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Parte II Rei dos Reis RIO DE JANEIRO SÃO PAULO E D I T O R A R E C O R D 2016 Tradução de Ana Ban 1ª edição

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Parte IIRei dos Reis

R I O D E J A N E I RO • S ÃO PAU LOE D I T O R A R E C O R D

2016

Tradução de Ana Ban

1ª edição

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Prólogo: O deserto sírio entre o rio Eufrates e a cidade de Palmira

(outono de 256 d.C.)

Eles cavalgavam para salvar suas vidas. No primeiro dia no deserto, tinham se esforçado muito, mas sempre respeitando o limite dos ca-valos. Completamente sozinhos, não tinham avistado sinais de perse-guição. Naquela noite no acampamento, entre as conversas abafadas e cansadas, havia um clima frágil de otimismo. Ao amanhecer, ele foi esmagado de tal maneira que não sobrou sequer a lembrança.

Enquanto percorria a crista de uma pequena montanha, Marco Clódio Balista, o Dux Ripae, levou seu cavalo para a lateral da trilha desordenada e deixou que os outros treze cavaleiros mais o cavalo de carga passassem. Olhou para trás, para o lugar de onde tinham vindo. O sol ainda não se erguera, mas seus raios começavam a dispersar o escuro da noite. E ali, no centro daquele semicírculo de luz amarela espectral que se espalhava, bem no ponto onde dentro de alguns mi-nutos o sol irromperia no horizonte, subia uma coluna de poeira.

Balista estudou a coluna com muita atenção. Era densa e isolada. Mantinha-se reta e alta até onde, pouco acima, uma brisa de ar a em-purrava para o sul e a dissipava. No deserto plano e indistinto, sem-pre era difícil avaliar distâncias. Entre seis e oito quilômetros, longe demais para ver qual era a causa daquilo. Mas Balista sabia. Era uma tropa de homens. Lá nas profundezas do deserto, só podia ser uma tro-pa de homens montados; a cavalo ou camelo, ou os dois. Mais uma vez, a distância era grande demais para fazer uma estimativa preci-sa dos números, mas, para erguer tanta poeira assim, deviam contar com quatro ou cinco vezes mais homens do que Balista tinha. O fato de que a coluna de poeira não se inclinava nem para a esquerda nem para a direita, mas aparentemente se levantava na vertical, mostrava que eles os seguiam. Com um sentimento de resignação, Balista acei-tou o inevitável: o inimigo estava em seu encalço, uma grande tropa da cavalaria persa sassânida os perseguia.

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Ele olhou ao redor e percebeu que seus guerreiros tinham parado. A atenção de todos se dividia entre ele e a nuvem de poeira. Balista se forçou a não pensar neles. Examinou a paisagem em 360 graus. De-serto aberto, levemente ondulante. Areia com uma cobertura grossa de pedras, pequenas e afiadas, de cor parda. Suficientes para esconder uma infinidade de escorpiões e cobras; nada para camuflar um ho-mem, muito menos 14 cavaleiros e 15 cavalos.

Balista se virou e levou sua montaria até os dois árabes no meio da fila.

— Se cavalgarmos bem, em quanto tempo alcançaremos as mon-tanhas?

— Dois dias — respondeu a moça sem hesitar.Bathshiba era filha de um escoltador de caravana. Ela já tinha per-

corrido aquela rota com seu falecido pai. Balista confiava na avaliação dela, mas lançou um olhar para o outro árabe.

— Hoje e amanhã — disse o mercenário Haddudad.Com um tilintar dos arreios do cavalo, Turpio, o único oficial ro-

mano da força original sob o comando de Balista que sobrevivera, parou seu cavalo ao lado deles.

— Dois dias até as montanhas? — perguntou Balista.Turpio fez um gesto eloquente com os ombros.— Se os cavalos, os inimigos e os deuses assim desejarem.Balista assentiu. Ele se ergueu usando os pitos da sela. Olhou a

fileira de cavaleiros de uma extremidade à outra. Todo o grupo pres-tava atenção total nele.

— Os répteis estão a nossa procura. Há muitos deles. Mas não há razão para achar que conseguirão nos alcançar. Estão pelo menos oito quilômetros atrás de nós. Em dois dias, estaremos a salvo nas montanhas. — O líder tanto sentiu quanto viu as objeções mudas de Turpio e dos dois árabes. Ele os deteve com um olhar frio. — Em dois dias, estaremos a salvo — repetiu.

Olhou para toda a fila. Ninguém disse nada.Com calma premeditada, Balista conduziu seu cavalo lentamente

até a frente de todos. Ergueu a mão e fez um sinal para que continuas-sem avançando. Passaram a cavalgar em um meio-galope.

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Atrás deles, o sol se erguia no horizonte. Cada uma das menores elevações no deserto se tingia de dourado; cada depressão minúscula virava uma poça de tinta preta. Na medida em que eles avançavam, as sombras tremeluziam a distância, bem à frente, como se fizessem tentativas fúteis de se adiantar aos cavaleiros.

A pequena coluna não tinha ido longe quando um desastre ocorreu. Ouviu-se um grito, interrompido de maneira abrupta, e então um estrondo terrível. Balista se virou para trás em cima da sela. Um soldado e sua montaria tinham caído; um emaranhado agitado de membros e equipamentos. O homem se virou para o lado. O cavalo continuou inerte no chão. O soldado ficou de quatro sem tirar as mãos da cabeça. O cavalo tentou se erguer. Caiu para trás com um grito de dor quase humano. Sua pata dianteira direita estava quebrada.

Forçando-se a não olhar para a nuvem de poeira de seus perse-guidores, Balista vociferou algumas ordens. Apeou de sua montaria. Como a questão era a resistência, era fundamental tirar o peso do lombo do cavalo sempre que houvesse oportunidade. Máximo, o es-cravo hibérnico que era seu guarda-costas havia quinze anos, usou sua ternura para fazer com que o animal se levantasse. Falou com ele bem baixinho, usando a língua de sua ilha natal, tirou sua sela e o conduziu para fora da trilha. O cavalo o seguiu com confiança, man-cando de maneira patética sobre as três patas firmes.

Balista voltou os olhos para o lugar onde Calgaco, seu servo pes-soal, tirava todo o volume do único cavalo de carga. O idoso caledô-nio tinha sido escravizado pelo pai do comandante. Desde a infância de Balista, nas florestas do norte, Calgaco esteve ao seu lado. Agora, com uma expressão desgostosa no rosto nada bonito, o caledônio re-distribuiu o máximo possível de provisões entre os cavaleiros. Res-mungando sem abrir a boca, ele formou uma pilha bem-organizada com tudo que não podia ser acomodado. Por um momento, obser-vou o monte para avaliá-lo, então puxou a túnica para cima, abaixou as calças e urinou copiosamente em cima de todos os mantimentos abandonados.

— Espero que esses malditos sassânidas aproveitem bem — anunciou.

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Apesar do extremo cansaço e do medo, ou talvez por causa disso, vários homens deram risada.

Máximo voltou com aparência limpa e serena. Pegou a sela militar e colocou-a no lombo do cavalo de carga. Ajustou a barrigueira com cuidado.

Balista foi até o soldado que tinha caído. Ele estava sentado com a postura ereta. O garoto escravo Demétrio limpava um corte na testa do homem. O líder se perguntou se seu jovem secretário grego teria sido tão solícito se o soldado não fosse tão bonito, mas, irritado con-sigo mesmo, abandonou aquela linha de raciocínio. Juntos, Balista e Demétrio ajudaram o soldado a se levantar (“De verdade, eu estou bem!”) e depois a montar no velho cavalo de carga.

Balista e os outros voltaram a montar. Agora, não conseguiu re-sistir e procurou a coluna de poeira do inimigo. Avaliou que estava bem mais próxima. Fez um sinal e todos passaram por onde o cava-lo de montaria estava estirado. Por cima da poça de sangue arterial vermelho-escuro que se espalhava, havia uma espuma clara, rosada, que surgiu das tentativas desesperadas do animal de respirar através da traqueia dilacerada.

Na maior parte do tempo, avançaram a galope, com um passo rápido que cobria bastante terreno. Quando os cavalos cansavam, Balista dava uma ordem e todos desmontavam, davam de beber às montarias (não muito) e permitiam que comessem um punhado de ração: pão embebido em vinho aguado. Então caminhavam, condu-zindo os animais pela rédea, até os cavalos recuperarem um pouco o fôlego e os cavaleiros poderem voltar a montar, cansados, nas selas. Com repetições sem-fim, o dia foi passando. Eles avançavam o mais depressa possível, agora forçando os cavalos até o limite de sua resis-tência, sempre sob o risco de um acidente induzido pela fadiga. No entanto, a cada vez que olhavam, a poeira do inimigo que não conse-guiam avistar estava um pouco mais perto.

Durante um dos trechos a pé, Bathshiba caminhou com seu cava-lo ao lado de Balista. Ele não ficou surpreso quando Haddudad apa-receu do outro lado. O rosto do mercenário árabe era inescrutável. Canalha ciumento, pensou o comandante.

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Eles caminharam em silêncio durante um tempo. Balista olhou para Bathshiba. Havia areia em seus cabelos pretos e compridos, em suas maçãs do rosto proeminentes. Pelo canto do olho, Balista obser-vava seus movimentos, o balanço de seus seios. Estavam obviamen-te soltos por baixo da túnica masculina que ela vestia. O homem se pegou pensando sobre a única vez em que os vira; a pele morena, os mamilos escuros. Pai de Todos, devo estar perdendo a cabeça, pensou. Estão nos perseguindo para tirar as nossas vidas neste deserto infernal e eu só consigo pensar nos peitos dessa moça. Mas, Pai de Todos, Realiza-dor de Desejos, que peitos lindos eram.

— Desculpe, o que disse? — perguntou Balista ao perceber que ela falava com ele.

— Eu disse: “Por que você mentiu para os seus homens?” — A voz de Bathshiba estava bem baixa. Por cima do barulho do equi-pamento, dos passos pesados e da respiração pesada de homens e cavalos, ninguém seria capaz de escutá-la além dos três. — Você já viajou assim. Sabe que não estaremos a salvo quando chegarmos às montanhas. Só há um caminho através das terras altas. Seria como se estivéssemos desenrolando um fio atrás de nós para que nos sigam.

— Às vezes, uma mentira pode levar à verdade. — Balista sorriu. Ele estava com uma sensação estranha de tontura. — Ariadne deu a Teseu um rolo de barbante para que ele encontrasse o caminho de volta do labirinto quando entrou para matar o Minotauro. Ele pro-meteu que iria se casar com a moça. Mas abandonou-a na ilha de Naxos. Se ele não tivesse mentido, Ariadne não teria se casado com o deus Dionísio, Teseu não teria tido um filho chamado Hipólito, e Eurípides não poderia ter escrito a tragédia com esse nome.

Bathshiba e Haddudad não falaram nada. Ambos olhavam para ele com expressões confusas. Balista suspirou e começou a explicar.

— Se eu tivesse dito a eles a verdade... que os persas podem muito bem nos pegar e nos matar antes mesmo de chegarmos às monta-nhas, e que mesmo que cheguemos lá, provavelmente irão nos matar de qualquer jeito... talvez eles desistissem, e isso seria o fim de tudo. Eu dei a eles um pouco de esperança para prosseguir. E, quem sabe, se chegarmos às montanhas, pode ser que fiquemos seguros.

Balista analisou Haddudad.

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— Eu lembro que a estrada passa por várias ravinas. — O mer-cenário apenas assentiu com a cabeça. — Alguma delas é adequada para uma emboscada?

Haddudad demorou para responder. Balista e Bathshiba perma-neceram em silêncio. O mercenário árabe tinha servido ao pai da mu-lher durante muito tempo. Eles sabiam que ele era um homem que fazia avaliações confiáveis.

— Os Chifres de Amon, não muito para dentro das montanhas... um ótimo lugar para matar.

Balista fez um sinal para mostrar que estava na hora de voltar a montar. Ao erguer seu corpo cansado para cima da sela, ele se incli-nou para a frente e disse bem baixinho a Haddudad:

— Diga-me quando estivermos chegando aos Chifres de Amon... isso se chegarmos lá.

A noite caía rapidamente no deserto. Em um momento, o sol se erguia alto no céu, no próximo, mergulhava fora de vista. De repente, os companheiros de Balista se transformaram em silhuetas negras, e a escuridão se fechou sobre eles. A lua ainda não tinha se erguido e, mes mo que os cavalos não precisassem parar, não era seguro prosse-guir à luz das estrelas.

Bem ao lado da trilha, eles ergueram acampamento na escuri-dão quase total. Por ordem de Balista, apenas três lamparinas foram acesas. Elas estavam posicionadas para o oeste, para longe dos per-seguidores, e deveriam ser apagadas quando os cavalos estivessem acomodados. Balista alisou sua montaria e sussurrou palavras cari-nhosas e sem sentido nos ouvidos do cinzento cavalo castrado. Ele tinha comprado Cavalo Pálido em Antioquia no ano anterior. O ma-cho castrado o servia bem, e ele gostava muito do generoso animal. O cheiro de um cavalo quente, tão bom para Balista quanto o cheiro da grama depois da chuva, e a sensação dos músculos fortes por baixo da pe lagem macia o acalmaram.

— Dominus. — A voz de um homem que trazia sua montaria in-terrompeu os devaneios de Balista.

O soldado não disse mais nada. Não havia necessidade. O cavalo estava manco. Como acontecia sempre que se precisava deles, Máxi-mo e Calgaco apareceram do meio da escuridão. Sem dizer nada, o

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caledônio idoso assumiu os cuidados de Cavalo Pálido e o guarda--costas se juntou a Balista para examinar o outro animal. Fizeram com que andasse em círculos, com que trotasse, inspecionaram seus cascos. Não havia esperança. Ele não poderia mais seguir em frente. Com um gesto brusco com o queixo, Balista indicou a Máximo que o levasse para longe.

O soldado se manteve totalmente imóvel, esperando. Apenas seus olhos entregavam seu medo.

— Vamos seguir o costume do deserto. — Com as palavras de Balista, o homem deu um suspiro profundo. — Diga a todos para se reunirem.

O líder pegou o capacete e um jarro de cerâmica com vinho e os colocou no chão, ao lado de uma das lamparinas, que acendeu com-pletamente. O pequeno grupo formou uma roda à luz, todos agacha-dos na areia. A lamparina iluminava intensamente seus rostos tensos, acentuando seus traços. Em algum lugar, uma raposa do deserto re-gougou. Depois, tudo ficou quieto.

Balista pegou o jarro de vinho, tirou a rolha e deu um grande gole. O vinho desceu arranhando sua garganta. Ele entregou o recipiente ao homem a seu lado, que bebeu e passou adiante. Máximo voltou e se agachou junto aos outros.

— A moça não será incluída. — A voz de Balista soou alta para ele próprio.

— Por que não?Balista olhou para o soldado que o questionara.— Eu sou o comandante aqui. Eu sou aquele que está com o

imperium.— Faremos o que for ordenado e a cada comando estaremos de

prontidão. — O soldado baixou os olhos enquanto proferia, em tom monótono, a saudação ritualística.

Bathshiba se levantou e se afastou.Quando o jarro vazio foi devolvido a Balista, ele o largou a seus

pés. Ergueu a bota direita e o esmagou. Ouviu-se um estalo alto e de-pois uma série de tinidos estridentes à medida que o barro foi se des-pedaçando. Em gestos calculados, ele forçou com o calcanhar mais três, quatro vezes, deixando em caquinhos o que havia sobrado do

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recipiente. Agachou-se e escolheu treze pedaços de tamanho seme-lhante, que ajeitou em uma fileira. Pegou dois deles. Com um, raspou uma única letra grega, teta, no outro. Pegou todos os treze cacos, os doze sem nada escrito e aquele que estava marcado, e os despejou dentro de seu capacete, misturando-os bem.

Balista se levantou e estendeu o capacete. Todos o observavam como se contivesse uma víbora. De certo modo, continha. Balista sentia o coração batendo forte, as palmas de suas mãos suavam quan-do se virou e ofereceu-o ao homem a sua esquerda.

Era o escriba do norte da África, aquele que chamavam de Aníbal. Ele não hesitou, retribuindo o olhar penetrante de Balista ao enfiar a mão no capacete. Seus dedos se fecharam. Ele puxou seu pedaço para fora com o punho fechado, virou os dedos para cima e abriu a mão. Um caco sem marcas. Sem demonstrar emoção, largou-o ao chão.

Em seguida era a vez de Demétrio. O garoto grego tremia, seus olhos mostravam desespero. Balista queria reconfortá-lo, mas sabia que não era possível. Demétrio ergueu os olhos para os céus. Seus lábios entoaram uma prece. Enfiou a mão no capacete, desajeitado, quase o derrubando da mão de Balista. Os doze cacos fizeram baru-lho enquanto os dedos do menino os remexiam, fazendo sua escolha. De repente, ele recolheu a mão. Em seus dedos havia um pedaço de cerâmica sem marcas. Demétrio soltou a respiração, quase em um soluço, e seus olhos se encheram de lágrimas.

O soldado à esquerda de Demétrio se chamava Tito. Ele servia entre os soldados de cavalaria de Balista, os equites singulares, havia quase um ano. Balista o conhecia como um homem calmo e compe-tente. Sem rodeios, ele pegou seu caco do capacete. Abriu o punho. Lá estava a letra teta. Tito fechou os olhos. Então engoliu em seco e os abriu, tentando se controlar.

Um suspiro, como uma brisa suave que soprava por uma plan-tação de milho maduro, percorreu a roda. Esforçando-se para não demonstrar alívio, os outros desapareceram no meio da noite. Tito sobrou, em pé com Balista, Máximo e Calgaco.

O soldado deu um sorriso amarelo.— A tarefa deste longo dia está concluída. É melhor eu me desarmar.

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Ele tirou o capacete e o largou no chão, ergueu o talabarte de cou-ro por cima da cabeça, desafivelou a bainha que acomodava a espada e deixou tudo isso cair também. Seus dedos remexeram, desajeitados, nos laços das ombreiras. Sem dizer nada, Máximo e Calgaco se apro-ximaram e o ajudaram a tirar a pesada cota de malha.

Desarmado, Tito ficou parado por um instante; então se abaixou, desembainhou a espada e a pegou. Testou a lâmina e a ponta com o polegar.

— Não precisa ser assim — disse Balista.O outro homem deu uma risada amarga.— Não tenho escolha. Se eu correr, vou morrer de sede. Se me

esconder, os répteis vão me encontrar, e eu já vi o que fazem com seus prisioneiros... Gostaria de morrer com o traseiro intacto. Prefiro o jeito romano.

Balista assentiu.— Pode me ajudar?Balista assentiu mais uma vez.— Aqui?Tito sacudiu a cabeça.— Podemos caminhar?Os dois homens deixaram o círculo de luz. Depois de um tempo,

Tito parou. Aceitou um odre de vinho que Balista ofereceu e se sen-tou. Tomou um longo gole e devolveu a bebida quando o comandante se sentou a seu lado. Lá no acampamento, as lamparinas foram se apagando, uma a uma.

— A Fortuna, Tiquê, é uma puta — disse Tito. Deu mais um gole. — Eu achei que ia morrer quando a cidade foi tomada. Mas depois achei que escaparia. Puta desgraçada.

Balista não disse nada.— Eu tinha uma mulher lá na cidade. Agora deve estar morta,

ou virou escrava. — Tito soltou a bolsa do cinto. Entregou-a para Balista. — O de sempre... divida entre os rapazes.

Eles ficaram lá, sentados em silêncio, bebendo até o vinho acabar.O soldado ergueu os olhos para as estrelas.— Vamos acabar logo com isto.

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Ele se levantou e entregou a espada. Ergueu a túnica para des-nudar a barriga e o peito. Balista chegou bem perto, pela frente do homem. Tito apoiou as mãos sobre os ombros do líder. Com a empu-nhadura da espada na mão direita, Balista pousou a lâmina deitada na palma da mão esquerda. Ergueu a ponta de maneira bem suave, de modo a tocar de leve a pele logo abaixo da caixa torácica de Tito, então apoiou a mão esquerda nas costas do soldado.

Não desviou dos olhos de seu companheiro. O cheiro de suor era forte nas narinas de Balista. A respiração ofegante dos dois era uma só.

Os dedos de Tito apertaram os ombros de Balista. Com um me-neio de cabeça quase imperceptível, o soldado tentou dar um passo adiante. O comandante puxou o soldado em sua direção com a mão esquerda e colocou o peso no cabo da espada que segurava com a ou-tra. Contra uma resistência quase nula, a espada penetrou a barriga de Tito com uma facilidade repugnante. Ele arfou de agonia e suas mãos automaticamente agarraram a lâmina. Balista sentiu o jorro quente de sangue ao mesmo tempo que sentia seu odor pungente de ferro. Um segundo depois veio o cheiro de mijo e merda quando o soldado esvaziou as entranhas.

— Euge, muito bem feito — gemeu Tito em grego. — Termine!Balista torceu a lâmina, puxou-a e voltou a enfiá-la. A cabeça do

homem caiu para trás quando seu corpo começou a tremer. Seus olhos ficaram vidrados. As pernas cederam, os movimentos cessaram e ele começou a escorregar para o chão na frente de Balista, que sol-tou a espada e ajudou a pousá-lo no solo.

O comandante se ajoelhou e retirou a espada do cadáver.Partes do intestino saíram com a lâmina. Brilhantes, de um bran-

co repulsivo, tinham a aparência e o cheiro de tripas cruas. Balista largou a arma. Com as mãos ensopadas de sangue, fechou os olhos do homem morto.

— Que a terra seja leve em cima de você.Ele se levantou. Estava coberto com o sangue de sua vítima.

Máximo veio na frente dos outros, saindo da escuridão. Eles car-regavam ferramentas para cavar. Começaram a fazer uma cova en-

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quanto Calgaco envolvia Balista com o braço e o levava para longe, reconfortando-o baixinho, como fazia quando ele era criança.

Quatro horas depois, a lua se ergueu e eles voltaram a avançar. O comandante ficou surpreso por ter dormido um sono profundo e tranquilo depois que Calgaco o despira e limpara. Com roupas novas e a armadura lustrosa, ele estava de volta à sela de Cavalo Pálido, con-duzindo o grupo, agora menor, na direção do oeste.

Uma por uma, as estrelas sumiram. Quando o sol voltou a se er-guer, havia montanhas à frente, ainda azuis àquela distância. E, atrás deles, a poeira de seus perseguidores. Muito mais próximos agora, a não mais de três quilômetros de distância.

— Uma última cavalgada. — Quando Balista proferiu essas pa-lavras, percebeu que podiam ter duplo sentido. Fez em pensamentos uma prece rápida a Woden, o deus mais elevado de sua terra natal. Pai de Todos, Altivo, Cegador da Morte, não permita que as minhas palavras descuidadas repercutam sobre mim e os meus companheiros, tire-nos desta. Em voz alta, repetiu: — Uma última cavalgada.

À frente da coluna, Balista se firmou e manteve o passo em um galope uniforme. Diferentemente do dia anterior, não havia tempo para apear, não havia tempo para caminhar e permitir que os cavalos retomassem o fôlego. Na medida em que o sol ia traçando seu arco no céu, eles cavalgavam rumo ao oeste, incansáveis.

Mas logo os cavalos começaram a sentir a exaustão: as narinas se alargavam, as bocas não fechavam, fios de baba atingiam as coxas dos cavaleiros. Eles cavalgaram durante toda a manhã, e, aos pouqui-nhos, as montanhas se aproximavam. Algum deus devia ter colocado as mãos sobre eles. O caminho era difícil, esburacado e pedregoso, mas não se ouviu nenhum grito de alerta; nenhum animal começou a mancar nem desabou em uma confusão de poeira e pedras. E então, de modo quase imperceptível, eles chegaram. A trilha começou a se inclinar para cima, as pedras nas laterais ficaram maiores, tornaram--se pedregulhos. Estavam no sopé das montanhas.

Antes de a trilha curvar-se e começar seu trajeto encosta acima, antes de a visão ficar bloqueada, Balista puxou as rédeas do cavalo e olhou para trás. Lá estavam os sassânidas, uma fileira negra cerca de um quilômetro atrás deles. De vez em quando, os raios de sol brilha-

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vam perpendiculares aos capacetes ou peças de armadura. O inimigo certamente estava a menos de 1.300 passos. Balista notou que eram homens de cavalaria, não de infantaria. Mas isso ele já sabia. Estimou haver uns cinquenta deles, ou até mais. Havia algo de estranho no grupo, mas não tinha tempo para parar e avaliar melhor. Fez Cavalo Pálido avançar.

Precisaram diminuir o ritmo na subida. Os cavalos se esforçavam muito. Porém, não fazia muito tempo que estavam nas terras altas quando Haddudad disse:

— Os Chifres de Amon.Viraram à esquerda no desfiladeiro. A trilha ali era estreita, não

tinha mais de vinte passos de largura. Estendia-se por cerca de duzen-tos passos entre as pedras escarpadas que davam nome ao lugar. O pe-nhasco à esquerda era íngreme. O da direita se erguia de maneira mais suave: uma encosta coberta de pedrinhas soltas, onde um homem se-ria capaz de subir, levar seu cavalo e provavelmente descer montado.

— Na outra ponta, quando se vira à direita, o caminho fica fora de vista e percorre a parte de trás da colina — disse Haddudad. — Coloque arqueiros no alto, à direita, proteja a extremidade mais dis-tante. É um bom lugar para surpreendê-los, se eles não estiverem em número muito maior do que o nosso.

Enquanto subiam o desfiladeiro, Balista se concentrou, planejan-do e tomando decisões. Quando estavam a cerca de cinquenta passos da extremidade, ele parou e deu suas ordens.

— Vou levar Máximo, Calgaco e a moça comigo, para o alto da montanha. Ela é tão boa no manejo do arco quanto um homem. O garoto grego pode vir para segurar nossos cavalos, e você — apon-tou para um dos dois outros integrantes civis de sua comitiva, aque-le que não era o escriba do norte da África — vai nos acompanhar para transmitir as minhas ordens. — Fez uma pausa. Olhou para Haddudad e Turpio. — Com isso, sobram vocês e cinco homens na trilha. Esperem depois da curva, fora de vista até receberem meu co-mando, então ataquem os répteis. Aqueles de nós que estivermos lá em cima vamos descer a cavalo para atacá-los pelo flanco.

Haddudad assentiu. Turpio abriu um sorriso sarcástico. Os ou-tros, exaustos, de olhos vazios, apenas encararam.

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Balista soltou a capa preta que estava vestindo para manter o sol longe de sua armadura. Largou-a no chão. Ela pousou com uma nu-vem de poeira no meio da trilha. Então soltou do cinto a bolsa do pobre Tito. Abriu-a. Estava cheia de moedas. As economias de toda a vida de um soldado. Ele as espalhou no chão, logo além da capa. Como se tivesse pensado melhor, tirou o elmo, a peça distinta com o brasão de ave de rapina, e jogou-o no chão também.

Haddudad sorriu.— Ardiloso como uma cobra — disse o árabe.— Entre a sua gente, isso deve ser elogio — respondeu Balista.— Nem sempre — retrucou Haddudad.O comandante ergueu a voz para que todos escutassem.— Estão prontos para a guerra?— Prontos!Por três vezes, repetiu-se o chamado e a resposta, mas foi um som

cansado e fraco, quase perdido por entre as montanhas.Turpio levou seu cavalo bem próximo a Balista. Bem baixinho,

recitou um poema em grego.

Não vá chorar Pela morte ocorrida Mas pelos que temem a hora de a vida Acabar.

Balista sorriu e fez um aceno para que todos ocupassem suas posições.

— Faremos o que for ordenado e a cada comando estaremos de prontidão.

O comandante se deitou esticado no cume da montanha com um velho cobertor cinza-amarronzado por cima dos ombros. Ele tinha espalhado punhados da areia ocre nos cabelos e no rosto. Vinte fle-chas estavam enfiadas no chão perto da sua cabeça, parecendo um montinho de capim em um deserto ou um espinheiro. Aqueles que o acompanhavam se alocaram atrás da parte mais alta da colina.

Observar algo fixamente durante muito tempo, sob o sol forte, começou a causar certo entorpecimento. A cena parecia se modificar

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e ondular, objetos inanimados começavam a se mover. Duas vezes, Balista ficara tenso, achando que o momento chegara, antes de se dar conta de que seus olhos o enganavam. Não passava muito do meio--dia. Tinham economizado bastante tempo. Os sassânidas deviam ter parado para descansar no sopé das colinas, confiantes de que sua presa não poderia escapar.

Balista piscou para tirar o suor do rosto e se ajeitou de leve no buraco que seu corpo abrira no chão pedregoso. Ele duvidava muito que isso funcionasse. Dez homens e uma moça para lutar contra pelo menos cinquenta. Estranhamente, não se sentia amedrontado. Pen-sou na esposa e no filho e sentiu uma tristeza esmagadora com a ideia de não voltar a vê-los. Imaginou-os pensando no que teria acontecido com ele, a dor de jamais saber.

Um movimento, finalmente. A cavalaria sassânida fez a curva para entrar no desfiladeiro, e o coração de Balista deu um salto. Percebeu o que tinha parecido estranho naquela coluna: cada sassânida conduzia pelo cabresto dois cavalos sobressalentes. Era por isso que percorre-ram aquela distância com tanta rapidez. Sessenta cavalos, mas apenas vinte cavaleiros. Agora, eram dois sassânidas para um de nós, pensou. E, com a vontade do Pai de Todos, posso melhorar essas chances.

O sassânida que liderava o grupo apontou, gritou algo por cima do ombro e saiu trotando. Chegou ao amontoado de coisas jogadas na trilha e apeou. Esforçando-se para segurar três cavalos pelas rédeas, agachou-se e recolheu todos os objetos.

Balista deu um sorriso selvagem. Os outros não tinham parado. Em vez disso, seguiram trotando e se juntaram atrás do homem a pé. Seus tolos, pensou o comandante, vocês merecem morrer.

Balista deixou o cobertor cair sobre os ombros, agarrou o arco e se ergueu. Quando pegou uma flecha e a posicionou na corda, ouviu os sassânidas subindo para o topo da montanha. Puxou para si a corda e sentiu-a pressionar seus dedos, e a tensão crescer na madeira, nos ossos e nos músculos de sua barriga. Absortos por sua descoberta, os sassânidas não tinham reparado nele. Selecionou o homem que considerou ser o líder. Fez mira acima da calça vermelha e abaixo do chapéu amarelo, na túnica listrada de preto e branco, e disparou. Alguns segundos depois, o homem foi derrubado do cavalo. Balista

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escutou os gritos de surpresa e de medo. Ouviu aqueles que estavam com ele dispararem com seus arcos. Com mais uma flecha posiciona-da mecanicamente, ele atirou no grupo de cavaleiros, mirando baixo, na esperança de acertar um cavalo, caso não atingisse um homem. Sem procurar saber o alvo das flechas, atirou mais quatro ou cinco vezes no grupo, em rápida sucessão.

O fundo do desfiladeiro era uma imagem de confusão, corpos de homens e animais se debatendo, cavalos soltos caindo, indo de en-contro um ao outro e batendo naqueles que ainda estavam sob con-trole. Balista passou a mira para a retaguarda da coluna de cavaleiros, intocada até então. Seu primeiro tiro errou o alvo. O segundo atingiu no flanco o cavalo de um dos soldados. O animal recuou e fez o guer-reiro cair com tudo no chão. Os outros dois animais que ele segurava empinaram.

— Haddudad, Turpio, agora! Demétrio, traga os cavalos! — gri-tou Balista por cima do ombro.

Ele disparou mais algumas flechas na medida em que aumenta-va o barulho que faziam as pedras soltas enquanto eram trituradas e deslocadas. Quando o garoto grego apareceu com sua montaria, Balista largou o arco e montou na sela. Guiando o animal com as coxas, fez Cavalo Pálido se posicionar na encosta. Dali do alto, o de-clive parecia muito mais íngreme do que tinham observado de baixo, uma superfície irregular com grandes lascas ocre, cinza e marrom, e traiçoeiros trechos de pedras soltas.

Balista se inclinou contra a aba traseira da sela, largou as rédeas e deixou Cavalo Pálido encontrar seu caminho. Escutou os outros que o seguiam. Mais para baixo, à sua direita, ele viu os sete cavaleiros romanos, com Haddudad e Turpio na dianteira, tomarem o desfila-deiro como um estrondo de trovão.

Quando Balista sacou a espada, Cavalo Pálido tropeçou. A spatha longa de cavalaria por pouco não fugiu de sua mão. Com um xinga-mento automático, ele se firmou e colocou a alça de couro presa à empunhadura ao redor do pulso. Os cavaleiros que acompanhavam Haddudad irromperam no centro da coluna sassânida. Tinham der-rubado, ou pelo menos atingido, três ou quatro dos homens do leste, mas a falta de espaço e a grande desvantagem numérica dificultavam

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o progresso. Havia cavalos persas soltos por todos os lados. Nuvens de poeira se erguiam pela encosta oposta do penhasco marcado pelo combate.

Apesar de terem sido pegos de surpresa e estarem agora sem líder, os sassânidas eram guerreiros experientes. Não estavam prontos para fugir. Um dos soldados romanos com Haddudad caiu da sela. Uma flecha cortou o ar e passou assobiando por Balista. Outra caiu na frente dele, quebrou e ricocheteou para o outro lado. A vitória era incerta.

Quando Balista se aproximou do fundo, os dois sassânidas mais próximos enfiaram os arcos nos alforjes e empunharam as espadas; estavam prontos para ele. Mas Balista se movia com rapidez. Que-ria usar isso em vantagem própria. No último momento, desviou Cavalo Pálido para o guerreiro à sua direita. O pequeno animal corajoso não titubeou e investiu contra o cavalo persa. O impacto lançou Balista para a frente da sela. Mas a montaria do inimigo praticamente se sentou sobre as ancas, e seu cavaleiro teve que se agarrar à crina para não cair.

Balista recuperou o equilíbrio em um instante e posicionou a lâmina ao lado do pescoço de Cavalo Pálido, desferindo um firme golpe descendente. A cavalaria dos sassânidas era leve; poucos dos cavaleiros usavam armadura. A lâmina penetrou fundo no ombro do homem.

Balista recolheu a espada e fez com que Cavalo Pálido desse a vol-ta por trás da montaria do sassânida ferido para chegar até o outro. Antes que pudesse completar a manobra, um terceiro homem do les-te o atacou da esquerda. Balista deteve a lâmina dele com a sua, girou o pulso para forçar a arma do persa para longe e revidou com um corte incisivo no rosto do inimigo. O sassânida cambaleou para trás. Quando a lâmina do comandante cortou o ar sem causar nenhum dano, ele sentiu uma dor lancinante no bíceps esquerdo.

Agora, Balista estava encurralado entre os dois sassânidas. Sem escudo, nem mesmo a capa para proteger seu lado esquerdo, precisa-va impedir os ataques dos dois só com a espada. Ele se contorceu e se virou como um urso sendo atacado por cachorros, e as armas de aço tilintaram umas contra as outras e fagulhas voavam. Um golpe que

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parecia de marreta veio da direita e atingiu a caixa torácica de Balista. A investida do persa quebrara um ou dois anéis de metal de sua cota de malha, e a extremidade afiada da arma parecia penetrar em sua carne. Mas a armadura tinha segurado a ponta da lâmina.

Apesar da dor, Balista se forçou a ficar com o corpo ereto e des-feriu um golpe horizontal, não contra o homem à sua direita, mas contra a cabeça do cavalo dele. Não acertou, mas o animal escorregou para o lado. Sugando o ar para dentro dos pulmões com muita dor, o comandante girou em cima da sela, bloqueou um golpe que vinha da esquerda e atacou com um belo chute a barriga da montaria do sas-sânida, que também cedeu. Ele acabara de ganhar alguns segundos de vantagem.

Balista ergueu os olhos. Não havia para onde ir. Na frente de Ca-valo Pálido havia quatro ou cinco cavalos soltos, andando em círculos, bloqueando o caminho. Mais uma vez, os ferozes rostos morenos se aproximaram. E, mais uma vez, Balista se contorceu feito um animal encurralado. Estava ficando mais lento. Seu braço esquerdo latejava. Suas costelas prejudicadas eram um sofrimento intenso quando se movia. Respirar causava uma dor dos infernos.

Bem quando parecia que a coisa só podia terminar do pior jeito, Máximo apareceu. Com um golpe certeiro, quase mais rápido do que a capacidade do olho de acompanhar, sangue começou a jorrar, e o guerreiro à esquerda de Balista caiu da sela. Não havia tempo para agradecer; Máximo incitou o cavalo com as esporas e o comandante voltou toda a atenção para o adversário remanescente.

Depois de um tempo, como que por consenso, Balista e seu opo-nente recuaram os cavalos um ou dois passos. Com a respiração en-trecortada, cada um ficou esperando que o outro fizesse o próximo movimento. O ruído do combate ecoava nas encostas pedregosas, e a poeira subia do chão agitado. Ao redor de Balista e do persa, o calor da batalha era um estrondo, mas as percepções deles tinham se afunilado para um espaço pouco maior do que o alcance de suas es-padas. O braço esquerdo de Balista estava rígido, quase inútil. Cada vez que inspirava, seu peito parecia se dilacerar. Reparou em outro cavaleiro com trajes do leste atrás daquele que o confrontava. Balista o reconheceu.

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— Anamu!O comandante o tinha visto pela última vez havia apenas alguns

dias, servindo como oficial romano temporário em defesa de sua ci-dade natal, Arete.

— Anamu, seu traidor!O rosto comprido e fino do homem de Arete se voltou para Balis-

ta. Os olhos muito espaçados não demonstraram surpresa.— A culpa não é minha — berrou o homem em grego. — Eles

pegaram a minha família. Tive que trazê-los até você.Ao perceber a distração de Balista, o sassânida avançou. O ins-

tinto e o costume de seus músculos permitiram que o comandante virasse a lâmina de lado.

Anamu jogou a cabeça para trás e berrou alto, em persa:— Cada homem por si! Fujam! Salvem-se! — Ele bateu no cavalo

com os calcanhares. Aprumou-se e saiu em disparada. Por cima do ombro, olhou e gritou para Balista, mais uma vez, em grego: — A culpa não é minha!

O sassânida diante do romano recuou com o cavalo novamente, quatro, cinco passos, então deu um puxão nas rédeas, fez o animal vi-rar e seguiu Anamu. De repente, o ar se encheu dos gritos estridentes dos homens do leste. O barulho dos cascos ecoou pelos Chifres de Amon. Como se fossem um só, os persas tentavam desesperadamen-te se desvencilhar e levar os cavalos para longe, em segurança. A luta tinha chegado ao fim.

Balista observou a cavalaria sassânida desaparecer pelo desfila-deiro. Seus próprios homens já estavam ocupados, desmontando de seus cavalos, cortando a garganta dos inimigos feridos, tirando suas roupas, buscando as riquezas que, segundo os boatos, sempre carregavam.

— Deixem um deles vivo — gritou Balista. Mas era tarde demais.Haddudad e Turpio chegaram e anunciaram calmamente o re-

sultado do combate: dois soldados mortos, dois homens feridos, incluindo o próprio Turpio, que tinha um corte bem feio na coxa esquerda. Balista lhes agradeceu, e os três apearam com dificuldade.

O comandante conferiu a situação de Cavalo Pálido: um arranhão na espádua esquerda, um corte pequeno no flanco direito, mas, fora

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isso, o animal castrado parecia ileso. Calgaco apareceu com água e ti-ras de tecido limpo. Começou a enfaixar o braço de Balista, xingando com eloquência enquanto seu paciente não parava de se mexer para acariciar sua montaria.

Bathshiba surgiu, cavalgando a galope. Balista tinha se esquecido completamente da moça. Ela desceu do cavalo, correu até Haddudad e jogou os braços em volta de seu pescoço. Balista desviou o olhar. Algo que brilhava no chão chamou sua atenção. Era o capacete que ele próprio descartara antes. Aproximou-se e o recolheu. Estava todo amassado. O casco de um cavalo tinha pisado em cima dele. O bra-são da ave de rapina se entortara, ficando disforme, mas poderia ser consertado.

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