“pare, que estou filmando!” corporeidade e produção … · uma relação por muitas vezes...

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Vdcvxvcxvxvxvxvxvxvxx Belém, vol. 1, n. 2, p. 95-113, julho/dezembro 2015 “Pare, que estou filmando!” Corporeidade e produção cinematográfica nas relações entre a câmera e o cacetete. Igor Karim 1 El propósito que lo guiaba no era imposible, aunque sí sobrenatural. Quería soñar un hombre: quería soñarlo con integridad minuciosa e imponerlo a la realidad. (Jorge Luis Borges, Las Ruinas Circulares, 1941) Ao perscrutar pelos rumos do cinema como operador de câmera em meu primeiro trabalho num documentário 2 , me deparei com uma certa inépcia em enquadrar de forma satisfatória os entrevistados e fazer boas imagens. A câmera simplesmente escorregava pelos meus dedos. Era muito pequena e os espaços entre os botões e controles de regulagem eram curtos demais para minhas mãos, que simplesmente não se acomodavam ao design da câmera. Ela também não possuía um visor de LCD que mudasse de ângulo ou posição, então para fazer um plano em contra-plongê 3 precisei ficar de cócoras, com a câmera entre as pernas, pescoço retorcido e cabeça meneando para o lado, sem nenhum apoio, me controlando para que o tremor e os espasmos de meu corpo tenso não atrapalhassem o enquadramento. Todo encolhido em minha desgraça, tentativa após tentativa, não conseguia gravar imagens satisfatórias. Este exercício de contorcionismo me seria cômico se não fossem as duras críticas da diretora, extremamente insatisfeita com o meu trabalho, com o dedo em riste, esbravejando em dialeto vienense. Mas mesmo quando finalmente conseguia estabilizar a imagem, minha posição era tão contorcida e mirabolante que as pessoas filmadas simplesmente começavam a gargalhar. O 1 Mestre em Antropologia Visual e de Mídia pela Universidade Livre de Berlin (FU Berlin), Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília UnB e investigou processos de engajamento material e técnicas corporais entre operadores de câmera no Brasil, Alemanha e Áustria. Atualmente trabalha com metodologia de pesquisa audiovisual e técnicas de filmagem em contexto etnográfico. É membro da Society for Visual Anthropology e da Deutscher Medieverbund. Possui três filmes etnográficos produzidos, Tinderlove (2014), Die drei körper kameras (2014) e Traumgefängnis (2015), contatos [email protected] 2 Tinderlove (2014) foi gravado em Vienna. 3 Ângulo de câmera onde se filma de uma posição inferior (no meu caso, do chão), apontando a câmera para cima.

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Vdcvxvcxvxvxvxvxvxvxx Belém, vol. 1, n. 2, p. 95-113, julho/dezembro 2015

“Pare, que estou filmando!” Corporeidade e produção cinematográfica nas

relações entre a câmera e o cacetete.

Igor Karim 1

El propósito que lo guiaba no era imposible,

aunque sí sobrenatural. Quería soñar un hombre:

quería soñarlo con integridad minuciosa e

imponerlo a la realidad.

(Jorge Luis Borges, Las Ruinas Circulares, 1941)

Ao perscrutar pelos rumos do cinema como operador de câmera em meu primeiro

trabalho num documentário2, me deparei com uma certa inépcia em enquadrar de forma

satisfatória os entrevistados e fazer boas imagens. A câmera simplesmente escorregava pelos

meus dedos. Era muito pequena e os espaços entre os botões e controles de regulagem eram

curtos demais para minhas mãos, que simplesmente não se acomodavam ao design da câmera.

Ela também não possuía um visor de LCD que mudasse de ângulo ou posição, então para

fazer um plano em contra-plongê3 precisei ficar de cócoras, com a câmera entre as pernas,

pescoço retorcido e cabeça meneando para o lado, sem nenhum apoio, me controlando para

que o tremor e os espasmos de meu corpo tenso não atrapalhassem o enquadramento. Todo

encolhido em minha desgraça, tentativa após tentativa, não conseguia gravar imagens

satisfatórias. Este exercício de contorcionismo me seria cômico se não fossem as duras

críticas da diretora, extremamente insatisfeita com o meu trabalho, com o dedo em riste,

esbravejando em dialeto vienense.

Mas mesmo quando finalmente conseguia estabilizar a imagem, minha posição era tão

contorcida e mirabolante que as pessoas filmadas simplesmente começavam a gargalhar. O

1 Mestre em Antropologia Visual e de Mídia pela Universidade Livre de Berlin (FU Berlin), Bacharel em

Ciências Sociais pela Universidade de Brasília – UnB e investigou processos de engajamento material e técnicas

corporais entre operadores de câmera no Brasil, Alemanha e Áustria. Atualmente trabalha com metodologia de

pesquisa audiovisual e técnicas de filmagem em contexto etnográfico. É membro da Society for Visual

Anthropology e da Deutscher Medieverbund. Possui três filmes etnográficos produzidos, Tinderlove (2014), Die

drei körper kameras (2014) e Traumgefängnis (2015), contatos [email protected]

2 Tinderlove (2014) foi gravado em Vienna.

3 Ângulo de câmera onde se filma de uma posição inferior (no meu caso, do chão), apontando a câmera para

cima.

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efeito tragicômico dos tropeços da câmera em minha anatomia corporal foi somente

solucionado quando acoplei um acessório que se parece com uma alça, que fica por cima do

corpo da câmera, então aumentando a amplitude de possibilidades de segurá-la. Assim

poderia manejá-la por esta alça, sem precisar contorcer o pescoço, mantendo a coluna ereta e

estabilizando melhor as pernas. Desde então, as pessoas pararam de rir e o filme prosseguiu

tranquilamente, acatando os desígnios da diretora.

Pois bem. Ao introduzir este artigo expondo esta anedota, pretendo chamar atenção a

uma relação por muitas vezes não explícita nas imagens de um filme documental ou

etnográfico, visto que é nos bastidores que o efeito dos gestos, posições corporais e tipos de

câmeras utilizadas na gravação exercem influência sobre as pessoas e as situações sendo

filmadas. A partir do conceito de técnicas do corpo de Marcel Mauss (2003) e usando a

etnografia de um operador de câmera e suas práticas, durante a filmagem de um documentário

de guerrilha4 sobre protestos de 2012 em Bucareste, pondero que os gestos corporais

acoplados ao design da câmera e sua operação são um modo de comunicação sofisticado que

elucidam reações e respostas específicas nas pessoas e compõem uma estratégia de

engajamento no campo. Assim desejo “(…) explorar não tanto a relação entre antropologia e

imagem, mas aquela entre etnografia e filmmaking.” (Sautchuck, 2012, p. 409)

Retorno então à minha experiência, que posteriormente virou fascínio e aquela câmera

– a mesma a qual reclamei que era uma porcaria por ser pequena demais – que virou fetiche,

meu companheiro favorito, meu parceiro de trabalho.5 Foi com ele que confeccionei

posteriormente de uma etnografia de operadores de câmera que foi mobilizada justamente por

estas anedotas em meu primeiro trabalho. Minha dificuldade no início de minha carreira como

operador de câmera me apontou que o ato de filmar não é meramente o uso de uma câmera

com o fim de captar imagens, assim como um utensílio inerte utilizado para expressar meus

desejos. O ato de filmar é (ou pode ser), primeiramente, uma forma de aprendizado. Evadindo

o cunho tautológico desta colocação6, o aprendizado que me refiro é de nossos próprios

gestos, de nossas amplitudes de movimentos, de nossos corpos (e outros corpos possíveis).

Segundo a tradição das técnicas do corpo de Mauss ([1950] 2003), a maneira a qual o

4 Produções cinematográficas básicas de baixo orçamento que utiliza locações públicas ou privadas sem

autorização, assim beirando a ilegalidade. (Gerrasio, 2013)

5 Tão cara minha câmera, é sentimentalmente chamada de Fido e me refiro a “ela” como uma pessoa. Isso não

é incomum nos acoplamentos técnicos entre corpo e artefato.

6 As escolas e faculdades de cinema e fotografia estão aí para nos mostrar que existe um corpo extenso de

conhecimento sobre a arte de utilizar uma câmera e produzir imagens.

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corpo se expressa por meio de ações não é biologicamente dada, ou circunscrita

inexoravelmente a uma capacidade inerente de nossa anatomia. A forma como interagimos

fisicamente por gesto e movimento são nos educadas socialmente, e nossas ações corporais

são “(...) como uma série de atos montados, e montados no indivíduo não simplesmente por

ele mesmo, mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual ele faz parte, no lugar

que ele nela ocupa...” (Mauss, 2003, p. 408) Assim são indissociáveis o corpo, a memória e o

aprendizado, pois nossos gestos, por mais simples que sejam, são imbuídos de significados, o

que faz a análise da técnica do corpo como uma forma extremamente profícua de se implodir

a dicotomia entre natureza e cultura.

Avançando nesta direção, seu discípulo Leroi-Gourhan ([1964] 1993) consegue

estabelecer uma genealogia dos atos técnicos do corpo e propõe que o corpo possui modos

específicos de memorizar o aprendizado técnico apreendido, que não perpassam processos

lógicos mentais. Desta forma, os gestos do corpo são educados por vias peculiares que

possuem uma dinâmica própria, “a ce point, il semble que le social et le physiologique entrent

directement en contact, et s’agregent de telle maniere qu’il devient impossible d’abstraire une

quelconque instance collective de son incarnation dans une conduite singuliere, concrete et

vivante.” (Karsenti, 2008, p. 232) As particularidades deste tipo de aprendizado engajado,

ancorado na experiência sensorial e corporal, têm gradativamente cativado a curiosidade

acadêmica. A ideia de se “aprender pelo corpo” (Stoller, 1997) se torna vocal,

contemporaneamente ao trabalho de Tim Ingold (2000) sobre habilidades técnicas, que são

apreendidas através de uma educação da atenção para a perceber o ambiente de uma maneira

específica, dentro de sistemas de aprendizado prático. (Ingold, 2000, p.37)

Assim, dentro da etnografia de operadores de câmera, apesar de o processo de filmar

possuir como raison d'être produzir imagens, os movimentos, gestos corporais, falas,

percepções do ambiente e posicionamentos da câmera não necessariamente são intrínsecos a

esta função utilitarista. Estes movimentos foram desenvolvidos através de uma exploração

das diversas formas de se engajar com o ambiente e se tornaram uma forma de comunicação

interpessoal e negociação de controvérsias (as quais exporei a frente) entre o cineasta e as

pessoas as quais ele interagia, por mediação da câmera. Portanto em certos exemplos, a

intencionalidade de se operar a câmera não é a geração de imagens per se, mas sim acessar a

amplitude de possibilidades relacionais que o ato de portar uma câmera pode oferecer ao seu

portador. Afinal, os motivos que levam alguém a usar uma câmera e registrar imagens não são

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simples, como David Macdougall salienta, “exactly why one should wish to show others what

one has seen is another matter Or is it perhaps to transcend oneself, to overflow one's self-

containment?” (Macdougall, 2005, p. 27)

Este tipo de aprendizado corporal aplicado para a produção filmográfica se co-

desenvolveu em relação à progressão tecnológica dos designs da câmeras, pois de caixas

pesadíssimas e difíceis de se manusear, elas se tornaram gradativamente instrumentos leves e

pequenos de alta tecnologia. O melhor exemplo desta cooperação é o de Dziga Vertov e seu

Kino Pravda (Vertov, 1988). Seu filme mais famoso Um homem com uma câmera (1927)

mostra uma de suas principais teorias de cinema, a qual o filmmaker deve intervir o mínimo

possível com os eventos a se desenrolar na frente da câmera. Para isso ele precisou

desenvolver soluções para filmar as cenas tecnicamente complexas, levando em conta suas

limitações devido à tecnologia das câmeras na época, como por exemplo, criar uma câmera

móvel ao filmar do topo de uma caçamba de caminhão. (Stallforth, 2013, p.8)

Em 1923, Eastman Kodak foi a primeira companhia a produzir rolos de filme 16mm,

que era muito mais baratos que os de 35mm convencionais. A partir disso, companhias como

a Bolex produziram câmaras amadoras com o novo formato, que eram muito mais leves que

as 35mm normalmente utilizadas. Posteriormente o sistema foi aperfeiçoado pela Arnold &

Richter Cine Teknik, conhecida como ARRI hoje em dia, para que estas câmeras fossem

usadas na Segunda Guerra Mundial para fotografias aéreas. (Stallforth, 2012, p. 9) Foi com

esta nova tecnologia que Jean Rouch conseguiu desenvolver o Cinema Verité, com base no

conceito de Cinema Direto, do diretor canadense Michel Brault.7

Ao explorar as mudanças tecnológicas que permitiram dar mais movimento à câmera

em seus filmes, Rouch desenvolveu um fascínio pela intimidade corporal e o efeito creativo

que a câmera exercia sobre sua consciência, ao ponto de eleger este processo de filmar como

modo privilegiado do fazer etnográfico. “With a cine-eye and a cine-ear, I am a cine-Rouch in

a state of cine -trance in the process of cine -filming. So that is the joy of filming , the cine -

pleasure.” (Rouch, 2003, p.150) Assim, Rouch institui as bases fenomenológicas de sua

subjetividade dentro do processo de operar uma câmera e as diversas formas de se relacionar

que este processo lhe permitiu. “Leading or following a dancer, priest, or craftsman, he is no

7 Il faut le dire, tout ce que nous avons fait en France dans le domaine du cinema -vérité vient de l 'ONF

(Canada). C'est Brault qui a apporte une technique nouvelle de tournage que nous ne connaissions pas et que

nous copions tous depuis . D'ailleurs, vraiment, on a la "brauchite", ça, c'est sur ; même les gens qui

considerent que Brault est un emmerdeur ou qui étaient jaloux sont forcés de le reconnaitre. (Rouch, 1963)

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longer himself, but a mechanical eye accompanied by an electronic ear. It is this strange state

of transformation that takes place in the filmmaker that I have called, analogously to

possession phenomena, “cine-trance.” (Rouch, 2003 , 39)

Inspirado em Rouch, surge o trabalho pedagógico de Herb Di Gioia (Grimshaw, 2006),

que ensinava seus estudantes de antropologia visual a se atentarem aos aspectos físicos e

relacionais do encontro filmográfico como uma forma de coreografia complexa dos sentidos e

da consciência (Grimshaw & Ravets, 2009, p. 542). Era central na concepção de cinema

observacional de Di Gioia a operação da câmera, usando o corpo e se movendo em sincronia

com seus atores, pois esta técnica envolvia uma intensa operação sensorial de aprendizado,

desenvolvimento e consciência sobre outras formas de comunicação não-verbais e corporais

estabelecidas dentro desta relação com os atores. Assim, “to attend to the world

observationally meant to shift attention towards one’s body and to move with and around

one’s subjects, allowing one’s body in action or repose to become part of filmic space.”

(Grimshaw & Ravetz, 2009, p. 542). Desta forma, os cineastas eram convidados a abandonar

scripts e confiar em seu conhecimento corporal e seus sentidos para conduzir

improvisadamente a produção do filme.

Um processo, três corpos, uma imagem.

Se a câmera possui este poder de transformar o seu operador, trazendo novos modos

de percepção e intencionalidade, ela consequentemente transforma os tipos de relação entre o

cineasta e as pessoas sendo filmadas. Logo, o filme funciona como o registro imagético desta

relação, onde câmera afeta cameraman, que afeta o sujeito ou o processo a ser filmado, que

novamente afeta a câmera e o cameraman, numa infindável dança cuja coreografia é criada

espontaneamente. Rouch reconhece que durante as filmagens de Tourou et Bitti: Les

Tambours d'Avant (1971), ao tentar sem sucesso filmar um ritual de possessão, após dias

esperando pela possessão dos espíritos, decidiu filmar os tocadores de tambor que os espíritos

finalmente se dispuseram a incorporar no terreiro (Russel, 1999, p. 220). Rouch assim entende

que esta relação em si é privilegiada como um modo de engajamento etnográfico. “In the area

of ethnographic film, this technique seems to me to be particurlarly useful because it allows

the cameraman to adapt itself to the action as a function of space, to generate reality rather

than leave it simply to unfold before the viewer” (Rouch, 2003, pp. 38).

Claudine de France, cineasta e teórica da antropologia visual, seguindo a tradição de

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estudar de Mauss e Leroi Gouhan, cria uma metodologia de estudos que reconhece o grande

potencial do filme etnográfico como ferramenta para o estudo das formas de ação e técnicas

corporais, pois na cinematografia, ao contrário da escrita, é possível subverter os critérios que

a associação mental separa dos elementos envolvidos em uma ato técnico, por exemplo:

separar em partes a anatomia de um corpo que segura uma bengala enquanto anda na rua. No

cinema, ou na imagem em movimento, é possível romper com estes limites conceituais entre

mão e bengala, ou corpo e o chão e se ater ao processo, ao “ (…) continuum spatial d' agents

humains et materiels” (France 1983: 166).

Isso permite, segundo De France, perceber que um filme, no que tange a produção da

fotografia, não é somente a captação de imagens produzidas por ações de atores, mas – o que

este artigo pretende demonstrar – um registro de um encontro entre as ações e técnicas

corporais da pessoa que filma com a dos atores que atuam, mostrando assim que a separação

entre estas duas performances é, acima de tudo, puramente conceitual (France, 2012 e

Sautchuck, 2012). A partir do conceito de Profilmie, De France reconhece que um filme é o

registro do encontro de dois sistemas de técnicas que se tornam um, pois os termos desta

relação se afetam intimamente.

Manière plus ou moins consciente dont les personnes filmées se mettent en scène,

elles-mêmes et leur milieu, pour le cinéaste ou en raison de la présence de la caméra.

Fiction inhérente à tout film documentaire, qui revêt des formes plus ou moins aiguës

et décelables. Notion empruntée à Etienne Souriau (1953) mais qui, étendue au film

documentaire, concerne non seulement les éléments du milieu intentionnellement

choisis et disposés par le réalisateur en vue du film, mais aussi toute forme spontanée

de comportement ou d’auto-mise en scène suscitée, chez les personnes filmées, par la

présence de la caméra.

(De France, 1989, p. 373)

Pretendo ilustrar, através de um exemplo etnográfico, como que um cineasta utiliza a relação

com sua câmera para criar situações de profilmie, cuja finalidade não é diretamente o registro

de imagens, mas sim poder garantir o acesso a espaços e resguardar a integridade física do

filmmaker e de seu equipamento. Para tal, utilizarei a experiência de um operador de câmera

durante a filmagem de um documentário em situações de risco pessoal. Neste processo, ele

desenvolveu instintivamente técnicas corporais específicas e intimamente inspiradas pelo uso

de sua câmera, as quais mediaram sua segurança em situações perigosas perante possíveis

agressores.

Vlad Petri é atualmente considerado como um dos expoentes do novo cinema romeno

(Brooks, 2014) e foi meu grande parceiro nesta etnografia, pois foi o colaborador que

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conseguiu exercer melhor uma meta-cognição sobre os processos técnicos envolvidos no ato

de operar sua câmera. Seu trabalho de maior prestígio se chama Bucuresti, Unde Esti (2014)8,

um filme sobre os protestos em 2012 em Bucareste, em resposta à implementação do modelo

neoliberal no sistema de saúde que pretendia cortar verbas públicas para privatizar hospitais e

consequentemente desregulamentar os planos de saúde privados. Estas medidas mobilizaram

uma onda de protestos no país, que de tão violentos causaram a renúncia do Primeiro-Ministro

Emil Boc e a demissão do general comandante da tropa de choque romena – ou Jandarmeria

– por abuso da violência e da autoridade policial.

No decorrer do processo de confecção da etnografia, ao analisar o seu filme usando

como aporte teórico os autores acima citados, as imagens deixaram de criar o efeito de

imersão no tempo e no espaço diegético e a construção da narrativa (ou não-narrativa) dos

personagens. Elas se transformaram em uma espécie de registro geográfico do wayfaring9 de

Vlad e sua Canon no espaço, algo como uma cartografia dos processos técnicos engajados10

e

como as pessoas e o ambiente vão respondendo ao processo e o modificando sucessivamente.

Assim as imagens são um vestígio das linhas tracejadas pelo movimento desta entidade, que

podemos considerar como um cyborg,11

pelo espaço e cuja presença em conjunto com a dos

atores e os eventos filmados é o que Macdougall chama de resíduo na imagem (2005, p. 26)

Pensando neste resíduo-registro na imagem, gostaria assim de propor um pequeno exercício:

Peço aos leitores que imaginem esta cena como se fossem com eles mesmos, segurando a

câmera ao registrar um filme.

É noite. O caos é generalizado. Rojões explodindo no chão, muita fumaça. No ar, ecoa

o rugido estrondoso de uma multidão enfurecida, rugido este que embala os movimentos

bruscamente sincronizados da tropa de choque, que se organizam em fileiras para conter os

8 Em inglês se chama Where are you, Bucharest? (2014) Não há versão traduzida para o português.

9 Conceito muito interessante de Ingold (2011) que define um modo rizomático (pensando Deleuze) de se

percorrer a vida. No wayfaring o objetivo não é traçar um percurso de A até B. O movimento em si é um

modo de vida, vagando, de evento a evento, numa jornada contínua e infindável.

10 Grimshaw & Ravetz (2009) também reconhecem a relevância do processo de educação da atenção e

skillment durante a pesquisa de campo e a produção de cinema observacional, porém não se aprofundam na

relação entre fazer vídeo e o corpo, mas na análise das imagens. Para uma discussão mais aprofundada sobre

a noção de educação da atenção e dos sentidos, ver Ingold (2000) e Grasseni (2007)

11 Aqui parto do sentido de uma entidade onde a pele é uma fronteira conceitual do corpo, assim podendo se

agregar artefatos técnicos e admitir a existência de uma anatomia corporal híbrida, como proposto nas

ciências sociais por Donna Haraway (1985), e desenvolvido por (Latour, 1994, 2008, 2009). No vídeo-arte a

questão do híbridismo e pós-humanismo também foram abordadas por Bill Viola (1995). Um estudo

profundo das relações humano-artefatos sob o arcabouço das teorias cyborg pos-humanistas foi feito por

Pereira (2013) em sua bela tese de doutoramento.

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manifestantes. O som das botas no asfalto é o mesmo de cascos de cavalos, entremeados com

os urros e gritos dos policiais que fazem um esforço descomunal para conter massa de corpos

com seus escudos e liberar o acesso da rua. Corpos se chocam entre arremessos de paus,

pedras, bombas de diversos efeitos e balas de borracha. Correria. A câmera treme muito em

suas mãos, você não para de se movimentar no meio da loucura, mas precisa continuar a

filmar. De repente, você consegue furar o cordão de isolamento e percebe que há um policial

ferido no chão, a uns 100 metros. Mais correria. Você chega perto dele. A lente foca nos olhos

do policial, que expressam pavor, mirando confuso a mancha vermelha em seu próprio peito,

enquanto é arrastado por dois colegas. Com nariz vertendo profusamente sangue, sem forças

em suas pernas, é carregado por um caminho perfilado de soldados, que um por um

testemunham descrentes sua própria fragilidade como opressores, enquanto bloqueiam os

manifestantes que estão parados fora da rua. Nesta hora, um destes soldados que socorre o

policial ferido se dá conta de que sua total desgraça está sendo filmada. A reação é óbvia, grita

com todas as forças: “Pare a filmagem!” Em poucos segundos um par de mãos te agarra

violentamente e o empurra para fora do cordão de isolamento. Outra mão tenta agarrar a

câmera, mas você consegue rapidamente se esquivar, põe a câmera pendurada no ombro e se

mete no meio do anonimato da multidão.

Foto 1 – Policial ferido sendo socorrido por colegas.

Fonte: Vlad Petri (2012)

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A cena exemplifica bem um tipo de relação recorrente no trabalho de Vlad, a qual

pretendo me debruçar com cuidado neste texto: esta perigosa simbiose com a Jendarmeria,

que ora permite que ele tenha acesso aos espaços e eventos, e ora tenta violentamente reprimir

o trabalho de Vlad, seja por ele ser testemunha de algum abuso de autoridade, ou seja porque

ele está expondo a própria fragilidade dos policias. Estes trâmites entre Vlad e os soldados da

tropa de choque são negociados em segundos, recorrendo a gestos, fintas, posicionamentos do

corpo e principalmente da câmera em relação ao corpo, e estão constantemente sendo

ajustados, de acordo com a sensibilidade dos atores envolvidos, assim fazendo uma alusão ao

que Rouch chama de “um estranho tipo de coreografia”:

But paradoxically it is due to this equipment and this new behavior (which

has nothing to do with the observable behavior of the same person when he is

not filming) that the filmmaker can throw himself into a ritual, integrate

himself with it, and follow it step-by-step. It is a strange kind of

choreography, which, if inspired, makes the cameraman and soundman no

longer invisible but participants in the ongoing event.

(Rouch, 2003,p. 99)

Pego entre o escudo e a lente

Vlad cobriu durante seis meses o percurso dos protestos. Sozinho com sua

câmera, uma Canon 5D Mk II,12

não usou tripés, apoios ou nenhum equipamento para

estabilizar as imagens. Para a captação áudio usou o microfone original da câmera e as vezes

um gravador Zoom H4N acoplado a câmera. Usando um estilo Run and Gun13

de gravação,

ele constantemente se colocou em situações tensas onde precisou mediar sua segurança

pessoal e a integridade de seu equipamento enquanto captava as imagens, geralmente durante

os conflitos entre polícia e manifestantes ou tumultos entre representantes de partidos

políticos rivais.

O filme é composto de cenas de batalhas campais, brigas, discussões calorosas e

muitas “correrias”, onde a imagem treme bastante e nos sentimos estar dentro da situação, já

12 Uma câmera fotográfica profissional DSLR (Digital Single Lens Reflex) que também grava vídeo.

13 Jargão usado por documentaristas para descrever produções filmográficas que não usam uma equipe, sem

muito tempo para filmar, onde o câmera precisa correr

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que o ângulo da câmera é sempre subjetivo.14

Estas cenas caóticas são muito bem mescladas

com alguns monólogos e diálogos dos personagens, os quais Vlad estabelece uma certa

intimidade ao longo dos meses. Assim, o filme possui um ritmo interessante que explora esta

tensão entre os momentos mais dramáticos, que nos trazem próximos à ação, e o contraste das

cenas com diálogos, takes longos e silêncio, o qual nos distancia como observadores. Nos

takes longos, Vlad por vezes explora a reação que seus personagens têm perante a câmera, ao

fazerem poses estáticas aguardando o momento da fotografia. Como porém ele está gravando

vídeo, as pessoas ficam suspensas, quietas, olhando para a lente, aguardando um “click” que

nunca vem para poder desfazer a pose. Brincar com esta ilusão performática é uma tática que

Vlad utiliza em profundidade durante as filmagens e voltarei a abordar esta relação entre o

design da câmera e a resposta das pessoas mais à frente no texto.

Para produzir o documentário, Vlad precisou ter livre acesso aos protestos, os quais

tinham uma a anatomia básica: um espaço dentro da zona urbana com pelo menos dois

grupos, que podem ou não ser antagônicos – os manifestantes e os policiais. Os policiais a

princípio, promovem a segurança das pessoas, do patrimônio público e privado e garantem

que a ordem pública e o funcionamento dos serviços públicos não sejam interrompidos pelos

protestos. Eles também resguardam a liberdade de imprensa, permitindo que indivíduos

cubram os eventos e divulguem as imagens. Já os manifestantes teoricamente possuem o

direito de se manifestar, desde que respeitando as leis. Caso o curso dos protestos se torne

violento e a polícia reprima os manifestantes, se dispõem assim no espaço os dois grupos

antagônicos, geralmente um de frente para o outro, no que caracteriza uma típica situação de

confronto entre as partes.

14 Ou Point Of View (POV) em inglês.

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Foto 2 – Conflito entre manifestantes e a Gendarmeria na Piaţa Universităţii.

Fonte: Ovidiu Micsik (2012)

A foto anterior foi tirada usando um enquadramento das costas dos policiais,

registrando os manifestantes pela frente. Para tal o fotógrafo precisou estar no que chamarei

de zona de segurança ou lado de dentro, logo atrás dos policiais. Esta zona é criada durante a

situação de embate, quando se posicionam em lados opostos a massa de manifestantes e a

primeira fileira de soldados do batalhão de choque, separados por um espaço de intervalo.

Geralmente munidos de escudos e cacetetes, os policiais se movem de maneira organizada e

calculada, empurrando os manifestantes para trás, assim também deslocando a zona de

intervalo e criando um outro espaço atrás da fileira policial, que se torna uma área “segura”.

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Figura 3 – Enquadramento das costas dos policias, se posicionando dentro do espaço do “lado de dentro”

Fonte: Vlad Petri (2013)

Do lado de dentro se encontram tanto os reforços policiais, viaturas, ônibus e caminhões que

funcionam como prisões temporárias para os desafortunados que caem sob o jugo dos

Jandarmes, assim como ambulâncias e paramédicos para atender os feridos. É geralmente

nesta retaguarda que ficam as equipes de jornalismo, fotógrafos e operadores de câmeras,

desde que previamente autorizados pela polícia para cobrir os eventos. Quem transita com

uma câmera neste espaço necessita de uma autorização, geralmente um crachá, que é

verificado pela polícia e, caso falhem em produzir esta identificação, são escoltados para fora

da zona “segura”. Porém, neste caso específico, a polícia também cumpriu o papel de reprimir

violentamente os protestos, por muitas vezes ilegalmente, abusando da violência e da

autoridade policial. Assim, a liberdade de imprensa se torna um perigo à corporação policial,

que precisa usar o anonimato para que não sofram consequências legais.

A probabilidade das situações de brutalidade policial acontecerem no meio do caos,

entre os manifestantes é muito maior que do lado de dentro – afinal, a zona segura já é

“segura” já está controlada pelos policias e com a ordem estabelecida. Assim, é no lado de

fora que ocorre grande parte dos eventos que, se registrados em vídeo, repercutem

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negativamente para os policiais. Nestes momentos onde a violência policial é exagerada e

ilegal (o que requer o anonimato dos envolvidos), a presença de uma câmera é muitas vezes

suficiente para intimidar os perpetradores e assim tanto frear o abuso e salvar a vítima como

atrair a ira dos policiais, que podem agredir o fotógrafo, confiscar ou destruir sua câmera.15

Assim, um fotógrafo ou video-maker precisa constantemente avaliar sua segurança pessoal e

de seu equipamento caso deseje registrar esses momentos mais agressivos, o que torna a

situação complexa, pois a mesma polícia que teoricamente protege e garante a segurança e o

direito de filmagem de Vlad, pode, em um instante, mudar de disposição e perseguir, bater,

prender e confiscar sua câmera. Por isso Vlad foi muitas vezes perseguido pela polícia, ora

por ser confundido com um manifestante, ora por ser testemunha dos abusos policias. Para

poder ter acesso ao lado de dentro, mas também evadir a polícia do lado de fora ao

documentar estes instantes de violência policial, ele desenvolveu certas estratégias corporais

que garantiram sua aproximação e fuga do local com segurança.

Estas estratégias envolveram em sua grande parte um engodo: explorar qual design de

câmera comunica-se com as pessoas como sendo exclusivamente fotográfica, assim como o

conjunto de movimentos, gestos e técnicas corporais envolvidos no processo de se tirar uma

imagem fotográfica. Porém, como Vlad gravava vídeo, que são imagens em movimento, ele

utilizava um outro conjunto de técnicas e posições corporais, reconhecidos como pertencentes

ao processo de filmar. Quando necessitava evadir a atenção da polícia, ele explorava o

conjunto de técnicas corporais relacionadas à fotografia e posicionava a câmera em relação ao

seu corpo de forma que comunicasse aos policiais que ele não estava tirando uma foto, apesar

de furtivamente continuar registrando em vídeo. Em contrapartida, quando Vlad necessitava

de ter acesso ao “lado de dentro” do cordão de isolamento policial, para, por exemplo,

explorar o enquadramento das costas da tropa de choque e filmar os manifestantes, ele

utilizava o conjunto de técnicas corporais engajados no processo de se gravar continuamente

vídeo, assim como a posição da câmera em relação ao corpo.

15 Uma pesquisa em 2012 na cidade de Rialto, Califórnia demonstrou que houve uma queda de 59% nas

ocorrências de violência policial após a implementação de câmeras corporais nos uniformes dos oficiais de

polícia, o que reforça os indícios que há uma forte relação entre as consequências do registro de imagens e a

suposta quebra do anonimato durante a conduta policial. (Barak et al,2014)

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Foto 4 – Vlad e sua Canon ocupando o local privilegiado às costas dos policiais. Câmera para baixo.

Fonte: Vlad Petri (2012)

Nesta avaliação subjetiva e instintiva, Vlad precisava perceber se foi notado pelos

policiais enquanto filmava e qual era a reação destes, para assim ir ajustando a forma como

continuaria filmando e consequentemente as técnicas corporais envolvidas. Para tal, foi

necessário estabelecer um conjunto de técnicas as quais ele observou que suscitava reações

específicas dos Jandarmes e gradativamente aperfeiçoar em suas minúcias estas técnicas

corporais para conduzir a reação dos policias a cada um de seus gestos, o que foi feito

instintivamente durante o curso das filmagens, explorando os tipos de mediação possíveis

neste acoplamento técnico. E tanto o corpo do operador de câmera quanto o design da câmera

possuem relevância nesta operação. Por exemplo, os modelos de câmera robustos, que se

apoiam nos ombros, parecidos com as Beta-cam16

de emissoras de TV permitem

acoplamentos com uma amplitude de ação distintas de câmeras de vídeo menores, “portáteis”,

que podem ser estabilizadas somente com as mãos. Seguindo esta lógica, um modelo de

câmera, que é anatomicamente considerado por excelência como fotográfico, permite uma

amplitude de ação ainda mais distinta e especializada. O acoplamento irá explorar as técnicas

16 Câmeras enormes e pesadíssimas, apoiadas no ombro e cujo o movimento é bem desengonçado para uma

situação de rua como a dos protestos.

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que ambas anatomias potencialmente podem abrigar quando for necessário para o processo de

filmagem que a câmera se localize em uma posição específica do corpo, pois cada posição

media uma certa controvérsia.

Em nosso caso específico, Vlad explora a ilusão de que geralmente uma câmera

fotográfica somente está sendo operada se seu visor quando está na altura dos olhos do

operante. Assim, ao portar sua Canon na altura do peito, no meio da confusão, ele evitava

represálias da polícia, mas continuava registrando imagens. Caso esta posição dissimulada

não fosse suficiente para desarmar a situação, Vlad simplesmente saia correndo enquanto

registrava as imagens ou, como opção derradeira, pendurava a câmera pela alça em seu ombro

e se mesclava em um aglomerado de pessoas, assim evadindo a perseguição e despistando os

policiais. A operação de posicionar a câmera apontada para baixo, assim desarmando a

situação de risco, para depois, em segurança, se reposicionar e retornar a gravar os eventos,

pode ser feita em questões de segundos, sem precisar desligar a câmera.

A partir da experiência de Vlad, me foi possível apreender esta dimensão relacional da

operação de câmera e a forma como gestos corporais são utilizados instintivamente como

meio de comunicação, assim transcendendo o potencial de ação do corpo anatômico. Para

Vlad, a câmera faz parte fundamental de sua forma de pensar quando está no meio da ação.

“Filmar é um processo onde a imagem entra pela lente, depois pelos meus dois olhos e

finalmente chega em meu cérebro. É por isso que mantenho a câmera sempre colada em meu

corpo.” (Karim, 2014) Essa necessidade física de se incorporar à câmera pode possuir uma

motivação tautológica, porém convém frisar: é justamente a câmera a transformadora de seu

corpo, que assim a pode mediar as controvérsias que surgem durante o processo de filmagem.

É a câmera que ordena as potencialidades de ação dentro do projeto de produção do

documentário, afinal, sem sua câmera, ele não pode filmar e assim não tem o acesso

privilegiado às pessoas e situações.

Existem outros exemplos dessa instrumentalização da profilmie como estratégias

relacionais na literatura antropológica, notavelmente no trabalho de Terence Turner com os

cineastas Kayapó, os quais com seus corpos pintados operavam câmeras registrando

momentos tensos de negociação política e acabaram chamando a atenção da mídia “branca”,

pois “(...) the act of shooting with a video camera can become an even more important

mediator of their relations with the dominant Western culture than the video document itself.”

(Tuner, 1992, p. 7). Esta dinâmica foi observada por Turner quando ele testemunhou uma

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demonstração massiva dos Kayapó contra o governo brasileiro, onde os cineastas indígenas

memorizaram o público. “The success of this ploy is attested by the number of pictures of

Kayapo pointing video cameras that have appeared in the international press. The Kayapo, in

short, quickly made the transition from seeing video as a means of recording events to seeing

it as an event to be recorded.” (Tuner, 1992, p. 7). Assim, chamando atenção à produção de

imagens como processo, em vez de produtos, a operação de câmera pode se portar como um

meio potente de se construir engajamento etnográfico. Talvez assim seja possível chamar

atenção às potencialidades que a operação de câmera pode trazer como processo

corporificado, ao analisar nossos próprios gestos e técnicas corporais e as relações

mobilizadas por estes.

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