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ISSN: 1517-9257 Papéis : rev. Letras Campo Grande, MS v. 8 n. 15 p. 1-67 jan./jun. 2004

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ISSN: 1517-9257

Papéis : rev. Letras Campo Grande, MS v. 8 n. 15 p. 1-67 jan./jun. 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DEMATO GROSSO DO SUL

ReitorManoel Catarino Paes - Peró

Vice-ReitorAmaury de Souza

CÂMARA EDITORIALAlda Maria Quadros do CoutoAna Maria Souza Lima Fargoni

Dercir Pedro de OliveiraJosé Batista de Sales

Maria Adélia MenegazzoPaulo Sérgio Nolasco dos SantosRita Maria Baltar Van Der Laan

Ronaldo AssunçãoVânia Maria Lescano Guerra

Ficha Catalográfica preparada pelaCoordenadoria de Biblioteca Central/UFMS

Papéis : Rev. Letras / Universidade Federal de MatoGrosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997) - . CampoGrande, MS : A Universidade, 2004.v. : il. ; 27 cm.

Semestral.ISSN 1517-9257

1. Literatura - Periódicos. I. Universidade Federalde Mato Grosso do Sul.

CDD-805

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APRESENTAÇÃO

Neste número da Revista Papéis, Iromar Maria Vilela apresenta uma leiturado conto La miel silvestre, de Horacio Quiroga com base nos pressupostosda teoria da enunciação, buscando os elementos de discursivização relativosao tempo, ao espaço e às personagens, articulando-os a um universo trágico.Edna Menezes discute as relações entre intertexto, literatura e mercadoa partir da análise de diferentes discursos como o conto, o cartum e apublicidade. A presença da estética surrealista na poesia de Manoel de Barrosé demonstrada por Lucimeire Antonieta Correia, analisando a construçãodas imagens em Tratado geral das grandezas do ínfimo.Maria Celinei de Sousa Hernandes estabelece relações entre tempoe imaginação na obra de Lygia Bojunga Nunes.

Na área de Lingüística, Cleovia A. A. Guidorizzi apresenta um estudode lingüística aplicada voltado para a relação entre os brasileiros falantesde língua espanhola na fronteira Brasil/Bolívia; a utilização da gírianas letras de música, de grupos de RAP, enfatizando, por meio da análisedo vocabulário, é tema do ensaio de Cristina Machado Casaroti.

O resumo de dissertação Marcha para uma literatura sul-mato-grossense:o conto regional de Hélio Serejo, de César Luiz Oliveira Viegas,encerra o conteúdo da revista.

Profª Drª Maria Adélia MenegazzoCoordenadora da Papéis

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Publicação da

UNIVERSIDADE FEDERALDE MATO GROSSO DO SUL

Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMSFone: (67) 3345.7200 - Campo Grande - MS

e-mail: [email protected]

Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica,Impressão e Acabamento

Editora UFMS

RevisãoA revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores

DistribuiçãoLivraria UFMS

Lídia Baís(1900-1985)Artista plásticasul-mato-grossense

Micróbio da fuzarcaÓleo sobre tela – s.d.

70 x 53 cmAcervo do MARCO

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SUMÁRIO

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A NARRATIVA QUIROGUIANA: UMA LEITURA DE "LA MIEL SILVESTRE"Iromar Maria Vilela

REPRESENTAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS QUE EMPREGAM OESPANHOL NA FRONTEIRA BRASIL / BOLÍVIA

Cleovia Almeida de Andrade Guidorizzi

RAP: A GÍRIA COMO "REVOLUÇÃO VERBAL"Cristina Machado Casaroti

QUALQUER SEMELHANÇA (NÃO) É MERA COINCIDÊNCIA(INTERTEXTO, LITERATURA E MERCADO)

Edna Pereira Silva de Menezes

O SONHO MANOELINOLucimeire Antonieta Correia

O TEMPO EM "A CASA DA MADRINHA": UM LIMIAR ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO

Maria Celinei de Sousa Hernandes

RESUMO DE DISSERTAÇÃOMARCHA POR UMA LITERATURA SUL-MATO-GROSSENSE: O CONTO REGIONAL DE HELIO SEREJO

César Luiz Oliveira Viegas

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Este trabalho tem por objetivo mostrar uma possível leitura de Lamiel silvestre, um dos contos da obra Cuentos de amor, de locura y demuerte, do escritor uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937). Com basenos pressupostos teóricos da teoria da enunciação, procuramos levantaros elementos de discursivização rela tivos ao espaço, tempo epersonagens, analisando como Quiroga ficcionaliza ou discursiviza anatureza transformando um ambiente de extrema harmonia em umuniverso trágico.

Palavras-chave:enunciação; ficção; subjetividade/objetividade; efeitos de sentido.

The aim of this paper is to show a possible reading of La miel silvestre,one of the short stories included in Cuentos de amor, de locura y demuerte, of the Uruguayan writer Horacio Quiroga (1878-1937). Basedon the theoretical pressupositions of the theory of enunciation, wehave tried to study the elements of the discourse related to space, timeand characters, analysing the way Quiroga deals with nature, interms of fiction or discourse, changing an environment of extremeharmony into a tragic universe.

Keywords:enunciation; fiction; subjectivity/objectivity; sensorial effects

* Iromar Maria Vilelaé professora deLíngua Espanhola doDepartamento deLetras, CCHS, UFMS.Mestre em LínguaEspanhola pela USP.

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Existe uma preocupação por parte dos críticosem tentar situar a obra de Quiroga e integrá-la emuma tradição literária. Tarefa difícil, pois cada mo-mento de sua obra parece pertencer a períodosdistintos, sobre o que diz Noé Jitrik (1967, p. 138),um dos críticos que mais acompanharam a sua tra-jetória:

No se podría, por lo tanto, decir: Quiroga fue un modernis-ta, ni un realista, ni un naturalista, aunque haya sido, endistintos momentos, todo eso. Desde el punto de vista delestilo, su obra aparece atomizada, siempre en tensión, casinunca con rasgos definitivos o por lo menos íntimamenteaceptados.

Para Abelardo Castillo (Todos los cuentos, 1997):Más que situarlo en una escuela o reconocer sus deudas, talvez importa ver qué cosa original trajo Quiroga a nuestraliteratura. La más evidente es, por ahora, la que nos basta:fue, para latinoamérica, el inventor del cuento. Quiroga hizoantes que nadie, entre nosotros, lo que Poe haría en EstadosUnidos: sistematizó el relato breve y lo elevó en la práctica ala categoría de género literário. Sus historias no son novelasfrustradas, ni estampas, ni poemas en prosa, ni viñetas. Soncuentos. Son ejemplares singulares de un género autónomoque acata sus propias leyes estructurales y que se basta a símismo. Cada narración es formalmente un universo cerra-do, y, cuando Quiroga alcanza su mayor intensidad, cadanarración es un objeto poético.

Para Davi Arrigucci Jr. (1995, p.110-111), a tô-nica geral da ficção hispano-americana da primei-ra metade do século XX é dada pelo regionalismo.

O despertar da consciência da autonomia nacio-nal, a exacerbação do nacionalismo que se con-cretiza nos movimentos de independência, bemcomo o gosto romântico pelo exótico, pelo pito-resco e pela cor local intensificam a tendênciapara a caracterização detalhada das regiões típi-cas, como se vê no criollismo ou na novela de latierra, conforme a crítica hispano-americana temchamado o conjunto da produção regionalista des-te século. Os escritores pertencentes a essa cor-rente literária mostram uma definida posição na-cionalista na qual a paisagem tem mais relevânciaque os indivíduos e, para isso, são notoriamentedescritivos. As personagens de suas obras são ge-ralmente vítimas dessa natureza americana, bru-tal, inabitável e grandiosa. O uruguaio HoracioQuiroga se coloca como um dos mais importantesprecursores do conto e da narrativa fantásticahispano-americana.

Segundo Davi Arrigucci Jr. (op. cit. p.131-133),Quiroga já havia tocado em pontos capitais da téc-nica de construção da narrativa curta, conforme omodelo de Poe, que mais tarde Cortázarreelaboraria. Quiroga é um contista do homem emsituações extremas: a morte, a loucura, a cruelda-de, o medo são temas constantes da sua obra. Emmuitos dos seus contos, é visível o modeloregionalista da luta humana contra a natureza bár-

A NARRATIVA QUIROGUIANA:UMA LEITURA DE "LA MIEL SILVESTRE"

Iromar Maria Vilela*

Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 6-13, jan./jun. 2004

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bara* (o cenário é a região de Misiones – Argenti-na). O mais importante, porém, é verificar que Quirogainova na própria técnica de construção da narrativa,ensaiando caminhos mais tarde decisivos para as ten-dências mais radicais da ficção hispano-americana.

O objetivo deste estudo é mostrar uma possívelanálise do conto La miel silvestre com base nos pres-supostos teóricos da Teoria da Enunciação, umaabordagem de base semiótica com ênfase no níveldiscursivo do percurso gerativo de sentido, uma vezque é nele que se dá a intervenção do sujeito daenunciação e onde se podem verificar as relaçõesdos actantes do processo comunicativo e compreen-der a estrutura actancial, espacial e temporal no contoem questão.

Uma leiturade "La miel silvestre"*

Trata-se do 13° conto da obra Cuentos de amor,de locura y de muerte, publicado inicialmente narevista Caras y Caretas, de Buenos Aires, em 21 dejaneiro de 1911. A personagem Gabriel Benincasa,jovem contador, protagonista da narrativa, se apre-senta como sujeito virtualizante, pois ele quer fazeruma viagem à selva, Misiones, passar alguns diasno chalé de seu padrinho em busca de dois ou trêschoques de vida intensa e, segundo o narrador, elepretende viver aí, uma aventura comparada a umadespedida de solteiro de um noivo ajuizado às véspe-ras do casamento. Mas recebe um golpe implacávelda natureza ao provar o mel de abelhas com subs-tâncias paralisantes sendo, em seguida, devorado porformigas corrección. No final, o narrador dá umaexplicação objetiva e científica, o que confere ao textoum caráter verossímil que transcende os limites dofantástico e produz no leitor uma inquietação quetranspassa e vai além da ficção.

Ao iniciar a narrativa, o narrador se apresentaem primeira pessoa através do verbo tener no pre-

sente do indicativo – “Tengo en el Salto Oriental dosprimos, (...)”, o que nos faz pensar que vamos teruma narrativa em primeira pessoa, ou seja, que onarrador vai tomar parte na história, sendo tambémum personagem; isso é um equívoco que se modificaem seguida, quando nos damos conta de que toda anarração vai seguir em terceira pessoa, ou seja, onarrador que nos relata a história não participa dela.Trata-se de um narrador denominado hetero-diegético. Isso produzirá uma desembreagemenunciva, criando um efeito de distanciamento daenunciação e, principalmente, um efeito de objetivi-dade na narrativa.

O narrador começa contando a história de doisprimos, as suas aventuras, de quando eles tinham dozeanos e, em seguida, nos diz que são “hoy hombresya”. Com a presença do primeiro advérbio de tempo,concluímos que o tempo da enunciação - hoje - nãocoincide com o tempo da história, que é anterior. Sen-do assim, entendemos que o narrador fará um movi-mento temporal retrospectivo para relatar os eventosanteriores ao presente da narração. O narrador apre-senta em um sumário o que aconteceu aos dois pri-mos: manipulados pelas leituras de Julio Verne, resol-veram ir morar na floresta; uma aventura de adoles-centes vivida em ambiente apropriado e que durousomente dois dias, sem importância histórica, se acompararmos com a aventura vivida por GabrielBenincasa, o protagonista desta narrativa.

Ao contar-nos o audacioso propósito que tinhamos dois primos, “de abandonar su casa para ir a viviral monte.”, “en consecuencia de profundas lecturasde Julio Verne”, o narrador faz presente na narrativaa intertextualidade1.

Para Diana Luz Pessoa de Barros (1988, p.142,143),

partindo da hipótese de que a enunciação é o conceito-chavepara explicação do discurso e de suas relações com as con-dições sócio-históricas de produção e de recepção, propôs-se examiná-la com base no aparato conceitual e metodológicoda semiótica. Ressaltou-se, porém, a insuficiência da análise

* A análise foi feita a partir do conto publicado em Cuentos de amor, de locura y de muerte, pp. 137-144, edição 1995 (Cf.REFERÊNCIA).1. “O termo intertextualidade foi proposto por Julia Kristeva como substituto de dialogismo, conceito lançado pelo teórico soviéticoMikhail Bakhtin (1895 – 1975) e, conforme a autora: ‘(...) o discurso literário envolve um cruzamento, um diálogo de vários textos,que se dá em nível horizontal e em nível vertical: em termos de horizontalidade, a palavra, no texto, pertence, ao mesmo tempo, aquem escreve e ao destinatário; verticalmente, é orientada na direção do corpus literário anterior ou do contemporâneo.’Bakhtin chama a esses dois níveis de diálogo e ambivalência, achado a que Kristeva prefere denominar Intertextualidade”(apud PROENÇA FILHO, 1986: 70-71).

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interna, mesmo sabendo-a necessá-ria, para a abordagem da segundaleitura temática e apontou-se umasaída, que pareceu adequada, a daintertextualidade contextual. A análi-se de outros textos, que formam o con-texto do discurso em exame, permitealcançar os fatores sócio-históricosconstitutivos da enunciação.Conta-nos o narrador que os

dois jovens pensavam pôr em prá-tica as aventuras lidas nas obrasde Julio Verne e viver à maneirada personagem Robinson (parágrafo três), que semostrava auto-suficiente.

De acordo com Napoleón Baccino Ponce de Leóne Jorge Lafforgue (1997, p.128), uma leitura

... y ‘a la letre’, de la referencia a Verne, querría ver unatoma de partido por el popular escritor francés. La referenciaes, por el contrario, indicativa de un aventurerismo juvenil,libresco, inexperiente, del protagonista, que confunde eluniverso profético de los textos con el más crudo y fatal dela realidad selvática.Dessa forma, a intertextualidade presente na

obra de Quiroga tem a intenção de criticar a falta deconhecimento do homem urbano diante da realidadee dos perigos que a selva oferece, e criticar tambéma ignorância do leitor de não ser capaz de distinguir adiferença entre ficção e realidade.

O espaço na narrativa é o espaço da selva –Misiones, as cidades, Salto Oriental e Corrientes,foram apenas citadas. A cidade é o espaço da cultu-ra, da civilização, onde vivem homens pacíficos comoGabriel Benincasa e de “vida aceitada como la suya”,é onde há proteção. Já Misiones é o espaço da sel-va, do desconhecido e segundo nos alerta o narrador,num primeiro índice de antecipação no primeiro pa-rágrafo: “(...) el bosque estaba allí, con su libertadcomo fuente de dicha y sus peligros como encanto”.

Como a semântica do nível fundamental abrigaas categorias que estão na base da construção deum texto, neste conto, a categoria do nível funda-mental é civilização vs natureza. A civilização évista como um ambiente disfórico, enquanto a na-tureza representa o espaço eufórico, do prazer, dofantástico, espaço que coloca o protagonista distan-te da “vida aceitada” que vivia em Corrientes.

Quanto à sua estrutura, de acordo com a tipologiade Norman Friedman (1967) acerca do narrador, esteconto tem três sumários e duas cenas. SegundoFriedman,

sumário narrativo é um relato generali-zado ou a exposição de uma série de even-tos abrangendo um certo período de tem-po e uma variedade de locais, e pareceser o modo normal, simples, de narrar;a cena imediata emerge assim que os de-talhes específicos, sucessivos e contínuosde tempo, lugar, ação, personagem e di-álogo, começam a aparecer. Não apenaso diálogo, mas detalhes concretos den-tro de uma estrutura específica de tem-po-lugar são os sine qua non da cena.(apud LEITE, 1999, p. 25-26).

No quarto parágrafo, ocorreum sumário com a apresentação de Benincasa, suabreve descrição física, a conclusão de seus estudose sua partida em direção ao chalé de seu tio e padri-nho, em Misiones. Benincasa toma essa viagem aomonte como uma mudança necessária em sua vida.Ele precisava de alguns “choques de vida intensa”.

No terceiro parágrafo, o narrador apresenta ou-tro signo de antecipação, isto é, adverte que “Lasescapatorias llevan aquí en Misiones a límites impre-vistos...”. É imprevisível o que pode ocorrer a umapessoa em Misiones, estando no espaço atópico, ain-da que tenha um bom equipamento, como as fortesbotas que usa o protagonista desta história, além dawinchester e do machete.

Já em Misiones, Gabriel, a partir do sexto parágra-fo, tenta por três vezes ir até o monte e percorrê-lo. Naprimeira vez, vai “hasta la vera del bosque”, se detémao ver a “inextricable maraña” e retorna ao chalé “bas-tante desilusionado”. Gabriel sente-se desiludido por-que sonhava viver, imediatamente, as aventuras mara-vilhosas e desejadas que fazem parte da vida de umjovem, cheia de fantasias e em busca de prazeres.

Sua segunda tentativa não foi deplorável, mesmonão tendo usado para nada a sua espingarda.

O narrador que segue Benincasa com sua câma-ra, focalizando-o, sabe que esse personagem buscaaventuras, e diz: “las fieras llegarían poco a poco”, oque é mais um sinal de antecipação anunciado pelonarrador e que se apresenta em seguida.

Na segunda noite do jovem no chalé, chegaramas feras “de un carácter un poco singular”, comonos conta o narrador na primeira cena do conto, quecomeça no parágrafo doze e vai até o vinte e dois.Trata-se da invasão do chalé pela corrección en-quanto Benincasa, que “había sido ya enterado delas curiosas hormigas”, dormia.

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... a "intertextualidade"presente na obra de

Quiroga tem a intençãode criticar a falta de

conhecimento do homemurbano diante da

realidade e dos perigosque a selva oferece...

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No parágrafo dezoito, o narrador, mostrando sa-ber mais que a personagem, faz uma descrição ob-jetiva acerca das propriedades carnívoras edevoradoras desse inseto e, ao mesmo tempo, noparágrafo dezenove, explica como livrar-se dele.

Depois de expulsar as formigas, no parágrafo vintee dois, “Benincasa reanudó el sueño, aunquesobresaltado toda la noche por pesadillas tropicales.”.

A presença da formiga talvez seja mais um sinalde alerta para o protagonista que, impetuoso, cheiode sonhos sobre aventuras na selva, deixa de atentarpara os perigos e armadilhas naturais do ambiente,que estão por toda parte e podem apresentar-se deforma traiçoeira. A formiga corrección vem tentarcorrigir, repreender e censurar esse desejo, essabusca desmesurada de aventura.

Até esse ponto da narrativa, o narrador, umasquantas vezes, tenta advertir-nos sobre os perigosda selva e nos mostra, como forma de antecipação,o mal que poderá ocorrer a Benincasa se ele insistirna aventura. A insistência e o prognóstico configu-ram o evento denominado “prolepse”, “...o quecorresponde a todo movimento de antecipação, pelodiscurso, de eventos cuja ocorrência, na história, éposterior ao presente da ação”(GENETTE, 1972:82). Isso ocorreu nos parágrafos 1, 3 e 11; o indíciomais forte de antecipação se dá com a invasão dacorrección.

A terceira tentativa de Gabriel Benincasa de ir atéo monte se dá no dia seguinte à invasão da corrección.Desta vez, leva um machete para sua defesa. Issoocorrerá a partir do parágrafo vinte e três.

O narrador nos contará, através de uma grandecena, a principal da narrativa, que culminará no de-senlace, o que acontecerá ao protagonista dessa aven-tura na sua terceira tentativa. Isso acontecerá desdeo parágrafo vinte e quatro até o quarenta e um, atra-vés do discurso direto de Benincasa, indireto livre,ou através do narrador com focalização interna.

Benincasa volvía, cuando un sordo zumbido le llamó laatención. A diez metros de él, en un tronco hueco, diminutasabejas aureolaban la entrada del agujero. Se acercó concautela y vio en el fondo de la abertura diez o doce bolasoscuras, del tamaño de un huevo.

_ ¡Esto es miel! – (...) Deben de ser bolsitas de cera, llenasde miel...De las doce bolsas, siete contenían polen. Pero las restan-tes estaban llenas de miel, una miel oscura, de sombríatransparencia, que Benincasa paladeó golosamente. Sabíadistintamente a algo. ¿A qué? El contador no pudoprecisarlo. Acaso a resina de frutales o de eucaliptus. Y porigual motivo, tenía la densa miel un vago dejo áspero. ¡Masqué perfume, en cambio!Benincasa realiza, nesse momento, um julgamen-

to epistêmico2 em relação à qualidade do mel, queparece ser diferente, talvez impróprio para o consu-mo, mas é cheiroso, portanto, ele crê que pode serconsumido e assim o faz: “Benincasa, una vez bienseguro de que sólo cinco bolsitas le serían útiles,comenzó”.

Esse momento representa uma intensa euforiapara Benincasa, que ignora a qualidade do mel, dei-xa-se atrair pelo seu perfume sedutor e sente quesua busca de aventura começa a concretizar-se.

“Uno tras otro, los cinco panales se vaciaron asídentro de la boca de Benincasa.” Recorremos àsimbologia na tentativa de explicar o valor e a impor-tância dos números que se apresentaram no destinode Benincasa, ou seja, as doze bolsas de mel, o con-sumo de cinco e o abandono de sete delas.

O mel vem simbolizar aqui a tentação que faltavapara seduzir Benincasa que agarra gulosamente omel silvestre, escuro, sombrio e com sabor áspero.Agarra o desconhecido que corresponde ao númerosete e, dessa forma, une o lado luminoso, sua vida,seu ser, ao lado sombrio do universo, o “monte cre-puscular y silencioso,” que simboliza a morte. Essaunião, bem como essa transição de um lado para outro,se dão através da morte, que corresponde ao núme-ro cinco. Isso encerra um ciclo concluído, o ciclo desua vida terrenal que corresponde ao número doze.

A partir do momento em que Benincasa consomeo mel, instaura-se na narrativa o nó e acompanhamoso protagonista que começa, de forma sinistra, a sentirtontura e uma série de sintomas malignos, provoca-dos pelo consumo do mel silvestre: “sentía su cuerpode plomo, sobre todo las piernas, como si estuvieraninmensamente hinchadas. Y los pies y las manos le

2. “As modalidades epistêmicas dizem respeito à competência do enunciatário (ou no caso do discurso narrativo, do Destinadorfinal) que, em seguida ao seu fazer interpretativo, toma a cargo, assume (ou sanciona) as posições cognitivas formuladas peloenunciador (ou submetidas pelo sujeito). Na medida em que no interior do contrato enunciativo (implícito ou explícito) o enunciadorexerce um fazer persuasivo (isto é, um fazer-crer), o enunciatário, por sua vez, finaliza o seu fazer interpretativo por um juízoepistêmico (isto é, por um crer) que ele emite sobre os enunciados de estado que lhe são submetidos” (GREIMAS, 1989, p.151).

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hormigueaban (...)”. O formiga-mento que sentia lhe fez lembrar-se da corrección, mas logo pen-sou que o mel era venenoso e,portanto, ele próprio estaria enve-nenado.

Durante un rato de horror de morirallí, miserablemente solo, lejos de sumadre y sus amigos, le cohibió todomedio de defensa._¡Voy a morir ahora!... ¡De aquí aun rato voy a morir!... ¡Ya no puedomover la mano!”“_¡Estoy paralítico, es la parálisis! Y no me van a encon-trar...Nos parágrafos quarenta e quarenta e um, acon-

tece o desfecho do conto. Presenciamos os últimose dramáticos momentos de vida de Benincasa nar-rados em discurso indireto:

Pero una invencible somnolencia comenzaba a apoderarsede él, dejándole íntegras sus facultades, a la par que elmareo se aceleraba. Creyó así notar que el suelo oscilantese volvía negro y se agitaba vertiginosamente. Otra vezsubió a su memoria el recuerdo de la corrección, y en supensamiento se fijó como una suprema angustia laposibilidad de que eso negro que invadía el suelo...Tuvo aún fuerzas para arrancarse a este último espanto, yde pronto lanzó un grito, un verdadero alarido, en que lavoz del hombre recobra la tonalidad del niño aterrado: porsus piernas trepaba un precipitado río de hormigas negras.Alrededor de él la corrección devoradora oscurecía el suelo,y el contador sintió, por debajo del canzoncillo, el río dehormigas carnívoras que subían.O grito é o ponto máximo da narrativa e pode ser

avaliado como um pedido de auxílio do protagonistaque se sente impotente perante a situação. O verda-deiro berreiro de Benincasa, que já não se sentia umhomem, mas uma criança aterrorizada e indefesa. Oúltimo grito, a consumição pela corrección que che-ga em multidão e ataca um ser que se encontraanestesiado, mas consciente e conhecedor das pro-priedades carnívoras da formiga. De acordo com ateoria semiótica, acontece, nesse momento, o julga-mento do protagonista, ou seja, a sanção que, porsinal, é negativa, pois Benincasa não soube comovencer os sujeitos operadores da morte que se apre-sentaram em sua trajetória e foi vencido, não gozoudos “choques de vida intensa” como sonhara. Viveuuma aventura disfórica, que se contrapôs à eufóricadesejada e esperada.

Assim o herói transformou-se em vítima. A natu-reza e o universo da selva impõem o seu domínio e

se mostram destruidores diante dafragilidade do homem urbano.

Os parágrafos 25, 31, 33, 35,37, 39 e 40 terminam todos comreticências (...), o que enfatiza asituação emocional, geralmenteduvidosa e angustiante, produzi-da pelas cenas dramáticas, pró-prias do desenlace.

No parágrafo quarenta e dois,o narrador faz um sumário paracontar-nos como o padrinho de

Benincasa o encontrou dois dias depois e como seinformou da causa de sua morte. O padrinho, quepoderia representar o herói salvador, o auxílio dese-jado, chegou tarde demais.

Para concluir, o narrador, dando-nos uma expli-cação científica acerca das propriedades narcóticasou paralisantes do mel silvestre, tenta quebrar o im-pacto que nos causou a morte brutal de Benincasa.Nesse ponto, o narrador permanece distanciado enão expressa nenhuma opinião, dando à descriçãoum tom objetivo e científico, aterrorizando sem sen-timentalismo.

O narrador aproveita essa intertextualidade com aobra de Julio Verne para criticar a falta de conheci-mento do homem urbano diante da realidade e dosperigos que a selva oferece. Mostra-nos que a reali-dade presente no mundo da ficção é utópica, nãocorresponde à realidade vivenciada pelo ser humanoque se deixa manipular pelo universo profético dostextos, tornando-se vítima dos perigos, porque no uni-verso humano não existe mágica, nem super-heróis,pois, no caso de Benincasa, ele poderia esperar auxí-lio de seu padrinho que só chegou dois dias depois datragédia para constatar o fato ocorrido.

Se Benincasa fosse mais uma personagem –Robinson – criada por Julio Verne, ele teria tido com-petência para defender-se diante das armadilhas quea selva lhe apresentou, pois até mesmo as abelhas,como ele disse, que eram: “¡Maravillosos y buenosanimalitos!” (parágrafo vinte seis), mostraram-se trai-çoeiras e provocadoras de tamanho dano. Benincasa,como homem urbano, desconhecedor por completodos enigmas da selva, não é capaz de avaliar a quali-dade do mel silvestre e nem de vê-lo como um opo-nente que se apresenta mascarado. Pois o mel quecostuma ser suave, doce e de cor clara, era o oposto:áspero e escuro. Porém, o seu perfume era sedutor, o

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O narrador nos contará,através de uma grande"cena", a principal da

narrativa, que culminaráno desenlace, o que

acontecerá aoprotagonista dessa

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que pode ter representado a “ten-tação” para seduzir Benincasa. Elepercebeu as diferenças, mas nãoas considerou como sinais de ad-vertência e, dessa forma, transgre-diu as normas do permissível e donão-permissível, tornando-se víti-ma da situação criada e propician-do o ataque das formigas, o sujeitooperador da morte.

As mesmas formigas –corrección – carnívoras, que sur-giram na segunda noite no chalé, traiçoeiras, em buscade alimento, carne e gordura, tudo o que possuía nossojovem contador público, pois era um “muchacho pa-cífico, gordinflón (...)” (parágrafo quatro). Cabe res-saltar aqui que, em alguns mitos da Índia, a formigaaparece como símbolo não apenas da pequenez detodo vivente, mas também de um aspecto da vidaque vence a humana. Por sua multiplicidade, seu sig-nificado é desfavorável. No parágrafo dezoito, onarrador, ao descrever as propriedades da formiga,alerta: “Su entrada en una casa supone la extermi-nación absoluta de todo ser viviente, pues no hayrincón ni agujero profundo donde no se precipite elrío devorador.”. Quando descobriram a presença deBenincasa, encontraram abrigo seguro, pois, comoo próprio nome informa, estando com Gabriel se estábem – em – casa, palavras que remetem, poraglutinação, ao sobrenome da personagem – Benin-casa. Em contrapartida, podemos fazer uma outraleitura que seria a de que Gabriel somente estariabem – em – casa, podemos estender o significante– casa para o espaço da cidade, da vida urbana, co-nhecida e segura.

Para a teoria semiótica, Benincasa em seu pro-pósito (programa narrativo de base) de percorrer omonte e usufruir dele é sancionado negativamente,pois é vencido pela fauna e pela flora que se apre-sentaram como anti-sujeitos do percurso. Ao prota-gonista, não lhe bastou a proteção material: armas,roupas, e botas. Faltou-lhe conhecimento suficientepara conviver com a diversidade e com o perigo queoferecia esse novo espaço, desconhecido para ele.Benincasa é um sujeito virtual, que possui o querer-fazer, o desejo de conhecer e viver uma experiênciana selva, mas lhe falta o principal, o saber-fazer, ouseja, ele não tem competência modal para realizarcom êxito a ação e colocar-se em conjunção com o

objeto desejado. Assim sendo, aperformance ocorre, aquisição porprivação, pois a sonhada vida deemoções o leva à morte.

Benincasa sai de Corrientes,do espaço tópico, onde vive, ondehá segurança, violando a ordemdo padrinho, e penetra no lugaratópico, Misiones, onde se depa-ra com o desconhecido, com operigo, onde vive o inimigo que seapresenta mascarado, o mel sil-

vestre. Ele representa a personagem transgressora-vítima que se submete, inconscientemente, à mano-bra de engano e torna-se cúmplice involuntária doagressor, a formiga corrección. No parágrafo vintesete, o narrador nos conta que: “En un instante elcontador desprendió las bolsitas de cera, y alejándoseun buen trecho para escapar al pegajoso contacto delas abejas, se sentó en un raigón.”, ou seja, Benincasa,pensando afastar-se das abelhas levou consigo a “(...)fortuita e infernal comida del bosque.” (parágrafoquatro) e, assim, livra-se das abelhas e se prepara,ao tomar o mel, para ser devorado pelo rio de formi-gas corrección.

Subjetivamente, o nome que as formigas rece-bem corrección pode estar presente na narrativa paramarcar que o protagonista deveria ter obedecido aopadrinho que lhe recomendou que fosse acompanha-do por um peão, pela sua inexperiência, própria dajuventude, e por ser uma pessoa urbana e tambémporque roubou o mel e consumiu-o gulosamente, semrespeitar as diferenças que ele próprio percebeu noalimento, axiologicamente descrito como sendo: “desombría transparencia”, “oscura”, com um “dejo ás-pero”, mas que era, sedutoramente, perfumado.Como valor subjetivo não-axiológico, ele possuía asqualidades: “densa”, “vago” e “espesa”.

E dessa forma trágica, Benincasa pôde honrar asua vida “aceitada” com intensos e fatídicos cho-ques, concluindo sua breve aventura na selva embusca de transformação.

Quanto ao tempo da narrativa, existem dois mo-mentos, os quais estão relacionados com o espaço e omovimento das personagens, por exemplo: Benincasa,o protagonista, é uma pessoa tranqüila, calma, caute-losa. No decorrer da narrativa, vemos que ele esperapassivamente por momentos que poderão ser ines-quecíveis, prepara-se para viver a sua aventura. Os

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Ao protagonista, nãolhe bastou a proteçãomaterial... Faltou-lhe

conhecimento suficientepara conviver com adiversidade e com o

perigo que oferecia essenovo espaço,

desconhecido para ele.

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fatos vão acontecendo paulatinamente, como marcao narrador no seu discurso: “Las fieras llegarían pocoa poco.”, “Al día siguiente (...)”.

Quando Benincasa percebe a presença das abe-lhas e verifica, cautelosamente, que pode invadir acasa delas e apossar-se do mel, a narrativa sofre umaalteração, a velocidade do discurso passa a ser maior,ou seja, o tempo do discurso passa a ser menor que otempo da história. Essa mudança está relacionada coma gula do protagonista e a velocidade de ação da for-miga corrección, pois Benincasa toma, gulosamente,os cinco favos de mel. Isso, inesperadamente, vai de-sencadear uma série de acontecimentos sinistros quevão muito além dos choques de vida intensa que de-sejava experimentar a personagem. O que efetiva-mente acontece com a velocidade das formigas, ouseja, rapidamente, comprovando o estado de disforiae a tensão crescente na narrativa.

Depois do clímax, a narrativa volta para umestado de calma, pois somente após dois dias, o

padrinho de Benincasa encontrou o cadáver doseu afilhado. Nesse momento, o narrador modi-fica o seu discurso, parte do subjetivo para o ob-jetivo com a intenção tanto de explicar, cientifi-camente, os danos sofridos por Benincasa, apósconsumir o mel silvestre, quanto de prevenir aointerlocutor sobre a real possibilidade desse tipode acontecimento e alertá-lo com relação aosenigmas da selva, pois, como disse o narrador noprimeiro parágrafo do conto, “(...) el bosqueestaba allí, con su libertad como fuente de dichay sus peligros como encanto.”.

Ao mudar o tom da narrativa, ou seja, sair dodiscurso subjetivo, próprio da ficção, para o discursoobjetivo, o narrador provoca um efeito de sentido si-nistro, chocando o interlocutor que a princípio via osacontecimentos como irreais e, no entanto, objetiva-mente. O narrador nos comunica que isso pode ocor-rer ao próprio leitor, ou seja, a um ser de carne eosso, real e não imaginário.

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Propomos estudar o emprego das nomeações referentes aos brasileirosque usam a língua espanhola na fronteira Brasil / Bolívia. Tínhamoscomo objetivo confirmar ou não a hipótese de que na fronteira há umacerta resistência aos bolivianos, devido a questões sócio-econômicas,que se estende à língua. Tivemos como suporte teórico os pressupostosde Van Leeuwen (1987) que, por sua vez, apóia-se na GramáticaSistêmica Funcional de Halliday.

Palavras-chave:Espanhol; português; falar.

We propose to study the use of the different names referring to Brazilianswho use Spanish at the Brazil / Bolivia border. Our objective was toconfirm or not the hypothesis that at the border there is a certainresistance towards Bolivians, due to social and economic issues, whichextends to the language. As theoretical support we have used thetheories of Van Leeuwen (1987), who bases his findings on theFunctional Systemic Grammar of Halliday.

Keywords:Spanish; Portuguese; speaking.

* Cleovia Almeidade Andrade Guidorizzié professora deLíngua Portuguesado Departamentode Letras do CCHS,UFMS. Mestreem Comunicaçãoe Semiótica pelaPUC-SP.

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REPRESENTAÇÃO DOS ATORESSOCIAIS QUE EMPREGAM OESPANHOL NA FRONTEIRA

BRASIL / BOLÍVIACleovia Almeida de Andrade Guidorizzi*

Nossa proposta neste artigo é estudar o em-prego das nomeações para se referir ao brasileiroque emprega a língua espanhola na fronteira Bra-sil / Bolívia. Entrevistas semi-estruturadas foramo instrumento selecionado para a coleta de dados.Realizamos cinqüenta e nove entrevistas. Todosos entrevistados eram moradores da zona urbana,dos municípios de Corumbá e Ladário, no Estadode Mato Grosso do Sul, que residiam no municípionum período igual ou superior a vinte anos. Osentrevistados foram divididos em dois grupos; pro-fissionais de prestígio e profissionais de pouco pres-tígio.

Estamos entendendo por prestígio o profissio-nal que possui admiração, respeito e influência dacomunidade. Para a comunidade local existem trêsfatores que dão prestígio à profissão: escolarida-de (terceiro grau completo), poder econômico ecargo (função). Os fatores que dão pouco prestí-gio à profissão são: baixo grau de escolaridade(primeira à quarta série), analfabetismo e baixosalário.

O arcabouço teórico desse trabalho será sus-tentado nos pressupostos de Van Leeuwen (1987),no seu estudo sobre a representação dos atoressociais, em que se propõe a observar os diversosmodos que o falante emprega para nomear o atorsocial no seu discurso.

O autor acredita que as escolhas são realiza-das em função da gramática, entendendo-a a partirdo ponto de vista de Halliday (1994), como umpotencial de significados, o que pode ser dito, enão como um conjunto de regras do que deve serdito. A proposta consiste em montar um inventá-rio sócio-semântico dos modos pelos quais os ato-res sociais podem ser representados, e estabele-cer a relevância sociológica e crítica das suascategorias antes de debruçar-se sobre a questãode como é que se realizam lingüisticamente.

A questão colocada no seu estudo “faz parte deuma questão mais vasta: como é que as práticassociais se transformam em discursos acerca des-sas mesmas práticas sociais – e isto, quer no senti-do de que temos meios para o fazer quer no sentidode como é que nós, na realidade, o fazemos emcontextos institucionais específicos que têm rela-ções específicas com as práticas sociais e das quaisproduzem representações” (1987,172).

A rede de sistema criada por Van Leeuwenpara representar as nomeações possui o mesmoprincípio da gramática sistêmico funcional, isto é,a língua oferece determinadas possibilidades denomeações que desencadeiam uma série de ou-tras possibilidades, surgindo assim a idéia de rede.Passaremos agora a comentar as representaçõesempregadas na análise de dados.

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to importante porque está liga-do à maioria. Nas sociedades deregime democrático, a maioriagoverna, em função disto a agre-gação muitas vezes é utilizadapara regulamentar a prática epara produzir uma opinião deconsenso, mesmo que se apre-sente como um mero registro defatos.5. Individualização – Aindividualização ocorre quandoos atores sociais são referidos

como indivíduos. Esta nomeação é muito interes-sante devido ao elevado valor que determinadas es-feras da nossa sociedade atribui à individualidade(nome).

Adotaremos o seguinte procedimento: monta-remos quadros com as principais nomeações deacordo com as classificações de Van Leeuwen.Nos quadros, aparecerá o número de ocorrênciasda nomeação empregadas pelos profissionais deprestígio e de pouco prestígio. Consideramos so-mente as nomeações que tiveram um número igualou superior a 05. Em seguida, faremos um recorteno discurso do entrevistado que possui tal exem-plo para análise.

Temos as inúmeras escolhas léxico-gramaticaisempregadas ao responder a seguinte questão:

Olhando assim, não percebemos o quanto essasnomeações são representativas no discurso. É pre-ciso lembrar que são escolhas léxico-gramaticais sig-nificativas diante das inúmeras opções que a línguaoferece. Importa-nos saber o que significa cada umadas escolhas, segundo Leeuween, e o que implica nodiscurso do entrevistado.

Iniciaremos apresentando as nomeações que in-dicam indeterminação e assimilação.

1. Funcionalização – Ocorrequando os atores sociais são refe-ridos em função de uma atividadeque exercem.2. Identificação – Ocorre quan-do os atores sociais são definidosnão em termos daquilo que fazem,mas em função daquilo que maisou menos são. Van Leeuwen dis-tingue três tipos de identificação:classificação, identificação rela-cional e identificação física (nãocomentaremos esta última porque não aparece nosdados).2.1. Classificação – Refere-se aos atores sociaissegundo as categorias empregadas por uma deter-minada sociedade para diferenciar classes de pes-soas (idade, sexo, origem, classe social, riqueza, raça,orientação sexual, religião etc.). É fundamental lem-brar que as categorias de classificação sofrem influ-ência histórica e cultural.2.2. Identificação Relacional – Representa os ato-res sociais em função da relação pessoal, de pa-rentesco ou de trabalho que têm entre si, e costu-ma realizar-se por meio de um conjunto fechado desubstantivos que identifique tais relações (tia, pai,colega). Costumam ser possessivados por um pro-nome possessivo (o amigo dela), por um genitivo (amãe da criança) ou por um sintagma preposicionalpós-modificador introduzido por de (a mãe de cin-co). Van Leeuwen ressalta que a diferença entre aidentificação física e a classificação não é muitonítida, como por exemplo o uso da cor da pele paraclassificação, assim como as conotações que sãoinerentes a representações de mulheres como lou-ras, ou ruivas.3. Generalização e Especificação – A represen-tação dos atores sociais pode ocorrer como classesou como indivíduos específicos e identificáveis. Noprimeiro caso, é genérica, por isso chamaremos degeneralização, a segunda é específica, chamaremosde especificação.4. Assimilação – Ocorre quando os atores sociaissão tratados como grupos. Os principais tipos deassimilação são: a agregação e a coletivização. Noprimeiro caso, os atores sociais são quantificados,tratados como dados estatísticos, enquanto que nosegundo isto não ocorre. Os principais mecanismosempregados para o levantamento dos dados são:sondagens de opinião, inquéritos, pesquisa de mer-cado etc. A agregação desempenha um papel mui-

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Alguns / muitos corumbaenses / muita gente /muitas pessoas /muito / muita dessas pessoasque não é do meio falam/ um pouco da cidade /algumas dessas pessoas /alguns corumbaenses/ vários cidadãos / todos/ O povo em geral / opessoal / os fronteiriços / A maioria do pessoal /osbrasileiros / eu / mulher / marido / tio / sogra / primo/ os pescadores / os pobres / balconistas / feirante/ rico / classe média.

Quem fala Espanhol?

A nossa sociedadecostuma valorizar oindivíduo quando se

trata de algo positivo ouque implique algum

status, e anonimizarquando se trata de algo

que não tenha taisimplicações.

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Exemplos de indeterminação empregados pelosprofissionais de prestígio

1) Já escutei alguns falando.2) Muitos corumbaenses falam, falam sim.3) Ah muita gente fala, porque precisa, não temoutro jeito.4) Já ouvi muitas pessoas falando espanhol.

Exemplos de indeterminação empregados pelosprofissionais de pouco prestígio

1) Tem muitos que utilizam por aparecimento,sabe como é, tem que mostrar que sabe e aí vaise aparecendo.2) Muitas dessas pessoas que não é do meiofalam.3) Muitos corumbaenses falam espanhol, querdizer portunhol porque aqui não se fala o espanhollegítimo, entende?4) Muita gente vai pro lado de lá fazer compraquando chega lá é obrigado a falar né? Senão…5) Um pouco da cidade sempre acaba usando nafeira.6) Já vi algumas dessas pessoas falando (espa-nhol).7) Alguns emprega o espanhol no comércio.8) Alguns corunbaenses usam sim, por causa danegociação com boliviano né?

Exemplos de assimilação empregados pelosprofissionais de prestígio.

1) O povo em geral costuma falar espanhol.2) O pessoal fala, fala mal, mas fala.

3) Principalmente os fronteiriços, são os que maisfalam na verdade.4) A maioria do pessoal vai fazer compra naBolívia, aí tem que falar.5) Os brasileiros costumam falar porque sãoobrigados pela necessidade.

Exemplos de assimilação empregados pelos profis-sionais de pouco prestígio

1) Aqui o povo fala portunhol que é a mistura doboliviano com brasileiro.2) O pessoal fala espanhol quase direto.3) Os fronteiriços de baixo empregam, estãojuntos né?4) O brasileiro conhece boliviano, aí acaba por falar.5) Esse povo que costuma freqüentar as feirasde lá.

Verificamos que os entrevistados empregaramnomeações que denotam inclusão do ator socialque emprega espanhol. O ator social compareceindeterminado, independente da nomeação serclassificada como indeterminação ou assimilação.Optamos por discutir a indeterminação e assimi-lação juntas por considerarmos que existe entreas duas apenas uma diferença de cunho gramati-cal. No primeiro caso, ocorre o emprego de pro-nomes indefinidos usados numa função nominal.Por meio desse recurso, os atores sociais são re-presentados como grupos. E no segundo caso, háo emprego de substantivos que denotam um grupode pessoas. O motivo que leva o entrevistado alançar mão desses recursos acreditamos ser omesmo nos dois casos: anonimizar o ator socialque emprega o espanhol.

A anonimização desaparece com a identidadede quem emprega espanhol. A identidade de quemfala espanhol parece irrelevante. O ator social ficarelegado a segundo plano. Esse fenômeno se deveao fato de que falar espanhol não é uma ação con-siderada muito importante. Caso o fosse, o atorsocial seria individualizado. A nossa sociedade cos-tuma valorizar o indivíduo quando se trata de algopositivo ou que implique algum status, e anonimizarquando se trata de algo que não tenha tais impli-cações. Há situações em que ocorre exatamenteo contrário, é que tudo depende do contexto. Massegundo Leeuwen, não é o que ocorre com maisfreqüência. No decorrer deste capítulo, veremosque não é o caso dos nossos dados.

De acordo com os exemplos, há duas situaçõesdistintas: na primeira, o entrevistado anonimiza o

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Indeterminação / AssimilaçãoQUADRO 01 - INDETERMINAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS QUEEMPREGAM ESPANHOL

INDETER- Profissionais Profissionais deMINAÇÃO de prestígio pouco prestígio

Total

Muitos 05 02 07Muitas pessoas 05 02 07Muita gente 03 02 05Alguns 02 03 05Um pouco 00 04 04Todos 00 05 05Total 15 18 33

QUADRO 02 - ASSIMILAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS QUEEMPREGAM ESPANHOL

ASSIMI- Profissionais de Profissionais deLAÇÃO prestígio pouco prestígio Total

O (s) brasileiro (s) 01 03 04O / esse povo 00 05 05O pessoal 02 04 06Os fronteiriços 00 04 04Total 03 16 19

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ator social que emprega o es-panhol. Em virtude de outrasmarcas lingüísticas junto à no-meação, percebemos a sua ex-clusão. Na segunda, ele anoni-miza o ator social e não deixamarcas lingüísticas que nos per-mitam ter a certeza de sua ex-clusão ou inclusão em relaçãoao grupo que emprega espanhol.Eis os exemplos do primeirocaso:

1) Esse povo que costuma freqüentar as feirasde lá2) Os fronteiriços de baixo empregam, estão jun-tos né? (este entrevistado mora em Ladário umacidade que fica mais distante da Bolívia queCorumbá.)3) Muitas dessas pessoas que não é do meio fa-lam.Nesses exemplos, os dêiticos esse e dessas mar-

cam o distanciamento do entrevistado em relaçãoaos demais atores sociais que empregam o espanhol.É provável que tenham lançado mão desse recursolingüístico para marcar a sua exclusão do grupo quefala espanhol. Tal distanciamento também nos mos-tra um certo preconceito em relação às pessoas quefalam espanhol.

Os exemplos mencionados são dos profissionaisde pouco prestígio. Isso se deve ao fato de acredita-rem que as pessoas das classes sócio-econômicasinferiores são pessoas “comuns,” e falar espanhol éum dos fatores que os torna comuns. Portanto de-corre a necessidade de buscar um recurso lingüísticoque os diferencie dentre os comuns. Os de prestígionão precisam de estratégia discursiva para se dife-renciar dos demais. O status que possuem na comu-nidade local é suficiente para diferenciá-los das pes-soas consideradas “comuns”.

Já no segundo caso, que corresponde à maiorparte dos exemplos, fica muito difícil ao interlocutorter certeza se o entrevistado se inclui ou não nosgrupos que falam espanhol. Logicamente aindeterminação e a assimilação são recursoslingüísticos que permitem ao entrevistado, além deanonimizar o ator social, construir uma informaçãovaga e descomprometida.

Segundo a tabela, os profissionais de pouco pres-tígio em relação aos profissionais de prestígio em-

pregaram quase o dobro de nome-ações que indeterminam ou assi-milam o ator social. Isso nos mos-tra que os profissionais de poucoprestígio tiveram uma preocupa-ção maior em proteger a sua po-sição em relação ao emprego doespanhol. É bem provável que hajapor trás desse recurso um quererdizer que não fala espanhol. Aocontrário se por acaso quisessemassumir o emprego do espanhol,

utilizariam outros recursos de nomeação.Para reforçar a idéia de que a assimilação coleti-

va tem como objetivo diminuir a importância de quememprega espanhol, porque os trata como pessoascomuns, que fazem parte de uma massa, veremosno exemplo abaixo que o entrevistado, quando em-prega o espanhol com alguém que não é boliviano efaz parte da elite, ele não utiliza a assimilação e sima individualização. Observemos a resposta de umprofissional de prestígio sobre a forma de aprendiza-gem do espanhol pelos moradores da fronteira:

• “Convívio, evidentemente convívio, é mais o con-vívio, inclusive eu tenho um cliente aqui que éespanhol, é madrilenõ, M.V.M.A, é meu clientehá muitos anos e eu convivo com ele tá?”É sintomático que esse entrevistado diga desde

o início da entrevista não empregar espanhol, quandoescapa a informação que de fato fala espanhol. Nocaso, emprega a individualização. O emprego des-se recurso visa a valorizar o seu interlocutor, demaneira a valorizar a si mesmo. É como se disses-se: os outros, “pessoas comuns”, aprendem espa-nhol com os bolivianos da fronteira, que tambémsão pessoas comuns, eu não, aprendo convivendocom um espanhol, que ocupa um alto cargo políti-co, e a prova concreta disso é o nome do cliente.Valelembrar que houve um número muito pequeno deindividualização, como esse exemplo. Acabamos,assim, por fazer um viés para entendermos melhora assimilação coletiva.

Generalização

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QUADRO 05 - GENERALIZAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS QUEEMPREGAM ESPANHOL

GENERA- Profissionais Profissionais deLIZAÇÃO de prestígio pouco prestígio Total

Nós 52 15 67A gente 28 10 38Total 80 25 105

De acordo comBourdieu, a razão dos

profissionais deprestígio generalizarem

mais que os profis-sionais de pouco pres-tígio é que consideram

geral aquilo que élegitimado por eles.

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Exemplos de generalização empregados pelosprofissionais de prestígio.

1) Nós usamos espanhol lá e aqui, obviamentemais lá.2) Nós precisamos falar espanhol com eles, é umanecessidade indiscutível.3) A gente precisa não tem como negar isto (anecessidade de falar espanhol).

Exemplos de generalização empregados pelosprofissionais de pouco prestígio.

1) A gente fala por precisão, né?2) A gente tem que usar não tem muito jeito denum falar, eles são boliviano então tem que falarespanhol.3) Nós falamos o tempo todo quando a gente estálá.

O entrevistado, ao empregar nomeações que in-dicam generalização, estende este comportamento atodos, seria o “eu-ampliado” de Benveniste. Antesde analisarmos o emprego da generalização, é ne-cessário um breve comentário a respeito de algumaspesquisas referentes ao emprego do nós e de a gente.

As gramáticas, em geral, possuem posturas con-trovertidas ao classificarem a expressão a gente.Ora consideram-na como pronome pessoal, ora comoforma de tratamento, ou ainda como pronome inde-finido. Em função disso, surgiram diversas pesqui-sas com o objetivo de entender esta expressão, que,na maior parte das vezes, é comentada pelas gramá-ticas em notas ou observações de rodapé.

Segundo Lopes, pesquisadores como Naro et alii,1983, Omena, 1986, Albán et alii, 1986, Fernandes &Gorski, 1986, Freitas et alii, 1991, Lemos Monteiro,1991 têm estudado a introdução da forma a genteno quadro dos pronomes pessoais, como uma va-riante do pronome de 1ª pessoa do plural nós. No en-tanto, algumas pesquisas como a de Lemos Monteiro,1991, restringe a sua investigação às característicassociais, sem mencionar os fatores lingüísticos que fa-vorecem o uso dessa variável. E a de Onema, 1986,toma por base apenas a fala popular.

Lopes, no seu artigo “Nós e a gente no portu-guês falado culto do Brasil” procura rever essasposições dando conta da norma culta e oral e iden-tificando, além dos fatores sociais, os ambienteslingüísticos que condicionam o uso de nós e de agente na função de sujeito. Seu estudo aponta aseguinte conclusão: “ainda que se tenha realizadouma análise separando os ambientes lingüísticos dossociais e apresentado os resultados isolados, per-cebe-se que o uso das duas formas condiciona-se a

determinados ambientes lingüísticos e discursivosque se inter-relacionam, endossando o caráterindeterminado de a gente em oposição a umanuance mais específica de nós. Em primeiro lugar,tem-se o uso da forma a gente para referênciasdiscursivas mais vagas, indefinidas e amplas. Aoreferir-se a um grupo de pessoas, indeterminado edifuso, o falante prefere tal forma pelo seu carátergenérico. Utiliza a gente também com o presente,infinitivo e gerúndio que são formas verbais carac-terísticas das enumerações de atos habituais, fre-qüentes ou até atemporais, associados aos discur-sos descritivos, argumentativos e expositivos. Coma forma a gente, o falante se descompromete como seu discurso, comentando assuntos gerais e nãoparticulares. Quando eventualmente narra um fatovivido, o comprometimento com aquilo que enunciaé maior. O pronome nós possui um caráter maisespecífico e determinado, daí a sua presença emambientes lingüísticos em que o referente éidentificável e conhecido e o tempo verbal é o pre-térito (característico da narração de fatos reais)

Há também os estudos de Rollemberg et alli(1991) que chegaram à conclusão de que, nas si-tuações formais, há preferência pelo emprego donós, e nas informais pelo a gente. Já Van Leuween(1997) não trata as nomeações nós e a gente comoindeterminação e sim como generalização. E, paraexplicar essa nomeação, recorre aos estudos deBourdieu.

Para Bourdieu (1986), a visão específica é umavisão cega, estreita e parcial dos fatos, enquantoque uma visão mais geral se coloca acima dos fa-tos. A diferença de olhar está associada ao concei-to de classe social, geralmente as idéias particula-res se referem aos hábitos das classes trabalhado-ras, enquanto que as idéias gerais pertencem à clas-se dominante.

Diante dos nossos dados, acreditamos que a pro-posta de Bourdieu explica melhor o fato de os pro-fissionais de prestígio empregarem mais generali-zação e os de pouco prestígio mais indeterminaçãoe assimilação. De acordo com Bourdieu, a razãodos profissionais de prestígio generalizarem maisque os profissionais de pouco prestígio é que consi-deram geral aquilo que é legitimado por eles.

A opção pelas conclusões de Bourdieu não nosleva a desconsiderar o fato de que as nomeações“nós” e “a gente” possuam um caráter de inde-terminação muito grande, conforme aponta os es-tudos de Lopes. O profissional de prestígio empre-

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ga a generalização por se tratarde um recurso lingüístico quepermite marcar a idéia geral, queé determinada pela classe domi-nante. Mas dentro do contextode classe dominante fica muitodifícil ao interlocutor determinarquem de fato é este nós e a gen-te devido à falta de um referen-te.

O nosso próximo passo serádiscutir as nomeações que indi-cam classificação e funcionali-zação dos atores sociais que empregam espanhol.Reconhecemos que a funcionalização não deixa deser uma forma de classificação dos atores sociaisem função da sua profissão. Van Leuween nos aler-ta que existe uma diferença significativa quando es-colhemos nomear o ator social em função daquiloque ele é (classificação) ou pela profissão que exer-ce (funcionalização). Em função disso, propõe estu-dar os dois separadamente.

Funcionalização

De acordo com a tabela, tan-to os profissionais de prestígioquanto os de pouco prestígio con-cordam que são as profissões li-gadas aos profissionais de poucoprestígio que mais empregamespanhol. A justificativa está ba-seada na convivência com osbolivianos. Isto é, emprega espa-nhol quem convive com os boli-vianos.

Os profissionais de prestígio ede pouco prestígio divergem ape-

nas no que se refere ao emprego do espanhol porparte dos comerciantes. O número de profissionaisde pouco prestígio que acreditam ser os comercian-tes que mais empregam espanhol é maior que os deprestígio. Os dados nos mostram que podemos fazera seguinte leitura:

• Os profissionais de prestígio dizem que são osprofissionais de pouco prestígio que mais usamespanhol, porque na sua profissão interagem maiscom os bolivianos, e eles usam muito pouco por-que interagem menos.• Os profissionais de pouco prestígio concordamque empregam mais, no entanto os profissionaisde prestígio empregam mais do que dizem.Diante das duas observações, concluímos que o

profissional de prestígio possui uma certa resistênciaa assumir o emprego do espanhol; o mesmo nãoacontece com os profissionais de pouco prestígio. Aresistência por parte dos profissionais de prestígio sedá devido à vinculação entre espanhol (língua) e bo-liviano. Se compararmos esses dados com os da ta-bela anterior (generalização), veremos uma certacontradição. Na tabela anterior, os profissionais deprestígio admitem o emprego do espanhol, e agoradizem que a categoria profissional que mais usa es-panhol é a do outro, que não faz parte da sua classesócio-econômico. Como explicar essa contradição?

Notamos que, se a discussão do emprego do es-panhol ocorre dentro de um contexto macro, o pro-fissional de prestígio sente-se mais à vontade paraadmitir que usa espanhol, mas o mesmo não aconte-ce quando a discussão ocorre dentro de contextosmicro, porque em tais circunstâncias a aproximaçãocom o boliviano se faz mais presente. O problemanão está em fazer ou não o uso do espanhol e sim

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Exemplos de funcionalização empregados pelos pro-fissionais de prestígio.

1) Os pescadores com certeza são os que maisfalam.2) O balconista é quem mais fica em contato comeles.3) O feirante brasileiro e boliviano trabalham meioque juntos nas feiras então acredito que sejameles que falam.

Exemplos de funcionalização empregados pelos pro-fissionais de pouco prestígio.

1) O balconista é quem atende os bolivianos, aíé claro que são eles que falam espanhol.2) Os pescadores pescam na Bolívia, falam es-panhol.3) São mais os comerciantes que falam, que ne-gocia com eles né?

QUADRO 06 - FUNCIONALIZAÇÃO DOS ATORES SOCIAISQUE EMPREGAM ESPANHOLFUNCIONA- Profissionais ProfissionaisLIZAÇÃO de prestígio de pouco prestígio

Total

Os pescadores 02 06 08Os balconistas 02 06 08O feirante 02 04 06Os comerciantes 01 05 06Total 07 21 28

O problemanão está em fazerou não o uso do

espanhol e sim emrelacionar-se

com o boliviano.

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em relacionar-se com o boliviano. O profissional depouco prestígio admite um pouco mais a aproxima-ção com os bolivianos. Esse fato, por si só, não ésuficiente para dizermos que os profissionais de pres-tígio possuem mais ou menos resistência em relaçãoaos bolivianos que os profissionais de pouco prestí-gio. Há ainda uma série de dados a serem analisa-dos para que possamos chegar a uma afirmação maisprecisa a respeito dessa questão.

Classificação Econômica

mam ser o profissional de pouco prestígio que maisempregam o espanhol. Novamente, vinculam o em-prego à convivência com boliviano. Sabemos que háprofissionais de prestígio que não partilham desseraciocínio, mas não é a maioria. Já os profissionaisde pouco prestígio apresentam opiniões opostas. Amaioria (se considerarmos a soma referente à clas-se média e ricos) acredita que é o profissional deprestígio que mais emprega espanhol. A princípio,parecem opiniões opostas, mas não são. Tanto osprofissionais de prestígio como os de pouco prestígioafirmam que quem usa espanhol é o outro, que nãopertence à sua classe sócio-econômica. Acredita-mos que todos usam espanhol.

Um outro ponto levantado por ambos é que a ins-trução escolar permite aos profissionais de prestígiopossuírem um domínio maior do espanhol padrão. Ésintomático que os profissionais de pouco prestígioreconhecem a importância do espanhol padrão.

O fato dos profissionais de prestígio freqüenta-rem escolas de idioma para aprender espanhol e dosde pouco prestígio sentirem necessidade de apren-der o espanhol padrão mostra que ambos não pos-suem preconceito em relação ao espanhol, mas simem relação ao boliviano, quer variante, quer falante.Poderíamos inferir que desprezam o espanhol em-pregado pelos bolivianos, mesmo porque nenhumentrevistado valorizou a importância das situaçõesnaturais de fala com os bolivianos como um recursode aprendizagem do espanhol. Em outras palavras,os entrevistados deixaram transparecer um certopreconceito em relação ao desprezarem o espanholaprendido no dia-a-dia com os bolivianos.

Os principais argumentos dos profissionais depouco prestígio para justificar o emprego do espa-nhol por parte dos profissionais de prestígio são: con-vivência, poder econômico e instrução escolar. Já osargumentos dos profissionais de prestígio centraram-se na convivência entre os profissionais de poucoprestígio com os bolivianos.

Identificação Relacional

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Exemplos de classificação econômica empregadospelos profissionais de prestígio.1) Eles, os pobres, convivem mais com o pessoal de

lá, logo são os que mais falam.2) A classe pobre utiliza mais.3) Diria sim que é a classe média.4) Eu diria que somos nós porque você sabe a gente

tem que defender o negócio da gente, então nahora do vamos ver é a gente que tem falar bemfalado, não é o empregado que vai lá falar porvocê, e em função dos negócios você viaja lá pracima e lá é só espanhol, enquanto que eles é aqui,e aqui basta misturar, falar portunhol você já seentende com o boliviano, então eu digo com cer-teza que esta turma não fala espanhol, falamportunhol, você entendeu? E muito mal viu?

Exemplos de classificação econômica empregadospelos profissionais de pouco prestígio.

1) Os pobres usam aqui o que os bolivianos usam,mas não é o espanhol não, é uma língua meiotruncada, não é a língua lá de cima, é sei lá, oportunhol né?2) As pessoas pobres falam mais espanhol porqueouvem mais os bolivianos falarem..3) É a classe média que trabalha mais com eles,que fala mais, mas todo mundo fala.4) Os ricos falam mais porque eles têm condiçõesde fazer curso, coisa que pra nós aqui não dá, deviade ter espanhol nas escolas do governo né? ...De acordo com a tabela das dez nomeações em-

pregadas pelos profissionais de prestígio, oito afir-

QUADRO 07 – CLASSIFICAÇÃO ECONÔMICA DOS ATORESSOCIAIS QUE EMPREGAM ESPANHOL

CLASSIFI- Profissionais ProfissionaisCAÇÃO de prestígio de pouco prestígio

Total

Os pobres 05 05 10As pessoas pobres 01 02 03A pessoa rica 02 15 17A classe média 02 06 08Total 10 28 38

QUADRO 08 - IDENTIFICAÇÃO RELACIONAL DOS ATORESSOCIAIS QUE EMPREGAM ESPANHOLIDENTIFICAÇÃO Profissionais ProfissionaisRELACIONAL de prestígio de pouco prestígio

Total

Mulher (esposa) 00 01 01Marido 00 01 01Tia 00 02 02Sogra 00 01 01Prima 00 03 03Total 00 07 07

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Exemplos de identificaçãorelacional empregados pelos pro-fissionais de pouco prestígio.

1) Quando chega a minhaprima da Bolívia aí eu falo comela.2) Às vezes brinco com o meumarido...3) Com a minha mulher que éde origem boliviana eu falo4) Quando chega minha sogra.A tabela indica que apenas os

profissionais de pouco prestígio forneceram dadosque comprovam a presença do espanhol em ambientedoméstico. O espanhol não está tão restrito às rela-ções comerciais como têm apregoado a maioria dosentrevistados. Nota-se que são as relações de pa-rentesco que viabilizam o emprego do espanhol. Umasérie de hipóteses pode explicar o fato de o espanholser empregado mais pelos profissionais de poucoprestígio em ambiente doméstico, que não foi estu-dado neste trabalho, como por exemplo:

• O número de casamentos entre bolivianos e bra-sileiros ocorre com mais freqüência entre os pro-fissionais de prestígio ou entre os de pouco pres-tígio?• Há mais laços de amizade entre os bolivianos eos profissionais de prestígio ou os de pouco pres-tígio?• As crianças bolivianas convivem mais com cri-anças que possuem pais que são considerados pro-fissionais de prestígio ou de pouco prestígio?

Individualização

maneira enfática para afirmar ouso do espanhol, levando em con-ta que a entrevista continha mui-tas questões sobre o emprego doespanhol no dia-a-dia do entrevis-tado. O entrevistado parece terevitado escolhas lingüísticas queo comprometessem diretamentecom o emprego do espanhol.

Quanto aos entrevistados quenegaram o uso do espanhol, veri-ficamos que apenas o fazendeiro(profissional de prestígio) e o pe-

queno comerciante (profissional de pouco prestígio)mantiveram uma certa coerência no discurso. Ne-garam o emprego do espanhol do início ao fim daentrevista. Mas veremos, nos exemplos abaixo, queos dois possuem um familiar que fala espanhol, porisso não sentem necessidade de empregá-lo. É umaquestão curiosa imaginarmos que tenham presente ofamiliar, sempre que necessário, para falar o espa-nhol. Lembremos que eles não negam a convivênciacom os bolivianos. Já os demais entrevistados, nãopossuem o mesmo comportamento.

Exemplos de individualização (eu) dos profissionaisde prestígio.

1) Quando eu vou lá na feirinha de Quijarro aí euutilizo bastante.2) Eu falo muy mal, porque eu não falo há muitotempo, mas eu entendo e falo muito bem.3) Não. Eu não utilizo, nem na minha profissãoeu utilizo. Acabei de falar eu não utilizo.

Exemplos de individualização (eu) dos profissionaisde pouco prestígio.

1) Quem? Eu? Não senhora, entendo algumacoisa, mas eu não falo.2) Sendo com boliviano eu só falo espanhol.3) Eu tenho uma irmã na Bolívia, cresceu noBrasil, e muitas vezes ela fala; somente eu e ela,mas isso não tem nada a ver.

O último exemplo nos chama a atenção quanto ànecessidade do entrevistado em informar onde a irmãcresceu. Parece que o seu intuito é esclarecer que asua irmã apenas está na Bolívia, que ela não éboliviana. Além disso, há também a expressão – “issonão tem nada a ver” - que significa: “falo em espanholsó com a minha irmã, mas isto não é importante”.Primeiro nos fornece uma informação que estábaseada na sua necessidade; depois nega aimportância do ato de interagir com a sua irmã

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Não estamos estudando todos os usos do eu;restringimo-nos aos exemplos que ilustram o uso oua atitude face ao uso do espanhol.

O quadro mostra que os profissionais de prestígionegam o emprego do espanhol com mais freqüênciaque os de pouco prestígio. É bom observar o peque-no número de entrevistados que emprega o “eu” de

QUADRO 09 – INDIVIDUALIZAÇÃO DO ATOR SOCIAL QUEEMPREGA ESPANHOL (EU)

INDIVIDUA- Profissionais ProfissionaisLIZAÇÃO de prestígio de pouco prestígio

Total

Eu uso 27 33 60(afirmação direta)Eu não uso 13 03 16(afirmação. direta)Total 40 36 76

Esta incursãopelo estudo dasnomeações nos

mostrou a dificuldadeda maioria dos

entrevistados emassumir o emprego

do espanhol.

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empregando o espanhol. Somos levados a acreditarque o entrevistado possui uma grande resistência emrelação aos bolivianos e à língua espanhola.

Esta incursão pelo estudo das nomeações nosmostrou a dificuldade da maioria dos entrevistadosem assumir o emprego do espanhol. E, em funçãodisso, eles fizeram várias escolhas léxico-gramaticais,que ora anonimizavam, ora generalizavam o atorsocial que emprega espanhol. Esses recursos não

nos dão certeza se o entrevistado de fato está ounão entre aqueles que falam o espanhol. Além disso,verificamos a tentativa do entrevistado em mostrarque o outro (aquele que não pertence a sua classesócio-econômica) é que emprega espanhol. Enfim, oestudo das nomeações reforçou a idéia de resistência,que percebemos ao analisar os principais processos,pois associam o ato de falar espanhol como sinônimode conviver com o boliviano.

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O presente trabalho tem como objetivo analisar a questão da escolhalexical em letras de músicas RAP, estilo musical que expressa a linguagemda periferia, e verificar em que proporção essa escolha funciona comotestemunha de uma realidade social e como veiculadora de ideologias. Aênfase da análise recaiu sobre a questão do uso da gíria, associada a palavrões,e demonstrou como esse recurso de linguagem pode funcionar como formade denúncia de uma realidade social. As letras de músicas foram selecionadasde forma a representar diferentes épocas da música RAP no Brasil, bemcomo contemplar autores que apresentam abordagens distintas de temasrelacionados ao cotidiano da favela. Os dados foram sistematizados emcampos e subcampos léxicos que possibilitaram a organização das lexiassegundo a rede semântica que integram, e a conseqüente visualização daestrutura hierárquica do vocabulário estudado e das relações internas designificado evidenciadas sobre a visão de mundo do grupo e a importânciado léxico como representação da realidade e do julgamento da sociedadena perspectiva de um grupo social.

Palavras-chave:léxico; ideologia; periferia; gíria.

This research paper has as its objective the analysis of the choice of wordsin RAP music, the style of music which expresses the language of theurban periphery, and to verify in what way this choice functions as atestimony to the reality of society and as a vehicle of ideology. Theemphasis of the analysis was placed on the use of slang, associated withobscene language, and demonstrated the way in which this type oflanguage could function as a type of denunciation of social reality. Themusic texts were chosen to represent different eras of RAP music in Brazil,as well as authors that present different angles on daily life in the slums.The data was organized into lexical groups and sub-groups that madepossible an organization of the vocabulary words, according to thesemantic web to which they belong. This organization also made possiblethe consequent visualization of the hierarchical structure of the vocabularyanalyzed, and the internal relationships of meanings seen in the inter-relation of the lexical groups established. The analyses of the dataconfirmed the fact that language acts on the world vision of the group, aswell as the importance of vocabulary as a representation of reality andthe judgment of society in the perspective of the social group.

Keywords:lexico; ideology; periphery; slang.

* Cristina MachadoCasaroti é especialistaem Letras.Área de concentração:Língua Portuguesa eLingüística – Campusde Dourados/UFMS,sob orientação daProfª Drª AparecidaNegri Isquerdo.Professora de LínguaPortuguesa na RedePública de Ensino deDourados MS.

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RAP:A GÍRIA COMO

"REVOLUÇÃO VERBAL"Cristina Machado Casaroti*

IntroduçãoÉ sabido que, por meio da gíria, um grupo pode

adotar um vocabulário especial a partir da atribuiçãode novos significados a palavras já conhecidas, dacriação de novas palavras ou de alterações na estru-tura formal de unidades léxicas já disponíveis na lín-gua. Além disso, há que se considerar que o léxicofunciona como veiculador de ideologias, uma vez quemanifesta a visão de mundo do falante e da socieda-de que o cerca. Este trabalho tem como objetivosfundamentais analisar a questão da escolha lexicalem letras de músicas RAP e verificar em que pro-porção essa escolha funciona como testemunha deuma realidade social e como veiculadora de ideolo-gias.

As letras de músicas de grupos de RAP, queforam utilizadas como fonte de dados para esteestudo, pertencem a um estilo musical que emer-giu na última década no universo musical brasilei-ro e enfocam especificamente a rotina da perife-ria dos grandes centros urbanos, contexto em quese destaca fortemente a favela. A opção por essatemática justifica o fato de as músicas denuncia-rem o tráfico incontrolável de drogas, a ação vio-lenta da polícia e do crime organizado, as guerrasarmadas nos pontos de distribuição de droga, oalto índice de usuários de droga entre a populaçãode todas as idades, a violência, a fome, o desam-paro das crianças e, conseqüentemente, a humi-

lhação, o medo, a opressão e a revolta. Em facedisso, nas letras de música RAP, a escolha daspalavras denota uma luta contra esse estado decoisas por meio do que consideram uma revolu-ção verbal, expressão que, no âmbito das letrasdesse estilo de música, tem a conotação de buscada conscientização da população de periferia quan-to à necessidade de reverter a situação de domi-nados por meio do poder da palavra.

Estudos desenvolvidos por pesquisadores bra-sileiros acerca da linguagem gírica têm demons-trado a riqueza lingüística presente nessa varieda-de de linguagem. Dentre outros, merecem desta-que os trabalhos de RECTOR (1975) e de PRETI(1984a e 1984b). A primeira autora, no trabalho ALinguagem da Juventude, destaca as diferençasentre gíria, dialeto e palavrão e discorre acercadas diferenças sofridas pela gíria brasileira desdeo século XVI. O segundo, por sua vez, tambémenriquece os estudos relacionados ao uso da gíriae da linguagem obscena em obras como A Gíria eOutros Temas (1984a) e A Linguagem Proibida(1984b). Nessas obras, o autor destaca, entre ou-tros aspectos, a atitude lingüística do falante quefaz uso da gíria e o prestígio lingüístico a ela rela-cionado.

Este trabalho tem o propósito de registrar o vo-cabulário de periferia dos grandes centros urbanos,recuperado pela música RAP, com o objetivo de iden-tificar, nesse contexto de linguagem, elementos que,

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segundo PRETI (1984, p.3),diferenciam esse falante nasociedade e promovem a suaauto-afirmação.

É possível afirmar que a lin-guagem é, para o homem, omeio mais eficaz que traduztodo o seu universo de conhe-cimento, alcançando inclusiveos seus sentimentos e desejos.Pela palavra o ser humano seautoconceitua, apresenta-sediante do outro e interage como meio, uma vez que “a função da fala, na suaessência, não é uma função orgânica, mas umafunção intelectual e espiritual” (GUSDORF, 1995,p.9).

O homem traz, pois, consigo a necessidadenatural de comunicar-se, de fazer-se entender, deproduzir sua fala, não só para si mesmo, mas tam-bém para o outro. Neste particular, servimo-nosainda da afirmação de GUSDORF (1995, p. 46 e47) de que “a linguagem não é pertença de um,mas de vários; ela está entre” e aparece como“traço de união”. A essa idéia de união associa-se a de interação, uma vez que, com a linguagem,o homem aproxima-se do outro e age sobre ele.Ela representa para cada falante um instrumentode luta e de defesa, de mudanças e de conquis-tas, à medida que viabiliza a realização de inten-tos pessoais e propicia a interferência sobre ospropósitos de outrem.

Desta forma, é no universo da fala que o sig-nificado das expressões se revelam. Esse univer-so, construído por pessoas distintas, cada qual comsua história de vida, se manifesta com traços va-riados e por meio da linguagem nas diversas clas-ses da sociedade, que se mostram em suas desi-gualdades e apresentam seus diferentes discur-sos. GERALDI (1993, p.56), por exemplo, ob-serva que esse fato se evidencia especialmente“pela segregação que uma classe impõe, atravésdos mais diversos mecanismos, pela articulaçãoe retomada dos produtos herdados do passado naprodução do universo discursivo do presente”. Opesquisador defende a idéia de que esses dife-

rentes universos circulam entre si,o que favorece a dominação, poisem meio a esse confronto as“classes dominantes articulam oselementos enquanto que as clas-ses dominadas (...) atomizam efragmentam seus modos de ver omundo e de representá-lo”. É jus-tamente nesse contexto, onde aforça da ação da linguagem semanifesta sobre o homem, que seproduzem as ideologias, o proces-so pelo qual a classe dominante

impõe suas idéias de forma a representar as idéiasdas demais classes sociais (CHAUÍ, 1980, p.92).

1 - Léxico e ambiente:um recorte sobre o uso da gíria

Independente de sua vontade, o homem traz con-sigo a influência do ambiente físico-social onde con-vive. No que concerne à língua, essa influência estáestreitamente ligada ao aspecto social, consolidadapor “forças da sociedade que modelam a vida e opensamento de cada indivíduo: religião, padrões éti-cos, forma política e arte” (SAPIR, 1969, p. 44).Considerando este ponto de vista, é possível afirmarque o eu interior do homem, o que ele pensa e dese-ja, seus traços culturais bem como os de sua comu-nidade, as experiências vividas pelo indivíduo em seumeio social e como ele se relaciona em sociedaderevelam-se pelo léxico1 que, na concepção de SAPIR(1969, p.51), equivale ao “assunto de uma língua”,pois funciona como um conjunto de símbolos queretrata a cultura de um grupo.

Importa destacar que a escolha lexical pode reve-lar os interesses de um grupo e que, a essa escolha,associam-se atribuições de sentidos, cujas alteraçõesdependem exclusivamente de fatores que se diferenci-am de pessoa para pessoa. Em se tratando da atribui-ção de sentidos, BIDERMAN (1981, p.138) defendeque o léxico de uma língua não se apresenta sistemati-camente organizado, apenas nos dicionários impressosde uma língua, mas também por meio dos “padrõesneuronais dos cérebros dos indivíduos”. Como todo in-

1. “Por léxico duma língua poder-se-á entender o dicionário no duplo sentido de conjunto de palavras dessa língua e a suainventariação (dicionarística ou lexicográfica), a competência lexical falante/ouvinte nativo duma língua e, na perspectiva resultanteda função representativa da linguagem, o conjunto das unidades léxicas (=as unidades que representam a realidade extralingüística)duma língua” (VILELA, 1979, p. 9).

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O Hip Hop hoje éconsiderado o mais

importante movimentonegro jovem da atuali-dade. Três elementos

formam a cultura dessemovimento:

o RAP, o Grafitee o Break.

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divíduo vive exposto às mudanças ocorridas na socie-dade, há uma progressiva expansão do léxico, uma vezque o homem, independente de sua idade, aprende con-tinuamente palavras novas e conotações e denotaçõesdiversas atribuídas a palavras já existentes, e tudo issograças ao convívio entre os falantes.

PRETI (1984a, p. 2 e 4) acrescenta ainda que “de-terminados grupos se isolam” da grande massa falan-te e “adotam uma linguagem especial”: a gíria, lingua-gem considerada como “elemento de auto-afirma-ção” de um grupo social, à medida que o seu uso “é amaneira que o grupo encontra de agredir o convenci-onal e registrar o seu conflito com a sociedade”.

Nesta perspectiva, a gíria funciona como formade defesa de uma comunidade, uma vez que repre-senta um código compreendido apenas pelos integran-tes de um grupo, que lançam mão de mudanças inten-cionais na grafia e no sentido de determinadas pala-vras, ou da criação de outras, para ocultar a estranhossuas verdades e ideais. Esse fenômeno é denominadopor PRETI (1984b, p.66) de gíria de grupo. Nos gran-des centros, a gíria assume um espaço de certa formavalorizado, já que se torna um elemento indispensávelna comunicação. Nessa mesma obra, o autor discor-re a respeito da gíria comum2 e declara ser esta a quetraduz “as condições de vida impostas pela sociedadeao homem do povo”, razão por que ela passa a repre-sentar a “visão de mundo” dos menos favorecidos. Éválido destacar que, ao expressar o sofrimento e aopressão de uma comunidade, a gíria o faz num tomirônico que revela o repúdio da classe dominada aoseu contexto social (PRETI, 1984b, p.67-68).

Este trabalho centra-se na questão do uso da gí-ria associada a palavrões e procura demonstrar comoesse recurso de linguagem pode funcionar como “ins-trumento de luta de classe” e como fator de com-pensação do falante frente às mazelas de sua reali-

dade social (PRETI, 1984a, p.22). Nesta perspecti-va, é propósito deste trabalho ressaltar a força dalinguagem como expressão da complexidade das ex-periências e inter-relações humanas, que traduzema crise de identidade social de um grupo, no caso, osgrupos de periferia urbana.

2 - Um pouco dehistória

A lexia3 Hip Hop significa, ao pé da letra, sacudiro quadril (hip) e saltar (hop). Segundo MACARI(1984), “o termo foi estabelecido pelo DJ4 AfrikaBambaata, em 1978”, que percebeu que a dança se-ria uma forma de amenizar a violência nos guetos,provocada pelos sentimentos de exclusão (apud,PIMENTEL)5. O Hip Hop hoje é considerado o maisimportante movimento negro jovem da atualidade. Trêselementos que formam a cultura desse movimento: oRAP (rhythm and poetry), expressão musical por meioda “revolução de palavras”; o Grafite, arte plástica dedesenhos coloridos, e o Break, dança com movimen-tos que imitam robôs, praticada em rodas como a ca-poeira. Valendo-se desses elementos, a cultura HipHop aborda os problemas da periferia urbana e a dis-criminação social e cultural do negro.

O RAP foi criado na Jamaica por volta de 1960. Naépoca, havia os Sound Systems, que se pareciam como atual trio elétrico, e os toaster, como os MCs6 dehoje, que discursavam, por meio de frases, sobre ascarências e a violência dos guetos. Por questões políti-cas e econômicas, alguns jamaicanos deixaram a ilhano Caribe e emigraram para a América, fato que deuorigem aos primeiros grupos de RAP nos guetos deNova York.7 ANDRADE (1996, apud PIMENTEL)argumenta que os primeiros b.boys8 protestavam con-

2. PRETI (1984b, p.67) refere-se à gíria comum como “vocabulário gírio mais genérico”, que, segundo o autor, representa adespersonalização de vocabulários de grupos restritos ou fechados que por meio da evolução social, do progresso e dodesenvolvimento dos meios de comunicação, tendem a generalizar-se e incorporarem-se a um “léxico popular, de limites imprecisos”.3. DUBOIS et al. (1973) definem lexia como “unidade mínima construída. É, portanto, a unidade funcional significativa dodiscurso”. No item 3b deste trabalho, será focalizada a concepção de lexia proposta por POTTIER (1977).4. Abreviatura de “disc-jóquei”. No âmbito da música RAP, é aquele que produz os efeitos sonoros da música (ROCHA, DOMENICH,CASSEANO, 2001, p.143)5. Obra disponível no site www.realhiphop.com.br. Como no site não são indicadas a data de publicação e as páginas, as referênciasa esta obra no corpo do texto serão feitas pelo nome do autor (site consultado em maio de 2002).6. Abreviatura de “máster of ceremony” (mestre de cerimônias) (ROCHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001, p.145). No mundodo RAP, são os que cantam as músicas.7. Informação obtida por meio de consulta ao site www.realhiphop.com.br - história, em maio de 2002.8. “B” é abreviação de “break”, e boy significa garoto (ROCHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001, p.142), ou seja, na cultura HipHop é o elemento que efetua a dança break. Feminino b.girl.

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tra a participação americana naguerra do Vietnã, pela manifesta-ção de alguns movimentos, comopor exemplo, o giro de cabeça, fei-to com a cabeça no chão e os péspara cima com as pernas abertas,que simbolizava a ação dos heli-cópteros durante a guerra. A estu-diosa acrescenta ainda que as pro-postas do partido político revoluci-onário Panteras Negras9 foramchamadas de Black Power (podernegro) e que “boa parte dos valo-res da organização desse partido foi resgatada pelosmembros do Hip Hop, principalmente no Brasil, paracombater os abusos do poder político contra os ne-gros”.

As tradições orais africanas evidenciavam-se emhistórias em versos que os griots10 repassavam paraos filhos e que chegariam aos guetos americanos emuma linguagem um pouco diferente: elas incorpora-vam as gírias dos bairros negros, o que impossibilita-va, aos brancos, a compreensão das narrações deepisódios que envolviam a marginalidade. Enquantotais tradições se perderam no Brasil, ao longo dos500 anos de história, sobretudo em decorrência damiscigenação étnica, na segregação americana man-tiveram-se para reaparecerem no RAP. No início dosanos 70, artistas como os Watts Prophets de LosAngeles recuperaram essa tradição poética e foramos precursores dos MCs que iriam, anos depois, cri-ar o RAP, no início chamado de Freestyle: RAP im-provisado. No Brasil, um grupo de MCs, que incluiThaíde e membros de grupos como Conseqüência,Camorra e SP Funk, tem reintroduzido esse estilo deRAP improvisado (PIMENTEL). Importante regis-trar que o RAP divide-se em duas épocas: a velhaescola11, que na América é representada pelas duas

primeiras décadas em que esseestilo de música se fez conhecido,e a nova escola, que foi marcadapela tecnologia digital e por pro-testos cada vez mais sérios. NoBrasil, essa divisão aconteceu porquestões um pouco diferentes: noinício da década de 80, o Funkcontagiava os jovens cariocas e oBreak começava a expandir-seem São Paulo. Nesses encontrosde breakers, a valorização do ne-gro já se evidenciava, embora o

Hip Hop significasse apenas a diversão da dança, eos seus adeptos, com pouca informação, não tives-sem consciência da proposta social do movimentode combater a violência. O RAP nem era ainda co-nhecido com esse nome. Em princípio era denomi-nado de tagarela, pois os jovens não entendiam oinglês e se detinham apenas ao ritmo (ROCHA,DOMENICH, CASSEANO, 2001, p.48 e 51).

Em 1987 foi lançado o primeiro disco RAP noBrasil pela gravadora Kaskatas, com o nome Ousa-dia do Rap. Em janeiro de 1988, criou-se o Movi-mento Hip Hop Organizado – MH2O-SP – que re-presentou no Brasil a passagem da velha para a novaescola. Esse movimento organizou as equipes deRAP da época e deu início à formação das posses12,uma característica que marcou a nova escola, con-siderada então a “geração que aderiu ao Hip Hopquando ele já tinha um pano de fundo social” (RO-CHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001, p. 53).

A cultura Hip Hop, segundo o vocalista do grupoDMN, L.F.13, é difundida atualmente em mais de 15(quinze) estados brasileiros e com alvos cada vezmais audaciosos, como o de gerar empregos, de ca-pacitar e de formar jovens, especialmente nas áreasda cultura, da educação e da cidadania.

9. Partido político que começou em Oakland, perto de San Francisco, na Califórnia, Costa Oeste dos Estados Unidos. Adotavamalgumas idéias do líder comunista chinês Mao-Tse-Tung. Produziam uma revista comunitária e, como tinham direito a portar armas,usavam uma brecha da lei americana para defender os negros em confrontos com a polícia, alegando legítima defesa (PIMENTEL).10. Africanos contadores de histórias por meio de versos, que eram passados de pai para filho, preservando assim na memória todaa tradição das tribos, a exemplo dos repentistas no Nordeste, na atualidade (PIMENTEL).11. O período nomeado de velha escola começa no início da década de 1980, com as primeiras manifestações do break na capitalpaulista, e estende-se até o surgimento do Movimento Hip Hop Organizado, conhecido como MH2O-SP, criado em janeiro de1988, pelo produtor musical Milton Sales “com o objetivo de organizar os grupos de rap nascidos das equipes de break”, o quemarcou o início da nova escola. Na atualidade, outros elementos – grafite, mestre-de-cerimônias e disc-jóquei – se juntaram à dança.(ROCHA; DOMENICH, CASSEANO, 2001, p.52).12. Reunião de dois ou mais grupos de RAP, com intuito de formar uma associação que realiza trabalhos sociais na comunidade.13. Revista Rap Brasil, s/d, ano 1, nº 1. Essa revista não apresenta data de edição e nem número de páginas. Esta informação é válidapara esta e demais citações extraídas de outros números da Revista Rap Brasil.

Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

A cultura Hip Hop,segundo o vocalista

do grupo DMN,é difundida atualmente

em mais de quinzeestados brasileiros ecom alvos cada vezmais audaciosos...

29

3 - Aspectos Metodológicos3.1 - Seleção de grupos

e músicasComo o RAP no Brasil teve seu início entre o

final dos anos 80 e o início dos anos 90, foramselecionados, para esta pesquisa, grupos de duasfases do movimento: a época do surgimento e afase atual. Optamos pela escolha de duas músi-cas de cada grupo – uma que marcasse o lança-mento do grupo no RAP e outra recente. Essa se-leção foi feita com o objetivo de observar possí-veis mudanças na linguagem e na temática dasmúsicas em momentos diferentes. Lançamos mãode autores que pertencessem às duas principaislocalidades onde o RAP se iniciou e continua comum desenvolvimento mais intenso – as cidades deSão Paulo e do Rio de Janeiro. Os três primeirosgrupos selecionados - Thaíde e DJ Hum (meadosda década de 1980) e Racionais MCs (1987) –pertencem à velha escola e os demais – GOG –Genival de Oliveira Gonçalves (1990), FacçãoCentral (1992), MV Bill (1992) e Apocalipse 16(1996) – à nova escola.

Com a preocupação de abranger um lequemaior de dados, foram selecionados grupos14 e mú-sicas15 de temáticas e épocas diferentes. São eles:Thaíde e DJ Hum com as músicas Afro-brasilei-ro (antiga)16 e Febre do Hip Hop (atual); Racio-nais MCs, com as músicas O homem na estrada(antiga) e Capítulo 4, versículo3 (atual); Gog:Genival de Oliveira (1990) Gonçalves, com asmúsicas A verdadeira Malandragem (antiga) eFogo no pavio (atual); Facção Central, com asmúsicas Anjo da guarda versus Lúcifer (antiga)e Isso aqui é uma guerra (atual), MV Bill, comas músicas Soldado do morro (antiga) e Trafi-

14. A seleção dos grupos objetivou atender estilos e temáticas diversas: Thaíde e DJ Hum: grupo mais antigo no Brasil que abordaespecialmente a valorização do negro e suas raízes; Racionais MCs, considerado o maior grupo do país, faz uso acentuado dopalavrão e evita a mídia por considerá-la aliada ao sistema; Gog, grupo que apresenta discurso politizado e enfatiza a luta do povocontra o “sistema”; Facção Central, que faz uso de linguagem de tom bastante agressivo e destaca a desigualdade social no país; MVBill, que se intitula porta voz do morro e aborda especialmente o envolvimento dos moradores da favela (Rio de Janeiro) com ocrime, e Apocalipse 16, grupo gospel, que ressalta a fé em Deus e na Bíblia como solução para os problemas que afligem a populaçãofavelada.15. Vale destacar que os textos das músicas, em função de evidenciarem o compromisso social de apresentar denúncias e protestosde uma classe marginalizada, fogem do convencional e são escritas basicamente em forma de narrativas, desprezando, quase que porcompleto, a forma convencional de poesia.16. Entenda-se por músicas antigas as que foram gravadas no início da produção de trabalhos com RAP de cada grupo, e pormúsicas atuais gravações mais recentes.

Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

cando Informação (atual) e Apocalipse 16, comas músicas Minha Oração (antiga) e Mó blef,(atual).

3.2 - O universo lexicalda música RAP

A coleta do recorte lexical estudado efetuou-se a partir da consulta às letras das músicasselecionadas. Para a sistematização dos dados,optou-se pela teoria dos campos lexicais que pos-sibilita a organização das lexias, segundo a redesemântica que integram. Dada a ambigüidadeque envolve o conceito de palavra, servimo-nosda teoria de POTTIER (1977, apud FAULS-TICH, 1980, p. 17-18) que concebe a palavracomo “um tipo de lexia”, definida como “la unidadlexical memorizada. Pertenece a una categoría(forma del significado) ou a classes superiores”.Esse autor classifica as lexias em quatro tipos:lexia simples, que “corresponde, em numerososcasos, à palavra tradicional”; a lexia composta,que “se caracteriza por ser o resultado de umaintegração semântica que se manifesta formal-mente: navio-escola...”; a lexia complexa, queé definida como “uma seqüência em vias delexicalização em diversos graus: guerra de ner-vos...”, e a lexia textual, que representa “umalexia complexa que alcança o nível de um enun-ciado ou de um texto”.

Os temas evidenciados nas letras das músicasanalisadas orientaram a organização da rede se-mântica que visualiza os campos e subcampos léxi-cos, numa estrutura hierárquica que, além de evi-denciar as respectivas relações internas de signifi-cado, estabelece a oposição de duas ideologias ma-nifestas nas letras das músicas analisadas: ideolo-gia do crime e ideologia de atitude. Para melhor

30 Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

A observação da freqüência com que os diver-sos temas aparecem nas letras de músicas forne-ce-nos uma visão geral do conteúdo das letras demúsica RAP tomadas como objeto de estudo e dasideologias que focalizam.

Na seqüência, apresentamos a “Rede semânti-ca do universo lexical da música RAP”, que distri-

Quadro I – Temas abordados nas Letras de Músicas Rap distribuídos segundo a Música, o Grupo e a Ideologia focalizados

bui os campos e subcampos léxicos organizados apartir da temática das músicas, evidenciada no Qua-dro I. Assim as 164 (cento e sessenta e quatro)lexias extraídas do corpus da pesquisa foram or-ganizadas, segundo os princípios da teoria dos cam-pos. Para a organização da rede semântica, partiu-se do modelo proposto por COSERIU (1977, apud

SiglaA1A2B1B2C1C2

MúsicaAfro BrasileiroFebre Hip HopCapítulo 4 versículo 3O homem na estradaA verdadeira malandragemFogo no pavio

GrupoDJ Hum ThaydeDJ Hum ThaydeRacionais MCsRacionais MCsGogGog

SiglaD1D2E1E2F1F2

MúsicaSoldado do MorroTraficando informaçãoAnjo da guardaIsso aqui é uma guerraMinha oraçãoMó Blef

GrupoMV BillMV BillFacção CentralFacção CentralApocalipse 16Apocalipse 16

Música

/ // /A1A2B1B2C1C2D1D2E1E2F1F2

Sonho

/// /X   X X

Miséria

Favela ExclusãoSocial

Sistema Influência Maligna Crime MorteDiscri-

minaçãoGover-nantes

CrimeOrganizado

Busca dePoder

Ações doMal

ConselhosMalignos

Polícia Drogas OutrosCrimes

Situações Família / /

X

XXXXXX

X

XX

X

X

X

XX

XX

XXXX

XX

XX

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XX

X

X

XX

X

X

XXXXXXXXXX

XXXXXXXXXX

XXXXXXXXX

X

XXX

X

X

XXXX

X

XXXXXXXX

X

Ideologia: crime e fraqueza

compreensão da temática das letras das músicasanalisadas, apresentamos o Quadro I que sintetizaos temas focalizados, distribuídos segundo a ideo-

logia que retratam – ideologia do crime e ideologiade atitude – e as músicas/grupos tomados comoobjeto de estudo.

X

XXXX

XX

X

XX

X

X

X

X

X

XX

X

XX

X

XX

XX

XX

/// /

Exaltação à Cultura

Ancestrais Manifest.culturais

Filosofia Influência Benigna Resistência ao Mal

Conceitos Ações ConselhosBenignos

Buscado Bem

Fugado Mal

Situação / /

Ideologia: atitude e firmeza

Música Sonho Sobrevivência Discriminação

/ // /A1A2B1B2C1C2D1D2E1E2F1F2

X

X

X

X

X

X

Açõesdo Bem

X

X

XXX

X

X

31Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

FAULSTICH, 1980, p.28), que apresenta os cam-pos em disposição hierárquica, na seguinte manei-ra: primeiramente aparece o arquilexema de base,ou seja, aquele que figura no topo do gráfico queilustra a rede semântica do universo lexical da mú-sica RAP, seguido de arquilexemas secundários, queestão ligados aos diversos lexemas em vários ní-veis. Assim, a parte superior do gráfico foi estru-turada segundo esse raciocínio, considerando-se aamplitude semântica contida em cada lexia em re-lação aos demais níveis da organização hierárquicado vocabulário levantado. Conforme o assinaladoanteriormente, a rede semântica foi construída con-siderando-se a oposição de ideologias manifesta noconteúdo das letras: ideologia do crime e ideolo-gia de atitude.

Desta forma, os dados coletados foram reuni-dos, com base na natureza semântica das lexias ena amplitude manifesta, em termos de extensão dovocabulário, de acordo com o seguinte sistema derelações: Movimento Hip Hop, enquanto movi-mento cultural, foi entendido como arquilexema debase ao qual foram relacionados os arquilexemassecundários: Periferia (AS1), que foi tomado comoo primeiro arquilexema secundário por nomear opalco da maioria dos acontecimentos relatados nasletras das músicas, seguido de RAP (AS2), segun-do arquilexema secun-dário, uma vez queessa sigla, além de re-presentar o “estilo”musical cujas letrasconstituem-se no obje-to de estudo deste tra-balho, liga-se direta-mente aos dois outrosarquilexemas secun-dários que se opõemsemanticamente narede, a saber: Denún-cia (AS3a), à esquer-da do gráfico (lado A),e Alternativa de vida(AS3b), à direita dográfico (lado B), quesintetizam duas ideolo-gias manifestas nas le-tras das músicas ana-lisadas, a do crime(lado A) e a de atitu-de (lado B).

Ao referir-se às “oposições semânticas” queum campo léxico pode evidenciar, COSERIU(1977, apud FAULSTICH, 1980, p. 26 e 29) de-fende que são essas oposições que irão determi-nar as relações internas desse campo e acrescen-ta que “os corpos são correlativos”, pois as dife-renças se estruturam de forma paralela nos ladosopostos. E são justamente essas oposições semân-ticas identificadas no conjunto de dados analisa-dos que procuramos visualizar na rede semânticaestabelecida.

Na seqüência da organização dos dados e aindaobedecendo a uma ordem hierárquica, foram esta-belecidos os campos e subcampos. Para tanto, ado-tou-se a concepção de campo léxico proposta porCOSERIU (1977): “Un campo léxico es una estru-tura paradigmática constituída por unidades léxicasque se repartem una zona de significacion común yque se encuentran em oposición inmediata las unascom las otras” (apud FAULSTICH, 1980, p.26).Desta forma, com base nessa perspectiva teórica,a seqüência da rede semântica foi organizada, pormeio do estabelecimento de campos e de subcamposléxicos, vinculados aos arquilexemas secundáriosjá estabelecidos, aos quais foram agrupadas aslexias estudadas, o que pode ser observado na redesemântica visualizada a seguir.

REDE SEMÂNTICA DO UNIVERSO LEXICAL DA MÚSICA RAP

32 Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

4- Análise dosdados

Na rede semântica apresen-tada, o arquilexema de baseMovimento Hip Hop recupe-ra um movimento cultural de lutade classes, que inclui o RAP, umdos elementos que compõemesse movimento. Já o primeiroarquilexema secundário – Peri-feria – reporta-se ao local ondeo estilo de música RAP é maisamplamente difundido, enquanto o segundoarquilexema –RAP (rythm and poetry) – representaa facção do Movimento Hip Hop, ao qual perten-cem as músicas cujas letras serviram de fonte dedados para este trabalho.

No exame das lexias foram analisados, simulta-neamente, os campos/subcampos situados nos la-dos A e B da rede, com o objetivo de evidenciar aoposição de ideologias manifestas nas letras dasmúsicas analisadas. O lado A, por exemplo, mostraprimeiramente o arquilexema Denúncia (AS3a),que abrange um conjunto de campos e subcamposlexicais, cujas lexias remetem a denúncias formu-ladas por moradores de periferia, especialmente osfavelados, quanto à ação do crime organizado queali se instala e na qual se encontram envolvidos,bem como transparecem sentimentos de revoltafrente a situações de sofrimento e de miséria a quesão submetidos. Opostamente, o terceiro arqui-lexema secundário do lado B – Alternativa devida (AS3b) – evidencia aspectos de uma outrafilosofia de vida presente entre a população defavelados: o não envolvimento com o crime organi-zado, a luta pela inclusão social do pobre e do ne-gro e a busca da autovalorização dos representan-tes da raça. Assim, as lexias vinculadas a essesdois arquilexemas deixam transparecer, de formageral, o caráter revolucionário das letras das músi-cas RAP e o potencial desse estilo de música quan-to à produção e à veiculação de ideologias.

Na seqüência, o campo léxico 1 – Ideologia: cri-me e fraqueza (lado A-1) – denota, por meio dosgrupos de lexias associadas aos seus subcampos, operfil de um cidadão favelado que se mostra fracoemocional e espiritualmente e que se envolve com omundo do crime, enquanto o campo léxico 1 – Ideo-logia: atitude e firmeza (lado B-1) – evidencia umapostura de determinação de outros cidadãos que

vivenciam os mesmos problemassociais no ambiente da favela, masque não se envolvem com o cri-me. Apesar de encontrar-se emuma situação social e moraldesfavorecida, este cidadão mani-festa seus Sonhos, que, por suavez, refletem as ideologias que ori-entam suas ações. O subcampoSonho (1a, lado A), por exemplo,reuniu lexias como ... quer viverem paz, não olhar para trás, di-zer ao crime nunca mais, que ex-

pressam o repúdio à atual situação de criminalidade ea esperança de mudanças; quero um futuro melhornão quero morrer assim, a gente sonha a vida in-teira e só acaba no fim, que denotam o desejo delibertação de situações de contínuas ameaças e ris-cos de vida, comuns a quem se encontra envolvidocom o crime organizado; prostituta odiada sonhaver a filha formada, que materializa o desejo de po-der oferecer à família um futuro dentro dos parâmetrossociais e morais comuns na sociedade.

Já o subcampo Sonho (1a, lado B), numa ideo-logia contrária ao crime e à violência, que prega apaz e a busca de soluções para os problemas dosfavelados, reúne lexias de outro conteúdo semânti-co. Observando-se a rede semântica, nota-se queenquanto no lado A o sonho se restringe apenas aum anelo retratando um cidadão desacreditado emmudanças, no lado B expressa a busca intensa derealizações, conforme ilustra o uso das lexias re-vólver trocado pela escola e a vitória da escolasobre o papelote, cujos sentidos apontam a possi-bilidade de o favelado ser o protagonista de suaprópria história, fazendo opções acertadas, num dis-curso de reconhecimento da escola como elementobásico de transformação. Outras seleções foramfeitas: o amor vence o ódio, que apela para umarenovação de sentimentos, e nenhum irmão der-ramará sangue de seu próprio povo, que evi-dencia a questão da valorização da raça negra comoforte elemento de motivação para mudanças. Já emdo Quilombo que hoje seria nosso lar, nota-se arecuperação da necessidade de organização emgrupos, como estratégia de fortalecimento moral esocial. O uso do item lexical Quilombo evoca aidéia de louvor à liderança, no caso, do grande he-rói Zumbi que organizou o povo negro e marginali-zado de sua época. As lexias relacionadas a essaidéia serão analisadas posteriormente no subcampoExaltação à cultura (1b1).

Na rede semânticaapresentada, o arquile-xema de base "Movimen-to Hip Hop" recupera um

movimento culturalde luta de classes, que

inclui o RAP, um doselementos que compõem

esse movimento.

33Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

Em outros momentos, aênfase recai sobre a

questão da violência nasfavelas (...) num tom derancor e de revolta (...)

onde o crime organizadoé a autoridade maior eas pessoas são trata-das com indiferença.

De forma similar ao subcampoSonho, o subcampo Justificati-va também reuniu outros sub-campos e lexias que denotam opo-sição semântica entre os lados Ae B da rede. Assim o subcampoJustificativa (1b), associado aocampo léxico Ideologia: crimee fraqueza, reúne lexias que de-notam, no contexto das músicas,“justificativas” para a opção pelocrime e pela violência. Iniciandopelo subcampo 1b1 – Miséria(1b1 – lado A) –, selecionamos primeiramente lexiasque apontam para a descrição das condições físicasda favela. Senzala, por exemplo, na gíria do grupo,nomeia a moradia e sinaliza para a idéia de continui-dade da condição de escravo vivida pelos negros nostempos da colonização do País. Já Berço da misé-ria denota uma condição social que se perpetua deuma geração à outra como uma herança, não ofere-cendo ao grupo possibilidades de mudanças. Outralexia selecionada é Gueto que, no contexto retrata-do pelas músicas, recupera a marginalização enfren-tada pela população da periferia urbana.

O significado de outras lexias também veicula-das ao subcampo Miséria retrata, com mais deta-lhes, as condições sub humanas de sobrevivência dosmoradores da favela: quarto e sala, esgoto no quin-tal e crianças, gatos e cachorros disputam palmoa palmo seu café da manhã. A figura da criançatambém é evocada, em letras que apontam as condi-ções precárias a que são expostos os filhos, comojustificativas para buscar no crime condições melho-res de vida. São os casos das lexias vão na escolapra comer, desempregado meu moleque com fome,agora posso dar do bom e do melhor. Na últimalexia, o termo agora recupera o momento do ganhofácil por meio do tráfico de drogas.

Em outros momentos, a ênfase recai sobre a ques-tão da violência nas favelas como ilustram as lexiaso corpo estava lá, coberto com lençol, um peda-ço do inferno aqui é onde estou e a lei do cão,que deixam transparecer, num tom de rancor e derevolta, o descaso dos governantes com a situaçãode violência das favelas, onde o crime organizado éa autoridade maior e as pessoas são tratadas comindiferença. O significado de outras lexias tambémreforça a adesão ao crime como única saída para ocidadão da favela, como por exemplo, em váriasvezes me senti menos homem, que apela para a ne-cessidade de dignidade. Igualmente as lexias a so-

ciedade me criou agora man-da me matar e seria diferentese eu fosse mauricinho recupe-ram aspectos da Ideologia: cri-me e fraqueza (lado A): imporcom a própria força a violênciacomo vingança e como forma desobrevivência.

Outra “justificativa” apontadapara a adesão ao mundo do cri-me pode ser visualizada nosubcampo Sistema (1b2 – ladoA), cujas lexias remetem ao des-

caso dos governantes frente à livre ação do crimeorganizado nas favelas, bem como à situação alar-mante de miséria e violência a que é submetida apopulação favelada. As lexias racismo eficaz, sórespeita com revólver, incentivo ao crime, capita-lismo e canalhas, por exemplo, manifestam senti-mentos de revolta frente à discriminação racial im-posta pela classe dominante e evidenciam o desres-peito com os menos favorecidos que, vivendo à mar-gem da sociedade, se envolvem com o mundo docrime. A definição registrada por FERREIRA (1986,p.331) para a palavra canalha – “gente vil, reles,infame, ralé” –, é recuperada no contexto em ques-tão, o que reforça a existência de uma posição dedesprezo e sentimento de indignação nutridos pelogrupo retratado nas letras de música RAP frente aopoder constituído.

Reforçando o caráter de denúncias contra a açãode governantes, pode-se apontar ainda lexias comoAquele político ali é Mó Blef. No caso, o uso dagíria Mó Blef, que funciona como código de comuni-cação do grupo, pode ser interpretada com o sentidode “maior mentira” ou “maior enganação”. A músi-ca “Fogo no Pavio”, que aparece no Quadro I com adenominação C2, relata situações de corrupção porparte dos governantes. Do trecho “infância proibidapais infanticida, 57 mil se vão na primeira semana devida, fábrica de anjos a marmita do pai ao lado, so-mado ao saneamento básico, confira o saldo, Brasilpecado, realidade trágica, estômagos vazios...” se-lecionamos a lexia fábrica de anjos que retrata amorte precoce de crianças nas favelas, vítimas decondições precárias de vida e, principalmente, da vio-lência, esta concebida pelo grupo em questão comode responsabilidade das autoridades governamentais.Nota-se a manifestação de um tom acentuado deironia na construção dessa lexia. Associada a essequadro de miséria, aparecem as lexias grande ne-gócio, ilusão e guerra, que denunciam a ação po-

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derosa e sedutora do crime orga-nizado. As duas primeiras deno-tam a oferta do dinheiro fácil comque o tráfico de drogas na favelaseduz o chefe de família desem-pregado, ou ex-presidiário que,sofrendo toda sorte de discrimina-ção social, precisa sustentar umafamília. No que diz respeito à lexiaguerra, a definição de FERREIRA(1986, p.876) – “combate, peleja,luta, conflito” – pode ser aplicadaao uso da lexia no âmbito das mú-sicas analisadas, uma vez que designa exatamente assituações de conflito armado entre traficantes e polí-cia, episódios constantes nas favelas e que sempreresultam na morte de inocentes.

Outro grupo de lexias reflete a questão da “sedu-ção” para o mundo do crime, dentre outras, olhogrande no dinheiro, ganhar ibope, traficante temcasa, que deixam transparecer o sentimento de hu-milhação e de vergonha pela situação de marginali-zado e a busca da afirmação pessoal, um conjuntode coisas que, para o grupo em questão, justifica aopção pelo mundo do crime.

Em oposição ao campo léxico Ideologia: crimee fraqueza (campo 1, do lado A), o Ideologia: atitu-de e firmeza (campo 1, do lado B) enfoca um outroperfil de cidadão favelado: o que busca sobreviver àsmazelas de sua realidade social sem envolver-se como crime, optando por uma vida digna de trabalho. Essegrupo valoriza a cultura negra e a adesão a uma filo-sofia de vida baseada em valores morais. Nesta pers-pectiva, o RAP intitula-se como revolução verbal,isto é, o uso da linguagem para manifestar não apenasdenúncias de um sistema corrompido, mas tambémpara apresentar propostas de mudanças e de novasopções de vida. É importante lembrar que o termo“atitude”, utilizado para nomear esse campo, é umagíria própria do RAP: “palavra indispensável no voca-bulário hip hop. Eles geralmente dizem: “Para fazerparte do grupo não é só preciso ter consciência, mastambém atitude”. Termo que sintetiza a linha de con-duta que o grupo espera de cada um” (ROCHA,DOMENICH, CASSEANO, 2001, p.141).

Assim, atrelados ao subcampo Justificativa (1b,lado B), estão outros dois subcampos: Exaltação àcultura (1b1) e Filosofia (1b2). As lexias relacio-nadas ao subcampo 1b1 foram as seguintes: energiaafricana, sementes espalhadas pelo mundo intei-ro, pretos velhos, bravos guerreiros e ser negropor inteiro. Aqui, nota-se que, ao evocar a luta de

antigos líderes negros pela liberta-ção de seu povo, as letras revelama busca da afirmação de identida-de da raça nos dias de hoje, com-portamento esse expresso anteri-ormente no subcampo Sonho (1a– lado B) com as lexias nenhumirmão derramará sangue de seupróprio povo e do Quilomboque hoje seria nosso lar que evi-denciam a valorização da raçanegra e o louvor ao herói Zumbi.Observa-se, pois, que no sub-

campo Exaltação à cultura, a lexia ser negro porinteiro soa quase como uma ordem, um basta na des-crença aos próprios valores.

Já as lexias reunidas no subcampo Filosofia (1b2,lado B) denotam conceitos que reafirmam a rele-vância de se manter uma postura de negação àmarginalidade e ao mundo do crime. Observemos oseguinte grupo de lexias: a verdadeira malandra-gem é viver, B.O. não é vitória, descarregue otambor, você não é bandido e remando contra amaré. Na primeira lexia surge o termo “malandra-gem” que, no âmbito das músicas RAP, assume osentido de esperteza, sabedoria, pois o “malandro” éo sujeito que tem êxito em seus projetos, faz valer asua vontade e sabe tirar vantagens das situações,sentido este com conotações diferentes das apre-sentadas por FERREIRA (1986, p.1068) para a lexia:“Malandro: indivíduo dado a abusar da confiança dosoutros, ou que não trabalha e vive de expedientes,velhaco, patife”. Desta maneira, a lexia a verdadei-ra malandragem é viver apela, por meio do uso dagíria, para a valorização da vida. Neste raciocínio, asdemais lexias desse subcampo, com destaque para“descarregue o tambor, B.O. não é vitória e re-mando contra a maré, evidenciam, mais uma vez,as condições de opressão e de sofrimento a que sãoexpostos os moradores da favela inseridos nessecontexto de violência. Nota-se o uso da linguagemcomo forma de defesa do grupo, ou seja, o empregoda gíria para propor a negação ao uso de armas.

Na seqüência da rede semântica do universovocabular da música RAP, nota-se a presença dainfluência espiritual manifesta pelos terceirossubcampos – Influência maligna (1c, lado A) eInfluência Benigna (1c, lado B) do lado B. Aslexias vinculadas a esses subcampos revelam que asinfluências espirituais são bastante significativas parao grupo, a julgar pela natureza das letras das músi-cas, no tocante a opções de estilo de vida.

Outro grupo de lexiasreflete a questão

da “sedução” para omundo do crime (...)que deixam trans-

parecer o sentimento dehumilhação e de

vergonha pela situaçãode marginalizado...

35

17. Neste particular, vide PRETI (1984b, p.63).18. “Aquele que é reconhecido como um igual dentro do movimento Hip Hop” (ROCHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001, p.144).

Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

O uso de vocábulosobscenos e grosseiros,misturados à gíria, temaqui uma “função inju-

riosa ou blasfematória”que traduz o repúdio àação demoníaca, semdeixar de atribuir-lhe

poder de atuaçãosobre o homem.

Assim, o subcampo Influênciamaligna (1c, lado A) bifurca-seem dois outros subcampos: Açõesdo mal (1c1) e Conselhos domal (1c2). As lexias associadas aosubcampo Ações do mal, porexemplo, inferem que as ações eos conselhos são atribuídos aoDiabo: demônio de plantão, fodetudo, te joga na merda, conta-mina seu caráter, rouba suaalma, por exemplo, transparecema fúria da ação demoníaca em con-fronto com o homem. O uso de vocábulos obscenose grosseiros, misturados à gíria, tem aqui uma “fun-ção injuriosa ou blasfematória”17 que traduz o repú-dio à ação demoníaca, sem deixar de atribuir-lhe poderde atuação sobre o homem. As lexias relacionadasao subcampo Conselhos do mal expressam umconvite do próprio demônio seduzindo o homem aingressar no mundo do crime. São elas: quem ven-cer não espera milagre de crucifixo, a benção tánuma PT, Escute Lúcifer seu amigo e ainda nãomete um B.O., não trafica uma farinha, daqui apouco vai estar rebolando na esquina. Na lexiaescute Lúcifer seu amigo, por exemplo, o tom dediálogo denota uma estreita relação entre a figura domal e a pessoa humana, evidenciando que a ideolo-gia que adere ao crime favorece essa proximidade.

Paralelamente, o subcampo Influência benig-na (1c, lado B) divide-se em dois outros subcampos– Ações do bem (1c1) e Conselhos do bem (1c2)– que evidenciam oposição semântica aos subcampos1c1 e 1c2 do lado A. Iniciando pelo primeirosubcampo, nota-se que as lexias selecionadas – anjoda guarda, protetor, sinal da cruz, vida eterna enão deixa o mano desandar – resgatam a confian-ça depositada em entidades divinas. Observemos queem não deixa o mano desandar a gíria surge no-vamente como elemento que diferencia o grupo defavelados da sociedade em geral e, nessa expressãoem particular, transparece o sentimento de união queliga os membros do grupo, expresso pela gíria ma-no18, unidade lexical bastante recorrente no contex-to das letras analisadas.

Já o grupo de lexias relacionadas ao subcampoConselhos do bem (1c2 – lado B) – ajoelhe,agradeça Jesus, fé em Deus e quebra maldição –

remete ao convite para o homemvoltar-se a Deus, o que eviden-cia o poder de luta contra o mal,especialmente expresso por meioda lexia quebra maldição.

Retomando a estrutura hierár-quica visualizada na rede semân-tica do vocabulário das músicasRAP, observa-se que todos ossubcampos associados ao cam-po léxico 1 – Ideologia: crimee fraqueza - resultam no campoléxico 2 – Crime (lado A) – e os

subcampos associados ao campo léxico 1 – Ideolo-gia: atitude e firmeza – resultam no campo 2 –Resistência ao mal (lado B), passamos então aanalisar os subcampos procedentes do campo 2, nosdois lados da rede semântica.

Nota-se que o campo 2 – Crime – subdivide-seem três subcampos: Polícia (2a), Droga (2b) e Ou-tros crimes (2c). A primeira lexia vinculada ao pri-meiro subcampo, gambé pra negociar, contém agíria “gambé”, que significa “policial”, o que eviden-cia o envolvimento da polícia com o tráfico de dro-gas. Outras lexias se juntam a essa: invade a fave-la, fuzil na mão, programada pra matar, filhosda puta, raça de caralho. Nota-se, pelo conteúdosemântico contido nessas lexias, a presença de umtom de acusação, expresso, especialmente, nas duasúltimas, que se configuram como grosseiras e obs-cenas. As duas primeiras, por sua vez, expressamsentimento de repúdio à ação da polícia.

Atrelados ao subcampo Drogas (2b), aparece umnúmero considerável de lexias que foram reunidasem três grupos, dada a natureza semântica que ne-las prevalece. O primeiro – cocaína, maconha,birosca, pó, crack, whisky, farinha, álcool, se-ringa – resgata unidades lexicais que numeram di-versos tipos de drogas comercializados na favela; osegundo recupera, numa linguagem bastante agres-siva, as conseqüências do uso da droga: ó os cara,só a pó, pele e osso, no fundo do poço, tragandoa morte, soprando a vida pro alto, dente tudozuado, bolso sem nenhum conto, o cara cheiramal, muito louco de sei lá o que, mas começoucolar com os branquinhos no shopping, Perce-be-se que essas lexias expressam um vocabuláriogírio que funciona como mecanismo de agressividade

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19. Neste particular, vide PRETI, 1984a, p.4.20. Vide PRETI, 1984b, p.67.

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e que traduz o estado crítico dosusuários de droga na favela. Es-sas gírias, em oposição à lingua-gem usual, marcam o conflito dogrupo com a sociedade19. Na úl-tima lexia, o termo “colar” signi-fica, no âmbito das músicas ana-lisadas, “andar junto, tornar-seamigo leal” (ROCHA, DOME-NICH, CASSEANO, 2001,p.143). Já o terceiro grupo re-mete ao tráfico de drogas: acer-to de contas, fabrica guerra, di-nheiro combustível, puteiro e abastecendo aplayboyzada. As duas primeiras nomeiam aspec-tos de um verdadeiro quadro de “guerra”, instaladonos pontos de distribuição da droga que são marca-dos pela disputa do domínio de território, pela violên-cia policial e pela morte. Já as lexias dinheiro com-bustível e puteiro configuram-se como gírias quereforçam a violência e o perigo, associados aos sen-timentos de insegurança e de revolta. Em abaste-cendo a playboyzada, o empréstimo da palavra“playboy” ao idioma inglês remete a uma outra clas-se social, a elite, o que reforça a discriminação aohomem branco que, por ocupar outra posição social,usa a figura do negro para intermediar situações quelhe favoreçam, segundo a óptica do grupo RAP, queentende que o negro continua na posição de serviçaldo branco. Outras gírias reunidas ao subcampo emanálise remetem ao uso comum de armas: pentelotado, cospe chumbo, oitão na cintura e peso.

O subcampo Outros crimes (2c), por sua vez,reúne as lexias enquadra a burguesa, carrosdesmanchados, cano na garganta, estourou amãe e, associado aos demais subcampos vincula-dos ao subcampo Crimes (2, lado A), dão origemao campo léxico 3 da rede semântica – Morte.

A primeira das lexias agrupadas a este campo écorpo coberto, que designa os corpos que ficamexpostos nos limites da favela, horas seguidas, aguar-dando serem recolhidos pelas instituições competen-tes. Na seqüência aparecem por causa do pó emorte à toa, que retratam a morte por over dose oupor tiroteios nos pontos de distribuição de droga;caixão lacrado, que alude à imagem de um corpodesfigurado, talvez por uma rajada de tiros; setepalmos e baixa na lista, gírias consideradas comuns

a outros grupos, mas que, no âm-bito das letras de música RAP,revelam um tom de pavor. Outroconjunto de lexias associadas aocampo Morte remete à situaçãodos familiares das vítimas da vio-lência: pai morrendo, irmão cha-cinado, só minha mãe vai cho-rar, se eles me pegam meu filhofica sem ninguém/o que elesquerem mais um pretinhoFEBEM. Observa-se, mais umavez, a referência à ação violenta

da polícia e à situação social desfavorecida e semperspectivas de futuro, vivenciada pelo favelado. Alexia só minha mãe vai chorar denota um senti-mento de desvalorização pessoal, na declaração deque só a figura da mãe é sinônimo de sentimento deafeto.

Por sua vez, o campo Resistência ao mal (2,lado B) – que se opõe a Crime (2, lado A) subdivi-de-se em dois outros subcampos, a saber: Fuga docrime (2a) e Busca do bem (2b). Trataremos ini-cialmente do subcampo 2a, cujas lexias retratam atentativa de resistência ao mal. São elas: carro egrana não me seduz, violência não tá com nada,descarregue o tambor, não vale a pena dar idéianesses tipos aí. Nota-se que a gíria continua pre-sente e manifesta aqui a consciência da desigualda-de social, e que, mesmo sem expressar sentimentoscomo ironia ou amargura, ela denota20 afinidade coma alma popular. Já o subcampo Busca do bem (2b)reúne as lexias ensinem nossa cultura, fiquem fir-mes, continuo orando, um jeito humilde de serno trampo e no rolê e minha palavra vale um tiro,que evidenciam uma postura fortalecida pelaconscientização do favelado quanto à possibilidadede recuperar sua auto-estima e seus valores e, comisso, traçar novos caminhos para sua vida. Curiosa-mente, lembrando que a música RAP se auto-cognomina como uma revolução verbal, a últimalexia – minha palavra vale um tiro – reforça a tesede que, por meio da linguagem, o homem pode tra-var batalhas com poder equivalente ao das armas.

Na seqüência da construção da rede semânti-ca, observa-se que os dois subcampos reunidosao subcampo Resistência ao mal (2a e 2b, ladoB) resultam no campo léxico 3, Sobrevivência à

Lembrando que a músi-ca RAP se autocogno-

mina como uma "revolu-ção verbal", a lexia –

minha palavra vale umtiro – reforça a tese deque, por meio da lingua-

gem, o homem podetravar batalhas...

37Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 24-39, jan./jun. 2004

... nas letras das músi-cas RAP, que apontam

para o contexto de vidaameaçador da favela,

onde situações de riscode vida são constantes,"mina de fé" representa

a mulher em quem ohomem pode confiar.

situação, que reuniu as lexias:estar vivo, eu me achei, eu te-nho uma missão e estou nacorreria. Nota-se que esse con-junto de lexias parece resumir aideologia da cultura Hip Hop,que é a da sobrevivência, a dabusca da auto-estima e da infor-mação. As duas últimas lexias– eu tenho uma missão e es-tou na correria – retomam oobjetivo do grupo RAP de res-gatar os que ainda se prostramao mundo do crime. Na gíria de grupo, o termo“correria” significa “realizar um projeto” (RO-CHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001, p. 143).

A natureza das lexias apontadas no campo So-brevivência à situação (lado B), opõe-se às as-sociadas ao campo Morte (lado A), evidenciandoo objetivo final das letras de músicas RAP, que éo de provocar, na população favelada, um desper-tar por meio da palavra, no que se refere à formade conduzir a vida, cujo desfecho depende do tipode escolha que o indivíduo fizer: adesão ao mundodo crime ou a atitude de firmeza nas dificuldades.

Finalizando a análise dos campos léxicos,reportamo-nos ao campo 4 – Discriminação –que, por sua vez, agrupa lexias comuns às duasideologias visualizadas na rede. Esse campo sub-divide-se em três subcampos: Discriminação aonegro (4a), Discriminação ao branco (4b) e Dis-criminação à mulher (4c).

O primeiro subcampo agrupou lexias queconsubstanciam dois conceitos de homem negro:o negro “criminoso” e o negro “de atitude”. Noprimeiro caso, as lexias caboquinho comum, po-bre preto, escravizado, Zé mané e neguinhoconstituem-se num agrupamento de gírias que, as-sociadas a expressões mais agressivas como cu-de-burro ou elemento, expressam o sentimentode repúdio ao envolvimento com o crime, o queevidencia a discriminação por parte dos demaisque dividem o ambiente da favela, ao mesmo tempoem que intensificam o desejo de resgatar valoresmorais da raça negra. Outras lexias como ódiona veia, aliado de Lúcifer, monstro e animalapelam para uma agressividade que foge aos pa-drões humanos.

A marca da desaprovação ao comportamentodo negro criminoso acentua-se bastante quandoconfrontamos essas lexias com as relacionadas aonegro “de atitude”. Observemos a seleção: escu-

ro verdadeiro, duro na queda,preto atrevido, preto tipo A,príncipe guerreiro, soldadodo apocalipse. O uso da gírianovamente se evidencia e ex-pressa, neste momento, umapostura firme quanto à opçãopor comportamentos de bravu-ra e de coragem, próprios de um“soldado” ou de um “príncipe”,ao mesmo tempo em que traduzsentimentos de auto-afirmação.Ainda com relação às unidades

lexicais atrevido, guerreiro e soldado, pode-sedestacar o espírito de combate, o que denota asituação de constantes dificuldades vivenciadaspelo negro “de atitude”.

Já as lexias agrupadas ao subcampo 4b – Dis-criminação ao branco – reportam-se à figura dohomem branco, cidadão de classe social privilegiada,porém ridicularizado pelo negro, conforme denotamas lexias mauricinho, seu doutor, playboy forgadode brinco, filho do boy e burguesia. Esse tom dedesprezo e de ironia expresso nessas lexias eviden-cia que, segundo a visão do favelado, a situação defavorecimento social do branco está associada à ex-ploração do homem negro, como serviçal que se ex-põe aos comandos do homem branco no tocante àprática do crime organizado. A lexia alemão, parti-cularmente, reforça essa idéia. Termos de naturezaobscena como trouxa e cuzão somam-se a essegrupo de lexias, intensificando o “sentimento de des-dém do povo pelo mundo opressor que o cerca”(PRETI, 1984, p.68).

Na seqüência, observa-se o conjunto de lexiasque remete à discriminação da “mulher valorizada”e da “mulher vulgarizada”. A primeira situação ini-cia-se com a gíria mina de fé, que tem sido usadanas últimas décadas para referir-se à mulher querepresenta, para o homem, uma boa opção de ca-samento, pelo fato de possuir “bens materiais”. To-davia, nas letras das músicas RAP, que apontampara o contexto de vida ameaçador da favela, ondesituações de risco de vida são constantes, mina defé representa a mulher em quem o homem podeconfiar. Curiosamente, essa lexia aparece acom-panhada da idéia de família, uma vez que, para onegro favelado, mina de fé nomeia a mulher comquem ele tem filhos: “minha mina de fé tá em casacom o meu menor”. Já a lexia preta dele esclare-ce que o negro envolve-se com uma mulher de suaraça. O termo dele expressa a idéia de compa-

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As escolhas lexicaisobservadas em letrasde músicas RAP, que

expressam a linguagemurbana da periferia,traduzem a crise deidentidade social do

grupo de falantesem questão...

nheirismo e até de fidelidade con-jugal, por parte da mulher. Res-gatando a figura da mãe, apare-cem as lexias minha coroa, mãocalejada e mãe preocupada,que denotam a figura de umamulher de bem, trabalhadora, boamãe e que conquista o carinho dofilho. Curioso também observarque, nas situações de morte do ho-mem que se envolve com o cri-me, a mãe é a única pessoa quelamenta a sua morte e os motivosque a provocaram, como se esse homem acredi-tasse ser amado apenas pela mãe. Isso fica bas-tante claro também no trecho “se eu cair, só mi-nha mãe vai chorar”.

A concepção da mulher vulgarizada é recuperadapelas lexias puta de olhos azuis, puta de butique,mulher de bandido, cachorra e vagabunda. Noprimeiro exemplo, observa-se a manifestação do pre-conceito com relação à mulher branca e, no segundo,à mulher de posses. Nestes dois exemplos, a vulgari-dade atribuída à mulher estranha à periferia evoca anecessidade de agressão, como forma de expressãode inconformidade com as diferenças sociais. O pre-conceito, porém, não se restringe apenas à mulherbranca. As lexias mulher de bandido, cachorra, 15por programa, vagabunda e prostituta aparecemno contexto das letras para designar a mulher que seenvolve com o crime e com a prostituição. É como seesse cenário de corrupção moral fosse lícito para ohomem, que se justifica como sendo fruto de um sis-tema, ou pela necessidade de sustentar a família, en-quanto para a mulher representa uma escolha volun-tária por caminhos desonestos, na ótica da ideologiasubjacente nas letras das músicas analisadas.

5 - ConsideraçõesFinais

A análise do vocabulário das letras de músicasdo estilo RAP selecionadas para este estudo permi-tiu-nos confirmar a importância da escolha lexicalcomo instrumento de veiculação de ideologias.

Observou-se que não houve alterações signi-ficantes na temática ou na linguagem das músicas,apesar da seleção das mesmas ter contemplado di-ferentes momentos da atuação musical dos gruposescolhidos, ou seja, os que marcaram o lançamentodos grupos e momentos recentes.

A preferência pelo uso da gí-ria, acompanhada de unidadeslexicais de cunho obsceno e gros-seiro, evidenciou-se nas letrasanalisadas como forma de ex-pressão de sentimentos de de-núncias e de protesto, como ilus-tram, por exemplo, as lexiasaquele político ali é mó blef efábrica de anjos, que denun-ciam, respectivamente, a cor-rupção do poder e a morte decrianças vítimas de ações do cri-

me organizado nas favelas. O uso da gíria, associa-da a palavrões, denota, inclusive, fator de compen-sação do cidadão favelado frente aos diversos pro-blemas que permeiam sua realidade social.

A presença de lexias complexas e textuais nasletras de músicas parece justificar-se pelo próprioestilo narrativo que marca a construção dessas le-tras. Trata-se, pois, de recurso lingüístico utilizadocom o propósito de evidenciar questões conflitantesno tocante à realidade das favelas, como é o caso dalexia crianças, gatos e cachorros disputam pal-mo a palmo seu café da manhã, que narra um epi-sódio comum no ambiente retratado.

A rede semântica do universo lexical da músicaRAP visualiza também oposições de ideologias vei-culadas pelas letras das músicas, como por exemplo,as lexias só respeita com revólver, que reforça aadesão ao crime, e minha palavra vale um tiro,que denota a força de luta por meio da linguagem.

Os dados demonstraram, ainda, a forte presen-ça de gírias, muitas já de uso comum e outras espe-cíficas do grupo, como é o caso da lexia estou nacorreria que, de certa forma, sintetiza o propósitodos grupos de RAP, que é o engajamento em proje-tos sociais, muitos deles voltados para o resgate e avalorização da cultura negra.

Em síntese, as letras das músicas expressam aforça da linguagem, à medida que propõem o esta-belecimento de uma revolução social por meio deuma revolução verbal. Assim, as escolhas lexicaisobservadas em letras de músicas RAP, que expres-sam a linguagem urbana da periferia, traduzem a crisede identidade social do grupo de falantes em ques-tão, ao mesmo tempo em que funcionam comoveiculadoras de ideologias.

A opção por grupos que abordam temáticas di-versas, tais como crítica aos governantes, busca aDeus ou valorização da raça negra, e adotam esti-los diferentes de linguagem – linguagem mais agres-

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siva ou mais politizada, uso do palavrão – bem comoa escolha de músicas que aconteceram em momen-tos diferentes – início da música RAP no Brasil emomento atual – permitiram observar um lequemaior de dados, o que possibilitou visualizar a fre-qüência dos diversos temas trabalhados no contex-

to das músicas que consubstanciam dois tipos deideologias: crime e atitude. Constatou-se, enfim, queos temas que apontam para as denúncias ao siste-ma e à prática do crime nas favelas são os maisfreqüentes, independentes de autores ou épocasabordados.

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Era uma vez...Quem algum dia não ouviu ou leu essa frase?E logo após a vida se coloca à frente do leitor de um livro de fábulas.A fábula encanta e, como meio de interação do ser consigo mesmo ecom o ambiente em que vive, influencia e interfere. A proposta destetrabalho é detectar o discurso intertextual entre diversos tipos detextos e, nesse percurso, observar como esse diálogo entre textos édeterminante na transformação da literatura erudita (fábula ou contomaravilhoso) em produto de consumo. Os recortes escolhidos são: umconto dos irmãos Grimm, um conto de Marli Fantini, um cartun e umanúncio publicitário.

Palavras-chave:intertexto; literatura erudita; literatura de massa.

It was a time...Who some day did not hear or read this phrase?E soon after the life if places to the front of the reader of a book oftales. Tale enchants e, as half of interaction of the himself obtainexactly and with the environment where it lives, in fluence andintervenes. The proposal of this work is to detect the intertextual speechbetween diverse types of texts and, in this passage, to observe as thisdialogue between texts is determinative in the transformation eruditeliterature (tale or wonderful story) in consumption product. The chosenclippings are: a story of the Grimm brothers, a story of Marli Fantini,one cartun and an announcement advertising executive.

Keywords:intertextuality; erudite literature; consummer literature.

* Edna PereiraSilva de Menezes éMestre em Letras-Estudos Literáriospela UFMS.Professora deLiteratura naUniversidade CatólicaDom Bosco - UCDB,Campo Grande-MS.

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QUALQUER SEMELHANÇA(NÃO) É MERA COINCIDÊNCIA

(Intertexto, Literatura e Mercado)

Edna Pereira Silva de Menezes*

Consideraçõespreliminares

A noção de heterogeneidade enunciativa, maisespecificamente a intertextualidade, é um fenô-meno antigo, embora a palavra tenha surgido porvolta dos anos 60, mais precisamente da maneiracomo a definiu Julia Kristeva. Entretanto, reflexõesa respeito da intertextualidade podem ser traçadasdesde Platão, Aristóteles, Longino e outros, culmi-nando, no século XX, com as teses propostas porBakhtin, posteriormente desenvolvidas por JuliaKristeva, Harold Bloom, Gérard Genette e MichaelRifaterre. Como denominador comum a essas teo-rias, subjaz a idéia de que um texto não existe comoum todo separado, auto-suficiente e hermético.Assim, outros textos, autores, leitores e contextos(históricos e sociais) sempre operam para anularquaisquer tentativas de fechamento. O que se pre-tende determinar nesta pesquisa é como ocorre noscontos “O príncipe sapo” e “O sapo príncipe”, emum cartun e em um anúncio publicitário, o diálogo

intertextual e como ele contribui para construir oucorroborar a dessacralização da obra literária comoobjeto de erudição.

Para ler textos é necessária a percepção, alémdas semelhanças, de pequenas diferenças ondetantos outros só vêem identidade e uniformiza-ção, pois o interdiscurso é o domínio comum deimagens, de maneiras de imaginar, e ao mesmotempo, uma região de confronto de sentidos emque idéias contrárias se digladiam, se confron-tam e contradizem.

Nesse conceito categoriza-se como diferen-ça o fato de se ler também como texto as repre-sentações signicas não verbais, seguindo oparâmetro de Lucia Santaella que afirma serempobrecedor e apocalíptico a noção de signoapenas como signo verbal (SANTAELLA,2000:04). Portanto, volve-se também o olhar parao conto de Marli Fantini, com seus modalizadores,e ao jogo de imagens do cartun e do anúnciopublicitário, nos quais se engendram estratégiasnada silenciosas, mas sutis, que remetem a leitu-ras no fio discursivo, nas lacunas discursivas, nodito e no não-dito.

1. Barthes, 1987: 82

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”O texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo”.1

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O interdiscurso:semelhanças e

diferençastextuais

Segundo Maingueneau, dis-curso é uma organização orien-tada, interativa, contextua-lizada, regida por normas, as-sumida por um sujeito e que sóadquire sentido no interior deum universo de outros discursos (MAINGUE-NEAU, 2001:53-54). Sob essa óptica, para se in-terpretar qualquer enunciado, é necessár iorelacioná-lo a muitos outros enunciados. Comoesse trabalho requer uma análise do ponto de vistada Análise do Discurso (AD) de linha francesa,é importante esclarecer a terminologia adotada.Para os recortes escolhidos utiliza-se conceitodos léxicos e para as relações intertextuais sãoadotados conceitos propostos por Bakhtin, estu-dioso que, conforme afirma Diana L.P. de Bar-ros, influenciou ou antecipou as orientações teó-ricas norteadoras dos estudos a respeito do textoe do discurso desenvolvidas nas últimas décadas(BARROS, 1988:68). Bakthin preocupou-se comas questões intertextuais e polifônicas e conside-rou como realidade fundamental da língua ainteração verbal, realizada através da enunciação.É preciso entender o dialogismo em Bakhtin nãocomo um conceito, mas como o reflexo de umavisão de mundo. Só assim é possível entender suaconcepção de diálogo entre discursos ou enun-ciados de diálogo entre interlocutores.

No Dicionário Universal da Língua Portu-guesa, “conto” do Latim Computu, significa umanarração breve, fictícia, falada ou escrita; novela;historieta; fábula. Quanto a “cartun”, este signifi-ca crítica de costumes, genérica, atemporal. Naverdade, o cartun seria como uma máquina foto-gráfica focada no infinito; por focar uma realidadegenérica sua possibilidade de compreensão é muitomaior. O cartun, no Dicionário de Comunicação,é tratado como uma anedota gráfica, com o objeti-vo de provocar o riso do espectador. É uma das

manifestações da caricatura, emsentido amplo, e chega ao risoatravés da crítica mordaz, irôni-ca, satírica e principalmente hu-morística do comportamento hu-mano, de suas fraquezas e de seushábitos e costumes. Já um “a-núncio publicitário”, junção dedois termos, o substantivo “anún-cio”, originário do verbo “anun-ciar” do Latim Annuntiare, quequer dizer dar a nova, a notícia

de; publicar anúncio; participar; predizer; pressa-giar; revelar; e o adjetivo “publicitário”, originadodo substantivo “publicidade”, que é o estado do queé público; divulgação; notoriedade pública; recla-mo comercial.

No que tange ao diálogo entre discursos (oudialogismo discursivo), para Bakthin é o princípioconstitutivo da linguagem e a condição do sentidodo discurso, não sendo individual, por manter rela-ções com outros discursos, recuperando, assim,seu estatuto de objeto lingüístico-discursivo sociale histórico. Nesse contexto, ao se analisar o corpusproposto (o conto dos irmãos Grimm, o conto deMarli Fantini, o cartun e o anúncio publicitário),observam-se as relações dos discursos com aenunciação, com o contexto histórico, definindo otexto como um discurso de muitas vozes e muitasideologias.

Essa análise, conforme afirma DominiqueMaingueneau, ao seguir as trilhas bakthinianas, apro-xima-se das teorias pragmáticas, não só volvendoolhares para a comunicação verbal, como tambémpara o “eu” do “outro” ou “outros” existente noentrecruzamento dos textos (MAINGUENEAU,2001:34).

Desse modo, apresentam-se os textos recorta-dos para análise, concebendo-se a linguagem comoforma de interação social em que o outro tem papelfundamental na constituição do significado e, segun-do Helena N. Brandão, insere todo ato de enunciaçãoindividual num contexto mais amplo, revelando asrelações intrínsecas entre o lingüístico e o social(BRANDÃO, 1998: 3).

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Sob a óptica deMaingueneau,

para se interpretarqualquer enunciado, é

necessário relacioná-loa muitos outros

enunciados.

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O príncipe sapoEra uma vez num reino muito distante, no alto de uma colina. Num dia ensolarado e demuita felicidade, nascera o filho do rei, um lindo garoto. A feiticeira do reino, revoltadapor não ter sido chamada para ser madrinha do pequeno príncipe resolveu se vingartransformando-o num sapo e, o encanto somente seria quebrado o dia em que umaprincesa o beijasse. Foi um dia muito triste no reinado. O tempo foi passando, até que umdia uma linda e egoísta princesa vai passear no bosque e deixa sua bola cair dentro dolago. O sapo, que estava ali por perto se oferece para pegar a bola, com a condição deque a princesa o leve para o castelo e o deixe dormir em seu travesseiro. A princesaprontamente aceita, mas ao reaver a bola vai embora sem levar o sapo. Mesmo assim, ànoite, o príncipe sapo vai ao castelo e a princesa se vê obrigada a cumprir a promessa,levando-o para o seu quarto. Enquanto a princesa dorme, aparece um escorpião e o sapoa salva de ser picada por ele. Em sinal de agradecimento ela beija o sapo e desfaz ofeitiço, transformando-o novamente num charmoso príncipe. Os dois se apaixonam ime-diatamente e marcam o casamento. Após a cerimônia solene os dois viveram felizespara sempre.

(Irmãos Grimm)

O sapo príncipeBem no alto de uma distante colina vivia uma princesa de feia linhagem, como sói acontecer(1)com as princesas. Ocupava seus solitários dias deliciando-se em beijar sapos (e com que zelo), naesperança – quem sabe! – de que um deles se transformasse (como nas estórias(2) num galantepríncipe. Eis que um dia (e qual não foi sua surpresa!), um modesto(3) sapo desencantou-se numinesperado(4) e enorme príncipe. Príncipe desencantado e princesa prontamente apaixonaram-see, com a aprovação do rei(5) procedeu-se de imediato(6) a cerimônia do casamento. O momentoera solene, sinos glagadangavam, galoonavam e gandongavam: estava assegurada a continuidadede uma linhagem(7). O padre, responsável por tão importante função, arriscou-se àquela perguntinhaperigosa(8) “Haverá, no recinto, alguém que de algum impedimento saiba...”(9) Foi perguntar eaparecer uma indignada rã, exigindo o versátil marido de volta.1. Afinal, estamos no tempo em que “costuma acontecer” era “sói acontecer”;2. Puro eufemismo: na verdade, suas primas só conseguiram desencalhar desse modo;3. Como as aparências enganam;4. As solteiras que não percam as esperanças;5. Ou alívio;6. As teorias relativas aos processos de transformações ainda são precárias;7. Eufemismo de novo: a alegria era devida ao desencalhe da princesa;8. Puxa! Que burrada!9. Por precaução só estavam no recinto os pais da noiva.

(Marli Fantini)

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No conto escrito pelos irmãosGrimm (Jacob e Wilhelm Grimm),o narrador passa uma mensagempositiva, a qual se pode tirar dasaventuras dos heróis e do castigodos vilões. Afirma-se que bruxas,monstros, lobos e dragões usadosnas histórias serviam como umalerta para as crianças afastarem-se de estranhos e obedecerem aospais, por exemplo. De qualquermodo, a história dos irmãos Grimmemerge como parte de um corpo histórico-social noqual o sujeito se apossa de uma ideologia para defen-der valores como a bondade, o trabalho e a verdade.Nesse conto, assim como em todos do gênero mara-vilhoso, as pessoas bondosas são premiadas e as mal-dosas são castigadas, quem merece sempre ganha umfinal feliz.

O conto “O príncipe sapo” mostra alguns dessesvalores: o heroísmo recompensado do “príncipesapo”, a redenção da princesa egoísta e a destruiçãodo mal, ou seja, a quebra do feitiço pelo amor, pelocarinho do beijo. Em contrapartida, no conto de MarliFantini, o sujeito da enunciação divide seu espaçocom o “outro” e, de forma marcada, busca o textodos irmãos Grimm, satirizando e até invertendo osvalores ideológicos apesar de manter o cenário ori-ginal – o reinado – tipo de sociedade existente naépoca em que se originou a história.

Nesse segundo texto, a autora utiliza-se de re-cursos lingüísticos que subvertem o assumido e o não-assumido pelo enunciador, entre eles a modalizaçãodo discurso do narrador que enumera o enunciado eos comenta ironicamente ao final do texto, fato quedesigna a linha de demarcação que um texto consig-na entre ele e seu exterior.

Segundo Authier, as aspas são utilizadas comodemarcadoras de distanciamento ou de legitimaçãodo enunciado e podem ser de condescendência, dedistinção, pedagógicas ou de ênfase.

Na verdade, colocar entre aspas é, antes de qual-quer coisa, manter certas palavras à distância, e essaatitude, diz Maingueneau, faz com que se “legitimerealizar esse ato” (Maingueneau o diz e, aqui, de formametalingüística, usa-se aspas e não assume) usan-do-o como se fosse legítimo fazê-lo. Entretanto, vem

em seguida uma restrição do au-tor: quando se interpreta, não setrata de buscar as “intenções” doautor, mas encarar o movimentoenunciativo e, para além dele, oarquivo onde se inscreve. O teci-do de alusão utilizado pela autorado conto “O sapo príncipe” deixaentrever, com bastante clareza,um procedimento multifacetado,onde sem nenhum preconceito,utiliza o texto como uma “arena

de lutas” (BRANDÃO, 1993:36), no qual manifes-ta-se a heterogeneidade discursiva, por meio da pre-sença remissiva do outro discurso.

Ao explicar o conceito ironia, Brait (BRAIT,1997:49) introduz a noção de literal e figurado. Se-gundo ela, deve-se considerar literal não o estabele-cido no dicionário, mas o atualizado. A ambigüidadeessencial do discurso irônico está em aceitar simul-taneamente seus sentidos literal relativo e figuradopara qualificar a recepção. Dois discursos fazemparte da composição irônica e cabe à memóriadiscursiva do receptor fazer a ligação entre a signifi-cação dita “literal” e a significação irônica pretendi-da pelo locutor.

Nessa perspectiva, no texto de Marli Fantini, osujeito do discurso joga com outro discurso e ostextos misturam-se por meio da imitação e, marca-damente, por uma ironia pretendida e, nesse con-fronto polêmico, trabalha a linguagem e assume umaposição (enunciativa) ideológica. Sem perder o ou-tro discurso de vista e assumindo o “outro no mes-mo” (BRANDÃO, 1993:11), o sujeito daenunciação, ironicamente, mostra um ideal de be-leza feminina que foge ao padrão tradicional que seimpõe às mulheres.

Há, ainda, uma crítica velada à idealização amo-rosa com a expressão “príncipe desencantado” e ocasamento surge, não como a união de duas pes-soas que se amam, mas sim como uma solução paraa paixão: evita o transtorno de possíveis relaçõessexuais entre jovens não casados, especialmentepara a mulher. “Com a aprovação do rei” (ou paraalívio do pai?) procedeu-se de imediato à cerimô-nia do casamento. De nada adiantou o casamentoter sido realizado de “imediato”, provavelmente sem

Ao explicar o conceitoironia, Brait introduz a

noção de literal efigurado. Segundo ela,

deve-se considerarliteral não o

estabelecido nodicionário, mas o

atualizado.

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convidados, para não ter o ga-rantido “enlace” atrapalhado,pois a presença indignada da rãderruba por completo o mito docasamento como reduto de feli-cidade, como espaço sacrossan-to e inatingível.

É possível dizer que, nesseconto de Marli Fantini, há a ins-crição de um sujeito aprisionado(cativo pelo que diz), e tal assujei-tamento faz eclodir, de formamarcada, a ironia e a ideologia do sujeito daenunciação, o qual, com essa determinação ideológi-ca, disponibiliza a materialização de um sentido novoao enunciado.

Cartun:o príncipe sapo

Já o cartun, mesmo levando em si o “outrosobre o mesmo” (BRANDÃO, 1993: 7), conser-va da história tradicional toda a ambientação: aação se passa num reino, com a princesa usandoseu belo vestido e sua coroa real, o beijo que de-sencanta sapo em príncipe e a promessa de casa-mento entre o príncipe e a princesa, com o apoiodo rei, o pai dela.

Segundo Bakhtin (1994), as modalidades daenunciação estão constitutivamente articuladas aosgêneros discursivos, pois cada esfera da atividadesocial possui formas textuais mais ou menos cris-talizadas. Os efeitos de sentido que circulam nosdiscursos produzidos em uma sociedade cons-troem, com as formas discursivas típicas de cadaum desses diversos gêneros, as representações doimaginário de uma certa época. Com base nesseconceito ousa-se dizer que a imagem ou o enun-

ciado do cartun, levado peloideário de uma época, altera ofinal da história e, assim como oconto de Fantini, faz apareceruma rã grávida, que teria se re-lacionado com o príncipe quan-do ele ainda se encontrava soba forma de sapo. O cartun traza história do universo do faz-de-conta para a realidade dos diasatuais.

Conforme se observa nocorpus analisado, este extrapola a fronteira da lite-ratura e da arte para alcançar a da produção da cul-tura e dos bens em geral. Por outro lado, a fronteirarígida entre produção popular e erudita é diluída, por-que a cultura quando vista por meio da linguagemnão é um arquivo morto, mas constrói-se a cada ins-tante pelas relações inter-humanas.

Na concepção de Theodor W. Adorno, o mundointeiro passou pelo crivo da indústria cultural (ADOR-NO, 1969:167). Sendo assim, obedecendo a esse pro-cesso de industrialização da cultura, o conto de fa-das, assim como todas as manifestações de arte, fo-ram despojadas de sua sacralização e seus protago-nistas passam de príncipes, princesas e heróis a pro-tagonistas do mercado de consumo ou comunicaçãode massa.

Segundo Silvia Borelli, os clássicos podem serpopulares ou eruditos, pouco importa a subdivisão.Importa que sejam não só lidos, mas relidos(BORELLI, 1996:52). Essa releitura do conto defadas e especificamente da figura central do prínci-pe é observada no conto de Fantini, no cartun e nocartaz de publicidade dos filtros “Melitta”, fazendoassim o que MacDonald chama de paródia que amassicultura faz da alta cultura. Afirma ele que amassicultura é uma força dinâmica, revolucioná-

Os efeitos de sentidoque circulam nos

discursos produzidosem uma sociedade

constroem (...)as representaçõesdo imaginário deuma certa época.

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ria, que quebra antigas barreiras de classe, de tra-dição e de gosto, dissolvendo toda a distinção cul-tural em prol do interesses do mercado (MAC-DONALD, 1971:78).

Dessa forma, nesse contexto sócio-interacionista, a intencionalidade do mercado publi-citário transfere a representação signica do prínci-pe do conto popular, focalizando o conceito trans-formador (de sapo em príncipe) para evidenciar umproduto no mercado consumidor.

No conto dos irmãos Grimm a princesa é o meiotransformador, criando uma tríade (sapo/princesa/prín-cipe). Já na releitura publicitária da “Melitta”, o meioé o filtro, substituindo a figura da princesa pelo filtrode papel (sapo/Melitta/príncipe). Nesse anúncio pu-blicitário, assim como toda imagem figurativa, a men-sagem é facilmente decodificada, pois a intenção é

persuadir, contrariamente à alta cultura que quer che-gar à imagem com a intenção de fazer sentir.

A intenção do enunciador, ou do sujeito do dis-curso do anúncio publicitário, com essa hetero-geneidade notoriamente marcada, é atribuir ao filtrode café “Melitta” uma sanção positiva (entra sapono filtro e sai príncipe), ou seja, o filtro é o objetotransformador e poderá transformar o pó de café dequalquer qualidade em uma bebida saborosa. Buscainfluenciar a dona de casa que, como a princesa,espera pelo seu príncipe encantado, mesmo aquelasque já têm seus parceiros e buscam neles a qualida-de da irrealidade apresentada.

Ao se colocar como espaço interior propenso adiscursos “transversos” (PÊCHEUX, 1990:314), àinfluência do “outro”, os textos vão, segundoAlthusser, se determinando por posições ideológicas

Propaganda do Filtro de Papel Melitta

47Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 40-47, jan./jun. 2004

no processo sócio-histórico(ALTHUSSER, 1974:34). O tex-to publicitário da “Melitta” ence-na, dramatiza, e assim como osoutros recortes analisados, divi-de seu espaço interno com o “ou-tro”, o externo, reconfigurando-se como espaço estrutural emrelação com seu exterior e inva-dido por elementos ou formas“pré-construídas” (PÊCHEUX,1990:314).

Consideraçõesfinais

O interdiscurso compreende o conjunto das for-mações discursivas e se inscreve no nível da cons-tituição do discurso na medida em que trabalha com

a re-significação do sujeito sobreo que já foi dito, o repetível, de-terminando os deslocamentospromovidos pelo sujeito nas fron-teiras de uma formação discur-siva. O interdiscurso, no corpusanalisado, determina material-mente a articulação de modaliza-dores e o efeito de encadeamen-to intertextual de tal modo quechega a aparecer como o puro“já-dito”.

Assim, as vozes discursivas que se manifestamuns nos outros interferem no seu sentido e, deses-truturando o institucionalizado, atuam comodeterminante na transformação da fábula ou contomaravilhoso em outras manifestações de arte, ouseja, torna-se ponto fundamental na abolição dafronteira entre erudito e produto de consumo.

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Segundo Silvia Borelli,os clássicos podem

ser populares oueruditos, pouco importa

a subdivisão.Importa que sejam

não só lidos,mas relidos.

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* Lucimeire AntonietaCorreia é especialistaem Letras (Área deConcentração:Teoria da Literatura eLiteraturas de LínguaPortuguesa) Campusde Dourados/UFMS,sob orientação daProfa. Dra. RosanaCristina ZanelattoSantos. Professora deLiteratura na rede deensino do municípiode Tacuru – MS.

O ensaio procura demonstrar a presença de elementos e mecanismosda estética surrealista na construção das imagens poéticas do livro"Tratado geral das grandezas do ínfimo", de Manoel de Barros.

Palavras-chave:surrealismo; imagens oníricas; criação poética.

The objective of this essay is to evince the presence of elements ofsurrealistic aesthetic mechanisms in the construction of poetic imagesin the book “Tratado geral das grandezas do ínfimo” (General treatiseon the greatness of trifle) by Manoel de Barros.

Keywords:surrealism; vision images; poetic creations.

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O SONHO MANOELINOLucimeire Antonieta Correia*

Feitas as contextualizações necessárias no âmbitohistórico do surrealismo e de suas expressões oníricas,mergulhamos no texto manoelino, na tentativa de des-velar as imagens e os jogos de linguagem propostospelo poeta, com a devida sustentação teórica referidanas Referências Bibliográficas deste artigo.

2 - Sobre as vanguardaspoéticas, em especial o

surrealismoO surrealismo foi uma vanguarda poética situada

pela História da Literatura no contexto do movimen-to modernista do século XX, movimento este que podeser visto como o resultado das interpretações atribuí-das aos textos de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud eMallarmé, precursores de uma nova poética e de teo-rias a respeito da estética literária que fomentaramas mudanças no campo das artes do século XIX.Esses expoentes da literatura universal e da teoriaestética inspirariam outras teorias no mundo todo,fechando o século XIX e abrindo o século XX, mos-trando o homem em conflito consigo mesmo e com ouniverso que o envolvia.

A Primeira Grande Guerra (1914–1918) assina-lou na literatura de vanguarda, que nasceu na Françae estendeu-se para os demais países ocidentais, umamudança de perspectiva no pensamento e na arte

1 - Introdução[A poesia] antes de ser um espetáculo

consciente toda paisagem é umaexperiência onírica

(Gaston Bachelard)

Neste artigo procuramos realizar uma leitura dapoesia de Manoel de Barros, especialmente aquelado volume Tratado Geral das Grandezas do Ínfi-mo (TGGI, 2001), enfatizando o trabalho com a lin-guagem verbal escrita para a criação de imagens emconsonância com alguns elementos da estéticasurrealista.

Em um primeiro momento, apresentamos, aindaque brevemente, o surrealismo enquanto vanguardapoética situada no contexto do movimento modernis-ta, suas principais características e, por sua vez, ascaracterísticas da representação onírica desenvolvi-da pelos surrealistas.

A leitura do surrealismo está vinculada à questãodo sonho, por acreditarmos que esse elemento, comorepresentação artística surrealista, alcançou o maisalto grau de expressividade literária, uma vez que lidacom o imaginário, o maravilhoso, o ilógico, o absur-do. Em decorrência do sonho, tratamos também dainfância, da loucura, do anti-herói e da oposição me-tafórica utilizados por Manoel de Barros em seu fa-zer poético.

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universal. Uma certa agressividadee o culto a valores estranhos aospadrões tidos como clássicos pas-sou a permear a estética de van-guarda. Assim nasceram os mo-vimentos europeus que sacudiramo início do século XX.

No âmbito do movimento mo-dernista, as teorias estéticas quemais se destacaram foram o fu-turismo que, grosso modo, foiuma estética mais de manifestosque de obras, exaltador da vidamoderna, procurando estabelecer o culto da máqui-na e da velocidade, pregando a destruição do passa-do e dos meios tradicionais de expressão literária; oexpressionismo, que buscava estabelecer uma artecriada sob o impacto da expressão da vida interior,das imagens vindas das entranhas do ser e que semanifestavam pateticamente. Para os expres-sionistas, a realidade era uma só: a expressão feitadas várias nuanças que marcam cada ser em parti-cular; o cubismo, que pretendia representar a reali-dade por intermédio da estrutura geométrica, des-montando os objetos para que fossem remontadospelo autor e pelo espectador, deixando transparecer,mediante essa interatividade, uma estrutura superiorque seria a forma plástica essencial e verdadeira dabeleza; o dadaísmo, ou Movimento Dada, que foi omovimento intelectual mais radical dos últimos tem-pos, para o qual não havia passado, nem futuro, massim a destruição, a guerra, o nada, e a única coisaque restava ao artista era produzir uma anti-arte, umaanti-literatura, o que acabou por expandir horizontese unificar grupos modernistas que estavam separa-dos pela língua e pela guerra. Dentre as característi-cas do dadaísmo destacam-se o improviso, a dúvida,o predomínio da percepção e a oposição a qualquertipo de equilíbrio, tanto na forma quanto na expres-são de idéias e de sentimentos; o surrealismo que sepropunha a renovar os valores que os dadaístas que-riam destruir, por via da libertação dos mecanismospsíquicos conscientes, considerados limitantes.

O surrealismo surgiu em 1924, quando AndréBreton (1896–1970) lançou o Manifeste du Sur-realisme e o primeiro número da revista RevolutionSurréaliste, fundando também o Bureau derecherches surrealistes, espécie de local de pes-quisas que buscava investigar o objeto oníricosurrealista. Essa vanguarda poética manteve laçosestreitos com o expressionismo, pois ambas busca-

ram a revalorização do passadoonírico, medido pela intensidadedas sensações e das experiênciasinteriores do ser humano.

Os surrealistas buscavam aemancipação humana total, o ho-mem liberto de suas relações psi-cológicas e culturais, individuali-zado, sem moral, sem pátria e semreligião. Para atingir esses objeti-vos, recorriam à magia, ao ocul-tismo, à alquimia medieval e às ex-perimentações psicanalíticas.

Para conhecer o homem, era preciso investigá-lo, ea poesia e a pintura se ofereciam plenamente a essepropósito, permitindo aos surrealistas a exploraçãodo inconsciente, do sonho e do maravilhoso.

No Primeiro Manifesto, de 1924, André Breton defineo surrealismo do ponto de vista filosófico, como fun-damentado na crença na realidade superior de certasformas de associações (...) jogar-se-á com as imagensmanifestadas pelo inconsciente sem a intervençãomodificadora e filtrante do subconsciente(MENEGAZZO, 1991, p.111).Podemos perceber uma manipulação delibera-

da do maravilhoso, em que se busca o relaciona-mento com o irracional e com o ilógico, desorien-tando e reorientando a consciência por meio da in-consciência (o fluxo de consciência) ou da escritaautomática, que, para Breton, era a prática sur-realista mais importante, conforme sua definiçãocitada por Fiona Bradley:

Surrealismo. s. m. Automatismo psíquico puro, por meiodo qual alguém se propõe a expressar – verbalmente,utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira– o verdadeiro funcionamento do pensamento, na au-sência do controle exercido pela razão, livre de qualquerpreocupação estética e moral ( BRADLEY, 2001, p. 21).O automatismo seria o caminho para alcançar o

maravilhoso, confiando no poder criativo da lingua-gem falada, escrita e visual, a fim de liberar os se-gredos do inconsciente. Fora do uso convencional, oque determinava a escolha da próxima palavra era aaparência e a sonoridade da expressão escolhida,criando, automaticamente, imagens. Estabelecido opoder do automatismo psíquico, os surrealistas en-contraram nos estudos de Freud o suporte necessá-rio para conduzirem suas investigações na busca deuma arte ligada ao inconsciente.

Em 1929, Breton publicou o segundo manifestosurrealista, declarando seu partidarismo político em

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Uma certa agressivida-de e o culto a valores

estranhos aos padrõestidos como clássicospassou a permear a

estética de vanguarda.Assim nasceram os

movimentos europeusque sacudiram o início

do século XX.

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favor do marxismo, defendendo que a autenticida-de da arte estava na atividade revolucionária. Comoalguns membros do grupo não concordassem comessa visão, houve a divisão dos surrealistas em co-munistas e não comunistas.

Além do automatismo da escrita, os surrealistasestudaram e representaram artisticamente o sonho,a loucura, a infância, a imaginação, o materialismo, orepúdio ao tipo humano engendrado pela tradição li-terária – por via do herói –, o repúdio ao métodoanalítico lógico e a valorização da memória e do ma-ravilhoso.

3 - Sonho, processo oníricoe criação artística explorados

no surrealismoA realidade é três vezes pior do que o sonho.

(Lautréamont)

Os surrealistas não foram os únicos a explorar oinconsciente como forma de representação artística,porém, podemos afirmar que nenhum outro movimentode vanguarda foi tão feliz nos resultados obtidos emrelação ao que o homem possui de mais profundo emseu espírito, seus sonhos, seus medos, sua loucura,sua realidade interior e seu inconsciente e seu mundoparticular, como o foi o surrealismo. Até então, essasquestões eram pouco exploradas pelos estudiosos danatureza humana. No entanto, a partir dos estudos deFreud, tornou-se possível ampliar as investigaçõessobre o potencial do inconsciente e isto serviu comouma espécie de base teórica para o surrealismo.

A obra de Freud forneceu a Breton e ao surrealismoum contexto e um vocabulário com os quais poderiamconduzir suas investigações acerca do automatismona fala, na escrita e na produção de imagem. (...) Freudapontara no sonho um meio para o estudo das inclina-ções e dos desejos que estruturam a vida interior decada um. Ele introduziu a noção de uma correspon-dência entre essa vida interior e o mundo externo dalinguagem e dos objetos. A escrita e a fala automa-tizadas do surrealismo imitavam os métodos que Freudempregava para levar um paciente a lhe constar seussonhos (BRADLEY, 2001, p.31).Mas, o que é o sonho? FREUD definiu-o como

sendo “atividade mental de quem dorme, na medidaem que esteja adormecido” (2001, p.23), e ossurrealistas criam firmemente que o sonho possuía

uma alta “capacidade de expressar a riqueza do mundointerior da imaginação” (BRADLEY, 2001, p.37).Para estes últimos, quando o homem deixa de dor-mir, torna-se um “joguete da memória”, pois não écapaz de lembrar-se totalmente da circunstância dosonho. Ao sonhar, o homem aceita sem reservas umainfinidade de episódios estranhos que, em estado devigília, o deixariam transtornado. Se a realidade éassustadora, o despertar é um golpe que o poeta sópode suportar por meio da poesia, e se faz dela umuso surrealista, tanto melhor. Era esta a função es-pecífica da linguagem defendida por Breton.

Para os surrealistas o sonho era simbólico e, porintermédio dele, seria possível expressar a riquezado mundo interior da imaginação. Além disso,

É através do sonho que o homem se satisfaz, uma vezque nele residem todas as possibilidades. Desfazem-se a angústia e os limites temporais e espaciais. Ouniverso onírico se apresenta desprovido de lógica eracionalidade, posto que é constituído de imagens elembranças que permanecem sublimadas e que preci-sam ser libertadas (MENEGAZZO, 1991, p. 114-5).As imagens oníricas possibilitam o acesso ao

maravilhoso e oferecem condições para que os es-tados oníricos se transformem em estados poéticoscom um alto grau de expressividade, seja na lingua-gem verbal, seja na linguagem visual. Essas imagenssão experiências singulares geralmente desordenadase absurdas, que se desfazem logo no momento se-guinte a sua ocorrência, originando nova seqüênciade imagens, de fatos de acontecimentos, etc. Nosestados de sonho existem dois fatores decisivos queprecisam ser considerados: a lembrança e o esque-cimento. De acordo com FREUD,

(...) a notável preferência demonstrada pela memória,nos sonhos, por elementos indiferentes e consequen-temente despercebidos da experiência de vigília estáfadada a levar as pessoas a desprezarem, de modo ge-ral, a dependência que os sonhos têm da vida de vigília,e a dificultar em qualquer caso específico a comprova-ção dessa dependência (2001, p. 39).A respeito das lembranças dos estados de sonho

que acometem o homem durante os estados de vigí-lia, o sonho funciona como uma espécie de válvulapor intermédio da qual o ser humano pode escapardos “terrores” da realidade. Ao sonhar, o homemdeixa de perceber inúmeras sensações e percepções,por serem fracas ou porque a excitação mental liga-da a elas foi muito pequena. Assim, a memória recu-pera apenas as imagens oníricas mais fortes.

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São vários os fatores que cul-minam no esquecimento dos so-nhos, dentre eles, o desinteresseem recordá-los no momento devigília. Porém, um pesquisadorcientífico que preste atenção aseus sonhos por certo período per-ceberá que terá mais sonhos doque habitualmente, o que pode sig-nificar que passou a lembrar-se deseus sonhos com mais facilidadeou maior freqüência.

Sigmund Freud, em A interpre-tação dos sonhos (2001, p. 92–104), dedica um ca-pítulo inteiro às Teorias do sonhar e de sua função,no qual relata as diversas teorias existentes a respei-to do sonho. Por ora, interessa-nos a afirmaçãofreudiana de que “(...) as imagens produzidas, quecorrespondem em sua maior parte, a impressõesmateriais do passado mais recente, são concatenadasde maneira tumultuada e irregular” (2001, p. 94). Noque se refere à criação artística, esta observação deFreud relaciona-se à avalanche de imagens pictóri-cas e poéticas concernentes à representação onírica.

Os surrealistas viam o sonho como condição paraque o homem permanecesse jovem, pois a ausênciade sonhos o relegaria à condição do esquecimento.BRETON dá a sentença: “Eu envelheço e, mais doque a esta realidade à qual eu penso me adstringir,talvez seja o sonho, a indiferença a que eu o relego eme faz envelhecer” (apud TELES, 1997, p. 181).

O criador e mentor do surrealismo afirmava aindaque o despertar é um fenômeno de interferênciaem que o espírito, desorientado, tenta seguir as su-gestões que lhe vieram do inconsciente. Esse cará-ter de premonição que Breton tenta estabelecer édesmistificado pela teoria psicanalítica de FREUD,que defendia que “Os sonhos (...) não decorrem demanifestações sobrenaturais, mas seguem as leisdo espírito humano, embora este, é verdade, tenhaafinidades com o divino” (2001, p. 23).

O conceito de viagem atribuído aos sonhos terianascido na pré-história e se firmado na Antigüidadeclássica, quando os povos acreditavam que os so-nhos se relacionavam com o mundo sobrenatural eque eram revelações de deuses e de demônios. Po-rém, se tomarmos a expressão “mundo sobrenatu-ral” como referência, perceberemos que Breton, se-gundo sua teoria surrealista, estava certo, pois ossonhos são imagens super-realistas além e aquémdo que comumente denominamos realidade.

É observável também que umsonho pode apresentar informa-ções sobre as quais o sujeito, es-tando em estado de vigília, nãose dê conta de que as possui.Segundo FREUD, a mente podereceber estímulos durante osono, capazes de criar as condi-ções favoráveis à formação deilusões. A mente recebe e inter-preta a mensagem de acordocom as informações que possuide experiências anteriores. Os

estímulos recebidos podem ser vagos e, a partir dis-so, a mente cria ilusões. Não é possível determinarexatamente as leis que regem a formação dos so-nhos. Assim, a teoria das ilusões e o poder das im-pressões objetivas que, aparentemente, influenciama formação dos sonhos permanecem apenas comoelemento experimental externo. Além das impres-sões objetivas, temos também os estímulos censuraissubjetivos fornecidos pelos sentidos, tais como: pon-tos luminosos na área de visão quando os olhos es-tão cerrados e zumbidos nos ouvidos (pressão arte-rial em desacordo com a pressão atmosférica), o queindepende de circunstâncias externas para produzirimagens oníricas.

Freud versava também sobre os estímulossomáticos orgânicos internos fornecidos pelos nos-sos órgãos como fonte de produção de imagens. Dis-túrbios pronunciados dos órgãos internos poderiamagir como instigadores de sonhos, facultando inclusi-ve seu funcionamento na premonição de doenças etambém enviando mensagens que revelavam sensa-ções de prazer.

Ainda em relação ao sonho, Freud verificou tam-bém que o homem tende a sonhar com aquilo quefaz durante o dia ou com aquilo que lhe interessaquando está acordado, estabelecendo um vínculomental entre os sonhos e a vida real. Esse vínculo,entretanto, não constitui regra geral como os estímu-los já citados; é uma explicação possível e parcial daorigem dos sonhos.

Quanto aos temas surrealistas da infância, daloucura, da imaginação e do sonho, eles mantêmuma estreita relação entre si, considerando que sãoprodutos das profundezas humanas. Assim sendo,é bastante relevante a observação de MENE-GAZZO de que

Todas as formas de expressão empregadas pelossurrealistas têm como princípio unificador a imagem.

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O poeta possui o domda palavra, pois

consegue condensar, empoucas delas, imagensque contêm o infinito,

aproximando duasrealidades distintas que

explodem em nossossentidos...

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(...) a imagem na poesia surrealista é um meio de conhe-cimento, uma vez que permite ao poeta e ao leitorextrapolarem as fronteiras do real e retomá-lo em suaessência, seja pelo insólito, pela sintaxe incomum oupela transgressão lógica. Uma outra existência se tornapossível (1991, p. 118-9).Com base nas considerações anteriormente ex-

postas sobre o sonho e os temas correlatos a ele,abrimos o tópico seguinte, enfocando o texto poéticode Manoel de Barros, Tratado Geral das Grande-zas do Ínfimo.

4 - A perspectiva oníricano "Tratado Geral dasGrandezas do Ínfimo"

O poeta Manoel de Barros subdivide seu livroTratado Geral das Grandezas do Ínfimo (TGGI,2001) em duas partes: na primeira, batizada com omesmo título do livro, reúne dezoito poemas cujostemas revelam uma confrontação metafórica do ho-mem com o universo; na segunda parte, denominada“O Livro de Bernardo”, que vemos como o corposimbólico do poeta, é que se dá substância ao in-consciente por meio da linguagem.

Podemos verificar que no Tratado Geral dasCoisas do Ínfimo a manipulação da função poéticada linguagem cria um jogo prazeroso que concretizaa magia das palavras. A capacidade de criar umafantasia lingüística faz com que o leitor percebaque o poeta é o demiurgo da beleza das coisasínfimas, transpoetizando o belo em matéria de lin-guagem para além da língua, para a imagem. Oque o poeta escreve pode ser lido sob infinitasmaneiras, sem que isso implique uma leituradistorcida ou uma não-leitura, pois, conformeBarthes,

As redes são múltiplas e jogam entre elas, sem quenenhuma possa sobrepor-se às outras; esse texto éuma galáxia de significantes, não uma estrutura de sig-nificados; ele não tem começo; ele é reversível; tem-se acesso a ele por múltiplas entradas, nenhuma dasquais pode ser, com certeza, considerada a principal;os códigos que ele mobiliza se perfilam a perder devista; eles são indecidíveis (...); desse texto absoluta-mente plural, os sistemas de sentido podem se apro-priar, mas seu número não será jamais fechado, tendopor medida o infinito da linguagem (apud CAMPOS,2001, p.189).

Esse valor estético plurissignificativo é exploradode forma consciente no texto manoelino, demons-trando um alto grau de apuração poética. O poetapossui o dom da palavra, pois consegue condensar,em poucas delas, imagens que contêm o infinito, apro-ximando duas realidades distintas que explodem emnossos sentidos, tornando-nos sensíveis à beleza quea imagem evoca. É inegável a presença surrealistade contraste metafórico, na produção do maravilho-so em versos como: “O cisco é infenso a fulgu-râncias” (BARROS, 2001, p. 11). Ou: “– Quandochove nos braços de uma formiga, o/ horizonte dimi-nui” (BARROS, 2001, p. 37). Mais ainda: “Dentrode mim/Eu me eremito/Como os padres do ermo”(BARROS, 2001, p. 51).

Os dois últimos versos (“Eu me eremito/Como ospadres do ermo”) dão a sentença exata da formasurrealista: inventar poesia é estar acima dos princí-pios que regem a razão, e se o poeta sonha em voltara ser criança na poesia, ele pode realizar esse dese-jo, revivendo sua infância a partir do jogo lúdico comas palavras. Ainda que controlada pela lógica adulta,a infância representa a liberdade, a fuga da realida-de precária na qual o homem se encontra. Tambémno poema “Ascensão” é possível verificar o maravi-lhoso infantil como objeto de desejo e como tintamágica capaz de colorir a vida:

Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo –ainda sem movimento.Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes –ainda sem penugens.Por que não voltar a apalpar as primeiras formas dapedra. A escutarOs primeiros pios dos pássaros. A verAs primeiras cores do amanhecer (BARROS, 2001, p. 41).A infância é um estágio lúdico em que o mundo

está em constituição por meio da linguagem, e esseestágio não precisa necessariamente ser encerradonos primeiros anos de vida do homem, podendo per-durar por toda a vida. Crescer, no contexto poético,significa abandonar os sonhos e as fantasias, repri-mir ou mascarar a imaginação; é entregar-se a umdestino obscuro e fatal, como bem nos mostra o po-eta em "O Urubuzeiro":

Meu amigo Sabastião estourou a infância dele e maisduas pernasNo mergulho contra uma pedra na Cacimba da Saúde.Quarenta anos mais tarde Sabastião remava uma canoano rio ParaguaiE deu no barranco de uma charqueada.

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Sabastião subiu o barranco se arrastando como umcaranguejo trôpegoAté a casa do patrão e pediu um trabalho.O patrão olhou para aquele pedaço de pessoa e disse:Você me serve para urubuzeiro.(Urubuzeiro era tarefa de espantar os urubus queatentavam nos tendais de carne).O trabalho de Sabastião era espantar os urubus.Sabastião espantava espantava espantava.Os urubus voltavam de bandos.Sabastião espantava espantava.Um dia pegaram Sabastião a prosear em estrangeirocom os urubus.Chegou que Sabastião permitiu que os urubusfizessem farra nas carnes.Os urubus faziam farra e conversavam em estrangeirocom Sabastião.Veio o patrão e mandou Sabastião para o manicômio.No manicômio ninguém compreendia a língua deSabastião.De forma que Sabastião despencou do seu normal.E foi encontrado na rua falando sozinho emestrangeiro (BARROS, 2001, p. 21-2).

De acordo com os surrealistas, a imaginaçãoabandona o homem por volta dos 20 anos. O destinodo velho Sabastião, após ter estourado sua infância(“mais as duas pernas”), é empregar-se comourubuzeiro, “tarefa de espantar os urubus que aten-tavam nos tendais de carne”. O urubu é uma ave derapina que, no dito popular, significa mau agouro.Assim, isso nos leva a deduzir que Sabastião perdeusua condição de criança e, em conseqüência disso,tornou-se mais um ser humano deficiente, sem aspernas da imaginação para levá-lo a qualquer parte.Porém, o poeta encontra uma solução para o proble-ma, com base na proposta surrealista:

Resta a loucura, “a loucura que nos prende”, disserambem. Essa ou a outra (...) Cada um sabe, com efeito, queos loucos só devem seu internamento a um pequenonúmero de atos legalmente repreensíveis, e que, na fal-ta destes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liber-dade) não estaria em jogo. Que eles sejam, numa medi-da qualquer, vítimas de sua imaginação, estou pronto aconcordar (...) ela os impede a inobservância de certasnormas, (...) eles sentem um grande conforto na imagi-nação, que eles se comprazem bastante com o seu delí-rio, para suportar que esse delírio só seja válido paraeles (BRETON apud TELES, 1997, p.176).Assim, Sabastião transcende sua condição de

deformidade física para a condição de loucura, por

intermédio da qual ele mantém o acesso ao mara-vilhoso. Segundo a teoria freudiana, os sonhos eas doenças mentais mantêm uma relação estreitaentre si. O homem obtém na loucura o que a rea-lidade lhe nega: a suposta posse de bens e a reali-zação imaginária de desejos. Outra analogia entreo louco e o sonhador é que ambos ouvem os seuspróprios pensamentos pronunciados por vozes es-tranhas. No caso de Sabastião, ele se utiliza deuma língua nova, que não é compreendida pelaspessoas “normais”, mas que lhe proporciona umacerta liberdade de espírito; assim, ele pode se ex-pressar como quiser, ainda que ninguém o com-preenda.

Seduzidos pela emoção artística nascida do som,da forma e da cor do texto manoelino, compreende-mos a observação de Afonso de CASTRO de que “opoeta quebra todos os estatutos normais para brincarcom os sentidos e com as palavras, expressando abeleza do mundo (...)” (1991, p. 27). O próprio poetaprofere a sentença: “A poesia está guardada nas pa-lavras – é tudo que/eu sei” (BARROS, 2001, p. 19), ede posse dessa verdade, cria imagens inusitadas queexpressam o (estranho) mundo subjetivo do homem,as paisagens naturais, criando e manifestando o so-nho, a fantasia, a loucura e a infância de uma formaextravagante que só a arte é capaz de realizar.

Assim, sutil e infimamente o poeta aproxima osujeito de sua condição de sonhador, embalando-oem sua rede de palavras, e a primeira estação deparada (ou de partida) é a infância que, na con-cepção surrealista, é um dos estágios em que ohomem pode deixar sua imaginação fluir, de vezque ela simboliza a ausência de normas e a possi-bilidade de trilhar os caminhos da fantasia e darealidade de forma simultânea e indistinta. O poe-ta manipula o apego humano às fantasias do ima-ginário infantil. Ao longo dos poemas de Barros,podemos observar que temas relacionados à in-fância são recorrentes e que neles a criança estáautorizada a transitar pelo maravilhoso e a insur-gir-se contra as regras da razão. “No mundo in-fantil, tudo é intenso, mais denso e importante. Sobo signo da criança, o poeta revela as insignificân-cias que normalmente não seriam percebidas”(CASTRO, 1991, p. 27). Leiamos o poema “In-fantil”:

O menino ia no matoE a onça comeu ele.Depois o caminhão passou por dentro do corpodo menino

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E ele foi contar para a mãe.A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é queO caminhão passou por dentro do seu corpo?É que o caminhão só passou renteando meu corpoE eu desviei depressa.Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.Eu não preciso de fazer razão (BARROS, 2001, p. 19).As personagens poéticas forjadas por Barros re-

velam a preocupação do poeta em criar heróis pito-rescos cujas ações e cujas reações são imprevisíveis,sendo que o tipo humano não é seu único modelo,pintando verdadeiros retratos poéticos de seres hu-manos, de animais e de paisagens. Podemos obser-var em seus poemas, a busca pelo etéreo na presen-ça do animismo infantil em “A pedra”:

Pedra sendoEu tenho gosto de jazer no chão.Só privo com lagartos e borboletas.Certas conchas se abrigam em mim.De meus interstícios crescem musgos.Passarinhos me usam para afiar seus bicos.Às vezes uma garça me ocupa de dia.Fico louvoso.Há outros privilégios de ser pedra;a - Eu irrito o silêncio dos insetos.b - Sou batido de luar nas solitudes.c - Tomo banho de orvalho de manhã.d - E o sol me cumprimenta por primeiro (BARROS, 2001, p. 27).O poeta brinca com a origem das coisas, trazen-

do-as à tona para que sejam desveladas pelo leitor.O encontro da imagem criada com o pensamento doleitor faz nascer o instante da transpoetização, emque é perceptível a beleza do eterno, reencontradana unidade da matéria. O potencial imagético dostextos de Manoel de Barros é sugestivo e, no jogosurrealista, atinge o inconsciente psíquico ao explo-rar a disparidade aparente dos termos reunidos. Nes-sa composição, o poeta cria um jogo de contrastemetafórico entre a pedra – matéria pesada, estática– e a borboleta, o passarinho, a garça, o luar, o orva-lho da manhã e o sol, que constituem oposição natu-ral à pedra, por simbolizarem a leveza, a beleza, agraça romântica. É relevante observar ainda que,embora se tratando de elementos antitéticos, nenhumdeles exclui o belo; ao contrário, a beleza só se cons-titui a partir da aproximação dos opostos. O discursoem primeira pessoa faz com que o sujeito enunciadore o leitor assumam um parentesco espiritual com amatéria, realizando uma fusão da alma humana com

a alma do mundo. Ainda de acordo com esses pres-supostos, podemos ler o poema “O catador”:

Um homem catava pregos no chão.Sempre os encontrava deitados de comprido,ou de lado,ou de joelho no chão.Nunca de ponta.Assim eles não furam mais – o homem pensava.Eles não exercem mais a função de pregar.São patrimônios inúteis da humanidade.Ganharam privilégio do abandono.O homem passava o dia inteiro nessa função de catarpregos enferrujados.Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.Catar coisas inúteis garante soberania do Ser.Garante a soberania do Ser mais do que Ter (BARROS,2001, p. 43).Em “O Catador”, além do que já dissemos com

relação ao poema A pedra, podemos observar amudança do ser em coisa, ou seja, do homem emhomem-prego, do leitor em leitor-homem-prego. Aafirmação “ou de joelho no chão” causa sensaçãode conforto ao leitor, pois, afinal, quem estava dejoelhos no chão: o homem ou o prego? Ou ambos,imiscuídos num único ser? O verso seguinte, “Nun-ca de ponta”, é nominal, sem verbo e sem sujeito, ena seqüência, o discurso poético transmuta-se de in-direto para indireto livre, exigindo que o leitor parti-cipe da atividade mental de “O catador”, aderindo(espontaneamente?) à imagem criada. Esse ato trans-cende o simples conhecimento do fato, e o leitor tor-na-se ator do estado poético. Transmutado emcatador de pregos, o leitor sente-se recompensadoplenamente nos dois últimos versos do poema, quereafirmam sua autonomia de Ser e de ser o que qui-ser, não procurando o que Ter.

Na poética manoelina, o olhar artístico recria sig-nificados e aquilo que parece alheio ao homem éapresentado numa antropomorfose, rompendo comos modos tradicionais de percepção e de julgamento,fazendo com que nosso olhar se modifique ou queaprenda ângulos novos. É preciso repensar o imagi-nado; é preciso que se tenha um novo olhar “sobreas importâncias” (BARROS, 2001, p. 35) da vida:

(............................................................................................................)Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheirados Andes.Achei o sabiá mais importante do que Cordilheirados Andes.

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O pessoal falou: seu olhar é distorcido.Eu, por certo não saberei medir a importância dascoisas: alguém sabe?Eu só queria construir nadeiras para botar nasminhas palavras (BARROS, 2001, p. 35).Em linguagem surrealista, isto pode ser traduzido

como o apego ao maravilhoso, à confrontação deformas que buscam criar realidades novas porintermédio da poesia, em que, segundo Alfredo BOSI,“A sensibilidade do poeta é ponte de ida e vinda pelaqual o homem se reconhece um ente da natureza eentra em empatia com o ciclo do nascer, morrer erenascer de todos os seres” (1996, p. 235).

Além desse gosto pelas miudezas que compõemo cosmos humano, o poeta também exercita onarcisismo poético: ao contemplar a natureza e recriarpoeticamente suas imagens, Manoel de Barrosprojeta sua própria existência no universo, nos planosespiritual e material, e, como Narciso, ele se voltasobre si mesmo e revolve seu interior em busca dainspiração, como em “O cisco”:

(...................................................................................)Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa decontemplação dos restos.E Barthes completava: Contemplar os restos énarcisismo.Ai de nós!Porque Narciso é a pátria dos poetas.Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturosempreste qualidade de beleza ao cisco.Tudo pode ser.Até sei de pessoas que propendem a cisco mais doque a seres humanos (BARROS, 2001, p. 12).

Essa fusão entre o eu-lírico e o objeto a que serefere pode ser observada também no poema“Miudezas”:

(.........................................................................)Caminho todas as tardes por estes quarteirõesdesertos, é certo.Mas nunca tenho certezaSe estou percorrendo o quarteirão desertoOu algum deserto em mim (BARROS, 2001, p. 39).É possível verificar que o poeta abre seus

sentimentos mais profundos de uma forma simples eampla, revelando seu substrato poético, num encontroconsigo mesmo em um amplo visível, sensível eacessível ao leitor.

Na segunda parte do Tratado Geral dasGrandezas do Ínfimo, temos “O Livro de Bernardo”

que, conforme já afirmamos, pode ser lido como aexpressão (inconsciente) do próprio poeta. Manoel deBarros reúne, em cinqüenta e duas estrofes, numeradascomo se fossem capítulos de um livro ou comoaforismos poéticos, os versos de Bernardo da Mata,que são verdadeiros “clarões” metafóricos, dentro daconcepção de Breton, nos quais o poeta reúne a idéiaao sonho, produzindo uma imagem que revela umsentimento único que se comunica com as veias doinconsciente, gerando metamorfoses do desejo e dosonho. O próprio Bernardo se dá a conhecer ao leitor.

1Os meninos me letram de Bandarra.(Bandarra é cavalo velho soltono pasto, às moscas.)Esse é meu estandarte (BARROS, 2001, p. 51).E como o cavalo velho e livre que já cumpriu sua

função na vida, Bernardo é um ser poético que dialogaconsigo mesmo, num canto de alegria inocente:“Passarinhos do mato/gostam de mim/e de goiaba”(BARROS, 2001, p. 53).

O mundo visível, natural, assim descrito, assume umparentesco espiritual com o sentimento humano.Bernardo assume ares de mito e, como tal, recriapaisagens de forma lúdica, amalgamadas aos elementoscósmicos. Nesse relacionamento com os objetos de seumundo, Bernardo exige ser (re) conhecido pelos acordosda palavra e pelos símbolos de seu próprio imaginário:“Palavras/Gosto de brincar com elas./Tenho preguiçade ser sério” (BARROS, 2001, p. 59).

Bernardo da Mata é enfocado antiteticamente àluz do grande que, na verdade, é ínfimo, ou vice-versa, dependendo exclusivamente do ponto de vistaque se adote. No desvelamento do personagem,percebemos a voz do próprio poeta que se transmutano momento mesmo da criação; é o demiurgo dapalavra e do ser, Senhor de/em seu universo:

Com a apresentação do perfil de Bernardo, pode-se concluir que, para o pantanal, o verdadeirohabitante é a pessoa que tem esses pressupostosmanifestados em Bernardo. Poder-se-ia dizer queBernardo é uma espécie de homem adamítico-pantaneiro, pois vive em estado de graça, emcomunhão com a vida efervescente e transmutante,que pulsa em qualquer região do pantanal, (...)pode ser que Bernardo, indiretamente, verdadeiropantaneiro, é que de fato seja o grande poeta(CASTRO, 1991, p. 45).Aqui, poeta e personagem são indissociáveis em

sua arte de poetar a (re) construção e a existência

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no pantanal, na Natureza,primando por uma linguagemsedutora e exuberante mediante aqual Bernardo-Barros podeafirmar plenamente sua liberdade:“Sou livre/para o silêncio dasformas e das cores” (BARROS,2001, p. 55). Ou: “Uma açucena/me convidou/para de noite”(BARROS, 2001, p. 61).

Ao convite da açucena, o poe-ta encerra as elucubrações deBernardo com uma promessa de(realização) sonhos e de desejo noar, como uma canção que reencontra no homem agênese do verbo capaz de transformar a palavra-sonho em palavra-magia que desnuda as grandezasdo ínfimo (?) humano.

5 - Consideraçõesfinais

Senhor do universo que re (cria), Manoel de Bar-ros/o poeta atribui uma variedade tão grande aos sig-nificados da natureza e do ser que é como se espe-culasse o próprio ato de existir, de estar-no-mundo.

Pela linguagem, o homem éum ser que se constitui nouniverso. A relação é indisso-ciável: o homem é a palavra e apalavra é o homem em suaessência. De posse desse saber,Barros, o poeta demiurgo, tem napalavra o núcleo que o apóia econcretiza sua criação poética aoextremo, onde sonho e loucura seentrelaçam numa perspectivaimagética encantadora, sedutora,desconcertante, surpreendente.

Por se tratar de um texto literário a poesiamanoelina oferece múltiplas possibilidades deleitura, inclusive dentro do próprio aspecto queselecionamos para a escritura deste artigo – osurrealismo na perspectiva do sonho. Porém,cremos haver atingido o objetivo a que nos pro-pusemos e contentamo-nos com a certeza de queuma leitura analítica não tem um fim em si mesma,mas é o pressuposto para a (re) formulação deuma nova pergunta, de uma nova idéia, pois, comoo próprio Barros adverte-nos, “A poesia estáguardada nas palavras – é tudo que/eu sei” (BAR-ROS, 2001, p. 19).

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Referências BibliográficasBARROS, Manoel de. Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BOSI, Alfredo (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996. (Série Temas; v. 59).

BRADLEY, Fiona. Surrealismo. Trad. Sergio Alcides. 2. ed. São Paulo: Cosac. & Naify, 2001.

CAMPOS, Haroldo de. Barrocolúdio transa chim? In: CESAROTTO, Oscar (Org.). Idéias de Lacan. 2. ed.São Paulo: Iluminuras, 2001.

CASTRO, Afonso de. A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância. Brasília: UNB;Campo Grande: UCDB, 1991.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

MENEGAZZO, Maria Adélia. Alquimia do verbo e das tintas nas poéticas de vanguarda. Campo Grande: UFMS, 1991.

PERRONE – MOISÉS, Leyla. Lautréamont. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção Encanto Radical)

ROSA, Maria da Glória Sá. Crônicas de fim de século. Campo Grande: UCDB, 2001.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos,prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Petrópolis: Vozes, 1997.

Pela linguagem,o homem é um serque se constitui

no universo.A relação é indis-sociável: o homem

é a palavra e a palavra éo homem em sua

essência.

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* Maria Celinei de SousaHernandes é especialistaem Letras (Área deConcentração: Teoria daLiteratura e Literaturasde Língua Portuguesa)Campus de Dourados/UFMS, sob orientaçãoda Profa. Dra. RosanaCristina ZanelattoSantos. Professora deLiteratura na rede deensino do município deTacuru – MS.

O objetivo deste trabalho é apresentar uma leitura do tempo e a suarelação com a imaginação das personagens no livro A casa damadrinha, de Lygia Bojunga Nunes.

Palavras-chave:tempo; "A casa da madrinha"; Lygia Bojunga Nunes;

literatura brasileira.

The aim of this work is to present a reading of the time and itsrelationship with the character s imagination in the book A casa damadrinha of the Lygia Bojunga Nunes

Keywords:time; "A casa da madrinha"; Lygia Bojunga Nunes;

Brazilian literature.

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mos como a autora utiliza-se deste recurso e, aomesmo tempo, aproxima-se de seu leitor ao re-presentar em sua obra uma “realidade relativa”próxima do mundo imaginário do público infanto-juvenil.

O jogo com o tempo e o espaço em A casa damadrinha é consoante com a dos romances moder-nos nos quais, segundo Rosenfeld, a cronologia e acontinuidade temporal foram abaladas e desfazem aordem cronológica, fundindo passado, presente e fu-turo (1969: 78)

O tempo interior instalado na obra é decorrentedo tempo filtrado pelas vivências psicológicas e sub-jetivas das personagens, transformadas em fator deredimensionamento e dissolução da rigidez do tem-po da história. Esse tempo interior é o referencialdo desgaste social e psicológico sofrido pelas per-sonagens e também funciona como mediador dasviagens imaginárias em busca da casa da madri-nha, lugar em que o tempo transforma-se emadjuvante das personagens, liberando-os da rigidezmarcada pelos compromissos com o tempo. Alémde Alexandre, outros amigos que ele encontra pelocaminho, de alguma forma, ligando-se a sua histó-ria central, também procuram pela casa: o Pavão,a Gata da Capa e Vera, a amiga que ele encontrano sítio.

Para Rosenfeld, o romance moderno assume arelatividade própria do mundo espacial e temporalonírico que se opõe ao mundo temporal e espacialposto como real e absoluto pelo realismo tradicio-nal e o senso comum. Na arte moderna, não se re-conhece a relatividade do mundo, apenas tema-ticamente, por meio de uma alegoria pictórica ou aafirmação teórica de uma personagem de roman-ce, mas pela assimilação desta relatividade à pró-pria estrutura da obra-de-arte e a visão de uma re-alidade mais profunda, mais real do que a do sensocomum, é incorporada à forma total da obra(Rosenfeld, 1969: 81).

Esta relatividade aparece em A casa da madri-nha1, romance de Lygia Bojunga Nunes, marcandoa passagem da infância para a adolescência, vividapela personagem Alexandre e espelha uma fase emque os valores sociais, e pessoais estão em transiçãoe, por vezes, são incongruentes. A estrutura de en-caixes de histórias, bem como em conseqüência osdemais elementos estéticos e estruturais presentesem A casa da madrinha espelham metaforicamen-te uma realidade que deixou de ser um mundo expli-cado e linear.

Para exemplificarmos esta característica de ro-mance moderno, no texto de Bojunga, abordare-mos o tempo ligado ao espaço, a fim de mostrar-

1. NUNES, L. B. A casa da madrinha. 4. Ed. Rio de Janeiro: Agir, 1986. Todas as citações de A casa da madrinha nestetrabalho serão feitas por esta edição.

Papéis: rev. Letras, Campo Grande, MS, v. 8, n. 15, p. 58-62, jan./jun. 2004

O TEMPO EM"A CASA DA MADRINHA":

UM LIMIAR ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO

Maria Celinei de Sousa Hernandes*

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A estrutura narrativa é construída por pequenasunidades textuais2 que se sucedem sem ordem cro-nológica, mas de acordo com os encontros edesencontros do tempo imaginário, que favorecem acomposição estilística e a unidade textual compostapelo encaixe das histórias dos vários personagens,que de alguma forma procuram pela casa para sedeliciarem dos prazeres que esta oferece.

Esta composição textual é tecida com a utiliza-ção de anacronias3 que inspiram, durante o texto umleque de motivações semânticas: caracterização re-trospectiva das personagens; reintegração aposteriori de eventos elididos e a dissolução dosenigmas textuais por meio de soluções retardadas.Com isso, o narrador propõe vários enigmas a seremdesvendados e deixa em suspense uma série de ex-plicações a serem elucidadas no decorrer daefabulação.

Com o entrelaçamento de marcas dos tempos reale imaginário acentua-se a atmosfera de mistérios,também causada pelas anacronias que simultanea-mente intrigam e dão pistas para a resolução dosenigmas apresentados em todo o texto: Quem é aGata da Capa? Por que o Pavão, às vezes, ficavatão esquisito? Por que alguém daria uma cortinalistada a uma família com fome?

A história central de Alexandre funciona comoum encaixe para todas as outras. Os fatos ocorridosdurante a viagem sucedem-se como lembranças deAlexandre e, por intermédio da sua reorganização,há uma reconstituição cronológica providencial paraque o leitor decodifique as anacronias e neutralize ossaltos temporais.

As marcas temporais se misturam, fazendo fluirno discurso uma temporalidade de limites imprecisosem que as ações transcorrem num constante para-lelismo entre imagens reais, imaginárias e tambémpsíquicas. O tempo espelha as formas relativas daconsciência das personagens.

Este paralelismo, num primeiro momento, causaestranhamento e uma aparente incoerência tempo-ral. No entanto, com as posteriores afirmações tem-porais e a consideração do tempo próprio do deva-neio, as supostas incoerências tornam-se plausíveis,visto que o principal traço do tempo trans-real é apermanente ausência de coincidências com as me-didas temporais objetivas. Para se chegar à casa da

madrinha, segundo seu irmão Augusto, seria neces-sário seguir toda a vida para encontrá-la:

– Não dá pra gente agora dar um pulinho lána casa da minha madrinha? – Não dá Alexandre é muito longe. (p. 46)O inverso acontece para retornar da casa da

madrinha, pois é fácil e rápido, uma vez que se esta-rá saindo do tempo-espaço do encantamento, con-forme podemos notar quando Augusto teve que sairrapidamente da casa quando estava com pressa:

(...) o relógio sambou cinco horas e aconte-ce que eu tinha que voltar pra casa às cincohoras em ponto. (p. 49)Estar na casa da madrinha significa vivenciar um

estado temporário da imaginação, que funciona comoalívio para os conflitos vivenciados pelas personagens.

Como Machado de Assis, em Memórias Póstu-mas de Brás Cubas, Lygia Bojunga Nunes trabalhao tempo num constante vaivém, com a diferença queo faz em lances menos extensivos, contando a histó-ria in médias res. Mesmo utilizando recursos literá-rios complexos, a autora mantém na superfície ex-terna da narrativa uma tênue linearidade cronológi-ca, por meio do deslocamento proporcionado pelaviagem para a inclusão de histórias no interior dahistória principal, sem causar rupturas bruscas nodesenrolar do enredo.

O narrador-observador instalado no enredo sabede tudo e de todos e descreve o íntimo das persona-gens: suas idéias, sensações, desejos e acontecimen-tos, conforme se passam em sua psique e não se-gundo a ordem do tempo cronológico. Trata-se dadescrição da vida interior, com suas incoerências eanacronismos em relação ao tempo do mundo exte-rior, que tem o papel de enraizar a ficção numa de-terminada realidade, tornando-a inteligível.

Durante as conversas entre Alexandre e suaamiga Vera, um conta ao outro suas histórias, massão sempre interrompidos pelos chamados da mãeda menina que indica que sempre é horário para fa-zer alguma coisa. O tempo marcado pela mãe torna-se para os dois um vilão da história:

– Vera!Vera estava tão dentro do papo com Alexan-dre que até pulou de susto quando ouviu amãe gritando no portão– Já tá na hora do jantar minha filha. (p.30)

2. Além da história central de Alexandre e a sua busca pela casa da madrinha, há outras histórias que se encaixam compondouma narrativa maior.3. São as diferentes formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa. (cf. GENETTE: 34)

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A expressão tão dentro dopapo sugere o envolvimento damenina com a conversa e o quan-to ela se desligava do universomarcado pelo tempo rígido da fa-mília, fixando-se ao tempo imagi-nário das histórias de Alexandre.

A maior preocupação da me-nina é em relação aos relógios,uma metáfora do mundo tido pelosenso comum como o real. A fa-mília de Vera vive em função dotempo marcado pelo relógio, tudo o que fazem émarcado para que não haja atrasos. Há tempo certopara tudo:

Vera levantou-se de repente.– Eu tenho que ir, já tô atrasada; eu disse praminha mãe que eu só vinha um instantinho.– Ah, fica mais.– Ela tá me esperando; me dá uma afliçãodanada quando eles tão me esperando.

(...)– (...) Minha mãe e meu pai têm mania de reló-gio. Olha, eles me deram esse relógio de na-tal. Grandão assim pra toda a hora eu verhora e não atrasar nunca mais. Tudo lá emcasa é marcado no relógio: almoço, lanche,jantar, hora de dormir, de estudar, de conver-sar, e a gente tem um relógio na sala, outro nacozinha, outro no quarto, tem um pequenini-nho no banheiro, a caminhonete do meu painão tem rádio mas tem relógio, e a minha mãe,em vez de relógio de pulso, tem relógio dededo assim feito anel. (p. 53)A relação de Vera com o espaço e o tempo é

uma das histórias encaixadas à história de Alexan-dre. Vera adora conversar com Alexandre e deixaenvolver-se pelo enleio do que ele conta, entra noespaço das histórias e esquece-se do tempo, numtempo-espaço imaginário, indiferente à progressãodos ponteiros do relógio do pai e da mãe.

Em uma das conversas que têm, em que ela dizque não poderá mais vê-lo por proibição dos pais queacham estranho um garoto estar viajando sozinho embusca da casa de uma madrinha, Alexandre a convidapara esquecer o mundo real e mergulhar no imaginá-rio, quando tampa o mostrador do relógio dela paraque possam viajar juntos até a casa em um cavalocriado pela imaginação de ambos. Assim ele a convi-da para viver o tempo mágico da imaginação, indife-rente ao tempo marcado pelos ponteiros do relógio.

Para manter algum víncu-lo temporal com os fatos exterio-res da vida de Alexandre, há mar-cação das horas pela presençade marcas temporais assinaladaspelas horas e espaços do dia.

Considerando Chevallier &Gheerbrant (2003: 877) ao afir-mar que tempo é uma categorialigada ao espaço, indissoluvel-mente, observamos que na casada madrinha, o relógio assume

outra conotação, devido ao espaço em que se en-contra, ele passa a representar o coração da casa,aquele que tem vida e se emociona com a chegadadas crianças. Neste espaço da imaginação, ele fogedo referencial temporal rígido e torna-se um adjuvantedas personagens, filtrando o tempo exterior à imagi-nação e tornando-o favorável aos desejos das crian-ças. O relógio da casa bate descompassado e gos-toso, uma metáfora de que a casa está em outrotempo, fora da dimensão da realidade conflitante emque vivia Alexandre e sua amiga Vera. Durante avisita das crianças há marcação do tempo somentepor meio das sucessões do dia: manhã, tarde e noite.

Assim que as crianças chegam à casa da madri-nha, o primeiro objeto que vêem é o relógio que ficalogo na entrada, sendo aquele que recepciona as vi-sitas, pois quando chegam a casa e chamam pelamadrinha, mas ela não aparece:

– Minha madrinha! Minha madrinha!Nada. Nada, não: o relógio grande, compri-do, de pé, batucava o tempo (gostoso mesmo).Eles ficaram parados na porta escutando obatuque, Alexandre olhava e olhava, e quasenão acreditava. (p.83)Após curtirem a casa, mar, a floresta e brincarem

o dia todo, Vera, Alexandre, o Pavão e a Gata da Capadormiram para descansar. Vera acordou sozinha eassustada, olhou para o relógio e percebeu que:

Ele [o relógio] mexia os ponteiros pra baixo epra cima, não parava em lugar nenhum, esta-va numa atrapalhação medonha. (p. 88)Durante a visita das crianças, o relógio da casa

fica descompassado porque se envolve com asembolações do tempo imaginário. O relógio de Verapára de funcionar, confirmando-nos que naquele es-paço não há lugar par a rigidez do tempo:

Vera olhou o relógio de pulso, tirou a folhaque tapava o mostrador [...]. Ela levantou

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Com o entrelaçamentode marcas dos tempos

real e imaginárioacentua-se a atmosfera

de mistérios, tambémcausada pelas anacro-nias que simultanea-mente intrigam e dão

pistas para a resoluçãodos enigmas...

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aflita, o coração batendo assustado, a quehoras o relógio tinha parado?Lembrou dos relógios todos de casa. Será quetinham parado também? Se não tinham, a mãee o pai deviam andar atrás dela. (p.88)Na confluência temporal, o tempo imaginário

prevalece, situando os acontecimentos fora darealidade, tornando-se assim, um ator adjuvante dascrianças que buscam sonhos e fantasias no imaginário.O relógio da casa fica em frente à porta de entrada,que não tem pressa para abrir, nem para fechar.Juntos e de acordo com suas disposições e modos

de agir, a casa, o relógio com relação ao tempo,tornam-se símbolos do amadurecimento essencial doser humano, que precisa acontecer pausadamente,conforme as conotações do tempo instalado na obra.

O tempo, neste texto de Lygia Bojunga Nunes,possui uma função dúplice e antitética: de um ladodá-nos a impressão de naturalidade, e seqüência bemordenada dos fatos, por outro instaura o universoinsólito da imaginação, sem limites precisos entre ummomento e outro, mas encaixando um dentro do outropor sucessivas vezes, conforme os encaixes dashistórias que formam o enredo total.

Referências BibliográficasCHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Vera Silva da Costa. 5 ed.Rio de Janeiro: José Olímpio, 1991.GENETTE,G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando C. Martins. Lisboa: Vega Universidade, [s.d.]HELD, J. O imaginário no poder: as crianças e a literatura. 2 ed. São Paulo: Summus, 1980.NUNES, B. O tempo na narrativa. 2 ed. São Paulo: Ática, 1995.NUNES, L. B. A casa da madrinha. 8 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1986.ROSENFELD, A. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto/contexto. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1969.

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Dissertação

MARCHA POR UMA LITERATURA

SUL-MATO-GROSSENSE:

O CONTO REGIONAL DE HELIO SEREJO*

A intencionalidade inscrita pela execução des-te trabalho foi a de apresentar uma visão, aindaque parcial, acerca da literatura sul-mato-gros-sense, caracterizada e substanciada a partir doestudo dos contos produzidos por Helio Serejo,cujos valores distintivos tornam a obra de relevân-cia para a compreensão da prática literária dessaregião.

Mediante a constatação de que a literatura pra-ticada na região apresenta-se (e)laborada de for-ma que dê conta dos principais aspectos que a tor-nam carregada por valores distintivos, compreen-deu-se que havia a necessidade de tentar enten-der quais eram esses pontos e qual sua importân-cia para o entendimento da literatura local: qual arelevância para o entendimento da literatura eles(os pontos) apresentavam? Quais as formas pos-síveis de se (bem) representar os valores distinti-vos da localidade? Ora, diante da impossibilidade,a priori, de se chegar a uma apreensão dessascaracterísticas e de se estabelecer um valor quefosse significativo a partir do estudo de apenasum autor, entendeu-se que seria necessário umacompreensão que partisse desde um entendimen-to da literatura como universal, cujos aspectospermitissem uma confrontação com a literaturapraticada nessa localidade, com base no que seriapossível o estabelecimento de uma comparação

*Dissertação defendida junto ao Programa de Pós-Graduação– Mestrado – em Letras da Universidade Federal de MatoGrosso do Sul. Campo Grande, 26 fev. 2004.**Mestre em Letras (área de concentração: EstudosLiterários). Orientadora: Profa. Dra. Rosana CristinaZanelatto Santos – DLE – CCHS

Cesar Luiz Oliveira Viegas**

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entre os valores distintivo-apro-ximativos, tanto quanto possível.

Tendo em vista alcançar osobjetivos propostos e/ou tentarresponder aos questionamentossugeridos, procurou-se estabe-lecer uma abordagem queabrangesse desde o que se com-preende como literatura, suasespecificidades, suas particula-ridades e seus valores, a fim dese tentar apreender os valoressociais, históricos e psicológicosque, possivelmente, possam estar compreendidosem sua apresentação.

Neste intuito, procurou-se determinar os prin-cipais pontos a serem observados, com o fito dese conseguir alcançar os principais valores repre-sentativos da literatura sul-mato-grossense, bemcomo estabelecer um padrão que fosse represen-tativo de um “regionalismo”, os quais tornam asobras produzidas dotadas de valor ímpar.

Como que a título de levantamento/comprova-ção/elucidação dos valores compreendidos comopróprios da literatura produzida em Mato Grossodo Sul, estudaram-se alguns contos do autor HelioSerejo, por cuja apreensão e apreciação foi possí-vel o estabelecimento de alguns dos aspectosentendidos como característicos da literatura pro-duzida nessa localidade. A literatura aí produzi-da, ainda que caracterizada como regional, cujoestereótipo pode levar a uma possibilidade de(in)compreensão de que seja dotada de valoresnem sempre bem aceitos, permite o entendimen-to de que sua elaboração, partindo de valores lo-calizados, é conseguida com base em aspectosque extrapolam os limites geográficos ou lingüís-ticos determinantes, o que agrega valor à obra.

Em sendo assim, procurou-se estabelecer acompreensão da literatura a partir dos valoresindicativos da existência de uma literatura, de cu-nho regional, sul-mato-grossense. Para essa com-preensão, fez-se necessário apreender e compre-ender os principais aspectos que a tornam de va-lor para o estabelecimento da existência de umaliteratura “regional”.

Por se tratar de uma região localizada a oeste,na fronteira – local situado à margem física, lin-güística, de ocupação tardia, entre outros motivos,é vista na situação de distanciamento das demais;

oeste também permite o enten-dimento da existência de umanoção de temporalidade diferen-te, atestada por sua gente, porseus fazeres e por modos de vida–, sua percepção permite a es-peculação de que os valores exis-tentes estejam à margem, sendotípicos da fronteira, local onde háuma mistura entre o próprio e oimpróprio, o nacional e o inter-nacional, o dentro e o fora. A li-teratura dessa região, cercada de

todos esses aspectos (e outros possíveis), faz-serelevante por apresentar valores distintivos que re-metem ao entendimento de que sua produção nãose restringe às particularidades próprias dolocalismo, mas permite a compreensão de que pos-sui atributos que vão para além disso.

Diante desta constatação, fez-se compreensí-vel a apresentação de aspectos como a relaçãoespaço-temporal existente, cujo entendimento épossível para a apreensão da relevância, bem comoda importância da fronteira para a literatura sul-mato-grossense.

Na possibilidade de compreensão de que essaliteratura pode apresentar-se com tendências ao pi-toresco, procurou-se estabelecer uma diferencia-ção entre o regional e o pitoresco. É constatávelque a produção literária está calcada sobre basesregionais, como a terra, as culturas (animais, vege-tais etc.), as gentes... Ora, o fato de o ser dessaforma não a desqualifica. Ao contrário, ao contem-plar esses aspectos, aproxima-se dos valoresdeterminantes e distintivos tão necessários ao esta-belecimento de uma obra literária.

Ao serem apresentados como aspectosdeterminantes e de vital importância para a cons-tituição e o entendimento da obra de Helio Serejo,a vida simples do homem, suas preocupações, seusdesejos, localizados espacial e temporalmente, porintermédio de passagens carregadas de valoreslocativos, tornam a obra individualizada, porém nãodesvalorizada.

A apresentação de locais e de personagens,com nomes e sobrenomes possíveis de serem re-lacionados a lugares e a pessoas que habitaramdeterminada localidade, permitem o entendimentode que teriam existido historicamente aquelas pes-soas, bem como poderiam ter acontecido os fatos

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Assim como a literaturapor vezes é concebida

como umarepresentação dasociedade, esta,

n’outras oportunidades,parece recriar osambientes e as

situações literárias.

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narrados. É diante dessa possibilidade que se cons-trói, principalmente, o grande foco da literatura deSerejo, “fingindo” ser realidade.

E não é somente isso. Junto dessa idéia deespacialidade e de personificação das gentes, estápresentificado e estabelecido o valor temporal, quetambém é um ponto de relevância na obra, poispor sua elaboração são determinados valores queremetem a um passado, momento este que servede tempo ficcional (possivelmente historiográfico),pelo fato de que o que é passado assume o estatu-to de verdade.

Não obstante esta forma de apreensão daobra, da realidade re(a)presentada por ela, pro-curou-se propor uma compreensão do entendi-mento da crítica literária acerca da literatura,desde sua compreensão como universal até oentendimento de sua prática regionalizada oulocalmente situada.

Com o fito de apresentar uma visão não defixação de pontos de vista, mas de diversificaçãode possibilidades de entendimento, os posicio-namentos dos críticos acerca da literatura sul-mato-grossense são apresentados a partir de sua(deles) compreensão, sejam eles autores de re-conhecimento (inter)nacional, sejam os que de-sempenham suas atividades numa área deabrangência mais local. Independentemente dequais sejam suas influências em relação à apre-ensão da obra, seu posicionamento se faz de ca-pital importância para o estabelecimento e a com-preensão da literatura “regional” sul-mato-grossense.

Nesse intuito, percebeu-se que a crítica literá-ria vai muito além de sua função institucionalizadae mercantilizada, ou seja, dizer se uma obra deveou não ser lida. A emissão de juízo, de pareceracerca de determinada literatura, só é possível apartir da observação de aspectos relevantes e dis-tintivos, capazes de fornecer subsídios que permi-tam ao crítico emitir uma atribuição de valor quan-to à sua relevância e à sua pertinência.

O crítico literário, em sua busca pela determi-nação dos aspectos de relevância para a obra, tentaalcançar os valores que a tornam de classificaçãodesta ou daquela forma. Note-se que há uma pos-sibilidade metodológica relacionada a cada obra.Isso é assim porque não há um modelo represen-tativo no qual determinada obra deva enquadrar-se, mas tantas possibilidades metodológicas de es-

tabelecimento ou de concepção quantas forem asobras.

Ao crítico literário, em sua tarefa, é permitidooptar por determinado caminho a trilhar. No de-sempenho de sua tarefa, cabe-lhe empreender umabusca por todos (quantos forem possíveis) os as-pectos que possam significar o diferencial entre oque é relevante no texto ou não. Como a determi-nação de valor pelo crítico, parte de uma concep-ção individualizada, poderá haver tantos modelose paradigmas quantos forem os críticos e as obras.

Assim como a literatura por vezes é concebidacomo uma representação da sociedade, esta,n’outras oportunidades, parece recriar os ambien-tes e as situações literárias. Tal situação aconte-ce porque há uma relação de interdependênciaentre essas duas instâncias. Enquanto por um ladoa literatura parece ser construída a partir de situ-ações “reais”, por seu turno, a realidade aparecetravestida de valores ficcionais. Essa possibilida-de de identificação entre essas duas instâncias sóé possível porque há a necessidade de que umaseja reconhecida na outra, no intuito de atribuiçãode valor mútuo.

Assim sendo, os críticos da literatura sul-mato-grossenses têm percebido os aspectos dis-tintivos das obras produzidas nessa região. Porsua observação, têm sido apontados pontos comoa importância exercida pela noção de fronteira,de identidade, bem como de outros valoresidentificadores da gente dessa terra. O fato deserem apontados e identificados esses valorespróprios dessa terra pela crítica, torna o exercí-cio da crítica literária um instrumento útil paraa identificação, a compreensão e para a aceita-ção do universo local como dotado de valor.

A possibilidade de identificação da realidadevivida com o universo ficcional vivenciado na obrapelas personagens, existe em face da forma comoela (a relação realidade/ficção) é apresentada pelonarrador, cuja função de apresentador, de conta-dor de fatos passados, de situações cujo estatutode elemento acontecido não permite a (des)-qualificação pela possibilidade de ser inverdade, ocredencia para tanto. Independentemente de queo que conta seja verdade ou não, o que interessa éo fato de que é quem narra, quem detém a pala-vra, a competência para contar, relatar os aconte-cimentos, que podem ter sido presenciados ou ima-ginados.

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Com vistas a destacar esta presença na narrativa– a do narrador –, tem-se como instrumento deanálise o gênero conto, representado pelo conjuntoda obra de Helio Serejo. Entendeu-se que sua obracontempla certos elementos compreendidos comoessenciais para o estudo e a identificação dosprincipais aspectos relevantes para o estudo daprodução literária local.

Para se chegar a esse fim, destacaram-se algunselementos identificadores do gênero conto, suagenealogia e suas particularidades, tudo visando aidentificar como são presentificadas as personagense as situações, bem como intentando compreenderqual a relevância da presença de nomes de pessoas,de lugares e de fatos para o estabelecimento danarrativa local.

Intencionalmente ou não, o narrador (de) Serejofaz-se presentificar na obra por intermédio da alu-

são explícita de “suposto” familiar. Essa forma deapresentação pode ser compreendida como umamaneira de dar credibilidade ao que está sendo apre-sentado ou, por outro lado, como uma forma de apre-sentar verossimilhança, o que denota uma preocu-pação em (bem) re(a)presentar as personagens, seuuniverso e suas particularidades.

Em sendo assim, diante da possibilidade de al-cançar as respostas necessárias à elucidação dospontos identificadores dessa literatura, a conse-cução dos resultados propostos para este trabalhoculminou na elaboração deste texto, no qual estásendo apresentada uma possibilidade (apenas) deentendimento da literatura sul-mato-grossense ede suas formas de apresentação, representação,importância e significação, sobretudo para seu(re)conhecimento como dotada de valor estético-literário.

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O PRESIDENTE DO CONSELHO EDITORIALda Editora da Universidade Federal de Mato Grosso doSul, em reunião ordinária realizada no dia 12 de dezembrode 2.002, no uso de suas atribuições regimentais contidasno Capitulo III, art. 15, inciso VI, anexo da resolução nº 16/02-COUN,

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Art. 1º - A Revista de Letras – Papéis, publicada pelaEditora UFMS, está aberta preferencialmente à comunidadeuniversitária e destina-se à publicação de matérias que peloseu conteúdo, deverão tratar de temáticas voltadas para otexto literário, para a lingüistica, para as questões culturais,para a arte de modo geral e outras em torno da área de Letras.

Art. 2º - A revista terá periodicidade semestral, poden-do ter tiragem diferenciada, estabelecida no Plano Anual deEditoração.

Art. 3º - O calendário de publicação da revista de Letras– Papéis, bem como as datas de fechamento de cada edição,são definidas pelo Conselho Editorial, de acordo com a Edi-tora UFMS.

Art. 4º - A Revista é dirigida por uma Câmara Editorial,composta por, no mínimo, 3 (três) nomes ligados à área deLetras, sob a presidência do seu representante no ConselhoEditorial.

Art. 5º - Os membros da Câmara Editorial serão indica-dos pelo Conselho Editorial, com periodicidade de 2 anos.

Art. 6º - A Editora UFMS publicará na Revista de Le-tras – Papéis os seguintes trabalhos:

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