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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA
PARECER Nº 58/16 – LCFFCONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 149.964/MS – TERCEIRA SEÇÃOSUSCITANTE:JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE DOURADOS - SJ/MSSUSCITADO:JUÍZO DE DIREITO DA 1A VARA CRIMINAL DE CAARAPÓ - MSRELATOR: MINISTRO FELIX FISCHER
EMENTA:PENAL E PROCESSO PENAL. CONFLITONEGATIVO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO EOUTROS CRIMES COMETIDOS POR INDÍGENA.DELITOS RELACIONADOS A DIREITOSINDÍGENAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL.1. Na origem, o acusado foi pronunciado pelos crimestipificados nos arts. 121, § 2º, incisos I, III e IV; 211 eart. 250, § 1º, inciso II, alínea “a”, todos do CódigoPenal; e art. 244-B, do Estatuto da Criança e doAdolescente c/c art. 70 do CP, tudo na forma do art.69 do CP. De acordo com a denúncia, o motivo dohomicídio teria sido ameaça da vítima de enfeitiçar oacusado, o que, na cultura dos envolvidos, é umaameaça grave, de acordo com laudo antropológico.Após decisão de pronúncia, o Juízo da 1ª VaraCriminal de Caarapó/MS, declarou-se incompetente,por entender que “a motivação do crime narrado nosautos sofreu forte influência prática dos costumessedimentados pela cultura indígena”. No entanto, oJuízo Federal declarou-se incompetente por nãovislumbrar ofensa a direitos indígenas.2. No caso dos autos, não há dúvidas de que amotivação do crime de homicídio foi a ameaça feitapela vítima de que iria enfeitiçar o acusado. Dessaforma, em se tratando de crime (disputa) cometido emrazão de elemento da crença indígena (direitoindígena), estão presentes os requisitos previstos noart. 109, XI, e 231, ambos da Constituição Federal,para que o delito seja processado perante a JustiçaFederal.3. Parecer do Ministério Público Federal peloconhecimento do conflito para declarar acompetência do JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DEDOURADOS - SJ/MS, ora suscitante.
SAF Sul Qd. 4 – Lt. 3 – Bl. “B” – 5º Andar, Sala 513 – CEP: 70.050-900 – Brasília /DF – Tel: (61) 3105- 5237
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Parecer nº 58/2016 – LCFF. CC 149.964/MS fls. 2
Exmo Sr. Ministro Relator e demais integrantes da Seção,
I – Relatório
Trata-se de conflito negativo de competência suscitado pelo
Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados, com fulcro no art. 105, I, “d”, da
Constituição Federal, em face do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de
Caarapó - MS.
Na espécie, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso
do Sul ofereceu denúncia em desfavor de MARIO VERA, a quem imputou a
prática dos crimes tipificados pelo art. 121, § 2º, incisos I, III e IV; art. 211 e
art. 250, § 1º, inciso II, alínea “a”, todos do Código Penal; e art. 244-B, do
Estatuto da Criança e do Adolescente c/c art. 70, do Código Penal, tudo na
forma do artigo 69 do Código Penal (fls. 3/6 e-STJ). A denúncia narra a
seguinte conduta:
Consta dos autos que no dia 20 de outubro de 2010,por volta das 21h30min, na Aldeia Indígena Tey Kue,nesta cidade, o denunciado acima qualificado, cienteda ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, nacompanhia de dois menores, com animus necandi,fazendo uso de uma barra de ferro, uma faca e ummachado, desferiu golpes contra a vítima AngeloRoque Vilhalva, produzindo-lhe as lesões corporaisque foram a causa efetiva de sua morte.Segundo se apurou, no dia dos fatos o denunciado,juntamente com os dois menores, com unidade depropósitos, dirigiu-se à residência da vítima, armadocom vários instrumentos, a fim de matá-la.Consta que, ao encontrar a vítima, que era idosa enão possuía motivos para esperar o ataque, odenunciado, utilizando-se da barra de ferro, golpeou-ana cabeça e, em seguida, quando a vítima estavacaída no chão, desferiu um golpe de faca contra amesma, caracterizando, dessa forma, o recurso quedificultou sua defesa.Ato contínuo, com a visível intenção de impingirsofrimento desnecessário à vítima, o denunciadoordenou que os menores lhe dessem um machado,com o qual decepou a cabeça da vítima,caracterizando, com isso, o meio cruel. Vale anotar
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que as fotografias juntadas às fls. 50-52 demonstramclaramente a barbárie cometida.Impende consignar, ainda, para corroborar a utilizaçãodo meio cruel, que a vítima foi espancada, tendo acabeça e um dos braços separados do corpo pelodenunciado e seus comparsas.Apurou-se, ainda, que o denunciado agiu pormotivo torpe, vez que matou a vítima por vingançajá que esta teria, supostamente, feito um “feitiço”em seu nome para causar-lhe a morte (1º CRIME).Após os fatos narrados, o denunciado e seuscomparsas ocultaram o cadáver da vítima em umpoço da aldeia, o qual possui aproximadamente trêsmetros de profundidade, tendo ela sido localizadaapenas posteriormente (2º CRIME).Constou ainda que, após ocultarem o corpo da vítima,os denunciados dirigiram-se à residência desta e aincendiaram, expondo a perigo o patrimônio da vítima,bem como a vida e o patrimônio dos vizinhos desta (3ºCRIME).Por fim, o denunciado facilitou a corrupção depessoas menores de 18 (dezoito) anos, com elaspraticando infração penal, quais sejam, osadolescentes Gilmar Escobar (nascido em07/05/1996) e Varduvino Arve (nascido em20/07/1994). (4º CRIME)[grifos nossos]
Dessa forma, o acusado foi pronunciado pelo Juízo da 1ª
Vara de Caarapó/MS, nos termos da denúncia, com concessão de liberdade
provisória (fls. 213/226 e-STJ).
Da decisão que concedeu a liberdade provisória houve
recurso em sentido estrito pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso
do Sul (fls. 237/246 e-STJ). Contudo, o recurso não foi provido pelo TJ/MS
(fls. 276/281 e-STJ).
Posteriormente, a Procuradoria Federal Especializada da
FUNAI em Dourados/MS requereu a elaboração de laudo antropológico do
réu (fls. 296/314 e-STJ). O respectivo laudo foi juntado aos autos às f ls.
377/407 e-STJ.
Às fls. 412/421 e-STJ, a Procuradoria Federal Especializada
da FUNAI requereu a remessa dos autos à Justiça Federal, a qual seria
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competente para julgamento, por se tratar de causa que envolve direitos
indígenas.
O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul
manifestou-se pela competência estadual do feito (fls. 424/428 e-STJ).
Às fls. 440/441 e-STJ consta decisão do Juízo Estadual de
primeira instância determinando a remessa dos autos à Justiça Federal,
assim fundamentada:
Na denúncia, o órgão ministerial qualificou o crime dehomicídio por motivo torpe, vez que o acusado matoua vítima por vingança já que esta teria, supostamente,feito um “feitiço” em seu nome para causar-lhe amorte (f. 2).A testemunha João Goulart Marques declarou, emjuízo, que o crime ocorreu “...por causa de uma obrade feitiçaria que eles fizeram, falaram que ia matar elecom uma feitiçaria...” (f. 118)A testemunha Valdevino Arce Lopes afirmou, eminquérito policial, que “...Mário veio até eles, bastantenervoso, contando que Ângelo teria dito que ia matá-lo com um feitiço. Que Mario pediu ao irmão parabuscar as ferramentas pois o mesmo pretendia matarÂngelo, porém, acabaram encontrando-o na roça,pouco antes da casa. Que quando Ângelo os avistougritou “vou fazer feitiço pra você morrer Mário...” (f. 22)Por tais fundamentos, evidencia-se que a prática defeitiçaria foi o que motivou o suposto crime.Além disso, conforme estudo antropológico de f.376/406, verifica-se que dentro dos padrões culturaisindígenas, mais especificamente da etnia Kaiowá, aqual pertence o acusado, a feitiçaria exercesobremaneira influência, fazendo-lhe crer que atravésdo feitiço uma pessoa pode contrair doençasrepentinas, que trazem muito sofrimento e quemconduz uma morte lenta.Nesse sentido é o que ensina o antropólogo FabioMura, quando diz que Edoardo Galvão é um dospoucos autores que em 1943, enquanto realizava apesquisa junto aos Kaiowás e os Nandeva do MatoGrosso do Sul obteve acesso a algumas narrativasindígenas que contavam as experiências de índiosKaiowás que foram vítimas de feiticeiros (f. 396/397).Assim, manifesto está que a utilização de feitiço trata-se de técnica utilizada há décadas pela comunidadeindígena kaiowá, demonstrando, invariavelmente, oseu forte enraizamento na cultura silvícola.Deste modo, restando evidente que a motivação do
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crime narrado nos autos sofreu forte influência daprática dos costumes sedimentados pela culturaindígena, entendo que, no caso, compete à JustiçaFederal o processamento e julgamento desta AçãoPenal.
Remetidos os autos à Justiça Federal, abriu-se vista ao
Ministério Público Federal. Em parecer de fls. 444/449 e-STJ, o Procurador
da República oficiante manifestou-se pela competência estadual.
Em seguida, o Juízo da 1ª Vara Federal de Dourados/MS
suscitou o presente conflito (fls. 464/468 e-STJ). Entendeu que, na espécie,
não estaria a caracterizada a disputa entre interesses indígenas, pois:
O interesse que a União tem em relação aosindígenas vincula-se à preservação de seuscostumes, crenças, tradições, línguas, organizaçãosocial e à proteção e garantia dos direitos pertinentesàs terras por eles tradicionalmente ocupadas, comoassentado no art. 213 da CF/88.
Vieram, então, os autos para parecer (fl. 477 e-STJ).
É o relatório.
II – Manifestação
O conflito deve ser conhecido, nos termos do artigo 105,
inciso I, alínea “d”, da Constituição Federal, pois nele figuram juízes
vinculados a Tribunais diversos.
O cerne da questão objeto do presente conflito
consubstancia-se na competência para processamento de demanda em
razão de homicídio e outros crimes cometidos por indígena, após discussão
em que a vítima ameaçou enfeitiçar o réu.
Assiste razão ao juízo suscitado.
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A Constituição Federal, em seu art. 109, inciso XI, determina
que compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos
indígenas. Quanto às disputas ocorridas na seara criminal, como no
presente caso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal define a
fixação da competência da Justiça Federal quando o crime cometido por ou
contra indígena tenha motivação relacionada à disputa de terras e à
questão relacionada a condição étnica, ou que envolva interesses da
comunidade indígena, conforme demonstra o seguinte julgado:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE DOPROCESSO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL. ART. 109, XI, CF. HABEAS CORPUS.DECISÃO MONOCRÁTICA NO STJ. SÚMULA 691,STF. NÃO CONHECIMENTO. 1. A impetração destehabeas corpus objetiva sanar suposta ilegalidade napostura do relator de writ anteriormente aforadoperante o STJ que, após haver indeferido o pedido deliminar, se omitiu em apreciar o pedido dereconsideração da decisão indeferitória. 2. Háobstáculo intransponível ao conhecimento destehabeas corpus eis que, cientes da decisãomonocrática do relator do STJ, o impetrante deixou deinterpor agravo regimental, limitando-se a pedir areconsideração da decisão. 3. A Súmula 691, do STF,se fundamenta na impossibilidade de o STF, nojulgamento de ação de sua competência originária,suprimir a instância imediatamente anterior, eis quenão houve decisão colegiada no âmbito do SuperiorTribunal de Justiça. 4. Ainda que não fosse por taismotivos, seria hipótese clara de denegação da ordem,eis que não há elementos suficientes nos autos quepermitam aferir a alegada nulidade do ato derecebimento do aditamento à denúncia. 5. Acompetência da justiça federal em relação aosdireitos indígenas não se restringe às hipótesesde disputa de terras, eis que os direitoscontemplados no art. 231, da Constituição daRepública, são muito mais extensos. O fato dosacusados terem se utilizado da condição étnicadas vítimas para a prática das condutasdelituosas, o que representa afronta direta àcultura da comunidade indígena. 6. HC nãoconhecido.(HC 91313, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE,Segunda Turma, julgado em 02/09/2008, DJe-182DIVULG 25-09-2008 PUBLIC 26-09-2008 EMENTVOL-02334-02 PP-00389) [grifos nossos]
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O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem
jurisprudência orientada no mesmo sentido:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL.TORTURA. CRIME EM RAZÃO DE COSTUMESINDÍGENAS. DISPUTA DE TERRAS INDÍGENAS.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.TIPICIDADE. ORDEM NÃO CONHECIDA.1. Compete à Justiça Federal o processamento e ojulgamento da ação penal quando a motivação dodelito envolve questões intrínsecas de direitos ecultura indígenas, como ocorre na hipótese.2. Nos termos do art. 57 do Estatuto do Índio, não épermitido aos líderes de grupos tribais a imposição desanções de caráter cruel ou infamante, nem de penade morte contra seus membros, sendo típica,portanto, a conduta que impôs à vítima intensosofrimento físico, como forma de aplicar castigo.3. Fixado pelas instâncias ordinárias, com amploarrimo no acervo probatório, que a vítima -indígena sob sua autoridade - foi submetida aintenso sofrimento físico, não há como ilidir essaconclusão, pois demandaria revolvimento deprovas e fatos, não condizente com a via estreita doremédio constitucional, que possui rito célere edesprovido de dilação probatória.4. Habeas corpus não conhecido.(HC 208.634/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTICRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 14/06/2016, DJe23/06/2016)
HABEAS CORPUS. DISPUTA SOBRE DIREITOSINDÍGENAS. SUBSTITUTIVO DE RECURSOESPECIAL. DESVIRTUAMENTO. PRECEDENTESDO STF. ART. 109, XI, DA CF. COMPETÊNCIA DAJUSTIÇA FEDERAL. LEI DO CRIME RACIALVERSUS ESTATUTO DO ÍNDIO. PRETENDIDADESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA IMPUTADA AOPACIENTE. MATÉRIA NÃO ANALISADA PELOTRIBUNAL DE ORIGEM.SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. MANIFESTOCONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO.1. É imperiosa a necessidade de racionalização dohabeas corpus, a fim de preservar a coerência dosistema recursal e a própria função constitucional dowrit, de prevenir ou remediar ilegalidade ou abuso depoder contra a liberdade de locomoção.2. O remédio constitucional tem suas hipóteses decabimento restritas, não podendo ser utilizado emsubstituição a recursos processuais penais, a fim dediscutir, na via estreita, tema afetos a apelaçãocriminal, recurso especial, agravo em execução e atérevisão criminal, de cognição mais ampla. A
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ilegalidade passível de justificar a impetração dohabeas corpus deve ser manifesta, de constataçãoevidente, restringindo-se a questões de direito quenão demandem incursão no acervo probatórioconstante de ação penal.3. Segundo o Supremo Tribunal Federal, aincidência do inciso XI para determinar acompetência da Justiça Federal tem a ver com adisputa sobre direitos indígenas, os quais, por suavez, estão relacionados à proteção conferida aosindígenas pelo caput do art. 231 da ConstituiçãoFederal.4. Na espécie, verifica-se que o paciente praticou,induziu e/ou incitou a discriminação ou preconceito dacultura indígena, aqui abrangidos os seus costumes,as suas crenças e as suas tradições, pelo que restaevidente que a ação penal está ligada a questões quedizem respeito a "disputa sobre direitos indígenas".Tal circunstância excepcional é apta para, nos termosda jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, atraira competência da Justiça Federal para processar ejulgar o feito.5. Mostra-se inviável a análise diretamente por estaCorte Superior de Justiça da alegação de que aconduta imputada ao paciente se amolda ao tipoprevisto no art. 58, I, da Lei n. 6.001/1973 (Estatuto doÍndio), e não ao art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/1989 (Leido Crime Racial), como foi capitulado pelo MinistérioPúblico Federal, tendo em vista que essa matéria nãofoi apreciada pelo Tribunal de origem, até porque nãosuscitada em momento algum, sob pena de, assim ofazendo, incidir na indevida supressão de instância.6. Habeas corpus não conhecido.(HC 144.387/ES, Rel. Ministro SEBASTIÃO REISJÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/11/2012,DJe 05/12/2012)
Como demonstrado, a conceituação da disputa por
direitos indígenas passa, necessariamente, pelos vetores apresentados
no art. 231 da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 231. São reconhecidos aos índios suaorganização social, costumes, línguas, crenças etradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à Uniãodemarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seusbens.
Dessa forma, por expressa previsão constitucional, são
direitos indígenas sua organização social, seus costumes, crenças e
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tradições.
Sobre o tema, é valioso o entendimento de Manoel Lauro
Volkmer de Castilho1:
Como se pode perceber dos diversos arestos antesreportados, a questão passa a ser de acordo com afundamentação exposta pelos Relatores, de um ladoa identificação exata dos direitos e interesses dosindígenas albergados no texto do artigo 231 da CF, ede outro a figuração de sua efetiva violação.Mas, mesmo aceitando a discussão nesse limitadocampo, se é certo que a Constituição reconheceu aosíndios sua organização social, seus costumes,línguas, crenças e tradições bem assim os direitosoriginários sobre as terras que ocupam, é igualmentecerto que ela acolheu como valores os que essascategorias constitucionalizadas traduzem, não só naperspectiva do homem branco e sua legislação mastambém naquela do indígena com todas as suasdecorrências. Consequentemente, se o conceito dedisputa compreende toda e qualquer desavença entreíndios e não índios ou entre índios e índios, e sedireitos indígenas é expressão que necessariamentealcança os direitos internos das comunidades com osdesdobramentos próprios de sua cultura, tradição,língua e crenças - e não apenas os direitosrelacionados com a terra (aparentemente o padrãoúnico adotado no STF para apuração da lesão aosdireitos indígenas) - é preciso redimensionar tanto aleitura estrita do artigo 231 (aliás, efetivamenterecomendada pelo STF em vários casos de crimescontra a vida de índio) quanto a do inciso XI, do art.109 CF.Essa linha de compreensão é a interpretação queprevalecera na jurisprudência do STF assim que foipromulgada a Constituição de 1988, levando amaioria dos seus juízes a ter como aceitável que ohomicídio de um indígena ofendia concretamente umdireito indígena porque lesava o seu bem jurídicomais importante. Por isso, conquanto posteriormentea orientação do tribunal tivesse reduzido a amplitudedesse entendimento para fixar como conteúdo dessesdireitos tão só aqueles referidos no art. 231 CF (navisão estrita da Corte), é certo que mesmo assim acompetência federal não poderia ficar limitada àshipóteses de disputa por terras porque os direitos doart. 231 CF na verdade vão além delas e podem terconteúdo diverso como agora interpretação daConstituição, pela conjugação dos seus arts. 109, XI,231 e 232, aponta com certeza para um conjunto dedireitos significativamente maior do que os que os
1 CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer de. A competência nos crimes praticados por ou contraindígenas. Revista AJUFERGS n.º 01, s.d, Porto Alegre/RS.
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precedentes do STF reconheceram.E isso porque não se compreende que umadisputa versando indiretamente sobre terras(homicídio, por exemplo) possa ser consideradauma disputa sobre direitos indígenas quandooutra, dizendo respeito a relação entre pais efilhos índios, ou entre homem e mulher índios ounão índios, ou entre grupos ou comunidadesindígenas ou não indígenas versando costumes,tradições, religião ou valores tipicamenteindígenas, não o seja tão só porque não envolvemterras.Se é razoável aceitar a existência de disputa quandose controverte sobre terras porque os direitos sobreelas está assegurado aos indígenas na cabeça doartigo 231 da Constituição, do mesmo modo épossível identificar a existência de disputa sobredireitos indígenas quando o delito tem por objeto,direta ou indiretamente, uma controvérsia de fundocultural, religioso, ou sobre tradição ou costumesprotegidos no mesmo art. 231 da CF.Mostra-se, por exemplo, fácil perceber que umlugar sagrado segundo costumes indígenas, ouos animais aí existentes, ou seus símbolos,árvores ou águas, assim como seus hábitos e amemória dos ancestrais, podem ser ofendidos ouprofanados, constituindo crime em si ou resultarem reação delituosa e nessa circunstâncianinguém poderia contestar a óbvia violação dedireitos indígenas para o efeito discutido mesmoquando praticado por um índio e fora da reserva.Não existe uma razão sistemática para distinguiruma disputa originada por questão de terras dequalquer outra gerada por diferença de opiniãosobre costumes ou crenças ou sobre relaçõesentre parentes. Muito pelo contrário, tanto olegislador compreendeu essa preocupação quecriminalizou, por exemplo, a venda de bebidaalcoólica aos índios (art. 58, III da Lei n.º 6.001/73),assinalando claramente que há outros valores aserem defendidos justo porque há outros direitosindígenas que não o simples direito à terra.Também não parece existir razão ontológica paraessa distinção, uma vez que se deve respeitar com amesma intensidade os valores produzidos pelaorganização social, costumes, crenças, língua etradições dos índios, os quais foram formalmentereconhecidos pela Constituição, e, para chegar aconclusão diferente ou contrária, seria necessárioprocurar diferençar onde a Constituição não distinguiuou aplicar exclusivamente (com preconceitoetnocêntrico) critérios do homem branco para definir oque são direitos indígenas.
Desse modo, como expõe o autor, se há entendimento de
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que um homicídio decorrente de disputa por terras seria da
competência federal, não há razões para que um homicídio com
motivação relacionada a cultura e crença tenha competência estadual,
pois tanto as terras quanto a cultura e a crença são direitos indígenas com
reconhecimento constitucional.
No caso dos autos, não há dúvidas de que a motivação do
crime de homicídio foi a ameaça feita pela vítima de que iria enfeitiçar o
acusado. Nesse ponto, o laudo antropológico demonstra a seriedade de
ameaças como essa para os Kaiowá (fl. 386 e-STJ):
Com efeito, de acordo com os costumes e valores dasociedade kaiowá em que Mário Vera e AngeloRoque Vilhalva [vítima] foram socializados, asmotivações para o crime, supostamente praticado porMário Vera são bastante graves colocando o acusadoem situação de defesa e não de ataque. Como seráexplicado nos próximos quesitos a prática dafeitiçaria é condenada pela religião e pela moralkaiowá. O feiticeiro é visto como uma pessoa cujoconvívio é impraticável devido sua natureza má.Segundo os entrevistados kaiowá da Aldeia Te'yikue,a pessoa kaiowá vítima de um feitiço temmotivações suficientes para temer pela própriavida e pela vida de seus familiares. (...)Assim é possível dizer que o acusado ao tempo dofato podia ter condições de compreender o caráterilícito do homicídio dentro de sua cultura, mas agiumovido pela forte emoção de se sentir ameaçadode morte certa todo o tempo. [grifos nossos]
Ademais, o Juízo Federal afirma que a competência seria
estadual com base no depoimento do acusado, que afirmara que poderia se
livrar do feitiço com auxílio da religião e que o modus operandi da morte não
faria parte de ritual de cura (fl. 466 e-STJ). Contudo, o laudo antropológico
parece demonstrar situação diversa, conforme trechos abaixo (fl. 386 e-
STJ):
Além disso, outras alternativas kaiowá para aresolução desse conflito sem o uso da violência(reversão do feitiço através de outro rezador emigração) nas condições da reserva está muitodifícil de ser praticado (vide quesito 06). O mesmo
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vale para as demais acusações de ter utilizadomeio cruel, motivo torpe, ocultação de cadáver eincêndio de patrimônio. Nestas práticas, oacusado foi guiado pelas técnicas kaiowá (comoserá melhor explicado no quesito 06) com a intençãode aniquilar definitivamente a ameaça de feitiçocontra sua pessoa e a de sua família. A cerca daacusação de corrupção de menores é necessário arealização de estudo etnográfico dos acusados paraverificar se no tempo do fato eram considerados peloskaiowá como menores (vide quesito 06).[grifos nossos]
A antropóloga responsável também alerta para o fato da
necessidade de presença de um intérprete para que o acusado compreenda
e seja compreendido perante o juízo. Desse modo, seu depoimento pode ter
sido prejudicado pela falta de entendimento das questões postas, ou pela
tentativa de negar os fatos, pois a conduta delituosa realizada é reconhecida
na cultura kaiowá como uma forma de eliminação de eventual feitiço.
É importante também destacar que a morte de um feiticeiro
reflete na coletividade, mesmo em se tratando de demonstrações de
desprezo em razão da condição da vítima, como afirmado no seguinte
trecho do laudo:
Ao sair da casa de Mário Vera, conversando comMarinalva foi-lhe perguntado se a mesma lembrava-se de mais detalhes sobre a morte do senhor ÂngeloRoque Vilhalva. Marinalva respondeu: “Não. Quandoseu Ângelo morreu ninguém ligou porque ele faziafeitiço mesmo, fez mal para muita gente.”Por estas afirmações, em mais de uma ocasião, feitapor Marinalva e também com outras pessoasentrevistadas como Maria Celina, 36 anos, kaiowá,recepcionista do Posto de Saúde da Aldeia Te'yikue,que também confirmou que muitas pessoas na aldeiaacusava o senhor Ângelo Roque Vilhalva de serfeiticeiro e de ter matado muita gente com seusfeitiços, é possível afirmar que não apenas oacusado Mário Vera, mas também outras pessoasda comunidade identificavam a vítima comofeiticeiro.[grifos nossos]
Dessa forma, em se tratando de crime (disputa) cometido
em razão de elemento da crença indígena (direito indígena), estão
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presentes os requisitos previstos no art. 109, XI, e 231, ambos da
Constituição Federal, para que o delito seja processado perante a Justiça
Federal.
Ante o exposto, a competência para a processamento da
demanda é do Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados – SJ/MS.
III – Conclusão
Ante o exposto, o Ministério Público Federal se manifesta
pelo conhecimento do conflito, para que seja declarado competente o
Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados – SJ/MS, ora suscitante.
Brasília, 30 de janeiro de 2017.
LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISENSUBPROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA
/GMS
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA
AGRAVO INTERNO N° 14/2017 - LCFF
CC 149.964/MS (2016/0309631-2)AGRAVANTE:MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALSUSCITANTE:JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE DOURADOS - SJ/MSSUSCITADO:JUÍZO DE DIREITO DA 1A VARA CRIMINAL DE CAARAPÓ - MSRELATOR: MINISTRO FELIX FISCHER
Exmo Sr. Ministro Relator e demais integrantes da Turma,
O Ministério Público Federal, não se conformando com o
teor da decisão monocrática de fls. 494/496, vem, perante Vossa
Excelência, nos termos do artigo 1.021 do CPC; art. 39 da Lei n. 8.038/90; e
e arts. 258 e 259 do RISTJ, interpor o presente
AGRAVO INTERNO
em conformidade com as razões que seguem:
SAF Sul Qd. 4 – Lt. 3 – Bl. “B” – 5º Andar, Sala 513 – CEP: 70.050-900 – Brasília /DF – Tel: (61) 3105- 5237
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 2
I – DOS FATOS:
Trata-se de conflito negativo de competência suscitado pelo
Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados, com fulcro no art. 105, I, “d”, da
Constituição Federal, em face do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de
Caarapó - MS.
Na espécie, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso
do Sul ofereceu denúncia em desfavor de MARIO VERA, a quem imputou a
prática dos crimes tipificados pelo art. 121, § 2º, incisos I, III e IV; art. 211 e
art. 250, § 1º, inciso II, alínea “a”, todos do Código Penal; e art. 244-B, do
Estatuto da Criança e do Adolescente c/c art. 70, do Código Penal, tudo na
forma do artigo 69 do Código Penal (fls. 3/6 e-STJ). A denúncia narra a
seguinte conduta:
Consta dos autos que no dia 20 de outubro de 2010,por volta das 21h30min, na Aldeia Indígena Tey Kue,nesta cidade, o denunciado acima qualificado, cienteda ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, nacompanhia de dois menores, com animus necandi,fazendo uso de uma barra de ferro, uma faca e ummachado, desferiu golpes contra a vítima AngeloRoque Vilhalva, produzindo-lhe as lesões corporaisque foram a causa efetiva de sua morte.Segundo se apurou, no dia dos fatos o denunciado,juntamente com os dois menores, com unidade depropósitos, dirigiu-se à residência da vítima, armadocom vários instrumentos, a fim de matá-la.Consta que, ao encontrar a vítima, que era idosa enão possuía motivos para esperar o ataque, odenunciado, utilizando-se da barra de ferro, golpeou-ana cabeça e, em seguida, quando a vítima estavacaída no chão, desferiu um golpe de faca contra amesma, caracterizando, dessa forma, o recurso quedificultou sua defesa.Ato contínuo, com a visível intenção de impingirsofrimento desnecessário à vítima, o denunciadoordenou que os menores lhe dessem um machado,com o qual decepou a cabeça da vítima,caracterizando, com isso, o meio cruel. Vale anotarque as fotografias juntadas às fls. 50-52 demonstramclaramente a barbárie cometida.Impende consignar, ainda, para corroborar a utilização
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 3
do meio cruel, que a vítima foi espancada, tendo acabeça e um dos braços separados do corpo pelodenunciado e seus comparsas.Apurou-se, ainda, que o denunciado agiu pormotivo torpe, vez que matou a vítima por vingançajá que esta teria, supostamente, feito um “feitiço”em seu nome para causar-lhe a morte (1º CRIME).Após os fatos narrados, o denunciado e seuscomparsas ocultaram o cadáver da vítima em umpoço da aldeia, o qual possui aproximadamente trêsmetros de profundidade, tendo ela sido localizadaapenas posteriormente (2º CRIME).Constou ainda que, após ocultarem o corpo da vítima,os denunciados dirigiram-se à residência desta e aincendiaram, expondo a perigo o patrimônio da vítima,bem como a vida e o patrimônio dos vizinhos desta (3ºCRIME).Por fim, o denunciado facilitou a corrupção depessoas menores de 18 (dezoito) anos, com elaspraticando infração penal, quais sejam, osadolescentes Gilmar Escobar (nascido em07/05/1996) e Varduvino Arve (nascido em20/07/1994). (4º CRIME)[grifos nossos]
Dessa forma, o acusado foi pronunciado pelo Juízo da 1ª
Vara de Caarapó/MS, nos termos da denúncia, com concessão de liberdade
provisória (fls. 213/226 e-STJ).
Da decisão que concedeu a liberdade provisória houve
recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público do Estado de
Mato Grosso do Sul (fls. 237/246 e-STJ). Contudo, o recurso não foi provido
pelo TJ/MS (fls. 276/281 e-STJ).
Posteriormente, a Procuradoria Federal Especializada da
FUNAI em Dourados/MS requereu a elaboração de laudo antropológico do
réu (fls. 296/314 e-STJ). O respectivo laudo foi juntado aos autos às f ls.
377/407 e-STJ.
Às fls. 412/421 e-STJ, a Procuradoria Federal Especializada
da FUNAI requereu a remessa dos autos à Justiça Federal, a qual seria
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 4
competente para julgamento, por se tratar de causa que envolve direitos
indígenas.
O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul
manifestou-se pela competência estadual do feito (fls. 424/428 e-STJ).
Às fls. 440/441 e-STJ consta decisão do Juízo Estadual de
primeira instância determinando a remessa dos autos à Justiça Federal,
assim fundamentada:
Na denúncia, o órgão ministerial qualificou o crime dehomicídio por motivo torpe, vez que o acusado matoua vítima por vingança já que esta teria, supostamente,feito um “feitiço” em seu nome para causar-lhe amorte (f. 2).A testemunha João Goulart Marques declarou, emjuízo, que o crime ocorreu “...por causa de uma obrade feitiçaria que eles fizeram, falaram que ia matar elecom uma feitiçaria...” (f. 118)A testemunha Valdevino Arce Lopes afirmou, eminquérito policial, que “...Mário veio até eles, bastantenervoso, contando que Ângelo teria dito que ia matá-lo com um feitiço. Que Mario pediu ao irmão parabuscar as ferramentas pois o mesmo pretendia matarÂngelo, porém, acabaram encontrando-o na roça,pouco antes da casa. Que quando Ângelo os avistougritou “vou fazer feitiço pra você morrer Mário...” (f. 22)Por tais fundamentos, evidencia-se que a prática defeitiçaria foi o que motivou o suposto crime.Além disso, conforme estudo antropológico de f.376/406, verifica-se que dentro dos padrões culturaisindígenas, mais especificamente da etnia Kaiowá, aqual pertence o acusado, a feitiçaria exercesobremaneira influência, fazendo-lhe crer que atravésdo feitiço uma pessoa pode contrair doençasrepentinas, que trazem muito sofrimento e quemconduz uma morte lenta.Nesse sentido é o que ensina o antropólogo FabioMura, quando diz que Edoardo Galvão é um dospoucos autores que em 1943, enquanto realizava apesquisa junto aos Kaiowás e os Nandeva do MatoGrosso do Sul obteve acesso a algumas narrativasindígenas que contavam as experiências de índiosKaiowás que foram vítimas de feiticeiros (f. 396/397).Assim, manifesto está que a utilização de feitiço trata-se de técnica utilizada há décadas pela comunidadeindígena kaiowá, demonstrando, invariavelmente, oseu forte enraizamento na cultura silvícola.Deste modo, restando evidente que a motivação do
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crime narrado nos autos sofreu forte influência daprática dos costumes sedimentados pela culturaindígena, entendo que, no caso, compete à JustiçaFederal o processamento e julgamento desta AçãoPenal.
Remetidos os autos à Justiça Federal, abriu-se vista ao
Ministério Público Federal. Em parecer de fls. 444/449 e-STJ, o Procurador
da República oficiante manifestou-se pela competência estadual.
Em seguida, o Juízo da 1ª Vara Federal de Dourados/MS
suscitou o presente conflito (fls. 464/468 e-STJ). Entendeu que, na espécie,
não estaria a caracterizada a disputa entre interesses indígenas, pois:
O interesse que a União tem em relação aosindígenas vincula-se à preservação de seuscostumes, crenças, tradições, línguas, organizaçãosocial e à proteção e garantia dos direitos pertinentesàs terras por eles tradicionalmente ocupadas, comoassentado no art. 213 da CF/88.
Em parecer de fls. 479/491 e-STJ, o Ministério Público
Federal, pela signatária, manifestou-se pela competência do Juízo Federal.
Posteriormente, em decisão de fls. 494/496 e-STJ, o
Ministro Relator conheceu do conflito de competência e declarou
competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Caarapó-MS.
Dessa forma, interpõe-se o presente recurso.
É o relatório.
II – DAS RAZÕES DO PRESENTE RECURSO:
Conforme exposto no relatório acima, o Exmo Ministro
Relator do presente feito declarou competente o Juízo de Direito da Vara
Criminal de Caarapó/MS por entender que “o direito ultrajado, na espécie,
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foi o direito à vida da vítima, não consistindo motivação idônea para
remessa dos autos o fato de o Réu ter praticado o delito em razão
de 'feitiço' que a vítima teria feito, aplicando-se o disposto na súmula
140/STJ”.
De acordo com a decisão agravada, a motivação do
homicídio não poderia ser utilizada para caracterizar a disputa por direitos
indígenas, nos termos do art. 109, XI, da CF.
Tal entendimento, contudo, não merece prosperar.
Com efeito, o conflito gira em torno da definição da
competência para processamento de demanda em razão de homicídio e
outros crimes cometidos por indígena, motivados em razão de ameaça de
feitiço.
A Constituição Federal, em seu art. 109, inciso XI, determina
que compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos
indígenas. Quanto às disputas ocorridas na seara criminal, como no
presente caso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal define a
fixação da competência da Justiça Federal quando o crime cometido por
ou contra indígena tenha motivação relacionada à disputa de terras e à
questão relacionada a condição étnica, ou que envolva interesses da
comunidade indígena, conforme demonstra o seguinte julgado:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE DOPROCESSO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL. ART. 109, XI, CF. HABEAS CORPUS.DECISÃO MONOCRÁTICA NO STJ. SÚMULA 691,STF. NÃO CONHECIMENTO. 1. A impetração destehabeas corpus objetiva sanar suposta ilegalidade napostura do relator de writ anteriormente aforadoperante o STJ que, após haver indeferido o pedido deliminar, se omitiu em apreciar o pedido dereconsideração da decisão indeferitória. 2. Háobstáculo intransponível ao conhecimento destehabeas corpus eis que, cientes da decisão
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monocrática do relator do STJ, o impetrante deixou deinterpor agravo regimental, limitando-se a pedir areconsideração da decisão. 3. A Súmula 691, do STF,se fundamenta na impossibilidade de o STF, nojulgamento de ação de sua competência originária,suprimir a instância imediatamente anterior, eis quenão houve decisão colegiada no âmbito do SuperiorTribunal de Justiça. 4. Ainda que não fosse por taismotivos, seria hipótese clara de denegação da ordem,eis que não há elementos suficientes nos autos quepermitam aferir a alegada nulidade do ato derecebimento do aditamento à denúncia. 5. Acompetência da justiça federal em relação aosdireitos indígenas não se restringe às hipótesesde disputa de terras, eis que os direitoscontemplados no art. 231, da Constituição daRepública, são muito mais extensos. O fato dosacusados terem se utilizado da condição étnicadas vítimas para a prática das condutasdelituosas, o que representa afronta direta àcultura da comunidade indígena. 6. HC nãoconhecido.(HC 91313, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE,Segunda Turma, julgado em 02/09/2008, DJe-182DIVULG 25-09-2008 PUBLIC 26-09-2008 EMENTVOL-02334-02 PP-00389) [grifos nossos]
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem
jurisprudência orientada no mesmo sentido:
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL.TORTURA. CRIME EM RAZÃO DE COSTUMESINDÍGENAS. DISPUTA DE TERRAS INDÍGENAS.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.TIPICIDADE. ORDEM NÃO CONHECIDA.1. Compete à Justiça Federal o processamento e ojulgamento da ação penal quando a motivação dodelito envolve questões intrínsecas de direitos ecultura indígenas, como ocorre na hipótese.2. Nos termos do art. 57 do Estatuto do Índio, não épermitido aos líderes de grupos tribais a imposição desanções de caráter cruel ou infamante, nem de penade morte contra seus membros, sendo típica,portanto, a conduta que impôs à vítima intensosofrimento físico, como forma de aplicar castigo.3. Fixado pelas instâncias ordinárias, com amploarrimo no acervo probatório, que a vítima -indígena sob sua autoridade - foi submetida aintenso sofrimento físico, não há como ilidir essaconclusão, pois demandaria revolvimento deprovas e fatos, não condizente com a via estreita doremédio constitucional, que possui rito célere e
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desprovido de dilação probatória.4. Habeas corpus não conhecido.(HC 208.634/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTICRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 14/06/2016, DJe23/06/2016)
HABEAS CORPUS. DISPUTA SOBRE DIREITOSINDÍGENAS. SUBSTITUTIVO DE RECURSOESPECIAL. DESVIRTUAMENTO. PRECEDENTESDO STF. ART. 109, XI, DA CF. COMPETÊNCIA DAJUSTIÇA FEDERAL. LEI DO CRIME RACIALVERSUS ESTATUTO DO ÍNDIO. PRETENDIDADESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA IMPUTADA AOPACIENTE. MATÉRIA NÃO ANALISADA PELOTRIBUNAL DE ORIGEM. SUPRESSÃO DEINSTÂNCIA. MANIFESTO CONSTRANGIMENTOILEGAL NÃO EVIDENCIADO.1. É imperiosa a necessidade de racionalização dohabeas corpus, a fim de preservar a coerência dosistema recursal e a própria função constitucional dowrit, de prevenir ou remediar ilegalidade ou abuso depoder contra a liberdade de locomoção.2. O remédio constitucional tem suas hipóteses decabimento restritas, não podendo ser utilizado emsubstituição a recursos processuais penais, a fim dediscutir, na via estreita, tema afetos a apelaçãocriminal, recurso especial, agravo em execução e atérevisão criminal, de cognição mais ampla. Ailegalidade passível de justificar a impetração dohabeas corpus deve ser manifesta, de constataçãoevidente, restringindo-se a questões de direito quenão demandem incursão no acervo probatórioconstante de ação penal.3. Segundo o Supremo Tribunal Federal, aincidência do inciso XI para determinar acompetência da Justiça Federal tem a ver com adisputa sobre direitos indígenas, os quais, por suavez, estão relacionados à proteção conferida aosindígenas pelo caput do art. 231 da ConstituiçãoFederal.4. Na espécie, verifica-se que o paciente praticou,induziu e/ou incitou a discriminação ou preconceito dacultura indígena, aqui abrangidos os seus costumes,as suas crenças e as suas tradições, pelo que restaevidente que a ação penal está ligada a questões quedizem respeito a "disputa sobre direitos indígenas".Tal circunstância excepcional é apta para, nos termosda jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, atraira competência da Justiça Federal para processar ejulgar o feito.5. Mostra-se inviável a análise diretamente por estaCorte Superior de Justiça da alegação de que aconduta imputada ao paciente se amolda ao tipoprevisto no art. 58, I, da Lei n. 6.001/1973 (Estatuto doÍndio), e não ao art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/1989 (Leido Crime Racial), como foi capitulado pelo MinistérioPúblico Federal, tendo em vista que essa matéria não
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 9
foi apreciada pelo Tribunal de origem, até porque nãosuscitada em momento algum, sob pena de, assim ofazendo, incidir na indevida supressão de instância.6. Habeas corpus não conhecido.(HC 144.387/ES, Rel. Ministro SEBASTIÃO REISJÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/11/2012,DJe 05/12/2012)
Nesse contexto, a motivação é um dos elementos a serem
utilizados para determinação da competência federal.
Como demonstrado, a conceituação da disputa por
direitos indígenas deve ser feita à luz do art. 231 da Constituição
Federal, que assim dispõe:
Art. 231. São reconhecidos aos índios suaorganização social, costumes, línguas, crenças etradições, e os direitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à Uniãodemarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seusbens.
Dessa forma, por expressa previsão constitucional, são
direitos indígenas sua organização social, seus costumes, crenças e
tradições.
Em determinado trecho da decisão agravada afirma-se que
“o único fator relevante, in casu, é que o suposto crime foi praticado por
índio contra outro índio, porém não houve qualquer afronta aos direitos
indígenas preconizados no artigo 231 da Constituição Federal ou no
Estatuto do Índio, porquanto o suposto homicídio não foi praticado para
disputa de terras, de crença e tradição, costumes ou qualquer motivação
que atinja a coletividade”. Todavia, na espécie, a motivação é um fator
relevante a ser considerado, ainda mais por tratar de disputa que envolva a
crença daquela comunidade indígena.
Sobre o tema, é valioso o entendimento de Manoel Lauro
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 10
Volkmer de Castilho1:
Como se pode perceber dos diversos arestos antesreportados, a questão passa a ser de acordo com afundamentação exposta pelos Relatores, de um ladoa identificação exata dos direitos e interesses dosindígenas albergados no texto do artigo 231 da CF, ede outro a figuração de sua efetiva violação.Mas, mesmo aceitando a discussão nesse limitadocampo, se é certo que a Constituição reconheceu aosíndios sua organização social, seus costumes,línguas, crenças e tradições bem assim os direitosoriginários sobre as terras que ocupam, é igualmentecerto que ela acolheu como valores os que essascategorias constitucionalizadas traduzem, não só naperspectiva do homem branco e sua legislação mastambém naquela do indígena com todas as suasdecorrências. Consequentemente, se o conceito dedisputa compreende toda e qualquer desavença entreíndios e não índios ou entre índios e índios, e sedireitos indígenas é expressão que necessariamentealcança os direitos internos das comunidades com osdesdobramentos próprios de sua cultura, tradição,língua e crenças - e não apenas os direitosrelacionados com a terra (aparentemente o padrãoúnico adotado no STF para apuração da lesão aosdireitos indígenas) - é preciso redimensionar tantoa leitura estrita do artigo 231 (aliás, efetivamenterecomendada pelo STF em vários casos de crimescontra a vida de índio) quanto a do inciso XI, doart. 109 CF.Essa linha de compreensão é a interpretação queprevalecera na jurisprudência do STF assim que foipromulgada a Constituição de 1988, levando amaioria dos seus juízes a ter como aceitável que ohomicídio de um indígena ofendia concretamente umdireito indígena porque lesava o seu bem jurídicomais importante. Por isso, conquanto posteriormentea orientação do tribunal tivesse reduzido a amplitudedesse entendimento para fixar como conteúdo dessesdireitos tão só aqueles referidos no art. 231 CF (navisão estrita da Corte), é certo que mesmo assim acompetência federal não poderia ficar limitada àshipóteses de disputa por terras porque os direitos doart. 231 CF na verdade vão além delas e podem terconteúdo diverso como agora interpretação daConstituição, pela conjugação dos seus arts. 109, XI,231 e 232, aponta com certeza para um conjunto dedireitos significativamente maior do que os que osprecedentes do STF reconheceram.E isso porque não se compreende que umadisputa versando indiretamente sobre terras(homicídio, por exemplo) possa ser consideradauma disputa sobre direitos indígenas quandooutra, dizendo respeito a relação entre pais e
1 CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer de. A competência nos crimes praticados por ou contraindígenas. Revista AJUFERGS n.º 01, s.d, Porto Alegre/RS.
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 11
filhos índios, ou entre homem e mulher índios ounão índios, ou entre grupos ou comunidadesindígenas ou não indígenas versando costumes,tradições, religião ou valores tipicamenteindígenas, não o seja tão só porque não envolvemterras.Se é razoável aceitar a existência de disputa quandose controverte sobre terras porque os direitos sobreelas está assegurado aos indígenas na cabeça doartigo 231 da Constituição, do mesmo modo épossível identificar a existência de disputa sobredireitos indígenas quando o delito tem por objeto,direta ou indiretamente, uma controvérsia de fundocultural, religioso, ou sobre tradição ou costumesprotegidos no mesmo art. 231 da CF.Mostra-se, por exemplo, fácil perceber que umlugar sagrado segundo costumes indígenas, ouos animais aí existentes, ou seus símbolos,árvores ou águas, assim como seus hábitos e amemória dos ancestrais, podem ser ofendidos ouprofanados, constituindo crime em si ou resultarem reação delituosa e nessa circunstâncianinguém poderia contestar a óbvia violação dedireitos indígenas para o efeito discutido mesmoquando praticado por um índio e fora da reserva.Não existe uma razão sistemática para distinguiruma disputa originada por questão de terras dequalquer outra gerada por diferença de opiniãosobre costumes ou crenças ou sobre relaçõesentre parentes. Muito pelo contrário, tanto olegislador compreendeu essa preocupação quecriminalizou, por exemplo, a venda de bebidaalcoólica aos índios (art. 58, III da Lei n.º 6.001/73),assinalando claramente que há outros valores aserem defendidos justo porque há outros direitosindígenas que não o simples direito à terra.Também não parece existir razão ontológica paraessa distinção, uma vez que se deve respeitar com amesma intensidade os valores produzidos pelaorganização social, costumes, crenças, língua etradições dos índios, os quais foram formalmentereconhecidos pela Constituição, e, para chegar aconclusão diferente ou contrária, seria necessárioprocurar diferençar onde a Constituição não distinguiuou aplicar exclusivamente (com preconceitoetnocêntrico) critérios do homem branco para definir oque são direitos indígenas.
Desse modo, como expõe o autor, se há entendimento de
que um homicídio decorrente de disputa por terras seria da
competência federal, não há razões para que um homicídio com
motivação relacionada a cultura e crença tenha competência estadual,
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 12
pois tanto as terras quanto a cultura e a crença são direitos indígenas
com reconhecimento constitucional.
No caso dos autos, não há dúvidas de que a motivação do
crime de homicídio foi a ameaça feita pela vítima de que iria enfeitiçar o
acusado. Nesse ponto, o laudo antropológico demonstra a seriedade de
ameaças como essa para os Kaiowá (fl. 386 e-STJ):
Com efeito, de acordo com os costumes e valores dasociedade kaiowá em que Mário Vera e AngeloRoque Vilhalva [vítima] foram socializados, asmotivações para o crime, supostamente praticado porMário Vera são bastante graves colocando o acusadoem situação de defesa e não de ataque. Como seráexplicado nos próximos quesitos a prática dafeitiçaria é condenada pela religião e pela moralkaiowá. O feiticeiro é visto como uma pessoa cujoconvívio é impraticável devido sua natureza má.Segundo os entrevistados kaiowá da Aldeia Te'yikue,a pessoa kaiowá vítima de um feitiço temmotivações suficientes para temer pela própriavida e pela vida de seus familiares. (...)Assim é possível dizer que o acusado ao tempo dofato podia ter condições de compreender o caráterilícito do homicídio dentro de sua cultura, mas agiumovido pela forte emoção de se sentir ameaçadode morte certa todo o tempo. [grifos nossos]
Ademais, o Juízo Federal afirma que a competência seria
estadual com base no depoimento do acusado, que afirmara que poderia se
livrar do feitiço com auxílio da religião e que o modus operandi da morte não
faria parte de ritual de cura (fl. 466 e-STJ). Contudo, o laudo antropológico
parece demonstrar situação diversa, conforme trechos abaixo (fl. 386 e-
STJ):
Além disso, outras alternativas kaiowá para aresolução desse conflito sem o uso da violência(reversão do feitiço através de outro rezador emigração) nas condições da reserva está muitodifícil de ser praticado (vide quesito 06). O mesmovale para as demais acusações de ter utilizadomeio cruel, motivo torpe, ocultação de cadáver eincêndio de patrimônio. Nestas práticas, oacusado foi guiado pelas técnicas kaiowá (comoserá melhor explicado no quesito 06) com a intenção
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 13
de aniquilar definitivamente a ameaça de feitiçocontra sua pessoa e a de sua família. A cerca daacusação de corrupção de menores é necessário arealização de estudo etnográfico dos acusados paraverificar se no tempo do fato eram considerados peloskaiowá como menores (vide quesito 06).[grifos nossos]
A antropóloga responsável também alerta para o fato da
necessidade de presença de um intérprete para que o acusado compreenda
e seja compreendido perante o juízo. Desse modo, seu depoimento pode ter
sido prejudicado pela falta de entendimento das questões postas, ou pela
tentativa de negar os fatos, pois a forma de execução do crime é
reconhecida na cultura kaiowá como meio de eliminação de eventual feitiço.
É importante também destacar que a morte de um feiticeiro
reflete na coletividade, mesmo em se tratando de demonstrações de
desprezo em razão da condição da vítima, como afirmado no seguinte
trecho do laudo:
Ao sair da casa de Mário Vera, conversando comMarinalva foi-lhe perguntado se a mesma lembrava-se de mais detalhes sobre a morte do senhor ÂngeloRoque Vilhalva. Marinalva respondeu: “Não. Quandoseu Ângelo morreu ninguém ligou porque ele faziafeitiço mesmo, fez mal para muita gente.”Por estas afirmações, em mais de uma ocasião, feitapor Marinalva e também com outras pessoasentrevistadas como Maria Celina, 36 anos, kaiowá,recepcionista do Posto de Saúde da Aldeia Te'yikue,que também confirmou que muitas pessoas na aldeiaacusava o senhor Ângelo Roque Vilhalva de serfeiticeiro e de ter matado muita gente com seusfeitiços, é possível afirmar que não apenas oacusado Mário Vera, mas também outras pessoasda comunidade identificavam a vítima comofeiticeiro.[grifos nossos]
Dessa forma, em se tratando de crime (disputa) cometido
em razão de elemento da crença indígena (direito indígena), estão
presentes os requisitos previstos no art. 109, XI, e 231, ambos da
Constituição Federal, para que o delito seja processado perante a Justiça
Federal.
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Recurso Nº 14/2017 – LCFF fls. 14
Assim, a decisão de fls. 494/496 e-STJ deve ser reformada,
a fim de que seja declarada a competência do Juízo Federal da 1ª Vara de
Dourados – SJ/MS.
III – DO PEDIDO:
Pelas razões expostas, o Ministério Público Federal requer
seja reformada a decisão de fls. 494/496 e-STJ fim de que seja declarada a
competência do Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados – SJ/MS.
Brasília, DF, 1º de março de 2017.
LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISENSUBPROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA
/GMS
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Superior Tribunal de Justiça
AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 149.964 - MS (2016/0309631-2)
RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHERAGRAVANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL SUSCITANTE : JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE DOURADOS - SJ/MS SUSCITADO : JUÍZO DE DIREITO DA 1A VARA CRIMINAL DE
CAARAPÓ - MS INTERES. : MARIO VERA INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO
DO SUL EMENTA
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SUPOSTO CRIME DE HOMICÍDIO PRATICADO POR ÍNDIO CONTRA ÍNDIO. INEXISTÊNCIA DE DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. APLICABILIDADE SÚMULA 140/STJ. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
I - Nos termos do artigo 109, XI, da Constituição Federal, será da competência da Justiça Federal processar e julgar "disputa sobre direitos indígenas ".
II - Via de regra, crime praticado por índio ou contra ele, será processado e julgado pela Justiça Estadual, salvo comprovação efetiva de que a motivação se refere a disputa de direitos indígenas.
III - In casu, o suposto homicídio praticado por índio contra outro não teve conotação de disputa de seus direitos indígenas, não sendo relevante, para fins de competência, a crença pessoal do autor que alega ter praticado o crime em virtude de "feitiço", porquanto tal fato não atinge direitos coletivos, ou seja, o crime não foi praticado para atingir a cultura indígena.
IV - A jurisprudência deste col. Superior Tribunal de Justiça se firmou nesse sentido, somente havendo interesse da União quando existir relevante interesse da coletividade indígena. Precedentes.
Agravo regimental desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Jorge Mussi, Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro
Dantas, Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik votaram com o Sr. Ministro Documento: 1584573 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 29/03/2017 Página 1 de 10
Superior Tribunal de Justiça
Relator.
Ausentes, justificadamente, a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis
Moura e os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nefi Cordeiro.
Brasília (DF), 22 de março de 2017 (Data do Julgamento).
Ministro Felix Fischer
Relator
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Superior Tribunal de Justiça
AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 149.964 - MS (2016/0309631-2)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Trata-se de agravo
regimental interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face de decisão
monocrática por mim proferida que reconheceu a competência do Juízo de Direito
para processar e julgar o suposto crime investigado.
Na espécie, trata-se de conflito de competência negativo suscitado pelo
Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados - SJ/MS em face do Juízo de Direito da 1ª Vara
Criminal de Caarapó - MS.
Em breve síntese, a controvérsia consiste em definir qual dos dois juízos
é competente para processar e julgar índio que supostamente praticou homicídio em
face de outro índio, cuja motivação apurada foi "feitiço" que a vítima teria feito para
causar a morte do Réu.
O Juízo de Direito declinou da competência por se convencer que a
"condição étnica motivou ou influenciou o fato criminoso " (fl. 429).
Por sua vez, o Juízo Federal entendeu que não há disputa de qualquer
direito indígena no caso concreto, não sendo fundamento para deslocamento de
competência o fato de a motivação do crime ser "feitiço".
Por manter a decisão agravada por seus fundamentos, submeto ao
colegiado.
É o relatório.
Documento: 1584573 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 29/03/2017 Página 3 de 10
Superior Tribunal de Justiça
AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 149.964 - MS (2016/0309631-2)
EMENTA
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SUPOSTO CRIME DE HOMICÍDIO PRATICADO POR ÍNDIO CONTRA ÍNDIO. INEXISTÊNCIA DE DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. APLICABILIDADE SÚMULA 140/STJ. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
I - Nos termos do artigo 109, XI, da Constituição Federal, será da competência da Justiça Federal processar e julgar "disputa sobre direitos indígenas ".
II - Via de regra, crime praticado por índio ou contra ele, será processado e julgado pela Justiça Estadual, salvo comprovação efetiva de que a motivação se refere a disputa de direitos indígenas.
III - In casu, o suposto homicídio praticado por índio contra outro não teve conotação de disputa de seus direitos indígenas, não sendo relevante, para fins de competência, a crença pessoal do autor que alega ter praticado o crime em virtude de "feitiço", porquanto tal fato não atinge direitos coletivos, ou seja, o crime não foi praticado para atingir a cultura indígena.
IV - A jurisprudência deste col. Superior Tribunal de Justiça se firmou nesse sentido, somente havendo interesse da União quando existir relevante interesse da coletividade indígena. Precedentes.
Agravo regimental desprovido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: O agravo regimental
não merece prosperar, senão vejamos.
A Agravante aduz que, a motivação (feitiço), por decorrer da cultura
indígena, inclusive com laudo antropológico, seria fundamento idôneo para o
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processamento e julgamento do feito pela Justiça Federal.
Efetivamente, a disputa de direitos indígenas prevista no inciso XI do
artigo 109 da Constituição Federal não se resume as lides por terras, mas toda e
qualquer contenda referente aos direitos previstos em rol exemplificativo no artigo 231
da CF: "organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
Concordo com a alusão do recorrente de que a afronta aos costumes
indígenas deve ser processado pela Justiça Federal, contudo, in casu, não há qualquer
violação aos costumes, crenças ou tradições.
Tem-se suposto homicídio praticado por índio contra outro, cuja
motivação foi acreditar que a vítima lhe faria um "feitiço", fato que não ofende em
nada a cultura indígena, mas foi apenas o suposto móvel da prática delitiva.
Inexiste, na hipótese dos autos, violação aos direitos indígenas, previsto
na Constituição Federal ou Estatuto do Índio, de cunho coletivo que incorra em
interesse da União, capaz de acarretar o deslocamento da competência para a Justiça
Federal.
Destaca-se que, o em. Ministro Nefi Cordeiro, ao julgar o conflito de
competência 144.819/MS, que versava sobre a mesma matéria, entendeu por eclarar
competente o Juízo de Direito, acolhendo, naquela ocasião, o parecer do Ministério
Público Federal.
Convém, novamente, transcrever trecho da r. decisão:
"[...] Ademais, bem referiu o Juízo suscitante que No presente caso, tem-se, em tese, a prática de um homicídio motivado por suposto "feitiço" - prática mística própria da cultura indígena da região; podendo ser considerada, pois, como um direito indígena coletivo .
No entanto, não se exsurge dos presentes autos o segundo elemento: a disputa sobre esse direito. Vale dizer, não há um ataque à prática mística em si, visando exterminá-la da cultura indígena. No contexto dos autos, o "feitiço" surge apenas como um elemento acidental, suposta motivação do acusado para investir contra seu adversário.
Não há, pois, competência da Justiça Federal para processar e julgar a demanda(fl. 145).
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Nesse contexto, não tendo o delito sido motivado em razão de conflito de interesses indígenas, mas, em razão de crença pessoal de que o acusado teria sido enfeitiçado pela vítima, falece competência à Justiça Federal. [...]"
Destaca-se que, a atuação do Ministério Público Federal nos autos do CC
144.819/MS foi diversa do presente feito, conforme dito, sendo conveniente
transcrever trecho do parecer ministerial naqueles autos:
"9. O delito praticado pelo acusado Mariano Rodrigues Arce não foi motivado em conflito de interesses indígenas, mas, sim, por crença pessoal de que o acusado teria sido “enfeitaço” pela vítima.A existência de aspectos culturais indígenas na motivação peculiar do delito, por si só, não autoriza concluir que estamos diante da competência da justiça federal que exige a disputa sobre a titularidade de direitos, no caso, indígenas, e sua dimensão coletiva.
10. Não há, portanto, disputa sobre interesse ou direito indígena coletivamente considerados, o que determina a competência da Justiça Estadual para julgar e processar o feito.
Ante o exposto, opina este Órgão Ministerial pelo conhecimento do conflito, para que seja declarado competente o Juízo de Direito da Vara Criminal de Ponta Porã – MS, o suscitado."
Desse modo, entendo aplicável a inteligência da súmula 140/STJ ao
presente feito:
COMPETE A JUSTIÇA COMUM ESTADUAL PROCESSAR E JULGAR CRIME EM QUE O INDIGENA FIGURE COMO AUTOR OU VITIMA.
No recurso, o Agravante sustenta que a motivação (crença em
"feitiço") afronta a cultura indígena, no entanto, assim não penso, pois não
houve, no caso concreto, violação à cultura indígena, um atentado aos costumes,
mas sim ao direito à vida da vítima, não havendo, in casu, disputa sobre direitos
indígenas.
O precedente citado pelo Agravante proferido no julgamento do HC
91.313, pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria da em. Ministra Ellen Gracie,
não se aplica ao caso concreto, pois naquele feito foram praticados diversos crimes
contra vários índios integrantes de uma mesma reserva em razão da condição étnica,
conforme se extrai do voto:
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"Há elementos nos autos que dão conta de que considerável parcela da comunidade indígena da reserva do Guarita/RS teria sido atingida pelos crimes supostamente praticados pelos pacientes, o que faz incidir a regra constante do art. 109, XI, da Constituição Federal".
A existência de estudo antropológico sobre a "feitiçaria " não tem condão
de modificar o aspecto do presente feito, inclusive, é incontroversa tal motivação, no
entanto, não entendo que o crime praticado ofenda a cultura indígena de forma
coletiva porque praticado sob tal perspectiva.
Nesse aspecto, citamos jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça:
"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. CRIME PRATICADO POR ÍNDIO. AUSÊNCIA DE DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
1. Em se tratando de conduta sem conotação especial, inapta a revelar o interesse da coletividade indígena, não se vislumbra ofensa a interesse da União, pelo que aplicável na espécie o Enunciado Sumular 140 desta Corte que dispõe, verbis: "Compete a Justiça Comum Estadual processar e Julgar Crime em que o indígena figure como autor ou vítima."
2. Conflito conhecido para determinar a competência do suscitado, Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Dourados - MS" (CC n. 43.328/MS, Terceira Seção, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 21/10/2008).
Tal conclusão também pode ser extraída do julgado abaixo,
interpretando-se de forma contrária, pois nos casos citados abaixo houve efetivamente
ofensa a direito coletivo indígena, diversamente do que ocorreu no caso ora analisado:
"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PEDIDO DE BUSCA E APREENSÃO DE ARMAS. INVESTIGAÇÃO DE TENTATIVA DE HOMICÍDIO PRATICADA POR INDÍGENAS E MOTIVADA POR DISPUTA EM RELAÇÃO À DEFINIÇÃO DO CACIQUE DA TRIBO TEKOHA. AMEAÇAS DO EX-CACIQUE DIRECIONADAS A TODOS OS MEMBROS DA COMUNIDADE QUE APOIASSEM O NOVO LÍDER. INTERESSE COLETIVO DA COMUNIDADE INDÍGENA. NÃO INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO 140 DA SÚMULA DESTA CORTE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. Ao estabelecer a competência da Justiça Federal para
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julgar os crimes relacionados à disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI, da CF), a Carta Magna colocou sob a jurisdição federal o julgamento de toda e qualquer controvérsia relacionada a direitos dos índios, assim como a direitos dos povos indígenas, neles inclusos os descritos no art. 231, quais sejam, aqueles sobre a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
2. Inserida no sistema constitucional de garantia dos direitos de minorias, a disputa por direitos indígenas mencionada no inciso XI do art. 109 da CF não se restringe a questões envolvendo interesses econômicos, mas abrange, também, direitos relativos à forma de constituição, organização social das comunidades indígenas e definição de lideranças.
3. Como decorrência, não se aplica o enunciado n. 140 da Súmula do STJ quando o crime envolvendo direitos indígenas implicar em ofensa a interesses coletivos da comunidade indígena.
4. Se a motivação dos delitos investigados gira em torno de disputa pela liderança da aldeia, abrangendo, inclusive, ameaças de morte proferidas pelo ex-cacique a todos os que apoiassem o novo líder, evidencia-se o nítido interesse coletivo da comunidade indígena na solução da controvérsia, e, por consequência, a competência da Justiça Federal para julgamento do feito (art. 109, XI, c/c art. 231, CF/88) .
5. Precedentes desta Corte: CC 123.016/TO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Terceira Seção, julgado em 26/6/2013, DJe 1/8/2013; CC 129.704/PA, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD - Desembargadora convocada do TJ/SE - Terceira Seção, julgado em 26/3/2014, DJe 31/3/2014; CC 99.406/RO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Terceira Seção, julgado em 13/10/2010, DJe 20/10/2010; HC 124.827/BA, Rel. Ministra LAURITA VAZ, Quinta Turma, julgado em 1/9/2009, DJe 28/9/2009 e CC 93.000/MS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Terceira Seção, julgado em 8/10/2008, DJe 14/11/2008.
6. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 1ª Vara de Guaíra (Seção Judiciária do Paraná), o suscitante, para julgar o presente pedido de busca e apreensão" (CC n. 140.391/PR, Terceira Seção, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe de 6/11/2015).
No âmbito do Supremo Tribunal Federal se observa jurisprudência
também nesse sentido:
COMPETÊNCIA CRIMINAL. Conflito. Crime praticado por silvícolas, contra outro índio, no interior de reserva indígena.
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Disputa sobre direitos indígenas como motivação do delito. Inexistência. Feito da competência da Justiça Comum. Recurso improvido. Votos vencidos. Precedentes. Exame. Inteligência do art. 109, incs. IV e XI, da CF. A competência penal da Justiça Federal, objeto do alcance do disposto no art. 109, XI, da Constituição da República, só se desata quando a acusação seja de genocídio, ou quando, na ocasião ou motivação de outro delito de que seja índio o agente ou a vítima, tenha havido disputa sobre direitos indígenas, não bastando seja aquele imputado a silvícola, nem que este lhe seja vítima e, tampouco, que haja sido praticado dentro de reserva indígena.
RE 419528, Tribunal Pleno, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Cezar Peluso, DJ 09-03-2007
"RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. HOMICÍDIO. CRIME PRATICADO POR ÍNDIO CONTRA ÍNDIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. Não havendo disputa sobre direitos indígenas, a competência para processar e julgar as causas em que envolvido indígena, seja como sujeito ativo ou sujeito passivo do delito, é da Justiça estadual. Agravo regimental a que se nega provimento" (AI n. 496.653 AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 3/2/2006).
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É o voto.
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CERTIDÃO DE JULGAMENTOTERCEIRA SEÇÃO
AgRg no
Número Registro: 2016/0309631-2 PROCESSO ELETRÔNICO CC 149.964 / MSMATÉRIA CRIMINAL
Números Origem: 00028610720108120031 00044463820154036002 10582016 28610720108120031 44463820154036002
PAUTA: 22/03/2017 JULGADO: 22/03/2017
RelatorExmo. Sr. Ministro FELIX FISCHER
Presidente da SessãoExmo. Sr. Ministro NEFI CORDEIRO
Subprocurador-Geral da RepúblicaExmo. Sr. Dr. HAROLDO FERRAZ DA NOBREGA
SecretárioBel. GILBERTO FERREIRA COSTA
AUTUAÇÃO
SUSCITANTE : JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE DOURADOS - SJ/MS SUSCITADO : JUÍZO DE DIREITO DA 1A VARA CRIMINAL DE CAARAPÓ - MS INTERES. : MARIO VERA INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
ASSUNTO: DIREITO PENAL
AGRAVO REGIMENTAL
AGRAVANTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL SUSCITANTE : JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE DOURADOS - SJ/MS SUSCITADO : JUÍZO DE DIREITO DA 1A VARA CRIMINAL DE CAARAPÓ - MS INTERES. : MARIO VERA INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA SEÇÃO, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Seção, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Jorge Mussi, Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas, Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura e os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior e Rogerio Schietti Cruz.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nefi Cordeiro.
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO VICE-PRESIDENTE DOSUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ref.: Recurso Extraordinário no CC 149.964/MSRecorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALRecorrido: JUSTIÇA PÚBLICA
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Subprocuradora-
Geral da República abaixo assinada, no exercício de suas atribuições
constitucionais e legais, vem, tempestivamente, com fundamento no art.
102, III, alínea a, da Constituição Federal, c/c art. 1.029 do CPC, apresentar:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
contra decisão de fls. 530/538 e-STJ, que desproveu agravo
regimental interposto pelo Ministério Público Federal.
SAF Sul Qd. 4 – Lt. 3 – Bl. “B” – 5º Andar, Sala 513 – CEP: 70.050-900 – Brasília /DF – Tel: (61) 3105- 5240
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RE no CC 149.964/MS fls. 2
I – RELATÓRIO:
Na espécie, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso
do Sul ofereceu denúncia em desfavor de MARIO VERA, a quem imputou a
prática dos crimes tipificados pelo art. 121, § 2º, incisos I, III e IV; art. 211 e
art. 250, § 1º, inciso II, alínea “a”, todos do Código Penal; e art. 244-B, do
Estatuto da Criança e do Adolescente c/c art. 70, do Código Penal, tudo na
forma do artigo 69 do Código Penal (fls. 3/6 e-STJ). A denúncia narra a
seguinte conduta:
Consta dos autos que no dia 20 de outubro de 2010,por volta das 21h30min, na Aldeia Indígena Tey Kue,nesta cidade, o denunciado acima qualificado, cienteda ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, nacompanhia de dois menores, com animus necandi,fazendo uso de uma barra de ferro, uma faca e ummachado, desferiu golpes contra a vítima AngeloRoque Vilhalva, produzindo-lhe as lesões corporaisque foram a causa efetiva de sua morte.Segundo se apurou, no dia dos fatos o denunciado,juntamente com os dois menores, com unidade depropósitos, dirigiu-se à residência da vítima, armadocom vários instrumentos, a fim de matá-la.Consta que, ao encontrar a vítima, que era idosa enão possuía motivos para esperar o ataque, odenunciado, utilizando-se da barra de ferro, golpeou-ana cabeça e, em seguida, quando a vítima estavacaída no chão, desferiu um golpe de faca contra amesma, caracterizando, dessa forma, o recurso quedificultou sua defesa.Ato contínuo, com a visível intenção de impingirsofrimento desnecessário à vítima, o denunciadoordenou que os menores lhe dessem um machado,com o qual decepou a cabeça da vítima,caracterizando, com isso, o meio cruel. Vale anotarque as fotografias juntadas às fls. 50-52 demonstramclaramente a barbárie cometida.Impende consignar, ainda, para corroborar a utilizaçãodo meio cruel, que a vítima foi espancada, tendo acabeça e um dos braços separados do corpo pelodenunciado e seus comparsas.Apurou-se, ainda, que o denunciado agiu pormotivo torpe, vez que matou a vítima por vingançajá que esta teria, supostamente, feito um “feitiço”em seu nome para causar-lhe a morte (1º CRIME).Após os fatos narrados, o denunciado e seuscomparsas ocultaram o cadáver da vítima em umpoço da aldeia, o qual possui aproximadamente trêsmetros de profundidade, tendo ela sido localizada
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RE no CC 149.964/MS fls. 3
apenas posteriormente (2º CRIME).Constou ainda que, após ocultarem o corpo da vítima,os denunciados dirigiram-se à residência desta e aincendiaram, expondo a perigo o patrimônio da vítima,bem como a vida e o patrimônio dos vizinhos desta (3ºCRIME).Por fim, o denunciado facilitou a corrupção depessoas menores de 18 (dezoito) anos, com elaspraticando infração penal, quais sejam, osadolescentes Gilmar Escobar (nascido em07/05/1996) e Varduvino Arve (nascido em20/07/1994). (4º CRIME)[grifos nossos]
Dessa forma, o acusado foi pronunciado pelo Juízo da 1ª
Vara de Caarapó/MS, nos termos da denúncia, com concessão de liberdade
provisória (fls. 213/226 e-STJ).
Da decisão que concedeu a liberdade provisória houve
recurso em sentido estrito pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso
do Sul (fls. 237/246 e-STJ). Contudo, o recurso não foi provido pelo TJ/MS
(fls. 276/281 e-STJ).
Posteriormente, a Procuradoria Federal Especializada da
FUNAI em Dourados/MS requereu a elaboração de laudo antropológico do
réu (fls. 296/314 e-STJ). O respectivo laudo foi juntado aos autos às f ls.
377/407 e-STJ.
Às fls. 412/421 e-STJ, a Procuradoria Federal Especializada
da FUNAI requereu a remessa dos autos à Justiça Federal, a qual seria
competente para julgamento, por se tratar de causa que envolve direitos
indígenas.
O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul
manifestou-se pela competência estadual do feito (fls. 424/428 e-STJ).
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RE no CC 149.964/MS fls. 4
Às fls. 440/441 e-STJ consta decisão do Juízo Estadual de
primeira instância determinando a remessa dos autos à Justiça Federal,
assim fundamentada:
Na denúncia, o órgão ministerial qualificou o crime dehomicídio por motivo torpe, vez que o acusado matoua vítima por vingança já que esta teria, supostamente,feito um “feitiço” em seu nome para causar-lhe amorte (f. 2).A testemunha João Goulart Marques declarou, emjuízo, que o crime ocorreu “...por causa de uma obrade feitiçaria que eles fizeram, falaram que ia matar elecom uma feitiçaria...” (f. 118)A testemunha Valdevino Arce Lopes afirmou, eminquérito policial, que “...Mário veio até eles, bastantenervoso, contando que Ângelo teria dito que ia matá-lo com um feitiço. Que Mario pediu ao irmão parabuscar as ferramentas pois o mesmo pretendia matarÂngelo, porém, acabaram encontrando-o na roça,pouco antes da casa. Que quando Ângelo os avistougritou “vou fazer feitiço pra você morrer Mário...” (f. 22)Por tais fundamentos, evidencia-se que a prática defeitiçaria foi o que motivou o suposto crime.Além disso, conforme estudo antropológico de f.376/406, verifica-se que dentro dos padrões culturaisindígenas, mais especificamente da etnia Kaiowá, aqual pertence o acusado, a feitiçaria exercesobremaneira influência, fazendo-lhe crer que atravésdo feitiço uma pessoa pode contrair doençasrepentinas, que trazem muito sofrimento e quemconduz uma morte lenta.Nesse sentido é o que ensina o antropólogo FabioMura, quando diz que Edoardo Galvão é um dospoucos autores que em 1943, enquanto realizava apesquisa junto aos Kaiowás e os Nandeva do MatoGrosso do Sul obteve acesso a algumas narrativasindígenas que contavam as experiências de índiosKaiowás que foram vítimas de feiticeiros (f. 396/397).Assim, manifesto está que a utilização de feitiço trata-se de técnica utilizada há décadas pela comunidadeindígena kaiowá, demonstrando, invariavelmente, oseu forte enraizamento na cultura silvícola.Deste modo, restando evidente que a motivação docrime narrado nos autos sofreu forte influência daprática dos costumes sedimentados pela culturaindígena, entendo que, no caso, compete à JustiçaFederal o processamento e julgamento desta AçãoPenal.
Remetidos os autos à Justiça Federal, abriu-se vista ao
Ministério Público Federal. Em parecer de fls. 444/449 e-STJ, o Procurador
da República oficiante manifestou-se pela competência estadual.
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RE no CC 149.964/MS fls. 5
Em seguida, o Juízo da 1ª Vara Federal de Dourados/MS
suscitou o presente conflito (fls. 464/468 e-STJ). Entendeu que, na espécie,
não estaria a caracterizada a disputa entre interesses indígenas, pois:
O interesse que a União tem em relação aosindígenas vincula-se à preservação de seuscostumes, crenças, tradições, línguas, organizaçãosocial e à proteção e garantia dos direitos pertinentesàs terras por eles tradicionalmente ocupadas, comoassentado no art. 213 da CF/88.
Dessa forma, os autos vieram ao Ministério Público Federal
para manifestação, acostada às fls. 479/491 e-STJ, na qual defendeu-se a
competência do Juízo Federal para processamento e julgamento da ação
penal.
No entanto, em decisão monocrática de fls. 494/496 e-STJ,
o Ministro Relator Felix Fischer conheceu do conflito para declarar a
competência do Juízo Estadual.
Assim, foi interposto agravo interno às fls. 503/516 e-STJ.
Contudo, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, desproveu o recurso. O acórdão recebeu a seguinte ementa:
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL.CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA.SUPOSTO CRIME DE HOMICÍDIO PRATICADOPOR ÍNDIO CONTRA ÍNDIO. INEXISTÊNCIA DEDISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS.APLICABILIDADE SÚMULA 140/STJ.PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTALDESPROVIDO.I - Nos termos do artigo 109, XI, da ConstituiçãoFederal, será da competência da Justiça Federalprocessar e julgar "disputa sobre direitos indígenas".II - Via de regra, crime praticado por índio ou contraele, será processado e julgado pela Justiça Estadual,salvo comprovação efetiva de que a motivação serefere a disputa de direitos indígenas.III - In casu, o suposto homicídio praticado por índiocontra outro não teve conotação de disputa de seusdireitos indígenas, não sendo relevante, para fins decompetência, a crença pessoal do autor que alega terpraticado o crimeem virtude de "feitiço", porquanto tal fato não atinge
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direitos coletivos, ou seja, o crime não foi praticadopara atingir a cultura indígena. IV - A jurisprudência deste col. Superior Tribunal deJustiça se firmou nesse sentido, somente havendointeresse da União quando existir relevante interesseda coletividade indígena. Precedentes.Agravo regimental desprovido.
Contra essa decisão, interpõe-se o presente recurso
extraordinário.
II – PRELIMINARMENTE:
A – D O PREQUESTIONAMENTO E OFENSA DIRETA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL :
Percebe-se, pela leitura do acórdão do STJ que o
fundamento para desprovimento do agravo interno teve como base
interpretação dos arts. 109, XI, e 231 da Constituição Federal, conforme se
verifica no trecho a seguir:
Efetivamente, a disputa de direitos indígenas previstano inciso XI do artigo 109 da Constituição Federal nãose resume as lides por terras, mas toda e qualquercontenda referente aos direitos previstos em rolexemplificativo no artigo 231 da CF: "organizaçãosocial, costumes, línguas, crenças e tradições, e osdireitos originários sobre as terras quetradicionalmente ocupam, competindo à Uniãodemarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seusbens".Concordo com a alusão do recorrente de que aafronta aos costumes indígenas deve ser processadopela Justiça Federal, contudo, in casu, não háqualquer violação aos costumes, crenças outradições.Tem-se suposto homicídio praticado por índio contraoutro, cuja motivação foi acreditar que a vítima lhefaria um "feitiço", fato que não ofende em nada acultura indígena, mas foi apenas o suposto móvel daprática delitiva. Inexiste, na hipótese dos autos, violação aos direitosindígenas, previsto na Constituição Federal ouEstatuto do Índio, de cunho coletivo que incorra eminteresse da União, capaz de acarretar odeslocamento da competência para a Justiça Federal.
Dessa forma, verifica-se o devido prequestionamento da
matéria constitucional.
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RE no CC 149.964/MS fls. 7
Também é possível constatar que a violação à Constituição
Federal, no caso, é direta, pois o acórdão teve como fundamento os
próprios dispositivos constitucionais mencionados, dando-lhes interpretação
muito restrita, o que resulta em afronta a normas constitucionais, nos termos
do art. 102, III, a, da CF.
B - D A REPERCUSSÃO GERAL:
Em relação ao requisito da repercussão geral, observa-se
que a matéria é relevante, pois trata da proteção da competência da Justiça
Federal para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas, nos
termos do art. 109, inciso XI, da Constituição Federal.
O caso em análise refere-se à questão diretamente ligada
aos costumes indígenas e à preservação da competência dos juízes
federais. Assim, resta claro o interesse público na efetiva aplicação da
norma constitucional ao caso, uma vez que o artigo 231 da Carta Magna
garante aos índios o reconhecimento e proteção de seus costumes e sua
crença. Ademais, o art. 109, XI, CF expressamente prevê a competência da
Justiça Federal para disputas que versem sobre direitos indígenas.
Desta forma, o tema debatido no presente conflito de
competência extrapola os interesses individuais das partes envolvidas no
litígio, afetando toda a comunidade indígena brasileira.
Importante ainda destacar que no RE no Conflito de
Competência nº 101.569, esse Superior Tribunal de Justiça admitiu o
processamento do recurso extraordinário, conforme demonstra a seguinte
decisão monocrática:
RE no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 101.569 -PR (2008/0270630-9)RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
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RE no CC 149.964/MS fls. 8
PROCURADOR : MARIA ELIANE MENEZES DEFARIASRECORRIDO : JUSTIÇA PÚBLICARECORRIDO : EM APURAÇÃOSUSCITANTE : JUÍZO FEDERAL E JUIZADOESPECIAL ADJUNTO DE APUCARANA -SJ/PRSUSCITADO : JUÍZO DE DIREITO DA VARACRIMINAL DE ORTIGUEIRA - PRDECISÃOTrata-se de recurso extraordinário interposto peloMINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, com fulcro no art.102, inciso III, alínea a, da Constituição Federal,contra v. acórdão proferido pela c. Terceira Seção doe. Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do em.Min. Jorge Mussi, cuja ementa ficou assim definida:"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA.HOMICÍDIO. VÍTIMA E AUTOR INDÍGENAS.MOTIVAÇÃO. VINGANÇA. INEXISTÊNCIA DELESÃO A DIREITOS INDÍGENAS. MOTIVAÇÃOESTRITAMENTE PESSOAL. SÚMULA 140/STJ.INCIDÊNCIA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUMESTADUAL.1. Compete à Justiça Federal processar e julgardelitos relacionados à disputa de direitos indígenas,conforme a dicção do art. 109, XI da CF, exigindo-selesão direta à organização social e cultural dos índios.2. Na espécie, o crime de homicídio teria sidopraticado por motivo de vingança, uma vez que osuposto autor intelectual da morte do chefe da tribo,fora expulso da comunidade pela suspeita de queseria o autor de furtos ocorridos nas proximidades daaldeia.3. Não se vislumbrando lesão a direitos indígenascoletivamente considerados, afasta-se a competênciada Justiça Federal, nos termos da Súmula n°140/STJ.4. Conflito conhecido para declarar a competência doJuízo de Direito da Vara Criminal de Ortigueira/PR, osuscitado." (fl. 85) Nas razões do presente recurso, orecorrente alega, preliminarmente, a existência derepercussão geral e, no mérito, aponta violação doart. 109, XI, da Constituição Federal. Aduz, emsíntese, que "se a disputa é conseqüência decomportamentos delituosos, tem-se que, em caso decrimes perpetrados contra índios, invoca-se acompetência federal eis que os bens atingidosmerecem a obrigatória proteção da União" (fl. 101).Contrarrazões não apresentadas (fl. 111).É o relatório.Decido.O c. Supremo Tribunal Federal já se manifestou nosentido de que a discussão quanto à competênciapara processar e julgar delito de homicídio, cujasvítimas e/ou autores sejam indígenas, possui naturezaconstitucional. Ilustrativamente:"COMPETÊNCIA CRIMINAL. Conflito. Crimepraticado por silvícolas, contra outro índio, no interiorde reserva indígena. Disputa sobre direitos indígenas
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RE no CC 149.964/MS fls. 9
como motivação do delito. Inexistência. Feito dacompetência da Justiça Comum. Recurso improvido.Votos vencidos. Precedentes. Exame. Inteligência doart. 109, incs. IV e XI, da CF. A competência penal da Justiça Federal, objeto doalcance do disposto no art. 109, XI, da Constituiçãoda República, só se desata quando a acusação sejade genocídio, ou quando, na ocasião ou motivação deoutro delito de que seja índio o agente ou a vítima,tenha havido disputa sobre direitos indígenas, nãobastando seja aquele imputado a silvícola, nem queeste lhe seja vítima e, tampouco, que haja sidopraticado dentro de reserva indígena."(STF, RE 419.528/PR, Tribunal Pleno, Rel. p/ acórdãoMin. Cezar Peluso, DJU de 09/03/2007).Assim, presentes os pressupostos de admissibilidade,admito o recurso extraordinário para que sejarealizado o julgamento sob o ângulo da repercussãogeral.Remetam-se os autos ao e. Supremo TribunalFederal.P. I.Brasília (DF), 04 de novembro de 2010.MINISTRO FELIX FISCHERVice-Presidente(Ministro FELIX FISCHER, 18/11/2010)
Assim, resta demonstrada, preliminarmente, a repercussão
geral do tema em análise.
III – DO MÉRITO:
O cerne da questão objeto do presente recurso é a definição
da competência para processamento de demanda em razão de homicídio e
outros crimes cometidos por indígena, após discussão em que a vítima
ameaçou enfeitiçar o réu.
A Constituição Federal, em seu art. 109, inciso XI, determina
que compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos
indígenas.
Em relação às disputas ocorridas na esfera criminal, como
no presente caso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal define a
fixação da competência da Justiça Federal quando o crime cometido por ou
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contra indígena tenha motivação relacionada à disputa de terras e à
questão relacionada a condição étnica, ou que envolva interesses da
comunidade indígena, conforme demonstra o seguinte julgado:
DIREITO PROCESSUAL PENAL. NULIDADE DOPROCESSO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL. ART. 109, XI, CF. HABEAS CORPUS.DECISÃO MONOCRÁTICA NO STJ. SÚMULA 691,STF. NÃO CONHECIMENTO. 1. A impetração destehabeas corpus objetiva sanar suposta ilegalidade napostura do relator de writ anteriormente aforadoperante o STJ que, após haver indeferido o pedido deliminar, se omitiu em apreciar o pedido dereconsideração da decisão indeferitória. 2. Háobstáculo intransponível ao conhecimento destehabeas corpus eis que, cientes da decisãomonocrática do relator do STJ, o impetrante deixou deinterpor agravo regimental, limitando-se a pedir areconsideração da decisão. 3. A Súmula 691, do STF,se fundamenta na impossibilidade de o STF, nojulgamento de ação de sua competência originária,suprimir a instância imediatamente anterior, eis quenão houve decisão colegiada no âmbito do SuperiorTribunal de Justiça. 4. Ainda que não fosse por taismotivos, seria hipótese clara de denegação da ordem,eis que não há elementos suficientes nos autos quepermitam aferir a alegada nulidade do ato derecebimento do aditamento à denúncia. 5. Acompetência da justiça federal em relação aosdireitos indígenas não se restringe às hipótesesde disputa de terras, eis que os direitoscontemplados no art. 231, da Constituição daRepública, são muito mais extensos. O fato dosacusados terem se utilizado da condição étnicadas vítimas para a prática das condutasdelituosas, o que representa afronta direta àcultura da comunidade indígena. 6. HC nãoconhecido.(HC 91313, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE,Segunda Turma, julgado em 02/09/2008, DJe-182DIVULG 25-09-2008 PUBLIC 26-09-2008 EMENTVOL-02334-02 PP-00389) [grifo nosso]
Como demonstrado, a conceituação da disputa por
direitos indígenas passa, necessariamente, pelos vetores apresentados
no art. 231 da Constituição Federal, que assim dispõe:
Art. 231. São reconhecidos aos índios suaorganização social, costumes, línguas, crenças etradições, e os direitos originários sobre as terras que
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tradicionalmente ocupam, competindo à Uniãodemarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seusbens.
Dessa forma, por expressa previsão constitucional, são
direitos indígenas sua organização social, seus costumes, crenças e
tradições.
Nessa ordem de ideias, verifica-se que a fixação da
competência federal pela disputa sobre direitos indígenas prevista no art.
109, XI, da Constituição Federal deve ser interpretada de acordo com os
parâmetros do art. 231 da Constituição Federal.
Sobre o tema, é valioso o entendimento de Manoel Lauro
Volkmer de Castilho1:
Como se pode perceber dos diversos arestos antesreportados, a questão passa a ser de acordo com afundamentação exposta pelos Relatores, de um ladoa identificação exata dos direitos e interesses dosindígenas albergados no texto do artigo 231 da CF, ede outro a figuração de sua efetiva violação.Mas, mesmo aceitando a discussão nesse limitadocampo, se é certo que a Constituição reconheceu aosíndios sua organização social, seus costumes,línguas, crenças e tradições bem assim os direitosoriginários sobre as terras que ocupam, é igualmentecerto que ela acolheu como valores os que essascategorias constitucionalizadas traduzem, não só naperspectiva do homem branco e sua legislação mastambém naquela do indígena com todas as suasdecorrências. Consequentemente, se o conceito dedisputa compreende toda e qualquer desavença entreíndios e não índios ou entre índios e índios, e sedireitos indígenas é expressão que necessariamentealcança os direitos internos das comunidades com osdesdobramentos próprios de sua cultura, tradição,língua e crenças - e não apenas os direitosrelacionados com a terra (aparentemente o padrãoúnico adotado no STF para apuração da lesão aosdireitos indígenas) - é preciso redimensionar tanto aleitura estrita do artigo 231 (aliás, efetivamenterecomendada pelo STF em vários casos de crimescontra a vida de índio) quanto a do inciso XI, do art.109 CF.Essa linha de compreensão é a interpretação queprevalecera na jurisprudência do STF assim que foi
1 CASTILHO, Manoel Lauro Volkmer de. A competência nos crimes praticados por ou contraindígenas. Revista AJUFERGS n.º 01, s.d, Porto Alegre/RS.
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promulgada a Constituição de 1988, levando amaioria dos seus juízes a ter como aceitável que ohomicídio de um indígena ofendia concretamente umdireito indígena porque lesava o seu bem jurídicomais importante. Por isso, conquanto posteriormentea orientação do tribunal tivesse reduzido a amplitudedesse entendimento para fixar como conteúdo dessesdireitos tão só aqueles referidos no art. 231 CF (navisão estrita da Corte), é certo que mesmo assim acompetência federal não poderia ficar limitada àshipóteses de disputa por terras porque os direitos doart. 231 CF na verdade vão além delas e podem terconteúdo diverso como agora interpretação daConstituição, pela conjugação dos seus arts. 109, XI,231 e 232, aponta com certeza para um conjunto dedireitos significativamente maior do que os que osprecedentes do STF reconheceram.E isso porque não se compreende que umadisputa versando indiretamente sobre terras(homicídio, por exemplo) possa ser consideradauma disputa sobre direitos indígenas quandooutra, dizendo respeito a relação entre pais efilhos índios, ou entre homem e mulher índios ounão índios, ou entre grupos ou comunidadesindígenas ou não indígenas versando costumes,tradições, religião ou valores tipicamenteindígenas, não o seja tão só porque não envolvemterras.Se é razoável aceitar a existência de disputa quandose controverte sobre terras porque os direitos sobreelas está assegurado aos indígenas na cabeça doartigo 231 da Constituição, do mesmo modo épossível identificar a existência de disputa sobredireitos indígenas quando o delito tem por objeto,direta ou indiretamente, uma controvérsia de fundocultural, religioso, ou sobre tradição ou costumesprotegidos no mesmo art. 231 da CF.Mostra-se, por exemplo, fácil perceber que umlugar sagrado segundo costumes indígenas, ouos animais aí existentes, ou seus símbolos,árvores ou águas, assim como seus hábitos e amemória dos ancestrais, podem ser ofendidos ouprofanados, constituindo crime em si ou resultarem reação delituosa e nessa circunstâncianinguém poderia contestar a óbvia violação dedireitos indígenas para o efeito discutido mesmoquando praticado por um índio e fora da reserva.Não existe uma razão sistemática para distinguiruma disputa originada por questão de terras dequalquer outra gerada por diferença de opiniãosobre costumes ou crenças ou sobre relaçõesentre parentes. Muito pelo contrário, tanto olegislador compreendeu essa preocupação quecriminalizou, por exemplo, a venda de bebidaalcoólica aos índios (art. 58, III da Lei n.º 6.001/73),assinalando claramente que há outros valores aserem defendidos justo porque há outros direitosindígenas que não o simples direito à terra.
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Também não parece existir razão ontológica paraessa distinção, uma vez que se deve respeitar com amesma intensidade os valores produzidos pelaorganização social, costumes, crenças, língua etradições dos índios, os quais foram formalmentereconhecidos pela Constituição, e, para chegar aconclusão diferente ou contrária, seria necessárioprocurar diferençar onde a Constituição não distinguiuou aplicar exclusivamente (com preconceitoetnocêntrico) critérios do homem branco para definir oque são direitos indígenas.
Desse modo, como expõe o autor, se há entendimento de
que um homicídio decorrente de disputa por terras seria da
competência federal, não há razões para que um homicídio com
motivação relacionada a cultura e crença tenha competência estadual,
pois tanto as terras quanto a cultura e a crença são direitos indígenas com
reconhecimento constitucional.
No caso dos autos, não há dúvidas de que a motivação do
crime de homicídio foi a ameaça feita pela vítima de que iria enfeitiçar o
acusado. Nesse ponto, o laudo antropológico demonstra a seriedade de
ameaças como essa para os Kaiowá (fl. 386 e-STJ):
Com efeito, de acordo com os costumes e valores dasociedade kaiowá em que Mário Vera e AngeloRoque Vilhalva [vítima] foram socializados, asmotivações para o crime, supostamente praticado porMário Vera são bastante graves colocando o acusadoem situação de defesa e não de ataque. Como seráexplicado nos próximos quesitos a prática dafeitiçaria é condenada pela religião e pela moralkaiowá. O feiticeiro é visto como uma pessoa cujoconvívio é impraticável devido sua natureza má.Segundo os entrevistados kaiowá da Aldeia Te'yikue,a pessoa kaiowá vítima de um feitiço temmotivações suficientes para temer pela própriavida e pela vida de seus familiares. (...)Assim é possível dizer que o acusado ao tempo dofato podia ter condições de compreender o caráterilícito do homicídio dentro de sua cultura, mas agiumovido pela forte emoção de se sentir ameaçadode morte certa todo o tempo. [grifos nossos]
Ademais, o Juízo Federal afirma que a competência seria
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RE no CC 149.964/MS fls. 14
estadual com base no depoimento do acusado, que afirmara que poderia se
livrar do feitiço com auxílio da religião e que o modus operandi da morte não
faria parte de ritual de cura (fl. 466 e-STJ). Contudo, o laudo antropológico
parece demonstrar situação diversa, conforme trechos abaixo (fl. 386 e-
STJ):
Além disso, outras alternativas kaiowá para aresolução desse conflito sem o uso da violência(reversão do feitiço através de outro rezador emigração) nas condições da reserva está muitodifícil de ser praticado (vide quesito 06). O mesmovale para as demais acusações de ter utilizadomeio cruel, motivo torpe, ocultação de cadáver eincêndio de patrimônio. Nestas práticas, oacusado foi guiado pelas técnicas kaiowá (comoserá melhor explicado no quesito 06) com a intençãode aniquilar definitivamente a ameaça de feitiçocontra sua pessoa e a de sua família. A cerca daacusação de corrupção de menores é necessário arealização de estudo etnográfico dos acusados paraverificar se no tempo do fato eram considerados peloskaiowá como menores (vide quesito 06).[grifos nossos]
A antropóloga responsável também alerta para o fato da
necessidade de presença de um intérprete para que o acusado compreenda
e seja compreendido perante o juízo. Desse modo, seu depoimento pode ter
sido prejudicado pela falta de entendimento das questões postas, ou pela
tentativa de negar os fatos, pois a conduta delituosa realizada é reconhecida
na cultura kaiowá como uma forma de eliminação de eventual feitiço.
É importante também destacar que a morte de um feiticeiro
reflete na coletividade, mesmo em se tratando de demonstrações de
desprezo em razão da condição da vítima, como afirmado no seguinte
trecho do laudo:
Ao sair da casa de Mário Vera, conversando comMarinalva foi-lhe perguntado se a mesma lembrava-se de mais detalhes sobre a morte do senhor ÂngeloRoque Vilhalva. Marinalva respondeu: “Não. Quandoseu Ângelo morreu ninguém ligou porque ele faziafeitiço mesmo, fez mal para muita gente.”Por estas afirmações, em mais de uma ocasião, feitapor Marinalva e também com outras pessoasentrevistadas como Maria Celina, 36 anos, kaiowá,recepcionista do Posto de Saúde da Aldeia Te'yikue,que também confirmou que muitas pessoas na aldeia
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acusava o senhor Ângelo Roque Vilhalva de serfeiticeiro e de ter matado muita gente com seusfeitiços, é possível afirmar que não apenas oacusado Mário Vera, mas também outras pessoasda comunidade identificavam a vítima comofeiticeiro.[grifos nossos]
Dessa forma, em se tratando de crime (disputa) cometido
em razão de elemento da crença indígena (direito indígena), estão
presentes os requisitos previstos no art. 109, XI, e 231, ambos da
Constituição Federal, para que o delito seja processado perante a Justiça
Federal.
No entanto, a Terceira Seção do Superior Tribunal de
Justiça entendeu que não houve, in casu, afronta à cultura indígena, mas
violação do direito à vida da vítima e que:
O precedente citado pelo Agravante proferido nojulgamento do HC 91.313, pelo Supremo TribunalFederal, de relatoria da em. Ministra Ellen Gracie, nãose aplica ao caso concreto, pois naquele feito forampraticados diversos crimes contra vários índiosintegrantes de uma mesma reserva em razão dacondição étnica (...)
Entretanto, a distinção realizada entre o caso sob análise e
o precedente não encontra amparo constitucional.
Como já demonstrado, a fixação da competência se dá com
fundamento nos vetores apresentados no art. 231 da Constituição Federal,
não havendo distinção a ser feita entre a lide que atinge direito individual de
indígena ou da coletividade.
Na espécie, não há como o delito ser tratado da mesma
maneira que um crime comum, já que sua motivação está
fundamentalmente assentada em crença indígena.
O acórdão combatido, ao limitar a competência federal em
razão de ausência de ofensa a direito coletivo, afronta ao art. 109, XI, da
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Constituição Federal, pois não há qualquer disposição constitucional que
limite o processamento do feito perante a Justiça Federal apenas quando há
ofensa a direito coletivo indígena.
Ante o exposto, a competência para a processamento da
demanda é do Juízo Federal da 1ª Vara de Dourados – SJ/MS.
IV - DO PEDIDO:
Ante o exposto, o Ministério Público Federal requer a
admissão do Recurso Extraordinário e seu provimento.
Brasília, 10 de abril de 2017.
MARIA HILDA MARSIAJ PINTOSUBPROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA
/GMS
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Superior Tribunal de Justiça
RE no AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 149.964 - MS (2016/0309631-2)
RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINSRECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL RECORRIDO : MARIO VERA ADVOGADO : DEFENSORIA PUBLICA DO MATO GROSO DO SUL INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO
GROSSO DO SUL EMENTA
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE ATENDIDOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO ADMITIDO.
DECISÃO
Vistos.
Cuida-se de recurso extraordinário interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, com fundamento no art. 102, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, contra acórdão da Terceira Seção desta Corte ementado nos seguintes termos (fl. 530 e-STJ).
"PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SUPOSTO CRIME DE HOMICÍDIO PRATICADO POR ÍNDIO CONTRA ÍNDIO. INEXISTÊNCIA DE DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. APLICABILIDADE SÚMULA 140/STJ. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
I - Nos termos do artigo 109, XI, da Constituição Federal, será da competência da Justiça Federal processar e julgar "disputa sobre direitos indígenas".
II - Via de regra, crime praticado por índio ou contra ele, será processado e julgado pela Justiça Estadual, salvo comprovação efetiva de que a motivação se refere a disputa de direitos indígenas.
III - In casu , o suposto homicídio praticado por índio contra outro não teve conotação de disputa de seus direitos indígenas, não sendo relevante, para fins de competência, a crença pessoal do autor que alega ter praticado o crime em virtude de "feitiço", porquanto tal fato não atinge direitos coletivos, ou seja, o crime não foi praticado para atingir a cultura indígena.
IV - A jurisprudência deste col. Superior Tribunal de Justiça
Documento: 76419353 - Despacho / Decisão - Site certificado - DJe: 18/09/2017 Página 1 de 2
Superior Tribunal de Justiça
se firmou nesse sentido, somente havendo interesse da União quando existir relevante interesse da coletividade indígena. Precedentes."
Agravo regimental desprovido."
Não foram opostos embargos de declaração.
O recorrente alega ofensa aos arts. 109, XI e 231 da Lei Maior. Sustenta, em síntese, além de repercussão geral, a competência da Justiça Federal, para julgar os crimes voltados à proteção dos direitos e interesses de comunidades indígenas.
Não foram apresentadas contrarrazões.
É, no essencial, o relatório.
Presentes os pressupostos de admissibilidade (tempestividade, regularidade formal, interesse recursal, legitimidade, cabimento e prequestionamento), nos termos do art. 1.030, inciso V, alínea "a", do Código de Processo Civil, ADMITO o recurso extraordinário.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília (DF), 12 de setembro de 2017.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS Vice-Presidente
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