para bem escrever diálogos, fernando chiavassa

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  • 7/24/2019 Para Bem Escrever Dilogos, Fernando Chiavassa

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    PARA BEM ESCREVER DILOGOSFernando Chiavassa

    Se voc procura melhorar seus dilogos, preste ateno nas instrues que descrevo

    abaixo, para que tudo possa dar certo. Sei que voc, a estas alturas, comea a sofrer a agonia

    de quem tem pouqussimo tempo, mas tenha calma, devagar com o andor! No deixe para

    entregar seu trabalho no ltimo momento: ele tem que amadurecer. Pare um pouco e reflita.Antes de finalizar teu texto, preste muita ateno ao mundo a seu redor. Em casa, no trabalhoou quando for s compras, oua com muito mais ateno do que o normal as conversas que

    explodem a sua volta. Alis, deixe o carro em casa.

    Aprenda Com a Vida

    Enquanto se desloca de nibus ou metr , veja, oua e aprenda como as pessoas

    falam em seu natural e como do vazo espontnea s suas necessidades cotidianas: percebacomo so econmicas ao dizer tudo que precisam em poucos segundos, antes de se despedir.

    Veja com que cuidado encadeiam fatos para, somente depois, lanar suas questes numaconversa mais demorada. Se tiver a sorte de encontrar grupos de colegiais, guarde avivacidade de seus dilogos relmpagos e sintticos que fora no? Aps, imediatamente, v

    ao mercado. Compre suas verduras e legumes; escolha suas carnes, suas bebidas e veja quantaenergia se extrai de pequenos e inflamados dilogos, quanta brincadeira nas negociaes e

    ofertas, quanta vida na ponta da lngua.

    Antes de ir para outros destinos, pare num caf e finja trabalhar em seu notebook (oufaa de conta que se perde na leitura de um jornal): mas ao contrrio, fique ligado nas

    conversas das mesas prximas. Gaste um bom tempo nestes lugares e, com alguma sorte,

    poder acompanhar personagens fabulosos contando histrias inacreditveis: esposas aflitas eamigas adlteras, solteires convictos e casados arrependidos, idosos permissivos e velhos

    ranzinzas, professores e alunos, velhos e bons amigos, intelectuais. Personagens de todo tipo

    falam da vida e discutem o cenrio poltico e assim por diante. Faa isso para perceber como,quando e porque se fala, em quais e tais situaes: ora encadeando fatos convencendo, ora

    sintetizando para esclarecer ou at mesmo pedindo rpidas opinies. Muitas vezes se protestaveementemente, discordando ou apenas permanecendo calado: sim por que o silncio tambm

    fala e significa. D at para perceber atravs dos discursos, as diversas personalidades

    daqueles que preferem mandar diante dos que obedecem, guardando tonalidades, modulaese posturas vocais (preste ateno nos olhos, nas mos, no peito, nos quadris, nos ps, o corpo

    tambm fala!).

    Saindo do caf, v para casa e deixe suas compras. Mas depois volte rua (tire uns

    dias de folga)! Se tiver oportunidade v a um local pblico, seja uma prefeitura ou umcartrio. Junto ao balco, permanea ali quanto tempo conseguir, acompanhando os pedidos

    do pblico, observando como se d o atendimento feito pelos funcionrios. Muitas vezes, o

    cartorrio, o escrivo ou mesmo o chefe aparece para dirimir conflitos. Voc vai reparar oquanto a pessoas precisam definir muito bem o servio solicitado, para ganhar tempo econseguir o que precisam. Aproveite para perceber a diferena entre estes dilogos e aqueles

    espontneos nas ruas e nos cafs. Se voc puder ir ao Frum e acompanhar um jri, poder

    presenciar como as pessoas agem e reagem sob as mais diferentes condies de pressopsicolgica: aprendemos muito assistindo como as partes se comportam uma vez acusadas ecomo seus advogados as dirigem; no h melhor lio do que testemunhar um ru acusado,

    tomado pela necessidade de defesa, inocente ou no. V uma delegacia de polcia!

    O que quero dizer com tudo isso que preciso conhecer muito bem como falamossob as mais diversas condies, pois a vida ensina e isso que precisamos trazer para nossos

    textos, a vida e a experincia. A obra precisa da dor, do tdio, da ansiedade, tem que

    apresentar o medo e mesmo a alegria de viver. E quem deve passar isso so personagenscheios de vida e desejo e no o narrador, exatamente. Espero que voc possa anotar: no deixe

    de fazer registros sejam manuscritos ou gravaes: no deixe de guardar tudo, para retomardepois.

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    Aprenda com a Fico

    Agora com tanta vida na cabea, leia. Isso mesmo: leia. Leia e veja como os melhorese mais apaixonados dilogos foram criados: leia como escritor como fizeram grandes

    dramaturgos para convencer voc a assinar o contrato de verossimilhana logo nas primeiraspginas dos primeiros atos. Os dilogos escritos para peas de teatro que contam a histria,

    salvo poucas e pequenas anotaes que indicam situaes do cenrio, da histria ou mesmodos personagens.

    Procure dentre centenas de peas teatrais, aquelas com as quais voc mais se

    identifica, as que apresentam as personagens que estaro vivendo os dilemas com os quaisvoc realmente mais se importa. Isso faz diferena. No vou elencar as peas, porque estecaminho unicamente seu, mas no deixe se ler alguns clssicos gregos, no se esquea de ver

    Shakespeare, lembre-se de ler dramaturgos imperdveis como Molire, Goethe, Gogol, Gorky,

    Pirandello, Lorca, Cervantes, Ionesco, Wilde, Brecht, Beckett, Ibsen, Shaw, os americanosTenesse Willians e Arthur Miller e ainda os brasileiros, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna,

    Oduvaldo Vianna Filho, Boal, (e tantos outros) etc...

    Dentre estes dramaturgos, leia os que voc encontrar ou v a uma boa biblioteca: nestemomento selecione alguns deles, no d tempo de ver todos (veja um pouquinho de tudo e noesquea de estudar a vida inteira). Preste ateno nas diferenas entre os trabalhos dos

    escritores que tambm so dramaturgos e as diferenas existentes em seus dilogos criados

    para fico e para teatro. Depois ou em meio a tudo isso, assista a muitos filmes. Registre osdilogos mais tocantes, os mais bem transcritos: vrias obras literrias foram adaptadas para o

    cinema e tambm para o teatro. H um mundo sua volta, todo ele fictcio, mas to bem

    ideado to bem construdo e composto que no raro eles parecem mais verdadeiros que osreais de nossas vidas. Enfim, depois de tudo isso, pegar uma obra literria mal composta

    tambm ensina muito: s pegar nossos textos, ou de amigos principalmente aqueles iniciais

    , antes das correes. Est tudo ao seu alcance: s por as mos na massa.

    Aprenda com a Prtica

    Agora que voc j est mais convencida de que este plano d muito certo, seguem

    alguns exerccios prticos com dilogos que voc vai reconhecer como os tendo vivido na

    prtica, atravs de suas andanas ou por meio do texto, do teatro ou do cinema.

    I. Ping-Pong

    Estabelea como critrio inicial escrever pequenos dilogos. Estas conversas podem

    seguir em quaisquer ritmos e tempos, desde que voc tenha como padro um jogo de ping-

    pong. Isso mesmo. Toma l, d c. Lembra dos colegiais? Isso. Dilogos curtos e rpidosproferidos entre apenas duas pessoas, nos quais as personagens reagem instintivamente e comprazer e muita vontade de opinar. Use apenas verbos que no precisam de complementos,

    assim como Quer conversar?, Voc tem fome?, Dormiu bem, Quando chegou? medida que estes dilogos possam ir te cansando, comece a encadear mais, usando verbos quepedem complemento. Depois, aumente os encadeamentos, introduzindo fatos, pedindo

    confirmao, mas este j o passo seguinte:

    II Xadrez

    Em um jogo de xadrez, logo no incio, os lances podem parecem simples, mas naverdade nunca so. Uma conversa que por analogia se associa ao xadrez se constitui em

    dilogos que gradativamente vo ganhando complexidade at se tornarem bastante densos,com largos enunciados e longas tratativas retricas, a ponto de que se perdermos uma frase,podemos no entender mais nada. Mas h limites: um longo tratado pode se transformar em

    algo inverossmil e todas e quaisquer intenes didticas e utilitrias parecero fteis. Nesses

    dilogos, introduza variaes, com aquelas obtidas nos exerccios anteriores. Ao longo e

    mesmo no meio deste xadrez, jogue um ping-pong. Imagine em conversa densa, quando umadas personagens toca em algo indesejado e a outra se cala. Da jogue um paredo que explicoabaixo: tente faz-la se pronunciar. Ao contrrio, quando esta mesma personagem antes

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    calada se voltar para a outra, em seguida, como um furaco em uma torrente de acusaes,faa com que ela pare: a teremos um fogo cruzado.

    III. Paredo

    Voc j treinou tnis sozinho num paredo? A situao a seguir a mesma. Tente

    dialogar com uma personagem fechada, mesmo intratvel que no quer falar. Procure todos osmeios para convenc-la a falar. H vrias situaes em que este conflito se desenrola. Seja

    num romance policial, quando o detetive tenta arguir um possvel culpado, seja num jri ondeo advogado tenta enredar uma testemunha, at mesmo em dilogo entre amantes que se traem,

    ou numa situao das mais corriqueiras quando a me tenta descobrir quem comeu meia tortade maa, ainda na janela a esfriar. Tente, com louvor, dialogar com o nada. Muitos monlogoscomeam assim. H verdadeiras obras literrias em que o narrador simula estar conversando

    com algum de quem no ouvimos uma palavra, mas assim entendemos, como Cho em

    Chamas de Juan Rulfo.

    IV. Mistura: Ping-Pong, Xadrez e Paredo.

    Aos poucos introduza uma terceira personagem nos dilogos e depois, gradativamente,

    aumente a complexidade para uma conversa com mais de trs pessoas. Muita gente em cenaleva a conversa para um mercado de peixe onde todo mundo fala, ningum tem razo e no se

    sabe ao final quem disse o qu. Sei que voc no vai desanimar querido amigo. Alguns

    exerccios podem trazer grandes ensinamentos, pois se aprendemos pelo exemplo,inicialmente reproduzindo a realidade, fazendo que consolidamos o aprendizado;

    sobremaneira errando e refazendo, na prtica, que nos apropriamos de tudo aquilo que vimosatravs da vida prtica e depois na teoria. Por fim, pegue todas as suas anotaes e componha,

    traga para a fico as experincias que voc viveu na rua, no transporte, no mercado, naPrefeitura, nos Cartrios e no Frum.

    Exerccios

    Proponho que voc bem faa os seguintes exerccios a seguir. Interessante fazer todos

    eles, pois cada um pr-requisito do seguinte: experimente! No entanto, sinta-se bastante vontade. Caso estes exerccios sejam encarados como excessivamente simples, faa apenas o

    ltimo: o conto inteiramente construdo com dilogos.

    Exerccio 1: Cumprimento (saudao)

    Imagine um pequeno encontro entre duas (2) personagens que no se conhecem. Usepreferencialmente verbos que no precisam de complementos em frases que no tenham mais

    do que trs ou quatro (3 ou 4) palavras. O cumprimento deve ter aproximadamente trinta(30) palavras, em ritmo de ping-pong (toma l, d c).

    Exerccio 2: Dilogo

    Escreva agora uma conversa um pouco mais rica, num ping-pong mais lento,

    construindo um dilogo com aproximadamente sessenta (60) palavras. Duas (2) personagensconhecidas tocam em algo indesejado e as duas se ofendem. Use todo tipo de verbos, mas

    limite o tamanho das falas (mude o assunto vontade).

    Exerccio 3: Cena

    Componha agora uma cena, com dilogos, com aproximadamente cento e oitenta(180) palavras. A conversa rene trs (3) familiares em almoo ao ar livre que vo sedesentender. Duas (2) personagens desconhecidas da famlia vo dar uma notcia bombstica

    envolvendo a todos, sem distino: todos confessos sem que queiram, agora enredados diante

    de uma gigantesca conta a ser paga diante da justia. Ajuste a trama segundo o seu prpriointeresse (conta (grande) a ser paga prefeitura, hospital, supermercado, loja, etc).

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    Exerccio 4: Conto (Curto)

    Finalmente, escreva um pequeno conto, com no mximo quatrocentas (400) palavras,utilizando apenas dilogos. Estabelea um cenrio e vincule o dilogo cena, no abusando da

    oralidade. O dilogo se passa entre duas ou no mximo entre cinco personagens (podem ser as

    mesmas que voc criou acima, sendo que a cena anterior ou todos os exerccios podem fazer

    parte do conto). Aqui os dilogos podem ganhar intensidade, mas impea que algum discurselongamente ou estabelea tratados: prefira dilogos rpidos e objetivos. Um conto curto podeprescindir de dilogos xadrez. Voc pode tentar o paredo. No abuse da pontuao com

    interjeies e interrogaes. Recorra personalidade de cada personagem e no do narrador.Distinga as personagens ou pela idade ou pelas caractersticas socioeconmicas e lembre queos silncios tambm falam.

    Bibliografia

    Srgio Rodrigues - Cem anos de um Mestre do Dilogo Brasileiro - Revista Veja, 2012.

    http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria/nelson-cem-anos-de-um-mestre-do-

    dialogo-brasileiro/

    O texto acima reflete experincias tericas e prticas, mas resultou mais experimental que terico e nem de

    longe esgota o assunto, servindo meramente como ponto de partida para o conhecimento de cada um. Ocaminho para bem escrever dilogos faz parte de um longo processo de aprendizagem, que pode serdelineado pelos caminhos apresentados, mas ressalte-se que inesgotvel. Saliente-se que cada um acabadescobrindo por si, seu prprio processo de amadurecimento. No entanto, para termos alguma ideia do

    caminho que percorri, influenciaram bastante alguns livros tcnicos3, aulas, palestras e entrevistas comescritores1 e oficinas literrias2. Nota 1: Ricardo Lsias, Bruno Zeni, Evandro Affonso Ferreira e Luiz

    Ruffato. Nota 2: Marcelino Freire, Rodrigo Petrnio e Luiz Brs. Nota 3: Silvia Adela Kohan (Como

    Escrever Dilogos); James Wood (Como Funciona a Fico), Nilce Sant'Anna Martins (Introduo Estilstica).