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Para os meus filhos, Mariana e Tiago, a minha fonte de inspiração.

Para o meu marido, Bruno, o meu rochedo.Para o meu enteado, Gabriel, o meu filho do coração.

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Índice

PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Meter os pontos nos is . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

E se tivéssemos um filho? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Estou grávida. E agora? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29

A gravidez é um estado de graça que dura demasiado tempo . . . . . 37

Parir é parir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Ser mãe pela primeira vez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

O pós ‑parto é um lugar solitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Detestei amamentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69

A licença de maternidade não são férias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

O caos de ter dois filhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

Ciúmes entre irmãos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

As merdas que as mães aturam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Os miúdos estão sempre doentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Comparações, medalhas e lugares no pódio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Tortura do sono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Que se foda o faz parte! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

A culpa que morra sozinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

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Sou uma mãe imperfeita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

Os meus filhos também não são perfeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

O mito do tempo com os filhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

O instinto maternal morreu. Paz à sua alma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

Sobreviver às birras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

A escola é aquele lugar onde aturam os miúdos por nós . . . . . . . . 185

Não se atiram bolas à cabeça dos filhos dos outros . . . . . . . . . . . . . . 193

Que merda é essa de ser a melhor mãe do mundo? . . . . . . . . . . . . . 201

Férias? Já ouvi falar disso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .209

Existir além dos filhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217

Dar pontapés ao fundamentalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225

As mães precisam de dizer mais vezes que se foda . . . . . . . . . . . . . 233

Sou mãe e o meu superpoder é gritar. E o teu, qual é? . . . . . . . . . . 241

Somos todas umas mães do caralho! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .249

AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253

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Prefácio

Não me lembro exatamente de como cheguei até à Susana. Tenho ideia de ter ido parar à página de Facebook de Ser Super Mãe É Uma Treta, enquanto passeava o dedo dolentemente para cima e para baixo numa daquelas viagens longas que por lá fazemos sem destino e sem rumo. Logo parei e cliquei para ver se o que parecia ser um texto bem escrito e desarvorado sobre a maternidade cumpria a sua promessa.

Não só cumpriu, como se cravou logo no peito com todas as for‑ças. Alguém que me compreende. E as asneiras, senhores, as asnei‑ras. Caraças, alguém que parece que lê os meus pensamentos. Porra, às vezes, podia ser eu a dizer aquilo, tão próximo da minha realidade está. Perfeita, nisto de falar com o coração na boca e sem dourar a pílula, com uma boa dose de asneiredo, para libertar o stress que é lidar com as expetativas que colocam sobre as mulheres que foram mães (além de todo o stress que colocam sobre as mulheres em par‑ticular e sobre o ser humano em geral). São muitas as imposições que nos querem colocar: que as senhoras não podem dizer asneiras, muito menos as mães, que têm de manter uma certa compostura e as bainhas das saias abaixo do joelho. Felizmente, uma boa parte de nós contrapõe com o argumento irrefutável de «Eu quero é que a compostura de antanho vá dar banho ao cão».

Ao ler aquilo que a Susana escreve, percebo que é alguém que fala e age sem medos ou apesar dos medos (que isto de dizer coisas pouco populares sobre a maternidade ainda dá direito a queima na

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SUSANA ALMEIDA

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fogueira), alguém que é verdadeiro e assumidamente imperfeito, num mundo alérgico à verdade e à imperfeição. Cá nas minhas con‑tas, isso dá direito a selo de amizade, mesmo sem nos conhecermos pessoalmente. Gosto muito da Susana, porque admiro a sua pos‑tura, a sua coragem e a sua vontade férrea em ser quem é e em viver de acordo com a sua filosofia.

Agora que falamos nisso, que paranoia é esta com a perfei‑ção que acometeu o exercício da maternidade? No tempo em que era pequena, a maternidade era um exercício milenar, sem direito a mais louvores do que ver os filhos crescer e tornarem ‑se seres humanos decentes e realizados.

Agora é um campo de batalha onde as mulheres se agridem umas às outras por causa de uma coisa tão vasta e complexa como o exercício individual da maternidade e onde parece que interessa mais a santificação do nível de satisfação de caprichos dos filhos do que o cultivo dos laços de amor que com eles criamos.

Vamos lá a ver, como em toda e qualquer relação de amor, só se criam laços fortes e verdadeiros com alguém quando se anda de mãos dadas com essa pessoa pelo Inferno. Querer amar alguém ouvindo apenas música celestial é não ter passado do 9.o ano e sonhar que um dia o Patrick Swayze vai tirar ‑nos do canto e fazer‑‑nos felizes para sempre em frente a toda a gente.

Os nossos miúdos curtem ‑nos pra caraças não porque lhes satisfazemos todas as necessidades, inclusivamente a necessidade de serem fedelhos mimados, mas precisamente porque sabem que podem sempre contar connosco, em qualquer situação e de forma incondicional. Se os abandonamos logo assim que nascem para nos enfiarmos em guetos de mães digladiando ‑se infindavelmente sobre quem dá mais atenção aos filhos, estamos a ser uma contradi‑ção ambulante. Ou a precisar de um gin, como a Susana vaticinaria.

Essa é capaz de ser a única diferença entre nós; não bebo álcool. Mas digo muitas asneiras, mando o sentimento de culpa à merda, enervo ‑me com relativa facilidade e não tenho pejo em dizer que erro e que estimo os meus erros da mesma maneira que estimo

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SER SUPER MÃE É UMA TRETA

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os meus acertos: como inevitabilidades que vêm com esta coisa de se ser mãe. Com esta coisa de se ser humano, na verdade. Gente que não erra ou é Deus, ou é inapta. Se só se aprende com os erros e nunca se errou, nunca se aprendeu nada. Das duas uma: ou se nasceu ensinado ou se mente com quantos dentes se tem na boca. Se é para andar em campeonatos, então eu prefiro ter a medalha da imperfeição do que a da mentira.

Mães imperfeitas que não têm medo de o assumir, este livro conta a nossa história, não duvidem. Vão rever‑se em cada palavra, a cada vírgula. Fôssemos gente de criar grupos de Facebook (Deus nos livre e guarde de tal sorte) e bateríamos recordes de participação.

Somos muitas. Somos todas, deixemo ‑nos de rodeios. Há quem lide com isso vestindo a máscara de mãe perfeita, há quem lide com isso vestindo a farda de mãe imperfeita, mas o que importa nunca esquecer é que todas tentamos fazer o nosso melhor neste caminho difícil e cheio de perigos que é o de preparar um ser humano para o mundo e para ele próprio. Nunca se esqueçam disso quando forem julgar alguém. E perdoem ‑se. Sobretudo, perdoem ‑se. Como diria a Susana, podemos fazer muita merda, mas, no fim de contas, somos todas umas mães do caralho.

Ana Bacalhau

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Meter os pontos nos is

Chamo ‑me Susana, tenho quarenta anos, sou casada e mãe de dois filhos que são os únicos com permissão para me foder a cabeça.

Quando me tornei mãe, percebi que, à minha volta, a materni‑dade tinha demasiados unicórnios e purpurinas. Era sempre des‑crita como maravilhosa, uma bênção e, mesmo quando as mães estavam esgotadas e com a paciência toda rebentada, elas cala‑vam essa realidade e repetiam, como que para se convencerem a elas próprias, que os filhos são o melhor do mundo, que por eles tudo vale a pena, que por eles todos os sacrifícios são pequenos, e seguiam sorridentes, como se a maternidade não lhes estivesse a foder a sanidade mental. Para onde quer que me virasse, levava com visões cor ‑de ‑rosa na tromba e perguntava ‑me como era pos‑sível sentir tantas outras coisas além do amor pelos meus filhos. Como era possível sentir ‑me frustrada, esgotada, com saudades de mim e com vontade de fugir para ir dar uma volta ao bilhar grande e voltar mais tarde, quando tudo o que o mundo à minha volta me devolvia eram visões que diziam que estava errada e que não podia sentir o que sentia? Quando comecei a escrever sobre a materni‑dade, escolhi escrever precisamente sobre o lado menos cor ‑de‑‑rosa, o lado B, o lado que nos fode, que nos faz sentir culpadas, erradas e sozinhas. O lado escondido.

E faço ‑o porque o mais fácil é escrever que ser mãe é o melhor do mundo e, como nunca gostei do que é mais fácil, do que é óbvio ou de seguir o rebanho, escolhi desde o primeiro dia dar a mão

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às outras mães e dizer ‑lhes que estamos juntas nesta loucura da maternidade, em vez de lhes apontar o dedo e colocar sobre elas um peso que não merecem carregar. A minha escolha também é ser honesta e genuína. É ser como sou, uma mãe normal, igual a tantas outras, e não uma personagem cheia de filtros e frases inspiradoras. Escrevo como penso, sem o peso das expetativas dos outros ou do politicamente correto, sem vergonha de sentir o que sinto e com a convicção de que nada é mais libertador do que escrever estando ‑me a foder para o que os outros pensam e sem medo de me expor como sou, com as minhas fraquezas, irritações, ódios de estimação, paixões e, acima de tudo, sem medo de me rir de mim própria. Não sou simpática por natureza, não sou tran‑quila, nem toda paz e amor, nem slow living, não pratico mindful‑ness, ioga, meditação, nem porra de coisa nenhuma que seja zen, a menos que um copo de gin depois dos miúdos estarem a dormir conte como ioga.

Desconfio sempre muito de pessoas calmas, não sou de falinhas mansas, nem de meias ‑palavras, não tenho vocação para saco de pancada dos filhos — nem de ninguém, já agora. Não sou fofinha, chego até a ser uma besta, reviro os olhos quando me aborrecem e suspiro muito também, perco a paciência com facilidade, grito, exagero, abomino tanto a parentalidade consciente como lições de moral ou juízos de valor e parto os dedos a quem os apontar. Sou uma mulher de convicções fortes, não aceito opiniões que não pedi, não admito que se metam na minha vida, que façam considerações sobre a mãe que acham que sou, fico com o olho direito a tremer quando me tentam dizer o que devo sentir ou fazer e dou pontapés na culpa. Aliás, quero bem é que a culpa se foda, assim como as expetativas dos outros e as opiniões alheias. Sou a melhor mãe do mundo para os meus filhos, faço todos os dias o melhor que me é possível; sou uma mãe bastante consciente, o que é bem diferente dessas tretas que viraram moda. Não sinto qualquer necessidade de dizer quanto amo os meus filhos, porque eu sei e eles sabem quanto os amo. E quem me ler com atenção também vai saber.

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Escrevo muitos palavrões, digo muitos palavrões entre adultos. Não, não digo palavrões ao pé dos meus filhos. Tento existir além deles, não hesito em deixá ‑los com as avós para ir jantar fora com o meu marido, fugir para um hotel ou dormir a sesta, às vezes tenho vontade de os atirar pela janela, há dias em que não os consigo ouvir resmungar nem mais um segundo um com o outro, detesto birras, respostas tortas e que demorem muito tempo a adorme‑cer, sinto falta da despreocupação, do não ter nada para fazer, de dormir, tenho muito sono, sabiam? Durmo mal há praticamente quatro anos, pensem nisto com carinho enquanto leem este livro. Estou quase sempre cansada, tenho níveis de paciência muito bai‑xos, ando de transportes públicos, lavo a minha própria sanita e acredito que muita coisa se resolve com um copo de gin. Ou de um bom vinho tinto, vá. Não penso duas vezes em mandar à merda quem aparece na minha vida com o único intuito de me tentar foder a cabeça.

Acreditem que nisso os meus filhos são especialistas e, ao pé deles, os outros são uns meninos de coro a tentar parecer muito calmos quando na verdade estão é à beira de um enorme ataque de nervos. Para mim é absolutamente libertador e imprescindível escrever sobre a imperfeição e sobre o lado negro da maternidade. Como todas as mães, tenho um amor inexplicável pelos meus filhos, daria um rim a cada um se fosse preciso e encontro num piscar de olhos um milhão de coisas bonitas e maravilhosas que posso escrever sobre a maternidade, mas a minha opção é não pac‑tuar com essa visão castradora que exige às mães que não se atre‑vam a abrir a boca para se queixarem seja do que for. É preciso dar um murro na mesa, desmistificar a maternidade, tirar de cima da nossa cabeça o peso das expetativas irreais, da culpa, das opiniões e do julgamento dos outros. É preciso estender a mão à mãe do lado e dizer ‑lhe: Eu percebo ‑te! Faz as tuas escolhas! Pensa em ti! Estás a fazer tudo bem!

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OS FILHOS SÃO O MELHOR DO MUNDO!

E um copo de gin depois de os deitarmos também. E comer chocolate sem partilhar. E sexo. E o silêncio. E ler um livro. E dormir. E jantar fora com as amigas. E ir ao ginásio. E...

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E se tivéssemos um filho?

Ter filhos é um desporto tão radical como saltar de uma ponte preso por uma corda. A partir do momento em que decidimos ter filhos, fechamos os olhos, damos um salto gigante no escuro e espera‑mos não ficar esborrachados lá em baixo no chão. A merda é que, quando somos pais, saltamos no escuro vezes sem conta presos por uma corda de qualidade duvidosa e sem capacete na cabeça.

Sempre quis ser mãe. Ser a mais velha de três irmãos e ter con‑vivido desde cedo com as birras dos meus irmãos não me retirou essa vontade, mas, ao longo da vida, tive várias formas de imaginar como isso iria ou não acontecer. Recordo ‑me de ser adolescente e de dizer em alto e bom som que queria ser mãe solteira. Além do acne na cara e dos ténis All Star nos pés, tinha também a parvoíce natural da adolescência. Para mim, um dos grandes mistérios da humanidade continua a ser como é que conseguimos sobreviver à adolescência sem cortar os pulsos. Haverá fase da vida mais parva? Enfim. Mais tarde, e não menos inocente, fantasiei com príncipes encantados montados num cavalo a resgatar ‑me das masmorras de um castelo, mas a vida não é como nos filmes ou como na monar‑quia inglesa, onde as mulheres casam com vestidos brancos, véus de cinco metros e tiaras na cabeça, e tive a minha quota ‑parte de príncipes que se transformaram em sapos gordos e asquerosos. Se é verdade que o meu relógio biológico foi tocando várias vezes, também é verdade que fui carregando no botão do snooze, até que o atirei contra uma parede e me convenci de que não ia ser mãe.

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Era uma coisa que não ia acontecer. Assunto encerrado e não se fala mais nisso. A maioria das minhas amigas já tinha casado, algu‑mas já tinham filhos e a minha mãe suspirava pelo momento em que lhe chamariam avó. É esperado que uma mulher em idade fértil encontre um homem para casar e que tenha filhos. Dois ou três, de preferência. Somos alertadas para isso vezes sem conta e, se não correspondermos ao que esperam de nós, é porque provavelmente temos algum defeito. Os anos foram passando indiferentes às per‑guntas da minha mãe sobre a data e hora em que ia ter netos para mimar ou aos vaticínios fatalistas dos que garantiam que iria ficar para tia, e fui aprendendo a estar a cagar ‑me para o que os outros esperavam de mim. A verdade é que as más ‑línguas não erraram por muito, também sou tia. Mas um dia cruzei ‑me com o pai dos meus filhos e, muito antes de ser mãe, fui madrasta. Quando conheci o meu marido, ele estava divorciado e tinha um filho de três anos. Na altura, isso não era muito importante, éramos apenas duas pes‑soas que estavam a conhecer ‑se, um dia de cada vez e sem expetati‑vas em relação ao futuro.

Mas quanto mais nos conhecíamos, mais eu percebia que ao meu lado, além de um príncipe que não iria transformar ‑se em sapo, estava o pai à medida dos meus sonhos. Sou uma besta e uma romântica incorrigível. Ele era um pai sem merdas, com os nervos à flor da pele, como eu, e para quem o filho estava no primeiro lugar da lista de prioridades. Por isso, só cerca de um ano depois decidi‑mos que íamos ser uma família. Os três. E construir uma família que para nós é a primeira e para as crianças é a segunda tem de ser feito com pezinhos de lã. Para o meu enteado, existia a família da mãe e, de repente, passa a haver outra família, onde, além do pai, também estava uma estranha, que não é a mãe, mas que ele tem de respeitar, a quem tem de obedecer e de quem tem de gostar, sem perceber muito bem porquê. É fodido e quem disser o contrário mente. Para mim, o mais importante sempre foi que ele se sentisse em casa, mesmo que só estivesse connosco de quinze em quinze dias, e que se fosse libertando dos estímulos negativos em relação

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a mim. Com um papel que nem sempre é compreendido, a madrasta é o elo mais fraco. A que é mais facilmente atacada.

Somos questionadas, desafiadas e ouvimos inúmeras vezes o célebre «Não mandas em mim!» ou o «Não és a minha mãe!» E não é mentira, não sou a mãe. A minha filha diz que também sou um bocadinho mãe do mano crescido, mas ser madrasta não é o mesmo que ser mãe. É preciso assumi ‑lo sem falso moralismo. O amor entre pais e filhos é um amor visceral e, para esse amor, existem os pais e os filhos. O amor entre madrasta e enteado é um amor que se vai construindo, sem pressa, com imprevistos, altos e baixos, alguns gritos e palavras tortas, mas também com cumplicidade, dedicação, muita conversa e de coração aberto e, se os alicerces forem sólidos, é um amor que dura para sempre. Até agora, sobreviveu à parvoíce natural da adolescência.

Depois de ser madrasta, o meu relógio biológico voltou a tocar e não havia maneira de o calar. Primeiro, começou a tocar baixinho. A ideia começou a rondar ‑me os pensamentos e fazer ‑me ponderar todos os «ses» de que me lembrei. Se tinha idade para ser mãe, se não era arriscado, se iria ser capaz de suportar a gravidez e o parto, se iria ser uma boa mãe e se, e se, e se.

Até que um dia era impossível continuar a ignorar o som que fazia e o meu marido quebrou o gelo com uma pergunta que trouxe ainda mais perguntas. E se tivéssemos um filho? Foda ‑se, não é melhor fazermos contas?

Quem é pai sabe que ter filhos é um luxo e foi por isso que, depois dos «e ses» existenciais, vieram os e se um de nós ficar desempre‑gado, e se não tivermos dinheiro para uma creche decente, para o pediatra, para as vacinas, para todas as merdas de que os miú‑dos precisam. Só as mensalidades de uma creche privada, que vaga

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numa pública é o mesmo que procurar uma agulha num palheiro, fazem ‑nos perder horas em contas de somar e subtrair. A ginástica artística que as famílias têm de fazer com o orçamento é digna da nota dez nos Jogos Olímpicos. A mensalidade da creche, o pedia‑tra, as vacinas fora do Plano Nacional de Vacinação, vestir e calçar, a natação ou outra atividade extra se for possível, a prestação do empréstimo da casa, a alimentação e os gastos na farmácia. Ainda me estão a acompanhar ou já se perderam com este flic ‑flac à reta‑guarda? E os saltos mortais que os filhos trazem à nossa carreira profissional?

Os bebés são muito bem vistos pela sociedade… já as mães são olhadas de lado pela entidade patronal. A nossa população está cada vez mais envelhecida e precisamos que nasçam mais crian‑ças todos os anos, principalmente para os miúdos crescerem, estu‑darem, trabalharem e pagarem impostos. Mas poucos são adeptos deste desporto. Por um lado, as mulheres faltam ao emprego para irem a consultas durante a gravidez, algumas usufruem de cinco meses de licença de maternidade quando os bebés nascem, outras menos, mas regra geral todas faltam quando eles estão doentes e não podem sair mais tarde porque têm de ir buscá ‑los às creches. Uma merda, pensam os nossos chefes. Estamos fodidas, pensamos nós. Uma mulher, quando é mãe, transforma ‑se numa persona non grata, e dificilmente alguém não pensa nisso na hora de ter filhos. Os filhos começam a fazer ‑nos dores de cabeça e ainda nem foram concebidos. Ainda assim, depois das contas feitas e refeitas, do fu‑turo que é sempre incerto, mas com o espírito do que se foda na ponta da língua, nós decidimos ter filhos. Por muitas voltas que a vida desse, tudo se resolveria.

Escolhi um obstetra, fiz consultas pré ‑natais, análises, ecografias e exames e mais exames e, depois dos resultados serem favoráveis para a prática desta modalidade olímpica, deixei de tomar a pilula. Pensei que ia demorar imenso tempo a engravidar, mas engravidei dois ou três meses depois. Estava nas nuvens… ou estive até à sexta semana de gravidez, quando fui forçada a meter os pés no chão.

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Na consulta de rotina, o obstetra disse ‑nos que o feto não estava a desenvolver ‑se como seria esperado. Mandou ‑me para casa repou‑sar, fazer um tratamento e voltar passado oito dias. Essa semana foi um inferno. Fiz o tratamento, descansei, não fiz esforços absolu‑tamente nenhuns e, quando voltei na semana seguinte, o obstetra sossegou os meus receios. Estava tudo bem, o feto tinha as medidas certas e um coração a bater forte. Senti um alívio indescritível, não voltei às nuvens, mas deixei de ver tudo negro. Afinal, tinha sido só um susto. Ou talvez não. Três dias antes de completar as doze sema‑nas de gravidez, estava a trabalhar, fui à casa de banho, limpei ‑me e vi sangue no papel higiénico.

Não sei quanto tempo fiquei ali a olhar para o sangue. Era sangue vermelho vivo e era abundante. Vesti ‑me, fui falar com uma colega, das poucas que sabia que estava grávida, e pedi ‑lhe para ir comigo ao hospital. Quando lá cheguei, tudo me pareceu demorar uma eternidade. Estava a perder sangue e a calma dos outros parecia ‑me ofensiva. Queria entrar por um gabinete qualquer e pedir para me fazerem uma ecografia. Só queria ouvir um coração a bater, depois logo lhes dizia qual era o meu nome, a minha morada, o número do Cartão do Cidadão e até a merda do número de telemóvel.

Entrei para a triagem depois de toda a burocracia e, depois de explicar o que tinha acontecido, mandaram ‑me deitar numa maca. Fiquei sozinha num corredor. Ao longe, ouvia o som de outros cora‑ções, portas a abrir e a fechar, uma enfermeira passava de tempos a tempos e pedia ‑me para ir ver se ainda perdia sangue. Depois do que me pareceram cem anos e mais alguns dias, fui chamada por uma médica sorridente. Deitei ‑me, fez ‑me uma ecografia e o sorriso dela desapareceu. Disse ‑me que tinha sofrido um aborto espontâ‑neo. Foda ‑se, não percebi nada. Continuava a querer ouvir um cora‑ção a bater, mas isso já não era possível.

Explicou ‑me que o feto teria parado de se desenvolver por volta das nove ou dez semanas, que alguma coisa não estaria bem e que o próprio corpo impediu que ele se desenvolvesse. Era bom sinal, segundo ela. Falou ‑me em percentagens, casos de sucesso após um

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aborto espontâneo, e mandou ‑me para casa esperar que o corpo acabasse por expulsar o feto. Era tudo demasiado surreal. Não me lembro do som das minhas palavras. Contei ao meu marido, que já estava à minha espera, telefonei à minha mãe e, no caminho até casa, só conseguia pensar que o meu corpo tinha dentro o que era um filho muito desejado e que tudo tinha acabado. Não sei se chorei muito ou pouco ou quão dolorosa foi esta perda. Todo o processo demorou um mês, entre idas ao hospital, colocar comprimidos e mais comprimidos para provocar a expulsão, contrações dolorosas e ecografias e mais ecografias que mostravam sempre restos. Tudo se resumia a essa necessidade de tirar o feto de dentro de mim. Não havia lugar para a dor psicológica. Quando tudo terminou, chorei de alívio.

Durante esse mês, também percebi que a médica tinha razão, que uma grande percentagem de mulheres sofre abortos espontâ‑neos. Mas não se fala sobre isso. Acontecem quase sempre até às doze semanas de gravidez e a sabedoria popular, cheia de crenças, diz que dá azar partilhar a notícia antes disso. A inveja dos outros pode agoirar, é preciso ter cuidado com o mau ‑olhado e, quando esta merda acontece, as mulheres sofrem sozinhas sem saberem o quanto é comum. Sentem ‑se estragadas e culpadas, como se tives‑sem feito alguma coisa para sofrer um aborto. E a verdade é que não estão estragadas e não são culpadas. O que é que fiz para isto acon‑tecer? Nada. Nesse mesmo ano, há sete anos, voltei a engravidar e a ouvir um coração a bater. E, dessa vez, fui recompensada com o meu final feliz. Fui mãe pela primeira vez aos trinta e três anos, depois de ser madrasta, de fazer contas à vida e de ter sofrido um aborto espontâneo. Não era adolescente, nem solteira e, se pergun‑tarem à minha mãe, avó babada dos meus filhos, ela vai dizer ‑vos que foi tarde. Sabendo o que sei hoje, digo ‑vos que foi na hora certa e que devia ter aproveitado para dormir mais, para comprar roupa e sapatos para mim, para viajar, ir ao cabeleireiro e todas as merdas que não consigo fazer hoje porque tenho dois filhos que são donos do meu tempo e da minha carteira.

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Sim, não se preocupem, ser mãe é o melhor do mundo. Apesar de não ser adepta de desportos radicais com cordas de qualidade duvidosa e de me esquecer sempre de meter o capacete para não foder a cabeça quando salto de uma ponte.

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Estou grávida. E agora?

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Estou grávida. E agora?

O dia catorze de julho de dois mil e doze calhou num sábado e foi nesse dia que, com as mãos a transpirar, segurei o teste de gravidez que confirmava que estava grávida. Não sei porque me lembro desta data, quando não me lembro do que almocei ontem, mas agarro ‑me a esta memória para acreditar que a maternidade ainda não conse‑guiu foder toda a minha sanidade mental. Ainda.

Continuando, tinha sofrido um aborto espontâneo em maio e, na consulta que confirmou que o meu corpo já tinha expulsado o que antes tinha sido um projeto de filho, perguntei ao obstetra quando podia voltar a engravidar. Estava preparada para ouvir que tinha de esperar alguns meses, que precisava de fazer tratamen‑tos, exames ou outra merda qualquer que adiasse por tempo inde‑finido uma nova gravidez. Mas respondeu ‑me que não precisava de esperar, que não precisava de fazer tratamentos ou exames e que não havia nada que me impedisse de ter filhos. A verdade é que, apesar do alívio momentâneo, convenci ‑me de que ia demo‑rar mais tempo a ver aquela risca cor ‑de ‑rosa no teste de gravidez mais barato que havia na farmácia. A ideia de que estamos estra‑gadas, por muito que nos digam que não estamos, não desaparece com facilidade. Apesar de ser bastante comum, falamos muito pouco sobre a perda gestacional. Embrulhamos a maternidade em crenças, mitos e agoiros e, regra geral, as mulheres desconhecem que aconteceu o mesmo à prima, à amiga, à colega de trabalho. E, ao julgarem que são caso único, procuram dentro delas a culpa

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para o que lhes aconteceu. Não estamos estragadas. Eu não estava estragada. E não demorei muito tempo a voltar a engravidar.

Pouco mais de dois meses depois, estava com o teste de gra‑videz na mão a correr para o meu marido. Saltámos de felicidade abraçados um ao outro, de lágrimas nos olhos, com o coração a bater a galope e, de repente, o medo apareceu. Alto e para o baile, acabaram ‑se os saltos. Caralho, as mães sentem medo desde o pri‑meiro minuto e vão sentir medo o resto da vida. É uma merda que fica colada a nós ainda os miúdos são do tamanho de um girino. O meu primeiro medo, como seria de esperar, era o de voltar a sofrer um aborto. Medo de ficar feliz antes do tempo e de voltar a fazer planos que seriam interrompidos de um momento para o outro. As primeiras doze semanas da gravidez da minha filha foram vividas em apneia e só voltei a sentir o ar a encher ‑me os pulmões depois da ecografia que garantiu que estava tudo bem. A bem da verdade, uma grávida não respira muito bem. Não só porque a cabeça está cheia de preocupações ou porque a dada altura temos pés espetados nas costelas e respirar é um suplí‑cio, mas também porque nove meses, por um lado, é demasiado tempo para quem detestou estar grávida, e por outro é pouco para preparamos todas as merdas de que precisamos para receber o novo membro da família.

De início, estava meio tolinha, mãe de primeira viagem, todas as semanas consultava uma página da internet que me dizia de que tamanho estaria a minha filha. Uma semana era do tamanho de uma amora, na outra de um pêssego, depois na outra de um abacate e se isto não é a prova de que a maternidade nos fode os neurónios desde o primeiro minuto não sei de que provas precisamos mais. Na gravidez do meu filho, estava tão cansada que nem me lembrei de ver qual fruta ele seria a cada semana. E ainda bem. Quando me passou esta tolice, comecei a fazer listas. Uma grávida faz muitas listas, listas de enxoval, listas com as merdas para levar na mala para a maternidade, listas de nomes possíveis para a criança. Lista essa que exclui todos os das pessoas que detestamos e com isso

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conseguimos reduzir a coisa para três ou quatro. No máximo! Esco‑lher o nome é uma carga de trabalhos, não acham? Não sei como é que os meus pais escolheram o meu e se perderam muitas horas de sono com isso, talvez há quarenta anos Susana estivesse na moda. De qualquer forma, foi uma aposta ganha. Já nos dias de hoje esta decisão é coisa para nos fazer arrancar os cabelos.

Já estavam excluídos os das pessoas que detestávamos, depois não podia ser um nome muito pesado ou que desse origem a al‑cunhas, diminutivos e merdas que tal, não podia ser demasiado pre‑tensioso, nem demasiado normal. Só resolvemos a questão quando o meu enteado se lembrou de que gostava muito do nome de uma amiga da escola. E assim ficou ele com esta responsabilidade e nós perdemos mais uma merda com que nos preocupar.

Mas as listas não acabam. Uma amiga, com quem conversei muito e me aturou durante toda a gravidez, enviou ‑me a lista de enxoval que tinha feito para a filha dela. Dessa lista fiz outra com o dobro das coisas. Escusado será dizer que, onde dizia para comprar dez babygros, eu acrescentava mais três ou quatro, onde dizia seis pares de collants, eu apagava e escrevia doze. Entre roupa, termó‑metro, corta ‑unhas, toalhas, lençóis, compressas assim e assado, álcool etílico 70%, creme para a muda da fralda, loção para o corpo, água ‑de ‑colónia, banheira, carrinho, ovo, alcofa, berço, mala para a maternidade, mala para passear, bolsa para os documentos, chuchas, brinquedos, a primeira roupa, fraldas hipoalergénicas, mantas e mantinhas, só desci da terra da fantasia onde o dinheiro cresce nas árvores quando essa mesma amiga me disse que estava a exagerar.

A exagerar? O pior ainda estava para vir. A minha mãe. A tal que suspirava para ser avó. Assim que lhe dei luz verde, esgotou o stock das lojas das redondezas com o enxoval da neta. De cada vez que me lembro da quantidade de roupa que a miúda não vestiu tenho vontade de me esbofetear e de ir pedir o meu dinheiro de volta. Quando chegou a vez do meu filho, aproveitei tudo o que podia aproveitar da irmã e fui mais contida nos gastos, porque uma das

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verdades que descobrimos depois de sermos mães é que os miúdos passam os dias de babygro e crescem de um dia para o outro. Mas a uma grávida tudo se perdoa. Até os desejos mais esquisitos. Não tive nenhum, mas inventei uns quantos, só para justificar os quilos que jurei que não ia ganhar. Não sei se sabem, mas, quando esta‑mos grávidas, os quilos multiplicam ‑se como se fossem fêmeas. A culpa não é nossa, claro, o metabolismo é que está mais lento, não somos nós que comemos como se o mundo fosse acabar dali a duas horas. E o mundo parece que vai acabar quando temos uma lista de enxoval nas mãos. Falta sempre qualquer coisa. Não temos a certeza se a roupa será suficiente e se o carrinho que escolhe‑mos será mesmo seguro, apesar do tempo que demorámos para o escolher.

Durante a gravidez, o nosso cérebro abandona ‑nos, é verdade e, se tudo vos correr como comigo, com filhos que me rebentam os nervos com birras e com a privação do sono, o vosso cérebro não volta a ser o que era. Lamento. Quando estava grávida, não fiz mui‑tos planos, tive esperança de ficar mais inteligente, de ser invadida por uma luz sobrenatural que me iluminasse o caminho, mas, em vez disso, tive algumas ideias que foram pelo esgoto abaixo. Por exemplo, pensava que ia ser uma mãe muito organizada. Sabem aquelas mães que fazem um diário da vida dos filhos? Quando eles fazem a primeira cagada para fora da fralda, quando bolçam a roupa delas pela primeira vez, quando lhes nasce o primeiro dente, quando começam a falar, a andar, quando comem a primeira sopa e as primeiras merdas todas. Juro que pensava que ia ser dessas mães, mas não fui e não sou. Quando a minha filha nasceu, comprei um caderno. Era de capa dura, com umas flores lindíssimas. Seria nele que iria apontar cada pormenor do crescimento dela. Um dia, ao arrumar a minha carteira, encontrei uma folha que tinha guardado e da qual nunca mais me tinha lembrado. Foi a única escrita, e pela mão do pai. É um pouco o reflexo da minha maternidade, cheia de boas intenções, mas em que acabo sempre a improvisar, a rasgar folhas de cadernos bonitos.

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Pelo menos com essa folha fiquei a saber o dia em que ela comeu a primeira sopa e quando se virou pela primeira vez; tudo o resto aconteceu quando tinha de acontecer e o caderno está guardado em parte incerta com o resto das folhas por escrever. O mesmo com o irmão, mas aí já sabia de que fibra era feita esta mãe e nem inventei que ia conseguir escrever fosse o que fosse. Uma das coisas boas da segunda gravidez é que esquecemos as merdas que não fazem falta e concentramo ‑nos no essencial. Valem ‑nos as fotografias. Quer dizer, também pensava que ia ser daquelas mães que fazem álbuns de fotografias dos miúdos desde o parto até entrarem na faculdade e que teria dezenas de molduras espalhadas pela casa. Pois, tam‑bém não sou dessas. Só tiros nos pés. Tenho milhares de fotografias guardadas no portátil e no telemóvel, já perdi algumas quando o disco do portátil morreu e chorei baba e ranho como se tivesse per‑dido uma parte das minhas memórias, e as fotografias que tenho em molduras é melhor não as contar para não me envergonhar e não causar traumas desnecessários aos meus filhos. A doce ilusão de que iria ser a mãe perfeita. Ou algo parecido. Que teria sempre tudo controlado e organizado.

Tinha inclusive uma lista de merdas que tinha a certeza de que iriam ser exatamente como idealizava e tinha outra lista de merdas que tinha a certeza de que nunca iria fazer. Fui obrigada a engolir todas as certezas como se fossem iscas. Detesto iscas, para que sai‑bam. Os meus filhos nunca fariam birras no meio da rua, nem em casa, de tão obedientes que iam ser, eu nunca deixaria que vissem o telemóvel enquanto estavam a comer, eles não iam incomodar as outras pessoas no restaurante por estarem a falar alto, iam comer a comida toda que lhes metesse no prato e eu nunca, mas nunca, ia gritar e dizer as frases gastas da minha mãe. Pausa para me peni‑tenciar. Os meus filhos fazem birras — seja na rua ou em casa —, já me deixaram à beira de um ataque de nervos porque queriam um chupa ou um carrinho ou um brinquedo qualquer que custava os olhos todos do meu corpo e às vezes não faço porra de ideia de como acabar com as putas das birras, dou ‑lhes o telemóvel para as

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mãos no restaurante e nem precisam de o pedir — só porque quero comer a minha comida enquanto está quente e conversar com o meu marido sem duas criaturas cheias de porquês —, não comem sempre tudo o que lhes meto no prato e, ainda assim, às vezes têm direito a sobremesa porque não tenho energia, nem vontade para lidar com mais uma birra.

E sou mais parecida com a minha mãe do que planeei. Aliás, há dias em que estou a falar, melhor, a gritar com os meus filhos, e em que parece que estou a ouvir a voz da minha querida mãe‑zinha. Sim, grito muito. «Não é já vou, é já!», «Não te aviso mais vez nenhuma!», «Se te volto a chamar nem sabes o que te acon‑tece!», «Estás aqui estás a levar uma palmada no rabo». «Se te alei‑jas, ainda levas por cima!», «Vou contar até três», «É não porque não!» e «Quem manda aqui sou eu!» Minha Nossa Senhora da Parentalidade Positiva me acuda, que eu não tenho salvação. Engoli cada palavra antes de conseguir contar até três. Atenção que ser igual à minha mãe não é mau, muito pelo contrário, ela é uma mãe do caralho que fez o melhor possível com as condições que tinha, e nunca nos faltou o essencial: amor e um berro quando era preciso. Mas, como escrevi acima, acreditei que ia ser perfeita.

E fui uma mãe perfeita até que tive filhos e a maternidade tratou de me reduzir à minha insignificância. E fez isso da pior maneira. Pensei que ia ouvir música celestial enquanto amamentava, que o pós ‑parto era um mito inventado por mulheres deprimidas, que a licença de maternidade seria como umas férias de onde regressaria revigorada. Acreditei que os meus filhos não iam fazer birras, que eu não ia sentir ‑me esgotada, frustrada, culpada, que a privação do sono não ia bater ‑me à porta, que as expetativas em relação à mater‑nidade não me iam picar a cabeça, que não ia ver tantos dedos apon‑tados às minhas decisões, e não pensei que fosse assim tão fácil esquecer ‑me de existir para além dos filhos. Também não imaginei que ia ser uma mãe com os nervos à flor da pele e à beira de um ataque de nervos, uma mãe que grita e ralha e que é chata e impul‑siva. Foda ‑se. Quando somos mães pela primeira vez, o que mais

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fazemos é aceitar que não somos a mãe que pensámos que íamos ser e que o melhor a fazer é enterrar essa mãe perfeita, que nunca existiu, e ser somente a mãe de que os nossos filhos precisam. E que nós precisamos de ser.

Talvez o segredo da maternidade seja aceitar que, mesmo na im‑perfeição de uma folha rasgada que guardamos na carteira, o amor está sempre lá. Como a minha mãe fez questão de me ensinar, mes‑mo que o tenha feito entre gritos e abraços.

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