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88 O Homem, deidade e Deus no pensamento de Xavier Zubiri: uma reflexão inicial 1 Antonio Vidal Nunes Vitória (ES), vol. 2, n. 2 SOFIA Dezembro 2013 V V e e r r s s ã ã o o e e l l e e t t r r ô ô n n i i c c a a 1 Trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião, promovido pela ABFR, em outubro de 2013 na cidade de Vitória-ES. Brasil. UFES/[email protected]

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Com base na tradição filosófica recebida, no que diz respeito a compreensão de Deus, Xavier Zubiri inaugura um caminho novo de conceber a relação entre o homem e Deus. Para ele, o homem, na sua relação com o poder do real, ou deidade, que é ultimidade, possibilidade e impelência, ao qual está intrinsecamente religado, encontra as condições necessárias para realizar o seu ser. A religação é um fato do qual o homem parte na busca do fundamento que lhe serve de apoio. Assim, o homem, vai estabelecendo e experienciando as ideias de Deus, no próprio movimento que faz enquanto pessoa. Essa busca culmina em sua entrega total a uma realidade suprema a que adora, eleva suas súplicas e se refugia. Essa entrega do homem faz parte do âmbito da própria fé.

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    O Homem, deidade e Deus no pensamento de Xavier Zubiri: uma reflexo inicial1

    Antonio Vidal Nunes

    Vitria (ES), vol. 2, n. 2 SOFIA

    Dezembro 2013 VVeerrssoo eelleettrrnniiccaa

    1 Trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de Filosofia da Religio, promovido pela ABFR, em

    outubro de 2013 na cidade de Vitria-ES. Brasil. UFES/[email protected]

  • 89

    Resumo: Com base na tradio filosfica recebida, no que diz respeito a compreenso de Deus,

    Xavier Zubiri inaugura um caminho novo de conceber a relao entre o homem e Deus. Para

    ele, o homem, na sua relao com o poder do real, ou deidade, que ultimidade, possibilidade e

    impelncia, ao qual est intrinsecamente religado, encontra as condies necessrias para

    realizar o seu ser. A religao um fato do qual o homem parte na busca do fundamento que lhe

    serve de apoio. Assim, o homem, vai estabelecendo e experienciando as ideias de Deus, no

    prprio movimento que faz enquanto pessoa. Essa busca culmina em sua entrega total a uma

    realidade suprema a que adora, eleva suas splicas e se refugia. Essa entrega do homem faz

    parte do mbito da prpria f.

    Palavras-chave: Realidade, poder do real, homem, Deus.

    Abstract: Based on the received philosophical tradition, as regards the understanding of God, Xavier Zubiri inaugurates a new way of conceiving the relationship between man and God. For

    him, the man, in his relationship with the real power or deity, which is ultimacy and impelncia

    possibility, which is intrinsically rewired, finds necessary to carry out their being conditions.

    Reconnection is a fact that the man in the quest of the foundation that supports it. Thus man,

    will establish and experiencing the ideas of God, the movement itself as a person who does.

    This search culminated in his surrender to a love supreme reality that elevates their

    supplications and retreats. This man delivery is outside the scope of their faith.

    Key words: Reality, the real power, man, God.

    Introduo

    lugar comum entre os estudiosos de Xavier Zubiri a indicao da centralidade do

    conceito de homem, Deus e realidade em seu pensamento, temas abordados com base em uma

    interlocuo permanente com a tradio filosfica. Essa interlocuo submetida a uma

    avaliao crtica nas mais diversas respostas dadas aos assuntos que ele privilegiou em sua

    investigao filosfica. Tudo isso na tentativa de responder aos desafios colocados em seu

    contexto histrico e intelectual. As insuficincias explicativas encontradas pelo filsofo

    espanhol nos mais variados modelos explicativos de natureza filosfica, o impulsiona de forma

    apaixonada na busca de novas referncias que pudessem trazer atualizaes aos temas para ele

    vitais, adequadas ao seu tempo e sua cultura.

    Enquanto Gastn Bachelard buscava uma filosofia a altura da nova cincia, Xavier Zubiri

    se empenhava em uma compreenso do homem, da realidade e da religio no interior da

    linguagem filosfica que pudesse superar as vrias alternativas no cenrio filosfico.

    Estabeleceu um novo horizonte de compreensibilidade do fenmeno religioso, no qual o legado

    herdado sofre uma ao crtica ao cabo da qual delineia uma nova orientao. Sua perspectiva

    no desconsidera o esforo de seus predecessores, mas de forma consistente e rigorosa, inaugura

    uma variao nova e original na compreenso do homem e no tratamento do problema de Deus,

    desde suas heranas fenomenolgicas.

    Para que possamos levar a termo nossos propsitos percorreremos as seguintes etapas.

    Em um primeiro momento nos deteremos em uma anlise da realidade humana. O homem

    enquanto animal de realidade se apresenta como uma essncia aberta, com a tarefa fazer a si mesmo, mediante uma experimentao de si e do mundo que envolve inteligncia, sentimento e vontade. Contudo, o impulso que o leva na realizao de si mesmo vincula-se ao poder do

    real, ao qual ele est religado. Ele depende deste poder,ou deidade, que ultimidade,

    possibilidade e impelncia, para ser o que deve ser. Em sua inteleco o homem chega a Deus,

    como fundamento deste poder2. Assim, Deus no se apresenta como um objeto qualquer ou

    2 Poder no fora. Em alemo tem por sorte duas palavras: a palavra Kraft ou Ursache (fora ou

    causa) e a palavra Macht, o poder. Era mister reivindicar na metafsica o lugar que tem o poder no

    sistema de conceituao da realidade [...] Ser possvel que o poder coincida em seu mbito com a

  • 90

    como uma entidade desvinculada do mundo, mas como uma realidade fundamento que se

    encontra nas coisas reais, sem se reduzir a nenhuma delas. Assim pretendemos mostrar, como

    nessa marcha para o fundamento o homem descobre, experimenta e se entrega a Deus, ao

    mesmo tempo que cria sua realidade humana. Essa reflexo parte dos estudos iniciais que

    comecei a realizar sobre o autor, assim sendo, assumo as deficincias do trabalho, sobretudo, as

    possveis imprecises conceituais.

    A realidade humana

    Nos inserimos em um universo constitudo de coisas reais da qual tambm fazemos parte

    de forma intrnseca. Com isso queremos dizer que existe as coisas e ns estamos junto com elas

    como parte da realidade. O homem est implantado na realidade, cada coisa, como nos diz

    Zubiri (1984), constituda de notas, ou para simplificar, de propriedades3, termo que o autor

    evita usar devido a problemas semnticos. As coisas so compostas por um sistema de notas.

    Falar em sistema implica muito mais do que uma simples relao de notas, mas uma situao de

    respectividade. Uma nota sempre nota - de, sempre vertida para as demais. Poderamos falar

    de uma solidariedade entre elas, ou de uma unidade entre as notas, que faz da coisa uma

    substantividade4. Essas notas articuladas em um sistema constitui as coisas. Cada uma delas tem

    um papel muito bem definido, tal como ocorre com o sistema de engrenagem de um relgio.

    Ao mesmo tempo as notas pertencem s coisas e tambm indicam ou notificam o que

    elas podero ser. Assim elas tm um dupla funo que talvez o termo propriedade, no entender

    do nosso autor, no deixaria claro. As notas, a um s tempo, do consistncia coisa e indicam

    uma outra coisa que se encontra para alm dela, mas no separada da mesma. Algo o contedo

    das notas presentes na coisa, que lhe d existncia, mas preciso entender que cada coisa mais

    do que seu contedo propriamente. Alerta tambm Zubiri para no se confundir existncia com

    realidade, mas sim como formalidade mediante a qual algo apreendido como de suyo. Aqui

    ele distingui o que contedo do real (que se aproximaria dos acidentes na concepo

    aristotlica) e aquilo de formal que ele denomina de suyo, que apreendido de forma senciente5,

    causalidade, porm esta coincidncia no significa uma identidade formal. Muito menos, se da realidade

    material sairmos para a realidade do esprito. No esprito tem muitos poderes que no se podem reduzir

    pura e simplesmente s causas que a metafsica grega vem numerando. um autentico Macht, um poder (ZUBIRI, 1993, p. 42). 3 Zubiri justifica a razo pela qual evita o termo propriedade, que poder ficar mais clara ao leitor no

    desenvolvimento da reflexo. No organismo no no tem mais uma substantividade prpria, prpria do organismo como sistema. E todas as suas substncias, por exemplo a glicose, tem em si e por si mesmas o

    que se tem chamado a sua prpria substancialidade. Sem dvida, esta mesma glicose ingerida em meu

    organismo tem conservado sua substancialidade (prescindo das transformaes metablicas), porm

    perdeu sua substantividade para converter-se em mera nota de` meu sistema orgnico. uma substncia

    insubstantiva. Precisamente por isso no chamo as notas de propriedades, mas sim notas`. No so

    propriedades inerentes a um sujeito, mas sim notas coerentes entre si na unidade do sistema (ZUBIRI, 1984, p. 21).

    4 A unidade constitucional , pois, uma unidade primria cujas distintas notas no so seno momentos

    concatenados, posicionamentos interdependentes em forma clausurada; uma unidade de sistema. Pois

    bem; este carter constitucional justamente o que chamamos substantividade. O que a constituio

    constitui uma realidade substantiva [...] a coisa enquanto substantiva o sistema mesmo; no outra

    coisaoculta atrs dela (ZUBIRI, 2008, p.146-147).

    5 Zubiri emprega o termo sentiente, mas preferimos usar aqui o vocbulo assumido na traduo da edio

    brasileira de Inteligncia sentiente, aceitando a justificativa do tradutor, realizadas em suas notas prvias.

    Quanto ao zubiriano sentiente, preferimos traduzi-lo por senciente`(do lat. Sentiens, entis, part.pres. de sentire) porque alm de dicionarizado, o termo j tem amplo curso entre os estudiosos brasileiros de

    Zubiri. Deve se consignar, todavia, que no se trata de uma opo unnime entre os zubirianos lusfonos:

    h os que preferem sentiente`, adjetivo formado segundo o paradigma regular de consentir>

    consentiente`, ouvir>ouvinte` e pedir > pedinte (ZUBIRI, 2011).

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    como base na atuao que cada coisa tem em relao com as outras e consigo mesmo de acordo

    com as notas que possui, e que podem ser distintas em sua constituies, mas que aqui no

    discutiremos. Cada coisa real encontra-se ento aberta s outras, o que Zubiri chama abertura

    do real, que deve ser entendido como algo fsico, e no meramente conceitual. A realidade

    envolve esta abertura de cada coisa real.

    No caso da substantividade humana vamos encontrar vrias notas, articuladas a trs

    grupos distintos, mas no separados. Uma delas define o homem como um ser vivente,

    possuidor de vida. Um vivente apresenta comportamento bem distinto, por exemplo, de uma

    pedra. Ele mantm uma certa autonomia em relao ao meio que vive, ao mesmo tempo exerce

    o seu controle, enquanto vive em si e para si. , no entender de Zubiri, auts. Toda sua atividade

    vital ocorre no sentido de autopossuir-se (ZUBIRI, 1984, p. 31).

    Mas preciso ressaltar que nesse universo mais amplo da vida, o homem um animal, ao

    lado de outros, e enquanto tal, uma das coisas que o marca a sua capacidade de sentir. O

    homem desenvolveu uma funo mediante a qual ele sente. E se isso acontece em funo do

    fato de ter impresso, e ela implica dois momentos inseparveis, o da afeco de um contedo

    determinado, que por sua vez apresenta-se sempre como alteridade. Aqui surgir uma

    bifurcao entre o homem e os demais animais quanto a alteridade. No segundo, a alteridade se

    restringe formalidade de estimulidade, no se constituindo algo real como se suceder no caso

    do homem. Na apreenso o homem, mediante o ato de inteleco, apreende algo como real, ou

    seja, como de suyo. Aqui surge uma distncia infinita entre o homem e os demais animais. Na

    apreenso, que implica sempre um ato de sentir, o homem, em funo da ao intelectiva,

    apreende algo em sua alteridade, como de suyo, em uma ao unitria onde o sentir e o inteligir

    encontra-se intimamente vinculados. por isso que podemos falar, segundo nosso autor, de

    uma inteligncia senciente. Rebater ele o postulado, muito presente na histria da filosofia, de

    que o sentir e o inteligir so duas atividades separadas, cada uma pertencendo a uma faculdade

    distinta, a do sentir e a do inteligir, com a postulao que a ao da segunda prolongamento do

    trabalho desenvolvido pela primeira. Para ele, na apreenso primordial que podemos fazer do

    real elas esto unidas, posteriormente a inteligncia em seus vrios momentos pode distanciar

    desse momento primordial, mas sempre impulsionado por ele, na busca de atualizar aquilo que

    foi apreendido como de suyo (ZUBIRI, 1984,p. 39) H um sentir que intelige e um inteligir que

    sente, assim julga garantir a unidade entre inteligncia e realidade (GARCA, 2006, p. 65). O

    viver, sentir e inteligir faz parte da substantividade do homem.

    A substantividade humana e os subsistemas

    Dando um passo a frente em nossa reflexo, Zubiri nos assevera que a substantividade

    humana formada de dois subsistemas, aos quais denominou corpo e psique. O primeiro

    formado por notas fsico-qumicas. Em decorrncia da posio e da relao solidria de cada

    nota nesse sistema, temos a formao de um organismo. Dessa forma se constitui o corpo como

    parte do cosmo e do mundo, enquanto atualidade do homem presente no universo na forma de

    matria corprea6. Mas temos ainda o outro subsistema que a psique, que distinto do corpo, porm seria

    um erro situ-lo fora daquela totalidade que constitui a substantividade humana, pois ela

    implica a unidade estrutural entre o orgnico e psquico. O organismo sempre organismo-de,

    assim como, o psquico sempre psquico-de. Ambos no podem ser entendidos seno a partir

    de uma recproca codeterminao no qual participa todas as notas dos dois subsistemas em seu

    conjunto. a partir desse horizonte que deve ser entendida toda ao humana, ainda que possa

    preponderar aspectos de um dos sistemas nos atos, a unidade permanece nos termos asseverado

    por Zubiri, todo organismo psquico, e todo psquico orgnico. Porque todo psiquismo transcorre organicamente, e todo o orgnico transcorre psiquicamente (ZUBIRI, 1984, p. 43).

    6 ZUBIRI, 1984, p. 40

  • 92

    Dizamos antes que o viver e o sentir uma experincia prpria do reino animal, do qual faz

    parte o homem. O sentir, por sua vez, sempre implica o momento no qual sou afetado por um

    estmulo, o que leva a uma alterao vital tnica, e em consequncia uma resposta. Enquanto

    nos demais animais essa ao para no estmulo, e a resposta sempre a mesma, no homem o

    estmulo se prolonga em apreenso do real7. Para alm do ato do sentir, algo se apresenta na

    inteleco com o real, de suyo. Abre-se ento para o homem uma infinidade de possibilidades

    de respostas. Nele j no existe o puro sentir, mas surge o sentimento que sempre alterado na

    apreenso da realidade. Aqui entra outro elemento fundamental na experincia humana que a

    volio. O homem responde ao real, atravs de escolhas que faz no processo mesmo, em que se

    comea a fazer-se humano, o que implica sempre, apreenso do real, sentimento do real, e volio do real (ZUBIRI, 1984, p. 45). O homem um animal, dado a notas que o constitui e que lhe permite um enfretamento com a realidade que tem como ponto de partida a inteleco

    senciente.

    Modo da realidade humana

    O fato de ser o homem um animal de realidade, significa dizer que ele continua animal

    pelas suas notas, mas ao mesmo tempo, em funo de no mais ter os estmulos como simples

    signos, como ocorre com os demais animais, por fora da inteligncia torna-se um animal de

    realidade. O fato de inteligir a realidade, permitir o homem desdobramentos que o levar a uma

    diferenciao dos demais de sua linhagem animal, mas sem que ele deixe de ser animal. Com a

    instaurao da realidade ele apenas no ser de suyo, mas ser seu. O que equivale dizer que ele

    possuidor de sua prpria realidade, algo apenas possvel ao homem. sua forma prpria de ser

    realidade, e realidade humana. Sendo seu, ele nas palavras de Zubiri, suidad. precisamente

    por ser seu que ele, na constelao simblica tecida pelo pensador espanhol persona8,

    personeidade a marca que caracteriza o homem. Com base nela temos a personalidade, que o resultado histrico da forma como esse homem de forma concreta vai se possuindo atravs das

    aes que realiza em sua vida (FONT, 2004, p.47). Ou ainda, nas palavras do prprio Zubiri a figura segundo a qual a forma de realidade se vai modelando em seus atos e enquanto se vai

    modelando neles (ZUBIRI, 1984, p. 49). Assim poderamos dizer que a personalidade se constitui assentada em algo de perene na vida do homem. A personalidade pode mudar, mas

    essa base constitutiva do homem no.

    O fazer-se do homem se d na realidade, frente a tudo o que existe. Por um lado ele

    experimenta este ser seu, esta autopossesso, que o coloca de forma absoluta em relao s

    demais coisas do seu meio, que se encontram em relao a ele de forma solta e independente.

    Assim, o homem na sua maneira de ser apresenta-se como um modo de realidade absoluto. Por

    outro lado, o que absoluto no escapa ao relativo, pois a realidade humana, enquanto

    implantada na realidade, encontra-se em processo de aquisio permanente daquilo que . Cada

    ao, deciso, escolha, iniciativa do homem, por simples que seja, joga um papel decisivo na

    construo de sua realidade. O homem no um ser pronto de forma definitiva, nem a realidade

    apresenta-se de forma esttica de tal maneira que ele possa controlar e dominar todas as

    situaes em que se encontra. Da o fato do homem ser ontologicamente assaltado pela

    inquietude que lhe intrnseca. E isso ter consequncias para sua vida e para o tema que

    estamos tratando.

    O ser do homem

    A palavra ser ocupa um lugar de proeminncia na histria da filosofia, ainda que possa

    sofrer alteraes em seu contedo semntico. Nos interessa aqui explicitar que sentido Zubiri d

    ao termo em sua filosofia. Segundo ele, o ser atualizao do real no mundo, o que pressupe a

    realidade na anterioridade. Realidade e ser, embora distintos, encontram-se em unidade, a

    7 Todo esse processo analisado de forma pormenorizada no primeiro volume da trilogia Inteligncia

    Senciente, intitulado Inteligncia e Realidade, traduzido no Brasil pela editora atualizao. 8 Dira Zubiri: A este carter de pertencer a si mesmo como realidade, enquanto realidade, justamente o

    que se chama de persona (ZUBIRI, 1993,p. 31).

  • 93

    primeira fundamenta a segunda. Enquanto vinculado realidade o ser est sempre sendo, a

    realidade sendo em suas mltiplas possibilidades. Em se tratando do homem concretamente, as

    atualizaes ocorrem mediante ao seu Eu.

    Para o pensador em estudo o Eu o ser9 do homem, e nele ocorrem as atualizaes da

    pessoa humana desde o momento de sua constituio at outros posteriores, resultantes de

    maior riqueza na sua interao com o mundo. Ningum nasce com um Eu pronto, ele se

    constitui com o tempo a partir de um processo no qual vai percebendo a si, o outro, o outro

    enquanto outro e o mundo. Vejamos como, para Zubiri, se inicia o ser do homem, o eu em seus

    momentos. Primeiramente o homem se expressa atravs do me. O eu ainda no se percebe em

    sua singularidade e nem apreende o outro em sua alteridade. a maneira primordial de se

    exprimir, a qual o homem nunca abandonar: Me encontro aqui, me encontro mal, me

    encontro feliz, me encontro no mundo. Aps esse momento, encontramos o meu, expressando algo de interior, ou na expresso de Zubiri foro interno. Isso acontece a partir de um maior enriquecimento da minha realidade substantiva pessoal. Meu p, meu cu, minha casa, minha

    aldeia. Por este momento de atualizao sou meu em relao a todos os demais. Sem o primeiro no teria o segundo. Mas com o segundo termo vem a terceira atualizao, agora sou

    eu que tem o cu, a casa, o lugar. Esse momento representa a mxima maneira de determinar mundanamente meu ser relativamente absoluto (ZUBIRI,1984, p. 57) . Dessa forma o eu pressupe o me e o leva como ingrediente seu. O meu pressupe o me e o leva como ingrediente

    seu. De certo modo, eu estou sendo como meu (ZUBIRI, 2007, p. 125). O Ser, o Eu, no so possuidores de substantividade prpria como foi postulado pelo

    idealismo que mereceu duras crticas de Zubiri. Primeiro vem a realidade, no caso do homem, a

    realidade humana, que permite a personeidade enquanto abertura que coloca o Eu em

    movimento de constituio e de atualizao a partir das dimenses individuais, sociais e

    histricas, tal como conceitua o pensador basco. Mas qual ser a vinculao do ser e da

    realidade?

    Essa relao leva Zubiri a uma descrio do homem como parte de uma espcie. Certamente sua

    concepo distancia-se daquela proposta por Aristteles, que v no termo uma unidade de uma

    pluralidade existente. Para nosso autor o termo exprime muito mais do que isso, ele transcende

    o horizonte de uma viso meramente naturalista. No seu entender, espcie no apenas unifica

    mais pluraliza (p. 60). Trata-se do momento gentico que de alguma maneira ser responsvel

    posteriormente pela realizao do ser persona em seus vrios aspectos e na determinao do Eu.

    Em todos aos animais h um esquema de reduplicao constitutiva que vai gerar a formao de

    um phylum. Como entender cada espcie seno participando de um phylum?

    Em decorrncia do cdigo gentico possvel a criao de uma rplica, que embora pertena ao

    mesmo phylum trata-se de uma outra pessoa sempre vertida para as outras pessoas humanas em

    funo da estrutura prpria e constitutiva do ser humano, o que gera uma refluncia, uns afetam

    os outros. Cada pessoa de suyo, mas por sua vez codeterminada por outras pessoas, como

    parte das dimenses anteriormente citadas: individual, social e histrica.

    Em se tratando da primeira, como atesta Zubiri, a diversidade faz parte do phylum, porm

    sem escapar espcie. Cada homem diverso do outro enquanto animal de realidade, possuidor

    de sua singularidade prpria, ainda que pertena a uma mesma espcie. Cada um no apenas

    diferente, mas diverso desde um mesmo phylum. Um gato diferente de um homem, porem no

    podemos dizer que diverso, pois so partcipes do mesmo phylum, s podemos falar de

    diversidade dentro de uma mesma espcie na qual cada homem realidade nica em

    decorrncia da sua suidade. Por isso cada Eu, sob certo aspecto, se realiza como um ser-cada-qual tendo em conta sua relao com as outras pessoas. A dimenso individual diz respeito diversidade no interior do phylum, contudo o esquema filtico definidor do fato de cada

    homem estar vertido ao outro, o que veremos.

    9 Em relao ao Eu e a ao ser nos afirmar Zubiri: Quando digo Eu` no enuncio simplesmente minha

    realidade substantiva, mas sim que minha realidade substantiva se reatualiza de certo mono neste ato que

    Eu. Essa reafirmao de minha prpria realidade substantiva aquilo em que consiste o Eu. O Eu no

    a realidade substantiva do homem, porm aquele ato ulterior em que esta realidad3e substantiva se

    reafirma e constitui o que chamamos ser. O Eu no minha realidade substantiva, mas meu ser

    substantivo (ZUBIRI, 1993, p. 33).

  • 94

    Quanto a dimenso social, cada homem em sua realidade est vertido de forma intrnseca aos

    demais da mesma espcie em decorrncia do esquema filtico, o que Zubiri chamou de

    convivncia. Fato esse que se encontra constitutivamente na base da sociedade humana. Mas

    postula nosso pensador que h duas formas de verso dos homens entre si. Pode se estar vertido

    ao outro enquanto outro, nessa caso caracteriza-se uma convivncia impessoal. O impessoal um carter pessoal. Se convive impessoalmente quando cada pessoa funciona s como outra.

    Isto o estritamente constitutivo da sociedade humana (FAYO, 1988, p. 188). Mas tambm podemos estar vertido ao outro enquanto pessoa para alm de uma convivncia impessoal, mas

    enquanto comunicao pessoal no interior de uma experincia comunitria, na qual cada um fica

    afetado pelo outro, onde tambm emerge a alteridade pessoal. Podemos ento dizer que o Eu se

    constitui tambm a partir de uma experincia comunitria.

    Zubiri ainda nos chamar a ateno para a dimenso histrica, que assenta em suas razes

    biolgicas, sem se reduzir a esta. A histria no consequncia dos aspectos evolutivos do

    homem, a evoluo procede por mutao, enquanto que a histria por inveno, pela opo de

    uma forma de estar na realidade. O homem essncia aberta, suas formas de estar na realidade

    tem que ser necessariamente elaboradas [...] tradio entrega. Porm a tradio para poder

    ser constituinte est fundada na forma de realidade que se recebeu dos progenitores:

    continuante. Se assim no fosse, em cada individuo e em cada sociedade a histria comearia do

    zero, quer dizer, no teria histria (ZUBIRI, 1984, p. 70) Ento a realidade sempre nos d formas de estar na realidade, mas elas so apenas

    possibilidades, podero ser aceitas ou recusadas. A histria que sempre processual nunca,

    como assevera Zubiri, se assenta em si mesma, mas tem a realidade humana em sua base.

    Vimos como a realidade humana se constitui e como e vai se formando o homem, com

    sua realidade relativamente absoluta, e isso se forma na ao, nela que sua suidade se faz, na

    sua relao com10

    as coisas e com o outro na realidade. Mas Zubiri distingui alguns tipos de

    ao. Primeiro podemos considerar o homem como agente delas. Ele est por inteiro naquilo

    que realiza, enquanto substantividade, ainda que possa ter predomnio de alguma nota sobre a

    outra. Enquanto agente dos seus atos ele se apoia em suas potncias e faculdades (ZUBRI,1984,

    p. 77). Mas h um outro aspecto a ser ressaltado, ele no parte do nada, do vazio, pois encontra-

    se sempre situado em um contexto, com tudo aquilo que lhe serve de base para o seu se fazer, inclusive tem que se apropriar de um legado que lhe necessrio. Assim sendo o homem repete

    as receitas herdadas do passado, e com isso, no entender do pensador basco, torna-se um

    personagem da sua prpria vida. Por outro lado ele o autor de suas aes, tem que fazer sua

    opo diante das possibilidades possveis de sua prpria realidade, sempre ancorado nas coisas e

    implantado na realidade, que muito mais do que as coisas particulares.

    A realidade e deidade

    O homem aquele que se faz, mas o que ele faz seu, suidade, a realidade permite isso

    a ele, que parte dela mesma. Mas como a realidade apresenta a inteligncia senciente no

    entender do nosso pensador? A realidade o apoio absoluto para que o homem possa construir

    o seu ser, mas a relao deste com ela se d de forma experiencial. O homem aprende a

    realidade, enquanto algo de suyo, primeiramente como ultimidade, instncia fundamental para

    ele. O homem nada pode fora da realidade que lhe d o impulso necessrio para poder fazer-se.

    Outro momento da realidade o de ser possibilitante. Em outras palavras, ela a possibilidade

    de todas as possibilidades. Contudo a mesma no apenas tem esse carter essencial, ela tambm

    arrasta o homem, para que ele possa se fazer. Nas palavras de Zubiri ela impelente. No h

    como escapar dessa imposio, que por sua vez a condio do homem realizar sua liberdade.

    Se por um lado eu sou levado por essa fora, preciso pontuar que ela no apenas externa ao

    10

    Este com com que o homem faz sua vida pertence formalmente a estrutura mesma da vida humana.No se trata de que haja vida, e ademais, coisas as quais a vida se refere, mas sim que a vida

    envolve formamente e por si mesma, o carter de com. a vida com as coisas, com os demais homens,

    consigo mesma (ZUBIRI, 1993, p. 32)

  • 95

    homem, ela ao mesmo tempo aquilo que ele tem mais ntimo, colocando em movimento a

    ao de realizao do seu ser. A realidade enquanto unidade desses momentos se constitui na

    fundamentalidade do real.

    Deve-se no perder de vista que o homem, uma vez que se encontra instalado na

    realidade, sofre as determinaes que a mesma lhe submete, postulada por Zubiri, como

    dominao. Trata-se de uma dominao fsica, ou seja, um fato fsico do qual no temos como

    nos livrar; sofremos inapelavelmente um domnio. Claro est para Zubiri que esse domnio se d

    mediante as coisas reais, mas ele muito mais que elas, sem que alguma maneira lhe escape.

    Esse fato apreendido na anterioridade de qualquer atividade reflexiva o autor denominou poder.

    A realidade enquanto tal fundamenta a realidade pessoal, e ao mesmo tempo exerce sobre ela

    um poder, o poder do real ou da deidade11

    , que se apoderando do homem o faz ser aquilo que

    ele deve ser.

    No apoderamento o homem est implantado no real, por um lado ele est preso a esse impulso

    vital, por outro encontra-se solto em relao quilo que se impe de maneira absoluta. De

    qualquer forma estamos ligados ao poder do real, a isto ele denominou religao12

    . Postula

    Zubiri que a religao um fato constatvel e que afeta a vida do homem como um todo, pois

    ela propriamente a raiz da pessoa. A religao um conceito fundamental na filosofia da

    religio do autor espanhol. Segundo suas convices a religao pode ser visto sob trs

    aspectos: primeiro ela possuidora de um carter experimental. No no sentido do

    experimentalismo cientfico, mas no de uma aprovao. uma aprovao fsica da realidade (ZUBIRI, 1984, p. 95). Ao se fazer e se atualizar o homem vai provando esse poder que emerge

    da multiplicidade de possibilidades de realizao que ele tem. Vai experimentando a deidade

    nas iniciativas que vai tendo, tanto individual, como social e historicamente.

    Ainda advogar Zubiri que a religao manifestativa, medida que manifestao do

    poder do real. A realidade enquanto tal dinmica e est em permanente atualizao do real em

    suas notas. Atualizao e manifestao so parte de uma mesma dinmica da deidade e

    consequentemente da realidade. Contudo, o poder do real, no que diz respeito ao homem,

    apresenta-se sempre de forma enigmtica, na religao esse carter est impresso. Para Zubiri o

    enigma um modo de significar o real, no declarando o que , mas apenas indicando significativamente (ZUBIRI, 1984, p.960). A realidade se manifesta como um enigma e certamente isso reflete no homem, que um ser de realidade. As coisas reais a um momento o

    que se apresenta, mas tambm h um momento de realidade que a coisa real, mas ele no

    esgota no que se apresenta, h algo mais presente em qualquer coisa real, mas sem escapar a ela.

    A realidade enquanto tal mais que qualquer coisa real, mas os dois momentos esto

    intimamente ligados. Claro fica que a realidade, apresentando-se de forma enigmtica,

    obviamente se constitui um problema para o prprio homem no seu processo de realizao.

    Por estar religado ao poder do real, e estar marcado por esse enigma13

    em funo de sua

    religao, o homem enquanto realidade inquieto. Uma inquietude que se apresenta dramtica

    da qual no h como escapar, pois ela lhe constitutiva ou intrnseca. Da a situao perene do

    homem de indagao quanto ao seu futuro, com base no que , no pode ter controle ou

    11

    A deidade no nada distinto do mundo e das coisas reais. Porm essa condio que as coisas reais tem, pelo fato de serem reais, de ter o domnio de uma sobre as outras, e todas elas sobre o homem, e o

    homem sobre as demais coisas: a realidade em sua condio de poder [...] Este poder do real no algo

    que flutua sobre as coisas. No um carter a mais. Isto que chamamos deidade est inscrito nas coisas,

    pelo que elas so de reais (ZUBIRI, 1933,p. 44). 12

    Religao a realidade apoderando-se de mim. Esta religao no um vinculo material, mas sim mera dominncia do apoderamento do real que de mim se apoderou. A religao com efeito,

    primariamente algo no conceptivo, mas fsico (ZUBIRI, 1984, p. 109).

    13

    Ainda sobre enigma, arrolar o pensador basco: Enigma no nenhuma metfora, nem nenhuma expresso que designe algo que seja constitutivamente obscuro; enigma significa tematicamente

    condio que as coisas tem enquanto inside nelas esse carter de realidade como poder: poder da

    deidade. Este enigma planteia, por conseguinte, o problema do fundamento [...] Esse fundamento que,

    inegavelmente, pertence a realidade, e que no a deidade, mas precisamente o fundamento da deidade

    das coisas, o que chamarei Deus ou divindade (ZUBIRI, 1993,p. 62).

  • 96

    visibilidade sobre o que ser, pois h um poder que lhe ultrapassa e lhe impulsiona para o que

    ele no sabe o que ser. Essa inquietude metafsica, segundo Zubiri, pode ser vivida pelo

    homem de variadas formas. Ele pode deslizar, ou procurar se escorregar em relao ao

    problema, mas esta uma forma possvel de enfrentar a inquietude. A angstia outra forma de

    inquietude, assim como, a preocupao e a ocupao.

    Alm da inquietude, decorrente da situao enigmtica que envolve a realidade, Zubiri

    chamar a ateno para o fenmeno conhecido como voz da conscincia, mas a partir de uma nova forma de compreend-la, articulada ao seu pensamento como um todo. A voz da conscincia algo inegvel e presente na vida do homem, diz ao mesmo o que ele deve ou no fazer, uma inteleco senciente. Nela, a coisa sonora e aprendida como de suyo, uma voz

    que notifica e que lana o homem para o poder do real na realizao de sua realidade, contando

    ele com sua vontade, ou nas palavras de Zubiri, com sua volio senciente, que o leva a escolher

    a forma que ele deve assumir em sua maneira prpria de realidade, que entre as muitas

    possibilidade deve ser sempre fundamentada. Se o enigma est presente no poder do real, e por

    consequncia no homem pela religao, a busca de fundamentao impe o homem como

    necessidade que o orienta naquilo que ele vai fazer de si, o que sempre implica por sua vez, a

    busca de verdade com base em uma vontade que o impulsiona. A busca de um verdade real condio para o homem fazer sua escolha em meio s solicitaes das coisas reais, ou das

    possibilidades por elas lanadas, em uma realidade incerta. Ele precisa de apoio, no apenas das

    coisas, mas de um fundamento no qual possa se ancorar para se lanar. Se estamos corretos em

    nossas interpretaes a esta busca, Zubiri chamou experincia teologal, no teolgico. A

    segunda pressupe a primeira, a teologia emerge com base nessa experincia essencial do

    homem com o poder do real.

    O homem vai fazendo e realizando sua vida pessoal em suas prprias aes. Nelas

    adquire o seu ser relativamente absoluto, porm o adquire apoiado e fundado na realidade. O

    fundamento algo ltimo, possibilitante e impelente na realidade humana. uma realidade

    fundamento que domina e se apodera do homem. Esse apoderamento que acontece ligando a

    realidade humana para que seja relativamente absoluto a religao. A religao um fato

    constatvel, radical e total na mesma realidade humana e tem ademais um carter experimental,

    manifestativo e problemtico. O problematismo da fundamentalidade se coloca em relevo na

    inquietude humana, na voz da conscincia e na vontade de verdade real e na busca de seu

    fundamento (GRACIA, 2006, p.87).

    As vias de acesso a Deus

    A via da religao a que Zubiri usar para tratar de Deus. Religao um termo que

    expressa um fato inegvel para o autor, tal expresso aparece pela primeira vez em um artigo

    que ele entrega a Julian Maris para publicar na Revista de Occidente, pouco antes de uma

    viagem para a Itlia em 1935, intitulado Em torno do problema de Deu

    (COROMINAS,VICENS, 2006,p. 332). At ento no universo filosfico Deus tinha sido

    tratado basicamente por duas vias, a cosmolgica e a antropolgica. O ponto de partida da

    primeira a natureza, o cosmo e tudo que dele faz parte, a res naturalis, so referncias bsicas

    para se chegar a Deus. O homem seria, nessa perspectiva, considerado como parte da realidade

    csmica, no interior de um sistema explicativo que encontraria em Toms de Aquino o seu

    pice. So por demais conhecidas as cinco vias indicadas pelo Dr. Anglico, para se demonstrar

    racionalmente a existncia de Deus, e que so expostas por Zubiri, como forma de

    contextualizar a sua forma de conceber Deus. As vias so as do movimento, da causalidade, da

    necessidade, da perfeio, e por ltimo, a da finalidade14

    .

    Nas observaes crticas realizadas por Zubiri, em seu livro Hombre y Dios, um dos

    limites dessa posio que ela no parte dos fatos, ainda que naturais. O que h uma

    interpretao metafsica dos acontecimentos sensveis. Por exemplo, no se parte do movimento

    14

    Cf. ZUBIRI, 1984,p. 118-123).

  • 97

    enquanto fato real, o que se diz dele pura especulao. Alm do mais a viso que se tem do

    homem, quando o equipara a qualquer outro fato csmico reducionista. No se leva em conta a

    singularidade especfica do homem enquanto ser de realidade, em relao s demais existncias

    da natureza . Por ltimo, advoga Zubiri que mesmo que se levasse em conta o ponto de partida

    dessa via, ela em seu desdobramento reflexivo no nos levaria Deus.

    Em relao segunda via, a antropolgica, em sua pluralidade de posies, ele tambm no

    deixa de apontar os limites, posicionando-se contrrio s elaboraes de Agostinho, Kant,

    Schleirmacher. Em suas formulaes esses autores ressaltaro em suas convices os aspectos

    da inteligncia, da vontade e do sentimento, como caminho para Deus. Embora esses

    componentes estejam presentes na vida humana, o homem no considerado de uma forma

    total ou integral. Aps a sua minuciosa anlise ele chegar concluso de que as duas posies

    caminham, por um lado, em uma absolutizao do cosmo, na qual o homem perde sua riqueza

    por ser considerado simples res naturalis, ou ento, o mesmo desvinculado por completo do

    cosmo, para ser considerado em si e por si (ZUBIRI, 1984). A insuficincia dessas tradies de pensar impe a Zubiri o labor de uma nova vereda na qual o homem, o cosmo e Deus,

    estaro entrelaados desde um novo horizonte, que no seu entender, atualizaria, ou em outras

    palavras, poderia evidenciar a realidade de Deus, ao mesmo tempo que poderia esclarecer todo o

    esforo humano realizado at ento de pensar a realidade divina.

    importante ressaltar um postulado importantssimo do pensador espanhol: o homem na

    anterioridade de sua racionalidade um ser que primordialmente experimenta a realidade que o

    envolve, que a saboreia em sua apreenso do mundo; da provao e da degustao que suas

    ideias vo brotando, inclusive, as que dizem respeito a Deus. na realizao da atividade

    intelectiva senciente que o homem vai apreendendo de forma impressiva o meio que o circunda,

    no processo mesmo em que ele se faz, com as coisas e os outros homens; impulsionado ou

    apoderado pelo poder do real, ou deidade, ao qual o homem esta religado de forma intrnseca ou

    ontolgica.

    indiscutvel que a realidade tem uma grande capacidade para nos envolver e possuir.

    Tal capacidade refira-se , que no independente das propriedades que a realidade ostenta, recebe o nome de condio, em virtude da qual a realidade pode ser dominante para a pessoa. A

    ltima instncia desta dominncia a deidade, que no nada distinta do mundo e das coisas

    reais, sendo, antes, a condio que as coisas patenteiam pelo fato de serem reais, de terem

    domnio uma sobre as outras, todas elas sobre o homem e o homem sobre as coisas (TEIXEIRA, 2007, p. 242).

    Com este poder, o homem se enfrenta, no h como fugir, no se trata de uma teoria, mas de um

    fato, de algo concreto que a inteligncia apreende de forma transcendente na totalidade que

    abarca toda realidade. A deidade para Zubiri (1984, p. 89-9), enquanto algo de seu, com sua

    poderosidade arrebatadora, apreendida pelo homem na pluralidade de suas manifestaes, que

    pode aparecer com poder do alto, o do tempo como medida da vida da realidade, o da separao das formas, o da germinao da realidade, da organizao, sobretudo da vida, o do futuro, poder intelectual do homem, o que decide sobre a vida e a morte, o que dirige a vida social, o que define o destino, a justia e a estrutura como moral do universo, o sacralizante, o perdurante, etc. Esta manifestao da deidade, no se alcana mediante demonstrao, mas ela mostrao, que se d na religao. Assim o homem no vai apenas

    perfilando a sua vida com as coisas, mas com esse poder que fundante da sua prpria vida,

    ultimidade.

    preciso assinalar, com Moreno (2012), que a religao enquanto fato real que nos liga

    ao poder do real, esboa o problema de Deus. O que se torna presente na religao mediante o

    apoderamento vivenciado, a deidade. Em outras palavras, a deidade o ponto de partida para a

    inteleco de Deus15

    , somos assim colocados em uma busca, para alm da apreenso do poder

    do real, na tentativa de esclarecer o que o poder do real, qual o seu fundamento. Justamente

    15

    O que entende Zubiri por Deus? Sem compromisso ulterior, o que designamos pelo vocbulo Deus, aquilo a que estamos religados em nosso ser inteiro... Por sua ligao o homem se v forado a pr em

    jogo a sua razo para precisar e justificar a ndole de Deus como realidade (ZUBIRI, 2010, p 375).

  • 98

    em funo disso a religao no nos coloca diante de uma realidade precisa de Deus16, mas nos instala no mbito da deidade, a qual se nos apresenta como fundante. Por isso o atributo

    primeiro que descobrimos da divindade a fundamentalidade (ZUBIRI, 1984, p. 375). A religao um fato apreendido mediante a inteleco, nela somos apoderados pelo poder do

    real que nos fora a realizar a realidade que devemos ser, coisa antes dita. No nos encontramos

    simplesmente lanados na realidade, estamos atados ao poder do real, que para Zubiri, poder

    nos levar plenitude de nossas possibilidades. Mas uma vez apreendida a deidade, somos

    empurrados para um momento posterior, no qual deveremos esclarecer o que seja o fundamento

    daquilo no qual nos encontramos atados e apoderados, trata-se de uma marcha na qual a razo

    trabalha na busca de explicao e de atualizao do momento da apreenso primeira.

    a marcha no marcha por ser intelectiva, mas sim a inteleco o momento do esclarecimento

    da marcha real e fsica em que o homem est marchando pelo poder do real. pois uma marcha

    real intelectiva. A religao problemtica assim eo ipso uma marcha real intelectiva desde o

    poder do real para seu intrnseco fundamento: tem aqui justamente o problema de Deus enquanto problema de ultimidade do real enquanto tal (ZUBIRI, 1984, p. 375).

    No importante artigo de Zubiri Em torno do problema de Deus, a questo do fundamento do

    poder do real, ainda no colocado, pois sua pretenso no era abordar a questo de Deus, mas

    unicamente explicitar o horizonte a partir do qual o problema de Deus colocado, ele se ateve

    religao e ao seu carter de constituio do homem. Em Introduo ao problema de Deus, ele

    d um passo a frente. Evidenciar a descoberta que a inteligncia vai realizando de Deus, tendo

    como base trs momentos subsequentes: deidade, a realidade divina e Deus. Posteriormente,

    com melhor explicitamento da dimenso teologal do homem, aps meados da dcada de 1960,

    ele poder tornar mais claro a questo do fundamento finalizando-o.

    A religao enquanto experincia intrnseca do homem na sua relao com o poder do real, que por sua vez est fundado em Deus se apresenta como fontalidade de toda realidade e que pode ser experimentada pelo homem. Em Problema teologal do homem, os momentos da

    realizao do homem enquanto pessoa17

    , passa pela religao (como marcha intelectiva desde o

    poder do real para o seu intrnseco fundamento), o descobrimento de Deus na marcha intelectiva

    da religao finalmente a experincia de Deus (MORENO, 2012, p,74). Esses momentos no

    apenas so ordenados em uma sequncia. importante frisar que cada um fundamenta o

    subsequente, desde uma unidade que lhe intrnseca. a partir daqui que se pode falar de uma

    dimenso teologal do homem, na qual o homem vai se fazendo mediante sua experincia

    teologal (Zubiri, 1984,p. 397).

    A busca de esclarecimento do fundamento ao qual estamos religados , no dizer de Zubiri, uma

    explanao intelectiva, e que certamente implica um trabalho da razo. De uma razo que Diego

    Gracia denominou teolgica, distinta daquela cientfica, uma razo que busca a inteleco da

    experincia vivida da religao. Nessa experincia o homem encontrou-se com um fundamento

    que lhe permitiu fazer-se, que o impulsionou na sua realizao. A realizao no ocorreu com as

    foras do eu, pois na verdade esse desprovido de qualquer potencialidade, uma aquisio,

    que depende do poder do real. O fundamento um fato que est dado na impresso, o que se

    impe saber quem este fundamento. Ele foi provado nos atos mediantes aos quais pudemos

    nos construir enquanto pessoa, mas quem ele? Esta busca no ocorre de forma arbitrria ou no

    vazio, mas se assenta em algo prvio: as coisas reais com as quais o homem est implantado na

    realidade.

    Contudo, essa busca movida pela vontade de verdade que se apresenta a partir da

    experincia vivida, como algo vital e dramtico para o prprio homem. Assim a caminhada para

    16

    Aqui, Zubiri emprega o termo Deus para designar algo anterior ao sentido dado pelas religies

    positivas. Designo aqui por Deus justamente a aquele momento da realidade que de uma ou de outra forma se ter de averiguar em virtude da qual a realidade enquanto tal essa condio que transparece e se atualiza na religao como poder da deidade (ZUBIRI, 1993, p. 62). 17

    Julgo importante distinguir pessoa de personalidade. O homem que sempre o mesmo como personeidade, no nunca o mesmo como forma e figura do ser. Esta forma e figura do ser justamente o

    que deve chamar-se personalidade. A personalidade no um conceito primariamente psicolgico, antes

    de tudo, e sobretudo, um conceito entitativo. a forma e figura do ser que no ato segundo vai adquirindo

    a realidade substantiva no exerccio dos seus atos (ZUBIRI, 1993, p. 35).

  • 99

    o fundamento no se coloca como especulao abstrata centrada em uma lgica que nos que diz

    o que Deus, tal como ocorreu anteriormente mediante m processo de demonstrao lgica, ou

    entificao do divino. Essa lgica levou-nos a um ente surpremo, a realidade divina foi reduzida

    a um objeto. Para Zubiri, o que se busca no uma realidade objeto, mas uma realidade

    fundamento. H uma vontade de verdade, que busca o fundamento do poder do real ao qual

    estamos religados. A religao como vimos se d na apreenso, uma experincia senciente, e

    ela, como nos diz Diego Gracia d o que pensar, coloca razo em movimento, a trabalhar a

    partir da referncia anterior, que a religao. A razo estabelece um esboo do que pode ser a

    coisa, ou Deus; para logo voltar experincia, prova fsica da realidade, como atualizao da

    apreenso inicial. Dir Diego Gracias,

    A religao se me atualiza como real na apreenso primordial, e o logo a afirma como tal. Porm ela mesma me lana desde apreenso alm dela mesma, na busca da realidade de Deus.

    Portanto, quando se diz que no estamos lanados desde a realidade para o fundamento, o que

    primariamente quer significar que a religao nos lana desde a realidade dada em impresso

    para o fundamento da realidade, quer dizer para a realidade alm da apreenso [...] O objeto da

    razo a busca do fundamento da realidade para alm da apreenso (GRACIA, 2008, p. 218).

    Assim chegamos ao fundamento no de forma direta, mas mediante uma marcha, que tem seu

    ponto de partida na apreenso primeira. Dessa forma, Deus se constitui um problema para o

    homem, pois somente ao final da marcha se chega a algum conhecimento do mesmo atravs de

    uma atividade pensante.

    O problema de Deus

    A apreenso primeira nos leva a pensar, trata-se de um distanciamento da apreenso,

    porm sem sair dela, mas motivado e impulsionado por ela somos levados a conhecer o que foi

    apreendido antes. Este distanciamento uma via que tem seu ponto de partida na religao.

    Nessa via, percorrida pela inteligncia enquanto razo, nos defrontamos com muitas

    possibilidade, inclusive a dos possveis desvios, quando se perde a realidade das coisas, por

    exemplo. Em Inteligncia Sencient18

    , fica muito claro que uma coisa a apreenso primordial, o

    ponto de partida, outros so momentos subsequentes da busca, na ao do logos e da razo. A

    razo , para Zubiri, sempre uma busca em profundidade, o que implica preciso e medio, na

    procura do fundamento da realidade, seja l qual for o que se investiga, inclusive de Deus.

    Distancia-se aqui Zubiri da tradio filosfica que sempre colocou a razo na perseguio da

    coisa, do objeto, ele trata de inquerir sobre o fundamento, aquele que coloca o objeto. Trata-se

    sempre de uma atualizao desde um fundo da realidade fundamento. Para Gracia, no tem oposio entre realidade-objeto e realidade-fundamento, pelo contrrio elas se complementam: a

    fundamentalidade abre a objetualidade (GRACIA, 2008, p. 220). Mas como tratarmos de Deus, luz dessas consideraes? Para Zubiri um dos problema srios

    da tradio filosfica no que diz respeito a Deus, foi trat-lo por uma via epistemolgica

    deficiente, como vimos, que desembocou em uma realidade-objeto, em vez de busc-lo desde

    uma realidade-fundamento, que tenha como referncia fundamental a experincia da religao.

    Da que a sua perseguio se desenvolve por vias especulativas, no considerando o que de vital

    tinha nessa busca: a construo de minha realidade humana.

    Deus no pode ser concebido com um objeto, algo que se encontra minha frente, e sobre

    o qual eu possa dizer o que , mas uma realidade que si e por si, e por isso mesmo posso t-la como fundamento. Nas palavras de Zubiri, ele no est na frente de mim, mas sim que acontece em mim. Est presente religando-me ao poder do real (ZUBIRI, p. 231). Pois bem, a busca desse fundamento, trabalho da razo, sempre dinmica em sua atividade e provisria em

    seus resultados. As verdades alcanadas no so definitivas, podem ser superadas (ZUBIRI,

    2011). Como no se impe de forma definitiva, os resultados da razo sempre se constitui em

    problema. Na sua busca de atualizao ele nunca chega a um ponto conclusivo. Aps a

    religao que um fato, a razo caminha de forma sempre problemtica para o conhecimento do

    fundamento. A religao no um problema; Deus sim (GRACIA,2008, p. 222).

    18

    Cf. ZUBIRI, 2011, p. 17-104.

  • 100

    O conhecimento de Deus que a razo estabelece, inicia-se com a religao, a referncia, que

    faz parte do mtodo empregado por Zubiri. Em seguida se estabelece o esboo intelectual, uma

    construo, criao livre da razo, postulao. o pensar religioso19

    . Primeiro se postula Deus,

    como realidade absolutamente absoluta que est a fundamentar a minha realidade que

    relativamente absoluta. No se trata de concluses provisrias arbitrrias, so possveis de

    serem experimentadas nas convices de Zubiri.

    Uma vez que se chega a uma realidade absolutamente absoluta, na sequncia Zubiri postula que

    se trata de uma realidade absolutamente sua, portanto pessoa, entendida como algo em si e por

    si que se apresenta como fundamento das coisas reais. Deus assim est nas coisas, como fonte

    delas, mas transcendendo-as. Pela via que ele segue, o esboar apenas um momento, ela

    implica sempre um experimentar. A realidade-fundamento, ou seja, Deus, uma vez esboada,

    tem que passar pela experincia20

    , uma exigncia do mtodo, o esboo poder ser corroborado

    ou no. A experincia uma provao fsica da realidade (ZUBIRI, 1985, p. 95). Deus esboado como uma realidade pessoal, Zubiri no identifica o termo como a ideia

    corrente que temos da palavra. Ao falar de pessoas estamos nos referindo a uma realidade que

    existe em si e por si. Por isso, est fora dessa realidade a experincia de comprovao ou de

    experimento, mas sim de compenetrao e conformao. Como nos assevera Gracia, para a

    compenetrao necessrio pelo menos duas pessoas, o que poderia trazer dificuldade, j que

    Deus transcendente. Para se solucionar a incongruncia se retorna religao enquanto

    referncia, na busca de ampliao do esboo. Pois bem, postula-se ento que Deus no

    transcendente das coisas, mas nas coisas, assim sendo elas so presenas de Deus, elas tornam-

    se doao de Deus. Deus enquanto doao est presente na religao, com o poder do real

    enquanto ultimidade, possibilidade e impelncia. Uma vez construdo o esboo, ao retornar realidade desde ele, vemos que o poder do real no outra coisa que Deus transcendente nas

    coisas, presentes nelas, de um modo que agora reassumimos os fatos da religao em um novo

    nvel, como experincia de Deus (GRACIA, 2008, p. 230). A religao que antes era um fato, anterior experincia, torna-se experincia desde Deus.

    Contundo, a experincia de Deus tambm interpessoal, pois trataria na inteleco humana de

    um encontro entre duas realidades pessoais, Deus e o homem21

    . H uma tenso na qual o

    fundante torna absoluto o fundado. Assim no apenas as coisas, o prprio homem doao

    absoluta de Deus. Esta experincia abre o caminho para o homem realizar a sua doao a Deus,

    ou seja, sua entrega plena realidade suprema. O homem responde de forma positiva doao

    de Deus. Primeiro Deus se doa, em seguida o homem, por deciso pessoal vai ao encontro dele,

    vivenciando a a experincia da compenetrao, que implica sempre a presena de duas pessoas.

    O momento da entrega do homem a Deus

    A entrega do homem a Deus, como nos afirma Teixeira, algo extrnseco, ou seja, Deus

    uma realidade ao qual o homem decide se deve se entregar ou no. Ele acessvel nas coisas

    nas quais se encontra presente de forma transcendente. O homem enquanto tal no se faz sem

    as coisas, vai at elas pelo apoderamento do real que lhe permite a constituio do seu Eu. Esse

    19

    No se trata de um pensar sobre uma situao religiosa, mas sim desde uma situao religiosa [...] um

    pensar se me permite a expresso - religacional porque consiste em pensar transitando desde o poder do real, que parte formal e termo formal da religao, a um termo distinto, que a realidade absolutamente

    absoluta sobre o qual este poder est fundado [...] E precisamente aqui onde aparece a longo da histria

    as distintas divindades (ZUBIRI, 1993, p. 128-129). 20

    O tipo de experincia depende da realidade que est sendo analisada. Nas realidades no humanas a experincia toma a forma de experimento; nas realidades humanas as experincias se conseguem por

    compenetrao; nos entes matemticos por comprovao; e por ltimo, a experincia cursiva da prpria

    pessoa o que Zubiri chama conformao (GRACIA,2008, p. 229).

    21

    O homem, efetivamente, pessoa. Da que a maneira de estar presente Deus ao homem precisamente a maneira de algo que se tem chamando analogicamente o carter pessoal da realidade

    divina, est presente ao homem na forma de pessoa. o segundo conceito que expe a acessibilidade do

    homem a Deus. A presena radical e ltima da divindade no fundo do homem, presena que se pode

    chamar de relao de pessoa a pessoa, presena interpessoal (ZUBIRI, 1983, p. 70-71).

  • 101

    poder presena de Deus nas coisas. Ser levado pelo poder citado, equivale a ser arrastado por

    Deus, que seu fundamento, fazendo com que o Eu possa transcender e se atualizar. Nesse

    movimento somos levados por ele, enquanto transcendente na coisas as quais temos acesso22

    .

    Mas h um outro movimento, no qual o homem se entrega de forma positiva e plena a Deus. ao doante da realidade por parte de Deus responde ao homem com uma ao positiva na qual

    a pessoa no levada a Deus, mas em que a pessoa aceita, desde si mesma, este seu ser levado

    de um modo ativo e positivo (ZUBIRI, 1984, p. 198). A entrega a Deus como realidade-fundamento passa por vrios momentos, mas sempre

    em conexo com a religao. Dissemos anteriormente que o poder do real ultimidade,

    possibilitante, e impelncia. Pois bem, na entrega, o primeiro se apresenta como acatamento.

    Trata-se primeiramente de um reconhecimento daquele que relativamente absoluto, face

    aquele que absolutamente absoluto. Aqui se encontra a base da adorao, que s pode ocorrer

    diante de uma realidade suprema, em relao qual praticamente desaparecemos. Dir Zubiri:

    Adorar acatar a plenitude insondvel de Deus [...] Indo s coisas reais, o homem se inclina

    ante a realidade das coisas e nelas acata Deus pessoalmente transcendente. A doao da

    realidade corresponde ao homem com o acatamento ao doador: a essncia da orao (ZUBIRI, 1984, p. 199).

    O prximo momento da entrega ocorre diante de Deus como supremo possibilitante. Nele, a

    entrega acontece como splica, portanto, estamos diante da orao. E o que a orao para

    Zubiri? no formalmente um formulrio; uma entrega suplicante da mente de Deus. Pode

    chamar orao tambm de adorao; porm prefiro reservar o vocbulo para os atos de splicas.

    O homem suplica a Deus nas coisas e com as coisas. No deixa de lado as coisas para ir a Deus,

    mas sim nas coisas mesmas, com toda sua riqueza e com toas as suas dificuldades onde o

    homem se entrega em splica a Deus para que funda nelas as possibilidades que lhe sejam

    favorveis (ZUBIRI, 1984, p.200). A entrega, por ltimo, se d como base na experincia da impelncia presente na

    religao, mas agora enquanto impelncia suprema que Deus. Nela o homem vive Deus como

    seu repouso e fortaleza e apoio necessrio, ou em outras palavras como refgio. Dir Zubiri

    (1984, p. 200) que, deste refgio deriva inexoravelmente a ajuda para atuar. Porm isto algo derivado: o primrio a entrega a Deus como refgio de meu ser, na vida religiosa pessoal. A vida religiosa sempre implica, como indicamos atitude, distinta das muitas que tomamos em

    nossa vida.

    A atitude religiosa no uma atitude a mais na vida, mas uma atitude radical e fundamental

    com que se podem viver todos os fatos e processos da vida. E somente neste sentido podemos

    dizer que toda religao se plasma em religio. A religio consiste em viver todos os atos da

    vida dentro da dimenso de entrega divindade, em uma f (ZUBIRI, 1993, p. 111). Essa uma das marcas essenciais presentes no homem de f, que realizou a sua entre

    divindade, seja l em qual religio positiva for.

    Concluso

    Na tentativa de esclarecer a reflexo realizada, destaquemos os pontos que julgamos

    essenciais. Partimos de uma descrio do prprio homem enquanto substantividade. Ele

    constitudo por um sistema de notas respectivas que o torna uma realidade prpria e peculiar,

    participante de uma determinada espcie. Enquanto tal ele vive, sente e possuidor de

    inteligncia. O sentir e o inteligir leva o homem, atravs da impresso, a apreender algo de suyo,

    a realidade, diferentemente dos demais animais que ficam em seu sentir apenas na estimulidade,

    antes mesmo de qualquer atividade racional. Como essncia aberta, o homem um ser que faz

    sua realidade. Ele no apenas uma realidade humana, mas ele se faz a si mesmo, a partir da

    sua relao com o mundo. O homem enquanto pessoa que se tem, suidade, mas sempre se

    22

    Um esclarecimento importante: Deus acessvel ao homem precisa e formalmente porque o homem pessoa. Para evitar todo antropomorfismo, ao falar da realidade pessoal de Deus eu insistia em que isto

    no significa que Deus seja uma espcie de esprito subjacente a toda coisa real: significa to s que

    Deus absolutamente seu, suidade` absoluta. E por s-lo intrinsecamente acessvel a toda pessoa (ZUBIRI, 1984,p. 187).

  • 102

    fazendo, nunca pronto e acabado. Contudo, a sua realizao ocorre impulsionado pelo poder do

    real, que ultimidade, possibilidade e impelncia ao qual ele est religado. A religao um

    fato vivido por todos, nela no estamos lanados, mas atados ao poder do real ou deidade, pelo

    qual somos apoderados e arrastados. Nele nos fazemos, mediante as escolhas que vamos

    fazendo em nossas vidas. Desse modo, o poder do real se apresenta como algo que nos funda,

    o nosso fundamento na realidade. Apreendemos isso de forma senciente, h uma inteleco

    desse fato, uma apreenso primordial, embora no sejamos capazes de nomear e de explicar o

    que seja esse poder que nos envolve e que se encontra nas coisas mesmo, por aquilo que elas

    tem de suyo, e nos afeta. Tambm nos apreendemos como seres relativamente absolutos.

    A religao, via de acesso a Deus, coloca-se como uma referncia a partir da qual

    mobilizamos a razo na busca de explicao. Surge ento um esboo, ou seja, uma explicao

    provisria do que seja aquilo que de ns se apodera, assim o homem vai estabelecendo as ideias

    de Deus. Mas no s estabelece ideias atualizadoras da deidade, essas so em seguida

    experimentadas em nossa participao no poder do real. No processo mesmo que nos

    construmos, sempre na busca de clarificar o fundamento sobre o que nos assentamos, podemos

    aprovar ou no as ideias estabelecidas. O primeiro esboo postulado o Deus enquanto

    realidade absolutamente absoluta. Em seguida experimentamos a religao desde a ideia

    estabelecida. Assim vamos caminhando na busca do fundamento. Outras ideias vo surgindo,

    como atividade da razo na busca de fundamento, e sendo experienciada: Deus como doao,

    como pessoa, inteligncia, etc. O homem chega experincia de Deus como doao absoluta, o

    que eleva o homem tambm a uma entrega realidade suprema, que passa por vrios

    momentos: o acatamento diante da ultimidade de Deus, que leva o homem adorao; a splica

    diante de Deus, possibilidade de todas as possibilidades; impelncia de Deus, o homem

    responde como refgio, como fortaleza necessria. Essa entrega absoluta do homem acontece

    no mbito da prpria f. Finalizando, com base na experincia primordial do poder do real,

    que as vrias concepes e experincias de Deus acontecem, assim como a diversidade de

    religies positivas que surgem no tempo e na histria, com suas caractersticas prprias, mas

    sempre assentadas em uma mesma base: a experincia da religao ao poder do real.

    Bibliografia

  • 103

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