetambm elos da criana consigo mesma. Consideramos tambm relevantes os elos que vm sendo criados entre comunidade, escola, cultura, dinamizadores, parceiros e famlias, em tomo do desenvolvimento e do cuidado com crianas e adolescentes. Esse projeto de pesquisa trazido baila neste texto para fazer corpo com uma das pistas paraaprticadomtododacartografia:a pesquisacartogrfica consiste no acompanhamento de processos, e no na representao de objetos. Ao compartilhar aqui o caminhar do pesquisar elos na rede, acreditamos que a ao de acompanhar processos ser detectada pelo leitor.2 Agradecemos ao CIESPI e em especial Profa.IreneRizzini pela realizao da pesquisa e pela oportunidadedecompartilhar omaterialproduzido.3 O Projeto Rede Brincar e Aprender acontece desde 2002 ecoordenado por Carla DanielSartor,IsabellaMassa e NatherciaLacerda, no CIESPI.4 Cf.V.KastrupeR.Benevides,Asfunes-movimentosdodispositivona prtica dacartografia, nestacoletnea.53Representarobjetos- umapaixo dacinciamodernaAconcepodeumapesquisacomorepresentaodeum objetoremontaaosurgimentodacinciamoderna.Conforme apontaIsabelleStengers(1993),a cincia moderna emerge como uma inveno singular, configurando-se de determinada maneira e portando comouma de suas principais caractersticas a separao entre o objeto cientfico e o cientista. O que confere singularidade cincia moderna uma prtica cientfica que se confunde, em grande parte, com a inveno do dispositivo experimental, e remonta a Galileu. Atravs desse dispositivo, o cientista busca separar o sujeito c o objeto do conhecimento.Stengers enfatiza que a experimentao, enquanto prtica singular, no pressupe, mas cria a diferena entre sujeito e objeto. Trata-se ento de uma distino prtica, e no filosfica.Sujeito e objeto no so categorias transcendentais, mas configuraes histricas. O dispositivo experimental aparece como possibilidade de colocao prova das hipteses,ouseja, das invenes ou fices do cientista. Apresentando-se como testemunha fidedigna, ele capaz de provar que tais invenes no so invenes quaisquer, mas verdadeiras descobertas. A inveno cientfica surge ento como um atoarriscado, visto que pode ser desmentida pelo dispositivo. Fica marcado, assim, que prprio da cincia expor-se ativamenteao mundo, provadosfatos,aorisco.Nocontexto da cincia moderna, a distino entre sujeito e objeto existe para garantir que o saber produzido possa ser validado de modo coletivo, pela comunidade cientfica.Dois pontos que destacamos na anlise deStengers:o primeiro que o conhecimento dito abstrato da cincia na realidade o resultado de prticas concretas.O trabalho com objetos purificadosatravsde prticascontroladas,ainvestigaodeumobjeto independente de sua histria e das inmeras conexes que o ligam ao mundo, depende de prticas concretas de isolamento de variveis, essenciais para a reproduo do fenmeno em laboratrio. O segundo ponto que, num ato irrecusavelmente poltico, a cincia acaba por54dobrar o poder da inveno contra o arbitrrio da invenflo. Dito de outra forma, a cincia inventa um dispositivo capaz de, segundo seu ponto de vista, operar a triagem entre a inveno e o que no passa de inveno. A cincia modernainventa prticas de produo do conhecimentocapazesdefazerdesaparecersuaorigeminventiva sob o manto da descoberta cientfica.O dispositivo experimental, concebidopara realizar aseparaoentresujeitoeobjeto,surge como dispositivo poltico, operando a hierarquizao das invenes, ou, antes, convertendo uma delas na nica representaolegtima do fenmeno em questo.O que Stengers faz ver a atividade apaixonada dos cientistas, a paixo de fazer histria, de tomar verdadeiramente verdadeiros, descobertos, e no inventados, os seres cujo testemunho fidedigno o laboratrio produz (Stengers, 2000, p. 111). No se trata de denunciar, mas de sublinhar a inveno da cincia moderna, o que permite tirar algumas concluses. Uma delas que h uma inventividade dispersa, contnua e incessante de toda prtica cientfica. A histria da cincia marcada por pontosde bifurcao,por zonas de indeterminao, por pequenas quebras, que nos fazem perceber uma espcie de rizoma. Esta imagem se ope imagem da cincia que se faz por trajetrias e rupturas, tal como apresenta a histria epistemolgica. Nesse sentido, o trabalho de Stengers se aproxima do de Thomas Kuhn (1978), para quem a cincia no resultado de uma ascese, de uma operao do pensamento abstrato ou da razo matemtica. Para Kuhn, o paradigma um modelo terico dominante, mas tambm, e, sobretudo, um conjunto de prticas de constituio dos enunciados cientficos e da prpria cognio cientfica. E um conjunto complexo de conceitos, prticas, atitudes e valores que produzemenunciadose tambm a prpria racionalidade.Por fim, seu carter compartilhado identifica a cincia como uma prtica histrica e social de construo do conhecimento.A partir de tais colocaes,insinua-se quea inventividade dacincia nomarcada pela raridadeou pelafalta desoluo para um problema, mas abundante e positiva. O carter inventivo55colocaacinciaemconstantemovimentodetransformao,no apenasrefazendoseusenunciados,mascriandonovos problemas e exigindo prticas originais de investigao. nesse contexto que surgea proposta do mtodo da cartografia, que tem como desafio desenvolver prticas de acompanhamento de processos inventivos e de produo de subjetividades.Acompanharprocessos- aapostadacartografiaSempre que o cartgrafo entra em campo h processos em curso. A pesquisa de campo requer a habitao de um territrio que, em princpio, ele no habita. Nesta medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnogrfica e lana mo da observao participante. O pesquisador mantm-se no campo em contato direto com as pessoas e seu territrio existencial. Conforme aponta Aaron Cicourel (1980), alm de observar, o etngrafo participa, em certa medida, da vida delas, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado pela experincia etnogrfica.Otipo de atividadee ograu de envolvimento do pesquisador variam, dependendo do grupo, podendo ir da observao participante participao observante. Segundo J anice Caiafa (2007), uma caracterstica central da etnografia o fato do pesquisador se incluir, de uma forma problemtica, na pesquisa. Isto envolve, alm de um nvel de convivncia, o problema do tipo de posio assumida e da relao que estabelece com os participantes. A ida a campo envolvealgum grau de afastamento do meio familiar. O etngrafo buscaexperimentar umestranhamento.precisointroduzirumairregularidadenacontinuidadefamiliar,h umainterrupo do fio regular dopensamento eda vida. A situao da pesquisa caracteristicamente oferece atrito, e esse atrito queimpulsiona o pensamento, que traz novidade.Essa a dificuldade que est em jogo no trabalho de campo no necessariamente as agruras figuradas nos prembulos convencionais(Caiafa,2007,p.148).56Afirma ainda: preciso estar disponvel para a exposio novidade, quer se a encontre longe ou na vizinhana. Trata-se de uma atitude que se constrino trabalhode campo. que oestranhamento noest dado,algoqueseatinge,um processodo trabalho de campo (p.149). Caiafa sublinha adiante que a relao com os participantes deve ser de agenciamento, de composio entre heterogneos (Deleuze e Guattari, 1977; Deleuze e Parnet, 1977). O agenciamento uma relao de cofiincionamento, descrita como um tipo de simpatia. A simpatia no um mero sentimento de estima, mas uma composiode corposenvolvendoafecomtua.Para Caiafa, essa simpatia que permite ao etngrafo entrar em relao com os heterogneos que o cercam, agir com eles, escrever com eles. So essas tambm a proposta e a aposta da cartografia.Diferente do mtodo da cincia moderna, a cartografia no visaisolaroobjetodesuasarticulaeshistricasnemdesuas conexes com o mundo.Ao contrrio,o objetivo da cartografia justamente desenhar a rede de foras qual o objeto ou fenmeno em questo se encontra conectado, dando conta de suas modulaes e de seu movimento permanente. Para isso preciso, num certo nvel, se deixar levar por esse campo coletivo de foras5. No se trata de mera falta de controle de variveis. A ausncia do controle purificador da cincia experimental no significa uma atitude de relaxamento, de deixar rolar. A ateno mobilizada pelo cartgrafo no trabalho de campo pode ser uma via para o entendimento dessa atitude cognitiva at certo ponto paradoxal, onde h uma concentrao sem focalizao. O desafio evitar que predomine a busca de informao para que ento o cartgrafo possa abrir-se ao encontro6. Nesse sentido, usando as palavras de Suely Rolnik, do cartgrafo se espera que ele mergulhe nas intensidades do presente para dar lngua para afetos que pedem5 L. da Escssia e S. Tedesco,O coletivo de foras comoplano de experincia cartogrfica, nesta coletnea.6 V.Kastrup,OfuncionamentodaatenonotrabalhodocartgrafoeE. Passose A.doEirado,Cartografiacomodissoluodopontodevistado observador, nesta coletnea.57\passagem (Rolnik,2007, p.23).Essa atitude,que nem sempre j fcil no incio, s pode ser produzida atravs da prtica continuada do mtodo da cartografia e no pode ser aprendida nos livros.(Os estudos sobre os processos de produo de subjetividade!tm enfrentado cotidianamente esse desafio.Estudos sobre os movimentos do desejo (Rolnik, 2007), a cognio inventiva (Kastrup, 2002), a construo coletiva de polticas pblicas de sade (Barros; e Passos, 2005a; Barros e Passos, 2005b, Escssia, 2009), o uso da arte em projetos sociais e na reinveno existencial de pessoas com deficinciavisual(Kastrup,2007c;2008a),prticascorporaisde cuidado de si (Pozzana de Barros, 2008), o aprendizado da capoeira (Alvarez, 2007), entre outros.Falar eminvestigaode processos exigequesefaa uma advertncia,poisapalavra processopossuidoissentidosmuito distintos.