para entender zubiri

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A pequena biografia apresentada na Introdução nos mostrou as principais influências que o pensamento de Zubiri sofreu – escolástica, fenomenologia, ciências contemporâneas –, bem como o itinerário de sua obra filosófica, que culminou no tratamento do problema de Deus, passando pelos problemas da realidade e da inteligência.

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  • 2 Para entender a filosofia de Xavier Zubiri

    A pequena biografia apresentada na Introduo nos mostrou as principais

    influncias que o pensamento de Zubiri sofreu escolstica, fenomenologia, cincias contemporneas , bem como o itinerrio de sua obra filosfica, que culminou no tratamento do problema de Deus, passando pelos problemas da realidade e da inteligncia. Conhecer, ainda que sucintamente, sua abordagem

    peculiar destes dois temas nos ajudar a penetrar no problema prprio deste trabalho. Primeiramente, vale pena citar um importante trecho do prlogo

    traduo norte-americana de NHD (de 1980), que nos d como que um marco de compreenso da filosofia zubiriana:

    A filosofia moderna, dentro de todas as suas diferenas, esteve montada sobre quatro conceitos que a meu modo de ver so quatro falsas substantivaes: o espao, o tempo, a conscincia, o ser. Pensou-se que as coisas esto no tempo e no espao, que so todas apreendidas em atos de conscincia, e que sua entidade um momento do ser. Agora bem, a meu modo de ver isto inadmissvel. O espao, o tempo, a conscincia, o ser, no so quatro receptculos das coisas, mas to somente caracteres das coisas que so j reais. [...] As coisas reais no esto no espao nem no tempo como pensava Kant (seguindo a Newton), mas so espaosas e temporais, algo muito distinto de estar no tempo e no espao. A inteleco no um ato de conscincia como pensa Husserl. A fenomenologia a grande substantivao da conscincia que corre na filosofia moderna desde Descartes. Entretanto, no h conscincia; h to somente atos conscientes. Esta substantivao se havia introduzido j em grande parte da psicologia do final do sculo XIX. [...] A psicanlise conceituou o homem e sua atividade referindo-se sempre conscincia. Assim nos fala da conscincia, do inconsciente, etc. O homem ser em ltima instncia uma estratificao de zonas qualificadas com respeito conscincia. Esta substantivao inadmissvel. No existe a atividade da conscincia, no existe a conscincia, nem o inconsciente, nem a subconscincia; h somente atos conscientes, inconscientes e subconscientes. Mas no so atos da conscincia nem do inconsciente nem da subconscincia. Heidegger deu um passo mais. Ainda que em forma prpria (que nunca chegou a conceituar nem a definir), levou a cabo a substantivao do ser. Para ele, as coisas so coisas em e pelo ser; as coisas so por isto entes. Realidade no seria seno um tipo de ser. a velha idia do ser real, esse reale. Mas o ser real no existe. S existe o real sendo, realitas in essendo, diria eu. O ser to s um momento da realidade. Frente a estas quatro gigantescas substantivaes, do espao, do tempo, da conscincia e do ser, tentei uma idia do real anterior quelas. Foi o tema de meu livro Sobre la esencia (Madrid, 1962): a filosofia no filosofia nem da objetividade nem do ente, no fenomenologia nem ontologia, mas filosofia do real enquanto real, metafsica. Por sua vez, a inteleco no conscincia, mas mera atualizao do real na inteligncia senciente. o tema do livro que acaba de aparecer, Inteligncia Sentiente (Madrid, 1980)1.

    1 ZUBIRI, Naturaleza, Historia, Dios, acesso em jan. 2002.

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    Tratarei agora, prescindindo das questes do tempo e do espao, de desenvolver um pouco esta citao, de modo a irmos nos familiarizando com as

    principais noes zubirianas, desde as quais ele se aproxima da realidade de Deus. Entretanto, irei inverter seu trajeto, partindo de suas consideraes sobre a inteligncia humana em direo realidade.

    2.1. A inteleco senciente

    De Descartes a Kant, dir Zubiri, o fundamento de toda filosofia a crtica,

    o discernimento do que se pode saber. Para o filsofo basco, sem dvida a investigao sobre a realidade lana mo de alguma conceituao do que seja saber, mas no menos certo que uma investigao sobre as possibilidades de saber no pode ser feita se no se apela a alguma conceituao da realidade. impossvel uma prioridade intrnseca do saber ou da realidade, mas ambos so congneres. A presumida anterioridade crtica do saber no seno uma espcie

    de timidez na arrancada do filosofar, como se algum que quisesse caminhar passasse horas estudando o movimento dos msculos de suas pernas;

    provavelmente no daria uma passo!

    2.1.1. A inteleco como ato: a apreenso

    Para Zubiri, a filosofia moderna no comea com o saber sem mais, mas

    com o modo do saber chamado conhecimento. Entretanto, nos dir, o conhecimento no repousa sobre si mesmo; o primrio do conhecimento est em ser um modo de inteleco: a epistemologia pressupe uma noologia. Ao longo

    de sua histria, a filosofia teria estudado os atos de inteleco (conceber, julgar...) separando-os dos dados que os sentidos nos do: inteligir posterior a sentir e esta posteriorizao uma oposio (desde Parmnides); mas no se teria dito o que inteligir nem sentir. O que Zubiri prope analisar a ndole do ato de inteleco.

    Segundo Zubiri, as filosofias grega e medieval teriam considerado inteligir e sentir como atos de duas faculdades, passando do ato faculdade sem uma anlise

    atenta do prprio ato de inteligir. J a filosofia moderna, desde Descartes, teria realizado uma passagem dentro do prprio ato da inteleco, considerando o

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    inteligir e o sentir como maneiras distintas de dar-se conta das coisas, como dois modos de conscincia, e acabou substantivando o dar-se conta e transformando

    a conscincia no que Zubiri chamou uma superfaculdade, o que implicou duas idias: a conscincia algo que executa atos e o formalmente constitutivo do ato

    de inteleco o dar-se conta. Porm, nos dir um dos comentadores do filsofo basco, o homem est radicalmente imerso no no tipo de conhecimento abstrato fornecido por uma faculdade, mas no ato de inteleco, como momento da inteligncia2. O que isso significa?

    Para Zubiri, o dar-se conta dar-se conta de algo presente conscincia e este estar presente no determinado pelo dar-se conta. Eu me dou conta de algo

    que j est presente. A filosofia moderna teria atentado apenas para o dar-se conta, ao passo que as filosofias grega e medieval teriam pretendido explicar a apresentao como uma atuao da coisa sobre a faculdade de inteligir. Mas a inteleco, para Zubiri, no ato de uma faculdade nem de uma conscincia, mas

    um ato de apreenso, o que seria um fato: o de que estou me dando conta de algo que me est presente. A apreenso o ato apresentante e consciente. A

    filosofia teria oposto o inteligir ao sentir, sem se fazer questo do que inteligir e limitando-se a estudar os diversos atos intelectivos. O mesmo teria ocorrido com o sentir.

    Na anlise zubiriana, a inteleco um ato de apreenso e este carter

    pertence tambm ao sentir. A apreenso sensvel e a apreenso intelectiva tm freqentemente o mesmo objeto, de modo que para determinar o que precisamente o inteligir, necessrio analisar a diferena entre o inteligir e o sentir como uma diferena modal dentro da apreenso de um mesmo objeto. A apreenso sensvel comum ao homem e ao animal. Trata-se de compreender a

    inteleco humana em contraste com o puro sentir animal.

    Sentir, para Zubiri, um processo que tem trs momentos essenciais: o

    momento de suscitao, que o que desencadeia uma ao animal; o momento de modificao tnica, pelo qual a suscitao modifica o tom vital do animal; e o momento de resposta. Estes trs momentos em sua essencial e indissolvel unidade so o que constitui o sentir. E esta unidade o que constitui o especfico

    da animalidade.

    2 FERNNDEZ TEJADA, J. A tica da inteligncia em Xavier Zubiri, p. 144.

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    O que suscita o processo senciente a apreenso do suscitante, que tem dois aspectos: determina o processo senciente em seu momento de modificao e

    resposta; e sua estrutura formal prpria, que desencadeia o processo do sentir. A apreenso sensvel consiste formalmente em ser apreenso impressiva; a

    impresso o formalmente constitutivo do sentir. A filosofia no teria reparado nesta impressividade ou o fez sem uma anlise de sua estrutura formal, limitando-se a descrever as distintas impresses. A impresso tem trs momentos: a afeco do senciente pelo sentido; o momento de alteridade, de

    apresentao de algo outro que Zubiri chama nota em afeco; e a fora de imposio com que a nota presente na afeco se impe ao senciente. A unidade

    intrnseca destes trs momentos constitui a impresso. As filosofias clssica e moderna no teriam atentado mais que para a afeco.

    O que especifica os distintos modos de apreenso sensvel so os distintos modos de alteridade. A alteridade nos faz presente o outro enquanto outro, com

    um contedo prprio. A nota algo que fica ante o senciente como algo outro, independente. Ela no s tem um contedo, mas um modo de ficar na

    impresso. Este momento chamado por Zubiri de formalidade, o modo como o contedo sentido independente e autnomo do senciente em cuja impresso fica. Este ficar depende da habitude do animal, que o modo diferente com que se enfrenta com as coisas. A formalidade o trmino de uma habitude. A

    habitude est para a formalidade assim como os receptores do animal esto para o contedo. A autonomizao do contedo, ou seja, a modulao da formalidade, da independncia, chamada formalizao3. Os modos de apreenso sensvel distinguem-se pelos modos da formalizao e so essencialmente dois: sentir a estimulidade e sentir a realidade.

    Quando a impresso s consiste em ser determinante do processo, temos um primeiro modo de apreenso sensvel. A impresso que determina por afeco o

    processo de resposta o estmulo. Quando esta afeco meramente estimulante, suscitante, afeco do mero estmulo enquanto tal. Por exemplo, quando dizemos: o calor esquenta. O calor mero estmulo, algo que to

    3 Formalizao, em Zubiri, no a idia kantiana da forma sensvel; esta consistiria em ser

    informao, mas a formalizao anterior a toda informao espao-temporal; s na medida em que h formalidade, autonomia, poder-se-ia falar em ordenao espao-temporal. Tambm no a idia de gestalt, configurao total do percebido por oposio s sensaes elementares; as prprias notas elementares so algo formalizado e a formalizao diz respeito autonomizao e no configurao, a qual resultado da primeira.

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    somente determinante trmico de uma resposta. No momento de alteridade, a nota apreendida como outra que a afeco, se faz presente numa formalidade de

    estimulidade. Sua alteridade consiste somente em suscitar uma resposta, constitui um signo4. O apreendido fica como independente do animal, mas s como

    signo objetivo, que se impe ao animal. De sua objetividade recebe sua fora de imposio. Apreender as impresses, os estmulos, como meros signos objetivos, o que constitui o puro sentir. Neste puro sentir a impresso sensvel

    impresso de estimulidade. A alteridade da nota pertence ao processo senciente

    e se esgota nele.

    Alm da apreenso de estimulidade, prpria do animal, o homem, nos seus

    chamados sentidos, possui outro modo de apreenso. Trata-se de uma apreenso sensvel, ou seja, impressiva, mas que se distingue modalmente: No novo modo de apreenso, se apreende o calor como nota cujos caracteres trmicos lhe pertencem em prprio5. No se trata de que os caracteres sejam propriedades, de que sejam caracteres de um sujeito chamado calor, mas de que sejam o prprio calor. Em prprio significa a pertena a algo. Ento, o calor no somente

    esquenta, mas quente. no significa ser, mas indica que o calor tem os caracteres como prprios. J no mais uma alteridade pertencente signitivamente ao processo senciente, mas que pertence ao calor por si mesmo,

    o qual agora no signo de resposta, mas quente de suyo6. A nova formalidade formalidade de realidade ou reidade.

    No se trata de uma idia de realidade em si como uma coisa real no

    mundo independente de minha percepo (realismo ingnuo). No vamos alm do apreendido, o que interessa o modo como o apreendido fica na apreenso. A formalidade de realidade algo em virtude do qual o contedo o que antes

    de sua apreenso. Esta estrutura o que fora a falar no s de minha apreenso do real, mas da realidade do apreendido em minha apreenso. No um salto do

    percebido ao real, mas da realidade em sua dupla face de apreendida e de prpria em si mesma.

    4 Para Zubiri, signo no sinal, que algo cujo contedo apreendido por si mesmo e que, alm

    disso, sinaliza; nem significao, prpria to somente da linguagem. S o homem tem significaes, assim como s o animal tem signos, mas ambos tm sinais o animal sinais signitivos e o homem sinais reais ou realidades sinalizadoras. 5 ZUBIRI, Inteligencia sentiente: Inteligencia y realidad, p. 55.

    6 A expresso de suyo em espanhol significa algo que pertence coisa por direito, como

    prpria. Por sua expressividade e porque em Zubiri se trata de um termo tcnico, opto por mant-la em espanhol.

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    No animal a afeco meramente estimulante; no homem o que afeta afeco real, presente como algo outro, com um contedo comum ao da

    apreenso animal, mas que fica como algo em prprio, e no como notificante. O calor, por exemplo, algo de suyo, anterior a seu estar presente no sentir. O presente algo apreendido como sendo anterior a seu apresentar-se. O calor esquenta porque j quente. O apreendido se impe com uma fora nova: a fora de realidade. A impresso impresso de realidade. Nesta apreenso apreendemos impressivamente a realidade do real. Zubiri a chama apreenso

    primordial de realidade, na qual a formalidade de realidade est apreendida diretamente, no atravs de representaes, por exemplo: A inteligncia

    senciente de que nos fala Zubiri, como a luz e o intelecto agente de Aristteles, um ato no qual se nos faz visvel a realidade das coisas. [...] o meio difano no qual conhecemos imediatamente as coisas7. Esta apreenso primordial porque nela se funda toda outra apreenso de realidade; ela nos instala no real.

    2.1.2. A estrutura da apreenso de realidade: inteleco senciente

    O momento de impresso qualifica o ato apreensor como ato de sentir e o momento de realidade qualifica-o como um ato de inteligir, que consiste em apreender algo como real. Sentir e inteligir so dois momentos de algo uno: a apreenso de realidade. A inteleco senciente, ou seja, sente a realidade8, e o sentir intelectivo. O ato de inteligir no completo independentemente do ato de sentir. Ambos constituem um ato uno9. O que h de ser oposto no o sentir e o inteligir, mas o inteligir e o puro sentir animal. H apenas um ato, com dois

    momentos: o momento senciente impresso, o momento intelectivo de realidade. Esta unidade (entre inteleco e sensibilidade) no uma sntese, como seria para Kant, mas estrutural: o sentir sente a realidade, o inteligir intelige o real impressivamente.

    Na concepo de dois atos, temos uma inteleco do sensvel, ou uma inteligncia concipiente, conforme Zubiri. Seu objeto primrio o sensvel, so

    7 FLREZ MIGUEL, C., Razn y inteligencia en Zubiri, p. 21.

    8 O autor contrape sua inteligncia senciente ao sensualismo, o qual reduziria o inteligido a

    contedos de impresso. 9 O inteligir e o sentir, separados, so potncias. Potncia, para Zubiri, um modo de fazer

    possvel algo. A inteligncia, irredutvel ao puro sentir, no est facultada a produzir seu ato sozinha; precisa estar unida ao sentir.

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    os dados dos sentidos. Estes so dados pelos sentidos inteligncia, que tem como ato formal o conceber e o julgar. Na concepo unitria de Zubiri, ou seja, na inteligncia senciente ou sentir intelectivo, o objeto primrio a realidade, que dada pelos sentidos na inteligncia, que tem como ato formal a apreenso

    de realidade. A impresso de realidade nos dada por distintos sentidos. Zubiri nos

    oferece uma lista de onze sentidos: viso, audio, olfato, contato-presso (tato), gosto os cinco tradicionais, sensibilidade labirntica e vestibular, calor, frio, dor,

    cinestesia (sensibilidade nos movimentos) e cenestesia (sensibilidade visceral). Como cada sentido me apresenta a realidade de forma distinta, h diversos modos

    de impresso de realidade. A diferena radical dos sentires no estaria nas qualidades que oferecem, mas nas distintas formas de apresentar a realidade. Para a filosofia, a coisa sentida teria sempre sido considerada como diante de mim, mas, como veremos, este apenas um dos modos de apresentao da realidade.

    A vista apreende a coisa real como algo diante de mim, segundo sua configurao. O ouvido apresenta a coisa como notcia: a coisa sonora no est

    includa na audio, mas o som nos remete a ela (apresentao notificante). No olfato, a realidade se apresenta como rastro. No gosto a coisa est presente como realidade possuda; a realidade fruvel. No tato a coisa est presente sem eidos nem gosto, como nua apresentao da realidade. Na cinestesia, no tenho presente a realidade, nem sua notcia, etc., mas a realidade se apresenta como algo em direo (apresentao direcional). No calor e no frio, a realidade se apresenta como temperante. Na dor e prazer a realidade afetante. O sentido de orientao me d a realidade como posio, como algo centrado. A cenestesia nos d que a realidade apreendida nossa prpria realidade; em virtude

    deste sentir o homem est em si mesmo o que Zubiri chama intimidade; a cenestesia o sentido do mim.

    Aos distintos modos de apresentao, correspondem modos de inteleco e inteligibilidade. Na viso a inteleco vidncia. Na audio, inteligir auscultar. No gosto, apreenso fruitiva no se trata da fruio consecutiva inteleco, mas do fruir como modo de inteleco (lembremo-nos de que saber e sabedoria so etimologicamente sabor). No tato, inteligir apalpar. No olfato, rastreio. Na cinestesia a inteleco uma tenso dinmica. Tambm

    inteligimos a realidade atemperando-nos a ela e estando afetados por ela. Na

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    sensibilidade labirntica e vestibular, a inteleco orientao na realidade. Na cenestesia, a inteleco intimao com o real, penetrao ntima no real no

    se trata de uma intimao consecutiva apreenso, mas a intimao mesma o modo de apreender a realidade.

    Os diversos sentidos no esto justapostos, mas se recobrem total ou parcialmente. Por exemplo: a vista me d a realidade ante mim. O tato me d a nua realidade. Ao se recobrirem estes dois sentidos, eu tenho a nua realidade diante de mim. H um modo de presena do real cuja importncia enorme: a presena direcional do real. Recobrindo os outros sentidos, a direo determina modos especficos de inteleco, que sempre me lanam ao real alm

    do apreendido. Recobrindo a cenestesia, a direo me lana dentro de meu prprio estar em mim. Esta inteleco de minha prpria intimidade em seu interior a reflexo10. Cada modo est nos demais como momento estrutural de todos. No h prerrogativa de nenhum modo. H certamente realidades que no podem ser

    apreendidas por todos os sentidos. Aqueles modos nos quais uma realidade no nos presente, so modos dos que estamos privados. Um cego de nascena, por

    exemplo, no que apenas no veja as cores, mas jamais v as coisas ante ele. Na apreenso de realidade cada sentido contribui no s com a qualidade sensvel, mas tambm com seu modo prprio de apreend-la como realidade.

    O sentir no est constitudo pela diversidade qualitativa, mas pela unidade

    de apresentao do real, pela unidade do momento de formalidade. A impresso de realidade sempre inespecfica. A formalidade no uma qualidade a mais,

    transcende todos os contedos, tendo uma estrutura transcendental. A transcendentalidade a face positiva da inespecificidade negativa. O que transcendental o que constitui o objeto formal da inteligncia, a realidade presente em impresso. Trans no significa estar alm da apreenso; neste caso a apreenso seria do transcendente. Trans um carter interno ao

    apreendido, no nos tira dele, mas nos submerge nele. A impresso no do transcendente, mas impresso transcendental. O apreendido em impresso de realidade , enquanto realidade, mais que o que como colorido, sonoro, etc..

    10 A reflexo passou na filosofia por ser o ato primrio da inteleco, mas ela pressupe um prvio

    estar em mim, no sendo um ato intelectivo primrio.

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    A transcendentalidade, este mais, no o momento em que todas as coisas coincidem transcendentalidade como comunidade11. O transcendental algo

    prprio do trmino formal da inteleco, a realidade; no transcendental realidade, mas nas realidades. No se conceitua o transcendental em funo

    daquilo para o qual transcende, mas em funo daquilo desde o qual se transcende. algo que se estende desde a formalidade de realidade de uma coisa formalidade de realidade de outra coisa; no comunidade, mas comunicao, no causal, meramente formal. Esta transcendentalidade tem quatro momentos.

    O primeiro momento o de abertura: a formalidade de realidade , enquanto de realidade, algo aberto, ao menos ao contedo. Por ser aberta a formalidade,

    que a coisa real mais que seu contedo atual. Realidade no o carter do contedo j concluso, mas formalidade aberta. Quando dizemos realidade, deixamos em suspenso a frase, que deve ser completada por de algo. Por ser aberta, a formalidade de realidade pode ser a mesma em distintas coisas reais:

    estas esto inscritas na mesmidade numrica da formalidade de realidade, sendo assim, realidades outras e no outras realidades. Como a realidade

    formalidade aberta, s realidade respectivamente quilo a que est aberto: a abertura respectiva o segundo momento da transcendentalidade. Ao ser assim respectivamente aberta a realidade faz seu o contedo: terceiro momento da transcendentalidade, o momento da suidade. Finalmente, a abertura no

    respectiva s ao contedo; o contedo real no s realidade sua, mas pura e simplesmente real na realidade. A realidade est aberta a ser um momento do

    mundo12: o quarto momento da transcendentalidade a mundanidade. Recapitulando: a formalidade de realidade abertura respectiva suificante e mundificante. A formalidade de realidade envolve transcendentalmente seu contedo, que j no mais mero contedo, seno tal realidade, que Zubiri chama de talidade do real: trata-se da funo talificante. Por outro lado, o prprio contedo aquilo que permite formalidade de realidade ser realidade em toda sua concreo; o

    11 Para a filosofia clssica, a partir de Parmnides, todas as coisas coincidiriam em ser, que seria,

    para Plato, o gnero supremo e, para Aristteles, o conceito supremo. Para a filosofia moderna, desde Kant, todas as coisas coincidiriam em ser objeto. 12

    Mundo no o conjunto das coisas reais. Aquilo que conjunta as coisas reais um momento fsico das coisas reais mesmas.

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    real no apenas tal realidade, mas realidade tal: a funo transcendental, que envolve o contedo fazendo dele uma forma e um modo de realidade.

    2.1.3. A ndole essencial da inteleco senciente

    Pode pensar-se que o estar presente do inteligido na inteleco um estar posto (Kant), ou ser trmino intencional da conscincia (Husserl), ou ainda ser desvelao (Heidegger). Mas em todas estas formas, o inteligido est presente na inteleco. Ainda que estivesse por posio, por inteno ou por desvelao, o

    estar presente do posto, do intencionado e do desvelado no formalmente idntico sua posio, sua inteno e sua desvelao. O posto est posto, o intencionado est intencionado e o desvelado est desvelado. Trata-se de investigar a ndole desde estar.

    O que est presente na inteleco senciente a realidade. A este estar presente da realidade, Zubiri denomina atualidade, que no o carter de ato

    de algo, no sentido aristotlico (que na terminologia zubiriana chama-se atuidade), mas o carter de atual, que alude a uma espcie de presena fsica do real. o estar presente de algo desde si mesmo em algo. O essencial no a presentidade, mas o estar. Inteleco atualidade, estar presente na inteleco. O real, ao estar inteligido, est em atualidade.

    A atualidade no relao nem correlao. A inteleco no uma relao

    do inteligente com as coisas inteligidas. A relao algo que se estabelece entre o inteligente e a coisa j inteligida; a atualidade o estabelecimento dos relatos, um tipo de respectividade. A atualidade funda-se na realidade intelectivamente

    apreendida; a apreenso intelectiva atualidade da realidade: Em toda inteleco temos realidade que atual, e que em sua atualidade nos est

    presente13 e no em sua prpria realidade mundanal, como nas filosofias grega e medieval. A coisa fica em mera atualidade.

    A inteleco apreende o real impressivamente e a apreenso das qualidades sensveis uma apreenso de qualidades reais. Estas qualidades so impresses

    nossas e a impresso no s afeco, mas tambm apresentao de algo outro. As qualidades so sensveis porque apreendidas em impresso e reais porque so

    13 ZUBIRI, Inteligencia sentiente: Inteligencia y realidad, p. 146.

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    de suyo. Que sejam impresses nossas no significa que no sejam reais. A realidade no uma zona de coisas alm de nossas impresses, no um estar

    alm da impresso, mas mera formalidade. No precisamos distinguir entre a realidade e nossas impresses, mas entre duas maneiras de ser real: na impresso e

    alm da impresso podendo haver inclusive realidades que sejam reais apenas na impresso. O real alm no real por ser alm, mas por ser de suyo algo alm. o real em impresso de realidade o que nos est levando para um alm do percebido. As qualidades sensveis no so reais alm da percepo, mas so reais

    na percepo. O que a elas possa corresponder de realidade alm do percebido algo que s pode ser inteligido fundando-nos na realidade dessas qualidades na

    percepo. Averiguar o que sejam estas qualidades no mundo alm do sentido , para Zubiri, a tarefa da cincia14.

    Pelo que tem de intelectiva ou de senciente, a inteleco mera atualidade do apreendido como real. Mas ao estar presente o inteligido, por exemplo, eu no

    apenas vejo esta coisa, mas estou vendo esta coisa. Esta unidade do estar presente a coisa e do estar presente minha viso uma mesma atualidade. O

    14 A realidade das qualidades sensveis parece estar em contradio com a cincia moderna;

    afirm-la seria realismo ingnuo. Mas a cincia entende por realidade que estas qualidades sejam reais independentes da percepo sensvel, o que no correto. Realidade formalidade do de suyo e esta formalidade no percebido um prius a respeito de sua percepo. Realidade no ser real alm do percebido. Para serem percebidas, as coisas do mundo atuam sobre os rgos dos sentidos e nesta atuao se modificam as notas fsicas no s dos rgos, mas das coisas mesmas. As qualidades sensveis so a maneira real como estas coisas alm da percepo so realidades nela. Que sejam resultados de uma atuao, algo indiferente para a inteleco enquanto tal; esta mera atualizao ainda que o atualizado proceda de uma atuao. claro que se desaparecesse o rgo desapareceria a atuao e desapareceriam realidades, como por exemplo, as cores, que so reais na percepo, mas no alm da percepo. Consideradas desde as coisas reais alm da percepo, as qualidades so a maneira real como as coisas reais esto realmente presentes na percepo; elas pertencem coisa, mas s nesse fenmeno que chamamos percepo. Seria realismo ingnuo afirmar que as qualidades sensveis so reais alm da percepo e fora dela. Mas tambm um subjetivismo ingnuo declar-las simplesmente subjetivas. No h possibilidade alguma de estabelecer a correspondncia entre as qualidades sensveis e as coisas reais, se se comea por afirmar que aquelas so qualidades subjetivas. Como a inteligncia poderia saltar do sensorial realidade? A cincia seria apenas um sistema coerente de conceitos objetivos, mas no uma apreenso de realidade. Os conceitos devem apoiar-se na realidade sentida. No h causalidade nenhuma que possa levar do puramente subjetivo ao real. Este realismo crtico uma concepo pseudo-realista. As realidades na percepo e alm dela so idnticas em ser de suyo; o que distinto o contedo. No se trata de que o contedo perceptivo no seja real, mas de que sua realidade insuficiente, levando-nos assim da realidade percebida realidade alm da

    percepo. Por isso a zona alm da percepo sempre problemtica. A realidade apreendida nesse modo de sentir que o sentir a realidade em direo nos lana para o real alm do percebido. Ir ao real alm da percepo inexoravelmente necessrio; toda qualidade percebida em um direcionamento. O ponto de partida da afirmao do real alm da percepo o real percebido. Tudo o que a cincia afirma do mundo fsico s est justificado como explicao do percebido enquanto real na percepo. As ondas eletromagnticas ou seus ftons, por exemplo, so necessrios para a cor percebida; aquelas no ficam fora da qualidade percebida, so a realidade desta qualidade dentro dela. A cor a onda percebida. As qualidades sensveis so a realidade perceptiva do que cosmicamente excede delas. Na realidade direcionalmente apreendida o que de suyo problema: o problema de qual seja a estrutura mesma do que de suyo.

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    inteligido distinto da inteleco: h duas coisas atuais distintas numa s atualidade. Assim, a essncia completa da inteleco senciente : na mera

    atualidade da coisa e do inteligir se atualizam, pela identidade numrica de sua atualidade, a inteleco e o inteligido como duas realidades distintas15. Meu

    prprio ato de inteleco uma realidade, atualizada na mesma atualidade da coisa que vejo: assim estou em mim. Se no fosse assim, eu teria uma idia de minha inteleco, mas no um estar realmente inteligindo-me em minha realidade. Este estar em mim no resultado de voltar sobre meu ato; eu volto

    porque j estou em mim. A possibilidade de introspeco se funda na atualidade comum da coisa e de minha inteleco.

    Nesta atualidade comum, est presente a coisa na inteleco e a inteleco na coisa; a inteleco fica co-atualizada. A atualidade comum tem antes de qualquer coisa este carter de com, e logo em seguida este carter de em. E ainda, esta atualidade comum atualidade da coisa e da inteleco; toda

    atualidade atualidade do real: seu terceiro carter o de. Com, em e de so trs aspectos de uma mesma atualidade comum, cada um fundando-se no

    seguinte.

    Ao ficar inteligida a coisa real, fica co-inteligida a inteleco senciente. Se chamamos ao inteligir cincia, esta inteleco comum como atualidade intelectiva no ser apenas cincia, mas conscincia: Conscincia co-atualidade

    intelectiva da inteleco mesma em sua prpria inteleco16. A conscincia radical e formalmente senciente e no formalmente introspeco, que to s

    um modo de conscincia: a conscincia do ato de entrar em si mesmo, que se funda no estar em si mesmo. A conscincia-de se funda na conscincia-em, que est fundada no com radical, no com impressivo da inteleco senciente.

    A filosofia moderna, segundo Zubiri, partiu da conscincia-de, e assim teria cometido um duplo erro: identificou conscincia e conscincia-de; e

    inteleco e conscincia, com o qual inteleco seria dar-se conta de. A atualidade comum no resultado, raiz da subjetividade; ela conduzir,

    enquanto atualidade da inteleco, a descobrir e conceituar a inteligncia e tudo o que costuma chamar-se sujeito. A essncia da subjetividade no , para Zubiri,

    15 Ibid., p. 156.

    16 Ibid., p. 161.

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    ser um sujeito de propriedades, mas, por assim dizer, ser mim. A inteleco senciente a constituio mesma da subjetividade, a abertura do mbito do mim. Sujeito e objeto no se integram na inteleco senciente, mas esta que se desintegra em sujeito e objeto.

    Passarei a considerar agora, de modo mais breve, os modos ulteriores da inteleco o logos senciente e a razo senciente , bem como o problema da realidade em e por si mesma, e no como atualizada na inteligncia.

    2.1.4. Os modos ulteriores da inteleco: logos e razo

    Temos ento que inteligir ter em nossa inteligncia o real. A realidade no algo a que se tenha de ir, mas algo em que j se est; no algo que necessite ser justificado para a inteligncia.

    Cada coisa real no s respectiva ao inteligir, mas a outras coisas reais. Realidade formalidade aberta a seu prprio contedo e realidade de outras

    coisas reais. Se no fosse pela respectividade, a apreenso do real no daria lugar pergunta de que em realidade a coisa real, porque teramos uma apreenso

    exaustiva. O real aberto transcendentalmente em direo o que determina os modos ulteriores de inteleco.

    A inteleco formalmente apreenso direta, imediata e unitria do real, e a unidade destes trs momentos constitui que o apreendido o seja em e por si mesmo. Toda inteleco est montada sobre esta inteleco do real em e por si mesmo. A ulterioridade consiste em inteligir o que em realidade o j apreendido como real17. S porque insuficiente a apreenso de algo como real

    porque temos que inteligir o que esse real em realidade. Nos modos ulteriores de inteleco o contedo do apreendido se faz imensamente mais rico. Entretanto,

    no o contedo que constitui a essncia formal da inteleco e, neste sentido, a apreenso primordial mais rica e a inteleco por excelncia. S referidos apreenso primordial os modos ulteriores so inteleces do real: A apreenso ulterior a expanso do real apreendido j em apreenso primordial como real18.

    A abertura da coisa apreendida como real a outras coisas reais tambm apreendidas constitui o que Zubiri denomina campo de realidade. Inteligir o que

    17 Ibid., p. 266.

    18 Ibid., p. 267.

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    a coisa real em realidade inteligi-la como momento do campo de realidade, como respectiva a outras coisas do campo. Mas a formalidade de realidade est

    aberta a ser momento da realidade, est transcendentalmente aberta ao que Zubiri chama mundo. Respectividade campal e respectividade mundanal

    so duas dimenses da respectividade do real enquanto tal. O campo de realidade no extrnseco realidade das coisas, mas um

    momento campal seu. Como o momento de realidade das coisas nos dado pelas coisas mesmas em impresso de realidade, o campo de realidade est determinado

    pelas coisas reais e no s pela unidade de meu ato perceptivo. A realidade formal e constitutivamente aberta a um campo. Entre uma coisa real e o campo de

    realidade h uma respectividade cclica, como no campo eletromagntico ou gravitacional. Ademais, o real um momento da pura e simples realidade, e na sua imensa multiplicidade tem uma unidade como realidade mundanal. Esta unidade constitui o mundo. Cada coisa real em e por si mesma e realidade

    campal e mundanal. O inteligido como real pode ser inteligido ulteriormente segundo ele em

    realidade, ou seja, a respeito de outras coisas reais, no campo de realidade. O logos a inteleco do que o real em sua realidade campal, desde outras coisas reais; trata-se de um enriquecimento do contedo da apreenso primordial. Ao logos pertence a simples apreenso e a apreenso judicativa. O logos no amplia a realidade, mas enriquece seu contedo.

    H outro modo de inteleco: a inteleco do real como momento do

    mundo, que se apia na inteleco do real como campal, no logos. No um raciocnio, mas uma marcha desde a realidade campal at a realidade mundanal; marcha irredutvel ao logos, e que constitui a razo, marcha transcendental para o mundo, para a pura e simples realidade. A razo no tem que obter a realidade, mas j nasce e marcha nela.

    As seguintes palavras de Roberto Hernez resumem bem o objetivo da noologia zubiriana:

    toda a filosofa da inteligncia zubiriana consiste no intento de separar a inteligncia senciente ou apreenso primordial de realidade de seu ulterior momento lgico-lingstico. A inteligncia senciente tem a ver com a apreenso de

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    uma coisa enquanto que realidade, e isso sempre prvio e radical a todo raciocnio e clculo, isto , a uma inteligncia pensante19.

    2.2. A realidade

    Como vimos, realidade formalidade de alteridade do apreendido sencientemente, que fica na apreenso como algo em prprio: A realidade [...] a coisa como algo de suyo. A coisa se atualiza na inteligncia, se nos apresenta intelectivamente, como sendo de suyo antes de estar-nos presentes20. H uma anterioridade formal do apreendido a respeito de seu estar apreendido: o que Zubiri chama prius. Assim, a formalidade de realidade nos instala no apreendido como realidade em e por si mesma [...]. O de suyo constitui, pois, a radicalidade da coisa mesma como real e no somente como alteridade21.

    Realidade no , para Zubiri, existncia; a existncia no formalmente um momento da realidade do apreendido. A existncia compete coisa real de suyo; seu momento de existncia est fundado em seu momento de realidade. O

    que constitui formalmente a realidade no o existir, mas o existir de suyo. O formalmente apreendido em inteligncia senciente o que de suyo, no o que existente. A inteligncia concipiente no se ateve ao momento do de suyo e assim teria feito uma metafsica da realidade como existncia.

    A formalizao o que constitui o modo de alteridade do contedo apreendido; autonomizao deste contedo, a qual tem dois momentos: independncia do mesmo a respeito do apreensor e a respeito de outras coisas apreendidas a este segundo momento Zubiri denomina momento de unidade

    fechada do apreendido. Quando estes dois momentos so da formalizao de realidade, o apreendido caracteriza-se como o real, algo de suyo independente e uno.

    As notas apreendidas so a constituio do real. Seu primeiro carter ser constitucional. No temos aqui um conceito teortico, mas um momento da apreenso impressiva mesma. O contedo tem capacidade para ser de suyo, capacidade de constitucionalidade, que Zubiri denomina suficincia constitucional. O real como constitucionalmente suficiente o que Zubiri chama

    19 HERNEZ, R., Filosofa, actualidad y inteligencia en Xavier Zubiri, p.61.

    20 ZUBIRI, Sobre la esencia, pp. 394-395.

    21 Id., Inteligencia sentiente: Inteligencia y realidad, p. 191.

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    realidade substantiva, substantividade, que assim, suficincia para ser de suyo22.

    As notas constitucionais podem ser fundadas em outras ou ser constitutivas, repousando sobre si mesmas. Estas ltimas constituem o

    subsistema radical da substantividade, so sua essncia, que o sistema de notas necessrias e suficientes para que uma realidade substantiva tenha suas demais notas constitucionais.

    Cada nota apreendida tem suficincia constitucional (substantividade elementar); mas geralmente o contedo apreendido uma constelao de notas, em que todas tm a mesma formalidade de realidade: o que real o conjunto inteiro. Cada nota tem uma posio no conjunto, nota de todas as demais. o que Zubiri chama estado construto. Toda nota real apenas em unidade com outras notas reais. O conjunto a unidade posicional e construta de suas notas: sistema substantivo.

    A unidade do sistema constitui sua interioridade (mas no algo oculto por baixo das notas). As notas so a projeo da unidade, so sua exterioridade. O real substantividade estrutural e dimensional: a dimenso a atualidade da interioridade do sistema na exterioridade de sua estrutura. Assim, o real , desde a inteligncia senciente, uma substantividade dimensional.

    O real no coisa, mas algo em prprio. As notas no so acidentes

    inerentes a um sujeito substancial, nem predicados de um objeto, mas momentos constitucionalmente coerentes em um sistema construto substantivo.

    Toda coisa real nota elementar ou sistema substantivo tem dois momentos: o de ter tais notas talidade e o de ter forma de realidade e modo de (implantao na) realidade, pelo qual as coisas reais no diferem s por suas notas, mas sobretudo pelo modo como essas notas so suas. Por este segundo momento, aberto, o real mais do que pelo contedo.

    Todo real respectivo. A respectividade remete cada coisa real a outra. Toda coisa real por sua respectividade real em funo de outras coisas reais. o que Zubiri denomina a funcionalidade do real, que no necessariamente

    22 A substantividade de Zubiri no a substancialidade aristotlica. Para Aristteles, a substncia

    seria um sujeito de propriedades essenciais e o que Zubiri chama de notas seriam acidentes, realidades insubstantivas Para Zubiri, Aristteles no teria atentado para o fato de que h substncias insubstantivas, como por exemplo, as ingeridas pelo organismo, que perdem sua substantividade, mas no sua substancialidade, tornando-se notas do mesmo.

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    causalidade, a qual ser apenas um modo de funcionalidade23. Cada coisa real constitutivamente aberta para outras coisas reais, assim como cada forma de

    realidade e cada modo de realidade esto aberto a outras formas e modos. Segundo Zubiri, h trs formas de realidade: o mero ter em prprio as

    notas (um mineral, por exemplo), o auto-possuir-se (os viventes) e o ser pessoa (o ser humano, que seu enquanto sua realidade, por possuir inteligncia senciente).

    O ser a atualidade primeira e radical do real. O real atual na

    respectividade mundanal. Ser atualidade mundanal, algo ulterior realidade, e esta ulterioridade tem uma estrutura formal prpria: a temporeidade. No se

    trata de posterioridade cronolgica, mas posterioridade puramente formal. A ulterioridade pertence ao real de suyo. O ser o ser da substantividade, no h ser substantivo, mas ser do substantivo. Ser algo fundado na realidade. Todo real , mas por j ser real. A ulterioridade do ser est co-sentida ao sentir a realidade. Ao sentir impressivamente o real, estamos sentindo que est sendo no mundo ( o que Zubiri denomina obliqidade do ser). Atualidade, ulterioridade e obliqidade so os trs momentos estruturais do ser24.

    At aqui, uma apresentao sumria dos aspectos fundamentais da filosofia zubiriana. Passaremos agora ao tema central deste trabalho, que o do problema de Deus para Xavier Zubiri, o qual surge a partir do problema do homem, ou

    melhor, constitui seu prprio problema.

    23 Zubiri relaciona e explica vrios modos de funcionalidade em Inteligencia y logos (pp. 36-37),

    como por exemplo: sucesso, coexistncia, posio, espaciosidade e espacialidade, etc.. 24

    Para a inteligncia concipiente, inteligir seria entender o que algo ; realidade seria entidade, mas no se teria chegado, segundo Zubiri, a uma idia precisa do ente mesmo.

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