papel social do fisioterapeuta

7
82 O lugar social do fisioterapeuta brasileiro The social place of Brazilian physical therapists Ana Lúcia de Jesus Almeida 1 , Raul Borges Guimarães 2 Estudo desenvolvido na FCT/ Unesp – Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente, SP, Brasil 1 Profa. Dra. do Depto. de Fisioterapia da FCT/Unesp 2 Prof. Livre-docente do Depto. de Geografia da FCT/Unesp ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA R. Felipe Carnevale 110 Jardim das Rosas 19060-220 Presidente Prudente SP e-mail: [email protected] Artigo extraído da tese de doutorado defendida pela autora 1 no Programa de Pós- Graduação em Geografia da FCT em dezembro de 2008. APRESENTAÇÃO dez. 2008 ACEITO PARA PUBLICAÇÃO mar. 2009 Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo, v.16, n.1, p.82-8, jan./mar. 2009 ISSN 1809-2950 RESUMO: Este estudo visa compreender a produção do lugar social do fisioterapeuta brasileiro por meio de suas práticas. O material empírico utilizado foram 89 entrevistas, dados do I Censo de Fisioterapeutas do Estado de São Paulo e informações sobre os cursos de graduação em Fisioterapia no Brasil. A análise dos dados mostrou que o lugar social do fisioterapeuta está fortemente ligado ao modelo curativo, identificado com o ideário liberal-privatista, com instituições formadoras predominantemente privadas e concentradas na região Sudeste. Os resultados sustentam evidências de uma prática profissional fragmentada, estimulada pelo modelo hegemônico, mas também apresenta marcas de superação, mostrando a disputa de dois modelos na atenção à saúde: hegemônico e contra-hegemônico. O primeiro toma a parte pelo todo, fragmenta o conhecimento e o corpo, identifica- se com o liberalismo e tem a saúde como mercadoria; a organização dos serviços é centrada na doença e na especialização. O segundo, sem negar a importância do conhecimento técnico, valoriza as dimensões sociais e humanas na prática profissional, está centrado na pessoa e busca a integralidade e a interdisciplinaridade. Esse modelo permite ampliar a prática do fisioterapeuta para além da clínica, em direção a um lugar social mais humano e solidário, identificado com os princípios do Sistema Único de Saúde. Também permite repensar o atual lugar social, oferecendo parâmetros para a reorientação dos caminhos da profissão. DESCRITORES: Fisioterapia (Especialidade); Papel profissional; Sistemas de saúde/ tendências ABSTRACT: This study aimed at understanding the social role played by Brazilian physical therapists by drawing on their practices. Empirical data included the recordings of 89 interviews with physical therapists, data from the Sao Paulo State First Census of Physical Therapists, and information on physical therapy undergraduate courses. The analysis showed that mainstream physical therapy is strongly linked to the healing model, of liberal ideology; training courses are mostly private and concentrated in the country’s Southeast, richest region. Results sustain evidence of a fragmented professional practice, encouraged by the hegemonic model, but also of signs of conflict between two opposing concepts of health care. The hegemonic model takes the part for the whole, fragments body and knowledge, bears on liberalism, where health is taken as a commodity; health care services focus on illness and value specialization. The counter-hegemonic principles, while not denying the relevance of technical knowledge, value social and human dimensions of professional practice, focus on the person, aim at integration of services and support interdisciplinarity. The counter-hegemonic model tends to widen physical therapy practice beyond the clinic toward a humanized social role, in accordance with the national health system guidelines. It also allows for rethinking therapists current social place, offering parameters for reorientating the profession course of action. KEY WORDS: Health systems/trends; Physical therapy (Specialty); Professional role Fisioter Pesq. 2009;16(1):82-8

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Page 1: Papel social do fisioterapeuta

82 Fisioter Pesq. 2009; 16(1)

O lugar social do fisioterapeuta brasileiroThe social place of Brazilian physical therapists

Ana Lúcia de Jesus Almeida1, Raul Borges Guimarães2

Estudo desenvolvido na FCT/Unesp – Faculdade de Ciênciase Tecnologias da UniversidadeEstadual Paulista, campus dePresidente Prudente, SP, Brasil

1 Profa. Dra. do Depto. deFisioterapia da FCT/Unesp

2 Prof. Livre-docente do Depto.de Geografia da FCT/Unesp

ENDEREÇO PARA

CORRESPONDÊNCIA

R. Felipe Carnevale 110Jardim das Rosas19060-220 PresidentePrudente SPe-mail: [email protected]

Artigo extraído da tese dedoutorado defendida pelaautora 1 no Programa de Pós-Graduação em Geografia daFCT em dezembro de 2008.

APRESENTAÇÃOdez. 2008

ACEITO PARA PUBLICAÇÃOmar. 2009

Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo, v.16, n.1, p.82-8, jan./mar. 2009 ISSN 1809-2950

RESUMO: Este estudo visa compreender a produção do lugar social do fisioterapeutabrasileiro por meio de suas práticas. O material empírico utilizado foram 89entrevistas, dados do I Censo de Fisioterapeutas do Estado de São Paulo einformações sobre os cursos de graduação em Fisioterapia no Brasil. A análise dosdados mostrou que o lugar social do fisioterapeuta está fortemente ligado ao modelocurativo, identificado com o ideário liberal-privatista, com instituições formadoraspredominantemente privadas e concentradas na região Sudeste. Os resultadossustentam evidências de uma prática profissional fragmentada, estimulada pelomodelo hegemônico, mas também apresenta marcas de superação, mostrando adisputa de dois modelos na atenção à saúde: hegemônico e contra-hegemônico.O primeiro toma a parte pelo todo, fragmenta o conhecimento e o corpo, identifica-se com o liberalismo e tem a saúde como mercadoria; a organização dos serviçosé centrada na doença e na especialização. O segundo, sem negar a importânciado conhecimento técnico, valoriza as dimensões sociais e humanas na práticaprofissional, está centrado na pessoa e busca a integralidade e ainterdisciplinaridade. Esse modelo permite ampliar a prática do fisioterapeuta paraalém da clínica, em direção a um lugar social mais humano e solidário, identificadocom os princípios do Sistema Único de Saúde. Também permite repensar o atuallugar social, oferecendo parâmetros para a reorientação dos caminhos da profissão.DESCRITORES: Fisioterapia (Especialidade); Papel profissional; Sistemas de saúde/

tendências

ABSTRACT: This study aimed at understanding the social role played by Brazilian physicaltherapists by drawing on their practices. Empirical data included the recordings of89 interviews with physical therapists, data from the Sao Paulo State First Census ofPhysical Therapists, and information on physical therapy undergraduate courses.The analysis showed that mainstream physical therapy is strongly linked to thehealing model, of liberal ideology; training courses are mostly private andconcentrated in the country’s Southeast, richest region. Results sustain evidence ofa fragmented professional practice, encouraged by the hegemonic model, but alsoof signs of conflict between two opposing concepts of health care. The hegemonicmodel takes the part for the whole, fragments body and knowledge, bears onliberalism, where health is taken as a commodity; health care services focus onillness and value specialization. The counter-hegemonic principles, while notdenying the relevance of technical knowledge, value social and human dimensionsof professional practice, focus on the person, aim at integration of services andsupport interdisciplinarity. The counter-hegemonic model tends to widen physicaltherapy practice beyond the clinic toward a humanized social role, in accordancewith the national health system guidelines. It also allows for rethinking therapistscurrent social place, offering parameters for reorientating the profession course ofaction.KEY WORDS: Health systems/trends; Physical therapy (Specialty); Professional role

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Quadro 1 Roteiro de entrevista com fisioterapeutas

Almeida & Guimarães O lugar social do fisioterapeuta brasileiro

INTRODUÇÃOO objeto de estudo do presente artigo

é o lugar social dos fisioterapeutas, pro-duzido por suas práticas. Conforme ire-mos argumentar, as práticas tradicionaisdos fisioterapeutas, muitas vezes, resul-tam em ações fragmentadas e distantesdo conceito de integralidade na saúde1-4.Essa característica é fruto de um mode-lo hegemônico que tende a fazer doexercício profissional a reunião de açõesisoladas, individualizadas, descon-textualizadas4-7. Por outro lado, contra-ditoriamente, os pacientes ao apresen-tarem suas demandas solicitam do pro-fissional uma postura mais global, o queexige a superação da condição acimacom ações potencialmente integradoras.

Por várias razões o fisioterapeuta4,6,7,bem como outros profissionais da saú-de5,8, caminharam para a definição deuma forma de atuar com uma lógica devalorização excessiva da doença, asso-ciando a profissão com a visão curativa,além de desenvolver práticas distantesda interlocução com outras profissões.Na clínica, é comum observar a escassaexistência de equipe multiprofissional ea dificuldade de encaminhar o pacientepara outras especialidades, porque es-tas não se comunicam. Também se ob-servam oportunidades restritas para apessoa com deficiência, no mercado detrabalho, na escola, na sociedade. Estessão alguns exemplos que limitam a prá-tica profissional e tornam o trabalho dafisioterapia fragmentado e incompleto.

Acreditamos que se uma visão multi-dimensional da saúde9-11 estivesse maispresente na prática dos fisioterapeutas ede outros profissionais, poderíamos ob-servar uma maior freqüência de açõesque fossem ao encontro da superaçãodas dificuldades acima. O debate sobreo conceito de promoção e vigilância àsaúde enquanto elementos multidi-mensionais e interdisciplinares aproxima-se desse desafio, levando-nos a pensar oindivíduo e a coletividade de uma ma-neira social e relacional1,5,9,12-14. Entretan-to, verificamos que a maioria dos fisio-terapeutas tendem a acreditar que osproblemas de saúde se resolvem apenaspor meio do setor saúde, o que diminuiseu campo de intervenção e participação,reforçando a manutenção do modelohegemônico em saúde, bem como limi-

tando o lugar social do fisioterapeuta.

O lugar social é construído pelosfisioterapeutas por suas práticas, que car-regam significados relacionados com aforma de compreender a sociedade, comsua visão de saúde, com as relações depoder estabelecidas no seu espaço. Oconceito de lugar enquanto espaçorelacional oferece elementos da repro-dução da vida social15, portanto, da re-produção da fisioterapia na sociedade.Compreender e refletir sobre esse lugarsocial é fundamental como parâmetrode reorientação dos caminhos da pro-fissão.

METODOLOGIAPara caracterizar o lugar social do fi-

sioterapeuta, foram analisados dados de89 entrevistas feitas por 45 alunos do 1o

ano do Curso de Fisioterapia do campusde Presidente Prudente da Unesp, noprimeiro semestre de 2008. As entrevis-tas foram realizadas tendo como refe-rência um roteiro predefinido (Quadro1). Foram digitadas sínteses de cada umadas 89 entrevistas realizadas pelos alu-nos em planilhas, para facilitar a associ-ação de informações comuns, fazendoo exercício, de acordo com Minayo16,de partir de uma leitura de primeiro pla-no para atingir um nível mais aprofun-dado, que ultrapassa os significadosmanifestos.

Uma parte dos temas abordados nasentrevistas foi aqui utilizada, associadaa dados disponibilizados pelo Crefito-3– Conselho Regional de Fisioterapia eTerapia Ocupacional da 3a Região –oriundos do I Censo dos Fisioterapeutas

e Terapeutas Ocupacionais do Estado deSão Paulo17 e uma publicação do Minis-tério da Educação sobre o curso de Fisio-terapia no Brasil18.

RESULTADOSA Fisioterapia teve o auge do seu re-

conhecimento em meados da década de1990, o que aumentou a procura pelocurso. Na ocasião, muitas instituições deensino superior passaram a oferecer gran-des números de vagas em Fisioterapia,principalmente as instituições privadas,carregando consigo uma prática peda-gógica da Medicina influenciada peloparadigma newtoniano-cartesiano14. Ocrescimento foi grande e o número totalde fisioterapeutas registrados no Coffito– Conselho Federal de Fisioterapia e Te-rapia Ocupacional – em 1995 era16.068; em 2005, os dados apontampara 79.382 profissionais, mostrando umcrescimento absoluto de 394% em ape-nas dez anos18.

Esses números estão desigualmentedistribuídos pelo país. A Figura 1 permitemelhor visualizar as diferenças de tama-nho de cada Crefito em 2005. As repre-sentações geométricas são proporcionaisao total de fisioterapeutas de cada Con-selho, refletindo as grandes diferençasexistentes: a maioria estão concentradosnos estados de São Paulo (Crefito-3), Riode Janeiro e Espírito Santo (Crefito-2), eMinas Gerais (Crefito-4), todos na regiãoSudeste18.

O processo de formação tem granderesponsabilidade por essa situação. Em1969, existiam 6 cursos de graduaçãoem Fisioterapia; em 1981, esse número

1 Tempo de atuação profissional 2 Facilidades e adversidades encontradas assim que se formou 3 Área de maior atuação 4 Motivo da escolha da área 5 Principais conquistas alcançadas nessa área pela Fisioterapia 6 Principais dificuldades nessa área 7 Aspectos financeiros: valor aproximado da sessão; número de pacientes

que atende por dia e em quantas horas de trabalho; salário mensal aproximado

8 Que recomendações daria para alunos que estão no 1o ano do Curso de Ft 9 Cidade onde o entrevistado reside e trabalha

10 Comentários

Fonte: Brasil, 200618

: 82-8

Page 3: Papel social do fisioterapeuta

84 Fisioter Pesq. 2009; 16(1)

cresceu para 20 e, em 1991, havia 48.A partir daí o crescimento foi muito rá-pido, até atingir o total de 457 cursosem 200718,19 (Figura 2).

O número de vagas disponíveis au-mentou rapidamente, bem como o nú-mero de formandos a cada ano. Se em1991 formavam-se 1.951 fisioterapeutas,em 2004 esse número cresceu para13.63118 e, em 2007, foram 14.162 no-vos fisioterapeutas20. Ao associar o nú-mero de vagas ao local em que as vagassão oferecidas, reconhecem-se as insti-tuições privadas de ensino superiorcomo importantes agentes na definição

do atual lugar social do fisioterapeuta.

A inserção dos fisioterapeutas nomercado de trabalho mostra uma pre-dominância no setor privado. Dos 89 fi-sioterapeutas entrevistados pelos alunos,53 (59,6%) trabalhavam no setor priva-do ou dedicavam a maior parte do tem-po a esse setor; os demais 36 atuavamou no setor público ou em ambos. Essacaracterística também está presente nosdados do Censo realizado pelo Crefito-3, em que dos 13.712 fisioterapeutas queresponderam ao questionário, 70,5% tra-balhavam no setor privado, 15,2% eminstituições públicas, 4,3% em mistas e

10,0% em instituições filantrópicas17. Énotável a reduzida proporção de fisio-terapeutas no setor público (15%) com-parado aos demais, evidenciando umatímida presença do fisioterapeuta no ser-viço público, o que contribui para de-marcar seu lugar social.

Uma das questões da entrevista refe-riu-se às facilidades encontradas pelosentrevistados no início da carreira, ten-do dois aspectos sido mais citados. Oprimeiro refere-se à importância dadapelos entrevistados à especialização.Para eles, ao especializar-se adquiremmaior segurança profissional, principal-mente no momento da conquista de umavaga no mercado de trabalho. Essa ne-cessidade de especializar-se também foiobservada entre os fisioterapeutas queresponderam ao Censo do Crefito-3, emque, dos 24.844 fisioterapeutas que res-ponderam essa questão, 18.299 (73.7%)relataram ter realizado algum tipo decurso de pós-graduação, seja lato sensu(71%), stricto sensu (10%) ou outros17.

O segundo aspecto tido como umfacilitador para a conquista do primeiroemprego pelos fisioterapeutas entrevista-dos foi a realização de estágios extracur-riculares durante a graduação, ou logoem seguida, como estágio voluntário. Deacordo com os entrevistados, o estágioextracurricular, além de proporcionarexperiência prática, pode ser a oportu-nidade de garantir uma vaga no merca-do de trabalho pelo vínculo criado, pelachance de mostrar a capacidade de tra-balho.

Quanto às dificuldades encontradasno mercado de trabalho, os aspectosmais apontados foram o baixo salário,seguido por mercado de trabalho satu-rado e com grande concorrência e sen-sação de pouco reconhecimento social.Sobre o salário, dentre os entrevistadosobservam-se salários variando de 700reais até 8.000 reais, com valores da ses-são que variam de R$ 3,00 a R$ 150,00.Há fisioterapeutas que atendem um pa-ciente em uma hora de sessão até os queatendem a 14 pessoas em uma hora –são os que recebem os mais baixos sa-lários. A análise dos rendimentos de to-dos os fisioterapeutas entrevistados mos-tra que mais de 40, do total de 89, rela-taram ganhar menos que R$ 2.000,00.Os dados do Censo do Crefito-3 confir-

Figura 1 Distribuição dos fisioterapeutas pelos Conselhos Regionais (Crefitos),Brasil, 2005

Fonte: Inep/MEC18,19

48 52 52 59 63 68 80115

146176

211

256297

339379

420457

0

50

100

150

200

250

300

350

400

450

500

1991

1992

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2000

2001

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2004

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2006

2007

Ano

Núm

ero

de c

urso

s

Figura 2 Evolução do número de cursos de Fisioterapia no Brasil, 1991- 2007

Fonte: Crefito-3 17

Fisioter Pesq. 2009; 16(1) :82-8

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85Fisioter Pesq. 2009; 16(1)

mam essa tendência, apontando que amaior parte dos fisioterapeutas tem ren-da inferior a R$ 2.000,00 por mês17,como mostra a Figura 3.

Sobre o reconhecimento social, osprofissionais entrevistados relataramcomo um aspecto dificultador o desco-nhecimento por parte dos profissionaisda saúde, e mesmo por usuários do ser-viço, sobre o fazer do fisioterapeuta.Sobre esse aspecto é preciso tambémcontrapor que, quando os fisioterapeu-tas foram solicitados a apontar as con-quistas da Fisioterapia, o item mais cita-do foi “o maior reconhecimento soci-al”, mostrando que, apesar de desafiosa serem superados, vários profissionaispercebem que muito já foi conquista-do. Outros fisioterapeutas apresentaramcomo conquista “o reconhecimento e avalorização por parte dos profissionaisda saúde, principalmente, pelo médico”,ou seja, há um sentimento de que a pro-fissão passou por um período de reco-nhecimento e consolidação social, tantona relação com os colegas profissionaisda saúde quanto por parte da sociedade.

DISCUSSÃOA origem da Fisioterapia direcionou

sua prática para o processo de recupe-rar as condições de saúde das pessoaspara níveis anteriores a um episódio dedoença ou incapacidade. Foi nesse es-paço que a profissão se solidificou, de-marcando seu reconhecimento social nocampo das ações curativas, tema apon-tado e debatido por Rebelato e Botomé6.Por sua vez, os fisioterapeutas Schmidt4

e Freitas7 mostram que pouco se vê afisioterapia atuando na atenção básicaem saúde. Neste estudo, pôde-se inferiruma identidade forte do lugar social dofisioterapeuta com níveis de atenção

mais complexos e mais distantes da aten-ção primária à saúde. Essa característi-ca justifica a ânsia pela especializaçãopresente entre os entrevistados e nosdados do Censo, indo na contramão dasnovas diretrizes curriculares21, segundoas quais o profissional deve ter uma vi-são generalista.

Reforçando esse aspecto, a literaturaaponta para a formação no campo dasaúde consistindo em processos de en-sino-aprendizagem que enfatizam a áreatécnica, a especialidade, a intervençãocurativa. Também aponta para um cres-cimento quantitativo de cursos em de-trimento da qualidade22. Na Fisioterapiaesse crescimento se materializa num es-paço concentrado na região Sudeste,principalmente no Estado de São Paulo epredominantemente vinculado ao ensi-no privado, como mostram os resultados.

Ao priorizar quantidade no ensino, háuma desqualificação do processo de for-mação que pode estar estimulando ain-da mais a necessidade de busca imedia-ta por especialização. Também, o pro-fissional despreparado pode estar visua-lizando no estágio não-obrigatório e notrabalho voluntário uma possibilidade demelhorar sua qualificação, não se im-portando em ser explorado como mãode obra não-remunerada.

Nota-se que os entrevistados não per-cebem a contradição aí presente, pois ofato de alunos de graduação atenderemem clínicas não-vinculadas a instituiçõesde nível superior, ou profissionais for-mados se submeterem a fazer estágiosvoluntários, significa redução das opor-tunidades de trabalho para aqueles quejá estão no mercado. Não são poucas asinstituições que se aproveitam dessa con-dição e deixam de contratar profissionaispara oferecer estágios e explorar a forçade trabalho de graduandos.

Sobre a qualidade do atendimentofisioterapêutico, ao constatar profissio-nais atendendo 14 pacientes em umahora, pode-se inferir o uso acentuado derecursos tecnológicos terapêuticos, oque dificilmente é compatível com aresolutividade do cuidado. Para Merhy23,a organização do trabalho em saúdedeveria contemplar três tipos de tecno-logias: tecnologias leves, caracterizadascomo a forma de agir entre sujeitos tra-balhadores e usuários, individuais e co-letivos, implicados com a produção docuidado; tecnologias duras, que estãoinscritas nos instrumentos já estruturadospara elaborar produtos da saúde; e astecnologias leves-duras, caracterizadaspelos saberes estruturados que operamesses processos. Portanto, seria possívelidentificar uma parte dura, estruturadae outra leve, relacionada com o modocomo cada profissional aplica o conhe-cimento no momento da produção docuidado.

Observando o cotidiano de um tra-balhador da saúde, Merhy e Franco24

argumentam que, ao prover o cuidado,o trabalhador opera um núcleo tecno-lógico composto de “trabalho morto”(TM) e “trabalho vivo” (TV). TM são ins-trumentos e é assim definido porquesobre eles já se aplicou um trabalho pre-gresso no momento de sua elaboração;TV é o trabalho em ato, campo própriodas tecnologias leves. Por fim, a relaçãoentre TM e TV no interior do processode trabalho reflete uma correlação cha-mada pelos autores de composição téc-nica do trabalho (CTT). A CTT estandofavorável ao TM reflete predominânciade tecnologias duras, direcionadas à uti-lização de procedimentos; e quando, aocontrário, predominar TV, o provimentodo cuidado está centrado nas tecnologiasleves. Uma análise qualitativa dastecnologias de cuidado presentes no pro-cesso de trabalho permite também pensarque, no atual modo de produzir saúde –modelo hegemônico – a razão entre TMe TV faz prevalecer o TM. Portanto, sequeremos alterar o modo de produzirsaúde, temos de alterar essa correlação,produzindo mudanças no núcleo tecno-lógico do cuidado, compondo umahegemonia do TV24.

Esse modelo hegemônico na saúdetoma a parte pelo todo e, com isso, frag-

mais de R$ 10.001,00

R$5.001,00 a R$10.000,00

R$3.001,00 a R$5.000,00

R$2.001,00 a R$3.000,00

R$1.001,00 a R$2.000,00

até R$1.000,00

2,1%

3,4%

42,5%

3,8%

13,4%

34,8%

Figura 3 Pirâmide de renda dos fisioterapeutas do Estado de São Paulo, 2007

Almeida & Guimarães O lugar social do fisioterapeuta brasileiro

: 82-8

Fonte: Crefito-3 17

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86 Fisioter Pesq. 2009; 16(1)

menta o conhecimento e também o cor-po, supervalorizando as especialidades,o uso indiscriminado de recursos tecno-lógicos e se identificando com uma di-mensão política favorável ao liberalismo.Nesse modelo, os serviços de fisiotera-pia estão organizados com base emações curativas e individualizadas, cen-tradas na doença e não na pessoa, valo-rizando a especialização, as tecnologiase, portanto, o trabalho morto. Em contra-partida, o modelo contra-hegemônico,sem negar a importância do conheci-mento técnico, valoriza as dimensõessociais e humanas. É um modelo que tema dimensão do todo, está centrado nousuário do serviço, por isso busca a inte-gralidade, valorizando a interdisciplina-ridade, a intersetorialidade e a continui-dade da atenção, ficando evidente a pri-oridade ao trabalho vivo5,7,14,24.

A Figura 4 apresenta uma sistemati-zação dos dois modelos que represen-tam a prática profissional do fisiotera-peuta. No modelo contra-hegemônico,o método dialético permite ao fisiotera-peuta observar o processo pelo qual estásubmetido o objeto de intervenção, pre-servando sua totalidade e reconhecen-do as contradições inerentes ao objeto.Por outro lado, o método metafísico se-para o sujeito do objeto e define os se-res e as idéias separadas de suas rela-

Figura 4 Modelos de atuação profissional do fisioterapeuta: hegemônico e contra-hegemônico

ções e de suas interações, distanciandoa prática da realidade, fragmentando oconhecimento e o corpo humano.

No modelo contra-hegemônico oprofissional da saúde, ao lidar com ousuário do serviço de saúde, preocupa-secom o sujeito e não apenas com a en-fermidade. Lida com a singularidade decada um, sem abrir mão da ontologiadas doenças e suas possibilidades, mostran-do competência em lidar com pessoas13.Os dois modelos apresentam concep-ções distintas caracterizadas por ações,muitas vezes, opostas e presentes na prá-tica dos profissionais da saúde. São duasgrandes linhas em disputa em torno dapolítica de saúde: uma vinculada ao pro-jeto empresarial neoliberal médico-hegemônico, que vê a saúde como umamercadoria, e outro, que defende o for-talecimento do Sistema Único de Saúde(SUS), regulado pelo Estado e compro-missado com a saúde como direito detodos, não como bem de mercado.

O debate até agora desenvolvidomostra que o modelo de atuação hege-mônico leva o profissional da saúde aações parceladas, não dando conta demudar a realidade e responder às de-mandas individuais e sociais de grandeparte da população brasileira. Ele per-cebe que não responde às necessidades

humanas por falta de resolutividade, pordistanciamento da vida e das necessi-dades das pessoas. Isso desmotiva, desi-lude, pois os resultados não promovemsatisfação profissional.

A resposta do SUS para a superaçãodo modelo hegemônico está no fortale-cimento da atenção básica, concentra-da atualmente nas Estratégias de Saúdeda Família (ESF), visando edificar umnovo modelo de atenção à saúde. A res-posta dos Ministérios da Educação e daSaúde para mudar a formação dos pro-fissionais da saúde está nas novas dire-trizes curriculares, construídas a partirda necessidade de pensar a formaçãodos profissionais como uma estratégiaimportante para o fortalecimento doSUS4,21.

Portanto, cabe às instituições forma-doras, aos docentes, aos alunos e aosprofissionais fisioterapeutas observar oquanto suas práticas têm se direcionadopara uma atuação centrada na promo-ção da saúde, na prevenção, que valori-ze mais as condições sociais e humanasna manifestação dos desequilíbrios or-gânicos, uma atenção à saúde centradano sujeito e de forma integral.

CONCLUSÃOComo exposto, não são poucos os

desafios para que a Fisioterapia amplieseu papel social. Para avançar nessa di-reção, é necessário que nas ações dosfisioterapeutas estejam presentes a aten-ção integral, a resolutividade do cuida-do, o acolhimento, a formação de vín-culo, potencializando a capacidade queo fisioterapeuta tem de produzir saúdee não apenas recuperar. Nessa direção,o SUS tem se fortalecido e vem sendoconstruído a cada dia como uma alter-nativa possível frente ao modelo hege-mônico e com muito mais possibilida-des para a Fisioterapia ampliar seu lu-gar social.

Para isso, é preciso substituir açõesreprodutoras por ações que busquem aprodução de um conhecimento tal quevenha a melhorar a qualidade de vidadas pessoas que acorrem aos serviços desaúde. É preciso construir caminhos quepossibilitem a percepção cada vez me-nos segmentada da realidade e do sa-

Fisioter Pesq. 2009; 16(1) :82-8

MODELO HEGEMÕNICODimensão política

LIBERALISMO • trata da doença

• modelo hospitalocêntrico• demanda espontânea

• medicina curativa • especialidades

Dimensão epistemológica Metafísica

Dimensão epistemológica

Dialética

MODELO CONTRA-HEGEMÕNICO

Dimensão política ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL

• cuida do sujeito • modelo da promoção

• busca ativa • vigilância em saúde

• integralidade

Definida no processo de tocar o

corpo do outro

Toma a parte pelo

todo

Tem a visão do

todo

PRO

CES

SO D

E TR

AB

ALH

O

Dimensão técnica

PRÁTICA PROFISSIONAL DO FISIOTERAPEUTA EM DISPUTA

Page 6: Papel social do fisioterapeuta

87Fisioter Pesq. 2009; 16(1)

ber, mais crítica e mais social. Produzirconhecimentos e ações mais contextua-lizados, portanto mais próximos da vidadas pessoas atendidas, e com maior po-tencial para levá-las a perceber sua co-responsabilidade pela manutenção desua saúde, compreendendo-a como umrecurso que se conquista no dia-a-dia,conferindo aos usuários dos serviçosmais independência em relação ao mo-delo hegemônico.

A prática centrada na doença provo-ca o obscurecimento de grande parte daspossibilidades de atuação, crescimentoe reconhecimento profissional do fisio-terapeuta, alimentando a manutenção demuitas das dificuldades apontadas nes-te estudo. Ao fixar seu lugar social naatuação curativa, no modelo privatista,na especialização, entre outras, os pro-fissionais da saúde ferem o princípio daintegralidade que deve garantir o direi-

to da população de ser assistida em to-das as suas necessidades. Diante destas,a Fisioterapia pode contribuir muitomais. Para isso, entretanto, é preciso re-ver e ampliar seu lugar social. Acreditan-do que a gestão do novo se desenvolveno que já está estabelecido25, uma Fisi-oterapia crítico-social está se desenvol-vendo a partir do confronto e da dispu-ta desses dois modelos, para além daclínica e em direção ao social.

REFERÊNCIAS

1 Ceccim RB. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In:Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: asfronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Cepesc/Uerj;Abrasco; 2006. p.259-78.

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