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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros BRITO, J. A Ergologia como Perspectiva de Análise: a saúde do trabalhador e o trabalho em saúde. In: GOMEZ, C.M., MACHADO, J.M.H., and PENA, P.G.L., comps. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011, pp. 479-494. ISBN 978-85- 7541-365-4. https://doi.org/10.7476/9788575413654.0024. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Parte IV - Trabalho em Serviços e Questões de Gênero 22. A Ergologia como Perspectiva de Análise: a saúde do trabalhador e o trabalho em saúde Jussara Brito

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros BRITO, J. A Ergologia como Perspectiva de Análise: a saúde do trabalhador e o trabalho em saúde. In: GOMEZ, C.M., MACHADO, J.M.H., and PENA, P.G.L., comps. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011, pp. 479-494. ISBN 978-85-7541-365-4. https://doi.org/10.7476/9788575413654.0024.

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Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Parte IV - Trabalho em Serviços e Questões de Gênero 22. A Ergologia como Perspectiva de Análise: a saúde do

trabalhador e o trabalho em saúde

Jussara Brito

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A Ergologia como Perspectiva de Análise

22. A ErgologiA como PErsPEctivA dE AnálisE: A sAúdE do trAbAlhAdor E o trAbAlho Em sAúdE

Jussara Brito

A ergologia não se caracteriza como uma nova disciplina ou um novo campo de saber, mas sim como uma perspectiva de análise e de intervenção sobre o trabalho gestada entre o final dos anos 60 e o início dos anos 80. Portanto, não corresponde a um campo a mais que se somaria à sociologia, à psicologia, à medicina, nem mesmo a uma disciplina de síntese, como a ergonomia, ou uma abordagem da saúde mental, como a psicodinâmica do trabalho (entre outras). Como perspectiva de análise e intervenção sobre os problemas que emergem do trabalho, a ergologia explora o ponto de vista da atividade humana em suas circulações, entendendo que a atividade de trabalho opera como uma matriz. Indica a exigência de uma dupla confrontação: dos diferentes saberes ‘constituídos’ (acadêmicos/científicos/técnicos) e destes com os saberes ‘in-vestidos’ (produzidos/investidos na atividade de trabalho).

Ao contrário de buscar respostas gerais sobre o que ocorre com o tra-balho, por meio de fórmulas exaustivamente utilizadas, a ergologia propõe uma análise ‘situada’, apostando na potência humana de compreender-transformar o que está em jogo, (re)inventando, criando novas condições e um novo meio pertinente. Constitui-se, assim, em uma maneira de pensar que desestabiliza positivamente modos consagrados (conservadores ou crí-ticos) de ver o trabalho na sociedade contemporânea, colaborando para o seu desenvolvimento.

Neste capítulo, apresentamos, inicialmente, de forma sintética as bases da ergologia. Veremos que ela provém de uma linhagem materialista (passando por Marx) e emerge no cruzamento de três importantes acontecimentos: as repercussões da reflexão de Georges Canguilhem a respeito do que é a vida

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sAúdE do trAbAlhAdor nA sociEdAdE brAsilEirA contEmPorânEA

e a saúde; a descoberta (no plano acadêmico, a nosso ver, revolucionária) da defasagem entre trabalho prescrito e realizado; os encaminhamentos do modelo operário italiano (MOI) de luta pela saúde.

Após a apresentação das partes que constituem a base da ergologia, exa-minaremos, muito sucintamente, seus princípios e o dispositivo de três polos (um modelo de produção de conhecimento que propõe a articulação entre saberes e diferentes disciplinas), para ao final fazer considerações sobre algumas contribuições da perspectiva ergológica para as pesquisas de pós-graduação relacionadas à saúde.

Canguilhem, OddOne e Wisner: três pensadOres fundamentais para a ergOlOgia

O que há em comum entre esses três pensadores? Em que o MOI se aproxi-ma da ergonomia da atividade? Por que o conceito vitalista de saúde presente na obra de Canguilhem é fertilmente agregado pela ergologia?

Para responder a essas perguntas, vamos destacar as ideias-chave de Canguilhem, do MOI (e de Ivar Oddone) e da ergonomia da atividade (e de Alain Wisner). Cabe mencionar que Ivar Oddone, Alessandra Re e seus companheiros (alguns também ligados à ergonomia), mesmo que por cami-nhos diferentes, chegaram a uma conclusão semelhante à que foi enunciada pelos ergonomistas belgas e franceses (como Alain Wisner, Pierre Cazamian, Catherine Teiger, Jacques Durrafourg, Antoine Laville, François Daniellou), de que as transgressões e as microcriações fazem parte do cotidiano de traba-lho até mesmo daqueles que realizam atividades consideradas simples, ma-nuais. Portanto, os trabalhadores detêm conhecimentos importantes sobre o processo de trabalho que operam – ao contrário da ideia tão difundida pelo taylorismo (e que muitos de seus críticos absorveram). Na Itália, esta descoberta foi sinalizada, por exemplo, pela criação da expressão ‘experiência operária’; na França, pelos conceitos de ‘trabalho real’ e ‘prescrito’ (assim como ‘variabilidade’ e ‘regulação’).

Em ambos os casos, é indicada a existência de dois tipos de conhecimen-to, duas culturas e duas linguagens sobre o trabalho: de um lado, o que é veiculado pela organização formal; de outro, o que é compartilhado pelos trabalhadores. Além disso, veremos que ao refletir sobre o conceito de saúde (como ‘capacidade normativa’), Canguilhem (1990) contribui de forma signifi-cativa para compreendermos por que, apesar de toda a rigidez organizacional,

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os trabalhadores desenvolvem experiência e produzem saberes ao buscarem dar conta do trabalho que lhes foi prescrito, ante as ‘infidelidades do meio’, incidindo com novas infidelidades, gerando mais complexidade (recentrando o meio como ‘seu’ meio).

a relaçãO hOmem-meiO nO CentrO dO COnCeitO de saúde de Canguilhem

Filósofo-médico, militante da resistência francesa ao nazismo (período em que, ainda assim, defendeu sua tese de doutorado sobre o normal e o patológico), Canguilhem contribuiu de forma decisiva para uma concepção de saúde associada ao “meio” (termo que ele prefere a ambiente). Em suas palavras, o meio é sempre infiel (instável, adverso), sendo a saúde uma margem de tolerância a essas infidelidades e a capacidade dos indivíduos (individual e coletivamente) de criarem novas normas (Canguilhem, 1990), ou seja, de agirem sobre o meio. É nesse sentido que Canguilhem fala em saúde como uma polaridade dinâmica entre o indivíduo (ou indivíduos) e o ‘seu’ meio. Em outras palavras, para analisar a saúde, é preciso considerar esses dois polos – de um lado, os indivíduos; de outro, o meio em que vivem – e como cada um desses polos afeta o outro. Portanto, Canguilhem indica que uma das características do ser humano é sua vitalidade, que se manifesta na tentativa permanente de adequar o meio (inclusive de trabalho) às suas necessidades e anseios (como seu meio), ou simplesmente, conforme o autor prefere, às suas “normas”. Assim, Canguilhem chama a atenção para o fato de que a vida está sempre presente, mesmo nas situações em que parece inexistir, como no caso da organização taylorista do trabalho:

As reações operárias à extensão progressiva da racionalização taylorista, revelando a resistência do trabalhador às medidas que lhe são impostas do exterior, devem, portanto, ser compreendidas tanto como reações de defesa biológica quanto como reações de defesa social e, nos dois casos, como reações de saúde. (Canguilhem, 2001: 116; grifo nosso)

Ora, se para Canguilhem todo ser humano quer ser sujeito de suas próprias normas, no ambiente de trabalho isto não é diferente, pois os trabalhadores buscam se manter vivos, e a vida se faz presente ali por meio de suas micro-criações (as chamadas transgressões, os ‘jeitinhos’, as soluções engendradas no cotidiano), que tornam viável – quiçá prazeroso – trabalhar. Vamos ao encontro aqui, então, das descobertas da ergonomia da atividade e do MOI,

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que sustentam a perspectiva ergológica – especialmente a compreensão de que o ser humano é normativo, capaz de criar novas normas de vida.

No que tange às interfaces com a ergonomia da atividade, é interessante chamar a atenção para dois pontos. Em primeiro lugar, segundo Canguilhem, a vida é compreendida como uma atividade que se opõe à inércia, ou seja, viver é agir sobre o mundo, o que pressupõe um ser ativo (por exemplo: o cérebro é antes de mais nada um órgão de antecipação, colocação de problemas). O outro ponto de interface se refere à ideia de adaptação do trabalho aos homens e às mulheres que trabalham. Ao dizer que os indivíduos buscam modificar seu meio, de acordo com suas próprias normas, Canguilhem aponta um caminho proposto pela ergonomia da atividade desde o pós-guerra, invertendo a lógica taylorista predominante de adequar as pessoas ao trabalho (Guérin et al., 2001; Daniellou, 2004): ‘adaptar o trabalho ao homem’. Esse também foi o caminho escolhido pelo MOI, que visou a compreender-transformar as situações de trabalho, de modo que estas não gerassem danos à saúde e que permitissem aos trabalhadores expressarem “ao máximo sua capacidade produtiva como seres pensantes” (Oddone, 2007: 5).

adaptar O TrabalhO aOs HOmens e às Mulheres que Trabalham: a prOpOsta da ergOnOmia da atividade

Para a ergonomia da atividade, a adaptação do trabalho às pessoas exige reconhecer a forma que elas encontram para viver determinada situação, como agem, que estratégias utilizam. Esse é o sentido maior destes dois importantes conceitos: ‘trabalho real’ e ‘trabalho prescrito’. Um dos méritos de tais con-ceitos é o fato de terem sido baseados em estudos desenvolvidos em situações reais de trabalho, tipicamente tayloristas, isto é, nas quais se supunha que aos trabalhadores cabia apenas executar fielmente o prescrito. No entanto, a análise dessas situações permitiu evidenciar que o trabalho é muito mais do que o previsto e percebido do exterior; possibilitou mostrar que o trabalho tem duas faces.

O conceito de trabalho prescrito refere-se a uma dessas faces: o que é espe-rado no âmbito de um processo de trabalho específico, com suas características particulares. É vinculado tanto a regras e objetivos fixados pela organização do trabalho quanto às condições dadas. Observa-se, assim, que trabalhar implica lidar com uma diversidade de fontes de prescrição, estabelecer prioridades entre elas e provavelmente não conseguir respeitá-las simultaneamente (Leplat

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& Hoc, 1998). Entretanto, a prescrição é fundamental, porque sua ausência pode gerar consequências negativas tanto para o desenvolvimento do trabalho quanto para a saúde do trabalhador.

O esforço conceitual sinalizado na expressão ‘trabalho real’ está vinculado ao pressuposto de que as prescrições são sempre recursos incompletos, isto é, que desde a sua concepção não são capazes de contemplar todas as situações encontradas no exercício cotidiano de trabalhar. Nesse sentido, é dada ênfase ao papel das pessoas como protagonistas ativos do processo produtivo (e não como ‘fator’ ou ‘recurso’ humano). Até no caso de tarefas muito repetitivas, cabe ao trabalhador fazer regulações/ajustes/desvios – mesmo que infinitesimais.

Fundamentalmente, a defasagem sempre existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real se deve ao fato de as situações reais de trabalho serem dinâmicas, instáveis e submetidas a imprevistos – ou “infiéis”, como diz Canguilhem. Portanto, a atividade de trabalho envolve estratégias de adaptação do prescrito às situações reais de trabalho, atravessadas pelas variabilidades e pelo acaso. A atividade de trabalho é sempre singular, dado que caracteriza o trabalho de indivíduos singulares e instáveis/variáveis, efetuado em contextos singulares e variáveis (em suas dimensões materiais, organizacionais ou sociais).

A perspectiva ergológica reteve (desenvolvendo) os conceitos de trabalho prescrito e trabalho real (e sua defasagem), mas a influência de Canguilhem colaborou para que esses fossem tratados como normas que antecedem ou que são criadas no curso da atividade, conforme veremos adiante. Da mesma forma, a lição apreendida de que o trabalho nunca é pura execução contribuiu para desenvolver o conceito de atividade, com a colaboração da ergologia.

No que tange aos cruzamentos da ergonomia da atividade com o MOI, é interessante registrar que Theureau (2002), ergonomista francês, afirmou em entrevista que as “pesquisas fantásticas” realizadas nas empresas pelo movi-mento sindical italiano marcaram também o desenvolvimento de seus estu-dos, de sua formação. Além disso, Alessandra Re – psicóloga de destaque no MOI – é hoje responsável pelo Laboratório Interdepartamental de Ergonomia da Universidade de Turim. Há, de fato, pontos em comum entre a ergonomia da atividade e o MOI. Por exemplo: a desconstrução da visão de trabalho como mera execução está presente também no MOI – movimento que mudou a perspectiva de análise, seja em relação à concepção marxista de alienação, seja em relação à prática de uma certa psicologia do trabalho ‘escrita’ que era impregnada pelo taylorismo (Vicenti, 1999).

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De fato, o movimento italiano trouxe à tona a questão de que o processo de contínua aprendizagem, que se desenvolve por via da experiência, por sua transmissão e pela reflexão coletiva nela originada, é encontrado mesmo nos trabalhos mais simples. Nos seminários realizados com delegados sindicais ou membros de conselhos de fábrica, os trabalhadores se referiam a seus tra-balhos como algo estimulante e dinamizador de sua inteligência, habilidade psicomotriz e capacidade de criação (Oddone et al., 1981).

O mOdelO OperáriO italianO de luta pela saúde

Em meados dos anos 60, em Turim, um grupo composto de médicos, sociólogos, psicólogos, estudantes, trabalhadores e sindicalistas deu início ao que se denominou de “comunidades científicas ampliadas”, as quais se desen-volveram em todo o território nacional. Pela confrontação entre os saberes formais dos pesquisadores e os saberes informais dos trabalhadores, essas comunidades elaboraram um novo modelo de conhecimento e de estratégia sindical a respeito das condições de vida e de trabalho. Essa nova abordagem afirmava o valor científico da subjetividade dos trabalhadores, validada pelo ‘grupo homogêneo’ de produção, desenvolvendo uma forma original de pesquisa-ação, na qual todos os atores se tornariam coautores da pesquisa, como portadores de seus saberes específicos (Vicenti, 1999).

Milhares de mapas ‘brutos’ de riscos foram feitos à mão, entre os anos 60 e 70, pelos operários, estudantes, médicos e psicólogos engajados nas lutas pela saúde nos locais de trabalho. De acordo com o conceito de “não delegação”, construíram-se as bases de uma cooperação entre esses atores, calcada em um processo de validação dos conhecimentos cien-tíficos por parte do grupo homogêneo. O objetivo do modelo era usar o conhecimento científico em benefício dos interesses do trabalhador: “o importante é aprender a lidar com o conhecimento, mesmo o mais acadêmico, e não fugir dele e chamar o técnico para tomar o seu lu-gar, mas chamá-lo para ‘traduzir’ a linguagem, esmiuçar um detalhe” (Gawryszewski, 1989: 40).

Discutindo a influência do MOI na construção da saúde do trabalhador, Ferreira da Silva (2003) ressalta que o princípio de ‘conhecer para transfor-mar’, assim como os conceitos ‘não delegar’, ‘grupo homogêneo’ e ‘validação consensual’, marcaram profundamente o campo, enquanto o conceito de ‘comunidade científica ampliada’ não frutificou. Da mesma forma, outro

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importante instrumento do MOI, a técnica da ‘instrução ao sósia’,1 ainda está por ser mais bem difundido e explorado entre nós.

Na França, Clot (2006) procura avançar no caminho iniciado pelo MOI na construção de uma clínica da atividade, também proposta por Schwartz (2000b), em que a técnica da ‘instrução ao sósia’ tem sido aprimorada. Tam-bém na França, o ‘mapa de riscos’ é um dos elementos centrais do Sistema Interativo de Saúde no Trabalho (Sist), que reúne dados sobre os ambientes de trabalho, as atividades de trabalho e o território, viabilizando a identifica-ção do número de pessoas expostas a riscos e o diálogo entre profissionais de saúde, trabalhadores e governo local (Re et al., 2006). Como diz Keller (2003), o Sist nasceu do encontro predestinado entre os herdeiros da tradição auto-gestionária de uma sociedade de ajuda mútua, baseada em uma concepção militante da saúde, propagando ‘pequenas comunidades científicas’ na região, reunindo médicos, pesquisadores e trabalhadores na pesquisa e eliminação das nocividades industriais.

A obra de Oddone foi determinante para Schwartz, para quem o conceito de comunidade científica ampliada permitia ter uma visão menos redutora do trabalho. Porém, mesmo reconhecendo a importância científica, cultural, social e política do conceito, Schwartz (2000a) mostra alguns de seus limites, que de forma geral estão ligados às mudanças do contexto histórico em que a experiência italiana se desenvolveu.

Um de seus problemas seria o de transmitir a ideia de que o conhecimento sobre a atividade de trabalho pertence ao domínio científico no sentido clás-sico, levando à ocultação das diferentes competências e saberes do conjunto de atores envolvidos. Para ele, o conceito de comunidade científica ampliada oculta um pouco tanto as competências próprias de cada um dos parceiros quanto a dificul dade do projeto, absolutamente necessário, de fazer com que os protagonistas tra balhem conjuntamente (Schwartz, 2000a). Nas comunidades científicas ampliadas, havia algo que contribuía para esse trabalho conjunto: a consciência de classe e os valores emancipatórios da classe operária, via mili-tância sindical. Hoje, os parceiros não são mais somente militantes operários;

1 A técnica de instrução ao sósia foi desenvolvida durante os seminários de formação operária com os tra-balhadores da Fiat, consistindo de um diálogo orientado pela seguinte proposição: “Supondo que eu seja idêntico a você do ponto de vista físico e amanhã eu vá te substituir, diga-me como eu deveria me comportar em relação à sua tarefa, a seus colegas de trabalho, à hierarquia e à organização sindical de modo que não percebam que se trata de outra pessoa” (Oddone, Re & Briante, 1981: 67). Trata-se de uma técnica que propicia a coanálise das atividades, dando maior ênfase ao ‘como’ do que ao ‘porquê’ delas. Esta técnica vem sendo aperfeiçoada por Clot (2006) e os pesquisadores da Clínica da Atividade.

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são também desempregados, trabalhadores do setor de serviços e profissionais de diversos ramos, inclusive gerentes, microempresários, cooperativados etc. Portanto, Schwartz acredita que a cooperação não pode ser fundada de maneira exclusiva nas relações com os sindicatos. Foi assim que ele deu visibilidade ao fato de que o MOI operava com um terceiro polo – ético-epistêmico –, em seu caso dinamizado pelo sindicato.

O que nos parece particularmente interessante nessa proposta é que ela problematiza e desconstrói (revelando ainda mais sua riqueza, ao lado de seus limites) um instrumento experimentado no MOI, em razão de um novo cenário social e político, marcado pelas ‘reestruturações’ produtivas e por uma mudança nas relações de força em favor do capital, com efeitos na ação sindical voltada para a transformação das condições de trabalho. Afinal, como salienta Kuchenbecker (1992), o entendimento de que os idealizadores do modelo operário tenham tido uma preocupação em construir um instrumen-to acabado parece pouco plausível, pois o modelo tem suas características e especificidades baseadas em sua inerente historicidade.

COnCeitOs e prinCípiOs da ergOlOgia

Após termos esboçado as bases da ergologia, procuraremos apresentar alguns dos seus conceitos de referência e os princípios que orientam essa perspectiva de análise e intervenção. Sabemos, contudo, que tal apresentação será certamente redutora, pois, considerando a complexidade do tema, não nos propomos aqui discuti-lo em profundidade.

Primeiramente, vamos destacar a contribuição da ergologia na ampliação dos significados das noções de trabalho prescrito e trabalho real (Alvarez & Telles, 2004). Schwartz (2000b) identifica que, além das formas de prescrição relativas à organização do trabalho e às condições dadas ao trabalhador, há normas mais gerais (no sentido dado por Canguilhem) que também têm o papel de antecipar/predefinir as atividades. São chamadas de ‘normas ante-cedentes’, pois estão disponíveis antes mesmo de a atividade se iniciar. Elas apresentam dois aspectos: 1) são vinculadas a aquisições da experiência coletiva (e, por isso, são bens comuns, de todos), materializadas nos saberes técnicos, científicos e culturais, imprescindíveis para o desenvolvimento do trabalho; 2) dizem respeito à divisão social do trabalho e às relações de poder.

Para Schwartz, entre essas normas de caráter geral e a estrita imposição de modo de execução, há uma série de normas antecedentes, mais ou menos rele-

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vantes. Ademais, tais normas antecedentes sinalizam valores (saúde, educação, direito ao trabalho, ao lazer, segurança, preservação ambiental, igualdade etc.) sobre os quais há sempre um campo de lutas e em nome dos quais se busca ins-tituir dispositivos legais, em uma conjuntura social específica. Portanto, elas têm uma dimensão sociopolítico-jurídica e não apenas monetária. Enfim, as normas antecedentes estão vinculadas aos regulamentos, procedimentos e tecnologias encontradas em determinada situação de trabalho, no nível de conhecimento técnico-científico e cultural de uma certa sociedade e aos valores nela presentes.

Em uma situação concreta de trabalho, há concorrência entre as várias normas (muitas vezes contraditórias) – princípios, regras, modelos, formação técnico-científica, recursos disponíveis etc. –, sendo os trabalhadores obrigados a fazer escolhas, permanentemente. Dito de outra forma, os trabalhadores se encontram sempre imersos em uma pluralidade de normas e vivenciam constantemente a tensão de se confrontar com elas. Ao fazer opções, buscam soluções e desenvolvem novas técnicas, que mais tarde poderão ser incorpo-radas às normas antecedentes.

Mas não é só isso: sendo o trabalho um lugar de debates de normas e valores, é também um espaço em que novas normas se instauram, pois, como já assinalamos, em relação aos desafios do cotidiano, há a tendência dos seres humanos de produzir novas normas. Esse movimento é denominado pela ergologia (Canguilhem) “renormatização”. Em síntese, há normas que são propostas ou impostas (normas antecedentes), assim como há normas instau-radas na própria atividade, ligadas ao próprio indivíduo. Pensar o trabalho como reprodução idêntica das normas econômicas e técnicas subentendidas na atividade de trabalho seria pensá-lo em uma perspectiva apenas adaptativa, o que na verdade não dá conta da complexidade da vida e do trabalho.

O conceito de ‘atividade’ é central para a ergologia e remete simultaneamente às normas antecedentes (instituídas e presentes no processo de trabalho) e às renormatizações. Assim, para a ergologia, a atividade é entendida como um debate de normas e valores. Diante das normas antecedentes, na situação real de trabalho, os trabalhadores (re)criam estratégias, em um movimento contínuo de (re)normatização. É nesse sentido que Schwartz, na linhagem de Canguilhem, afirma que em toda atividade de trabalho há sempre ‘uso de si’. De um lado, ‘uso de si pelos outros’, como nos é mais visível; de outro, algo que é mais difícil de considerar: ‘uso de si por si’. Nas situações reais de trabalho, é necessário que os trabalhadores façam também ‘uso de si por si’: que se mobilizem (corporal, cognitiva, afetiva e socialmente), que façam uso de suas próprias capacidades, de

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seus próprios recursos e de suas próprias escolhas; que mobilizem o patrimônio coletivo, criem novos coletivos, para equacionar os problemas emergentes, gerir as diferentes normas e, acima de tudo, viver, ‘levar a vida’.

Para Schwartz (2005), a atividade humana atravessa o biológico, o psicoló-gico e o cultural, o individual e o coletivo, o fazer e os valores, o privado e o profissional, o imposto e o desejado – porque o fazer é impregnado de valores, o privado se articula com o profissional etc. Logo, a atividade de trabalho não pode ser vista apenas de um ângulo; compreendê-la exige o diálogo entre diferentes disciplinas, abordagens e campos de saberes, envolvendo necessária e sistematicamente os protagonistas do trabalho em análise.

Nessa perspectiva, o foco sobre a atividade de trabalho está ligado tanto aos condicionantes econômicos e sociais dos processos produtivos quanto à história singular que se produz no cotidiano. A atividade de trabalho faz a mediação entre o local e o global (seu contexto social, econômico e político). É nesse sentido que, na perspectiva ergológica, propõe-se um vaivém entre micro e macro: um dado olhar sobre as dificuldades e as possibilidades encontradas nas situações concretas de trabalho, buscando identificar as marcas da história de uma sociedade (seu desenvolvimento científico e cultural, as relações de poder instituídas) e seus valores.

a COnfrOntaçãO de saberes: uma exigênCia para COmpreender e transfOrmar as situações de trabalhO

Para Schwartz (2000b), a ciência tradicionalmente busca a generalização, e assim acaba neutralizando as singularidades ligadas à atividade. Entretanto, os saberes gerados na atividade (na linguagem de Oddone, a ‘experiência’) são potencialmente uma fonte para compreensão das situações de trabalho. Ao considerá-los, os conceitos científicos são postos à prova. Encontramos no “dispositivo dinâmico de três polos” (Schwartz, 2000b) um modelo de produção de conhecimento que propõe a articulação entre as diferentes disciplinas cientí-ficas (“polo dos conceitos”), os saberes e valores gerados pelas experiências dos trabalhadores nas atividades (“polo das forças de convocação e de validação”) e, por fim, o “polo das exigências éticas e epistemológicas”, que propicia o encontro fecundo dos dois primeiros. Esse terceiro polo é a ‘liga’ do dispositivo, pois diz respeito à ética necessária à construção de parcerias. É também um polo epistemológico porque trata das condições necessárias para que o intercâmbio entre os dois primeiros polos seja frutífero no que tange ao conhecimento.

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A Ergologia como Perspectiva de Análise

Esse polo se constitui, portanto, em um ‘espaço’ que viabiliza os acordos e as negociações necessários à produção de conhecimento e às transformações esperadas. Se no MOI, como foi explicitado por Schwartz, esse terceiro polo era dinamizado pelo sindicato, devemos estar atentos à possibilidade de que outros atores operem como agenciadores do intercâmbio desejado.

Ao propor um dispositivo de três polos, a ergologia procura dinamizar a intera-ção entre os saberes que se afirmam no conhecimento científico e na experiência do trabalho, algo já vislumbrado pelo MOI, mas considerando que isso não é nada simples. O intercâmbio entre experiência e conceito deve permitir o debate sobre as grades conceituais utilizadas na análise dos casos, que apresentam uma visão genérica, avançando na compreensão dos processos, nas suas singularidades. Nesse sentido, o polo da experiência contribui com essa dinâmica, para o desen-volvimento das várias disciplinas e para seu próprio desenvolvimento. Por sua vez, esse intercâmbio deve permitir também uma transformação das condições em que os trabalhadores realizam o trabalho e da forma como eles buscam intervir sobre elas. Deve haver, simultaneamente, o enriquecimento dos dois polos: do conhecimento científico e das forças de convocação e validação.

O dispositivo de três polos pressupõe uma relação dialética entre os dife-rentes saberes de tipo científico e entre estes e os saberes da experiência. Não se trata de um modelo fechado, mas sim de um referencial transformativo que se agrega ao epistemológico, com efeitos teóricos e metodológicos. Logo, é um dispositivo que pode adquirir formatos diversos e ser adotado em ações diversas, não apenas para fins de pesquisa científica.

Como chama a atenção Schwartz (2002), as intervenções representam sem-pre o risco de se subestimarem as dinâmicas da atividade estudada. Para esse autor, toda a panóplia de diagnósticos, interpretações e preconizações acaba se constituindo em uma intervenção na vida dos outros – os trabalhadores – com seus valores e saberes advindos de um cotidiano de confrontação com as situações de trabalho.

COnsiderações finais: a prOpósitO da COntribuiçãO da ergOlOgia para as pesquisas de pós-graduaçãO na área da saúde

Para concluir, é interessante assinalar de que forma a ergologia tem se mostrado uma ferramenta importante para o desenvolvimento, no Brasil, de dissertações e teses relativas à saúde coletiva, tanto do ponto de vista metodo-lógico quanto do teórico-conceitual.

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Do ponto de vista metodológico, vemos que o dispositivo dinâmico de três polos inspirou fortemente os estudos de Ferreira da Silva (2003), Masson (2007) e Zambroni de Souza (2006). Na tese de Ferreira da Silva (2003), esse dispositivo é pensado como uma possibilidade de desenvolvimento de ações de promoção da saúde a partir dos locais de trabalho. No caso da dissertação de Masson (2007), buscou-se estabelecer uma comunidade ampliada (e dialógica) de pesquisa (Brito et al., 2003; Botecchia, 2006) com auxiliares de enfermagem da unidade neonatal, objetivando dar visibilidade aos aspectos de mais difícil percepção da atividade dessas trabalhadoras, mediante sua ‘colocação em palavras’ e a sinergia/debate entre os polos dos conceitos e o da experiência da prática, tendo como foco articulador a atividade de trabalho.

Na investigação de Zambroni de Souza (2006), com pessoas com trans-tornos mentais graves, a perspectiva ergológica guiou a concepção do estudo também pelo fato de ter suscitado questões sobre transformações desejáveis no trabalho, apontando assim para as ‘reservas de alternativas’ existentes. Nessa mesma linha, Telles (2002) identificou que as ideias da reforma psiquiátrica e do cooperativismo popular integram a constituição das normas antecedentes da organização do trabalho de uma cooperativa de usuários de serviços de saúde mental.

Mas é como ferramenta de compreensão do trabalho, com base no seu arcabouço teórico-conceitual, que a ergologia tem sido especialmente útil. Há, por exemplo, um conjunto de estudos acadêmicos que se utilizou da perspectiva ergológica para tratar do trabalho em saúde. Santorum (2003), em sua análise sobre a atividade de vigilância em saúde do trabalhador (VST), mostrou o hiato entre suas normas antecedentes e o que se faz na ação. Esse hiato está associado a um grande desconhecimento sobre o que os trabalhadores que protagonizam a vigilância enfrentam no cotidiano: as decisões que tomam, as soluções que encontram, as dificuldades com que se deparam etc. Nesse sentido, afirma que o debate relativo às diretrizes da VST precisaria incorporar a experiência desses trabalhadores.

Do mesmo modo, Barbosa da Silva (2006), ao se aproximar do que re-almente os profissionais do Programa Saúde da Família (PSF) operam no confronto com as situações reais de trabalho, deparou-se com modos de agir e saber-fazer diversos dos encontrados nos manuais do PSF. Para a autora, a defasagem entre o prescrito e o real é agravada no caso do PSF pelo fato de ser este um modelo ainda não suficientemente experimentado. A prescrição do trabalho no PSF também foi tratada na tese de Scherer (2006), cuja conclusão

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é de que a interdisciplinaridade como atividade real se produz na gestão do trabalho no cotidiano com os profissionais e os usuários.

No campo da educação, podemos citar as pesquisas de Silva (2006) e de Souza (2005). A primeira mostrou que o cotidiano dos professores é marcado pela tensão de valores existentes entre os valores mercantis impostos ao meio acadêmico na forma de indicadores de performance e os valores inerentes à his-toricidade dos professores – valores dimensionados e sem dimensão, conforme Schwartz (2000b). Por sua vez, Souza (2005) indicou que os professores procu-ram reverter as situações adversas que podem prejudicar a saúde, a motivação para o trabalho e a interação com os alunos, por meio das renormatizações.

A ‘dimensão gestionária do trabalho’ foi explorada também em várias pesquisas. No caso de Barker (2005), essa questão foi associada ao conceito de “agir em competência” (Schwartz, 2000b) em sua pesquisa com jovens mães trabalhadoras, moradoras de espaços populares, contribuindo para o reconhecimento não apenas dos sofrimentos relacionados ao trabalho, mas da complexidade de suas atividades e da capacidade delas de gerir as situações.

Em pesquisa com trabalhadores de telemarketing, Oliveira (2007) indicou a necessidade de que a dimensão gestionária do trabalho fosse reconhecida pelos próprios trabalhadores, profissionais de saúde e pesquisadores, para a prevenção de adoecimentos e para a promoção da saúde.

Ruiz (2003) sinalizou para a possibilidade de cada pessoa envolvida nos serviços de saúde mental assumir a coautoria de sua produção e gestão, refu-tando, assim, a ideia de que a contribuição principal da Reforma Psiquiátrica seria ter fornecido um novo modelo, pensado por especialistas gestores, a ser adotado por especialistas clínicos.

França (2002, 2007) mostrou que a tarefa na recepção de um hospital uni-versitário não se constitui apenas da marcação e do registro de exames, pois envolve uma complexa gestão de fluxo dos pacientes, que se processa segundo valores ligados à história do coletivo de trabalho. O trabalho hospitalar foi também tratado por Muniz (2000), que teve o objetivo de compreender como os profissionais regulavam os problemas organizacionais, visando a garantir a assistência ao paciente de neurocirurgia e a evitar o prolongamento do seu tempo de permanência, constatando seu papel fundamental na gestão desses problemas, seja procurando evitá-los (antecipação), seja buscando minimizar suas consequências (recuperação).

Percebemos que esse conjunto de pesquisas está vinculado especialmente a duas áreas/temas da saúde coletiva; o objeto de uma parte desse conjunto

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é fundamentalmente o ‘trabalho em saúde’, ao passo que as problemáticas tratadas em um segundo grupo de pesquisas se inserem no campo de estudos da ‘saúde do trabalhador’. São pesquisas que remetem ao modo como os tra-balhadores (da saúde e outros) vivem no cotidiano de trabalho, envolvendo descobertas que podem ser úteis à atualização de políticas públicas. De fato, pensamos que os desafios apresentados pela complexidade dos problemas encontrados nas situações de trabalho de nosso país poderão ser mais bem enfrentados com a contribuição desse referencial. Assim, esperamos que este capítulo tenha contribuído para um melhor entendimento das ferramentas e da proposição da ergologia, no que tange ao modo de produção de conheci-mento sobre o trabalho, em suas relações com a saúde.

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