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CB4D Ti ygfgfà* V H ^5 i - Compilado e editado por Michael D. Palmer

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O que uma mente influenciada pelo Evangelho pode produzir para a sociedade? Diversos autores analisam o pensamento cristão através dos séculos e a sua contribuição para a formação do pensamento ocidental. A ciência, a natureza humana, o trabalho, o lazer, a ética, a cultura, a política, enfim, cada ramo do conhecimento humano, não estão imunes à ação do Evangelho e são analisados neste livro.

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CB4D

Ti

ygfgfà* V H 5i - •

Compilado e editado por Michael D. Palmer

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Panorama do pensamento

CristãoCompilado e editado por Michael

D. Palmer

Prefácio de Russel P. Spittler

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REIS BOOK’S DIGITAL

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Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 para a língua portuguesa da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

Título do original em inglês: Elements o f a Christian Worldview Gospel Publishing House, Springfield, Missouri, USA Primeira edição em inglês: 1998 Tradução: Luís Aron de Macedo

Preparação de originais: Jefferson Magno Revisão: Alexandre Coelho e Kleber Cruz

Capa: Alexander Diniz Projeto gráfico: Daniel Bonates Editoração: Oséas Felício Maciel

CDD: Filosofia-201 ISBN: 85-263-0303-1

As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida, Edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrá­rio.

Casa Publicadora das Assembléias de DeusCaixa Postal 33120001-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Ia edição/2001

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Dedicatória

Para meus pais,Don eThelma Palmer,

que foram bem-sucedidos em me transmitir a fé e sempre me incentivaram para que eu buscasse a verdade,e para meu filho de 18

anos, Bradley Charley Palmer que, na época de sua morte trágica ocorrida

em 22 de novembro de 1997, já sabia profundamente muitos dos conceitos

centrais apresentados neste livro.

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Sumário

Introdução / 7 Prefácio / 11 Agradecimentos / 13 Lista de Colaboradores / 151. Panorama do Pensamento Cristão / 1 7

Michael D. Palmer2. O Rapei da Bíblia na Formação do Pensamento Cristão / 79

Edgar R. Lee3. Vozes do Passado: Tentativas Históricas para Formar um

Pensamento Cristão / 109 Gregory J. Miller

4. O Cristão e a Ciência Natural / 149Lawrence T. McHargue

5. Uma Perspectiva Sobre a Natureza Humana / 181Billie Davis

6. Trabalho / 223Miroslav Volf

7. Entrando no "Descanso Divino": Rumo a uma Visão Cris­tã de Lazer / 247

Charles W. Nienkirchen8. A Ética de Ser: Caráter, Comunidade, Práxis / 293

Cheryl Bridges Johns e Vardaman W. White9. Música que Vem do Coração da Fé / 325

Johnathan David Horton10. O Lugar da Literatura no Pensamento Cristão/ 351

Twíla Brown Edwards11. Os Cristãos e a Cultura da Mídia de Entretenimento / 391

Terrence R. Lindvall e J. Matthew Mellon12. Política para Cristãos (e Outros Pecadores) / 427

Dennis McNutt

Apêndice 1: Reflexões sobre os Significados da Verdade / 470 Michael D. Palmer

Apêndice 2: Jean-Paul Sartre / 487 Michael D. Palmer

Apêndice 3: Karl Marx / 489 Michael D. Palmer

Apêndice 4: A Música e o Espaço de Execução / 493

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ELEMENTOS DE UMA COSMOVISÃO CRISTÃ

Johnathan David HortonApêndice 5: A Música e o Estilo de Adoração / 497

Johnathan David HortonApêndice 6: C . K. Chesterton no Poder dos Contos

de Fada / 502Twila Brown Edwards

Apêndice 7: C. S. Lewis / 504 Twila Brown Edwards

Apêndice 8: Thomas FJobbes e a Teoria de Contrato de Justiça/506

Michael D. PalmerApêndice 9: John Locke e a Teoria dos Direitos

Naturais / 509Michael D. Palmer

Apêndice 10: Os Direitos/ 512 Michael D. Palmer

Apêndice 11: A Justiça / 516 Michael D. Palmer

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IntroduçãoMuitas palavras do vocabulário inglês (e também do portugu­

ês) vêm dos idiomas grego e latino. Palavras tão comuns quanto agenda ou exit (saída) vêm diretamente do tempo dos autores clás­sicos. Outras palavras, entretanto, entraram em nossa língua sem serem percebidas, provenientes de alguma outra cultura. Khaki (cáqui) é originária de um termo paquistanês. Bureau (agência, repartição) é francês puro. Corridor (corredor), palio (pátio) e plaza (praça) são termos espanhóis autênticos, e chocolate provém dire­tamente do dialeto asteca.

Cosmovisão, a palavra que define o ponto central deste livro, alcança a língua portuguesa como se também fosse um emigrante linguístico. O idioma alemão tem uma grande propensão para pa­lavras compostas. Só para dar um exemplo extremo, eis um termo alemão para tanque militar: Schutzengrabenzerstõrungsautomobil. Pelas mesmas leis do idioma, este é um sinónimo: der Panzer. A palavra “cosmovisão” junta lado a lado duas palavras equivalen­tes em português como tradução lite ra l do termo alemão Weltanschauung — termo com longa e nobre herança filosófica.

Inventado por filósofos alemães, Weltanschauung descreve um modo de ver o mundo. Alguém poderia supor que o mundo é uma ilusão; que as coisas não são reais. Outros poderiam dizer, como fazem os idealistas de todas os tempos, que existe mais coisas no mundo do que se pode ver. Outros ainda poderiam concluir que o mundo é inóspito e irremediável, levando ao desespero.

Em vez de aportuguesar Weltanschauung para a palavra “cos­movisão” , os linguistas teriam feito um favor aos povos de fala portuguesa sendo um pouco menos complicados. Traduzir Weltanschauung como “perspectiva” ou mesmo “atitude” não te­ria representado uma tradução longe do seu significado, a não ser pelo fato de que o termo técnico alemão refere-se especificamente à atitude da pessoa para com o mundo.

Que “mundo” ? As vastas extensões do universo estrelado? O pleno complemento das culturas humanas de nosso globo? Ou possivelmente o “mundo” que entra em nosso vocabulário medi­ante alguma pressão que alguém exerce de maneira incorreta e forçada sobre a Escritura? Ao usar essa palavra, a tradição filosó­fica alemã certamente tinha em mente o mundo material e o uni­verso invisível, o mundo visível e as galáxias que o nosso intelec­to é capaz de imaginar que existam. A noção que as pessoas têm da realidade constitui a cosmovisão delas.

Até onde sei, não há palavra bíblica que possa equivaler à pa­lavra “cosmovisão” . Porém encontramos nas páginas das Escritu­ras uma atitude normativa em relação ao mundo visível e invisí­vel. A li existe - ainda que os teólogos não façam muita conta dis­so - uma teologia do mundo.

A cosmologia é qualificada como um termo que descreve como

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

as pessoas pensam a respeito do mundo. Os astrónomos e cientis­tas usam o termo para definir uma ciência do universo distante. Os teólogos usam o mesmo termo para reunir doutrinas bíblicas relacionadas com a origem e o destino do mundo visível — cha­mado em grego (inclusive o grego do Novo Testamento) de cos­mo. (O termo “cosmético” obteve sua qualidade de beleza prove­niente da admiração grega da simetria deslumbrante dos céus.)

A outra palavra importante no Novo Testamento grego traduzida por “mundo” vai numa direção diferente. Oikoumenê descreve a soma total das culturas humanas. Considerando que esta palavra primeiro definia uma casa de fam ília, é fácil entender como veio significar sociedade organizada, levando, por um lado, à palavra “economia” e, por outro, à palavra “ecuménico” . Assim , as pala­vras bíblicas usadas para descrever o mundo foram tomadas de outros significados comuns. Mas neste livro só nos preocupare­mos em falar sobre uma teologia do mundo.

Detectei no Novo Testamento um uso duplo da idéia de mundo e como os cristãos deveriam vê-lo. Há uma visão joanina do mun­do — um sistema organizado de oposição humana, demoníaca até, e que peca contra Deus. Deste ponto de vista, segundo um grupo de passagens do Evangelho de João, das Epístolas de João e do Apocalipse, os verdadeiros crentes são aconselhados a “evitar o mundo” — o que pode ser chamado de “este mundo mal” , um setor da sociedade que acha-se em oposição à Igreja. Este é o mundo a evitar, a afastar-se, e sua existência torna necessária a nossa santidade (separação do mundo).

O outro elemento da idéia de mundo na Escritura é paulino. A visão de Paulo do mundo é mais sanguínea do que a de João. Essa diferença pode refletir as diferentes experiências de suas respecti­vas vidas. Tradicionalmente, João foi considerado um pescador rural; Paulo, como cidadão de Roma, um sofisticado e frequente viajante. Há, portanto, contrastes distintos nas atitudes de João e de Paulo em relação ao mundo. Nutridos pelas Escrituras judai­cas, ambos vêem Deus como o Criador de tudo o que há. Ambos encaram Deus como estando no controle de todos os aconteci­mentos humanos. Ambos sabem que o sistema mundial presente é passageiro, que logo passará. Ambos, junto com Pedro, esperam um novo céu e uma nova terra.

Porém, a diferença entre os dois jaz na opinião sobre o que fazer no campo da cultura humana neste tempo presente. João mal conse­gue achar alguma coisa boa no atual mundo de pessoas e coisas. Por outro lado, Paulo eleva sua retórica majestosa em louvor do controle de Deus sobre todo empreendimento humano, o que ele vê como reflexos manchados, mas autênticos, da imagem de Deus residente em toda pessoa e, por conseguinte, em toda cultura humana.

Claro que tanto João quanto Paulo levam em conta o pecado para fazerem a análise fundamentalmente correta da condição hu­mana falha. Ambos olham para as metáforas da transformação di-

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vina da biologia — novo nascimento, segundo nascimento, vinhas e podas, vida etema e coisa parecida. Paulo, treinado como advo­gado, prefere a linguagem judicial — culpa, julgamento, adoção, justificação, absolvição.

Os cristãos pensantes podem obter ajuda de Paulo e João. As maquinações da humanidade caída realmente agrupam-se nos bolsões da cultura humana — pornografia, leis injustas, trapaças sistemáticas nos negócios ou na educação, para nomear apenas algumas. Os cristãos de tradições arminianas, que ressaltam a li­berdade humana, parecem inclinar-se às obscuras visões do mun­do como algo a evitar, um reino do qual se separar. Tais idéias vagas foram teologizadas especialmente nos setores metodista, holiness e pentecostal da Igreja.

Porém, noções igualmente bíblicas sobre a cultura humana emergem dos escritos do apóstolo Paulo e aparecem em partes da Igreja afetada pela tradição reformada. Por exemplo, considere esta afirmação feita por Paulo num contexto de aconselhamento dado aos cristãos coríntios que se limitavam aos embaixadores favorecidos da verdade cristã: “Tudo é vosso: seja Paulo, seja Apoio, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, seja o presente, seja o futuro, tudo é vosso, e vós, de Cristo, e Cristo, de Deus” (1 Coríntios 3.21-23).

“Tudo é vosso” , a herança dos cristãos. Tudo da cultura huma­na: toda arte, toda música, todos os atos heróicos da abnegação, toda nobreza, toda compaixão. Nada foi omitido. Tudo pertence ao cristão. Os heróis da fé. O violinista mestre. Os fabricantes de filigrana de prata pura. O evangelista eloquente. Corrie ten Boom. Albert Einstein. Os bosques de tigre. Paulo, Apoio e Cefas: O Se­nhor não pretendeu que ninguém limitasse a receptividade a qual­quer uma das criaturas de Deus. Tudo é vosso: todas as pessoas, até todas as coisas.

O editor dos capítulos deste livro, e os próprios autores, forne­cem aqui recursos repletos de reflexão para que por meio deles possa ser construída uma cosmovisão de amplitude que mescle Paulo e João. Estas palavras sábias ajudarão seguidores pensati­vos de Jesus a saber o que evitar no mundo, do que se afastar. Mas também serão de ajuda na avaliação de tudo o que é bom na cultu­ra humana, e na consideração das reflexões coletadas das mais altas criaturas do Senhor que, embora manchadas e sozinhas entre todos os seres viventes, encarnam a imagem de Deus.

Recomendo este livro aos cristãos pensativos de todos os lugares, e especialmente aos adultos jovens que estão come­çando a aprender a considerar a imensidão e diversidade do mundo de Deus.

— Russel P. SlittlerReitor e Professor do Novo Testamento no Fuller Theological Seminary

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Prefácio do EditorO prefácio é frequentemente a parte menos lida de um livro.

Espero que este seja uma exceção, porque o objetivo deste livro e as preocupações filosóficas que o inspiraram estão explicadas aqui.

Conforme o título dá a entender, este livro considera certos componentes ou fatores — elementos, como os chamo — que cons­tituem uma cosmovisão. E um livro escrito por estudiosos cristãos destinado a cristãos que buscam respostas claras e sólidas às ques­tões fundamentais que estão a confrontá-los nos inúmeros aspec­tos da vida. Mais particularmente, foi escrito para todos os cris­tãos que se sentem intensamente confrontados por esses questionamentos. Alguns capítulos alicerçam-se em algumas dis­ciplinas académicas. Outros tratam de assuntos cotidianos da vida. E outros, ainda, concentram-se em fenómenos culturais.

Enquanto medito na distribuição dos capítulos e as ligações entre eles, a palavra mais descritiva que me vem à mente é monta­gem: quadros separados foram combinados para formar um qua­dro composto. Embora os capítulos sejam unidos uns aos outros de vários modos, cada um pode ser lido independentemente.

Conseqiientemente, o leitor procurará em vão por um único e contínuo argumento do princípio ao fim . Não se trata desse tipo de livro. Não obstante, ele exibe periodicamente certo tema recor­rente: a integração da fé, da aprendizagem e da vida. Integrar é coordenar ou misturar informações, fatos e conclusões num todo funcional e unificado. Integrar a fé, a aprendizagem e a vida signi­fica desenvolver para nós mesmo um modo completamente cris­tão de pensar e responder a assuntos e todos os tipos de situações da vida. Significa desenvolver uma perspectiva distintamente cristã em todos os assuntos da fé, todos os modos de investigação e to­das as profundas questões que a vida levanta.

A integração em sua expressão mais rica — pensar e agir de modo completamente cristão — não é nem facilmente alcançada, nem alcançada de uma vez por todas. De fato, é melhor não pen­sar nela como uma realização, absolutamente. E la é na verdade mais um processo que continua ao longo da vida à medida que refletimos no significado de nossa fé e intentamos permitir que isso molde nossas respostas a novas idéias e experiências.

Infelizmente, o que vemos com mais frequência que integração é alguma forma de justaposição. Justapor duas coisas é pô-las uma ao lado da outra. A interação entre elas pode ser real de certa ma­neira, mas o âmbito da interação total está limitado, e as duas nun­ca estão verdadeiramente unidas. O estudante de psicologia estará tão-somente justapondo sua fé e seu curso universitário se não pensar cuidadosamente sobre como suas convicções cristãs rela- cionam-se com as teorias da personalidade que ele está estudando em sala de aula. O jovem gerente empresarial está meramente jus­tapondo sua fé e sua profissão, se ele não permite que as implica­

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

ções morais do seu sistema cristão de convicção influenciem sua política de administração.

Em geral, justapomos (ou colocamos lado a lado) nossa fé e nosso curso universitário, ou nossa fé e nossa profissão, ou nossa fé e qualquer outro aspecto de nossa vida.

Quando falamos da fé fazendo evidente diferença sobre como pensamos e nos expressamos, queremos dizer mais que simples­mente poder declarar nossas convicções clara e sucintamente. A doutrinação pode alcançar esses resultados. Mas integração e dou­trinação não são a mesma coisa. A doutrinação busca a aceitação inquestionável de respostas desenvolvidas por outra pessoa, nor­malmente uma figura de autoridade, enquanto que a integração requer que descubramos para nós mesmos, mesmo que alguém nos ajude no processo. A integração, mesmo quando d ifícil e do­lorosa, promove a fé madura.

Com estas distinções em mente, apresso-me em observar que este livro é uma tentativa deliberada de dirigir-se àqueles a quem a doutrinação não é uma resposta aceitável para as grandes (e d ifí­ceis) questões da vida. E um livro que explora idéias, conceitos e princípios, alguns dos quais controversos e todos resistentes a res­postas fáceis. Presume uma medida de maturidade por parte do leitor. Além disso, pressupõe e encoraja uma abordagem integra­da aos assuntos de que trata.

O primeiro capítulo apresenta os elementos básicos de qual­quer cosmovisão. São, segundo minha concepção: 1) ideologia, 2) narrativa, 3) normas morais e estéticas, 4) rituais, 5) experiên­cia e 6) o elemento social. O restante dos capítulos lida, de uma maneira ou de outra, com aqueles seis elementos enquanto os ve­mos desenvolvidos numa cosmovisão cristã. Em cada caso, os autores dos capítulos se esforçaram por fornecer mais que infor­mação sobre suas respectivas disciplinas e campos de habilidade. Eles procuraram modelar o que significa pensar cristãmente — para verdadeiramente integrar a fé, a aprendizagem e a vida. É minha esperança que as palavras deles venham a servir de estímu­lo a muitos cristãos, para que vivenciem o significado de sua fé em cada aspecto de suas vidas.

— Michael D. Palmer Professor de Filosofia Evangel University

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AgradecimentosOs autores em geral isentam todas as pessoas que os ajudaram

da responsabilidade por quaisquer erros ou deficiências no texto. Porém, mesmo que os erros e as deficiências sejam meus, o crédi­to deles pertence a muitos amigos e colegas. Todos somos produ­tos do que as outras pessoas nos ajudaram a ser. Com relação a este livro, muitas pessoas ajudaram no processo — desde a for­mação da idéia in icial até a criação do produto final — e desejo reconhecer minha considerável dívida para com eles.

A junta diretora editorial da Logion Press merece crédito pela confiança depositada em mim para empreender este projeto, e pela paciência e apoio no processo. David Bundrick, presidente da junta quando este livro foi proposto pela primeira vez, trabalhou com afinco para assegurar que o projeto tivesse um bom começo. Dayton Kingsriter, que sucedeu Bundrick como presidente da junta dire­tora editorial, dedicou muitas horas a este trabalho. Agradeço-lhe pelo empenho como facilitador. Jean Lawson, editor administrati­vo, e Glen Ellard, editor de publicações, foram de grande auxílio, agradáveis e profissionais em todos os sentidos. Sou grato a Leta Sapp pelo design do lay-out e texto. Kim Kelley fez excelente trabalho coordenando o lay-out e design do livro. Desejo expres­sar agradecimento especial ao Dr. Stanley Horton, editor geral, pela atenção cuidadosa que deu aos vários desenhos de cada capítulo. Além do mais, desejo agradecer-lhe pelo apoio moral e paciência que me estendeu durante o desenvolvimento do livro. Acabei tendo pro­fundo afeto por ele como pessoa e considerável respeito por sua habi­lidade como editor. Trata-se de um homem em quem não há dolo — um cavalheiro no mais verdadeiro sentido da palavra — e considero um privilégio ter trabalhado com ele.

Que prazer foi trabalhar com os autores colaboradores! Seus escritos estimularam meu pensamento além de qualquer coisa que eu tivesse imaginado no início.

Localmente, a Evangel University tem sido um lugar maravi­lhoso para eu amadurecer como estudioso desde que cheguei no campus em 1985. Desde os primórdios deste projeto, o Dr. Glenn H. Bemet Jr., Vice-presidente para Assuntos Académicos, deu encorajamento para o projeto — e dinheiro! Ele tem sido o principal responsável por eu haver recebido subsídio do Fundo para Projetos dos Alunos/Faculdade da universidade que subscreveu as várias des­pesas associadas com o desenvolvimento do livro.

Muitos estudantes na Evangel University também contribuí­ram para a qualidade global deste livro. Durante duas sessões de verão (1996 e 1997), os estudantes de um curso de educação geral intitulado Filosofia Cristã leram as primeiras versões de alguns dos capítulos que aparecem aqui e fizeram comentários proveito­sos. Estou satisfeito por terem levado a sério meu convite para fazerem um comentário sobre todos os aspectos do manuscrito.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

Estou em débito com vários colegas que leram e teceram co­mentários sobre certos capítulos. Larry Dissmore, do Departamento de Música, fez comentários sobre o capítulo de música. Turner Collins, do Departamento de Ciência e Tecnologia, propôs nume­rosos comentários úteis no capítulo de ciência. Eu mesmo não poderia ter escrito meu principal capítulo sobre cosmovisão sem a ajuda generosa de Tw ila Edwards (Estudos Bíblicos) e James Edwards (Humanidades). Quando em certo ponto no desenvolvi­mento do capítulo cheguei a um impasse, eles dedicaram quase um fim de semana inteiro lendo o manuscrito e discutindo comigo numerosos assuntos organizacionais e substantivos.

Michael Buesking, do Departamento de Humanidades, produ­ziu virtualmente todos os trabalhos de arte no texto. Os esbo­ços do seu lápis me são fonte contínua de satisfação e orgulho. Sinto-me honrado por seus nomes aparecerem neste livro. Stan Maples, do Departamento de Humanidades, projetou a capa para o livro. Agradeço a Stan por sua paciência em ouvir minhas idéi­as para o design da capa e reconheço sua considerável habilidade em transformar minhas idéias imprecisas em imagens que pren­dem a atenção.

Aos meus colegas do Departamento de Estudos Bíblicos e F i­losofia, que me incentivaram para que eu empreendesse este pro­jeto e que me proporcionaram ajuda ao longo dele, expresso meus agradecimentos. Gary Liddle, cujas funções pedagógicas habitu­ais encontram-se nos estudos bíblicos, mas que é na verdade um generalista ao estilo renascentista, é o herói não aclamado por trás deste livro. Ele crê nos conceitos, entende-os de certa maneira melhor do que eu e, portanto, suas palavras tiveram peso especial nas conjunturas cruciais ao longo do caminho. Ele ofereceu análi­se extensa sobre vários capítulos. Suas perguntas eram investiga­doras e seus comentários muito prestimosos.

M inha esposa, Connie M arie , fo i e tem sido minha incentivadora e minha companheira favorita— no desenvolvimen­to deste livro, como em tudo o mais, sine qua non.

— M . D. P.

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Lista de ColaboradoresBillie Davis, Ed.D. (Administração & Sociologia, University of

Miami, Flórida), é Professor Emérito e ex-Cátedra do Departamento de Ciências Behavioristas da Evangel University, em Springfield, Missouri.

Twila Edwards, M.A. (Literatura Inglesa, Southwest Missouri State University), M A. (Literatura Bíb lica, Assemblies of God Theological Seminary), é Professora Associada de Estudos B íb li­cos na Evangel University, em Springfield, Missouri.

Johnathan David Horton, Ph.D. (Música, George Peabody College for Teachers), é Professor de Música na Lee University, em Cleveland, Tennessee.

Cheryl Bridges Johns, Ph.D. (Educação Cristã, Southern Baptist Theological Sem inary), é Professor Associado de Discipulado e Formação Cristã no Church of God Theological Seminary, em Cleveland, Tennessee.

Edgar R. Lee, S.T.D. (Teologia, Emory University), é Vice- presidente para Assuntos Académicos no Assemblies of God Theological Seminary, em Springfield, Missouri.

Terrence Lindvall, M.Div. (Fuller Theological Seminary), Ph.D. (Comunicação, University of Southern Califórnia), é Pro­fessor de Cinema e Estudos de Comunicação na Regent University, em Virginia Beach, Virgínia.

Lawrence T. McHargue, Ph.D. (B io logia, University of Califórnia, Irvine), é Professor de Biologia na Southern Califórnia College, em Costa Mesa, Califórnia.

Dennis McNutt, Ph.D. (Governo, Claremont Graduate School), é Professor de História e Ciências Políticas na Southern Califórnia College, em Costa Mesa, Califórnia.

J. Matthew Melton, Ph.D. (Regent University), é Cátedra de Comunicação e Letras na Lee University, em Cleveland, Tennessee.

Gregory J. Miller, Ph.D. (Estudos Religiosos — História do Cristianismo, Boston University), é Professor Associado de H is­tória Ec le siá stica no V alley Forge Christian College, em Phoenixville, Pensilvânia.

Charles W. Nienkirchen, Ph.D. (H istó ria , W aterloo University), é Professor de História Cristã e Espiritualidade no Rocky Mountain College em Calgary, Alberta, Canadá. Ele tam­bém serve como Professor Adjunto em faculdades de graduação de diversos seminários canadenses.

Michael D. Palmer, Ph.D. (Filosofia, Marquette University), é Professor de Filosofia e Cátedra do Departamento de Estudos B íb li­cos e Filosofia na Evangel University, em Springfield, Missouri.

Miroslav Volf, Th.D. (Teologia Sistemática, Eberhard-Karls Universitát, Túbingen), é Professor em Teologia do Henry B . Wright na Yale University, em New Haven, Connecticut.

Vardaman W. White, candidato a Ph.D. (Teologia e Ética, University of Iowa), vive e trabalha em Atlanta, Geórgia.

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1Panorama do pensamento

Cristão

Michael D. Palmer

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18 MICHAEL D. PALMER

Não é frequente ler um livro que me surpreenda, muito me­nos um que cause em mim uma impressão impactante. Mas fiquei surpreso e impressionado com o romance de Chiam

Potok, The Chosen (O Escolhido). No início do romance, Reuven, o narrador, confessa: “Durante os primeiros quinze anos de nos­sas vidas, Danny e eu morávamos a cinco quarteirões um do outro e nenhum de nós sabia da existência do outro” .1 Minha infância e primeiros anos de adulto foram passados numa cidade de tama­nho médio nas montanhas do Estado de Montana ocidental, Esta­dos Unidos, onde eu conhecia todos os vizinhos de vários quartei­rões em todas as direções. Assim , quando essa observação no li­vro de Potok, minha imaginação foi instigada. Descobri, enquan­to lia, que Reuven e Danny estavam impedidos de ser amigos, porque seus amigos mais chegados, fam ília e especialmente seus pais, tinham adotado cosmovisões competidoras. Observar a coli­são destas cosmovisões impressionou minha imaginação e mar­cou um ponto crucial em minha reflexão sobre as principais for­ças da convicção e do sentimento que animam minha própria cos- movisão cristã.

Dois Meninos, Dois MundosReuven Malter e Danny Saunders eram meninos judeus que

cresceram nos anos de 1940, em um bairro densamente povoado do Brooklyn. Até os anos da adolescência, não sabiam nada um do outro porque pertenciam a seitas diferentes, ou da mesma ra­mificação do judaísmo, com marcantes diferenças na cosmovisão. A fam ília e amigos de Danny eram judeus hassídicos, profunda­mente conservadores com origens na Rússia. Em sua vida cotidi- ana, comunicavam-se em iídiche e observavam certas práticas cul­turais que inequivocamente os identificavam como hassidim.

Por exemplo, os homens usavam chapéus pretos e casacos pre­tos longos, e cultivavam barbas fartas e cachos de cabelo pegados aos lados do rosto; os meninos usavam cachos de cabelo pegados

O hassidismo é um movimento judaico fundado na Polónia no século X V III por um homem chamado Baal Shem Tov. O nome “ hassidism o” deriva da palavra hassidim , que significa “os piedosos” . O movimento hassídico surgiu como reação às perseguições e ao formalismo académi­co do judaísmo rabínico. Desde seu início,

incentiva a expressão religiosa jovial por meio da música e da dança, e ensina que a pureza de coração é mais agradável a Deus do que a aprendizagem . Em 1781, os talm udistas declararam herético o hassidismo. Não obstante, o movimento continuou crescendo e hoje é uma presen­ça forte e vital na vida judaica.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 1 9aos lados do rosto e tinham franjas no lado de fora de suas calças compridas. A fam ília e amigos de Reuven, ao contrário, pratica­vam uma ortodoxia judaica menos conservadora. Em sua vida cotidiana comunicavam-se principalmente em inglês, usavam rou-

O iídiche é um idioma do alto alemão escri­to em caracteres hebraicos que se desenvolveu durante a Idade Média. A palavra “iídiche” é a forma abreviada de iídiche daytsh, que signifi­ca literalmente “judeu-alemão” . Os linguistas classificam o idioma como membro do grupo germânico ocidental, da subfamília germânica pertencente à família indo-européia de idiomas.

Antes do aniquilamento de 6 milhões de judeus pelos nazistas durante a década de 1940, o iídiche era a língua de mais de 11 milhões de pessoas. Embora não seja uma língua nacional, hoje o iídiche é falado no mundo inteiro por mais de 4 milhões de judeus, especialmente nos Estados Unidos, Israel, Argentina, Canadá, França, Mé­xico, Rússia, Ucrânia e Roménia.

pa americana comum e não tinham barba ou cachos de cabelo ao lado do rosto. Enquanto tanto os Maiter e os Saunders ansiavam pelo retorno dos judeus à sua pátria, suas ideologias ditavam ca­minhos muito diferentes para que isso acontecesse. O pai de Danny, o rabino Saunders, como outros na comunidade hassídica, asseve­rava que os judeus só poderiam voltar à sua pátria depois da che­gada do seu tão esperado Messias.

O pai de Reuven, por outro lado, juntava-se ao sionismo, um movimento ideológico que lutava para estabelecer o Estado de Israel. Além de diferirem sobre assuntos políticos importantes, os Saunders e os Maiter divergiam nas atividades cotidianas, como o

*7onáTorá quer dizer “ensinos” ou “apren­

dizagem” . Os judeus usam a palavra de duas maneiras relacionadas, mas distin­tas. Primeiro, Torá é o nome hebraico para o Pentateuco, os cinco primeiros livros da B íb lia. A Torá, ou Le i Escrita, que os ju ­deus ortodoxos acreditam que foi revela­da diretamente por Deus a M oisés no monte S in a i, estabelecia certas le is da moral e comportamento físico . Segundo, o nome Torá é usado num sentido mais

amplo para re­ferir-se a todos os ensinos do judaísm o , in ­c lu s ive toda a escritura hebrai­ca, o Talmude e qualquer outra in terp retação rabín ica geral­mente aceitada.

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entretenimento. Danny e Reuven nunca teriam se encontrado em um teatro, porque a cosmovisão do rabino Saunders proibia assis­tir filmes.

Tanto o ramo hassídico de Danny quanto o ramo ortodoxo de Reuven acreditavam em Deus e ressaltavam a importância da Torá. Não obstante, os hassidim viam o povo de Reuven com suspeita. Eles os chamavam de apikorsim, termo de zombaria usado para referir-se aos judeus que abandonavam as práticas culturais tradi­cionais e negavam certas doutrinas básicas da fé judaica, como a existência de Deus, sua revelação e a ressurreição dos mortos. Também dizia respeito aos judeus que liam a Torá em hebraico e não em Iídiche, um pecado imperdoável aos olhos dos hassidim, porque o hebraico era a língua santa. Usá-la em discurso comum de sala de aula era considerado uma profanação do nome de Deus.

Claro que o povo de Reuven não negava a existência de Deus. Porém, sua educação diferia de maneira notável da educação das crianças hassídicas. Enquanto a cosmovisão hassídica restringia a educação principalmente aos assuntos religiosos aprovados, a cos­movisão ortodoxa acrescentava à religião tais estudos como ciên­cia moderna e psicologia, tópicos profundamente suspeitos para o rabino Saunders.

No princípio da década de 1940, com o país completamente comprometido com os esforços da guerra, alguns professores de inglês nas escolas paroquiais judaicas (yeshiva) sentiram a neces­sidade de fazer uma declaração ao “mundo gentio” . Eles queriam mostrar que os estudantes yeshiva, conhecidos por seu estilo de

*7atwtudeA palavra Ta/mude quer dizer literalmente

“aprendizagem” ou “ instrução” . No judaísmo, é o nome de uma obra composta de duas par­tes: A Lei Oral judaica e os comentários rabínicos de acompanhamento. O texto da Lei Oral (escrito em hebraico) é chamado Mishná;

í o texto dos comentários rabínicos de acompa-

nhamento (escrito em aramaico) é chamado Gemara. A Gemara desenvolveu-se das inter­pretações da Mishná feitas por estudiosos ju ­deus (fariseus de c. 200 a.C. a c. 500 d.C .), cujos argumentos excessivamente minuciosos tornaram a obra fonte valiosa de informação suplementar e comentário.

vida repleto de estudos, eram fisicamente capazes como qualquer outro. Para fazerem isso, organizaram as escolas de bairro numa liga de softball, forma modificada de beisebol jogado com bola mais macia e maior. Como era de se esperar, os rabinos que ensi­navam nas yeshivas encararam o beisebol com ceticismo. Para eles, era um nocivo desperdício de tempo. Eles temiam seu forte apelo, temiam que seduziria os jovens a abandonar sua identidade judaica, temiam que faria com que os jovens quisessem assimilar as idéias e cultura americanas. Mas os jovens resolveram adotar o

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

jogo e enfrentar o preconceito de serem americanos. Para eles, uma vitória no beisebol entre as ligas “representou somente um valor menos significativo do que uma nota alta no Talmude” . O sucesso no beisebol permitiu-lhes considerar-se a si mesmos par­ticipantes plenos na vida da nação: “Foi uma inquestionável mar­ca do americanismo, e ser considerado um americano leal tinha se tomado cada vez mais importante para nós durante esses últimos dias da guerra” .2

Danny e Reuven encontraram-se pela primeira vez durante uma competição de beisebol entre suas duas escolas. Durante o jogo, o olho de Reuven ficou seriamente ferido, quando foi atingido por uma bola batida por Danny. A interação dos rapazes, inclusive sua consequente amizade depois do acidente, fornece base concreta para considerar o que significa manter uma cosmovisão. Também proporciona modelo proveitoso para refletir cuidadosamente e com precisão nas principais linhas de uma cosmovisão cristã. Na ver­dade, a história destes rapazes judeus merece consideração, por causa das importantes questões que evoca, pois são as mesmas que os cristãos enfrentam hoje: perguntas sobre Deus, sobre nós mesmos, sobre nossa comunidade, sobre o que podemos esperar, sobre o que temos de fazer.

Nas páginas que se seguem, exploraremos o que significa ter uma cosmovisão em geral, e em particular o que significa ter uma cosmovisão cristã. Quando tivermos terminado, disporemos de (como Danny e Reuven) uma avaliação profunda das questões e um melhor entendimento de como nossa cosmovisão pode perma­necer unida.

O que É uma Cosmovisão?Como definição inicial de nosso tópico, podemos dizer que

uma cosmovisão é um conjunto de crenças que a pessoa mantém. Contudo, nem todo conjunto de crenças forma uma cosmovisão. Alguns desses conjuntos são meramente coleções fortuitas ou sor­timentos estranhos de crenças. Ao olhar os livros numa estante em meu gabinete de estudos, identifico um chamado Triviata. Seu subtítulo descreve-o como Um Compêndio de Informações Inú­teis. Um amigo me deu o livro como uma brincadeira. As declara­ções desconexas dos fatos que ele contém seguramente não cons­tituem uma cosmovisão. As convicções numa cosmovisão perma­necem unidas, de certo modo coesas. Em vez de ser uma lista de idéias desconexas (um compêndio de informações inúteis, por as­sim dizer), estas crenças ajustam-se umas às outras de modo uni­ficado e formam um todo. Neste ponto, ninguém poderia encon­trar contraste mais forte do que entre a Triviata e o Talmude.

Na tradição judaica, o Talmude representa um esforço ao lon­go dos séculos feito por muitos comentaristas rabínicos para che­gar a uma interpretação unificada da Le i Oral judaica. Mesmo

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quando os rabinos diferem em suas interpretações da Le i Oral, eles continuam se empenhando na busca de uma interpretação unificada que não contenha nenhuma contradição.

No mínimo, uma cosmovisão é um conjunto de crenças que são consistentes entre si e que formam um ponto de vista unifica­do. Mas até esta descrição não é adequada. Por exemplo, um con­junto de crenças sobre geometria, outro sobre o equilíbrio do or­çamento nacional e outro sobre a navegação numa grande rede de computadores como a Internet podem exibir consistência e unida­de de perspectiva, mas nenhum destes conjuntos de crenças cons­titui uma cosmovisão. Isto é assim por pelo menos duas razões.

Primeiro, embora consistentes e unificados em seu ponto de vista, são bastante estreitos em seu enfoque e lidam principalmen­te com assuntos técnicos. Ao contrário, as crenças centrais de uma cosmovisão abordam interesses centrais ao significado da vida hu­

mana. Segundo, as crenças sobre geometria, a dívida interna ou a Internet têm poucas cone­xões diretas para as outras coisas em que acre­ditamos ou fazemos. O geômetra não tem de aplicar seu conhecimento para construir casas; uma teoria sobre o equilíbrio orçamentário na­cional pode muito bem nunca ver a luz do dia além da porta do economista que a desenvol­veu; saber como navegar na Internet não diz nada sobre que tipo de informação a pessoa

deve procurar ou compartilhar.Ao contrário, as crenças centrais de uma cosmovisão têm im­

plicações importantes para muitas outras crenças e práticas na vida diária. Na comunidade hassídica de Danny, por exemplo, crer em Deus afetou profundamente todas as outras crenças e práticas. Se­melhantemente, porque acreditavam que a Torá era a lei de Deus, os hassidim também acreditavam que deveriam reunir-se regular­mente na sinagoga para oração e estudo. Além disso, expressaram sua fé e lealdade comunitária por meio de seus rituais (ritos de passagem, como o bar mitzvah para os meninos), as roupas (cha­péus pretos e casacos pretos longos), aparência externa (barbas fartas e cachos de cabelo pegados aos lados do rosto) e práticas tradicionais (matrimónios arranjados pelos pais). Em resumo, as crenças centrais de uma cosmovisão não são estreitas em seu foco, mas tocam quase todas as outras crenças e práticas daqueles que mantêm-se fiéis à cosmovisão.

As questões enfrentadas por pessoas como Danny e Reuven na tradição judaica e por pessoas pensativas na tradição cristã são realmente questões sobre nossas crenças e práticas mais básicas. Quer estejamos cientes disso ou não, nossas crenças centrais e práticas formam um ponto de vista ou perspectiva que é distinta­mente nosso. Esta perspectiva distintiva constitui nossa cosmovi­são-, nossas várias crenças centrais e práticas são os elementos dessa

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Uma cosmovisão é um conjunto de crenças e práticas que moldam o

envolvimento da pessoa nos assuntos mais importantes da vida.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 23

cosmovisão. Uma cosmovisão é um conjunto de crenças e práti­cas que moldam a abordagem da pessoa aos assuntos mais impor­tantes da vida. Por meio de nossa cosmovisão, determinamos pri­oridades, explicamos nossa relação com Deus e com os seres hu­manos, avaliamos o significado dos acontecimentos e justifica­mos nossas ações.

Nossa cosmovisão também influencia as práticas mais comuns da vida cotidiana, inclusive os tipos de coisas que lemos e vemos, os tipos de entretenimento e atividades de lazer que buscamos, nossa abordagem ao trabalho e muito mais.

Quem Tem uma Cosmovisão?Qualquer pessoa capaz de considerar esse assunto tem uma

cosmovisão. O modo como falamos e agimos dá evidência que temos uma cosmovisão. Isto mostra que mantemos certas crenças, que adotamos determinado conjunto de prioridades, que certas histórias nos impressionam como particularmente eficazes e pro­váveis de mexer conosco, e que certas práticas e situações sociais têm importância especial para nós.

Claro que não é verdade que todas as pessoas que têm uma cosmovisão a possuem precisamente da mesma maneira. A cos­movisão de algumas pessoas só existe no sentido de que herdaram um conjunto de crenças e práticas de sua fam ília e comunidade imediata. Elas não entendem suas crenças e não alcançam o signi­ficado maior de suas ações. Acreditam e agem __________________de forma não crítica e ingénua em vez de um modo auto-reflexivo. Na grande maioria das vezes explicarão por que acreditam ou fazem algo, referindo-se às tradições da família, aos padrões da igreja ou à afiliação partidária po­lítica. Em resumo, elas só têm uma cosmovi­são no sentido de que outra pessoa a impôs nelas, e não porque elas refletiram cuidadosamente sobre as ques­tões importantes e escolheram sua cosmovisão.

Não é incomum para os indivíduos que tão-somente herdaram sua cosmovisão presumirem que as crenças e práticas de todo o mundo são semelhantes às suas. Não desafiados por qualquer ou­tro ponto de vista, eles podem tornar-se apáticos com relação ao seu próprio ponto de vista. Em meados dos da década de 60, numa canção intitulada “Nowhere Man” (O Homem de Nenhum Lu­gar), os Beatles capturaram o sentido da vida para aquele que cres­ceu indiferente à sua cosmovisão.3 De acordo com a letra da can­ção, o homem de nenhum lugar ocupa um lugar na terra de ne­nhum lugar fazendo planos sem sentido para ninguém. Ao que tudo indica, ele não faz a mínima idéia para onde vai. Talvez no ponto mais comovente da canção, ouvimos que o homem de ne­nhum lugar “não tem um ponto de vista” . A frase levanta pergunta

Quem tem uma cosmovisão? Todas as pessoas capazes de

considerar esse assunto.

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constrangedora: É possível não ter nenhum ponto de vista? Prova­velmente não. E mais provável é que o verdadeiro problema do homem de nenhum lugar não seja que ele não tenha literalmente nenhum ponto de vista. Seu caso é pior. Ele é indiferente ao único ponto de vista que lhe é familiar. Portanto, ele pode muito bem não ter um porque não tem nenhuma idéia para onde está indo

na vida.A descoberta de que nem todo o mundo

segue os padrões de crença e prática similares às suas próprias pode surgir como um desper­tar abrupto. Quando isso ocorre, dois tipos de reação são comuns. Algumas pessoas reagem defensivamente. Elas se retiram para trás dos dogmas memorizados e dos clichés familiares e geralmente adotam a posição de que não têm nada a aprender de estranhos. (Em The Chosen, os hassidim — particularmente os adolescen­

tes jovens — adotaram esta postura em relação aos judeus não- hassídicos.) Outras pessoas reagem com embaraço.

Ao compararem suas crenças ou práticas com as dos outros, as suas podem parecer sem importância, triviais ou ingénuas. Elas podem tentar menosprezá-las ou mesmo escondê-las quando interagem com estranhos. (Uma das questões que Danny enfren­tou quando foi para a universidade foi se deveria cortar seus ca­chos de cabelos e usar roupas que não o identificassem como ju ­deu hassídico.) Defesa e embaraço frequentemente são sinais de imaturidade. Indicam que o indivíduo em questão não está com­pletamente confortável com sua própria cosmovisão.

Estamos falando sobre o modo como as pessoas obtêm sua cosmovisão. Alguns indivíduos, já dissemos, meramente herdam sua cosmovisão. Aqueles que obtêm sua cosmovisão apenas por este meio limitado podem muito bem tornar-se apáticos ou indife­rentes a ela. Ou, se inesperadamente encontram alguém que tenha uma cosmovisão diferente, podem reagir defensivamente ou com embaraço. Por outro lado, uma cosmovisão pode ser obtida por escolha. Escolher, no sentido pretendido aqui, não significa sim­plesmente que a pessoa escolhe uma cosmovisão dentre várias opções disponíveis — como se fosse uma criança que escolhe um cachorrinho numa loja de animais domésticos.

Escolher também não significa que a pessoa rejeita a cosmovisão herdada. Escolher diz respeito a um processo deliberativo que é qua­se mais um estilo do que uma ação. Prontidão, consciência, auto- reflexão, estar presente nas alternativas — tudo isso significa o que se pretende dizer por escolha. Escolher significa que a pessoa não é lançada ao sabor do vento como os despojos que o mar da vida traz à praia. Como certo autor ressaltou: “Podemos não ser os capitães de nosso destino e os mestres de nossa alma, com capacidade total para controlar o ambiente que nos cerca, mas somos os capitães de nosso

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"Somos os capitães de nosso destino e os mestres de nossa alma

em nossa capacidade de decidir acerca da vida que levamos".

— Vincent E. Rush

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 2 5

destino e os mestres de nossa alma em nossa capacidade de decidir acerca da vida que levamos...”4 Em suma, o indivíduo que escolhe é o oposto do homem de nenhum lugar dos Beatles.

Toda pessoa capaz de refletir sobre as questões da cosmovisão já tem uma cosmovisão? A pergunta crítica é: Como afinal de contas se obtém essa cosmovisão. Obtê-la como herança da fam ília e da comunidade imediata pode ser uma boa forma de começar. Na verdade, esse é o modo como todo o mundo obtém uma cosmovi­são. Mas em certo sentido importante, uma cosmovisão herdada ainda não é inteiramente da pessoa. Tê-la inteiramente como sua— vivenciá-la com convicção e acreditar nela com entendimento— requer que o indivíduo a escolha. Aquele que escolhe uma cos­movisão tomando-a uma questão de escolha deliberada e reflexi­va não ficará apático ou indiferente a ela. Nem é provável que tal indivíduo se porte defensivamente ou fique envergonhado com ela. Finalmente, aquele que escolhe uma cosmovisão está melhor posicionado para avaliar as deficiências de sua própria cosmovi­são e para aprender de outras cosmovisões.

‘Deâ&uçâa de ‘r¥oCme& de uma,Nas últimas décadas, os cristãos têm en­

frentado tremendos desafios intelectuais em várias frentes. E o menor deles certamente não é o de enunciar uma cosmovisão que sir­va para as doutrinas centrais da fé do cristi­anismo e ao mesmo tempo funcione adequa­damente como resposta aos desenvolvimen­tos contemporâneos da ciência empírica, da teoria moral, das artes e da filosofia. Um dos líderes em enfrentar este desafio desde a se­gunda metade do século X X tem sido o filó­sofo Arthur Holmes. No trecho apresentado a seguir, Holmes oferece um resumo dos principais critérios de uma estmtura intelec­tual que pode de maneira justa ser chamada de cosmovisão.

“Uma cosmovisão global apresentará as seguintes características:

1. Tem uma meta globalizada, buscando ver cada área da vida e do pensamento de uma forma integrada.

2. E uma abordagem sob um determina­do aspecto, versando as coisas de um ponto de vista previamente adotado que agora pro­porciona uma estrutura integrada.

3. É um processo exploratório, sondan­do a relação de uma área após a outra para a perspectiva unificada.

4. É pluralista no sen­tido de que a mesma pers­pectiva básica pode ser enunciada de maneiras um tanto diferentes.

5. Tem resultados de ação, pois o que pensamos e o que avaliamos guiamo que faremos.”

Este trecho é um excerto de The Making of a Christian Mind, A Christian World View & the Academic Enterprise (A Estrutura de uma Mente Cris­tã, Uma Cosmovisão Cristã e o Empreen­dimento Académ ico). Downers Grove, Illin o is : InterVarsily Press, 1985, p. 17. Outras obras notáveis de Holmes são AI.I Truth is God’s Truth (Toda Verdade é a Verdade de Deus) e Contours o f a Christian Worldwide (Contornos de uma Cosmovisão Cristã).

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Elementos de Uma CosmovisãoUma cosmovisão bem desenvolvida fornece tipicamente um

amplo quadro das preocupações essenciais da vida. Portanto, uma cosmovisão bem desenvolvida evidencia em geral certos compo­nentes ou elementos essenciais. Na ciência como a química, um elemento é uma substância fundamental que consiste em átomos de um só tipo. Usamos a palavra elemento deste modo quando falamos de elementos químicos, como o hidrogénio ou o hélio da tabela periódica. Na matemática um elemento é um membro bási­co de uma questão matemática ou lógica. Na fé cristã, usamos a palavra elementos (plural) para nos referirmos ao pão e ao vinho associados com a memória da última ceia de Cristo.

Entretanto, dentro do contexto de falar sobre cosmovisão, um elemento é mais como um aspecto definível de como os seres hu­manos explicam e praticam o que acreditam. Uma cosmovisão bem desenvolvida mostra caracteristicamente pelo menos seis ele­mentos distintos.5 Podem ser descritos sucintamente da seguinte forma:

1. Ideologia. O elemento ideológico de uma cosmovisão con­siste em crenças centrais. Estas crenças normalmente são expres­sadas de uma maneira formal e precisa, como nas proposições fi­losóficas, declarações de credo, fórmulas autorizadas ou doutri­nas. A ideologia de uma cosmovisão também é geralmente ex­pressada de um modo sistemático, significando que algum esfor­ço é feito para assegurar que as declarações chaves sejam consis­tentes entre si. Em The Chosen, o rabino Saunders ensinou a Danny as ideologias do hassidismo mediante estudo intensivo do Talmude.

2. Narrativa. O elemento narrativo de uma cosmovisão reconta certos eventos significativos da história daqueles que mantêm a cosmovisão. Em alguns casos, as narrativas também tratam de eventos futuros. As narrativas podem ser sobre muitas coisas, por exemplo, uma pessoa famosa, a fundação de um povo ou nação, o começo do mundo ou a interação de alguém com Deus ou com práticas religiosas. Com frequência, os narradores expressam es­ses eventos em escritos sagrados, mitos, contos históricos, históri­as, lendas ou até na letra de um hino.

As vezes, os artistas também representam temas narrativos em pinturas ou outras formas de arte. Se a ideologia expressa crenças centrais em linguagem precisa e formal, as narrativas expressam crenças centrais pelo exemplo, imagem, símbolo ou metáfora. As histórias bíblicas de Abraão, Isaque e Jacó são centrais para a cos­movisão hassídica.

3. Normas. Uma norma é um padrão de algum tipo. Quando se trata de uma cosmovisão, dois dos mais importantes tipos de nor­mas são as normas morais ou éticas e as normas estéticas. As nor­mas estéticas proporcionam base para a tomada de decisão sobre o que é bonito, agradável ou sublime.6 As normas morais estabe­

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 27lecem exigências para a conduta correta, estipulam nossas res- ponsabilidades e geralmente nos explicam que tipo de pessoa de­vemos ser. Em The Chosen, o lugar das normas morais no judaís­mo emerge vigorosamente em certo ponto, quando Danny visita Reuven no hospital logo depois de ferir-lhe o olho. Com raiva de Danny, Reuven a princípio recusa-se a falar, mas depois explode: “Vá para inferno e leve junto esse seu grupo esnobe de hassidim” . Quando o senhor Malter fica sabendo da atitude indelicada de Reuven, diz: “Você fez uma coisa tola, Reuven. Lembre-se do que diz o Talmude. Se alguém vem se desculpar por tê-lo ferido, você tem de ouvi-lo e perdoá-lo” .7

Estes três elementos de uma cosmovisão — ideologia, narrati­va e normas — formam um complicado padrão de crenças. Con­tudo, este padrão não existe meramente na teoria. Ele se torna vital e dinâmico no contexto da experiência e da prática. No juda­ísmo ortodoxo, por exemplo, as crenças acerca de Deus (ideolo­gia) não são meros conceitos sobre alguma deidade neutra e dis­tante considerada como o Mestre do Universo.8 E le é um ser que é ativamente adorado. Os hassidim retratados em The Chosen oram a Ele nas sinagogas do bairro e falam sobre Ele nas casas, ruas e lojas. Sua influência é sentida em todas as facetas de suas vidas, porque eles acreditam que são seu povo escolhido. A história (nar­rativa) que eles recontam sobre os atos de Deus na história do povo deles é célebre e representada de novo em certos rituais, como aqueles associados com a Páscoa e o Hanuká. As narrativas cen­trais juntamente com os rituais tradicionais evo­cam intensas experiências para o crente.

4. Ritual. Um ritual é um ato cerimonial executado periodicamente em ocasiões espe­ciais. E projetado a representar novamente ou recordar um acontecimento especial. Um ritu­al pode ser sombrio ou festivo, formal ou in­formal. Em todo caso, os rituais proporcionam uma ocasião para se refletir no significado das crenças centrais do indivíduo e evocam uma resposta afetiva a essas crenças. Ambas as funções são tencionadas a integrar os pa­drões de crença no trama da vida interior e no caráter da pessoa. Por exemplo, observar a Páscoa envolve celebrar e, de certo modo, reviver a libertação dos hebreus da escravidão egípcia descrita no Livro de Êxodo.

5. Experiência. Quando falamos do elemento experiencial de uma cosmovisão, queremos dizer o modo como alguém se dá con­ta vivamente das verdades expressadas nas crenças centrais. As crenças já não parecem abstratas e distantes. Ao invés disso, tor­nam-se imediatamente presentes. Os hassidim são famosos por nutrir experiências altamente místicas e pessoais.

6. Elemento Social. As crenças centrais de qualquer cosmovi­são evaporarão como a névoa ao sol da manhã, se não estiverem

Estes três elementos de uma cosmovisão — ideologia, narrativa e normas — formam um complicado

padrão de crenças.

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embutidas numa situação social. Isto é assim porque a situação social fornece as estruturas organizacionais e outros meios que permitem que as crenças sejam perpetuadas de uma geração para outra. Uma das características mais notáveis de The Chosen é o modo como Potok fornece insight na vida comunitária hassídica. Cada seita hassídica tinha seu próprio rabino, sua própria sinago­ga e yeshiva, seus próprios costumes, suas próprias lealdades fer­renhas. Em um comentário bastante expressivo sobre a vida na comunidade, Reuven diz: “Em um sábado ou manhã festiva, os membros de cada seita podiam ser vistos caminhando para as suas respectivas sinagogas, vestidos com seus trajes particulares, ansi­osos para orar com seu rabino particular e esquecer o tumulto da semana...”9

Comentamos anteriormente que uma cosmovisão é um con­junto de crenças e práticas que moldam a abordagem de uma pes­soa para as mais importantes (e muitas outras) questões da vida. Todo mundo, dissemos, tem uma cosmovisão. Também fizemos uma descrição breve de seis elementos mais importantes de uma cosmovisão. A seguir, examinaremos estes seis elementos com mais detalhes em preparação à descrição de uma cosmovisão cristã.

O Elemento IdeológicoAs cosmovisões geralmente surgem da experiência e das nar­

rativas que exemplificam e desenvolvem-se nessa experiência. Mas as experiências variam de uma pessoa para outra, e as narrativas por sua própria natureza prestam-se a múltiplas interpretações. Por estes motivos as cosmovisões comumente desenvolvem um con­junto de declarações autorizadas que constituem seu elemento ide­ológico. Estas declarações formam uma estrutura central, ou sis­tema, para explicar a realidade. Já nos referimos a elas como cren­ças centrais. Por exemplo, o judaísmo ortodoxo expressa diversas crenças centrais, entre elas: Há um só Deus, Deus criou o mundo, Deus está ativamente envolvido na história. Estas crenças essenci­ais são parte do elemento ideológico do judaísmo ortodoxo. Estas doutrinas (e outras importantes) explicam a natureza de Deus e sua relação com o resto da criação, inclusive os seres humanos.

F u n ç õ e s G e r a is d a I d e o l o g ia

O elemento ideológico de uma cosmovisão exerce diversas funções. Uma dessas função é trazer ordem e coerência à vasta série de dados proporcionados na experiência. Superficialmente, as coisas que vivenciamos parecem não ter nenhuma relação uma com outra. Além disso, as experiências de uma pessoa afiguram- se não ter conexão com as de outra pessoa, especialmente se a outra pessoa mora em outro país ou se viveu no passado. Mas a ideologia pode fornecer um senso de ligação entre eventos apa­rentemente discrepantes e entre pessoas separadas geograficamente

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 29e pelo tempo. Este ponto é vividamente notório na ideologia do judaísmo. Durante o tempo em que Moisés estava procurando as­segurar a libertação dos hebreus, as pragas que sobrevieram aos egípcios não eram catástrofes simplesmente fortuitas e isoladas. Faziam parte de um destino maior: A obra de Deus nos eventos históricos. O judaísmo também nutriu sempre um forte senso de identidade do seu povo. Os judeus não são meros indivíduos isolados, mas membros de um povo histórico. Os Livros da Le i os lem­bram desta conexão histórica com seus ante­passados. No Livro de Deuteronômio, quando Moisés está a ponto de pronunciar os manda­mentos de Deus, ele diz: “O SENHOR, nosso Deus, fez conosco concerto, em Horebe [mon­te Sinai]. Não foi com nossos pais que fez o SENHOR este concerto, senão conosco, todos os que hoje aqui estamos vivos” (Deuteronômio 5.2,3). Os indivíduos a quem estas palavras foram ditas não estavam presentes quando o concerto foi feito em Horebe. Não obstante, o concerto é válido para eles em cada detalhe tanto quanto o era para seus antepassados, porque eles são parte de um povo escolhido por Deus desde tempos imemoriais. Em resumo, uma função da ideologia é trazer ordem e coerência à experiência.

Uma segunda função é fornecer base para avaliar os valores, os insights e as declarações de conhecimento dos outros. Tem ha­vido poucas épocas na história humana em que os partidários de qualquer determinada cosmovisão viveram uma geração inteira, ou mesmo várias gerações, sem encontrar pessoas cuja cosmovi­são diferia radicalmente da deles. Mesmo os mais isolados povos ocasionalmente interagiam com estranhos. No ponto do fato his­tórico, a maioria dos povos interagia com estranhos de maneira frequente e diversa, desde o comércio à guerra e à troca cultural.

Sempre que ocorre interação entre uma pessoa e outra, a per­gunta surge naturalmente: Como iremos avaliar e dar sentido àquilo que estas pessoas (os estranhos) dizem e fazem? A ideologia da cosmovisão do indivíduo fornece uma estrutura de referência para responder à pergunta.

Quando Daniel e outros membros jovens da nobreza judaica foram levados cativos para a Babilónia no século V II a.C ., eles mantiveram sua identidade, enfrentaram e venceram a cosmovi­são de seus captores, em parte porque estavam bem fundamentos em sua própria cosmovisão. Eles julgaram o que era bom e mau, certo e errado, proibido e permitido. Mas sem uma compreensão clara das crenças centrais de seus captores, eles facilmente pode­riam ter sido assimilados pela vida e cultura babilónicas.

Uma terceira função do elemento ideológico é definir a comu­nidade. Em outras palavras, a ideologia ajuda a separar as pessoas íntimas dos estranhos, aqueles que pertencem ao grupo daqueles

As cosmovisões comumente desenvolvem um conjunto de declarações autorizadas que

constituem seu elemento ideológico.

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que não pertencem ao grupo. Em cada cosmovisão, as crenças tipicamente aceitas por aqueles que mantêm-se fiéis à determina­da cosmovisão formam uma estrutura, um esqueleto, que dá for­ma ao mundo como percebidas pelos membros da comunidade. Enquanto normalmente há alguma abertura em como interpretar e aplicar as crenças centrais, qualquer um que estira demasiadamente os limites arrisca ser separado da comunidade. Grandes diferen­ças nas crenças centrais não podem em geral ser toleradas indefi­nidamente.

Considere, por exemplo, que os cristãos da Igreja primitiva eram judeus. Uma profunda divisão ideológica aconteceu quase que imediatamente dentro do judaísmo, porque os seguidores de Jesus declararam que Ele era divino e igual a Deus — uma noção ideológica inaceitável para os judeus ortodoxos.

C o n t e ú d o I d e o l ó g ic o G e r a l

As cosmovisões que de outra forma diferem uma da outra em seu conteúdo específico — mesmo aquelas que são radicalmente opostas uma a outra — mostram uma semelhança interessante no modo como desenvolvem seu conteúdo ideológico em geral. Em outras palavras, as cosmovisões tendem a falar sobre tópicos se­melhantes. Por exemplo, as cosmovisões naturalistas (como o existencialismo ateísta marxista) e as cosmovisões teístas (como o judaísmo ou o cristianismo) divergem em muitos pontos impor­tantes. Elas são tão diferentes em alguns pontos que entram em conflito uma com a outra, às vezes até se contradizem. Não obstante, falam sobre tópicos similares. Por exemplo, ambas ex­pressam visões ideológicas sobre o que existe e ambas fazem as- severações sobre a natureza humana. Vamos examinar estes tópi­cos mais de perto.

~ j O alemão K a rl M arx (1818-1883) foi o filósofo social e revolucionário que viveu e escreveu na plenitu­de da Revolução Industrial do século X IX . E le e Friedrich Engels são conside­rados os fundadores do mo­derno socialismo e do comu­nismo. Com Engels, ele es­creveu o Manifesto Comunis­

ta (1848) e outras obras que quebraram a tra­dição de teoristas como John Locke, que

apelava aos direitos naturais para justificar a reforma social. Marx invocou o que acre­ditou ser as leis da história que inevitavel­mente levariam ao triunfo da classe operá­ria. Marx foi exilado da Europa depois das revoluções de 1848. Em sua monumental obra O Capital (3 volumes, 1867-1894), a qual foi escrita quando ele morava em Lon­dres, Marx apresentou uma crítica cortante à teoria económica capitalista e desenvolveu uma teoria económica própria.

Para mais informações sobre Marx, veja o Apêndice 3, “Karl Marx” , no fim deste livro.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

T e o r ia d e F u n d o s o b r e o q u e E x ist e

As declarações ideológicas gerais sobre o que existe constitu­em o que podemos chamar de teoria de fundo sobre a natureza do universo. Uma teoria de fundo aborda pelo menos três tópicos: o cosmo, Deus e a história.10

O Cosmo. A expressão cosmo foi usada pela primeira vez pe­los gregos antigos para referir-se a algo formoso e sistematica­mente organizado — como as linhas numa tapeçaria. O oposto de cosmo era o caos ou a desordem. Desde então, os gregos usaram o termo para descrever o arranjo ordenado e harmonioso das estre­las e dos planetas como apareciam no céu à noite. Hoje, o signifi­cado do termo foi ampliado para incluir não só a harmonia dos corpos celestiais, mas o universo em geral — literalmente, tudo o que existe.

Inclui as coisas que prontamente vemos como também as coi­sas difíceis de se ver, por exemplo, os elétrons. Também inclui coisas que não podemos ver de jeito nenhum, mas que podemos apenas pensar nelas, como números, conceitos, leis da natureza. Apesar destas mudanças em seu uso nos tempos modernos, o ter­mo cosmo ainda levanta questões que os gregos antigos pondera­vam. Se os corpos celestiais no céu à noite estão distribuídos de um modo ordenado e harmonioso, o que explica essa ordem e har­monia? Alguém ou algo os organizou de acordo com algum plano, ou sua aparência é só produto do acaso?

Uma cosmovisão naturalista é aquela que nega que qualquer evento ou objeto tenha algum significado sobrenatural. As moder­nas cosmovisões naturalistas asseveram que leis científicas ou princípios são adequados para explicar todos os fenómenos, tais como o arranjo dos corpos celestiais e o movimento dos elétrons. Uma cosmovisão teísta, por contraste, é aquela que adota a idéia de que poderes sobrenaturais desempenham um papel no desdo­bramento dos eventos. Portanto, as cosmovisões teístas de hoje rejeitam a reivindicação de que as leis científicas em si podem explicar o mundo e a nossa experiência dele. O marxismo e o existencialismo ateísta são exemplos de cosmovisões naturalistas. O judaísmo, o islamismo, o hinduísmo e o cristianismo são exem­plos de cosmovisões teístas.

Deus. É bastante óbvio que nem todas as cosmovisões reco­nhecem a existência de Deus. Entretanto, todas as principais cos­movisões afirmam, ou pelo menos implicam, uma posição relati­va à existência dEle. O judaísmo, o islamismo e o cristianismo como cosmovisões teístas têm muito a dizer em suas declarações ideológicas, doutrinárias, sobre a existência de Deus, seus atribu­tos, suas atividades. Como era de se esperar, o marxismo, como cosmovisão naturalista, tem menos a dizer sobre Deus. Não obstante, não ficou calado no assunto nem é neutro. O próprio Marx negava a existência de Deus. De fato, ele é famoso por ter declarado que a religião é “o ópio do povo” , querendo com isso

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afirmar que a vida de fé é enganosa e ilusória: Não oferece espe­rança alguma para resolver os problemas existenciais, e só é bem- sucedida em encobri-los temporariamente.

A História. Toda importante teoria de fundo do universo tam­bém afirma ou implica algo sobre a história em sua ideologia. As cosmovisões teístas enfatizam a obra de Deus no fluxo da histó­ria. Elas destacam o modo como Deus usa as pessoas e os aconte­cimentos, em momentos e em locais específicos, para cumprir seus propósitos supremos, que são infinitos.

Por exemplo, o hassidismo, tanto na realidade quanto descrito no romance de Potok, identifica um homem chamado Baal Shem Tov como alguém especialmente chamado por Deus em cerca de 1750 para viver uma vida piedosa e ensinar os outros a viver pia­mente. (Hassidim quer dizer “os piedosos” .)

O judaísmo em geral também tem um forte senso da interven­ção de Deus na história: Deus criou o universo e os seres humanos (Génesis 1—2), deu uma promessa histórica a Abraão (“Por pai da multidão de nações te tenho posto” [Génesis 17.5]) e até usou os inimigos dos hebreus (por exemplo, Faraó e Ciro) para cumprir seus propósitos. Uma cosmovisão cristã diverge de qualquer cos­movisão judaica em um aspecto crucial: Jesus, ao mesmo tempo divino e humano, é a figura central no relato do tratamento de Deus para com a humanidade.

As cosmovisões naturalistas afirmam uma visão cegamente mecânica da história. A história é o produto dos seres humanos interagindo entre si e com as forças naturais impessoais. Entretan­to, os naturalistas estão divididos no que tange a se a história exi­be padrões — quer sejam de progresso ou de regresso. O filósofo francês Jean-Paul Sartre rejeitou qualquer noção da ordem natural “participante” , ou que ela seja responsável por qualquer coisa como

causa do seu envolvimento com as forças da resistência francesa e em parte por causa do seu brilho filosófico, depois da guerra Sartre emergiu como figura dominante no movi­mento existencialista francês. (3 próprio Sartre era ateu. Durante os anos imediatos depois da guerra, ele escreveu vários roman­ces e peças teatrais que lhe deram fama mun­dial.

Para informações adicionais, veja Apên­dice 2, “ Jean-Paul Sartre” , no final deste

eanrO francês Jean-Paul

Sartre (1905-1980) foi fi­lósofo, dramaturgo e no- velista. A partir de 1936, publicou estudos filosó­ficos e romances, sendo os mais notáveis A Náu­sea (1938) e O Muro (1939). Durante a Segun­da Guerra Mundial, ele

completou sua obra filosófica mais impor­tante, O Ser e o Nada (1943). Em parte por

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

o progresso histórico. Para ele, a natureza não tem nenhum propó­sito último, nenhuma intenção, nenhuma direção — simplesmen­te existe.

Por outro lado, Karl M arx, que certamente rejeitava qualquer noção de propósito divino ou plano para a história, declarou que a natureza mostra padrões de progresso. Os seres humanos são par­te da natureza; portanto, também mostram padrões de progresso em sua história.

Relato da Natureza HumanaAlém de fornecer uma teoria de fundo do universo, as cosmo­

visões oferecem um relato geral do que significa ser humano. Este relato trata de certos temas importantes da teoria de fundo. Por exemplo, se a teoria de fundo rejeita (ou é silenciosa sobre) a no­ção de que o universo tem um propósito e um destino último, en­tão o relato associado da natureza humana também rejeitará (ou estará silencioso sobre) se a pessoa individual tem um propósito ou um destino último.

Semelhantemente, se a teoria de fundo diz que o universo tem um propósito e um destino último, então o relato associado da natureza humana expressará a mesma visão sobre a pessoa indivi­dual. Sartre, um existencialista ateísta, retrata o universo como totalmente destituído de propósito e destino último. A natureza não existe para os seres humanos. Na verdade, a natureza não existe para qualquer coisa. Simplesmente existe — sem plano, propósito, intenção, esperança ou destino.11 (Certo personagem em um dos romances de Sartre, percebendo este ponto enquanto pon­dera junto às raízes de um castanheiro gigante, sente repugnância pelo pensamento e vomita.)12 Consistente com esta visão do uni­verso, Sartre afirma que os seres humanos, no início da vida, tam­bém carecem de qualquer propósito essencial ou destino. Nem Deus nem a natureza dão significado à vida. Se a vida algum dia vier a ter um propósito ou significado, acontecerá apenas porque a pessoa escolhe tomá-la significativa.

Por contraste, o judaísmo e o cristianismo asseveram que Deus criou o universo, que E le está atuando no universo para pôr em execução seus propósitos, e que o universo tem um destino último de acordo com o seu plano. E a humanidade se ajusta no propósito último de Deus para o universo? Sim , com certeza! O livro de Génesis, sagrado tanto para o judaísmo quanto para o cristianis­mo, declara que fomos feitos à imagem de Deus. Potok, referin­do-se ao fundador do hassidismo, diz: “Ele os ensinou que o pro­pósito do homem é tornar a vida santa — cada aspecto da vida: comer, beber, orar, dormir” .13

Obviamente que uma cosmovisão que descreve o indivíduo como tendo um propósito e um destino último também expressará um conjunto de ideais para cada pessoa. Esses ideais podem ser traços de caráter interior. Por exemplo, o apóstolo Paulo, falando

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no século I d .C ., descreve a tarefa de cada pessoa como a de confor­mar-se à imagem de Cristo. E le estabelece certos ideais de caráter em referência a Jesus. Cada pessoa tem de esforçar-se para encarnar os ideais de caráter modelados por Jesus, inclusive a integridade pessoal, a humildade, a mansidão, a paciência, o amor e a compai­xão. Os ideais também podem ser expressos como situações soci­ais. Os antigos profetas judeus, por exemplo, exaltavam a justiça como um ideal social. Para eles, a sociedade justa seria aquela em que o pobre e o fraco seriam adequadamente cuidados.

Se as cosmovisões propositadas parecem naturalmente expres­sar ideais para seus partidários, as cosmovisões naturalistas tam­bém oferecem ideais? A resposta parece ser um qualificado sim. Como observamos anteriormente, Marx negou a existência de Deus. Portanto, ele não deixou lugar em sua cosmovisão para um conceito de propósito divino para os seres humanos. Neste sentido, a humanidade não tem nenhum destino e nenhum ideal a alcançar.

Porém Marx reivindicou descobrir padrões de progresso na história humana: E le raciocinou que os seres humanos progredi­ram do antigo barbarismo através dos estágios da escravidão e do feudalismo para as formas capitalistas da sociedade e da econo­mia. O estágio final, acreditava ele, era aquele no qual os traba­lhadores viriam a controlar a indústria e outros meios de produ­ção. O controle destas forças económicas lhes permitiria mudar as instituições sociais e políticas para melhor e, assim, ocasionar as melhores relações possíveis (quer dizer, o ideal) entre todos os seres humanos. Em suma, embora a cosmovisão de Marx certa­mente não seja propositada, parece identificar certos ideais e de­fender o empenho por eles.

Albert Camus, como Jean-Paul Sartre, rejeitou não apenas a noção de propósito como se evidencia na cosmovisão teísta, mas também qualquer coisa como os padrões de progresso descritos por M arx. Para ele, a realidade é absurda — totalmente destituída de significado, propósito ou plano. Isto significa que, para Camus, as escolhas humanas são no final das contas arbitrárias. Coisas e eventos são o que lhes fazemos ser, e realmente não há razão para fazê-las de um jeito em vez do outro. Isto significa que Camus não reconheceu nenhum ideal? A resposta é: De fato, ele reconhe­ceu ideais.

Em sua mais famosa publicação ideológica, O Mito de Sísifo, Camus adapta aos seus próprios propósitos filosóficos o antigo mito grego de Sísifo .14 De acordo com o mito, certo dia, Sísifo, rei de Corinto, incorreu na ira inexorável de Zeus. No Hades, o submundo, Zeus castigou Sísifo forçando-o a rodar uma pedra para cima e repetir este ciclo para sempre. Para Camus, Sísifo é “o operário fútil do submundo” . Sua atividade é totalmente sem sen­tido, completamente destituída de propósito. Deve Sísifo — deve aqueles cujas vidas refletem a vida de Sísifo — desesperar-se? Camus acha que não. A alegria é uma opção: “A pessoa tem de

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 35imaginar Sísifo fe liz” .15 Mas como? E onde está o ideal nesta re­presentação da condição humana?

A alegria é possível porque o significado de destino é no fim uma questão de ser resolvida pelos seres humanos. Segundo Camus, Zeus pode ditar nosso destino, mas somente nós podemos determinar o que esse destino significará para nós e se nos desgraçará. “Sísifo” , diz Camus, “ensina a mais alta fidelidade que nega os deuses e levanta pedras.” 16 O ideal de Camus — sua figura heróica — é alguém que logo reconhece que o universo é implacavelmente frio e indiferente para com os interesses huma­nos, mas que, não obstante, resolve alcançar um tipo de “vitória absurda” ao determinar para si que suas experiências tenham sig­nificado.

Os ideais estabelecem que tipo de pessoa devemos ser e exemplificam o que vale a pena alcançar. Os ideais representam a realidade e a condição humana como elas devem ser, e não como são. A implicação é que as coisas podem ser melhores do que são. Assim , quando uma cosmovisão inclui um conjunto de ideais, tam­bém costumeiramente oferece uma explicação sobre porquê as pessoas não alcançam esses ideais.

Nas cosmovisões judaica e cristã os seres humanos vivem idealmente em comunidades fraternais entre si e em harmonia com o seu Criador. Estas relações ideais existiram no princípio, numa situação como o jardim . Elas foram quebradas pelo fato de terem as escolhas humanas rejeitado os propósitos de Deus. Numa cos­movisão existencialista com a de Sartre ou Camus, os seres huma­nos vivem idealmente vidas autênticas, executando projetos que

tóent &uuu&O francês Albert Camus (1913-1960) foi

romancista e homem de letras. Nascido em Algiers, Argélia, grande parte de sua vida intelectual foi dedicada a explorar sua con­vicção de que a condição humana é absurda. Este fato, juntamente com sua associação com o filósofo francês Jean-Paul Sartre, le­varam muitos a identificá-lo como membro do movimento existencialista, embora sua marca particular de humanismo o distinguisse daquele movimento. Os personagens de suas peças e romances são obviamente apresentados como reconhecedores do absurdo e da falta de sentido da situação deles (um tema existencialista proeminente); ao mesmo tem­

po, afirmam sua humani­dade ao se rebelarem con­tra essa mesma situação (a volta humanística distinta­mente de Camus). Os tra­balhos mais notáveis de Camus são os ro­mances O Estrangeiro (1942), A Peste (1947) e A Queda ( 1956), e seus ensaios O Mito de Sísifo (1942) c O Rebelde ( 1951). Em 1957, Camus foi premiado com o prémio Nobel de literatura. Morreu num acidente de auto­móvel em 1960. Na época de sua morte, ele estava trabalhando num romance autobiográ­fico, postumamente publicado em 1995 sob o título O Primeiro Homem.

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eles escolheram livremente. Eles ficam aquém do ideal, porque recusam a aceitar o fardo de sua própria liberdade e porque fa­lham em assumir a plena responsabilidade pelo vasto alcance das escolhas implicadas por aquela liberdade.

Na cosmovisão marxista, os seres humanos existem idealmente em harmonia (e não em competição) entre si, trabalham em tare­fas que satisfazem (e não humilham) e desfrutam o fruto do seu trabalho (em vez de vê-lo tomado por outros e usado contra eles). O ideal foge ao entendimento deles, por causa de certos arranjos

económicos capitalistas subjacentes, e por cau­sa das estruturas sociais e políticas que refor­çam a economia capitalista. Em geral, cada cosmovisão não só enuncia certos ideais, mas também explica por que os seres humanos não os alcançam.

Ordinariamente, quando uma cosmovisão enuncia um conjunto de ideais e então explica como os seres humanos e suas instituições so­

ciais ficam aquém dos ideais, também oferece alguma solução. Se os ideais (ou algo parecido com eles) outrora existiram, então a cosmovisão explicará como recuperar o que estava perdido.

Por exemplo, o judaísmo identifica um tempo sob o governo dos reis Davi e Salomão quando Israel era uma nação unificada. Se esse tempo não era bastante ideal, com certeza representava um ponto político e social culminante para os judeus. O ideal foi perdido quando os exércitos estrangeiros repetidamente invadi­ram a pátria deles. O ideal só pode ser recuperado quando os ju ­deus se preparam espiritualmente e Deus intervém na história para prover o Messias.

Claro que para algumas cosmovisões, os principais ideais na verdade nunca existiram. Só existem no futuro, no horizonte do tempo. Neste caso, a cosmovisão explicará como alcançá-los. O marxismo é justamente tal cosmovisão. Os marxistas acreditam que nunca houve um tempo na história humana em que a maioria dos seres humanos de algum modo não sentiu falta de comunida­de, não sofreu as indignidades do trabalho forçado, não perdeu o controle sobre suas ferramentas e os produtos do seu trabalho. Mas com o capitalismo desenfreado na plenitude da Revolução Industrial na Europa e nos Estados Unidos no século X IX , estas condições pioraram. As mulheres trabalhavam em miseráveis es­tabelecimentos escravizantes e morriam prematuramente. Os ho­mens competiam entre si por empregos de baixos salários. Mes­mo as crianças trabalhavam horas dolorosamente longas em con­dições imundas. Para M arx, a causa e a solução eram económicas. O capitalismo desenfreado, em vez dos arranjos sociais ou políti­cos, era responsável pela prevalecente miséria e alienação. Uma vida melhor — na verdade, a vida ideal — só pode ser alcançada no futuro à medida que as condições económicas são mudadas.

Em geral, cada cosmovisão não só enuncia certos ideais, mas

também explica por que os seres humanos não os alcançam.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

ResumoNesta seção, discutimos o elemento ideológico de uma cosmo­

visão. Primeiro, citamos três funções gerais da ideologia: 1) trazer ordem e consistência aos dados proporcionados pela experiência, 2) fornecer base para avaliar os valores, os insights e as declara­ções de conhecimento dos outros e 3) definir a comunidade. Estas funções da ideologia não pertencem a uma cosmovisão específi­ca. Antes, são funções comuns de qualquer cosmovisão. Em seguida, fornecemos um esboço do conteúdo ideológico geral de uma cosmovisão. Aqui comentamos mais uma vez que embora as cosmovisões possam ser diferentes em seu conteúdo específico, elas falam sobre tópicos semelhantes. Por exemplo, eles forne­cem uma teoria de fundo sobre o que existe. Três tópicos cen­trais da teoria de fundo são o cosmo, Deus e a história. As cos­movisões também fornecem um relato geral da natureza huma­na. Este relato explicará se a vida humana tem ou não propósi­to, que ideais valem a pena alcançar, em que aspecto os seres humanos ficam aquém dos ideais e como os ideais podem ser alcançados.

O conteúdo ideológico de uma cosmovisão é ordinariamente expresso em proposições filosóficas, declarações de credo, fór­mulas autorizadas ou doutrinas. Em geral também é expresso de modo sistemático, significando que algum esforço é feito para assegurar que as declarações chaves sejam consistentes entre si. A natureza preposicional formal da ideologia a distingue de outro elemento importante de uma cosmovisão, a narrativa, que comumente tem uma qualidade semelhante à história.

O Elemento NarrativoRessaltamos anteriormente que o elemento narrativo de uma

cosmovisão reconta certos eventos passados ou futuros, tendo a ver com aqueles que mantém a cosmovisão. Porém, as narrativas da cosmovisão não são simples registros de acontecimentos coin­cidentes ou resumos de eventos interessantes, mas fortuitos. São histórias que contam algo especial sobre a cosmovisão ou sobre as pessoas que a mantêm. Podem ser sobre uma pessoa famosa, a fundação de um povo ou nação, o começo ou fim do mundo, a interação de alguém com Deus ou deuses, ou algum outro evento integralmente ligado à cosmovisão.

As narrativas são uma característica bem reconhecida das cos­movisões religiosas. Todas as principais religiões do mundo estão repletas delas. O elemento narrativo do cristianismo, por exem­plo, enfoca a criação do mundo; o primeiro homem e a primeira mulher afastando-se de Deus; os subsequentes concertos entre Deus e a humanidade; o nascimento, morte e ressurreição de Cristo; a formação da Igreja, e a promessa de que Cristo voltará à terra para orquestrar os eventos finais da história. Mas as narrativas não são

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limitadas às cosmovisões religiosas. As cosmovisões seculares também contêm um importante elemento narrativo.

Por exemplo, o marxismo conta uma narrativa bastante elabo­rada que enfoca o desdobramento da história humana, as forças impessoais que moldam a natureza humana, as várias maneiras que os seres humanos sofrem alienação, os modos como os arran­jos económicos e políticos vêm à existência e mudam, e os pros­pectos para uma vida melhor sob os novos arranjos económicos e políticos.

F u n ç õ e s G er a is d a N arrativa

Há duas funções predominantes das narrativas da cosmovisão. Primeiro, elas reforçam e embelezam os temas ideológicos cen­trais. Poderíamos comparar a ideologia de uma cosmovisão e suas narrativas centrais com o esqueleto e a carne de um corpo. Entre­tanto, esta comparação induzirá em erro se for considerada a im­plicar que um elemento é de alguma maneira mais básico ou fun­damental que o outro. O esqueleto e a carne são necessários juntos para que o corpo viva; a ideologia e a narrativa são necessárias juntas para que uma cosmovisão floresça.

Segundo, as narrativas da cosmovisão fornecem padrões, ou modelos, para os partidários da cosmovisão. A linguagem da ide­ologia por sua própria natureza tende a ser abstrata, técnica e um tanto escassa. Nas cosmovisões bem desenvolvidas, o papel da ideologia é crucial, mas a pessoa comum encontra pouco deleite ou estímulo em navegar em suas complexidades e distinções de nuanças. Já as narrativas, ao contrário, atraem e capturam a ima­ginação. Inspiram não só a mente, mas também despertam as emo­ções. Convidam os ouvintes a visionar e vicariamente sentir o que seria vivenciar o conteúdo ideológico da cosmovisão.

Se a Torá e o Talmude apresentam a estrutura ideológica perti­nente ao judaísmo tradicional, as histórias de Abraão, Moisés, Josué, Davi e Salomão fornecem seu conteúdo narrativo.17 Se os ensinamentos didáticos de Jesus e Paulo, Tiago e Pedro e o Credo Apostólico constituem parte da dimensão ideológica do cristia­nismo, então as parábolas e ações de Jesus e os relatos em Atos formam a parte crucial do seu conteúdo narrativo. Se a teoria do valor do trabalho é parte da ideologia de M arx, as histórias de trabalho infantil, o sofrimento e morte de mulheres em estabeleci­mentos escravizantes e os homens trabalhando horas longas em condições anti-higiênicas e perigosas (tudo recontado em seu l i­vro, O Capital) fornecem parte do conteúdo narrativo de sua cos­movisão.18

As narrativas podem nos fazer rir ou chorar; podem divertir ou chocar nossa sensibilidade. Em todo caso, fornecem modelos — para o desenvolvimento do caráter e sobre como nos comportar, não para nos moldarmos a arranjos sociais aceitáveis, mas pelo que somos.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

T ipo s d e N a rrativa

O dever da narrativa é recontar os eventos centrais, passados e futuros de um povo e sua cosmovisão. A função da narrativa é reforçar ideologias centrais e fornecer modelos para os partidári­os da cosmovisão. Tendo dito isto, devemos notar que o conteúdo narrativo de uma cosmovisão pode tomar várias formas. Discuti­remos aqui cinco delas brevemente.

Escritos SagradosEm qualquer tradição, os escritos sagrados (cridos como pala­

vras divinas) são distintivos de outras histórias culturais ou lendas 1) na autoridade que inspiram, 2) nos propósitos religiosos a que servem e 3) até ao ponto em que todos os pensadores ortodoxos na tradição têm de ajustar seu pensamento ao deles. Em algumas cos­movisões teístas, as narrativas mais importantes aparecem em tex­tos considerados sagrados. Por exemplo, no judaísmo as narrativas centrais à fé — os relatos de Abraão, Moisés, Josué, os juizes, os reis e os profetas — são recontadas em textos cujo status bíblico é indis­cutível entre os judeus ortodoxos. Os cristãos crêem no mesmo acer­ca das narrativas encontradas ao longo da Bíblia, mas especialmente nas de Jesus e dos apóstolos no Novo Testamento.

Na tradição hindu, a narrativa da cosmovisão mais importante e famosa aparece no Bhagavad Gita (Canção do Senhor), um cur­to fragmento de assustadora poesia dramática, que é parte de um poema épico.19 Nele, um homem chamado Arjuna, o herói da nar­rativa, busca o conselho de Krishna, a principal deidade hindu, visto que Arjuna está a ponto de entrar numa batalha importante que envolverá todas as pessoas da índia.

MitoTendo sido antes uma palavra perfeitamente boa, o vocábulo

mito veio a ter uma reputação ruim em alguns círculos. Deriva da palavra grega traduzida por histórias, mythoi. As mythoi gregas eram frequentemente sobre os deuses e sua interação com os seres humanos. Com o passar do tempo, a cultura grega (incluindo sua religião) caiu em má fama. Seus mitos vieram a ser vistos como histórias não baseadas em fatos, “histórias falsas” . Entretanto, entre os estudiosos de hoje, a palavra mito refere-se estritamente a uma narrativa na qual os seres divinos representam algum papel. Usá- la deste modo não trata da questão se ou como a narrativa pode ser considerada verdadeira. Em outras palavras, a avaliação da verda­de de um mito é um item separado da questão do papel que de­sempenha na cosmovisão. Além disso, mesmo que não fosse his­toricamente factual, ainda pode funcionar como narrativa que con­tribui de modo importante para uma cosmovisão.20

O mito é uma categoria distinta de escritos sagrados. No mun­do antigo, esses escritos sagrados eram primariamente usados em ritos e cerimónias religiosos. Em convocações sagradas especiais,

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as pessoas ouviam o texto sagrado lido por um sacerdote com o propósito de encorajar e instruir.21 Claro que os mitos não estão sem seu elemento religioso. A final de contas, eles são histórias sobre a interação de seres divinos com seres humanos. Mas histo­ricamente não serviam para as mesmas funções sacerdotais servi­das para os escritos sagrados, especialmente a Escritura. Antes, encontravam seu lugar na assembléia pública, no mercado e nos teatros ao ar livre do mundo antigo.22

Quase não podemos entender as cosmovisões antigas sem pres­tarmos honestamente atenção ao significado dos seus mitos. Este ponto certamente é válido no caso dos gregos antigos. Por exem­plo, os mitos de Homero, na forma de dois poemas épicos, a Ilíada e a Odisséia, são indubitavelmente os mais famosos e influentes do mundo grego antigo. A Odisséia é a história de Odisseu, o últi­mo guerreiro grego a voltar para casa depois da derrota de Tróia. Em cada virada da história, Odisseu encontra estranhas criaturas m íticas: um Ciclope (gigante de um olho só), ninfas do mar, lotófagos, sereias. E a cada reviravolta da história, seu caminho ou é dificultado ou é facilitado por algum deus. Quando finalmen­te chega à sua casa-ilha, ele tem de derrotar um exército de ho­mens que queriam apossar-se de sua propriedade e tomar sua mu­lher. Em sua jornada de volta ao lar, que durou anos, Odisseu, — cheio de astúcia e malícia, guerreiro ousado e impetuoso — teve de aprender a enfrentar os desafios da vida com uma nova estrutu­ra de referência. Gradualmente, ele aprende a paciência, a tempe­rança e a humildade. Somente quando aprende estas lições é que finalmente chega a Itaca, sua amada casa-ilha, e reencontra sua fiel e devotada esposa, Penélope.

Por que esta história tinha tamanho poder para os gregos e res­soava tão eloquentemente para as gerações subsequentes na c iv i­lização ocidental? Ninian Smart sugere uma resposta parcial, di­zendo que o significado último dos mitos têm a ver com os impul­sos profundos de nossa psique: “ [Os mitos] têm a ver com o modo como podemos chegar a um acordo com nossos sentimentos, e como podemos alcançar a integração pessoal e a inteireza” .23 A jornada de Odisseu à sua casa é na verdade uma jornada rumo a um tipo de inteireza do ego, não possível sob o modelo do antigo guerreiro grego. Mas, como Smart também ressalta, o mito tradi­cionalmente tem um significado comunal predominante: “Um mito não é apenas sobre mim: é sobre nós” .24 A história de Odisseu é acerca de um homem que encontrou seu caminho para casa e, ao fazê-lo, descobriu um novo modo de viver; mas também é a histó­ria de um povo inteiro. Na realidade, é a história de como alguém pode enfrentar as dificuldades da vida. Mais adiante no poema, por exemplo, Homero faz Odisseu dizer:

Das criaturas mortais, entre tudo o que respira e se move, a terra não leva sobre si nenhum mais frágil do que o género humano...

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Nenhum homem deveria zombar da lei,mas manter em paz quaisquer presentes que os deuses podem dar.25

A Odisséia de Homero tem falado de maneira muito simples aos gregos, e tem falado a sucessivas gerações no Ocidente, por­que seus temas transcendem a história de um guerreiro.

Narrativa HistóricaO mito continua sendo uma forma viável de narrativa no mun­

do de hoje. Mas desde o começo da era científica, e sobretudo depois do advento de técnicas modernas de escrever história, o poder de contar mitos diminuiu. Curiosos como estamos ao adentraro século X X I, parece que temos uma forte necessidade de desco­brir e recontar como foi realmente o passado. Desejamos colocar as pessoas e os fatos juntos numa ordem coerente. “A Guerra C i­v il” , história televisiva com dez horas de duração feita por Ken Burns, da PBS, e “Beisebol” , sua história televisiva mais recente com dezoito horas de duração — ambas imensamente populares nos Estados Unidos — ilustram bem o ponto em questão. Parte de sua atração, e parte da atração dos trabalhos históricos em geral, é que eles respondem nosso desejo de conhecer algo sobre nós mes­mos. Conhecer algo sobre a história de nosso grupo é conhecer algo sobre nós mesmos.

Mas mesmo quando falamos de nos conhecer, defrontamos dois interesses competidores na produção dos trabalhos históricos. Pri­meiro, tendemos a buscar a mesma resposta para as nossas per­guntas históricas conforme a rainha malvada buscou no conto de fadas Branca de Neve. “Espelho, espelho meu, haverá no mundo alguém mais bonita do que eu?” , perguntou ela, esperando que o

omen&Homero (século V III a .C .) é o mais fa­

moso poeta (bardo ou cantor) do período arcaico da história grega. De acordo com a antiga tradição, Homero era cego. Tam­bém de acordo com a antiga tradição, ele compôs dois poemas épicos com mate­ria l trazido do século X III a.C . por uma longa tradição oral: a Ilíada e a Odis­séia. Hoje estes poemas são considera-

! dos os protótipos de todos os poemas| épicos, e estão entre as maiores obrasi da literatura ocidental. A Ilíada narra umi episódio que dura alguns dias na guerra

de dez anos entre os gre­gos e os troianos: a ira de A quiles e suas conse­quências trágicas, inclusi­ve as mortes de Pátroclo e Hector. A Odisséia come­ça dez anos depoi s da que­da de Tróia. Conta como um dos heróis gregos,Odisseu, finalmente conse­gue retornar à sua casa, em ítaca, onde é reunido à sua esposa Penélope e ao seu filho Telêmaco.

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espelho lhe dissesse que ela era a mulher mais linda da terra. Te­mos a tendência de romantizar o passado, encontrando heróis em conjunturas cruciais. Ao agirmos assim, fazemo-nos a nós mes­mos parecer melhores do que talvez mereçamos.

Se George Washington se recusasse a mentir a respeito de cor­tar a cerejeira, então sua virtude resultaria de algum modo dimi­nuída a todos os americanos. Se um dos meus antepassados no século X IX se candidatasse ao cargo de vice-presidente dos Esta­dos Unidos, então sua fama de algum modo seria ocasião para eu me gabar.

O segundo interesse em produzir um trabalho histórico é esta­belecer um registro preciso dos eventos e pessoas baseado na evi­dência empírica e em documentação apropriada. Quando a histó­ria é procurada com este interesse em mente, grandes heróis às vezes parecem menos brilhantes, menos virtuosos.26 Talvez um dos nossos heróis do estabelecimento da democracia tenha possu­ído escravos.

Assim , as narrativas históricas evocam interesses competido­res. Por um lado, a história é mais que sobre o passado; é sobre nós. Está em nossos interesses conhecer nossa história, porque está em nossos interesses conhecer a nós mesmos. Mas este inte­resse nos encoraja a inflacionar o passado, tomando-o algo mais e melhor do que foi. Por outro lado, a história abordada de modo crítico e científico representa uma tentativa em ver o passado com precisão. Está em nossos interesses obter a precisão, porque então a história pode servir como guia parcial para o futuro, ajudando- nos a evitar os erros do passado. Mas este interesse na precisão pode ter o efeito de esvaziar o passado, fazendo-o parecer rotinei­ro ou comum e, portanto, não merecedor de nossa atenção.

Os dois interesses competidores discutidos aqui — o interesse em conhecer a nós mesmos e o interesse na precisão — levantam uma pergunta constrangedora: Se a abordagem crítica e científica à história é tantas vezes bem-sucedida em esvaziar nossas imagens queridas de pessoas e eventos de nosso passado, por que dar atenção àqueles que produzem tais histórias? A resposta é que a história, que é o resultado da investigação crítica, tem autoridade para nós.

O historiador moderno é parte do que Smart chama de “a tra­ma da erudição e ciência modernas, a qual para nós têm uma aparência inteiramente convincente” .27 É justamente esta autori­zada “aparência convincente” da história moderna que a toma seme­lhante aos mitos antigos. Hoje procuramos nas narrativas históricas e biográficas iluminação sobre a maneira como as pessoas de outrora encaravam os mitos que contavam a história do género humano.

Literatura e DramaAs histórias e biografias representam um papel mais impor­

tante na era moderna do que em qualquer outra época do passado. Isto não quer dizer que as pessoas modernas procuram nelas ex­

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

clusivamente, ou mesmo primariamente, iluminação para a situa­ção humana. A literatura e o drama (quer no palco ou na tela) comprovaram ser mídias particularmente capazes de nos dar his­tórias significantes sobre a condição humana. Como tal, elas tam­bém servem como instrumentos poderosos para reforçar a ideolo­gia e para fornecer modelos.

Claro que o drama de palco e certas histórias orais e escritas foram desde o princípio usados para cumprir estas duas funções. A antiga tragédia grega é famosa por sua descrição de pessoas que foram além dos limites do comportamento humano apropriado. Na tradição grega, a honra, o orgulho e uma leve sagacidade eram considerados qualidades desejáveis. Mas a arrogância ou jactân­cia, o orgulho excessivo e a habilidade mental sem auto-reflexão eram considerados falhas de caráter.

O drama trágico de Sófocles, intitulado Édipo Rei, apre­senta dramaticamente as consequências de uma vida vivida com arrogância. Édipo, de acordo com a lenda grega, fo i um homem que cumpriu uma antiga profecia que dizia que ele mataria o pai e teria filhos com a própria mãe. Na apresenta­ção da história de Sófocles, Édipo veio a cumprir a profecia, porque ele confiou muito em seus próprios talentos e agiu sem a verdadeira sabedoria. Nas últimas linhas da peça, o líder do coro resume as principais conclusões a serem tiradas da ex­periência de Édipo:

Que todo homem na fragilidade do género humano Considere seu último dia; e que ninguém Presuma que tem boa sorte até que encontre A vida, em sua morte, e deixe uma memória sem dor.28

O Édipo Rei lembra aos gregos as expectativas importantes colocadas pela cosmovisão dominante, e o próprio Édipo serviu como modelo de como não viver a vida. O relato veterotes- tamentário de Sansão serve com propósito semelhante. Apesar de sua educação religiosa e das repetidas lembranças do seu estado espiritual como uma força moral, Sansão altivamente esqueceu da fonte de sua força — Deus. No fim , ele devia ser mais lamentado do que admirado. Assim , sua história também constitui um mode­lo poderoso e negativo.

No século X X , os romances tomaram-se veículos proeminen­tes para apresentar, reforçar ou examinar a ideologia e para forne­cer modelos. Em 1906, Upton Sinclair publicou The Jungle (A Selva), romance que apresenta um quadro vívido e realista das condições de trabalho perigosamente insalubres nos currais de Chicago e a indústria de empacotamento de carne. O romance expressa claramente as convicções socialistas de Sinclair.29 Ele queria denunciar o capitalismo desregulado como um arranjo eco­nómico aceitável em qualquer cosmovisão.

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Anteriormente, discutimos o trabalho filosófico de Camus, O Mito de Sísifo, no qual ele expressa a visão de que a realidade não oferece nenhum propósito dominante para apoiar ou explicar a existência humana, mas que os seres humanos podem determinar por si mesmos que significado a vida terá. E le desenvolve estes mesmos temas em imagens muito mais poderosas em seus traba­lhos literários O Estrangeiro, A Peste e O Rebelde. Os persona­gens nestas obras, embora sutilmente cônscios da falta de signifi­cado da condição humana, afirmam sua humanidade rebelando-se contra as circunstâncias. C . S. Lew is, famoso por sua racional defesa da fé cristã em obras como Cristianismo Puro e Simples e The Problem ofPain [O Problema da Dor], também escreveu ro­mances significativos (That Hideous Strength e Perelandra), que encarnavam temas distintamente cristãos. The Chosen [O Esco­lhido], de Chaim Potok, o romance já referido aqui muitas vezes, e muitos outros romances seus, oferecem profundos insights so­bre a moderna vida judaica e sua cosmovisão na América.

Se os romances modernos permanecem na vanguarda da lite­ratura como veículo para enunciar temas de cosmovisão, o cine­ma quase eclipsou o drama de palco. Isto não quer dizer que o drama de palco esteja desaparecendo; não está. Mas a indústria do cinema tomou-se uma indústria de multibilhões de dólares, e sua poderosa influência nas mentes de jovens e velhos não mostra si­nais de enfraquecimento. O intressante romance de Norman McLean, A River Runs Through It obteve aclamação da crítica, mas alcançou apenas um modesto número de leitores quando foi publicado em 1976 pela University of Chicago Press. Porém, tor-

H Sófocles (496-406 a.C.)foi dramaturgo, figura pú­blica respeitada, general e sacerdote no período gre­go clássico. Durante uma carreira em que compôs cerca de 123 dramas, ele ganhou numerosos prémi­os. Comparado a outros dramaturgos do seu tempo, Sófocles era conhecido

como inovador. Por exemplo, ele acrescen­tou um terceiro ator, aumentou o tamanho do coro e introduziu pinturas de cena. Em ­bora tenhamos mais de 1.000 fragmentos

de suas obras, apenas sete peças comple­tas sobreviveram. Suas obras mais conhe­cidas são Antígona (c. 441), Édipo Rei ou Édipo Tirano (c. 429) c Édipo em Colona (401). Os personagens de Sófocles são dra­maticamente interessantes no que respeita a que seus destinos são determinados mais por seus próprios traços de personalidade do que pelos deuses gregos. Em parte por esta razão, o trabalho de Sófocles influen­ciou profundamente a tragédia ocidental. O filósofo Aristóteles, do século TV a .C ., em sua obra Poética, tratou Édipo Tirano como um exemplo ideal da ironia dramá­tica grega.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

nou-se êxito mundial de bilheteria quando, em 1994, Robert Redford lançou sua versão cinematográfica.

Inicialmente, As Pontes de Madison recebeu atenção somente limitada como romance. Em 1995, como filme estrelado por Clint Eastwood e M eryl Streep, ganhou um imediato e difundido públi­co.30 Não há que duvidar que o cinema capturou a imaginação das audiências modernas de um modo que a literatura e o drama nun­ca chegaram perto. Tomou-se o veículo transmissor mais podero­so do século X X para apresentar, reforçar ou examinar a ideologia e para oferecer modelos.

A Narrativa na Arte VisualOs narradores (escritores, contadores de histórias) expressam

suas narrativas verbalmente — em escritos sagrados, mitos, rela­tos históricos, romances e outros tipos de literatura. As vezes, eles combinam a palavra falada com a ação coreográfica, como no dra­ma e no cinema, ou combinam letras com música, como numa balada. Entretanto, as palavras não são essenciais para a expres­são da narrativa. Usando símbolos não-verbais, os artistas podem expressar os temas narrativos centrais de uma cosmovisão na mídia tão diversamente quanto na pintura, na escultura, na ilustração ou na arquitetura. As Escrituras hebraicas descrevem em detalhes v í­vidos a construção do antigo Tabernáculo hebreu, as instalações à semelhança de uma tenda usadas para adoração antes da construção do Templo sob o governo do rei Salomão. O próprio Tabernáculo, com os vestuários sacerdotais e os utensílios sagrados usados em seu interior, expressava — sem palavras — a narrativa do concerto sa­grado entre o povo hebreu e Javé.

Um pintor judeu russo do século X X , Marc Chagall, expressa eloquentemente em suas pinturas a moderna experiência e cosmo­visão judaicas. Certa pintura, “Crucificação Branca” , descreve uma cena da cmcificação. O homem na cmz usa uma coroa de espi­nhos e um xale de oração judeu no lugar de tanga. Em volta da cena da crucificação estão pequenas imagens da atual perseguição judaica, inclusive representações de atrocidades indizíveis associ­adas com o Holocausto judeu da Segunda Guerra Mundial.

As cosmovisões seculares também se expressam por meio da arte. O marxismo se expressa num determinado género conhecido como realismo social que cobre o assunto com certo brilhantismo ou qualidade ilustre. As pinturas neste género apresentam figuras humanas em poses heróicas e enfatizam a importância da produ­ção ou da luta revolucionária. Com o realismo social temos a arte à serviço da política: a pintura promove a cosmovisão socialista e aponta para a consumação da história humana.

R e s u m o

Nesta seção, discutimos o elemento narrativo de uma cosmo­visão. Primeiro, citamos duas funções das narrativas da cosmovi-

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são: 1) reforçar e embelezar os temas ideológicos centrais, e 2) fornecer padrões ou modelos para aqueles que mantêm a cosmo­visão. Do mesmo modo que as funções do elemento ideológico não são únicas a uma cosmovisão, assim também as funções da narrativa não são únicas a uma cosmovisão. Também discutimos brevemente cinco diferentes formas que a narrativa da cosmovi­são pode ter: escritos sagrados, mito, narrativa histórica, literatura (inclusive drama) e arte. Estas formas não são necessariamente as únicas que uma cosmovisão pode ter, mas estão entre as mais im­portantes e comuns.

O Elemento NormativoUma norma é um padrão de algum tipo. Encontramos padrões

em virtualmente toda a área da vida. Por exemplo, quando escre­vemos ou lemos o que outra pessoa escreveu, encontramos pa­drões gramaticais. Quando dirigimos pelas ruas, encontramos pa­drões legais (na forma de sinais de trânsito e carros de patrulha). Quando cozinhamos ou comemos a comida que outra pessoa prepa­rou, encontramos padrões culinários. Nossos julgamentos e avali­ações de todos os tipos de comportamento humano são feitos em termos de normas, de padrões. “Sua frase não tem sentido” , “Você estava dirigindo muito rápido” , “Esta macarronada está delicio­sa” , todas estas avaliações implicam referência a uma norma, a um padrão. Quando falamos sobre cosmovisão, dois dos tipos mais importantes de normas são a norma moral e a norma estética.

As normas morais governam nosso comportamento e desen­volvimento do caráter. Elas são padrões que requerem, proíbem ou permitem certos tipos de comportamento ou o desenvolvimen­to de certos tipos de traços de personalidade. Podem ser ou espe-

Marc Chagai 1 (1887- 1995) foi pintor, impres­sor, designer, escultor, ce­ramista e escritor. Nasceu na Bielorússia e preferiu ser conhecido como artis­ta bielorusso. (Suas obras artísticas são notáveis pelo

uso consistente que fez da imagem folclórica.) Contu­do, depois de ter sido exila­do da Bielorússia em 1923 (quando fazia parte da antiga União Soviética), tornou-se reconhecido como um im­portante artista da França.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 47cíficas ou gerais. As proibições contra mentir, roubar e ferir são exemplos de normas morais específicas. A Torá (a Le i Mosaica) expressa muitas das normas morais específicas que foram reco­nhecidas no judaísmo no decorrer da história. Dez destas — os “Dez Mandamentos” ou “Decálogo” — têm tido influência pro­funda e duradoura não só no judaísmo e no cristianismo, mas tam­bém na civilização ocidental em geral. Os cristãos acreditam que Jesus resumiu toda a Le i Mosaica em duas or­dens: amar a Deus sobre todas as coisas, e amar ao próximo (inclusive aos inimigos) como a si mesmo. Normas morais gerais são chamadas princípios morais. Incluem princípios de pro­priedade, justiça e utilidade. Os princípios morais gerais, como a preocupação pelo bem- estar e tratamento justo aos pobres, são eviden­tes ao longo dos escritos proféticos hebraicos.

As normas estéticas são padrões pelos quais julgamos o que é bonito, agradável ou sublime. A cultura ocidental de hoje parece enraizada na crença de que os julgamentos estéticos são mera­mente expressões de gosto pessoal, e que gosto não se discute. Ou você gosta de algo (acha bonito, por exemplo) ou não gosta. Ne­nhum padrão pode ser evo­cado para apoiar-se ao se fa­zer um julgamento ou pedir a avaliação de outrem sobre o fenómeno em questão. En­tretanto, esta visão parece mais uma extensão de certa ideologia prevalecente do que um insight estético ínte­gro. Além disso, as cosmo- visões que historicamente têm dominado a civilização, como também muitas que hoje existem, não comparti­lharam o ponto de vista de que gosto é indiscutível.31

Pelo menos os pensado­res críticos reconheceram a relação importante entre a ideologia de uma cosmovi­são e sua dimensão estética.Se a ideologia é primaria­mente intelectual, então a es­tética é no mínimo afetiva: a música, a pintura, a escultu­ra e outras formas de arte têm tremendo potencial para nos

Quando falamos sobre cosmovisão, dois dos tipos mais

importantes de normas são a norma moral e a norma estética.

Crucificação Branca, fo i produzida em 1938, três anos depois de Chagall ter visitado a Polónia e ficado cara a cara com o anti-semitismo virulento daquela época e lugar.

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mover. Elas podem ser empregadas para reforçar as crenças cen­trais de uma cosmovisão. Obviamente temos de reconhecer que elas também têm o potencial para minar essas crenças centrais.

Então qual é a relação entre os elementos normativos de uma cosmovisão e os outros elementos? Em palavra bastante simples, os elementos normativos tanto moldam quanto são moldados pe­los outros elementos. Por exemplo, os antigos hebreus experimen­taram Deus como uma deidade poderosa, criativa, dinâmica e fre­quentemente misteriosa. As vezes até o temiam. Mas sua impres­são dominante não era de um Deus vingativo e caprichoso, mas de um Deus bom, amoroso, santo e íntegro. Além disso, as caracte­rísticas que eles acreditaram que Ele possuía eventualmente tor­naram-se mandamentos morais para eles. Ele esperava obediência e sacrifícios a E le , mas também esperava atendimento adequado às necessidades dos pobres; E le esperava observância formal do sábado, mas também conduta correta. Nem a conduta correta em si era suficiente. E le queria que o comportamento dos hebreus refletisse um caráter correto.

No que diz respeito à dimensão estética, o Deus que tirou os hebreus da escravidão no Egito e os conduziu pelo deserto tam­bém ordenou-lhes que erguessem um tabernáculo, um lugar espe­cial onde Ele os encontraria. Esta estrutura (não tanto um edifício como uma tenda elaborada) deveria ser construída de acordo com suas instruções detalhadas, sob a direção dos mais qualificados e ar­tísticos artesãos entre eles. Sabemos sobre estas coisas, claro, porque eles no-las transmitiram através das narrativas importantes nas Escri­turas hebraicas. O que vemos neste exemplo é que os elementos normativos de uma cosmovisão, juntamente com a experiência, a ide­ologia e a narrativa, são entretecidos juntos num único tecido da vida para os hebreus antigos. Relações semelhantes nestes elementos tam­bém se manteriam fiéis às cosmovisões de outros povos.

O Elemento Ritualista

Com nossas discussões dos elementos ideológico, narrativo e normativo de uma cosmovisão, levamos em conta as crenças cen­trais e os valores que entram em nossas vidas. Mas uma cosmovi­são consiste em mais do que estas convicções. Uma cosmovisão vital e dinâmica também inclui inevitavelmente certos rituais. Se a cosmovisão é secular, seus rituais poderiam incluir paradas ou representações públicas de eventos política ou nacionalmente significantes (por exemplo, D ia da Independência, D ia da Procla­mação da República, o Ano Novo). Se é teísta, seus rituais prova­velmente incluirão atos específicos de adoração ou maneiras es­peciais de celebrar datas ou eventos religiosos importantes (por exemplo, Hanuká, Páscoa, Natal).

O que separa os rituais de qualquer outro tipo de comporta­mento humano e o que os toma de significado especial para nós?

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 49Um modo de começar a responder estas perguntas é considerar brevemente algumas das características comuns, mas frequente­mente ignoradas, de nossa linguagem e comportamento.

Em princípios da década de 1960, o filósofo oxfordiano J. L . Austin escreveu um livro que chamava a atenção para o papel especial que as palavras desempenham em nossa linguagem e vida diária. É óbvio que algumas palavras são simplesmente nomes ou rótulos para objetos. Outras são executantes, segundo observação de Austin, pois de fato fazem coisas.32 Quando uma amiga me pede para encontrá-la a certa hora e lugar e eu res­pondo: “Ire i, prometo” , fiz mais que expressar meus sentimentos ou predizer minha conduta.F iz uma promessa. O mesmo é verdade quan­do digo: “Eu o parabenizo...” ; “Desculpe-me por...” ; “Eu inauguro este templo...” ; “Aceito sua oferta...” Dizer as palavras constitui o próprio ato. Dito de outra maneira, dizer as palavras realmente importa em executar um ato.

Elaborando na linha de raciocínio de Austin, podemos ampliar a noção de executantes para incluir os gestos. Um soldado reco­nhece a autoridade de um oficial na saudação, uma anfitriã saúda sorrindo, um professor concorda inclinando a cabeça, um pai nega permissão meneando a cabeça, um homem e uma mulher selam seu casamento trocando anéis e beijando-se.

Agora, em última análise, os rituais geralmente usam palavras e gestos. Eles são uma classe especial de palavras e ações que de fato fazem coisas. Um ritual é uma cerimónia executada periodi­camente em ocasiões especiais. É projetado a representar ou re­cordar um evento especial. Pode ser sombrio ou festivo, formal ou informal.

Nem todos os rituais funcionam precisamente da mesma ma­neira. Na realidade, baseado no modo como funcionam, podemos identificar pelo menos três tipos diferentes de rituais. Uma forma de ritual é tencionada a renovar laços. Fazendo-se isso, fortalece- se o grupo. Nos Estados Unidos, vemos tanto a renovação de la­ços quanto o fortalecimento do grupo durante as celebrações a cada ano do Dia da Independência. Discursos de figuras públicas proeminentes, piqueniques familiares e comunitários, soltar fo­gos de artifício ao término do dia — são rituais que lembram os americanos de sua herança política comum. Ao lembrá-los assim, as celebrações rituais renovam e fortalecem os laços nacionais que unem os americanos como um povo.

Outra forma de ritual celebra ritos de uma maneira que recria um evento, tomando-o real no presente. Uma característica proe­minente da celebração do Dia de Independência americana — soltar fogos de artifício à noite — serve a esta função além da função descrita mais acima. Soltar fogos de artifício é uma representação estilizada da batalha (o disparo dos mosquetes, a detonação dos

Um ritual é uma cerimónia executada em ocasiões especiais,

projetado a representar ou recordar um evento especial.

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canhões) durante a Guerra Revolucionária, que assegurou a inde­pendência política da Inglaterra tão ousadamente declarada no fa­moso documento de 4 de julho de 1776.

Um terceiro tipo de ritual facilita a transição de um estado a outro. Por exemplo, o bar mitzvah é a cerimónia judaica na qual um menino (tradicionalmente de 13 anos de idade) é iniciado na comunidade religiosa e realiza seu primeiro ato como adulto len­do na sinagoga o trecho semanal da Torá. As cerimónias de gradu­ação nas instituições educacionais são um meio secular de marcar a transição de estudante para formado.

Todos os rituais parecem ter em comum pelo menos duas ca­racterísticas essenciais: 1) fornecem ocasião para reflexão no sig­nificado das crenças centrais do indivíduo, e 2) são destinadas a evocar uma resposta afetiva às crenças centrais do indivíduo. Ambas as funções integram os complicados padrões de crenças, narrativas e normas no tecido da vida interior e caráter do indivíduo.

O Elemento ExperimentalQuando consideramos o modo como uma equipe de progra­

madores desenvolve um novo sistema operacional para computa­dores, ou a maneira como um lógico deriva a conclusão de uma prova de lógica, ou a forma como um matemático resolve uma equação, notamos imediatamente que estas são tarefas principal­mente intelectuais. Os problemas em cada caso são estritamente racionais em natureza, e não exigem o envolvimento das emoções para resolvê-los. Claro que não é incomum ouvir os peritos nos campos técnicos falarem de forma apaixonada sobre seu trabalho. Mas quando os ouvimos falar deste modo, não confundimos o entusiasmo com a habilidade intelectual para executar tais tarefas. Se os programadores de computador, os matemáticos ou os lógi­cos são ou não afetados pelas tarefas técnicas que os confrontam, não é estritamente pertinente à conclusão dessas tarefas. O mes­mo não é verdade quando alargamos a discussão para além dos campos técnicos e começamos a considerar os relacionamentos que as pessoas têm com sua cosmovisão. Falando de modo geral, quando as pessoas adotam uma cosmovisão, fazem-no de corpo e alma. Isto significa que quando adotam uma cosmovisão, elas se entregam não só intelectualmente, mas também emocional e espi­ritualmente. Quando isto ocorre, a importância de certas experi­ências afetivas e espirituais competirá com a importância da ideo­logia, o elemento racional de uma cosmovisão.

Com frequência, as experiências afetivas e espirituais também desempenham um papel primordial no nascimento e desenvolvi­mento de uma cosmovisão. Nesta conexão, é notável que o judaís­mo e o cristianismo, os quais têm ideologias altamente desenvol­vidas, tenham Abraão do Antigo Testamento como fonte de inspi­ração. Abraão passou seus primeiros anos em Ur, lugar cujos ha­

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 51bitantes (os caldeus) provavelmente adoravam muitos deuses. Pa­rece plausível especular que, nesses dias, a ideologia de Abraão, assim como das pessoas ao seu redor, era politeísta (que admite a existência de muitos deuses). O que, então, explica o fato de que com a idade de 75 anos ele decidiu deixar seu país, seu povo e a casa do seu pai, e partir para uma terra que nunca tinha visto an­tes? As Escrituras não atribuem a mudança a uma troca de ideolo­gia. Antes, descrevem uma experiência: Deus falou com ele (Génesis 12.1-3). As crenças de Abraão sobre Deus (parte dessa ideologia) pa­recem ter mudado e amadurecido somente de­pois que ele respondeu fielmente à voz de Deus.Em suma, a experiência de Abraão deu à luz a uma nova maneira de pensar.

A maioria das cosmovisões religiosas dá lugar proeminente à experiência. E comumente considerada como força motriz em seu nascimento e desenvolvi­mento. O mesmo se aplica às cosmovisões filosóficas? Em muitos casos, a resposta é sim. Uma concepção errónea comum sobre cosmovisões filosóficas é que elas são exclusivamente produto do intelecto. O antigo filósofo grego Platão promoveu visão mais pre­cisa, quando afirmou que a filosofia começa maravilhada. Em outras palavras, o raciocínio filosófico é motivado habitualmente pelas experiências que nos afetam profundamente. O nascimento de uma criança, a morte de um amigo querido, um motim político, encontros com fenómenos naturais majestosos ou temerosos — estas e outras incontáveis experiências também podem nos levar a ponderar questões de preocupação última. Quando a reflexão em tais assuntos se aprofunda suficientemente, uma cosmovisão filo ­sófica pode emergir.

O desenvolvimento da própria cosmovisão filosófica de Platão ilustra o ponto. Platão nasceu em 428 a.C ., não muito depois do começo da guerra entre Esparta e Atenas, que durou quase três décadas (431-404 a .C .). Durante sua mocidade, ele vivenciou o falecimento e subsequente colapso das instituições políticas em Atenas, e experimentou em primeira mão o caos social em que caiu a cidade. Estas experiências em sua juventude parecem ter causado tremendo impacto em seu desenvolvimento filosófico. Mais tarde, em seus anos maduros, ele escreveu a República, um dos principais documentos políticos e filosóficos da literatura oci­dental. Nele, Platão enuncia não só sua visão de uma sociedade ideal, onde a justiça predomina, mas também fornece os temas centrais de sua cosmovisão.

As cosmovisões filosóficas mais recentes, como o marxismo e o existencialismo ateísta, exibem um padrão similar. O marxismo geralmente é considerado como uma ideologia, e certamente esta não é uma maneira inexata de reputá-lo. Mas, como o platonismo, não se desenvolveu num vazio social. O próprio Marx parece te

Quando a pessoa adota uma cosmovisão, se entrega não só intelectualmente, mas também emocional e espiritualmente.

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sido profundamente afetado pelo que viu e leu sobre as condições de trabalho suportadas pelos trabalhadores da Europa do século X IX , particularmente na Inglaterra. Em sua principal obra, O Ca­pital, ele lança a teoria económica pela qual ficou famoso. Porém, ele também detalha as condições miseráveis de mulheres que v i­viam (e frequentemente morriam) como virtuais escravas em es­tabelecimentos escravizantes, crianças que labutavam em fundi­ções, e homens que trabalhavam muitas horas sem parar por salá­rios de fome em moinhos e fábricas. Em suma, o marxismo emer­giu em parte como ideologia social proeminente, porque o próprio M arx foi profundamente movido pelo que experimentou.

Jean-Paul Sartre, amplamente considerado o fundador do mo­derno existencialismo ateísta, morou na França durante e entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Muitas de suas mais desta­cadas declarações ideológicas — a realidade não tem propósito além daquela que lhe impomos, as relações humanas são domina­das pelas lutas de poder — estão arraigadas em suas experiências daquele período. Claro que para pessoas como Platão, Marx e Sartre, suas ideologias eram acompanhadas de suas experiências, e não separadas delas.

Dois pontos principais evidenciam-se de nossa discussão do elemento experiencial de uma cosmovisão. Primeiro, a experiên­cia não é uma característica incidental de uma cosmovisão. Para o partidário típico de uma cosmovisão, ela é tão importante quanto a ideologia. Segundo, a experiência está integralmente ligada à ideologia. Em alguns casos, serve até de manancial da ideologia.

O Elemento SocialAté aqui temos discutido os elementos de uma cosmovisão,

vendo-os sincronicamente. Em outras palavras, ignoramos sua colocação na história e os discutimos como se existissem num estreito período de tempo. Mas é claro que esta abordagem é en­ganosa de vários modos. Em primeiro lugar, as cosmovisões não permanecem inalteradas ao longo de sua história. Portanto, vê-las apenas sincronicamente significa que ficamos propensos a igno­rar ou negligenciar a importância das mudanças que ocorrem numa cosmovisão com o passar do tempo. Além do mais, vê-las apenas sincronicamente aumenta a probabilidade de que não apreciare­mos uma das mais difíceis, contudo importantes tarefas que os partidários de qualquer cosmovisão enfrentam: ser bem-sucedido em perpetuar as crenças centrais e práticas de uma geração para a outra. Por estas e outras razões, os estudiosos acharam proveitoso considerar os fenómenos culturais à medida que ocorrem ou mu­dam durante determinado tempo. Isto é chamado de abordagem diacrônica. Um modo de exam inar uma cosm ovisão diacronicamente é examinar os arranjos sociais e as instituições de seus partidários.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

Max Weber (veja box no Capítulo 5) foi o primeiro a empreen­der um exame sistemático dos arranjos sociais e instituições das cosmovisões religiosas. E le notou que as religiões movem-se em padrões historicamente cíclicos. Na primeira parte de um ciclo, um líder carismático (um profeta, místico ou clérigo, por exem­plo) desempenha um papel proeminente. Esta pessoa transmite uma visão nova e poderosa às pessoas que estão preparadas para recebê-la. Depois que aceitam a mensagem do líder carismático e tomam-se seus discípulos, estas pessoas entram na fase de conso­lidar e formalizar os insights do líder. Esta fase é comumente marcada pelo tradicionalismo: os seguidores empenham-se em manter o poder e a vitalidade da mensagem como recebidas do fundador. A novidade dá lugar à rotina. A espontaneidade dá lugar à institucionalização. Os ajuntamentos sociais e eventos que ou- trora requeriam pequena promoção ou notificação anterior agora ocorrem de acordo com um horário fixo. Com o passar do tempo,

Platão (428-348 a.C .) foi filósofo grego do período clássico. Como aristocrata jovem concorreu a cargo político. A única relação mais importante que travou foi com Sócrates, cuja vida, personalidade e ensinos lhe influ­enciaram profundamente. Poucos anos de­pois da execução de Sócrates pelos atenienses em 399 a.C., Platão começou a escrever traba­lhos filosóficos na forma de diálogos (conver­sações). Muitos deles apresentam Sócrates como personagem principal. Em cerca de 386 a.C., perto de Atenas, Platão fundou a escola mais influente do mundo antigo, a Academia, onde ensinou até a morte. Seu aluno mais fa­moso foi Aristóteles.

Os diálogos filosóficos de Platão entram em três grupos principais. Os primeiros diá­logos ou diálogos socráticos (por exemplo, Apologia, Critias e Eutifró), apresentam Sócrates em conversas vivazes com atenienses proeminentes sobre assuntos im­portantes como a devoção e a coragem. Com frequência as visões colocadas na boca de Sócrates parecem ser consistentes com o que se acredita que o Sócrates histórico manti­nha. Os diálogos do período mediano ou

maduro (por exemplo, A República, Fedo, O Simpósio) ainda apresen­tam Sócrates como pensa­dor poderoso c falante, mas acredita-se que a visões que promovia são de Platão, o filósofo maduro. Os diálo­gos do último período ou período crítico (por exemplo, Timeu, Parmênides e As Leis) pa­recem reter a forma de diálogo apenas no nome e trazem mais semelhança a tratados que a diálogos. Na maioria das vezes Sócrates não é o protagonista; às vezes ele faz somente um aparecimento de relance; em Av Leis ele não aparece de jeito nenhum. Os últimos diálogos são chamados diálogos críticos, porque neles Platão avalia e desafia suas próprias visões filo­sóficas anteriores.

Os diálogos de Platão tocam virtualmen­te em todo problema importante que foi ob- jeto de estudo de filósofos subsequentes. Seus ensinos são considerados entre os mais influentes da história da civilização ociden­tal, e seus escritos estão entre os mais im­portantes da literatura em todos os tempos.

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T

os seguidores separam-se em facções identificáveis no grupo: os que prudentemente aderem às rotinas da instituição, e os que ten­tam recapturar a vitalidade da mensagem original do fundador. A tensão entre estas duas facções pode durar muito tempo, mas even­tualmente uma divisão acontece e o ciclo começa novamente quan­do uma nova figura carismática explora a tensão.

O relato de Weber explica muitos fenómenos interessantes nas cosmovisões religiosas. Por exemplo, ajuda a explicar a existên­cia de seitas religiosas. No judaísmo, o hassidismo originou-se na Polónia do século X V III, como um movimento em resposta à per­seguição e reação contra o formalismo académico do judaísmo rabínico. Seu fundador carismático chamava-se Baal Shem Tov, que incentivava a expressão religiosa jovial pela música e dança, e ensinava que a pureza de coração era mais agradável a Deus do que a repetição mecânica de rituais e o estudo intensivo das Escri­turas e do Talmude. Mas as gerações subsequentes de hassidim passaram precisamente pelos tipos da dinâmica cíclica identifica­dos por Weber. A medida que os líderes e membros da seita pro­curavam consolidar os insights do fundador, deram crescente aten­ção a fatores externos que os identificavam como “os piedosos” . Quase imediatamente, as roupas e os penteados (descritos tão elo­quentemente por Potok) começaram a se salientar como caracte­rísticas identificadoras dos hassidim. Além disso, a adoração que outrora era apreciada por sua espontaneidade, alegria e falta de formalismo, passou a assumir padrões específicos e rotineiros. Mesmo o estudo intenso das Escrituras e do Talmude, depreciado pelos primeiros líderes, no fim tornou-se uma característica im­portante da vida hassídica. Na realidade, o estudo ganhou tama­nha obsessão que dentro do prazo de algumas gerações do seu início, o hassidismo tinha produzido vários grandes talmudistas. Em várias conjunturas históricas, a tensão entre aqueles que fiel, mas mecanicamente, mantiveram-se firmes às tradições, e aqueles que ten­tavam recuperar o espírito e vitalidade que animou Baal Shem Tov desencadeou-se abruptamente. Divisões ocorreram sobre pontos de doutrina e prática, e novos ramos do hassidismo se formaram, em geral sob a direção de um novo líder influente.

Em The Chosen, Potok, que é judeu e intimamente fam iliari­zado com as tensões e pontos estressantes dentro do judaísmo, fala com autoridade quando explica como os hassidim viam os grandes líderes de sua tradição: “Os hassidim tiveram grandes l í­deres — tzaddikim, como os chamavam, os íntegros... Eles segui­am esses líderes cegamente. Os hassidim acreditavam que o tzaddik era um vínculo sobre-humano entre eles e Deus” .33 Profundo afe- to por seus líderes, lealdade feroz uns aos outros e um forte senso de tradição tomou possível aos hassidim sobreviverem durante séculos de perseguição na Europa oriental.

Por outro lado, estas mesmas características também geraram dentro deles atitudes de superioridade espiritual em relação aos

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outros judeus, e os levaram a definir a sociedade grupai com ex­clusividade. Aqueles, cujas visões eles rejeitaram, foram estigma­tizados por eles com rótulos: goyim, para os gentios, e apikorsim, para os judeus.

Seitas como o hassidismo dificilmente são exclusivas ao juda­ísmo. Se Weber estiver certo, todas as principais religiões as têm, porque todas as principais religiões passam pelos ciclos sociais que ele descreveu. Além disso, esses ciclos não parecem estar l i­mitados a comunidades religiosas. Os grupos sociais seculares comumente mostram a mesma dinâmica. O desenvolvimento his­tórico do comunismo tanto na Rússia quanto na China ilustram perfeitamente o ponto. Vladim ir Lenin (1870-1924) foi revoluci­onário russo, fundador do bolchevismo e força importante no es­tabelecimento da União Soviética. Mao Tse-Tung (1893-1976) foi revolucionário chinês e fundador da República Popular da China.

Ambos eram conhecidos como visio n ário s e líderes carismáticos. Contudo, enquanto ainda viviam , ambos viram a visão pessoal que tinham do socialismo sofrer transformação. As organizações políticas e os governos encarregados de executar a visão desses homens em seus respectivos países depressa toma­ram-se fortemente burocráticas, totalitárias até. Mao viveu o bas­tante para entender o quão distante as instituições políticas e a burocracia governamental tinham se desviado de sua visão. Em parte como reação a isso, ele instigou a suposta revolução cultural (1966-1969), um período de difundida agitação que ele parecia considerar ocasião para recapturar o espírito revolucionário das primeiras décadas.

Nenhuma cosmovisão pode sobreviver à parte de uma situa­ção social que transponha múltiplas gerações. Em outras palavras, uma cosmovisão que só dura uma geração quase não é digna do nome. Assim , o elemento social é indispensável para o sucesso a longo prazo de qualquer cosmovisão. Aqueles que se preocupa­ram em passar uma cosmovisão vital à geração seguinte utiliza­ram os elementos discutidos anteriormente: ideologia, narrativa, normas morais e estéticas, rituais e experiência. Os professores procuram transmitir uma compreensão de ideologia e normas, os pais contam histórias, os líderes da comunidade buscam nutrir uma avaliação dos rituais, e todo o mundo trabalha para prover eventos sociais e instituições que evoquem as experiências que são vitais para a cosmovisão.

Claro que não há garantia de que cada geração sucessiva en­tenderá e permanecerá fie l à sua herança. Se Weber tiver razão acerca das fases de desenvolvimento de uma cosmovisão, então toda geração enfrenta duas tarefas assustadoras: 1) a tarefa de trans­mitir fielmente à próxima geração os insights do seu passado (como os enunciados na visão do fundador), e 2) a tarefa de ajudar a próxima geração a lidar com as tendências culturais (sociais, polí­ticas, religiosas) no presente. Os hassidim retratados em The

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Nenhuma cosmovisão pode sobreviver à parte de uma situação social que transponha

múltiplas gerações.

Chosen procuraram cumprir a primeira tarefa, em parte estabele­cendo yeshivas, exigindo rigorosos estudos diários do Talmude e reunindo-se regularmente para oração nas sinagogas. Buscaram realizar a segunda tarefa, em parte adotando um estilo distintivo de vestuário, restringindo sua associação com estranhos, lim itan­do a amplitude das matérias ensinadas na escola, e proibindo seus filhos de assistirem filmes.

Há inumeráveis maneiras de deixar de trans­mitir uma cosmovisão em toda a sua riqueza. O fascínio da cultura popular contemporânea pode ser uma distração importante. Foi justamente por isso que Potok fez com que os rabinos em The Chosen objetassem em permitir as crianças hassídicas assistirem filmes e participarem de jogos de beisebol. O fato de Danny e Reuven

terem se encontrado pela primeira vez num jogo de beisebol dá teste­munho ao poder da cultura popular contemporânea.

Além do canto de sereia da cultura popular, as estratégias para transmitir uma cosmovisão podem ser falhas ou ineficazmente executadas. Por exemplo, os métodos pedagógicos apropriados para uma pessoa ou geração podem ser impróprios para outra. O rabino Saunders ensinou Danny impondo uma regra de silêncio: desde quando Danny tinha quatro anos, o rabino Saunders só fala­va com ele em situações formais, como quando eles estudavam o Talmude. E le estava usando um método empregado por seu pai. O propósito era assegurar que o seu filho brilhante aprenderia so­frendo (pelo silêncio imposto) e, assim, aprenderia a sentir empatia pelos que sofrem. No caso de Danny, a técnica quase não deu cer­to, e por pouco não o enlouqueceu.

Obviamente há muitas dificuldades associadas com a tarefa de transmitir uma cosmovisão de uma geração para a outra. Numa corrida de revezamento há muitas maneiras de derrubar o bastão. Dadas as inumeráveis dificuldades associadas com a tarefa, não deveríamos ficar admirados que algumas cosmovisões caíssem em desgraça e deixassem de representar um papel vital nas vidas de um povo. Antes, deveríamos ficar maravilhados que algumas cosmovisões foram transmitidas com sucesso de uma geração para a outra por milhares de anos.

Elementos de uma Cosmovisão CristãAo longo deste capítulo, citamos exemplos de diversas cos­

movisões para ilustrar os vários componentes de uma cosmovi­são. Alguns dos exemplos foram retirados de nossa herança cristã. Encaminhamo-nos à pressuposição de que o cristianismo é uma cosmovisão, e que exibe elementos comuns a outras cosmovisões. Agora estamos em posição para afirmar explicitamente (e não apenas presumir) que o cristianismo realmente é uma cosmovi-

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

são. Como outras cosmovisões, ela fornece uma abordagem in­clusiva às preocupações essenciais da vida. Além disso, como ou­tras cosmovisões, a cosmovisão cristã exibe todos os seis elemen­tos discutidos nas seções precedentes. A seguir, vamos recapitular os seis elementos de uma cosmovisão para destacar as crenças centrais e práticas de uma cosmovisão cristã.

O Elemento IdeológicoIdeologia é um termo geral usado para descrever as crenças

centrais de qualquer cosmovisão. O nome mais habitual dado à ideologia na tradição cristã é “doutrina” . Outra maneira de ilus­trar o ponto é dizer que, na tradição cristã, as declarações doutri­nárias foram os instrumentos primários para declarar a ideologia de uma cosmovisão cristã.

Como as outras principais cosmovisões, o cristianismo enun­cia o que anteriormente chamamos de teoria de fundo sobre a na­tureza do universo. Esta teoria de fundo inclui relatos do cosmo, de Deus e da história. O cristianismo também oferece um relato geral da natureza humana.

O C o sm o

Na cosmovisão cristã, o cosmo foi criado por Deus. Esta posi­ção separa o cristianismo das cosmovisões naturalistas, já que elas não reconhecem a atividade divina no cosmo. Mas também separa o cristianismo de outras cosmovisões que reconhecem a existên­cia de seres divinos. Por exemplo, os gregos antigos acreditavam que os deuses existiam, que eram imortais e que estavam ativos no cosmo. Ao mesmo tempo, os gregos não acreditavam que os deuses haviam criado o cosmo.

Na cosmologia grega antiga, a mais primitiva coisa existente era uma unidade primordial, uma massa indiferenciada. O primeiro está­gio do desenvolvimento era o aparecimento de um buraco (literal­mente, “caos”), uma separação em duas partes da unidade original. As duas partes tomaram-se Céu e Terra. Os deuses da mitologia po­pular apareceram somente muito mais tarde.34 Aqui temos uma dife­rença notável com a doutrina cristã, segundo a qual Deus existiu pri­meiro e depois criou o cosmo: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Génesis 1.1). Além disso, o cristianismo ortodoxo assevera que o cosmo é continuamente sustentado por Deus, e o que Ele criou é bom. Os gregos acreditavam que os deuses eram ativos no cosmo, mas não lhes atribuíam nenhuma responsabilidade pela existência continuada do cosmo. Nem acreditavam que os deuses eram capazes de determinar as qualidades morais de qualquer coisa que existe.

D eu s

As doutrinas cristãs sobre Deus são numerosas e complexas, frequentemente sutis e altamente refinadas. Não podemos resu­

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mi-las todas aqui. Porém, podemos reiterar algumas das mais im­portantes. Para começar, na doutrina cristã, Deus é a figura cen­tral. Não apenas tudo foi criado por E le , mas tudo foi criado para Ele. Ele é a fonte de tudo no cosmo e, no fim , tudo no cosmo cumprirá seus propósitos de acordo com um plano traçado por Ele desde tempos imemoriais. Deus também é bom. Além disso, Ele não tem começo nem fim . Neste aspecto, o relato cristão de Deus diverge de maneira importante do antigo relato grego dos seus deuses. Os deuses gregos não eram uniformemente bons. Na ver­dade, com algumas exceções, não eram moralmente superiores aos seres humanos. É verdade que os deuses gregos eram conside­rados seres imortais. Mas a imortalidade era um conceito lim ita­do. Significava somente que os deuses não morreriam e não que eles não tinham tido começo.

A H i s t ó r i a

De acordo com a doutrina cristã, Deus não criou o cosmo e depois o abandonou. Bem ao contrário, E le está intimamente en­volvido no desdobramento dos eventos históricos. Na cosmologia grega, o destino e o acaso receberam papéis proeminentes. Mas estes eram forças fundamentalmente cegas e impessoais sobre as quais nem os deuses nem os humanos exerciam muito controle. Na doutrina cristã, Deus, que controla o destino de tudo, não é cego nem impessoal. Ele está introspectiva e pessoalmente em ação na história, num modo que consequentemente, a seu tempo, cum­prirá seus propósitos. Neste ponto, claro que a doutrina cristã di­fere notadamente não apenas das visões teístas limitadas como as dos gregos antigos, mas também das cosmovisões naturalistas (como do marxismo ou do existencialismo), que afirmam que os eventos históricos são exclusivamente o resultado ou das forças cegamente mecânicas, ou do empenho humano.

A N a t u r e z a H u m a n a

Comentamos anteriormente que as principais cosmovisões for­necem não somente uma teoria de fundo sobre o universo, mas também um relato geral da natureza humana. O cristianismo tam­bém fornece tal relato. Este relato coincide com o que o cristianis­mo afirma sobre o cosmo em geral: Deus criou a humanidade, Ele não está afastado e distante, mas bastante íntima e pessoalmente familiarizado com cada ser humano individual, e está executando seus propósitos últimos na vida dos seres humanos individuais. Mas aqui a semelhança entre a humanidade e o resto do cosmo acaba. Estrelas e planetas, rios e montanhas, salmões e ursos cin­zentos, prótons e nêutrons, tudo opera de acordo com certa or­dem. Em toda criatura há certas forças naturais e inclinações que a orientam a um fim e a capacitam a agir de certas maneiras. Esta ordem é a que Deus impôs nas criaturas, quando instilou nelas as

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

tendências que têm, e é uma expressão de sua lei eterna que gover­na o cosmo. É óbvio que os seres humanos são parte da natureza e, como tal, também exibem inclinações naturais que os orientam a um fim e os capacitam a executar as atividades físicas e mentais.

Mas os seres humanos estão ordenados ao seu fim e às suas atividades de certo modo que difere profundamente de outras cri­aturas. Os seres humanos são dotados de razão e, portanto, têm a capacidade (embora limitada) de descobrir por si mesmos o que necessitam fazer para alcançar seus fins. Diferentes de outras cri­aturas distintas, eles também têm a capacidade de ignorar ou re­jeitar os fins que lhes sejam apropriados. Em outras palavras, eles podem eleger não se dirigir aos ideais que Deus lhes fixou anteri­ormente. Tragicamente elegeram fazer isso e, assim, se alienaram de Deus, o Criador de todas as coisas boas. Na doutrina cristã, esta escolha em não visar os ideais estabelecidos por Deus é cha­mada de pecado (tradução do grego e do hebraico que significa errar a marca ou o alvo).

Quais são os ideais e como a atividade humana pode ser reorientada de modo a que os seres humanos os almejem mais uma vez? Alguns dos mais básicos e importantes são as caracte­rísticas interiores que definem o caráter da pessoa, as relações fra­ternais com os seres humanos e uma relação harmoniosa com o próprio Deus. Se os seres humanos são capazes de direcionar um curso para longe dos ideais divinamente ordenados, eles não são semelhantemente capazes de redirecionar o próprio curso em di- reção a esses ideais e restabelecer uma relação harmoniosa com Deus. Só Deus pode fazer isso, e E le escolheu efetuar a reconcili­ação mediante a vida, morte e ressurreição de Jesus.

De onde vêm as doutrinas da cosmovisão cristã? Fundamen­talmente, vêm da B íb lia. Visto que todas as partes da B íb lia são consideradas sagradas e divinamente inspiradas, todas elas tam­bém são fontes potenciais de doutrina.35

O Elemento NarrativoNa cosmovisão cristã, as narrativas podem ser divididas em

duas categorias gerais — primária e secundária — , refletindo a importância relativa e autoridade das fontes. As narrativas primá­rias são encontradas na B íb lia. Incluem histórias sobre a criação do cosmo por Deus; o afastamento de Deus por parte do primeiro homem e da primeira mulher; os subsequentes concertos entre Deus e a humanidade; o nascimento, morte e ressurreição de Jesus; a formação e expansão da Igreja e os acontecimentos finais da his­tória. Também incluem histórias de algumas das mais notáveis pessoas de fé, como Abraão, Jacó, Moisés, Josué, Davi, Daniel, Pedro e Paulo.

As narrativas secundárias refletem a experiência contínua dos cristãos ao longo dos séculos desde a formação da Igreja. Incluem

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relatos da morte de mártires, histórias de santos, descrições de milagres e testemunhos da fidelidade de Deus em assuntos peque­nos e grandes.

As narrativas secundárias às vezes tomam a forma de relatos históricos. Dois exemplos modernos populares são O Refúgio Se­creto, de Corrie ten Boom (que fala sobre uma fam ília cristã que escondeu os judeus e, assim, os salvou da morte às mãos dos na­zistas) e A Cruz e o Punhal, de David Wilkerson (sobre um m inis­tro jovem que foi para as ruas e becos sujos de Nova York para pregar o Evangelho aos membros de uma gangue de adolescentes viciados em droga).

Às vezes, as narrativas secundárias tomam uma forma literá­ria. O poema épico de Dante A lighieri, A Divina Comédia, a ale­goria de John Bunyan, O Peregrino, o poema épico de John M il­ton, O Paraíso Perdido, a curta história de Flannery 0 ’Connor, “Revelação” , e os romances de C. S. Lewis, A í Crónicas de Namia, são exemplos notáveis de peças literárias que enunciam uma cos­movisão nitidamente cristã.

Às vezes, as narrativas secundárias até aparecem nas artes v i­suais. A catedral gótica medieval em Chartres, França, encarna eloquentemente uma cosmovisão cristã. O edifício foi disposto na forma de cruz; os vitrais descrevem eventos do Antigo e Novo Testamentos; as figuras esculpidas e colocadas nos portais fazem- nos lembrar de personagens bíblicas famosas; seus pináculos apon­tam para o céu. Cada característica visível da arquitetura da cate­dral nos faz lembrar das narrativas centrais do cristianismo e, as­sim, reforça as doutrinas e ensinos da Igreja medieval.

Numa cosmovisão cristã, as narrativas primárias são mais im­portantes e mais autorizadas do que as narrativas secundárias. Isto deve-se ao fato de que elas aparecem na Escritura Sagrada, a qual é considerada divinamente inspirada. Entretanto, as narrativas secundárias certamente não são destituídas de importância. Além do mais, as narrativas primárias e secundárias proporci­onam funções semelhantes. Como as narrativas em outras cos­movisões, elas reforçam e embelezam temas ideológicos cen­trais, ou seja, doutrinários, e fornecem padrões, ou modelos, para os crentes seguirem.

O Elemento Normativo

Comentamos anteriormente que uma norma é um padrão de algum tipo, que encontramos normas em virtualmente toda faceta da vida (da gramática às artes culinárias e à le i), e que nossos julgamentos e avaliações de todo comportamento hu­mano e caráter firmam-se nas normas. Também notamos que dois dos tipos mais importantes de normas são as normas mo­rais (ética) e as normas estéticas. Uma cosmovisão cristã in­clui ambos os tipos.

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A D im e n sã o M o r a l

Para os cristãos, as normas morais derivam das Escrituras. Isto acontece pelo menos de duas maneiras. As vezes, as Escrituras explicitamente proíbem ou exigem certo tipo de comportamento. Os Dez Mandamentos, apresentados em Êxodo 20, e os dois mandamen­tos de Jesus para amar a Deus e ao próximo são bons exemplos de proscrições e prescrições específi­cas. Mas normas importantes nem sempre são apresentadas na forma de mandamentos específicos. Por vezes, elas surgem como enuncia­dos vívidos e poderosos nas narra­tivas de homens e mulheres que aparecem na Escritura.

O sétimo mandamento proíbe o adultério (Êxodo 20.14); a história de José que foge da esposa de Potifar (Génesis 39) exemplifica dramaticamente o que significa v i­ver segundo o sétimo mandamen­to. O décimo mandamento proíbe desejar coisas que pertencem ao próximo (Êxodo 20.17); a história do desejo de Davi por Bate-Seba, a esposa de Urias, o heteu, nos faz lembrar vividamente dos resultados trágicos de agir segundo nossos desejos cobiçosos (2 Samuel 11). A lei levítica exige que o povo esco­lhido de Deus ame o próximo como a si mesmo (Levítico 19.18); a his­tória de Jônatas e Davi descreve eloquentemente o significado do amor profundo e permanente de um amigo: “A alma de Jônatas se ligou com a alma de D avi- e Jônatas O Plano da Catedral de Chartres, França. (Segundo Frankl.)amou como à sua própria alma” (1 Samuel 18.1).

Séculos depois, quando um jovem rico pediu a Jesus que lhe dissesse quais eram as exigências para alcançar a vida eterna, Je­sus o lembrou que os mandamentos lhe exigiam que amasse ao próximo como a si mesmo e, depois, disse-lhe para vender todas as suas possessões e dá-las aos pobres. O jovem partiu triste. Se a história do amor de Jônatas por Davi exemplifica amar ao próxi­mo, a história do jovem rico deixa claro como outras coisas po-

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dem reivindicar nosso afeto e nos afastar para longe do ideal. Ao longo da B íb lia, as narrativas dão vida ao significado das normas morais que, do contrário, pareceriam como mandamentos rudes e formais.

A D im e n s ã o E s t é t ic a

Se a narrativa desempenha um papel proeminente mostrando as normas morais para o cristão, desempenha papel ainda maior demonstrando as normas estéticas — as normas pelas quais julga­mos o que é bonito, agradável ou sublime. Considerando que as Escrituras proporcionam uma riqueza de mandamentos para guiar nosso comportamento e desenvolvimento de caráter na esfera moral, elas fornecem algumas ordens explícitas sobre o que se espera na esfera estética. Mas esta falta relativa de instrução espe­cífica não significa que as Escrituras estejam caladas no assunto de julgar o que é bonito, agradável ou sublime. Elas expressam princípios importantes na forma de narrativa. Os detalhes apre­sentados para construir o Tabernáculo no Livro de Êxodo36 não deixam dúvida de que Deus valoriza imensamente a beleza. Além disso, podemos deduzir das declarações sobre Bezalel, o principal artífice do projeto, que a habilidade especializada e a perícia são dons de Deus. Moisés, falando aos israelitas, diz acerca dele: “E is que o SENHOR tem chamado por nome a Bezalel. [...] E o Esp íri­to de Deus o encheu de sabedoria, entendimento e ciência em todo artifício, é para inventar invenções, para trabalhar em ouro, e em prata, e em cobre, e em artifício de pedras para engastar, e em artifício de madeira, para trabalhar em toda obra esmerada” (Êxodo 35.30-33).

Se a habilidade e o talento artístico são dons de Deus, a narra­tiva em Êxodo deixa claro que os produtos resultantes da aplica­ção desses dons não eram destinados a ficar guardados em mu­seus. Os museus — edifícios erigidos para proteger e exibir arte- fatos e obras de arte — são em grande parte invenção moderna. Mesmo quando protegem e exibem objetos de arte, eles dão teste­munho silencioso do fato de que esses objetos já não pertencem à vida cotidiana. O Tabernáculo do Antigo Testamento (e depois, o Templo de Salomão) não eram museus. Eram lugares de adora­ção, oração e (às vezes) celebração. Isto significa que os artefatos e as obras de arte cuidadosamente produzidos por pessoas como Bezalel não deveriam ser considerados objetos produzidos mera­mente por amor a uma experiência estética pura — como se diz, produzidos segundo a “arte pelo amor a arte” . Antes, eram artefa­tos e obras de arte cujo contexto significativo era um lugar de adoração.

Em outras palavras, a contemplação de artefatos bonitos e obras de arte — inclusive os artigos de vestuário dos sacerdotes, os co­pos e tigelas, os altares, a arca da aliança — eram contínuos com o ato da adoração. O mesmo Deus que chamou Bezalel e outros

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artesãos para fazerem artefatos bonitos e obras de arte também chamou o povo para entrar em adoração nos confins (ou pelo me­nos próximo) de uma estrutura bonita e perto de objetos bonitos. Mas claro que a adoração não era a adoração da beleza per se, mas de Deus, o Criador de todas as coisas boas e bonitas.

Não estamos procurando fazer um esboço completo de uma estética cristã. Nossa intenção é muito mais simples: Embora a B íb lia dê poucas diretrizes ou instruções claras para avaliar a arte, suas narrativas proporcionam fonte rica de exemplos que podem nos ajudar a desenvolver uma estética cristã. Outro modo de al­cançar o mesmo objetivo é: na ausência de instruções bíblicas ex­plícitas para julgar coisas bonitas, agradáveis e sublimes, não deveríamos concluir que Deus não se preocupa com a estética. Nem deveríamos concluir que a arte é mera questão de gosto pes­soal, e que nenhum padrão (norma) pode ser evocado para julgar o que é apresentado como arte. As narrativas bíblicas ajudam o leitor paciente a pensar em padrões apropriados. Por exemplo, elas o fazem fornecendo modelos de contextos signifícãiivos (como adora­ção ou celebração) dentro dos quais foram exibidos artefatos e obras de arte. Entender estes contextos podem fornecer pistas sobre os lim i­tes do esforço artístico e da avaliação artística para o cristão.

O Elemento RitualOs elementos ideológico, narrativo e normativo do cristianis­

mo enunciam suas crenças centrais. Mas o cristianismo é muito mais que um conjunto de crenças. Como fé viva e cosmovisão, inclui também rituais distintivos que ajudam a integrar as crenças centrais na urdidura do comportamento e caráter dos crentes.

Identificamos anteriormente três funções dos rituais: 1) repre­sentar eventos para tomá-los reais no presente, 2) facilitar as tran­sições de um status para o outro, e 3) renovar laços entre os mem­bros de um grupo. Os principais rituais no cristianismo atendem a essas três funções.

O exemplo mais proeminente de um ritual que representa um evento passado é a celebração da Ceia do Senhor. Evidentemente este ritual era importante desde os mais primitivos dias da Igreja. Na época em que Paulo escreveu sua primeira carta aos crentes coríntios, a Ceia do Senhor já estava em uso (1 Coríntios 11). Pa­rece que alguns crentes a estavam usando como pretexto para fes­tejar e beber, enquanto outros passavam fome. Por esta razão, Paulo lembrou os crentes coríntios do propósito e significado da Ceia do Senhor. Não é, mostrou ele, ocasião para se comer e beber desre­grada e coletivamente. Antes, é ocasião para lembrar do sacrifício de Cristo na cruz, e refletir sobre como está a condição espiritual da pessoa.

No decorrer dos séculos, participar na Ceia do Senhor tem sido definida nos termos da descrição que Paulo fez aos coríntios:

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“Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Coríntios 11.26).

Os rituais também facilitam a transição de um status para o outro. A expressão mais notável desta função de ritual no cristia­nismo é a prática do batismo. O batismo marca a transição de um conjunto de lealdade para outro, da identificação com o velho Adão, o primeiro homem, para a identificação com o novo Adão, Cristo.

O batismo também atende à terceira função dos rituais: forta­lecer laços com um grupo. Notavelmente, o batismo é um ato pú­blico. Não é feito em segredo, mas na presença de testemunhas. Assim , quando o convertido mergulha na água e depois emerge, duas coisas acontecem. Primeiro, o convertido, tendo simbolica­mente morrido com Cristo, ressuscita para a vida com Cristo me­diante sua ressurreição. Segundo, o convertido também se toma parte de uma comunidade de crentes. Desta forma, o batismo esta­belece um laço com todos os cristãos (a Igreja universal). Ao mes­mo tempo, aqueles que testemunham o batismo são lembrados da fé comum que os une a todos os crentes, vivos e mortos.

Antes de sairmos do elemento ritual, devemos parar por um momento e refletir no significado dos rituais para o cristão. Os rituais, na melhor das hipóteses, são expressões publicamente observáveis de atitudes, intenções e disposições que essencialmente

O A ctuai da, &eJÍe&fu%çaó' da, &eca, da Seaá&i

Todos os quatro Evangelhos relatam uma ceia que Jesus teve com os discípulos próxi­mo à época da Festa da Páscoa judaica e imediatamente antes da crucificação: Mateus

26, Marcos 14, Lucas 22, João13. Ev id en te­mente esta ceia fo i considerada importante, por­que desde os pri­m itivos dias da Igreja era lem ­brada e comemo­

rada regularmente. Para minimizar o abuso e a distorção deste evento comemorativo na igreja coríntia primitiva, Paulo apresentou

instruções simples que se tornaram padrão para todas as celebrações subsequentes da Ceia do Senhor:

“Porque eu recebi do Senhor o que tam­bém vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em me­mória de mim. Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ve­nha” (1 Coríntios 11.23-26).

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 65não são vistas. Quando observados atenta e pensativamente, tor- nam-se os vestuários (túnicas cerimoniais) dos atos espirituais. Claro que os rituais também podem ser representados de modo irrefletido e mecânico. Neste caso, tornam-se meras rotinas e per­dem seu poder espiritual. Onde está a diferença? O que determina sua vitalidade? Os rituais que realizam sua promessa são instruí­dos pela sã doutrina e fundamentados na experiência.

O Elemento ExperiencialQuando falamos do elemento experiencial do cristianismo

(aquele que é produzido pela experiência), temos em mente pri­mariamente as formas pelas quais alguém encontra Deus. A Bíblia está liberalmente salpicada de narrativas que descrevem tais en­contros. Além disso, os encontros não seguem um modelo ou fór­mula simples. Evidentemente, Deus toma sua presença conhecida de numerosas e variadas maneiras. Não obstante, diversas descri-

O batismo é um ritual antigo, datado des­de os mais primitivos dias da igreja. Mar­cando uma quebra da identificação com o velho Adão (o primeiro homem) para a iden­tificação com o novo Adão, Cristo, o batis­mo é o ritual de transição mais importante da cristandade. Como ritual publicamente representado, também serve para estabele­cer e fortalecer os laços com membros da comunidade imediata de fé, assim como com os cristãos de todos os lugares e de todos os tempos (a Igreja universal). A evidência para a importância do batismo é vista no fato de que o próprio batismo de Jesus está registra­do nos Evangelhos.

João Batista falou aos seus seguidores:“E eu, em verdade, vos batizo com água,

para o arrependimento: mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; não

sou digno de levar as suas sandálias; ele vos balizará com o Espírito Santo e com fogo. Em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará a palha com fogo que nunca se apagará.

“ Então, veio Jesus da Galiléia ter com João junto do Jordão, para ser balizado por ele. Mas João opunha-se-lhe, dizendo: Eu careço de ser batizado por ti, e vens tu a mim?

“ Jesus, porém, respondendo, disse-lhe: Deixa por agora, porque assim nos con­vém cumprir toda a justiça. Então, ele o permitiu.

“ E , sendo Jesus batizado, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viuo Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre ele. E eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Maieus 3.11-17).

ções bíblicas de encontros com Deus mostram padrões de experi­ência que parecem repetir-se em tipos comuns de experiência na história do cristianismo. Tocaremos aqui brevemente em quatro exemplos: Paulo na estrada de Damasco (Atos 9), Isaías no Tem­plo (Isaías 6), os apóstolos reunidos no Dia de Pentecostes (Atos 2), e Elias na caverna em Horebe (1 Reis 19).

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A experiência de Paulo na estrada de Damasco foi de conver­são radical. Aconteceu nos primeiros dias da formação da Igreja, quando ela estava transbordando dos limites do seu local de nasci­mento em Jerusalém, e espalhando-se para muitas regiões do anti­go Oriente Próximo. Naquela época, a Igreja também estava co­meçando a sofrer oposição organizada. Paulo (conhecido então por Saulo) era judeu devoto e zeloso, com bastante treinamento religioso na tradição farisaica. Por razões que não entendemos completamente, ele buscou prender e encarcerar qualquer cristão que encontrasse em Damasco. As Escrituras dizem que enquanto se aproximava de Damasco, uma luz do céu iluminou tudo ao re­dor. Caindo em terra, cego, ele ouviu a voz de Jesus: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” A voz o instruiu a prosseguir para Da­masco. Lá , depois de três dias, ele foi procurado por um cristão chamado Ananias, que orou para que lhe fosse restaurada a visão.

Ao recuperar a visão, Paulo foi batizado e quase imediatamen­te começou a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. A experiência de Paulo foi uma das primeiras e dramáticas conver­sões à fé cristã. Fora o fato de ser batizado, nenhuma das caracte­rísticas específicas da experiência de conversão de Paulo (o res­plendor de luz, cair em terra, ouvir a voz) tornou-se padrão para as outras conversões. Ao mesmo tempo, o fato de ter encontrado Deus (na pessoa de Jesus Cristo) de um modo transformador é ampla­mente considerado entre os cristãos como experiência fundamen­tal que define o que significa ser cristão.

A experiência de Isaías no Templo traz certa semelhança com a experiência de Paulo na estrada de Damasco: Ambos tiveram uma experiência visual e ouviram uma voz. Paulo viu uma luz ofuscante e ouviu a voz de Jesus; Isaías viu o Senhor “assentado sobre um alto e sublime trono” , e ouviu a voz do serafim declarar: “Santo, Santo, Santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória” (Isaías 6.1-3).

Mas a experiência de Isaías foi notavelmente diferente da de Paulo. A experiência de Paulo foi de conversão que radical­mente o transformou de inimigo de Cristo e sua igreja a segui­dor de Cristo e líder na comunidade de crentes. Por outro lado, Isaías não era inimigo de Deus; na verdade, na época de sua experiência no Templo, ele era israelita devoto. Sua experiên­cia, então, é melhor descrita não como uma conversão, mas como um comissionamento.

Isaías ouviu e respondeu a chamada de Deus para falar uma mensagem profética da parte dEle ao povo de Israel. Da mesma maneira que a conversão é comumente reconhecida entre os cris­tãos como uma experiência espiritual definida, assim também ser chamado e comissionado a uma vida de serviços a Deus é reco­nhecido como experiência cristã comum. Com toda a certeza, nem todo o mundo tem uma experiência tão impressionante e esmaga­dora como Isaías. Mas os cristãos de todas as eras da Igreja deram

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 67testemunho de encontros com Deus, nos quais criam que foram comissionados para uma vida de serviço.37

A experiência de Isaías no Templo de nenhuma maneira era sem igual entre os personagens do Antigo Testamento. Outros pro­fetas também tiveram encontros incomuns — impressionantes até — com Deus, que resultaram no comissionamento deles. Amós, Jonas e Jeremias (só para citar três) tiveram tal experiência. Con­tudo, os profetas de então são mais lembrados __________________pela natureza singular de suas experiências do que por qualquer padrão que estabeleceram para os cristãos. Porém, o profeta Joel falou de um tempo futuro, em que Deus derramaria do seu Espírito em todos os seus servos, homens e mulheres (Joel 2.29). Séculos mais tarde, no Dia de Pentecostes seguinte à ressurreição de Jesus, Pedro achou ocasião para lembrar a pro­fecia de Joel. No segundo capítulo de Atos,Lucas descreve um fenómeno que transformou um pequeno gru­po de tímidos seguidores de Jesus em uma comunidade vital de crentes corajosos, que entenderam terem sido comissionados por Deus para darem testemunho do Cristo ressurreto. “Cumprindo- se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (Atos 2.1-4). A experiência de Isaías no Tem­plo mostra vividamente que Deus, de tempos em tempos, comissiona indivíduos e lhes dá uma voz profética. A experiência dos crentes no Dia de Pentecostes demonstra que a experiência de Isaías não está limi­tada a alguns: As línguas de fogo repartiram-se e pousaram sobre cada um deles, e todos foram cheios do Espírito Santo.

A conversão de Paulo, o comissionamento de Isa ías, a capacitação dos crentes no Dia de Pentecostes — todos estes en­contros com a presença de Deus modelam uma importante parte da experiência religiosa. Em cada instância, o aparecimento de Deus foi majestoso: maravilhoso em poder e glória. Para Paulo, Deus se apresentou como uma luz ofuscante do céu e a voz auto­rizada de Jesus — à qual Paulo respondeu: “Quem és, Senhor?” Para Isa ías, Deus se apresentou como uma figura régia e entronizada — à qual Isaías só pôde dizer: “A i de mim, que vou perecendo! [...] Os meus olhos viram o rei, o SENHOR dos Exér­citos!” (Isaías 6.5). No Dia de Pentecostes, foi o som de um vento impetuoso e línguas de fogo. E a resposta foi uma declaração das “grandezas de Deus” .

Rudolph Otto cunhou uma palavra especial para o tipo de en­contro com Deus experimentado por Paulo, Isaías e os apóstolos

O profeta Joel falou de um tempo futuro em que Deus

derramaria do "seu Espírito" em todos os seus servos,

homens e mulheres.

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no Dia de Pentecostes. E le chamou de “numinoso” , proveniente do latim numen, que significa espírito.38 Para Otto, a experiência numinosa é a experiência de algo que é misterioso e inspira admi­ração, sem deixar de ser ao mesmo tempo temerosa e fascinante. Para Otto, o algo em questão — aquilo que experimentamos como misterioso e inspirador de admiração, maravilhoso em poder e gló­ria — é corretamente chamado de santo. Deus não é apenas justo. E le é santo. Este parece ser o detalhe sobre o qual os serafins afirmam, quando dizem: “Santo, Santo, Santo é o SENHOR dos Exércitos” (Isaías 6.3).

Destacamos três instâncias de seres humanos experimentando a presença de Deus. A experiência da conversão de Paulo ajuda- nos a entender o significado da transformação radical. A experiên­cia de Isaías no Templo leva-nos a considerar o que significa ser comissionado para falar profeticamente. Os eventos no D ia de Pentecostes lembram-nos de que a capacitação do Espírito Santo é para todos. Enquanto estas três experiências acentuam facetas diferentes da experiência relig iosa, também exibem certas similitudes que podem nos dar uma impressão enganosa de como a presença de Deus pode ser experimentada. Paulo, Isaías e os apóstolos sentiram a presença de Deus no que pode ser positiva­mente descrito com palavras como extraordinário, fantástico, im­pressionante, majestoso, glorioso. As respostas de cada um deles foram apropriadas às suas respectivas experiências: Paulo caiu em terra, cego; Isaías clamou “A i de mim, que vou perecendo!” ; os que estavam reunidos no Dia de Pentecostes romperam em expressões vocais inspiradas pelo Espírito Santo. Mas Deus faz sua presença conhecida apenas de modos fantásticos e impressionantes? E o que dizer também da amplitude de nossas respostas a Deus?

A experiência de Elias à entrada de uma caverna em Horebe sugere acréscimo importante ao que comentamos até aqui. O es­critor de 1 Reis descreve um tempo na história de Israel em que o povo começou a adorar Baal, um dos deuses de fertilidade reco­nhecido pelos povos do antigo Oriente Próximo. Depois de vários anos de seca, E lias, o profeta de Deus, chamou quatrocentos e cinquenta profetas de Baal para uma montanha, onde organizou uma competição. O deus que consumisse pelo fogo um bezerro sacrificatório seria reconhecido como o verdadeiro Deus. Seria Baal ou Javé? Depois que Baal não respondeu às orações dos seus profetas, Elias articulou uma oração eloquente em sua simplicida­de e brevidade. As Escrituras descrevem uma cena não menos inspiradora de admiração do que qualquer coisa experimentada por Isaías, Paulo ou os apóstolos no D ia de Pentecostes: fogo do céu queimou o bezerro sacrificial, a lenha, as pedras e a terra circunvizinha. Quase imediatamente, E lias mandou que os profe­tas de Baal fossem mortos.

Logo as chuvas retomaram e a seca terminou. Enquanto a maioria do povo em Israel regozijava-se, a esposa do rei, Jezabel,

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

ficou profundamente enfurecida com a morte dos profetas de Baal. Quando ela ameaçou matar E lias, ele fugiu, viajando muitos dias para o sul, a Horebe, “o monte de Deus” , onde buscou refúgio numa caverna. No dia seguinte, Deus lhe mandou que se pusesse à entrada da caverna, onde mostrou a Elias três fenómenos fantás­ticos: um vento poderoso, um terremoto e um fogo. Em cada caso, dizem as Escrituras, o Senhor não estava no fenómeno. Mas de­pois do fogo, lemos, Deus falou a Elias em “uma voz mansa e delicada” (1 Reis 19.12).

Ao menos nesta ocasião, Deus não estava presente nas demons­trações fantásticas da natureza. Antes, E le se fez conhecido numa voz tão suave que era quase inaudível. Em resposta, E lias não cla­mou de alegria ou desencadeou um hino vitorioso. E le simples­mente cobriu a cabeça com a capa. Podemos apenas imaginar que meditação ou oração pode ter-lhe vindo à mente naquele momen­to. Para muitos cristãos ao longo da história da Igreja, Deus fez sua presença conhecida do modo como fez com Elias em Horebe. Pois se Deus se revela numa luz ofuscante, ou como monarca exaltado, ou em línguas de fogo, E le também se revela no sus­surro gentil.

O Elemento SocialQualquer tratamento do elemento social de uma cosmovisão

cristã tem de levar em conta a Igreja, pela simples razão de que a Igreja é a instituição social primária do cristianismo. Seu nasci­mento está descrito no Livro de Atos. De começo humilde na Palesti­na, foi se espalhando gradualmente a todas as regiões da bacia medi­terrânea. Tendo suportado perseguição dos romanos em várias épo­cas durante seus primeiros trezentos anos, seu endosso por ConstantinoI (313 d.C.) no século IV representou um novo desafio.

No Oriente, a Igreja foi centrada em Constantinopla, onde era em grande parte subordinada ao imperador; no Ocidente, em Roma, permaneceu uma força independente sob o governo papal. De ambos os centros, cresceu abarcando toda a Europa. Durante a denominada baixa Idade Média, quando a luz da investigação ra­cional parecia extinta por causa das doenças, pobreza e constantes alinhamentos políticos, a Igreja continuou a aprender, cheia de vida, em mosteiros e escolas. Gradualmente, uma cisão desenvol­veu-se entre o Oriente e o Ocidente, que tornou-se permanente depois de 1054. No Ocidente, o crescente poder e corrupção da Igreja contribuíram para haver uma luta em seu interior a fim de reformar sua herança espiritual. Numerosos movimentos inspira­dos por reformadores, como Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564) inevitavelmente separaram-se da Igreja ro­mana e formaram ramificações distintas do cristianismo. Hoje, a Igreja é mundial — cruzando limites culturais, raciais e étnicos, e abrangendo muitas denominações.

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70 MICHAEL D. PALMER

Saber as palavras de Jesus ou as doutrinas da Igreja não é o mesmo que compreender seus significados.

O que dissemos anteriormente acerca das cosmovisões em ge­ral tem sido historicamente verdadeiro para a Igreja, e permanece verdadeiro hoje: Cada geração enfrenta duas tarefas formidáveis. A primeira é a tarefa de transmitir fielmente sua herança à geração seguinte. Como já vimos, a herança do cristianismo é um padrão complexo de crenças centrais, narrativas, normas, rituais e experi­ências. Transmitir com sucesso este padrão complexo envolve

doutrinas pedagógicas e o contar (e recontar) histórias, modelando os adequados valores morais e estéticos, representando as cerimó­nias e dando testemunho das experiências es­pirituais. Em suma, envolve integrar os vários elementos no ritmo diário do pensamento e prá­tica da geração recipiente. Abordar o todo da

vida a partir desta perspectiva integrada é a soma e substância do que significa ter uma cosmovisão cristã.

A segunda tarefa é ajudar a geração seguinte a lidar com as tendências culturais contemporâneas. Ajudar a lidar derrota vári­as coisas. Para começar, significa ensinar as pessoas a entenderem o sentido de suas crenças centrais dentro de uma situação contem­porânea. Saber as palavras de Jesus ou as doutrinas da Igreja não é o mesmo que compreender seus significados.39 É completamente possível estar familiarizado com um ensino importante e, contu­do, não compreender realmente seu significado ou ser incapaz de aplicá-lo com entendimento. Esta distinção acha-se no centro do inquietante fato de que os cristãos às vezes toldam a linha entre um ensino fam iliar e uma tendência ideológica popular na cultura prevalecente. Um exemplo simples do âmbito moral ilustra o pon­to.

Uma das passagens mais famosas da B íb lia é a ordem de Je­sus: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mateus 7.1). O contexto sugere que Jesus está se dirigindo à tendência de alguns em exagerar as faltas dos outros para depois pronunciar a conde­nação deles. Mas o contexto não implica categoricamente que Je­sus nos proíbe que avaliemos (julguemos com precisão) o que as outras pessoas dizem e fazem. Porém, hoje a fam iliar declaração de Jesus está em perigo de ser assimilada no penetrante relativismo moral da cultura ocidental. Para muitos na Igreja de hoje, ela veio a significar: “Devido ao fato de os gostos e valores das pessoas serem diferentes, então ninguém tem o direito de avaliar (julgar) o mérito moral de que quem quer que seja, ou diga, ou faça” .

Deste modo, a tarefa da Igreja de ajudar a geração seguinte a lidar com a cultura contemporânea requer que se forneça ampla oportunidade para reflexão extensa e pensativa no significado de suas crenças centrais, para que se faça análise crítica das tendên­cias ideológicas predominantes. Mas também significa criar um ambiente social agradável para a nossa natureza. Na cosmovisão existencialista de Jean-Paul Sartre, os seres humanos estão com­

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 7 1

pletamente sós. Eles vivem como indivíduos isolados, sempre em competição entre si. Porém, numa cosmovisão cristã, justamente o oposto é a verdade: Somos seres extremamente sociáveis.

Antes e acima de qualquer coisa, fomos criados para um rela­cionamento com Deus. Levamos em nós sua imagem e fomos cri­ados para precisar dEle. Nas palavras de Agostinho: “Tu nos cri­aste para ti, ó Deus, e nossos corações vivem inquietos enquantonão descansam em ti” .40 Mas também fomos __________________criados para relacionamentos uns com os ou­tros. Não somos como bolas de gude guarda­das num saco por pouco tempo apenas para serem espalhadas em todas as direções quan­do o saco é aberto. A metáfora mais apropria­da sobre esta situação está no Novo Testamen­to: juntos, míerdependentes em vez de mde- pendentes, somos o Corpo de Cristo. Se so­mos seres inclinados ao relacionamento, então ajudar a geração seguinte a lidar com as tendências culturais contemporâneas sig­nifica, em parte, criar ambientes conducentes para nutrir relacio­namentos. Especificamente, se somos seres que se relacionam, então uma função primária da Igreja é fornecer oportunidades para os indivíduos encontrarem Deus e para interagirem uns com os outros.

Por que não é o bastante apenas entender o que cremos e ter a capacidade de avaliar criticamente as tendências da cultura popu­lar? Por que a Igreja também tem de nutrir relacionamentos? Por­que, embora desenvolver as habilidades críticas, analíticas e re­flexivas seja fundamental para o nosso desenvolvimento global como pessoas, somos em última análise governados não tanto pelo que sabemos, e sim pelo que mais amamos. Desenvolver relacio­namentos com Deus e os crentes é, no fim , um esforço em nutrir amor por ambos.

"Tu nos criaste para ti, ó Deus, e nossos corações vivem inquietos enquanto não descansam em ti."

— Agostinho

Conclusão: O Argumento em Defesa do Pluralismo Limitado

Começamos este capítulo considerando dois meninos judeus, Reuven Malter e Danny Saunders, e suas respectivas cosmovi- sões segundo nos foram apresentadas pelo romancista Chaim Potok. De fato, teria sido mais exato falar de dois meninos que vivenciaram versões alternadas da mesma cosmovisão, o judaís­mo. Na verdade, antes do dia em que chegaram a se conhecer, Reuven e Danny viam um ao outro com suspeita e certo desdém. A comunidade hassídica de Danny até falava depreciativamente do pessoal de Reuven. Porém, apesar de suas diferenças, Reuven e Danny viviam muito bem dentro da corrente do judaísmo orto­doxo. Os dois criam em Deus e aceitavam as Escrituras hebraicas como a revelação de Deus para a humanidade. Suas diferenças

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centravam-se principalmente no valor relativo que eles davam a certos pontos da interpretação da Torá e do Talmude, como tam­bém nas escolhas que faziam relativas a questões culturais, como roupa e penteado. A história deles é muito semelhante à nossa.

O cristianismo está povoado com seus Reuven e Danny, cada qual representando uma tradição interpretativa distintiva e um conjunto distintivo de práticas culturais. O que explica este tipo de diversidade, e será que devemos estar dispostos viver com isso?

O cristianismo exibe diversidade por pelo menos três razões. Primeiro, uma cosmovisão cristã é o produto de como integramos os vários elementos descritos neste capítulo: a ideologia (doutri­na), as narrativas, as normas morais e estéticas, os rituais, a expe­riência e vida em comunidade. Devido as diferenças de tempera­mento pessoal e experiência, algum grau de diversidade no modo como realizamos esta integração é virtualmente certo.

Por exemplo, as experiências dos cristãos em várias épocas e lugares na história os levaram a enunciar a fé de maneiras que conduziram a tradições teológicas diferentes. Outro exemplo: a teologia luterana difere da teologia tomística, e ambas diferem da teologia reformada e da teologia pentecostal. Além disso, as dife­renças de experiência e teologia trouxeram diferenças no ritual e vida em comunidade. A liturgia formal dos episcopais difere nota­velmente da simplicidade de adoração encontrada nas casas de culto quakers e do animado culto nas igrejas pentecostais.

A diversidade também é explicada pelas diferentes maneiras como os cristãos interagem com outras cosmovisões não-cristãs contemporâneas e com a cultura. Nos primeiros séculos da Igreja, os cristãos achavam-se em constante diálogo com religiões e filo ­sofias “misteriosas” gregas e romanas. As visões específicas des­tas religiões e filosofias os levaram a ajustar certos aspectos de sua cosmovisão para enfrentar os desafios do dia, enquanto reti­nham sua estrutura global de crenças e normas.

Durante o Renascimento (séculos X IV ao X V I), os cristãos encontraram novas questões, inclusive o surgimento de novas ins­tituições políticas, a transição do comércio de troca para uma eco­nomia monetária, e avanços no método científico. Como haviam feito nos séculos anteriores, os cristãos tiveram de realizar ajustes em sua cosmovisão para afrontar os novos desafios, e tiveram de fazê-lo dentro de uma estrutura bíblica. As respostas que antes lhes permitiam lidar com as antigas religiões de mistério já não falavam mais adequadamente com as questões importantes dos séculos X IV , X V e X V I. Hoje, os cristãos também têm de enun­ciar uma cosmovisão que explique como pensar de maneira cristã nas atuais tendências da filosofia e psicologia, literatura e arte, ética e política, ciência e tecnologia. Considerando que a estrutura cristã é suficientemente ampla para acomodar mais que uma abordagem a estas disciplinas, certa quantidade de di­versidade é de se esperar.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO 73Finalmente, a diversidade na cosmovisão cristã é inevitável,

porque uma cosmovisão vital e em funcionamento nunca pode ser considerada um produto acabado. Uma cosmovisão é como um idioma: Onde quer que esteja em uso sofrerá modificações para satisfazer as necessidades da situação. As modificações acontece­rão em momentos diferentes, por pessoas diferentes, com níveis variados de habilidade, em resposta a eventos constantemente va­riáveis. Pelo fato de nenhuma versão de cos- movisão cristã poder ser considerada final, a diversidade quase não pode ser evitada.

Assim , a diversidade em uma cosmovisão cristã é praticamente inevitável. Mas a diver­sidade é uma coisa boa? Em muitos aspectos,sim. Para começar, a diversidade é em parte -------------------devida a nossas limitações humanas — nossas habilidades lim ita­das em perceber, pensar e avaliar criticamente, e a estreiteza de nossos interesses. A diversidade nos faz lembrar de nosso lugar no cosmo: mais altos que as criaturas, porém mais baixos que Deus. A diversidade, diz Arthur Holmes, “nos faz lembrar de nossa finidade, nossa qualidade de criatura, nossa humanidade; sem essa consciên­cia, uma cosmovisão não pode ser cristã absolutamente” .41

Segundo, a diversidade é uma coisa boa, porque quando aten­tamente tratada, aumenta mesmo o entendimento e a sabedoria da pessoa, aprofundando sua avaliação das questões importantes. Um dos grandes debates perenes no cristianismo centraliza-se na ten­são entre o livre-arbítrio da humanidade e a soberania de Deus. Historicamente, Jacó Armínio tomou um lado deste debate, e João Calvino o outro. Agora é possível que um lado ou o outro tenha de fato acertado em sua totalidade na posição teológica correta. Mais provavelmente, cada lado entendeu parte de um grande mistério. Aqueles, então, que atentamente tratam dos vários lados do deba­te, colocam-se em boa posição para apreciar a profundidade das questões que jazem no centro da dúvida. Este tipo de avaliação profunda das questões representa um passo essencial em direção a crescer em sabedoria e entendimento.

Finalmente, a diversidade nos recorda que o cristianismo não é um sistema fechado de pensamento e prática, mas uma aborda­gem vital e exploratória à vida. Neste capítulo, apresentamos al­guns dos principais elementos de uma cosmovisão cristã. Esses elementos foram enunciados como uma estrutura geral de crenças centrais e práticas. Durante os últimos dois milénios, os pensado­res cristãos trouxeram esta estrutura geral para muitas situações diferentes, em cenários culturais e históricos diferentes. O que notamos em caso após caso é que os cristãos se distinguiram em sua habilidade de adaptar uma estrutura básica de crenças e práti­cas biblicamente baseadas num ambiente de constantes mudan­ças.42 Embora tenham havido lapsos, falsos retornos e enganos, o registro impressionante é de constância à tradição bíblica e notá-

Uma cosmovisão vital e em funcionamento nunca pode ser

considerada um produto acabado.

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vel abertura e flexibilidade em um ambiente social e intelectual sempre em mutação.

Revisão e Questões para Discussão

1. Defina, em uma só frase, cosmovisão. Quem tem uma cos­movisão? Explique por que a resposta a esta pergunta é mais com­plicada do que parece a princípio.

2. Apresente com suas próprias palavras definições breves ou descrições dos seguintes elementos de uma cosmovisão: ideolo­gia, narrativa, norma, ritual. Junto com cada definição ou descri­ção, dê exemplos não citados aqui.

3. Na seção da ideologia, o autor usa as expressões “teoria de fundo” e “relato da natureza humana” . A que estas expressões se referem e como estão relacionadas?

4. Explique as diferenças entre escritos sagrados e mitos.5. Compare e contraste os mitos e narrativas históricas. Para

cada um, forneça exemplo que não tenha sido mencionado no ca­pítulo.

6. Identifique um romance, história curta, drama ou filme que expresse uma ideologia. O trabalho que você escolher deve ser um com o qual você esteja familiarizado, mas que não tenha sido mencionada no capítulo. Identifique a ideologia e explique como o trabalho que você escolheu o expressa.

7. O que é norma? Que tipos de normas são importantes para uma cosmovisão?

8. Explique a noção de uma declaração ou ato executante. Como esta noção se ajusta com o elemento ritualista de uma cosmovi­são? Dê um exemplo não mencionado no capítulo.

9. Por que a experiência é importante para uma cosmovisão? Qual é a relação da experiência com a ideologia?

10. Resuma o relato de Max Weber sobre o modo como as religiões se movem em padrões cíclicos. Você acha que essa teo­ria se aplica ao cristianismo? Apóie sua resposta com exemplos e razões.

11 .0 autor argumenta em defesa do “pluralismo limitado” em uma cosmovisão cristã. O que significa esta expressão? Você con­corda que uma cosmovisão cristã possa acomodar pluralismo li­mitado? Explique sua resposta. Se você acredita que o pluralismo limitado é possível, quais são os limites?

Projetos Sugeridos para Reflexão1. Leia o romance de Chaim Potok, The Chosen (O Escolhi­

do). Anote as semelhanças e diferenças nas respectivas cosmovi- sões de Danny Saunders e Reuven Malter. Identifique duas pesso­as em sua própria tradição de fé que mostrem um conjunto com­parável de semelhanças e diferenças de cosmovisão.

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

2. D iscuta outros trabalhos literários ou artísticos que exemplifiquem um ou mais dos elementos de uma cosmovisão discutidos no capítulo.

Bibliografia SelecionadaB LA M IR ES , Harry. The Christian Mind. Londres: S .P .C .K .,

1966.HO LM ES, Arthur. Contours of a Worldview. Grand Rapids:

W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1983.H O LM ES, Arthur, editor. The Making o f a Christian Mind, A

Christian Worldview & the Academic Enterprise. Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1985.

NASH, Ronald. Worldviews in Conflict, Choosing Christianity in a World ofldeas. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1992.

S IR E , James. The Universe Next Door, A Basic Worldview Catalog. Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1976.

SM ART, Ninian. Worldviews, Cross-cultural Explorations o f Human Beliefs. 2 .a edição. Englewood C liffs , Nova Jersey: Prentice-Hall, 1995.

STEVEN SO N , Leslie. Seven Theories o f Human Nature. 2.a edição. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1987.

W UTHN OW , Robert. Christianity in the 21 st Century, Reflections on the Challenges Ahead. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1993.

Notas bibliográficas1. Chaim Potok, The Chosen (Greenwich, Connecticut: Fawcett

Publications, 1967), p. 9.2. Ibid ., p. 12.3. Beatles, “Nowhere Man” , trilha original lançada em 1965

pela Northern Songs, Limited.4. Vincent E . Rush, The Responsible Christian (Chicago:

Loyola University Press, 1984), p. 94.5. Meu modo de pensar sobre as categorias gerais de crenças e

prática que compõem uma cosmovisão foi estimulado por Ninian Smart, Worldviews — Crosscultural Explorations o f Human Beliefs, 2.a edição (Englewood C liffs, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1995).

6. Chaim Potok não tem nada significativo a dizer sobre estéti­ca ou normas estéticas em The Chosen. No entanto, a estética é um tema principal em dois dos seus romances sobre um pintor chamado Asher Lev: My Name is Asher Lev (Meu Nome é Asher Lev) (Nova York: Alfred A . Knopf, 1989), e The Gift o f Asher Lev (O Presente de Asher Lev) (Nova York: Alfred A . Knopf, 1990). Desde os tempos bíblicos, o judaísmo ortodoxo tem expressado

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sentimentos mistos sobre a arte e a beleza artística. Por um lado, as Escrituras relatam que o próprio Deus ditou muitos dos proje- tos do antigo Tabernáculo e dos artefatos que ele alojava. O texto também diz que E le até identificou os artesãos especializados que deviam fazer os vários utensílios cerimoniais e os trajes sacerdo­tais. Assim , o judaísmo claramente tem um interesse histórico em artigos de beleza e nos julgamentos que se relacionam ao que é bonito. Por outro lado, as Escrituras proíbem a fabricação de “ima­gens esculpidas” . No judaísmo ortodoxo, este mandamento é in­terpretado com a proibição de fazer quadros, especialmente retra­tos de pessoas. Por conseguinte, os artistas judeus tendiam a incli­nar sua arte a formas altamente simbólicas.

7. Potok, The Chosen, pp. 63, 64.8. A expressão “Mestre do Universo” é comumente usada pe­

los judeus para descrever Deus.9. Potok, The Chosen, p. 9.10. A expressão “teoria de fundo” vem de Leslie Stevenson,

“Rival Theories” , capítulo 1, in: Seven Theories o f Human Nature,2.a edição (Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1987). Também adaptei partes da estrutura geral de Stevenson para dis­cutir as teorias rivais da natureza humana.

11. As mais notáveis visões filosóficas de Jean-Paul Sartre es­tão expostas em Being and Nothingness [O Ser e o Nada] — A Phenomenological Essay on Ontology, traduzido para o inglês por Hazel E . Barnes (Nova York: Washington Square Press, 1992; publicado em associação com a Philosophical Library, c. 1956). Este é o principal texto filosófico do existencialismo ateísta mo­derno.

12. Jean-Paul Sartre, Nausea [A Náusea], traduzido para o in­glês por Lloyd Alexander (Nova York: New Directions, 1949 e 1964).

13. Potok, The Chosen, p. 103.14. Albert Camus, The Myth of Sisyphus [O Mito de Sísifo]

And OtherEssays, traduzido para o inglês por Justin 0 ’Brien (Nova York: Random House, Vintage Books, 1955), pp. 88-91.

15. Ibid ., p. 91.16. Ibid.17. No romance de Potok, o senhor Malter é sionista, em parte

porque a terra de Israel é o lugar das histórias sobre pessoas e lugares importantes para o judaísmo: Abraão e Isaque, Jericó e o Templo de Salomão.

18. Karl M arx, Capital [O Capital], volume 1, editor Frederick Engels, traduzido para o inglês por Samuel Moore e Edward Aveling (Nova York: International Publishers, 1967). Veja especi­almente o Capítulo X , “O Dia do Trabalho” .

19. O Bhagavad Gita é inquestionavelmente um escrito sagra­do, mas estritamente falando não é considerado Escritura (ou seja, escrito sagrado divinamente revelado) na tradição hindu. Entre os

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PANORAMA DO PENSAMENTO CRISTÃO

escritos sagrados do hinduísmo, somente quatro Vedas (antigos livros de salmos) e alguns Upanishads (antigos livros de filoso­fia) são considerados Escritura.

20. Para uma discussão mais completa sobre mito, veja Joseph Campbell, The Hero With a Thousand Faces, 2.a edição (Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, Bollingen Series X V II, 1968), e Joseph Campbell e B ill Movers, The Power ofMyth (Nova York: Doubleday, 1988).

21. Os escritos sagrados em qualquer tradição, inclusive no judaísmo e no cristianismo, não estavam prontamente disponíveis às pessoas comuns até longo tempo depois da invenção da im­prensa de tipos móveis no século XV . A disponibilidade atual de B íb lia em livrarias, bibliotecas, CDs de computador e quartos de hotel dão uma visão completamente enganosa do que era no mun­do antigo ter um texto sagrado.

22. O Bhagavad Gita, na tradição hindu, é um exemplo de po­esia épica que veio a ser absorvida numa estrutura religiosa e feita funcionar em subordinação a uma doutrina religiosa. Os poemas épicos de Homero, A Ilíada e A Odisséia, na tradição grega, são quase mitos no sentido descrito aqui. Os poemas épicos de Homero, embo­ra recitados em ocasiões religiosas e incorporados em festas e convo­cações públicas de significado religioso, são primeiramente poemas, não veículos para transmitir temas religiosos.

23. Ninian Smart, Worldviews, p. 94,24. Ibid.25. Homero, The Odyssey [A Odisséia], traduzido para o in­

glês por Robert Fitzgerald (Garden City, Nova York: Anchor Books, Doubleday & Company, 1963), p. 340.

26. Entretanto, deve-se estar ciente de um ponto ao escrever história: o revisionismo, “uma tendência na historiografia ameri­cana da década de 1960 e princípios de 1970 a reescrever a histó­ria da guerra fria e pôr a culpa nos Estado Unidos” (Harper Dictionary ofModem Thought, Alan e Oliver Stallybrass, editores, Nova York: Harper & Row, 1977, pp. 541ss). Com efeito, deve-se perceber que até as histórias são escritas (e reescritas) por pessoas que podem ter sua parte no material. (Veja, por exemplo, Francis Fitzgerald, America Revised [Nova York: Random House, 1980].)

27. Smart, Worldviews, p. 81.28. Sophocles, Oedipus Rex, in: The Oedipus Cycle, traduzido

para o inglês por Dudley Fitts e Robert Fitzgerald (Nova York: Harcourt, Brace & World, Harvest Book, 1939 e 1949), p. 78.

29. The Jungle mostra que os autores não controlam o modo como os leitores irão interpretar a obra. Em vez de convencer os america­nos da necessidade do socialismo, The Jungles deu ímpeto adicional para a passagem das leis sobre alimentos puros e sobre droga.

30. Curioso é o fato de que o filme baseia-se numa cosmovisão que permite que uma dona de casa chateada tenha um encontro adúltero. Em parte, como resultado do sucesso difundido pela versão do filme, o

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romance chegou a vender mais de dez milhões de exemplares.31. Entre os gregos antigos, por exemplo, o filósofo Platão se

destaca como alguém que dedicava considerável atenção crítica para desafiar este ponto de vista. Veja os diálogos de Platão Simpósio e A República.

32. J. L . Austin, How To Do With Words (Londres: Oxford University Press, 1962).

33. Potok, The Chosen, p. 104.34. Hesiod, Theogony, Volume II , pp. 114-138, traduzido para

o inglês por Richard Latimore, in: Hesiod (Ann Arbor, Michigan: University of Michigan Press, 1959).

35. Não, porém, como assunto de fato histórico, todas as par­tes da B íb lia receberam atenção igual no desenvolvimento da dou­trina. As passagens que receberam tipicamente mais atenção são as que tratam da natureza de Deus, Seus atos de criação (inclusive a criação da humanidade), a rejeição de Deus pela humanidade (chamado de A Queda), o plano de Deus para restaurar a humani­dade pela morte e ressurreição de Jesus, e o plano de Deus para os eventos finais da história.

36. Veja especialmente os capítulos 35 a 39.37. Exemplos notáveis incluem Agostinho (354-420), Francis­

co de Assis (1181-1226), Inácio de Loyola (1491-1556) e John Wesley (1703-1791).

38. Rudolf Otto, The Idea OfThe Holy, traduzido para o inglês por John W. Harvey (Londres, Oxford, Nova York: Oxford University Press), capítulo H l, ‘Numen’ and the ‘Numinous’ , pp. 5-7.

39. A analogia a seguir, embora imperfeita, ajuda a ilustrar o ponto. Muitos estão familiarizados com a famosa fórmula de Albert Einstein E = mc2. Mas só uma fração dessas pessoas sabe o que representa as letras na equação, e pouquíssimas na verdade enten­dem seu significado o bastante para aplicá-lo.

40. Augustine, The Confessions o f Saint Augustine, traduzido para o inglês por Edward B . Pusey (Nova York: Random House, The Modem Library, 1949), p. 3.

41. Arthur Holmes, “Toward a Christian View of Things” , in: The Making ofa Christian Mind, editor Arthur Holmes (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1985), p. 16.

42. Alguns na tradição cristã têm rejeitado idéias novas e tentado isolar-se de influências não-cristãs; os Amish, por exemplo. O isola­mento dos seus povoamentos em forma de fazendas, sua rejeição dos dispositivos tecnológicos modernos, o estilo de roupa do século XVH I e o uso continuado de um idioma europeu, nos faz lembrar das comu­nidades hassídicas no judaísmo. Embora suas razões para procurar isolar-se possam ter alguma justificação, os Amish representam uma minoria declinante entre os cristãos. Veja Ruth Hoover Seitz, Amish Ways (Hanisburg, Pensilvânia: RB Books, 1991).

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2O Papel da Bíblia na

Formação do Pensamento

Cristão

Edgar R. Lee

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Construir uma cosmovisão pode ser algo como reunir as peças de um complicado quebra-cabeças.

A proverbial “pista de serragem” 1 foi meu caminho para a liberdade e a realidade quando, aos dezesseis anos de ida-

s de, em uma tenda, atendi ao apelo de um dinâmico evangelista itinerante e me ajoelhei diante de um altar simples para confessar meus pecados e convidar Jesus Cristo para ser o Senhor de minha vida. Enquanto orava, a paz e a segurança mais profundas que jamais sentira inundaram minha alma. De algum

modo eu sabia, sem sombra de dúvida, que meus pecados tinham sido perdoados. Eu era realmente uma nova pessoa, e agora Cristo, de alguma maneira misteriosa, não obstante po­derosa, era o Senhor de minha vida. Meus pés pareciam quase não tocar o chão no domingo à noite enquanto eu andava os poucos quartei­

rões até minha casa. No decorrer dos anos, este acontecimento simples continuou sendo o momento decisivo de minha vida.

Imediatamente a B íb lia tornou-se viva para mim. Comecei a primeira de muitas jornadas do Génesis ao Apocalipse, sempre encontrando círculos mais amplos de insight e significado, à me­dida que as verdades bíblicas ondulavam continuamente por mi­nha vida. Porém, muito antes daquela noite decisiva, a B íb lia co­meçou a formar o que agora entendo ser minha cosmovisão, “um conjunto de crenças sobre os assuntos mais importantes da vida” .2 Quando m enino, eu tinha aprendido breves noções dos ensinamentos bíblicos em uma Escola Dominical batista, e ouvin­do os sermões mensais do pastor, quando ele fazia seu giro pelas igrejas pequenas a seu cargo.

Foi então que, em um dos verões em que fiz minha visita anual à fazenda de meu tio, descobri a B íb lia em quadrinhos. Sentei-me durante horas no banco de balançar da varanda da frente devoran­do histórias e quadros que vividamente descreviam o desdobra­mento da revelação de Deus. Sem estar plenamente cônscio dos assuntos técnicos da cosmovisão, a B íb lia começou a preencher minha compreensão da origem da humanidade, do significado e propósito de nossa vida na terra, e da natureza de nosso destino eterno. Bem cedo aprendi que Deus é o Criador de tudo, que os seres humanos caíram em pecado e estavam necessitando deses­peradamente de redenção; que Jesus Cristo morreu e ressuscitou por nossos pecados, e que Ele está vindo para no fim reconciliar o universo com Ele. Quando o evangelista pediu minha “decisão” , já era do meu conhecimento os elementos básicos de uma cosmo­visão cristã.

Construir uma cosmovisão pode ser algo como reunir as peças de um complicado quebra-cabeça. E muito parecido com uma cri­ança que procura todas as peças com uma borda reta e depressa monta a estrutura exterior do quebra-cabeça somente para depois laborar mais longa e intensamente e preencher a cena central. É o que faz um crente novo. Inicialmente ele localiza nas Escrituras

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 81somente a estrutura básica da fé, para depois começar o processo de aprendizagem dos detalhes. A Escritura é ao mesmo tempo sim­ples e complexa. Suas narrativas3 transformam maravilhosamente os mistérios das eras em histórias simples prontamente entendi­das pelos incultos.

Uma compreensão mais plena do texto obtido pela exegese cuidadosa e interpretação teológica é o trabalho exigente da vida de um estudioso. Nesta seção, em rota com a compreensão mais ple­na, queremos pensar um pouco mais intencionalmente no papel que a Escritura desempenha na formação de nossa cosmovisão.

A Natureza da BíbliaOs cristãos sempre consideraram a B íb lia como a história dos

procedimentos de Deus para com a humanidade ao longo dos tem­pos. Em estilo de narrativa concisa, carregada de rico simbolismo, o livro de abertura de Génesis descreve em poucas pinceladas Deus criando “os céus e a terra” , apresentando também uma explicação teológica de suas origens. A atividade divina e criativa simples­mente é destacada nas palavras: “E disse Deus: H aja...” (Génesis 1.3ss) com o trabalho criativo que se seguiu: “E assim foi” (Génesis 1.7ss). Em seis dias, a palavra falada de Deus trouxe o planeta terra de um estado sem forma e escuro para um jardim abundante em plantas verdejantes e vida animal.

Quase imediatamente, a narrativa passa a explicar as origens humanas com a apresentação do primeiro casal, Adão e Eva (Génesis 1.26-29; 2.1-25). Criados diretamente por Deus a partir dos elementos da terra em um estado de evidente inocência, eles foram colocados no jardim do Éden e comissionados a m ultipli­car-se e subjugar a terra. Mas Adão e Eva logo descobriram, com alguma ajuda da serpente, o exercício do livre-arbítrio, desobede­ceram o mandamento direto do Criador e perderam o paraíso. Não somente eles, mas o seu mundo estava agora caído e resistente aos seus esforços de ganhar a vida e ter uma vida. A maldição do li- vre-arbítrio e da desobediência foi solta na raça humana. Seu pri­meiro filho cometeu o primeiro assassinato; a depravação humana tem sua explicação no primeiro livro da B íb lia.

Entretanto, estas narrativas são apenas o prefácio da B íb lia e da condição humana. Do entulho moral, o Génesis logo passa a tracejar o surgimento de uma linhagem íntegra por meio de Noé. Sensível à voz de Deus, ele com sua fam ília imediata, sobrevive­ram a uma inundação catastrófica do julgamento divino para rece­berem de novo a comissão do Criador de encher e dominar a terra (Génesis 9.1-17). Acompanhando a história da Torre de Babel com sua explicação para a multiplicidade de idiomas e agrupamentos étnicos (Génesis 11.1-9), nossa atenção se volta para Abrão. É ele que Deus chama para gerar uma grande nação que será a fonte de bênçãos a todos os povos da terra (Génesis 12.1-3). Desse ponto

Exegese: o processo de explicar um texto da Bíblia mediante análise, contexto e os costumes e cultura da época.

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em diante, os livros do Antigo Testamento tomam-se uma saga contínua de forma que, ao longo dos séculos, Deus gradualmente forma um povo eleito do concerto por quem a raça caída de Adão será restabelecida.

E que história! Os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó transfor­mam-se sempre lentamente em homens de fé, e no processo exi­bem excentricidades humanas. José, homem de caráter excelente, providencialmente leva a fam ília ameaçada pela fome à seguran­ça do Egito. Contudo, sob a regência de um novo Faraó, o Egito não se torna refúgio, mas um crisol no qual esta adolescente famí­lia semítica pode forjar sua identidade em meio ao sofrimento e escravidão. Surge Moisés, um fugitivo da corte real, a quem Deus chama do pastoreio de ovelhas para tirar seu povo da escravidão e dar-lhe identidade nacional mediante um concerto de fogo no Sinai.

O corajoso Josué tem a tremenda tarefa de guiar o povo de Deus de volta à terra que Deus havia prometido séculos antes aos patriarcas nómades. Subsequentemente, durante a anarquia no pe­ríodo dos juizes, o profeta Samuel torna-se o instrumento de Deus para escolher o primeiro rei, Saul, que prova ser mais astuto na guerra do que em estabelecer uma nação. Mas Davi sucede Saul e combina de modo ímpar o gênio m ilitar de um construtor de im­pério com a paixão e visão de um profeta. Por ele, Deus promete trazer um reino eterno (2 Samuel 7.5-16), embora reserve a cons­trução do Templo de Israel ao filho de Davi, Salomão, renomado como homem mais sábio que jamais viveu.

Na sucessão dos reis que sucederam Davi e Salomão, o Antigo Testamento registra as histórias frequentemente repetidas de apostasia e avivamento, a divisão do reino, revoltas no palácio, guerras que ziguezagueiam na Palestina, a queda e deportação do Reino do Norte e, finalmente, a destruição de Jerusalém e do seu Templo. Um remanescente sobrevivente vai para um exílio de se­tenta anos na Babilónia. As adversidades e sofrimentos, de acordo com os grandes profetas de Israel, que falaram ousadamente con­tra os pecados dos seus contemporâneos, são o resultado da rebe­lião contra Deus e o fracasso em guardar seu concerto. Mas sem­pre perdoando, Deus age para restaurar um povo castigado, restabelecê-lo na terra, reconstruir o Templo e reiterar as promes­sas da vinda de um futuro Messias pela semente de Davi.

Depois de séculos de silêncio profético, a promessa do Messi­as é cumprida em Jesus de Nazaré, cuja história excitante encon­tramos nos quatro Evangelhos. Concebido pelo Espírito e nascido de uma virgem, de modo misterioso mesmo para a fé, Jesus vira de cabeça para baixo as noções populares de um líder messiânico. E le é mais profeta e mestre que o libertador político que o povo esperava. Sua missão é proclamar as Boas-novas da salvação de Deus para os pobres. Para espanto dos líderes judeus, o povo julga suas palavras confirmadas por seus milagres de amor e compai­xão. No fim , para absoluta tristeza dos seus seguidores, E le é pre-

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 83so e condenado pela aristocracia governante e entregue ao gover­nador romano para ser crucificado como messiânico embusteiro blasfemo e revolucionário.

Mas a crucificação trágica é seguida pela ressurreição triun­fante, o milagre central da B íb lia. Os apóstolos declaram que o Jesus ressurreto é verdadeiramente o Messias prometido por meio de Davi (Atos 2.29ss). Sendo tanto Senhor (Deus) quanto Cristo, E le é o que dá o perdão de pecados e o dom do Espírito Santo a toda a humanidade (Atos 2.38). O batismo no Espírito, dado pri­meiramente no Pentecostes, capacita os crentes e faz deles a Igre­ja , os descendentes espirituais de Israel, a quem todas as bênçãos da salvação divina estão agora disponíveis. O resto do Novo Tes­tamento apresenta a história do crescimento geográfico e espiritu­al da Igreja, à medida que os apóstolos e seus colegas de fé evangelizam o mundo do século I. Ao longo do caminho, guiados pelo Espírito Santo, eles produzem as cartas do Novo Testamento para dar direção aos crentes e, providencialmente, a nós. A Bíblia é concluída com o Livro do Apocalipse que, quaisquer que sejam seus mistérios apocalípticos, prediz a consumação escatológica final do Reino de Deus e a reconciliação final dos herdeiros de Adão e do mundo de Adão.

Relatando com tanta ousadia a história da obra paciente de Deus com a humanidade, a B íb lia se apresenta como um livro inspirado e autorizado, iniciado e escrito sob a supervisão do próprio Deus. “Toda Escritura [é] divinamente inspirada” (2 Timóteo 3.16), es­creveu o grande apóstolo Paulo, no que se tomou a base da doutri­na cristã da inspiração. A expressão “divinamente inspirada” é tra­dução literal do grego theopneustos, termo composto por duas palavras, theos, que significa “Deus” , e pneô, que significa “res­pirar, soprar” . O sentido da passagem é que Deus se envolveu tão pessoal e intimamente na inspiração das Escrituras, que ela pode ser considerada sua exalação.

Paulo, escrevendo muito tempo antes da definição formal do cânon do Novo Testamento, realizada no Concílio de Cartago em 397 d .C .,4 estava provavelmente pensando em primeiro lugar nas Escrituras do Antigo Testamento, as quais normalmente ele usa­va. Contudo, sua declaração está estrategicamente posicionada no cânon e, na tradição cristã, veio a ser aplicada de fato à totalidade da Escritura.5 Com efeito, mesmo durante a vida de Paulo, seus companheiros apóstolos referiam-se aos escritos dele como Escri­tura. Assim , o livro de 2 Pedro também observa que “o nosso ama­do irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada [por Deus]” , mas “que os indoutos e inconstantes torcem [as car­tas de Paulo] e igualmente as outras Escrituras” (2 Pedro 3.15,16).6

As cartas de Pedro revelam muito da mesma compreensão e ênfase sobre a origem e inspiração da Escritura. “Sabendo primei­ramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação; porque a profecia nunca foi produzida por vontade

Escatologia (do grego, eschatos, "último", e legein, "estudo"), refere-se ao estudo do fim dos tempos, e ao futuro cumprimento do plano e propósito eternos de Deus.

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Sinótico: "ver junto", refere-se a Mateus, Marcos e Lucas, porque estes Evangelhos têm muito em comum.

de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspira­dos [do grego,pheromenoí] pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1.20,21). Se Paulo usou a metáfora da “respiração” ou “ sopro” de Deus, Pedro usou a imagem marítima de um barco “levado” em seu cur­so pelo vento. Da mesma maneira que o vento enche as velas de um navio e o impulsiona pelo mar, assim o Espírito de Deus mo­veu pessoas sensíveis a entender e escrever precisamente o que Ele desejava. A tradição apostólica era enfática em insistir que a iniciativa para a produção da Escritura acha-se na vontade de Deus. O inspirador da Escritura nunca deve ser atribuído aos seres hu­manos.

Estes apóstolos e seus colegas que escreveram o Novo Testa­mento seguiram o exemplo e ensinamento do próprio Jesus na consideração e uso que fizeram da Escritura. Várias passagens dos Evangelhos podem ser citadas como comprovação. Numa declaração crucial sobre o divórcio, Jesus citou Génesis 2.24: “Por­tanto, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher, e serão dois numa só carne” (Mateus 19.4,5). O texto em Génesis não atribui a declaração diretamente a Deus. Porém, Jesus apenas ob­serva, como de passagem, que Deus, o Criador, o dissera. De modo semelhante, quando Jesus citou o Salmo 110.1, o qual é tradicio­nalmente atribuído a Davi, disse: “O próprio Davi disse pelo Es­pírito Santo...” (Marcos 12.36). John W. Wenham declarou: “Tão verdadeiramente é Deus considerado o autor das declarações bíblicas, que em certos contextos ‘Deus’ e a ‘Escritura’ tomam-se intercambiáveis” .7 Um exame cuidadoso dos Evangelhos mostra que Jesus mantinha uma consideração extraordinariamente alta com relação às suas Escrituras, o Antigo Testamento. Por exem­plo, Ele simplesmente não se acomodou ao que às vezes era inter­pretado como compreensão primária por parte dos seus contem­porâneos. Ao invés disso, Ele na verdade mostrou seus verdadei­ros sentimentos pela Escritura ao se voltar a ela em busca de dire- ção e autoridade nos momentos mais cruciais de sua vida pesso­al.8 Na tentação, Ele pôs o diabo em fuga com citações da Escritu­ra (Mateus 4.6,10). Semelhantemente, E le interpretou os movi­mentos finais da traição com as palavras “está escrito” (Marcos 14.21,27). Portanto, entretecido na vida e consciência de Jesus estava o Antigo Testamento, do qual encontramos não menos de sessenta e quatro citações ou insinuações apenas nos Evangelhos sinóticos.9

Em qualquer debate teológico, a Escritura sempre era a autori­dade final. Tão confiante estava Jesus de sua validez permanente que afirmou: “Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo seja cumprido” (Mateus 5.18). Em um dos debates com os líderes judeus, Ele destacou: “A Escritura não pode ser anulada” (João 10.35).

Embora fie l ao Antigo Testamento e nunca contradizendo seus ensinamentos, Jesus todavia viu-se como a realização do Antigo

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 85Testamento (Mateus 5.17; Lucas 24.27,44-46; João 5.39-47). Ele é superior aos maiores profetas, Moisés e E lias (Mateus 17.1-11). Seus ensinamentos são autorizados comparativamente às interpre­tações dos seus dias (cf. Mateus 5.22,28,32,34,39,44). E le não he­sitou em assumir uma posição de autoridade superior na interpre­tação do Antigo Testamento. Por exemplo, E le reconheceu que Moisés permitiu o divórcio. Contudo, em sua autoridade, E le es­clareceu o ensinamento do Antigo Testamento sobre o divórcio ao afirmar que, no princípio, isso não era a vontade do Criador (Mateus 19.8,9). A autoridade pessoal de Jesus também é demonstrada em sua compreensão de que suas palavras julgarão os homens no último Dia (João 12.48).

O Antigo Testamento, o qual Jesus tratou com tal reverência, foi escrito como a Palavra do Deus que frequentemente se revela nele pelo discurso direto. “O Espírito do SENHOR falou por mim, e a sua palavra esteve em minha boca” , afirmou Davi (2 Samuel 23.2). “A boca do SENHOR dos Exércitos o disse” , foi o testemunho de Miquéias (Miquéias 4.4). Amós começa seu livro deste jeito: “As­sim diz o SENHOR” (Amós 1.3). Os profetas regularmente relata­ram que a “Palavra do SENHOR” veio a eles (Oséias 1.1; Joel 1.1; Jonas 1.1; Sofonias 1.1). E assim continua em muitos dos 39 livros.

Ao elevarmos as reivindicações da B íb lia à autoridade divina, nunca devemos perder de vista o fato de que também se trata de um livro humano com as distintivas personalidades dos seus es­critores humanos manifestas em quase todas as páginas. Com cer­teza, Deus às vezes é mostrado a escrever certas coisas, como os Dez Mandamentos (Êxodo 31.18; cf. Êxodo 34.1). Ocasionalmen­te, E le até fala de certo modo que parece muito com o nosso dita­do moderno.

Por exemplo, E le evidentemente deu instruções diretas a Moisés para construir o Tabernáculo (Êxodo 25-27). E le ditou alguns pa­lavras a Isaías: “Toma um grande volume e escreve nele em estilo de homem: Apressando-se ao despojo, apressou-se à presa [Maer- Salal-Hás-Baz]” (Isaías 8.1). Porém, mais habitualmente, E le fa­lou pelos profetas de maneira tal a utilizar as personalidades dis­tintas de cada um deles. Assim , também temos de enfatizar a hu­manidade da B íb lia. Realmente é theopneustosl Não obstante, a palavra soprada por Deus também veio pelas experiências e pala­vras dos seres humanos mortais.

Por um lado, “homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1.21). Por outro, eles ainda eram seres humanos plenamente conscientes, cooperativos, diversos e talentosos. Em todos os lugares da B íb lia tem-se a consciência de que as personalidades com as quais Deus está tratando e por quem está falando ou escrevendo são únicas. A B íb lia mostra os patriar-

Ao elevarmos as reivindicações da Bíblia à autoridade divina,

nunca devemos perder de vista o fato de que também se trata de um

livro humano.

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Septuaginta: tradução grega do Antigo Testamento feita em Alexandria, Egito, antes de Cristo. Uma tradição mais recente diz que foi feita por setenta homens; por isso, "Septuaginta", do latim septuaginta, setenta.

cas Abraão, Isaque e Jacó dando passos vacilantes, e às vezes tei­mosos, ao procurarem seguir o Deus Vivo que estava se revelando progressivamente a eles. Apresenta Moisés como pastor educado no Egípcio e como o profeta de Israel.

O sofrimento de Jó é historiado em elegante poesia hebraica. Davi lamúria suas queixas a Deus pelos possantes salmos, quando Saul incessantemente o perseguia. Provérbios descreve o pendor dos humanos em destilar sua experiência, e dá conselhos através de provérbios sábios. A linguagem do amor é encontrada em Can­tares de Salomão, e a procura do cínico é detalhada em Eclesiastes. Isaías fornece linguagem humana incomparável para um encontro exaltado com o Deus transcendente (Isaías 6), enquanto os olhos e palavras de Jeremias enchem de lágrimas quando ele traça o mer­gulho descendente do Israel apóstata.

O esquisito profeta Ezequiel representa suas profecias de modo que às vezes o fazem parecer quase um doente mental, enquanto que Amós, pastor simples mas brilhante, captura a mensagem de Deus em nítidas metáforas agrárias.

Semelhantemente, o Novo Testamento, como o Antigo, trazem as marcas dos seus autores humanos. Os Evangelhos ilustram este pon­to. Juntos eles compõem uma forma literária bastante diferente dos outros escritos do Novo Testamento. Eles falam de Jesus Cristo, o Deus-Homem, que produziu a redenção humana por sua encarnação, ministério, morte e ressurreição. Mas cada um dos quatro Evange­lhos, embora contendo uma história comum de perspectivas um tanto diferentes, exibe características distintas do seu autor.

Por exemplo, o Evangelho de Lucas traz evidências de pesqui­sa meticulosa (Lucas 1.3) feita por um escritor que aparentemente não foi testemunha ocular e que pode ter sido médico (Colossenses4.14). E le enfatiza aspectos da vida e ministério de Jesus em gran­de parte ignorados pelos outros. Entre os exemplos incluem seu interesse na obra do Espírito Santo, os pobres e oprimidos, a dig­nidade das mulheres e sua importância na economia divina. Cada um dos escritores das cartas do Novo Testamento tem uma abor­dagem única. Paulo escreve às vezes num estilo profundo e, não obstante, utiliza por vezes um estilo que procede aos arrancos. A carta aos Hebreus trai a mão de um mestre polido do idioma gre­go, que está impregnado pela Septuaginta e que organiza seu ar­gumento com esmero. A carta de Tiago, com suas muitas metáfo­ras agrárias e inclinação prática, pode bem refletir as necessida­des básicas das igrejas na zona rural palestina algumas décadas depois da morte e ressurreição de Jesus. As cartas de Pedro pare­cem tratar de assuntos mais teológicos para as igrejas da Ásia Menor. João, no Apocalipse, prediz o fim da era em uma série de visões altamente simbólicas, cujo significado preciso ainda intri­ga estudantes aplicados.

A presença de elementos divinos e humanos na B íb lia requer o que os estudiosos bíblicos frequentemente chamam de visão orgâ-

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 87nica da inspiração. “O Espírito entra na história e cultura dos es­critores e não sobrepõe simplesmente a verdade sobre eles” .10 Esta declaração significa que Deus preparou cada escritor bíblico de maneira que a individualidade da pessoa não fosse violada. Toda­via, o escritor inspirado comunicou com exatidão a mensagem que Deus desejava numa linguagem apropriada para as audiências inten­cionais. O caso de Moisés ilustra o ponto.

Por qualquer padrão humano, mesmo que tivesse escapado do Faraó infanticida, Moisés deveria ter crescido pobre e inculto, não conhecendo nada dos procedimentos da corte egípcia. Ao invés disso, as águas do Nilo o le­varam para os braços da filha de Faraó, que contratou a própria mãe israelita do menino para alimentá-lo. A princesa o criou no palácio como seu filho (Êxodo 2.1-10), certificando- se de que fosse “instruído em toda a ciência dos egípcios” (Atos 7.22). Porém, somente depois que os privilégios da corte real foram temperados pela vida de pastor espartano na península do Sinai, é que Deus deu a Moisés a revelação inaugural da sarça ardente (Êxodo 3) e o concerto de fogo no monte Sinai (Êxodo 19). Todas aquelas experiências prepararam exclusivamente Moisés para es­crever as mensagens de Deus ao seu povo em um idioma e estru­tura de referência que os israelitas pudessem entender.

Enquanto a B íb lia foi escrita e compilada por muitos autores diferentes e editores ao longo de centenas de anos, ela mostra uni­dade notável em revelar progressivamente Deus e sua vontade aos seres humanos. Todos os seus vários livros têm uma origem e situ­ação histórica singulares. Mas cada um cumulativamente aumen­ta nosso conhecimento da natureza de Deus e seus esforços reden­tores em nosso favor. James Orr resumiu bem a complexa unidade histórica da B íb lia: “A B íb lia é o registro das revelações de Deus de si mesmo aos homens, em sucessivas eras e dispensações, (Efésios 1.8-10; 3.5-9; Colossenses 1.25s), até que a revelação culmina no advento e obra do Filho e na missão do Espírito. E este aspecto da B íb lia que constitui sua principal distinção de todas as coleções de escritos sagrados [...] do mundo” .11

A veracidade e autoridade da Escritura, embora vigorosamente desafiadas pelos críticos antigos e modernos, têm sido em grande parte consideradas evidentes aos homens e mulheres de fé. Com toda a certeza, os estudiosos cristãos demonstraram com habilida­de que a B íb lia é incrivelmente precisa em se tratando de livro antigo compilado no decorrer de um tão longo período de tempo e tocando em tantos fatos da história.12 Aqueles que buscam a ver­dade não precisam temer que, adotando a B íb lia, estejam adotan- do mitos ou lendas infundadas. Porém, a B íb lia permanecerá em grande parte irrelevante se o Deus de quem ela fala não se revelar aos seres humanos no próprio tempo e espaço deles. Só porque

A palavra soprada por Deus também veio pelas experiências

e palavras dos seres humanos mortais.

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algo é verdade, ou factual, não o torna relevante e significativo. A autoridade da Escritura só é cabalmente demonstrada quando a pessoa abre o seu coração para um encontro pessoal com o Deus da Escritura.

Nas palavras do grande reformador, João Calvino: “A mais alta prova da Escritura deriva do fato de que Deus em pessoa fala nela” .13 Prosseguindo, Calvino acrescentou: “O testemunho do Espírito é mais excelente do que toda a razão. Pois assim como só Deus é testemunha apropriada dEle mesmo em sua Palavra, assim também a Palavra não encontrará aceitação nos corações dos homens antes que seja selada pelo testemunho interior do Espírito” .14

Distinguindo a Cosmovisão da BíbliaMesmo uma leitura casual da B íb lia permitirá que se distinga

sua cosmovisão das várias cosmovisões competidoras comuns na sociedade moderna. Consideraremos aqui de forma breve o con­traste entre três cosmovisões modernas: o naturalismo, o panteísmo e o deísmo.15

O N a tu r a l ism o

Na sociedade ocidental, a cosmovisão dominante veio a ser o que poderíamos chamar de naturalismo. Nesta visão, a realidade última é material, a “matéria” de que é feito o universo. Tudo no universo acontece naturalmente do potencial intrínseco dos ele­mentos em si. O naturalismo16 é uma excrescência da mentalidade científica advinda do iluminismo.

“Deus, o Artífice do universo, nos é manifesto na Escritura...”

“Assim , a mais alta prova da Escritura deriva do fato de que Deus em pessoa fala nela” .

“Pois assim como só Deus é testemunha apropriada dEle mesmo em sua Palavra, assim também a Palavra não encon­trará aceitação nos corações dos homens antes que seja se­lada pelo testemunho interior do Espírito” .

T

“ Que este ponto fique claro : aqueles a quem o Espírito Santo en­sinou interiormente devem descan­sar verdadeiramente na Escritura, c que a Escritura realmente seja auto- autentieada; por conseguinte, não é certo sujeitá-la à prova e argumen­tação. A certeza que ela merece de nós chega pelo testemunho do Es­pírito” .

(Material extraído de As Instituías da Religião Cristã, de João Calvino, Volume X X .)

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 89A perspectiva naturalista afirma a crença apenas nas coisas que

podem ser empiricamente testadas e explicadas. Tudo no universo ao nosso redor, inclusive nós, é considerado produto acidental do tempo e dos processos de mudança implícitos no universo. O na­turalismo não reconhece nem lugar nem necessidade de um cria­dor onipotente e onisciente. O universo, e nós, que o habitamos, evoluiu por combinações fortuitas das forças químicas. Qualquer idéia que tivermos de um Deus criador é simplesmente uma proje- ção de nossa imaginação na tela gigantesca de um universo confu­so. Esta visão também pode ser chamada materialista, por causa do modo em que considera a matéria física do universo como fa- tor último. Também pode ser considerada ateísta por causa de sua rejeição da idéia de Deus. Pode ser pensada como humanista por causa de sua exclusiva associação de qualquer valor ou moralidade com os seres humanos. Se não há uma realidade espiritual última, além dos próprios seres humanos, então a morte dos seres huma­nos é presumivelmente o fim de sua existência pessoal. Não há, portanto, base para crer na vida eterna.17

Em geral, o naturalismo domina os currículos das universida­des e faculdades seculares de hoje. Nelas, Deus é largamente des­conhecido e normalmente considerado inexistente ou impossível de ser conhecido. O universo é um sistema fechado, imperturbado e imperturbável; os eventos sobrenaturais, como os milagres, não podem se intrometer. A B íb lia é meramente um livro como todos os outros livros antigos, cheio de mitos e enganos, a ser interpreta­do por qualquer “método científico” que esteja atualmente em voga. Suas experiências informadas sobre Deus são em grande parte explorações dos próprios sentimentos e desejos internos dos es­critores. Os estudantes modernos logo entendem que, se não há legislador divino, então a ética e a moralidade nunca podem ser vistas em condições absolutas. O comportamento do indivíduo é

/Jutena urfke <z S&ctutccui

lluminismo: movimento filosófico do século XVIII, que enfatizava o livre uso da razão, o método empírico da ciência e questionava as doutrinas e valores tradicionais.

Ateu: do grego a, que significa "sem", e theos, que significa "deus".

“As Escrituras, embora também te­nham sido escritas por homens, não são de homens nem provenientes de ho­mens, mas de Deus” .

“ [...] A Palavra de Deus e maior do que o céu e a terra, sim, maior do que a morte e o inferno, porque for­ma parte do poder de Deus e dura eter­namente; devemos estudar a Palavra de Deus esforçadamente, e saber e crer com certeza que o próprio Deus fala conosco” .

“Como podemos saber o que é a Palavra de Deus e o que é certo ou errado? [...] Você mesmo tem de determinar este assunto, pois sua própria vida depende disso. Por isso, Deus tem de falar em seu cora­ção: Esta e a Palavra de Deus; caso contrário você fica indeciso [...]”

(Material extraído dcA Compend ofLuther’s Theology [Um Compên­dio da Teologi a de Lutero]., Hugh T. Kerr, editor.)

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puramente questão de escolha pessoal ou coação social. O natura­lismo inevitavelmente deixa os seres humanos à toa, num mar de relativismo e subjetividade éticos.

Por contraste, a B íb lia ensina com vigorosa certeza que Deus existe e chamou tudo à existência por sua palavra poderosa. As­sim, seu primeiro livro , Génesis, começa com simplicidade e ele­gância: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Génesis 1.1). “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Salmos 19.1), acrescenta o salmista. O po­der criativo e o governo de Deus mostram-se tão óbvios, que outro salmista adiciona: “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus” (Salmos 53.1).18 O Deus da B íb lia não só criou, mas continua a intervir no mundo. E le chamou Abraão, tirando seu povo do Eg i­to, estabeleceu um concerto com os israelitas no Sinai, e deu um código de conduta pelo qual o povo deve viver. E le tem cumprido seus propósitos ao longo da história bíblica, realizando suas pro­messas em Cristo e a Igreja. Por Cristo, a Igreja está segura da presença e poder contínuos de Deus até o fim da era e a consuma­ção de todas as coisas.

Os vastos dados bíblicos que apóiam uma análise da interven­ção de Deus em seu mundo, em defesa dos seus próprios propósi­tos, estão historicamente expressos na doutrina cristã da provi­dência. M illard Erickson define esta doutrina como “a ação conti­nuada de Deus, pela qual Ele preserva em existência a criação que Ele trouxe à existência, e a guia ao seu propósito intencional para ela” .19

O P a n t e ís m o

Outra cosmovisão comum, nativa a muitas religiões orientais e crescente em influência no Ocidente, é o panteísmo. Nesta visão, a humanidade é realmente deus. Mas é deus da mesma forma como o é uma cabra, ou uma árvore, ou um asteróide. Para o sistema panteísta, Deus é totalmente imanente, ou presente, na criação e indistinguível dela. O panteísmo despreza qualquer senso de transcendência, em que Deus está de algum modo separado de sua criação e é maior que ela. Também não leva em conta a possibili­dade de milagres ou intervenção sobrenatural. Sobre o futuro da humanidade, esta visão está frequentemente associada com a re- encarnação, a crença de que depois da morte o indivíduo nasce outra vez em outra vida, às circunstâncias das quais são determi­nadas pelos resultados líquidos das ações boas ou más na vida pregressa.20

A B íb lia ensina que Deus é imanente em seu universo no sen­tido de que E le está em todos os lugares presente e ativo. Na ver­dade, E le foi tão longe quanto assumir a carne humana na pessoa de Jesus de Nazaré. Porém, o panteísmo, distinto da B íb lia, tam­bém apresenta Deus como transcendente: Mesmo tendo criado e inclinado-se para se envolver no seu mundo, Ele todavia existe à

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 91parte dele no sentido de que sua essência divina não deve ser con­fundida com algo que E le tenha feito. Deus não é o mesmo que seu mundo.

O cristianismo é correspondente e na realidade ensina o que pode ser chamado de cosmovisão teísta. Em um sistema teísta, a realidade última é um deus, ou deuses, que traz o universo à exis­tência e, em algum sentido, o transcende. O Deus da B íb lia não apenas é pessoal, mas também é uma realidade eterna. Ele existiu antes de qualquer entidade material no universo e do nada trouxe à existência tudo o que existe fora dEle. “Pela fé, entendemos que os mundos, pela palavra de Deus, foram criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente” (Hebreus 11.3).

Em contraste com os sistemas politeístas que caracterizam vá­rios deuses, os escritores da B íb lia descrevem uma crença monoteísta21 vigorosamente expressada na antiga declaração hebraica de fé, chamada Shema: “Ouve [hebraico, shema’], Isra­el, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Deuteronômio 6.4). A idéia de um Deus que é invisível e intolerante às imagens físicas ou ídolos, em um mundo antigo repleto de numerosas dei­dades caprichosas, feitas à imagem de seres humanos de ambos os sexos, era, realmente, revolucionária!

Mas o cristianismo é um tipo especial de monoteísmo. Enquanto acredita firmemente em um Deus, os cristãos afirmam ao mesmo tempo, sem qualquer senso de contradição, que o único Deus de­les também é trino em sua natureza essencial e obra redentora.22 Assim Paulo, como judeu devoto, pôde escrever em certo mo­mento que “há um só Deus” (1 Coríntios 8.6) e, quase imediatamen­te, acrescentar: “Todavia, para nós há um só Deus, o Pai [...] e um só Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8.6). Ele frequentemente alternava os nomes trinos em suas referências a Espírito, Senhor e Deus na conferição e operação dos dons espirituais (1 Coríntios 12.4-6).

O D e ís m o

O teísmo cristão em suas históricas expressões ortodoxas vem sendo entendido como supematuralista, no sentido de que Deus não apenas cria o universo, mas também o sustenta pelo seu poder e intervém diretamente nele para cumprir seus propósitos. Porém, uma variação do teísmo cristão surgiu na Inglaterra em princípios do século X V II, a qual ficou sendo conhecida como deísmo,23 e que ainda aparece de vez em quando em maneiras muito sutis e, às vezes, não tão sutis assim. Altamente racionalistas, os deístas logo abandonaram o conhecimento revelador da Bíblia para postular um universo no qual Deus foi reduzido ao papel de “causa primei­ra” . Usando a imagem do relojoeiro, eles afirmaram originalmen­te que Deus criou o mundo, “deu corda” nos processos naturais e o deixou correr pelo universo, onde o abandonou. Em tal sistema de crença, há pouca necessidade das clássicas doutrinas cristãs, como a Trindade, a encarnação de Cristo, a expiação, os milagres ou a inspiração da Escritura.

Panteísmo: do grego, pan, que significa "tudo", e theos, que quer dizer "deus"; assim "tudo é Deus" ou "Deus está em tudo".

Teísta: do grego, theos, que significa "deus".

Politeísta: monoteísta-, poli significa "muitos"; mono significa "um" ou "só".

Trino: "três Pessoas em um Ser divino".

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Deísmo: do latim deus, mais o sufixo -ísmo.

Basicamente, nesta visão, Deus equipou a espaçonave terra para sua viagem e a deixou entregue a quaisquer aventuras que ve­nham suceder. Considerando que a intervenção divina é d ifícil de predizer ou verificar, esta ótica tem certa atração para as pessoas que sentem a necessidade de um Criador, mas que pensam que Ele está ausente da vida diária. No uso popular, a palavra deísta é aplicada às vezes a expressões ortodoxas da fé cristã que limitam a vontade ou a capacidade de Deus de intervir milagrosamente em seu mundo.24

Por contraste, a B íb lia demonstra em todas as suas páginas que Deus não só criou o mundo, mas que está constantemente envol­vido em sua preservação. No avivamento ocorrido nos dias de Neemias, os levitas oraram: “Tu só és SENHOR, tu fizeste [tempo passado] o céu” . Mas depois acrescentaram: “Tu os guardas [tem­po presente] em vida a todos” (Neemias 9.6). O tema do Antigo Testamento bem poderia ser: “O SENHOR tem estabelecido o seu trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo” (Salmos 103.19). Daniel observou: “E le muda os tempos e as horas; ele remove os reis e estabelece os reis” (Daniel 2.21). Semelhantemente, o Novo Testamento ensina que Cristo “é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele” (Colossenses 1.17) e que E le , como Filho de Deus, está “sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hebreus 1.3).

Ambos os Testamentos mostram o cuidado de Deus pelo mun­do. No Salmo 104, Deus “nos vales [faz] rebentar nascentes que correm entre os montes” (Salmos 104.10) e Ele “faz crescer a erva para os animais” (Salmos 104.14). A chuva pára e semelhantemente volta a cair segundo o prazer dEle (1 Reis 17.1; 18.1,45). Nas palavras de Jesus, é Deus quem envia o sol e a chuva sobre os bons e os maus (Mateus 5.45), e quem cuida dos pássaros, lírios e erva do campo (Mateus 6.26-30).

Deus também guarda as pessoas individualmente: Davi, quan­do perseguido por Saul (1 Samuel 23.9-12; 26.24); Sadraque, Mesaque e Abede-Nego na fornalha de fogo ardente (Daniel 3.28); Paulo em meio a tempestade e naufrágio (Atos 27.23,24). Enquanto o deísmo pode parecer uma visão atraente aos que têm dificuldade de traçar cientificamente o caminho da intervenção sobrenatural no universo, ele não pode ser sustentado por uma leitura cuidado­sa da Bíblia.

Preenchendo a CosmovisãoAfirmar que a B íb lia apresenta uma cosmovisão inclusiva e

unificada é exagerar o argumento e entender mal a natureza da literatura bíblica. Enquanto todas as culturas têm uma cosmovi­são, seja simples ou complexa, declarada miticamente ou abstra- tamente, difundida e preservada oralmente ou escrita com cuida­do num documento, nenhum modo de declarar uma cosmovisão

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO

cristã satisfaria as necessidades de todas as culturas, em todos os tempos. Antes, a B íb lia é essencialmente a testemunha escrita da criação e governo de Deus no universo, à medida que se relaciona com os seres humanos. Também é o registro das maneiras como Deus se revelou a si mesmo e a sua vontade à humanidade.

Como documento autorizado que presta testemunho à nature­za de Deus, ao mundo e aos seres humanos, a B íb lia é uma fonte da qual uma cosmovisão sensatamente pode ser construída. M ui­tas narrativas ou ensinos da Escritura falam diretamente aos vári­os elementos de uma cosmovisão. Onde os assuntos não são espe­cificamente tratados pela Escritura, conclusões racionais podem ser tiradas de fontes narrativas relevantes e abundantes. Por exem­plo, as narrativas da criação em Génesis (capítulos 1-3) pressu­põem que Deus criou tudo o que existe. Mas não tratam direta­mente da questão de se Deus criou o mundo em seis dias de 24 horas literais há aproximadamente 6.000 anos, como muitos acre­ditam, ou se foi ao longo de dias de eras como muitos outros acre­ditam. A teoria particular do indivíduo sobre a maneira e a crono­logia da criação da terra será estabelecida em conclusões tiradas de estudo cuidadoso do texto bíblico, quando comparado com a evidência das ciências física e biológica.

A I d e o l o g ia

Os cristãos têm achado historicamente necessário identificar as crenças centrais de sua fé mediante o estudo meticuloso da B í­blia, para depois expressar essas crenças em declarações de fé concisas e facilm ente memorizáveis, as quais são comumente cha­madas de credos. Na grande maioria das vezes, as declarações da Escritura sobriamente formuladas tratando de assuntos doutriná- rios-chaves serviram como os primeiros credos e continuam a ser­v ir assim até hoje. Deste modo, no Shema, mencionado anterior­mente, temos uma crença central do judaísmo e, subsequentemen­te, do cristianismo: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Deuteronômio 6.4).

Quando um proeminente rabino judeu questionou Jesus sobre qual dos muitos mandamentos do Antigo Testamento era o maior, ele tinha inventado um ardil inteligente para determinar a essên­cia do sistema de crença de Jesus. Evidentemente sem vacilar, Je­sus citou Deuteronômio 6.5: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” , e prosseguiu com uma segunda citação retirada de Levítico 19.18: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (veja Mateus 22.34- 40). Jesus entendia que essas passagens continham elementos es­senciais da fé de Israel.

Os primeiros pregadores cristãos procuravam, naturalmente, passagens-chaves do Antigo Testamento para expressar aspectos importantes de sua crença na ressurreição de Cristo, como por exemplo na citação de Pedro do Salmo 16.8-11 (veja Atos 2.25-

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Kenose: a condescendência de Cristo à humilhação terrena, assim nomeado do grego kenoô, "esvaziar", de Filipenses 2.7.

Encarnação: a tomada da forma humana, completamente humana e completamente divina.

Exaltação: a restauração de Jesus à sua glória no trono do Pai.

28), ou na citação de Paulo do Salmo 16.10 (veja Atos 13.35). Julga-se que Paulo tenha citado em Filipenses 2.5-11 um credo cristão primitivo, quando usou a kenose como exemplo para enco­rajar os crentes a imitarem a humildade do Senhor. Outro exem­plo aparece em 1 Timóteo 3.16, que enfatiza a encarnação e exaltação de Jesus.25

Proveniente daqueles primeiros começos tem manado um flu­xo constante de desenvolvimento de credos tencionados a reafir­mar as crenças centrais da fé cristã em forma facilmente repetível. O propósito era responder a desafios particulares de cada era his­tórica. O mais conhecido dos credos primitivos é o denominado Credo Apostólico, ainda em uso difundido hoje. Embora não com­posto pelos apóstolos, como se sugere, suas primeiras formas pro­vavelmente remontam a um período primitivo na história da igre­ja , o fim do século I I .26 E uma declaração eloquente, mas simples, da fé bíblica articulada em volta das declarações de crença em “Deus Pai todo-poderoso” , “Jesus Cristo, seu Filho unigénito, nosso Senhor” e “o Espírito Santo” .

De inícios simples, os credos pouco a pouco desenvolveram- se em complexidade e sofisticação para contrabalançar as heresi­as particulares dos seus tempos. Na era da Reforma ficaram bas­tante longos, enquanto as tradições protestantes emergentes tenta­vam clarificar suas crenças com base escriturística, diferente das crenças do catolicismo romano. A Confissão de Augsburgo, de 1530, tem mais de quarenta páginas. Cerca de um terço é uma declaração de fé em forma de credo; o restante tem a ver com as questões doutrinárias então em disputa.27 Cada uma das principais tradições prepararam credos extremamente precisos para declarar o que acreditavam ser as cruciais crenças bíblicas importantes para eles, mas omitidas ou contraditas por outros.

A Confissão Westminster de Fé (1646), influente na tradição reformada, enfatiza fortemente a predestinação de Deus daqueles a quem Ele elegeu para a salvação.28 Por contraste, os Trinta e Nove Artigos da Religião (1563)29 dos anglicanos deram pouca ênfase à predestinação. Sua revisão metodista, Os [Vinte e Cinco] Artigos da Religião (1784), também ignora em grande parte a ques­tão.30 Todos os credos históricos representam um esforço em des­tacar os ensinamentos diretos ou implícitos das Escrituras em afir­mações chaves pelas quais seus autores estavam disputando. A Escritura é normalmente compreendida como a base autorizada da qual os credos são desenvolvidos e argumentados.

A N a rrativa B íb l ic a

Os credos tendem a ser abstratos e filosóficos. Portanto, ape­lam principalmente a adultos cultos interessados em refinar e trans­m itir os pilares teológicos-chaves da fé. Muito da vitalidade da fé é transmitido nas narrativas da B íb lia, as quais tendem a ser colo­ridas, dramáticas e facilmente lembradas. As narrativas bíblicas

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 95nunca são somente um fim em si mesmas. Sempre contêm lições teológicas ou éticas importantes. Por exemplo, as histórias sim­ples, mas dramáticas, de Adão e Eva (Génesis 1-3) tratam de al­gumas das questões mais vitais da existência humana. Um Deus pessoal, transcendente e todo-poderoso criou o primeiro casal hu­mano à sua imagem (Génesis 1.27) a partir dos elementos da terra (Génesis 2.7). Ele fez deles uma unidade fam iliar (Génesis 2.24) e definiu sua existência por meio de certas instruções para a adora­ção (Génesis 3.8,9), o serviço (Génesis 1.26; 2.15) e o comporta­mento ético (Génesis 2.17).

Mas se os seres humanos são nobres, eles também são ignóbeis. Assim , a história conta a tentação de Adão e Eva pela serpente (Génesis 3.1-7), e como eles foram expulsos do jardim, o lugar de sua origem. A narrativa dá uma ex­plicação do sofrimento (Génesis 3.16) e o tra­balho duro (Génesis 3.17-19), e até pressagia a redenção da humanidade.31

Como até o leitor principiante logo apren­de, a B íb lia nos fornece muito mais que dou­trinas, mandamentos e preceitos. Do Génesis (o livro dos come­ços) ao Apocalipse (o livro da revelação), a B íb lia comunica suas mensagens em histórias evocativas tão cativantes quanto um dra­ma shakespeariano ou tão lum inoso quanto uma pintura impressionista. As histórias de Abraão dão início à saga do povo do concerto, vital ao plano de Deus de redenção (Génesis 12— 25.11). As histórias de Moisés narram a libertação milagrosa, o estabelecimento do concerto, a instituição da profecia e a forma­ção da nação. O futuro Salvador é profetizado nas histórias do rei Davi, sob cujo governo o povo da promessa derrotou seus inim i­gos de todos os lados e estabeleceu um império. Ao longo do ca­minho, as narrativas de heróis como José e Sansão incorporam lições éticas positivas e negativas, com importantes insights teológicos.

No Novo Testamento, as narrativas do nascimento de Jesus contêm os elementos cruciais da doutrina cristã da encarnação, na qual Deus toma a forma humana para redimir a posteridade caída de Adão. As histórias do batismo, da dotação com o Espírito, da tentação e do ministério de Jesus recontam como Deus viveu entre os seres humanos, ensinando o caminho da salvação. A história da crucificação é mais que um relato triste de um erro judicial trági­co. É a história de como Deus perdoa o pecado da raça humana. A narrativa da ressurreição é o clímax da história do Evangelho, mostrando como Deus venceu a morte de Jesus para completar a obra de redenção. A narrativa do Livro de Atos reconta os come­ços da Igreja. Em detalhes fascinantes descreve que o Deus vivo mora no interior daqueles que são dEle (e não no Tabernáculo ou no Templo), e que E le os manda sair como sócios responsáveis

A Bíblia não é apenas a fonte para a doutrina ou teologia na cosmovisão cristã; também é a

fonte para um sistema ético consistente e benevolente.

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Pentateuco: do grego penta, que quer dizer "cinco", e teuchos, que significa "livro".

pela reconciliação do mundo. Os enredos do Apocalipse contam a consumação de todas as coisas, com o julgamento final para a bem-aventurança impenitente e eterna pertencente aos remidos.

Os E le m e n to s N o r m a t iv o s d a E s c r i t u r a

A Bíb lia não é apenas a fonte para a doutrina ou teologia na cosmovisão cristã; também é a fonte para um sistema ético con­sistente e benevolente. A instrução ética é encontrada ao longo da B íb lia, de Génesis, o primeiro livro, onde Deus ordena que Adão não coma do fruto da árvore da ciência do bem e do mal (Génesis2.17), ao Apocalipse, o último livro, onde o ouvinte é ordenado a não acrescentar nem tirar de suas profecias (Apocalipse 22.18,19). Começando no Pentateuco e prosseguindo pela B íb lia, os ensinos éticos variam de leis cuidadosamente codificadas, tão específicas e práticas quanto a proibição contra a usura (Deuteronômio 23.19) a princípios gerais de amplo alcance, como “ Amarás o teu próxi­mo a ti mesmo” (Levítico 19.18).32

A ética bíblica é tanto pessoal - tendo a ver com o modo como os indivíduos se relacionam com Deus e uns com os outros, como nos exemplos precedentes - quanto social, explicando em deta­lhes as ações que contribuem para o bem-estar da sociedade como um todo. Assim Amós censura amargamente seus companheiros que pisam os pobres (Amós 5.11) e pede que haja justiça nos tri­bunais (Amós 5.15). Muito do conteúdo da B íb lia é ético em sua natureza, diretamente preocupado com o modo como as pessoas vivem em relação a Deus e umas às outras.

O coração da ética bíblica encontra-se nos Dez Mandamentos, ou “Dez Palavras” , como significa literalmente o texto hebraico (como também o texto grego: “Decálogo”), os quais o próprio Deus escreveu em tábuas de pedra e as deu a Moisés (Êxodo 20.1-17; Deuteronômio 5.1-22). Muito mais que um simples conjunto de prescrições legais, o Decálogo é um concerto (Deuteronômio 5.3), estruturado na linguagem dos contratos do antigo Oriente Próximo: O Senhor, como o Grande Rei que libertou Israel do Egito, fixa as cláusulas pelas quais seu povo deve pautar a vida. Para ser exato, os mandamentos requerem uma resposta de amor e gratidão discipli­nada ao Senhor, e não são um sistema legalista tedioso.

O Decálogo divide-se naturalmente em duas seções.33 A pri­meira seção, compreendendo os mandamentos um a quatro, tem a ver com o que poderia ser chamado de relacionamento vertical, entre o homem e Deus. Assim Israel 1) não deve ter outro Deus, 2) não deve fazer (cultuar) nenhum ídolo, 3) não deve permitir ne­nhum abuso com o nome de Deus e 4) deve observar o sábado. A segunda seção inclui os mandamentos cinco a dez, tendo a ver com o relacionamento horizontal, entre as pessoas. Assim Israel 5) deve honrar os pais, 6) não deve assassinar, 7) não deve come­ter adultério, 8) não deve roubar, 9) não deve dar falso testemu­nho, 10) não deve desejar nada que pertença ao próximo.34 Numa

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 97época de idolatria excessiva e confusão ética, o Decálogo foi um documento muito mais revolucionário do que possa ser imagina-

A importância do Decálogo é enfatizada pelo modo como foi usado no Novo Testamento. Jesus considerou as ordens do Decálogo a ética básica do Reino de Deus. Em debate com seus oponentes, E le reiterou o Decálogo. Mas ao fazê-lo, Ele o elevou muito mais acima do que um mero conjunto de regras, quando resumiu a primeira tábua com o mandamento de amar Deus e a segunda tábua, com o mandamento de amar o próximo (Mateus 22.34-40). O interesse de Jesus pelo Decálogo é demonstrado re­petidamente. Por exemplo, Ele recitou a segunda tábua para um jovem rico , mas aparentemente cobiçoso e legalista (Mateus19.18,19). A implicação clara era que o jovem tinha perdido de vista o que significava amar Deus e o próximo. Em outra ocasião, E le disse: “Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (Mateus 7.12). Aqui mais uma vez E le reafirma dinamicamente a segunda tábua com o amor ao próximo, e mostra sua centralidade na vonta­de de Deus. Para Jesus, a essência do Decálogo como amor a Deus e ao próximo é eternamente válida e universalmente ordenada.

Paulo e — no que diz respeito ao assunto — a comunidade do Novo Testamento em geral, seguiram o exemplo de Jesus na perpe­tuação da ética do Decálogo. Paulo repetiu quatro mandamentos da segunda tábua e, como Jesus, reduziu-os dinamicamente para a lei do amor. “Se há algum outro mandamento” , disse ele, “tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. [...] De sorte que o cumprimento da lei é o amor” (Romanos 13.9,10). Entretanto, longe de ser legalista, Paulo entendeu que o amor é o dom de Deus dado pelo seu Espírito (Roma­nos 5.5), e que o Espírito quebra o poder do peca­do (Romanos 6.12; 8.2,13; Gálatas 5.16) e forne­ce a motivação para vivenciar a ética do Reino de Deus (Romanos 8.4; Gálatas 5.22). Além disso, a relação do indivíduo com Deus não está baseada na adesão perfeita aos mandamentos (Ro­manos 3.20), importantes como são como respostas obedientes a Deus, mas na retidão livremente fornecida pela fé na obra redentora de Jesus Cristo (Romanos 3.21-26).

A B íb lia não nos deixa com um código legalista de comporta­mento ético, que apresenta prescrições específicas para toda situ­ação d ifíc il. Antes, presta testemunho a um Deus pessoal, tremendo em santidade, que ordena que a humanidade o ame e ame uns aos outros pela graça que Ele dá. O Decálogo e outros mandamentos específicos da B íb lia tornam-se um conjunto de princípios orientadores autorizados, que são incrivelmente elásticos e aplicáveis a toda situação mediante a oração e a sabedoria do Espírito Santo.

do por nossa cultura, que foi intensamente influenciada pela tradi­ção judaico-cristã.

Usura: "sobrecarregar de juros exorbitantes".

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Os R i tu a i s D e r iv a d o s d a E s c r i t u r a

As narrativas bíblicas estão repletas de rituais poderosos, pe­los quais o povo de Deus invocava suas bênçãos e observava seus mandamentos para adoração e serviço. Dos sacrifícios simples de Abrão no início do concerto de Deus com ele (Génesis 15), ao elaborado Tabernáculo no deserto com seus sistemas sacrificiais e rituais cuidadosamente prescritos (Êxodo 35^10; Levítico 1-27), ao dourado e ainda mais complexo Tempo de Salomão (1 Reis 5- 8), Israel desenvolveu o que entendia ser a maneira de adoração ordenada pelo grande Rei como demonstração adequada de sua vontade na vida do seu povo.

Assim , a liturgia do Templo veio a simbolizar a eleição de Is­rael e o privilégio especial como povo peculiar de Deus. A des­truição do Templo, realizada pelos babilónios em 586 a.C ., efeti- vamente explicou em detalhes a rejeição de Deus e o castigo pelos pecados que eles cometeram. Subsequentemente, os israelitas pi­edosos almejaram a restauração do favor divino implícito na volta ao ato de reunirem-se e na reconstrução do Templo.

A importância da reconstrução do Templo nas vidas dos ju ­deus imediatos ao exílio é vista no modo como o próprio Jesus frequentava o Templo e participava dos seus cultos (Mateus 21- 24; Marcos 11-13; Lucas 2.27,41-49; 19.45,46; 20-23; João 2.13- 16; 7.14ss, etc.). Isto era verdade apesar, do seu desprezo pela maldade dos líderes de então (cf. Mateus 23) e pela comercialização excessiva dos sacrifícios que faziam (Mateus 21.12,13; João 2.13- 16). Jesus também previu um tempo quando o esplêndido Templo dos seus dias, magnificentemente restaurado por Herodes, o Gran­de, seria destruído outra vez (Mateus 24.1,2; Marcos 13.1,2; Lucas 21.5,6). Os cristãos primitivos regularmente usavam o Templo para suas reuniões (Atos 3.1ss; 5.12; 5.42) e tomavam parte em seus ritu­

ais (Atos 21.26), mas, mesmo assim, compreen­diam que o perdão de pecados agora era consu­mado pela morte de Jesus (Atos 2.38; 5.30,31) e não pelos rituais do Templo como tais (cf. Hebreus 9).

O fato de que cada vez mais os cristãos prim itivos davam menos significado ao r i­tual do Templo (junto com a predição de Je­

sus da destruição do Templo) pode ter contribuído para o surgimento de tensões entre eles e os líderes judeus. Por exem­plo, Estêvão fo i acusado de fa lar contra o Templo (Atos6.13,14). Em resposta, ele ressaltou eloquentemente que, em­bora Deus tivesse dado aos judeus o Tabernáculo e, depois, o Templo, eles se fizeram de surdos aos mandamentos e leis de Deus. Estêvão então insistiu : “O Altíssim o não habita em tem­plos feitos por mãos de homens” (Atos 7.48). Em todo caso, na época em que o Templo foi destruído em 70 d .C ., a adoração nele já não era mais vital para a fé cristã.

As narrativas bíblicas estão repletas de rituais poderosos, pelos

quais o povo de Deus invocava Suas bênçãos.

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 99Os rituais do Templo e da sinagoga tiveram indubitavelmente

influência importante nas práticas35 rituais da cristandade em al­guns aspectos, como na música e no canto, na oferta, na oração, na leitura da Escritura e na pregação. Os antecedentes judeus so­bejavam em cada uma dessas práticas, e a B íb lia ensina direta- mente a sua importância ou fornece precedente para o seu uso no culto.

As duas práticas rituais mais óbvias ensinadas na Escritura são0 batismo e a Eucaristia, ou Santa Ceia, como é frequentemente chamada. As igrejas litúrgicas tendem a considerar estes eventos como sacramentos, crendo que a graça é de fato mediada por eles. Aqueles que se alinham à tradição da igreja liberal geralmente os chamam de ordenanças e desejam fica r longe de qualquer conotação mágica da graça, que possa depreciar a necessidade da fé e obediência na observância.

O batismo nas águas, como sinal de arrependimento e compro­misso a Deus, parece que foi introduzido pela primeira vez na tradição judaica pelo ministério de João Batista (Mateus 3.6). O próprio Jesus se submeteu ao batismo, não como sinal de arrepen­dimento, mas para “cumprir toda a justiça” (Mateus 3.15). Tam­bém se tornou a ocasião para a sua unção pelo Espírito (Mateus3.16,17). Ocasionalmente, os discípulos de Jesus parecem ter ba- tizado outros (João 3.22-26; 4.2). O batismo está ordenado junto com a Grande Comissão que Jesus deu aos discípulos (Mateus28.19) e era, desde o princípio, parte da prática ritual cristã (Atos 2.38; 8.12,38; 9.18; 10.48). A linguagem do batismo aparece aqui e nas Epístolas, falando sobre a morte para a velha vida de pecado e desobediência antes da chegada à fé em Cristo (Romanos 6.1-4;1 Pedro 3.21). (Veja o box “O Ritual Cristão do Batismo nas Águas” , no Capítulo 1.)

A prática ritual da Santa Ceia deriva da compreensão cristã de que o próprio Jesus a ordenou nos relatos de sua última ceia com os discípulos, encontrados nos Evangelhos sinóticos (Mateus 26.17-30; Marcos 14.12-26; Lucas 22.7-23) e na primeira carta de Paulo aos coríntios (1 Coríntios 11.17-34), provavelmente nosso registro mais primitivo sobre o evento. Nos momentos emocional- mente mais elevados daquela refeição, Jesus tomou o pão e, de­pois de dar graças, deu aos discípulos para que o comessem, di­zendo: “ Isto é o meu corpo” . Semelhantemente, passou para as mãos deles o cálice de vinho, dizendo: “Isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento [concerto], que é derramado por mui­tos” .

Jesus identificou esta ocasião cerimonial claramente com sua morte iminente, e ensinou que ela simbolizava exclusivamente o modo pelo qual sua morte se tornaria uma compensação pelos pe­cados da humanidade. Tanto o testemunho de Lucas quanto o de Paulo apresentam Jesus relacionando o pão com seu corpo dado por nós (Lucas 22.19; cf. 1 Coríntios 11.24). O seu sangue é “o

Eucaristia: do vergo grego eucharisteô, que significa "dar graças".

Sacramento: do latim sacrere, que quer dizer "consagrar".

Ordenança: uma cerimónia prescrita; na teologia, os mandamentos de Cristo.

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1 0 0 EDGAR R. LEE

As narrativas bíblicas estão repletas de rituais poderosos pelos

quais o povo de Deus invocava suas bênçãos.

sangue do Novo Testamento [concerto], que por muitos é derra­mado” (Marcos 14.24). Mateus acrescenta: “Para remissão dos__________________ pecados” (Mateus 26.28). Lucas (Lucas 22.19)

e Paulo (1 Coríntios 11.24) relembram especi­ficamente que a ceia será repetida “em memó­ria de mim” . (Veja o box “O Ritual Cristão da Celebração da Ceia do Senhor” , no Capítulo 1.)

Outras práticas são frequentemente deduzidas da B íb lia, como o modo apropriado

de celebrar e observar a fé pessoal. Tais práticas incluem as reuni­ões regulares, o canto, o uso de instrumentos musicais, a oração, a pregação, o uso dos dons espirituais no culto, e assim sucessiva­mente. Diferentes igrejas colocam diferentes valores em determi­nados rituais, dependendo de sua interpretação da Bíblia.

A E x pe r iê n c ia E spir it u a l

No capítulo anterior foram investigados quatro exemplos marcantes de experiências religiosas bíblicas. As narrativas bíblicas realmente abundam em histórias sobre as diferentes maneiras pe­las quais Deus encontrou os seres humanos em modos transfor­madores de vida. O que precisa ser acrescentado aqui é que a B í­blia apresenta um Deus vivo, pessoal e amoroso, que deseja ter um relacionamento com todos os que estão dispostos a ir a E le em

4- Síeme*tto& da, &eàz do* Sm ámTem havido grande debate ao lon­

go da história da Igreja concernente a como entender precisamente os ele­mentos do pão e do vinho em relação ao verdadeiro corpo e sangue de Je-

| sus. Historicamente, os católicos romanos têm defendido seu ponto de vista denominando-o de transubstanciação, afir­mando que durante a ce­lebração da m issa os elementos do pão e do vinho são transformados de verdade no corpo e

no sangue de Jesus. Os luteranos, seguindo o reform ador alemão Martinho Lutero (1483-1546), argu­

mentaram em favor da consubstan- ciação, acreditando que o corpo e sangue de Jesus estão realmente pre- senles em, com e sob os elementos do pão e do vinho. Porém, a maio­ria dos protestantes tem seguido até certo ponto a visão memorial do lí­der suíço da Reform a U lrich Zwinglio (1484-1531), acreditando que os elementos da Santa Ceia são simplesmente símbolos do corpo e do sangue de Jesus. Com frequência eles amenizam o entendimento memorial de Zwinglio com o insight de João Calvino, de que, em algum sentido m ístico, Cristo está realmente pre­sente na comunhão pela atividade do Espírito Santo.

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 101

arrependimento e fé. Este ponto está talvez supremamente ilustra­do na descrição que os quarto Evangelhos fazem da encarnação: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1.14). Habitan­do entre os seres humanos, Jesus entrou em relacionamento afetivo e pessoal com eles. Mesmo quando se prepa­rava para a morte, os escritores evangelísticos notam a preocupação de Jesus em continuar os relacionamentos. “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre. [ ...] Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós” (João 14.16-19).Em outras palavras, na presença confortante do Espírito Santo que E le enviaria, Jesus mais uma vez entraria em contato pessoal e vital com o seu povo.

A experiência dos crentes prim itivos, segundo registro no Livro de Atos dos Apóstolos, foi construída sobre a promessa do Evangelho. Lucas informa: “Os discípulos estavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (Atos 13.52), ligando decisiva­mente a alegria deles com o Espírito . A marca registrada da fé na Igreja prim itiva era uma experiência jovia l de Cristo pelo seu Espírito (Atos 2.46,47; 8.8,39). Ao longo do Novo Testa­mento, há notável conexão entre a experiência cristã e a pessoa e presença do Espírito Santo.

No pensamento de Paulo, Deus derrama amor no coração do crente pelo Espírito (Romanos 5.5), que também alimenta o fruto “adicional” da alegria e da paz, juntamente com outros atributos de caráter (Gálatas 5.22; cf. Romanos 15.13). A esperança é outra contribuição do Esp írito (Romanos 15.13). Esta presença habitadora do Espírito dá garantia, pela qual os crentes sabem que Deus os ama e aceita. Assim Paulo escreve: “O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Roma­nos 8.15,16; cf. Gálatas 4.6). De modo semelhante, a Primeira Carta de João adiciona: “E nisto conhecemos que ele está em nós: pelo Espírito que nos tem dado” (1 João 3.24). Os cristãos primi- .tivos também não tinham dificuldade em falar de Cristo (Roma­nos 8.10; Gálatas 2.20; Efésios 3.17).

Em suma, a experiência cristã é sentir o poder de Deus no inte­rior da pessoa, de modo a fortalecer a fé (Efésios 3.16,20; Colossenses 1.11) e contribuir para a paz de espírito do indivíduo (Filipenses 4.7).

A I g r e ja c o m o I n s t it u iç ã o S o c ia l

A entidade social primária associada à fé cristã é-a Igreja, o fundamento lógico pelo qual está profundamente incrustada na Escritura. Biblicamente, a palavra igreja é usada para denotar um grupo local de cristãos e a Igreja universal - a reunião de todos os verdadeiros crentes ao longo das eras. Na vida moderna, igreja

Igreja denota frequentemente um edifício, significado não encontrado na Bíblia, e que tende a desviar a atenção da

Igreja viva como entidade encabeçada por Cristo.

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denota frequentemente um edifício, no qual um grupo particular de cristãos se reúne, uso não encontrado na B íb lia, e que tende a desviar a atenção da natureza essencial da Igreja como entidade espiritual encabeçada por Cristo, composta de seu povo e habita­da pelo seu Espírito. Hoje, também usamos a palavra para nos referir às denominações em particular. Cada denominação será de­finida por sua ênfase distintiva da B íb lia e o modo singular de entender sua história. Nosso propósito aqui é inquirir sobre o im­pacto da Bíblia em nossa experiência singular de Igreja.

A B íb lia nos mostra que Deus sempre tratou a humanidade em um nível individual e pessoal. Ao mesmo tempo, E le a dispôs em grupos sociais. Logo depois da criação de Adão, Deus pro­nunciou: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora que esteja como diante dele” (Génesis 2.18). Seguiu- se a criação de Eva e o estabelecimento da unidade fam iliar (Génesis 2.21-24). A chamada de Abraão por Deus veio com a promessa de ser feito dele uma grande nação (Génesis 12.1-3). A história do Antigo Testamento é a história da criação de Isra­el como povo peculiar de Deus, por quem E le pôde fomentar seus propósitos para a humanidade. A Igreja cristã veio à existên­cia com a compreensão de que era a culminação de muitas das promessas de Deus para e por Israel.36

De acordo com o Novo Testamento, o próprio Jesus se anteci­pou à criação da Igreja (Mateus 16.18; 18.17) e prefaciou sua as­censão com uma comissão que resultaria no crescimento dela (Mateus 28.18-20). A Igreja não é simplesmente uma associação voluntária, como muitas pessoas numa sociedade democrática comumente acreditam. Biblicamente, é um organismo criado pelo Espírito Santo à medida que homens e mulheres respondem com fé à pregação da Palavra de Deus. Não há muito o que decidir para tornar-se parte da Igreja no que tange a ser colocado lá pela ação de Cristo no evento da salvação. “Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, [...] e todos temos bebido de um Espírito” (1 Coríntios 12.13). O cabeça da Igreja é o próprio Cristo (Efésios 1.22,23; Colossenses 1.18), e a metáfora bíblica mais descritiva para a Igreja é Corpo de Cristo (Romanos 12.5; 1 Coríntios 12.12, etc.). Assim a Igreja, biblicamente falando, é o corpo universal de crentes capacitados pelo Espírito de Deus e obedientes a Jesus Cristo, o cabeça.

A Igreja existe para cumprir os vários objetivos no propósito divino. Primeiro, existe para adorar e servir a Deus. Pedro, com uma mescla vívida de metáforas, vê o povo de Deus como pedras vivas construídas numa casa espiritual, ou templo, e ao mesmo tempo é um sacerdócio santo que oferece sacrifícios espirituais a Deus (1 Pedro 2.5). Paulo também descreve a Igreja em condições semelhantes (1 Timóteo 3.15). Segundo, a Igreja existe para evangelizar o mundo. Jesus constituiu o seu povo exclusivamente como povo de missão, e dirigiu-o a ir e fazer discípulos de todas

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 103as nações (Mateus 28.19). Terceiro, a Igreja é incumbida a pro­porcionar nutrição e crescimento aos seus membros. Deve ser lu­gar “para edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão per­feito, à medida da estatura completa de Cristo” (Efésios 4.12.13). Uma cosmovisão bíblica pode ser corretamente enunciada e v iv i­da somente a partir da realidade incorporada da Igreja.

ConclusãoNo correr dos anos houve poucos dias, desde minha conversão

numa tenda de reuniões, em que eu não abri a B íb lia para ler sua sabedoria por necessidade devocional ou académica. Não hou­ve nenhum dia sequer em que a lembrança de sua mensagem não guiou e iluminou meus pensamentos e ações. O quebra- cabeça de uma cosmovisão consistente e satisfatória fo i sendo completado à medida que, muitas e muitas vezes, eu descobria a harmonia dinâmica de meu relacionamento pessoal com Deus, a palavra que E le falou na B íb lia e o mundo que Ele criou. Não há que duvidar que meu modo de pensar e de ser foi muitas vezes desafiado dolorosamente.

Com frequência enfrentei a necessidade de me arrepender e me renovar em ambas as frentes. Além disso, ainda não tenho respostas plenamente satisfatórias para todas as perguntas con- cebíveis que podem ser feitas ao meu sistema de crença. Certa­mente nenhuma cosmovisão está isenta de dificuldades. Mas en­contrei-as em menor número em uma abordagem cristã baseada na Escritura. Em lugar de requerer um sacrifício do meu intelec­to, descobri que a B íb lia continua me mudando na busca de um entendimento mais cabal dos seus ensinos. E descobri que vivenciar sua mensagem traz alegria e satisfação em um nível pessoal, que recompensa o custo de uma obediência como cren­te. Para mim, a B íb lia provou ser verdadeiramente theopneustos, “ soprada por Deus” . Como Calvino, descobri que “Deus em pes­soa fala nela” .

Revisão e Questões para Discussão1. Como você contaria a história da B íb lia em algumas breves

frases?2. D iscuta o significado e importância da palavra grega

theopneustos encontrada em 2 Timóteo 3.16.3. Qual é a opinião geral dos escritores bíblicos sobre a origem

e autoridade dos seus escritos?4. Qual é o significado do fato de que a B íb lia parece apenas

presumir a existência de Deus, sem qualquer necessidade de pro­vas racionais de sua existência? Por que você acha que os pensa­dores cristãos mais recentes — Anselmo, Tomás de Aquino, Paley — sentem necessidade de oferecer tais provas?

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5. Compare e contraste a cosmovisão da B íb lia com a do natu­ralismo, panteísmo e deísmo.

6. Como os credos históricos da igreja cristã relacionam-se com a B íb lia e nossa cosmovisão?

7. Como as narrativas da B íb lia informam nossa cosmovisão? Que precauções devem ser tomadas na formação de uma cosmo­visão a partir das narrativas?

8. Como devemos entender o significado do Decálogo para nossa vida ética hoje?

9. Quais são as duas principais práticas rituais que quase todos os cristãos observam, e qual é o significado de cada uma? Outros- sim, de que maneira essas cerimónias podem se tornar “meros” rituais? O que você sugere para ajudar a igreja de hoje a evitar tratar os rituais dessa forma?

10. Discuta o papel do Espírito Santo na experiência da fé cristã.

Bibliografia SelecionadaBLO ESCH , Donald G. Holy Scripture: Revelation, Inspiration,

& Interpretation. Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1994.E L W E L L , W alter A ., editor. Evangelical Dictionary o f

Theology. Grand Rapids: Baker Book House, 1984.E L IA D E , Mircea, editora. The Encyclopedia ofReligion. Nova

York: The Macmillan Publishing Company, 1987.H O FFEC K ER , W. Andrew, e SM ITH , Gary Scott, editores.

Building a Christian World View. 2 volumes. Phillipsburg, Nova Jersey: Presbyterian & Reformed Publishing Company, 1986,1988.

HORTON, Stanley M „ editor. Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1996.

JOHNSON, Alan F ., e W EB B ER , Robert E . What Christians Believe: A Biblical and Historical Summary. Grand Rapids: Academic Books/Zondervan Publishing House, 1989.

LE IT H , John H ., editor. Creeds ofthe Churches: A Reader in Christian Doctrine from the Bible to the Present. 3.a edição. Louisville: John Knox Press, 1982.

M cN EILL, John T ., editor. Calvin: Institutes ofthe Christian Religion. Traduzido para o inglês por Ford Lew is Battles. The Library of Christian Classics, volume 20. Filadélfia: Westminster Press, 1960.

NASH, Ronald H. Faith and Reason: Searchingfor a Rational Faith. Grand Rapids: Academic Books/Zondervan Publishing House, 1988.

Notas Bibliográficas1. Alusão à serragem que os evangelistas itinerantes america­

nos mandavam espalhar no corredor entre as fileiras de cadeiras nas tendas que erguiam de cidade em cidade. Assim , os corredo­res tomavam-se “pistas de serragem” . (N. do T .)

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 1052. Ronald H . Nash, Worldviews in Conflict: Choosing

Christianity in a World o f Ideas (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1992), p. 16.

3. Veja o Capítulo 1 para uma discussão sobre este termo.4. Para um bom exame do processo de canonização, veja Alan

F. Johnson e Robert E . Webber, What Christians Believe: A Biblical and Historical Summary (Grand Rapids: Academic Books/ Zondervan Publishing House, 1989), pp. 36-40.

5. Donald G. Bloesch cita o argumento de Fred D. Gealy em Interpreter’s Bible (Nova York: Abingdon, 1955), volume 11, pp. 504-506, no sentido de que esta passagem implica que os escritos de Paulo e, talvez, todos os escritos do Novo Testamento, devam ser entendidos como Escritura. Confira Holy Scripture: Revelation, Inspiration, & Interpretation (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1994), p. 317.

6. Gealy observa que esta passagem representou papel impor­tante no “estabelecimento do lugar do corpus paulino no Novo Testamento emergente” . Ibid ., p. 506.

7. Citado em A lan F. Johnson e Robert E . Webber, What Christians Believe: A B iblical and H istorical Summary (G rand R ap ids: Academ ic Books/Zondervan Pub lish ing House, 1989), p. 23.

8. Ibid ., p. 24.9. Leon Morris, IBelieve in Revelation (Grand Rapids: W illiam

B . Eerdmans Publishing Company, 1976), p. 59, citando o estudo de R . T. France, Jesus and the Old Testament (Londres: The Tyndale Press, 1971), p. 27.

10. Donald G. Bloesch, Holy Scripture: Revelation, Inspiration, & Interpretation (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1994), p. 122.

11. The International Standard Bible Encyclopedia, edição re­vista, Geoffrey W. Bromiley, editor. (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1979), no verbete: “Bible” .

12. Veja os comentários e bibliografia de Donald G . Bloesch: Holy Scripture: Revelation, Inspiration, & Interpretation (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1994), pp. 323, 324.

13. John T. M cNeill, editor, Calvin: Institutes ofthe Christian Religion, traduzido para o inglês por Ford Lew is Battles. The Library of Christian Classics (Filadélfia: Westminster Press, 1960), volume 20, p. 78.

14. Ibid ., p. 79.15. O existencialismo é outra visão proeminente hoje. Veja a

discussão no Capítulo 1.16. Veja o Capítulo 1 para uma discussão sobre este termo.17. Para uma crítica proveitosa sobre o naturalismo, veja Ronald

H. Nash, Faith and Reason: Searchingfor a Rational Faith (Grand Rapids: Academic Books/Zondervan Publishing House, 1988), es­pecialmente as pp. 256-259.

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18. A B íb lia nunca procura comprovar a existência de Deus mediante provas racionais. Porém, os pensadores cristãos o pro­curaram com variados graus de aceitação, em diferentes momen­tos na história da igreja. Os melhores argumentos conhecidos são o ontológico, baseado em nossa habilidade de conceber um ser perfeito que deve por necessidade ex istir se é perfeito ; o cosmológico, baseado na necessidade aparente de um criador para o nosso universo complexo; o teleológico, baseado no desígnio aparente de nosso universo; e o moral, baseado na presença da capacidade moral dos seres humanos. Para uma exposição clara, veja Stanley J . Grenz, Theology fo r the Community o f God (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1994), pp. 40-45.

19. M illard J. Erickson, Christian Theology (Grand Rapids: Baker Book House, 1983-1985), p. 387.

20. Veja The Encyclopedia ofReligion, Mircea Eliade, editora (Nova York: The Macmillan Publishing Company, 1987), no ver­bete: “Reincamation” .

21. Veja Evangelical Dictionary o f Theology, Walter A . E lw ell, editor (Grand Rapids: Bake Book House, 1984), no verbete: “Monotheism” .

22. Veja G. W. Bromiley, no verbete: “Trinity” .23. Ibid., no verbete: “Deism” .24. Veja K irk Bottom ly, “ Corning Out of the Hangar:

Confessions of an Evangelical Deist” , in: The Kingdom anã the Power: Are Healing and the Spiritual Gifts Used by Jesus and the Early ChurchMeantfor the Church Today? Gary S. Greig e Kevin N. Springer, editores (Ventura, Califórnia: Regai Books, 1993), pp. 257-274.

25. Para informações adicionais, veja John H . Leith, editor, Creeds ofthe Churches: A Reader in Christian Doctrine from the Bible to the Present, 3.a edição (Louisville , Kentucky: John Knox Press, 1982), pp. 12-16.

26. Ibid., pp. 22-25.27. Ibid ., pp. 63-107.28. Ibid ., pp. 193ss.29. Ibid ., pp. 266ss.30. Ibid., pp. 353ss.31. A narrativa parece presumir que animais foram sacrifica­

dos para fazer vestuário das peles, pressagiando práticas mais tar­dias de sacrifício animal para a expiação do pecado. Também pro­mete que a descendência da mulher ferirá a cabeça da serpente (Génesis 3.15). Esta promessa tem sido historicamente compre­endida como oprotoevangelium (“primeiro evangelho”), apontando para a morte e vitória de Cristo.

32. Contudo, note o modo no qual o mandamento ético do Antigo Testamento está inserido na vida em comunidade para preve­nir a vingança e o ressentimento contra os israelitas companheiros. Je­sus e Paulo, por contraste, parecem universalizar este mandamento.

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O PAPEL DA BÍBLIA NA FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CRISTÃO 10733. Alguns estudiosos, reparando na natureza comportamental

do décimo mandamento, classificam-no numa terceira seção.34. Veja Evangelical Dictionary of Theology, no verbete: “The

Commandments” . Observe que Craigie, o autor, inclui o quinto mandamento de honrar os pais com aqueles relacionados princi­palmente a Deus, visto que os pais são responsáveis por ensinar a lei de Deus aos filh os.

35. Veja o Capítulo 1 para uma discussão sobre este termo.36. Muitas promessas específicas serão cumpridas para Israel

no M ilén io . Veja Stanley M . Horton, Nosso Destino: O Ensinamento Bíblico das Ultimas Coisas (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1998).

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3Vozes do Passado:

Tentativas Históricas

para Formar um

Pensamento CristãoGregory J. Miller

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110 GREGORY J. MILLER

Quando a maioria dos estudantes chega à faculdade, nenhum deles está muito interessado em história. Penso que isto é compreensível. Os estudantes de faculdade americanos não

au vi vem numa cultura orientada para o futuro, mas também atra­vessam um período em suas vidas em que estão particularmente interessados pelo futuro. Sentem-se muito felizes por estar livres dos constrangimentos, reputações e até relacionamentos passados. “O passado já era. O que é importa mesmo é para onde estamos indo, certo?”

Errado. O passado formou tudo o que somos no presente. Para saber onde estamos e para onde vamos, temos de saber onde estive­mos. Trata-se de uma verdade tanto para indivíduos quanto para ins­tituições, nações e civilizações. Embora os que desconheçam a histó­ria possam não ser invariavelmente “fadados a repetir seus erros” , são obrigados a ser dominados pelas forças históricas das quais têm somente vaga consciência.

Neste sentido, somos prisioneiros do passado. E a chave para a nossa liberdade é o conhecimento de nosso captor. Saber o passa­do nos abre novos mundos de possibilidades para o pensamento e a ação humana. Quando chegamos ao alto de uma montanha, nos voltamos para trás e contemplamos, ficamos maravilhados com a paisagem. Da mesma forma, ao contemplarmos nosso passado, apren­demos que as coisas nem sempre foram como são, e nem necessaria­mente têm de ser. Com o aumento da nossa perspectiva e da nossa maturidade, nos tomamos capazes de corrigir a direção do nosso cami­nho e de ver de modo mais claro para onde estamos indo.

Isto é especialmente verdade para os crentes. Deus proporcio­nou uma herança rica para nos inspirar e nos instruir. Os filhos de Israel frequentemente eram ordenados a se lembrar das obras do Senhor (Salmos 77.11). No Novo Testamento, por exemplo, o “Capítulo da Fé” (Hebreus 11) é essencialmente uma lição de his­tória sobre a fidelidade a Deus e a fidelidade de Deus. Quando nos lembramos de que “estamos rodeados de uma tão grande nuvem

de testemunhas” (Hebreus 12.1), nossa fé é fortalecida para que “corramos, com paciên­cia, a carreira que nos está proposta” . Seme­lhantemente, qualquer capítulo da história da Igreja (começando com o Livro de Atos) exi­be a provisão e o cuidado de Deus. Conside­rando que Deus intervém nos assuntos huma­

nos, a história revela algo da própria natureza e caráter de Deus. Apesar da heresia, das divisões, das dificuldades e ataques, o Rei­no de Deus não está derrotado. Os indivíduos e nações podem subir e cair, mas Deus permanece no controle. Para o cristão, o estudo da história constrói a fé e aumenta a esperança.

Entender o passado é essencial para construir no presente um pensamento cristão. O cristianismo do século X X é imensamente diferente do século I . Não podemos ingenuamente tentar recriar a

Entender o passado é essencial para construir pensamento cristão

no presente.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 111Era Apostólica. Porém assim mesmo aprendemos, ao estudar vin­te séculos de história da igreja, que muitos fatores nos levaram a crer e agir como fazemos. Os fracassos do passado nos advertem de possíveis perigos. Os triunfos do passado nos encorajam a se­guir seus exemplos.

Períodos da História da Igreja

Igreja Primitiva j (igreja Medieval ) í Igreja Moderna

Visão Geral da História da IgrejaA história é mais facilmente compreendida se uma estrutura

sólida foi primeiramente estabelecida. Você não precisa memori­zar longas listas de datas. Antes, concentre-se em datas chaves para formar uma estrutura de referência (o começo e o fim dos períodos, por exemplo) e procure entender a linha da história do passado. Os his­toriadores em geral d ivi­dem a história da Igreja em três períodos principais: 1) a Igreja Prim itiva: do Pen­tecostes a 500 d.C . 2) A Igreja Medieval: de 500 a 1500 e 3) A Igreja Moder­na: de 1500 ao presente.Estes períodos não estão nitidamente divididos; an­tes, o anterior mistura-se com o seguinte, principal­mente nas fases de transi­ção importantes de 400 a 600 d.C. (a queda de poder romano na Europa Ocidental), e 1450 a 1650 (o Renascimento e a Reforma). (Veja a Ilustração 1.)

Fim do Poder Romano no Ocidente (c. 400-600)

O Renascimento e a Reforma

(c. 1450-1650)

Ilustração 1

Em qualquer breve sumário da história, as generalizações são inevitáveis. Portanto, é importante manter em mente que, embora a história apresente a obra de Deus, suas características primárias são os seres humanos e as instituições. A história da Igreja não é um simples declínio de uma “dourada Era Apostólica” para a ruí­na moderna, nem uma ininterrupta marcha triunfante sempre para a maior glória. Ao invés disso, em todo o período da Igreja e em todo grande líder, houve tanto momentos de força como momen­tos de fraqueza. Uma das mais motivadoras lições da história é que Deus faz maravilhas através de pessoas de verdade.

A Igreja Primitiva

V is ã o G e r a l

Quer percebam ou não, muitos cristãos estão familiarizados com os eventos relacionados com a história da Igreja até cerca de 60 d .C ., porque esta é a data aproximada em que o Livro de Atos

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112 GREGORY J. MILLER

A Igreja Perseguida

30 d.C.

Márcion, c. 150

acaba. Porém, é preciso não esquecer que o período completo da Igreja Prim itiva (c .30-500) nos mostra uma história fascinante da expansão numérica e geográfica do cristianismo. A primeira me­tade deste período (veja a Ilustração 2), também conhecido como a Era da Perseguição, foi um tempo de crescentes conflitos com o

governo romano. Por causa da recusa dos cristãos em par­ticipar no culto pa­gão patrocinado pelo governo, mui­tos romanos passa­ram a considerar os cristãos como trai­dores, e a temer sua

A Igreja Primitiva

A Igreja Imperial

312 d.C. 500 d.C.

A Grande Perseguição,

303-311

O Concílio de Nicéia,

325

Agostinho, m. 430

O Concílio de Jerusalém, 48

justino Mártir, m. 165

A Conversão de Constantino

Atanasio, m. 373

Concílio de Calcedônia, 451

Ilustração 2

progressiva influên­cia na sociedade.

As vezes o ódio romano estourava em curtos períodos de intenso sentimen­to anticristão e mas­sacre aberto. A mais severa destas perse­guições, a Grande

Perseguição iniciada pelo imperador Diocleciano (303-311), objetivava nada menos que a aniquilação do cristianismo.

A segunda metade deste período, também conhecido como a Era da Igreja Imperial, testemunhou a vitória dramática da Igreja. Numa surpreendente reviravolta dos acontecimentos, Constantino, o Grande (c. 274-337) - o imperador que passou a governar Roma e seu Império após Diocleciano - fez uma declaração pública a favor do cristianismo. Sua conversão inesperada parece ter sido ligada a um sonho (ou visão) de uma cruz no céu à noite, antes de uma batalha importante. Depois que Constantino ordenou que as tropas pusessem em seus escudos o símbolo cristão, eles ganha­ram uma batalha decisiva, embora estivessem em menor número (a Batalha da Ponte M ílvia, 312).

Quando Constantino ganhou o controle do Império Romano, muitos declararam esse reinado o alvorecer de uma nova era glo­riosa na história da Igreja. Eusébio, o historiador da Igreja e gran­de admirador de Constantino, comparou seu reinado ao reino milenar de Cristo. De muitas formas esse reino foi um tremendo triunfo. Durante trezentos anos os cristãos tinham sido uma m i­noria suspeita. Porém, apesar de ser só uns 15 por cento da po­pulação romana total por volta de 300 d .C ., a Igreja depressa assumiu um papel dominante na sociedade depois da conversão do imperador.

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DZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO

Em cerca de 400 d .C ., a Igreja já não era mais uma minoria perseguida, mas uma maioria que perseguia. Os pais eclesiásti­cos tinham lutado com muitas questões críticas, uma forte estru­tura institucional tinha sido construída e boa parte da cosmovisão cristã já estava formada. Esta grande vitória radicalmente mudou o caráter da Igreja. Na opinião de muitos contemporâneos, a Igre­ja da Era Imperial, estruturada e patrocinada pelo Estado, repre­sentou uma vitória fácil e significativa da fé.

Mas o cristianismo oficial não foi a única coisa que mudou de 312 a 500. À proporção que a Igreja ganhava influência no mundo romano, o próprio Império Romano estava se desmoronando. A data tradicional para a “Queda do Império Romano” na Europa Ocidental é 476 d.C. O processo, na realidade, foi muito longo, começando em princípios da década de 400 e durando até a déca­da de 600. Por volta de 500 d .C ., tribos germânicas invasoras ti­nham trazido consigo uma nova ordem política e social e introdu­zido um novo período na história da Igreja.

F o r m a n d o u m a C o s m o v is ã o C r is t ã

A era da Igreja Prim itiva também é conhecida como o período patrístico. “Patrístico” (do latimpater, que significa “pai”) é um títu­lo de respeito, e alude à importância da atuação de alguns teólogos destacados e líderes eclesiásticos, hoje coletivamente conhecidos como “pais da Igreja” . À medida que o cristianismo se expandia no mundo romano, a Igreja Prim itiva enfrentava muitas questões e desafios novos. Os pais escreveram e ensinaram, individualmente e em reuni­ões de concílios, no esforço de responder a essas questões. Muitas de suas soluções ainda formam um fundamento essencial para a refle­xão teológica, a organização da igreja e a vida cristã.

Entre as contribuições da Igreja Prim itiva para a formação de uma cosmovisão cristã, quatro áreas foram particularmente im­portantes: 1) autodefínição, quer dizer, a compreensão do que sig­nifica ser cristão em referência ao judaísmo, 2) a relação do cristi­anismo com a cultura não-cristã, segundo reflexões feitas pelos apologistas ou defensores da fé, 3) a visão cristã de Deus e de Jesus Cristo nos primeiros concílios ecuménicos, e 4) a relação do cristianismo com o governo.

O Cristianismo e o JudaísmoDesde o princípio, a Igreja recém-nascida achou-se num mun­

do multicultural. Seu contexto imediato e seus primeiros mem­bros eram quase exclusivamente judeus. Uma preocupação in icial que a comunidade de crentes enfrentou dizia respeito à sua rela­ção com o judaísmo do século I. O indivíduo tinha de se tornar judeu para ser verdadeiro seguidor de Jesus? A identificação com a comunidade de crentes livrava a pessoa de todas as expectativas tradicionais dos judeus? E as Escrituras dos judeus? Elas foram substituídas em todo ou em parte por Jesus Cristo?

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114 CREGORY J. MILLER

A Septuaginta (conhecida pela abreviatura LXX) foi traduzida entre 250 e 150 a.C., por estudiosos judeus em Alexandria, no Egito, centro intelectual proeminente da época. Foi inicialmente usada para estudo e evangelismo por judeus cujo idioma materno era o grego. Depois que foi adotada pelos cristãos como sua Escritura, foi amplamente.abandonada pela comunidade judaica.

Estas preocupações estavam em primeiro lugar na mente dos autores neotestamentários, especialmente de Paulo. Como “após­tolo aos gentios” , Paulo estava particularmente preocupado que fossem permitidos tanto aos gregos, aos bárbaros (os não-gregos), aos judeus e aos gentios, terem uma posição igual na comunidade de fé (Gálatas 3.28; Colossenses 3.11). O Concílio de Jerusalém em cerca de 48 e 49 d.C. (Atos 15) reconheceu o valor do seu trabalho esforçadíssimo em escrever cartas, viajar e pregar. A im­portância desse Concílio dificilmente pode ser exagerada: os gen­tios seriam aceitos na comunidade com base na fé em Cristo (Atos 15.7,9,11).

Os apóstolos recomendaram com insistência uma vida moral e unidade cristã, mas não exigiram que os crentes participassem na vida ritual do judaísmo ou que se identificassem fisicamente com os judeus pela circuncisão.

Apesar do relaxamento das exigências rituais, o cristianismo primevo continuou sendo influenciado significativamente por sua origem judaica. Isto é claramente observado na importância das Escrituras hebraicas (o Antigo Testamento) na vida da Igreja. Le ­vou um longo período de tempo (cerca de 350 anos depois do nascimento da Igreja) para que a coleção diversificada de escritos que chamamos o Novo Testamento fosse padronizada e universal­mente aceita. Durante esse tempo, o Antigo Testamento recontou a história do relacionamento de Deus com a humanidade e profe­tizou sobre a vinda de Jesus, o Messias. Em sua tradução grega, chamada Septuaginta, os cristãos primitivos podiam mostrar às pessoas de todo o Império Romano que o cristianismo não era um ensino novo, mas a culminação das antigas promessas de Deus. O cristianismo não era uma mera “seita de judeus” , mas a própria realização do concerto de Deus com Abraão, Isaque e Jacó.

A visão de que o cristianismo era o novo concerto do Deus de Israel sofreu suas rejeições e críticas. Márcion, homem de negóci­os do século I I na Igreja de Roma, buscou separar completamente o cristianismo do judaísmo. Para Márcion, só Paulo e Lucas ti­nham entendido corretamente os ensinos de Jesus, e até certa por­ção dos seus escritos havia sido corrompida por idéias judaicas. Márcion rejeitou todas as Escrituras hebraicas. Também declarou que o Javé do Antigo Testamento — um Deus que ordenava sacri­fícios de animais e até a morte de crianças, ainda que filhos dos inimigos — , era um ser espiritual mau e menor, e não o Deus absoluto de amor revelado em Jesus. O ensino de Márcion ganhou muitos partidários e atraiu os cristãos do Império Romano que não se sentiam à vontade com uma conexão estreita com a mino­ria judaica frequentemente menosprezada.

Os pais eclesiásticos foram rápidos em defender o uso que os apóstolos fizeram do Antigo Testamento e sua identificação de Javé com Deus segundo nos está revelado em Jesus Cristo.1 Se­guindo o exemplo dos escritos dos apóstolos, eles responderam à

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/OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO

crítica que Márcion fez ao Antigo Testamento com duas técnicas interpretativas que tiveram influência enorme na história do pen­samento cristão. Primeiro, esses escritores priorizaram certos tex­tos do Antigo Testamento, enfatizando as profecias sobre Cristo e rebaixando as instruções cerimoniais somente ao significado his­tórico. Segundo, interpretaram alegoricamente passagens técni­cas e difíceis de entender. As descrições do Tabernáculo no deser­to, das peças do vestuário sacerdotal e dos eventos na história dos israelitas prefiguravam o ministério de Cristo e a Igreja. Os intér­pretes bíblicos mais tardios, como Orígenes e Gregório de Nissa, achariam “tipos” ou “figuras” do novo concerto em quase todos os versículos do Antigo Testamento. Usando estas duas estratégi­as interpretativas, eles preservaram a continuidade essencial entre o Antigo e Novo Testamentos e entre o judaísmo e o cristianismo. De acordo com uma posição mediana, os apóstolos e pais enten­deram que o cristianismo está separado e, não obstante, é o cum­primento do judaísmo.

Apesar das conexões importantes, ao final da segunda rebelião judaica (conhecida como a Revolta de Bar Kochba, 132-135 d .C .), o cristianismo tinha ficado completamente distinguido do judaís­mo. Este foi o caso nas mentes não apenas dos cristãos e judeus, mas também do governo imperial romano. Dentro de cem anos do nascimento da Igreja, o cristianismo tinha se tornado uma religião gentia. Esta mudança está ilustrada dramaticamente pelo fato de que todos os escritores do Novo Testamento (exceto um) são ju ­deus, e todos os autores pós-neotestamentários da literatura cristã são gentios.2

Antes de cerca de 150 d .C ., os escritores cristãos tinham fre­quentes debates contra os judeus, e vigorosas diferenças entre seus ensinos e culto e os ensinos e cultos do judaísmo. Depois desta época, os pais eclesiásticos voltaram sua atenção às questões da rela­ção do cristianismo com a cultura greco-romana que os cercava.

Os Apologistas e a Relação entre o Cristianismo e a CulturaA resposta da Igreja Prim itiva à cultura greco-romana foi mui­

to mais ambígua. Celso, um crítico do cristianismo de fins do sé­culo I I , afirmou que os cristãos seduziam somente as “mulheres iletradas, as crianças e os escravos” . Porém, a realização pessoal e moral da fé atraiu cada vez mais um número significante de parti­dários educados e instruídos. Eles reconheceram a verdade e a beleza do Evangelho, mas estavam cientes de que a cultura pagã tinha produzido trabalhos que também continham (pelo menos) um pouco de verdade e um pouco de beleza. Mesmo hoje há considerável debate sobre a atitude apropriada dos cristãos para com a arte e a aprendizagem não-cristãs. A Igreja Prim itiva aju­dou a moldar a cosmovisão cristã nesta área, estabelecendo os lim ites dentro dos quais o assunto foi discutido ao longo da história da Igreja.

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MILLER

Justino Mártir (c .100-165 d.C) é quem melhor reflete um ex­tremo do espectro das respostas cristãs. Mesmo depois de sua con­versão, Justino continuou usando o traje tradicional de filósofo greco-romano. Ele também encontrou muito valor na filosofia pagã, especialmente em Sócrates e Platão. Não apenas fez uso dos seus conceitos como ponte para o entendimento de sua audiência ro­mana educada, mas também declarou que os pensadores gregos tinham entendido, embora só parcialmente, a real verdade de Deus. E le via a aprendizagem clássica como um tipo de preparação para o Evangelho. Justino peneirou a cultura antiga, apropriando-se da­queles conceitos que considerou compatíveis com o cristianismo, e os usou em suas defesas instruídas.

Seguindo esta mesma lin h a , dois outros estudiosos alexandrinos, Clemente e Orígenes, como também muitos outros, ajudaram grandemente a expansão do Evangelho traduzindo os conceitos cristãos em termos compreensíveis para o mundo roma­no. O trabalho deles também ganhou respeitabilidade intelectual para a fé. Pelo lado negativo, o processo de tradução do pensa­mento cristão foi influenciado e formado pelo pensamento greco- romano. Na pior das hipóteses, alguns mestres cristãos vieram a expressar as cosmovisões mais em comum com os filósofos gre­gos mais antigos (como Platão) do que com os ensinos de Jesus.

O teólogo sírio Taciano (c. 180 d.C) representa outra possível resposta à cultura não-cristã. Apesar de ser discípulo de Justino Mártir, mais tarde Taciano rejeitou completamente a cultura cris­tã. Taciano negou a possibilidade de qualquer pessoa fora da fé descobrir alguma verdade independente ou possuir qualquer bem independente. Taciano declarou que qualquer coisa de valor que Sócrates pudesse ter dito foi tomado emprestado (ou roubado) de Moisés e dos profetas. Os pensadores cristãos que seguiram a es­tratégia de Taciano puderam reter mais facilmente os aspectos da

utáútO ' ‘TJtãntcn

Mestre profissional inteira­mente fam ilia rizad o com o p latonism o e o esto icism o , Justino M ártir (c. 100-165) tor­nou-se cristão após ter encon­trado um velho enquanto cami­nhava por uma p raia sa- maritana. Embora Justino nun­ca tivesse exercido cargo na igreja, ele escreveu e debateu extensivam ente a serviço do

Evang elho . Os trabalhos que escreveu em Efeso e Rom a, e que o levaram ao m artírio , o elevaram à posição de o mais im portante apologista ou de­fensor do cristian ism o no sécu­lo I I . Escrito s m ais im portan­tes: Diálogo com o judeu Trifão e Primeira Apologia (d irig id a ao im perador romano Antonino P io ).

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 117herança judaica no cristianismo e evitar, às vezes, as contenções prejudiciais que surgiam pela teologia especulativa. Contudo, eles pagaram alto preço por sua pureza cultural e isolamento com uma tendência a decair no elitism o, no legalismo severo e numa marginalização que deu fim à sua contribuição para o pensamento cristão mais recente.3

A maioria dos pais eclesiásticos situa-se em algum ponto entre estas duas posições. Como representada por sua alegorização do relato do Êxodo, a Igreja Prim itiva despojou os egípcios do seu tesouro e usou a aprendizagem pagã para construir o seu tabernáculo intelectual cristão. As vezes, esta apreciação pela cul­tura greco-romana resultou em consciências intranqiiilas. Por exem­plo, Jerônimo, tradutor da mais influente versão da B íb lia em la­tim (conhecida por Vulgata), certa vez sonhou que Deus o repre­endia por ser “mais ciceroniano [famoso orador romano] que cris­tão” . Contudo, quando o teólogo norte-africano Tertuliano per­guntou: “O que Atenas tem a ver com Jerusalém?” , como muitos outros, ele o fez com uma metodologia e num estilo que traía exa- tamente quão influente Atenas tinha se tomado.

Concílios e Credos: A Visão Cristã de DeusBem no centro da cosmovisão cristã está uma concepção sin­

gular de Deus como Um (monoteísmo), contudo em três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nesta área importante a Igreja Prim itiva usou toda ferramenta à disposição (inclusive a filosofia grega) para expor em conceitos bíblicos e enunciar declarações autorizadas relativas à natureza de Deus e de Cristo. As duas de­clarações mais importantes, o Credo de Nicéia (325 d.C .) e o Cre­do de Calcedônia (451 d .C .), permanecem sendo a base para o cristianismo ortodoxo mundial, mesmo para a era atual.

Quando Constantino, o Grande, finalmente colocou todo o Império Romano sob seu controle, para seu desânimo descobriu que a Igreja Cristã que ele apoiava fora profundamente dividida pela controvérsia: Um clérigo alexandrino, Ario (m. 336 d .C .), estava ensinando que Jesus era a primeira e melhor criação de Deus, mas não co-igual e coetemo com o Pai. Por causa do seu uso hábil de algumas passagens bíblicas, a posição ariana tornou- se popular. Sua racionalidade era atraente e removia as dificulda­des filosóficas da Trindade. Para muitos, porém, a posição ariana foi tida como uma divergência dos ensinos dos apóstolos e uma difamação de Cristo.4 O conflito entre os dois partidos frequente­mente ficava acalorado e, às vezes, até violento. Em 325, o impe­rador Constantino chamou todos os líderes da Igreja (os bispos) em todo o Império Romano para reunirem-se em Nicéia, Ásia Menor (moderna Turquia), a fim de resolverem a disputa e resta­belecerem a unidade na Igreja. Este Primeiro Concílio Ecuménico (ou seja, universal) da Igreja rejeitou a posição ariana e confirmou o mistério do três em um. Eles declararam que o Filho é da mesma

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118 GREGORY J. MILLER

"Cremos... em um Senhor Jesus Cristo, o Filho Unigénito de Deus, unigénito do Pai antes de todas as eras, Luz da Luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, Unigénito não criado, de uma substância com o Pai".

— Credo de Nicéia

essência (grego, homoousia) que o Pai, igual em sua divindade, coetemo, unigénito, não criado, mas ao mesmo tempo uma pessoa distinta dentro da Deidade.

Embora o assunto tenha permanecido grandemente em dúvida durante os 60 anos seguintes, no fim a posição de Nicéia triunfou, graças em grande parte à luta incansável de líderes como Atanásio de Alexandria (295-373 d .C .). Desde então, a doutrina da Trinda­de, o entendimento singular que o cristianismo tem sobre Deus, foi o padrão central pelo qual a ortodoxia foi medida.

Cerca de cem anos depois, entendimentos competidores sobre a relação da humanidade e da divindade em Cristo causaram outro conflito significante. Por um lado, havia um grupo, em sua maior parte do Egito, que tendeu a enfatizar demasiadamente a divinda­de de Cristo. Para estes monofisistas (do grego, “uma natureza”), as qualidades humanas de Jesus eram relativamente sem importância. Os monofisistas afirmavam que a humanidade de Cristo foi tragada por sua divindade como uma gota de água num frasco de vinho.

Diretamente oposta a esta posição, acham-se os seguidores de Nestório (c. 451 d .C .), bispo de Constantinopla. O ensinamento nestoriano separava radicalmente as duas naturezas de Cristo. Em vez de ver uma união de naturezas (a analogia tradicional era “como água e vinho”), os nestorianos viam a encarnação como uma “con­junção” das pessoas divina e humana. Assim , as características da divindade de Cristo não podiam ser designadas ao Jesus humano. Maria podia ser descrita como “Mãe de Jesus” , mas não como “Mãe de Deus” (theotokos) .5 Em vez da relação entre o humano e o divino em Cristo ser como água e vinho, os nestorianos argu­mentavam que era mais como água e azeite.

Atanásio de Alexandria

8 (c. 295-373d.C.), chamado £ ;;] por seus conhecidos de “anão negro” devido à bai­xa estatura e cor da pele, foi um dos bispos e teólogos mais importantes da Igreja Prim itiva. A maior parte da sua carreira de 45 anos

r J como bispo de Alexandria foi dedicada à batalha contra o arianismo. Era frequente estar em pe­rigo de morte e foi exilado não me­nos que cinco vezes. Em resposta à

pergunta sobre por que ele simples­mente não se entregava, pois o mun­do inteiro parecia estar contra ele, re- puta-se que tenha respondido: “Então será Atanásio contra o mundo!” Ele es­tava convencido de que Jesus Cristo ti­nha de ser completamente Deus para obter a redenção completa da humani­dade. E le também fo i influente na popularização do monasticismo no Ori­ente e Ocidente, por seu apoio a Santo António, o ermitão. Escritos importan­tes: Sobre a Encarnação da Palavra, e Vida de Santo António.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 119

O Quarto Concílio Ecuménico na Calcedônia (451 d .C .) re­jeitou estas duas posições extremas. O Credo de Calcedônia afirma com vigor que Cristo é completamente Deus e comple­tamente homem (deixando em mistério como isto é possível). De acordo com Calcedônia, Cristo compartilha a mesma natu­reza com Deus, sob todos os pontos de vista, e compartilha a mesma natureza com a humanidade, sob todos os pontos de vista, com exceção do pecado.

Embora estas duas controvérsias possam parecer mais que in­significantes trocadilhos teológicos para os cristãos do século X X , com certeza não eram insignificantes para os cristãos primitivos. Antes, estas visões foram elaboradas na bigorna da discussão sé­ria, apaixonada e intelectual. Graças ao seu labor intelectual e sa­crifícios pessoais, a singular compreensão cristã sobre Deus havia sido preservada. Desde o período da Igreja Prim itiva, estas dire- trizes têm determinado quando se vai além dos limites do cristia­nismo ortodoxo.

Agostinho e a Queda de RomaO novo poder da Igreja depois de Constantino não foi exercido

sem custo ou perigo. A religião do imperador tomou-se popular. Diferente dos primeiros dias da Igreja, a “porta estreita” (Mateus 7.13) se alargou e muitos se apressaram em passar por ela, alguns por razões questionáveis. Enormes basílicas foram construídas para cultos de adoração formais e elaborados. As congregações se tor­naram cada vez mais observadoras e curiosas que participantes, e uma linha muito distinta de separação e superioridade foi traçada entre o clero e o laicato. Os líderes eclesiásticos eram escolhidos com base na influência política e no status económico, em vez da capacidade ministerial.

Talvez o maior perigo jaz ia na coexistência presumida do cristianism o e do poder romano. O governo da Igreja quase se nivelou ao do Estado. Os imperadores romanos concediam aos principais oficiais eclesiásticos em cada cidade, os bispos, con­sideráveis responsabilidades cívicas. Com frequência servi­am como ju izes locais e como representantes do poder impe­ria l. Em troca, o Estado ajudava a reforçar a doutrina correta e a fornecer apoio financeiro. Considerando que todo o mun­do presumia que Roma era a Roma aeterna (Roma eterna), eles perceberam que esta estreita relação era uma força, e não uma fraqueza.

Em 410 d .C ., o mundo romano ficou aturdido ao ouvir que os visigodos, tribos germânicas do norte, tinham capturado e saqueado a Cidade Eterna. Em vez de um incidente isolado, durante os próximos duzentos anos vários povos germânicos infestaram a Europa Ocidental e a Á frica do Norte Ocidental. A parte oriental do império fo i preservada (G récia, Á sia Me­nor, Egito , Síria-Palestina), mas o poder im perial se desmo-

Jesus Cristo é "verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem [...] reconhecido em duas naturezas sem mistura, nem mudança, nem divisão, nem separação".— Credo de Calcedônia

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ronou no ocidente. A g loriosa c iv iliza çã o de Roma fo i destruída e as luzes da aprendizagem e cultura começaram a ser apagadas por toda a Europa Ocidental.

Alguns culparam a queda de Roma pelo fato de esta ter adota- do o cristianismo. Os próprios cristãos estavam confusos sobre a relação da Igreja com o governo. Em resposta à crise do declínio de Roma, o maior mestre cristão desde Paulo voltou sua atenção ao assunto. Em seu livro A Cidade de Deus, Agostinho (354-430), pai da igreja norte-africana, diferenciou entre o governo humano e a sociedade (a Cidade do Homem) e a Igreja invisível de todos os verdadeiros crentes (a Cidade de Deus). A “Cidade do Homem” era a ferramenta temporal e temporária dEle e podia assumir mui­tas formas ao longo do tempo. A “Cidade de Deus” era invencível e continuaria triunfando e realizando a vontade de Deus. Em es­sência, homens e nações se levantariam e cairiam, mas o Reino de Deus conquistaria tudo.

O ensino de Agostinho ajudou a encorajar a Igreja num perío­do de transição d ifíc il. Foi um manancial de forças para muitos crentes, quando confrontados com o colapso de um “governo cris­tão” . O conceito importante de que o cristianismo poderia conti­nuar, apesar do colapso de qualquer forma particular de sociedade ou governo, foi uma das últimas contribuições da Igreja Prim itiva para a cosmovisão cristã.

Depois de vários anos buscando realização espiri­tual e controle sobre sua natureza pecadora, Agosti­nho de Hipona (354-430 d .C .) Leve poderosa conver­são ao cristianismo em 387. Sua conversão o incitou a deixar prestigiosa posição como mestre de retórica na importante cidade italiana de Milão, e voltar para sua

nativa Á frica do Norte. Embora de­sejasse uma vida quieta de oração e estudo, logo foi ordenado a bispo na cidade de Hipona (atual Tunísia). De seu gabinete e púlpito em Hipona, Agostinho voltou sua mente bem trei­nada e pena hábil aos assuntos críti­

cos do dia. As contribuições teológi­cas de Agostinho são extensas e ele é amplamente considerado o indivíduo mais importante na história da Igreja depois do período apostólico. Escre­veu numerosos livros, tratados, co­mentários e sermões, mas talvez seja melhor conhecido por sua comovente biografia espiritual, Confissões, que estabeleceu o género autobiográfico e por séculos foi fonte de inspiração para os crentes. O papel de Agosti­nho como figura de transição entre os períodos romano e medieval é desta­cado pelo fato de que ele morreu em 430, quando a tribo vandálica alemã estava invadindo a cidade de Hipona. Escritos mais importantes: Confissões e A Cidade de Deus.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 121

A Igreja Medieval

V is ã o G e r a l

A Igreja Medieval

Baixa Idade Média) (Alta Idade Média ) (Tardia Idade Média

500 d.C. 1000 d.C

Surgimento do Islamis- mo, c. 622

Invasões de Vikings,

c.900

UEra dasCruzadas,1096-1291

A designação Idade Média foi primeiramente usada por volta de 1500 d.C. como nome derrogatório para um período de m il anos de “ignorância e superstição” , entre a “Idade Dourada” da cul­tura clássica e seu “renascimento” (a Renascença). (O adjetivo “me­dieval” , nome para a mesma era, apareceu pela primeira vez no início dos anos de 1800.) Sabemos agora que o Período Medieval não foi necessariamente a “Idade das Trevas” , mas, ao invés disso, fez muitas contribuições essenciais para a civilização ocidental.

O período da Ig re ja M edieval é dividido em três subperíodos (veja a Ilustração 3). O período da Baixa Idade Média (500- 1100) testemunhou o de­senvolvimento gradual das tribos germânicas em rei­nos. O mais importante destes, o reino franco de Carlos Magno, promoveu breve florescimento da cul­tura e da aprendizagem, conhecidos por Renascen­ça Carolíngia.

No período da Baixa Idade Média, a autoridade da igreja romana e seu bispo (o papa) foi estabelecida sobre todas as igrejas européias ocidentais (pelo menos teoricamente). O número de mosteiros aumentou rapida­mente, os quais se tornaram os centros espirituais e educacionais para o cristianismo.

Depois do reinado de Carlos Magno (c. 771-814), a Europa Ocidental mergulhou em seu período mais negro. Os descenden­tes de Carlos Magno não só eram inaptos para manter seu reino, mas também foram duramente pressionados por ataques em três lados. Um povo nómade das estepes da Ásia Central, os húngaros, varreram a Europa Oriental e Central. Partindo da península ára­be, os guerreiros islâmicos conquistaram o oriente romano (Síria, Palestina e Egito), a África do Norte e a Espanha (c. 630-730 d.C .). Marinheiros muçulmanos faziam contínuos ataques relâmpagos na Itália e na costa meridional da França. Com exceção da penín­sula grega e da Ásia Menor, o mar Mediterrâneo foi dominado pelos muçulmanos. Os ataques mais pavorosos vieram dos nórdi­cos (os vikings).

Descendo da Escandinávia em seus escaleres, os vikings podi­am adentrar muito rio acima. Eles pilharam e saquearam aldeias,

1300 d.C. 1500 d.C.

Tomás de Aquino, m. 1274

r — Cativeiro Babilónico e Cisma, 1309-1415

TJoão Wycliffe, m. 1380 João Huss, m .1415

Regra de EraSão Bento, Carolíngia, 540 800

Estabelecimento das Universidades,

1200

Catarina de Siena, 1380

Ilustração 3

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1 2 2 GREGORY J. MILLER

destruíram mosteiros e dispersaram os habitantes por onde passa­vam. Para o monge que, em fins dos anos de 800 e 900, sentava-se solitário em sua cela, parecia que o mundo estava acabando. Co­mentários marginais em manuscritos continham predições sérias relativas à passagem do Milénio.

Mudanças clim áticas, o crescimento da população e o redesenvolvimento do comércio permitiram que a Alta Idade Mé­dia (1100-1300) fosse uma época de vigor renovado no Ocidente. O cristianismo prosseguiu na ofensiva contra o islamismo e ten­tou recuperar as terras perdidas durante a conquista muçulmana in icial. Estas Cruzadas (principalmente 1096-1291) incentivaram o desenvolvimento do comércio e do mercado, que em troca esti­mularam o crescimento de vilas e cidades. Artesãos qualificados construíam castelos e catedrais magníficos. As primeiras univer­sidades foram fundadas. Membros de novas ordens monásticas, os dominicanos e os franciscanos, escreveram trabalhos teológi­cos e filosóficos impressionantes.

A Tardia Idade Média (1300-1500) é uma época complexa e transitiva na história ocidental. O governo da igreja tornou-se cada vez mais avaro e corrupto. Divisões internas e cismas quase des­truíram a instituição do papado. Em apenas três anos (1346-1349), a Peste Negra (a peste bubônica) matou quase um terço de todos os europeus. Guerras destruíam a zona rural e as cidades. Contu­do, começando primeiramente na Itália por volta de 1300 d .C ., uma renascença (renascimento) da aprendizagem e literatura clás­sicas passaram a se espalhar em direção ao norte. Além disso, cla­mores do interior da Igreja em favor da reforma ganharam força e urgência. Em meio da decadência do estilo de vida medieval, uma nova cultura importante estava nascendo.

evtfo de ‘Ttm&ia,Inspirado pelos exem­

plos dos monges solitários orientais, Bento de Núrsia (c. 480- 547 d .C .) começou uma vida de monasticismo quando jovem. Dentro de pouco tempo, a reputação de Bento para a santidade cresceu e muitos outros jo ­vens se reuniram ao seu re­dor para receberem instru­

ção. Depois de alguma hesitação, Bento formou seus monges numa comunidade ao sul de Rom a, no monte Cassino. Para sua comunida­de, Bento compilou uma regula, ou regra, que servia de guia ou instru­ção para a comunidade. A Regra de São Bento v iria a ser um dos docu­mentos mais influentes do período medieval, e tornou-se o modelo para a vida monástica.

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3ZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 1 2 3

F o r m a n d o u m a C o s m o v is ã o C r is t ã

Para as pessoas de hoje, o Período Medieval é até mais alienígena que o mundo da Grécia e Roma clássicas. A Idade Mé­dia era mais rural que urbana, mais comunal que individual. Como um todo, parece mais supersticiosa que racional. Não obstante, a Igreja Medieval fez muitas contribuições significativas para a for­mação de uma cosmovisão cristã. Entre as mais importante estão: 1) o monasticismo e sua visão de vida e trabalho cristãos, 2) o casamento da fé com a razão pela escolástica, e 3) a busca por um encontro direto com o Deus vivo pelo misticismo cristão.

O MonasticismoTalvez o único aspecto mais importante do cristianismo no

ocidente medieval tenha sido o monasticismo. As formas de monasticismo variaram amplamente. Alguns monásticos eram contemplativos, outros principalmente ativos, alguns eram solitá­rios, outros viviam em comunidades. Todos os monásticos com­partilhavam a característica explícita de uma separação rigorosa do mundo para viver uma vida de devoção a Deus. A separação do mundo exigia o ascetismo (negação de si mesmo), incluindo (no mínimo) o celibato vitalício e o abandono de propriedades parti­culares. Com frequência os monásticos submetiam-se a sofrimen­tos severos para disciplinar o corpo e a mente. Viver uma vida totalmente dedicada a Deus era considerada a forma mais alta de imitatio Christi (imitação de Cristo).

Embora o monasticismo oriental tivesse muitos adeptos mes­mo sob o Império Romano, o monasticismo na Europa Ocidental não começou a florescer senão depois do colapso de poder roma­no. Bento de Núrsia (c. 547 d .C .) foi o instrumento para a forma­ção e popularização da vida monástica, especialmente pelo exem­plo de sua comunidade e de sua Regra.

A Regra de São Bento era sim ilar a muitas outras regras mo­násticas, orientais e ocidentais. Entretanto, possuía duas caracte­rísticas singulares que grandemente impulsionaram o desenvolvi­mento do cristianismo no ocidente e na civilização ocidental. P ri­meiro, especialmente em comparação com as regras orientais, o tom das Regras de São Bento é notavelmente moderado. Diferen­te de algumas privações estranhas e ultrajantes que aconteciam nos desertos sírios e egípcios, a vida comunitária não excessiva tornou-se a norma na Europa Ocidental. Os monges recebiam o bastante para comer, vestiam roupas adequadas e tinham discipli­na equilibrada. Os anciãos e os fracos eram tratados com gentile­za especial. Este tom moderado foi quase totalmente responsável pelo enorme crescimento do monasticismo na Europa Ocidental e pela estabilidade a longo prazo da instituição.

O mais importante foi a sabedoria excepcional de Bento em fazer do trabalho parte essencial da devoção monástica a Deus. O slogan beneditino ora et labora (“ore e trabalhe”) sumaria com

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1 2 4 GREGORY J. MILLER

"A ociosidade é a inimiga da alma. Então, em horários fixos, os irmãos devem ocupar-se com trabalhos manuais; e, em outros, com leitura santa. [...] Tencionamos fundar uma escola para treinar os homens no serviço do Senhor, mas nisso não tornaremos as regras muito rígidas e pesadas. [...] Se parecemos severos, não se assuste e fuja. A entrada ao caminho da salvação deve ser estreita, mas à medida que você progredir ao longo da vida de fé, o coração se expande e acelera com a doçura do amor ao longo do caminho dos mandamentos de Deus".— A Regra de São Bento6

Devemos muito do nosso conhecimento sobre o mundo

antigo ao trabalho aplicado dos monges medievais.

precisão a vida diária do monástico. Para o monge, o trabalho era um tipo de oração. A pessoa expressava devoção a Deus por cada ação da vida consagrada. O mundano ficou sagrado. Em si mesmo esta teria sido uma contribuição significativa para o pensamento cristão. O monasticismo beneditino salvou quase sozinho a cultu­ra e a aprendizagem ocidentais, quando defendeu o trabalho inte­lectual como um tipo de trabalho particularmente satisfatório para a glorificação de Deus.

Com o colapso da cidade romana, os mosteiros dispersos nas zonas rurais tomaram-se os centros primários de aprendizagem. Os reis germânicos confiaram aos mosteiros a tarefa de ensinar a ler e escrever em latim , o que era necessário para a manutenção do governo. E o que é mais importante, os mosteiros medievais primitivos preservaram os registros escritos da cultura: livros e manuscritos. Particularmente relevante neste desenvolvimento foi um breve florescimento da cultura centrada na corte do maior monarca da Baixa Idade Média, o imperador Carlos Magno.

Mediante campanhas anuais militares, Carlos Magno estendeu o domínio dos francos para todos os lados. Ele subjugou a maior parte da França, Alemanha Ocidental e porções do norte da Itália e da Espanha. Uma das realizações mas significantes de Carlos Magno foi unir sua dinastia estreitamente com a igreja romana. A coroação de Carlos Magno como Santo Imperador Romano, ocor­rida no Natal de 800 a.C. e feita pelo papa Leão I I I , simboliza esta união. Para melhor controlar seu reino, Carlos Magno apoiou os mosteiros como centros de aprendizagem e educação. Ele se ser­viu dos bispos como conselheiros e representantes do poder impe­ria l, e coagiu os pagãos nos territórios recentemente conquistados a converterem-se ao cristianismo.

Das muitas reformas que resultaram desta união de forças, a que teve o maior efeito foi uma reforma simples da escrita à mão. Pelo fato de o velino (pergaminho fino para escrever, preparado com a pele de bezerro ou cabra) se deteriorar com o passar do

tempo, os m anuscritos tinham de ser recopiados para que seu conteúdo fosse pre­servado. Considerando que escrever o manus­crito à mão era o único jeito de preservar a palavra escrita, letra ilegível significava au­mentos significativos no número de erros tex­tuais e até a perda completa de conhecimen­to. Infelizm ente, o declínio geral da apren­dizagem depois da queda do poder romano

e do isolamento dos mosteiros causou a degeneração da ca li­grafia. Sob ameaça de castigo severo por sujeira ou divergên­cia, em resultado das reformas de Carlos Magno, os monges de toda a Europa Ocidental foram ensinados a escrever em bom e legível latim . O número de manuscritos copiados também au­mentou significativamente.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 125Os efeitos a longo prazo são impressionantes: Dos manuscri­

tos mais velhos dos textos antigos que agora existem, inclusive os manuscritos bíblicos, a maioria destes são do período da renas­cença carolíngia. Devemos muito do nosso conhecimento sobre o mundo antigo ao trabalho aplicado desses monges.

A Escolástica e o Avivamento da AprendizagemO ano 1000 veio e passou, e as poucas predições medonhas

relativas ao fim do mundo não aconteceram.7 A Europa Ocidental parecia ter atravessado o ponto crítico. A cultura e o comércio se reavivaram. O poder político se estabilizou. Especialmente na Itá­lia , as cidades começaram a crescer novamente. A erudição pros­perou na Alta Idade Média, estimulada pelo redescobrimento dos escritos clássicos gregos, que eram desconhecidos ao Ocidente, mas que tinham sido preservados pelos muçulmanos. Este florescimento da aprendizagem, em combinação com as necessi­dades das crescentes burocracias da realeza, produziu a universi­dade ocidental. No século X III , grandes universidades foram fun­dadas em Paris (França), Bolonha (Itália) e Oxford e Cambridge (Inglaterra).

Em resposta à nova aprendizagem e às necessidades da vida urbana, emergiu um tipo diferente de monasticismo. As ordens monásticas fundadas por São Francisco e São Domingos (os franciscanos e dominicanos) não buscaram refúgio em áreas ru­rais, mas viviam em cidades e ministravam à população urbana. Pela razão de não terem nenhuma terra na qual cultivar a comida, esses monges e freiras eram conhecidos por mendicantes ou mo­násticos mendicantes.

Desde o princípio, os mendicantes estavam estreitamente rela­cionados com as universidades medievais. Uma riqueza de apren­dizagem, sobretudo em teologia e filosofia, começou a manar dos dominicanos e franciscanos nos novos centros académicos. Como uma referência à aplicação rigorosa da razão na teologia, sua metodologia é chamada escolástica. (Veja o box sobre Escolástica no Capítulo 4.) Muitos destes pensadores (por exemplo, Anselmo, Abelardo, Pedro Lombardo) fizeram contribuições significativas para a história da teologia cristã. Porém, o indivíduo que melhor representa o ápice da aprendizagem cristã na A lta Idade Média é Tomás de Aquino (1225-1274).

A partir dos dados bíblicos e das evidências da razão, Tomás de Aquino construiu um edifício do pensamento cristão que em seu âmbito rivalizava com as grandes catedrais medievais. De acor­do com Tomás, alguns aspectos da fé poderiam estar além da ra­zão (quer dizer, não racionais). Entretanto, pelo fato de Deus ser um Deus da razão e ter construído a racionalidade no universo, nenhuma parte do ensino ortodoxo cristão pode contradizer a ra­zão (quer dizer, é irracional). Usando a estrutura lógica e analíti­ca redescoberta de Aristóteles, Tomás tentou fornecer uma visão

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126 GREGORY J. MILLER

abrangente e enciclopédica do mundo, e o conhecimento a partir de uma perspectiva cristã. A política, a ética, a arte, a ciência tive­ram um lugar na casa de aprendizagem de Tomás de Aquino.

Alguns líderes cristãos mais recentes têm criticado a escolástica por exagerar a capacidade da mente humana, não dando suficiente lugar para o mistério e frequentemente girando em torno de deba­tes complicados sobre assuntos de pequena importância. Não obstante, a união do cristianismo e da razão na escolástica perma­nece uma realização significante. A obra Suma Teológica, de Tomás de Aquino, continua a fornecer os fundamentos para grande parte da crença católica romana, e provê fundamento essencial para a apologética (a defesa da fé) cristã moderna a protestantes e católicos.

O Misticismo CristãoO poder do papado e da igreja institucional também alcançou

seu ápice no século X III. Do seu ofício em Roma, o papa Inocêncio I I I ditava a política aos reis de toda a Europa e exigia maior con­formidade entre os crentes comuns. Entretanto, este impulso pelo

omá& de /í<%otttvxEmbora conhecido por

seus companheiros domi­nicanos como “boi mudo” , em razão do seu porte fís i­co grande e seriedade len­ta, Tomás de Aquino (1225- 1274) foi um dos pensado­res mais poderosos da his­tória da Igreja. Durante seu cargo como mestre de teo- logia em Paris e Roma, To­más trabalhou para reconci­

liar a fé (a doutrina cristã tradicional) e a ra/ão (inclusive os escritos filosó­ficos de Aristóteles recentemente des­cobertos). De acordo com Tomás de Aquino, a habilidade da humanidade em raciocinar era a “imagem de Deus” na qual a humanidade fora criada (Génesis 1.26). Sua confiança extre­ma na razão humana estava baseada na crença de que a Queda corrompeu só a vontade da humanidade, e não seus poderes de raciocínio. Apesar do

seu enfoque filosófico, Tomás reco­nheceu a importância da experiên­cia cristã e da B íb lia . Tomás ensi­nou que a razão pode demonstrar a existência de Deus e a imortalidade da alma humana, mas não pode es­tabelecer doutrinas essenciais como a Deidade de Cristo. Embora nunca possa contradizer a razão, a fé na re­velação de Deus é necessária para a salvação e doutrina. O tomismo, sis­tema teológico baseado nos escritos de Tomás de Aquino, fo i extensiva­mente usado na resposta católica romana à reforma protestante e per­maneceu altamente influente ao lon­go do século X X . Muitos dos argu­mentos de Tomás, especialmente as “C inco M aneiras” (provas para a existência de Deus), foram usados por defensores da fé católica e pro­testante. Escritos mais importantes: Suma Teológica e Suma contra os Gentios.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 127poder deixou a Igreja sem aliados políticos adequados e vulnerá­vel à cobiça e corrupção. As fraquezas ficaram evidentes, quando uma série de calamidades no século X IV dividiu profundamente a cristandade.

Sob pressão do rei francês Filipe, o Belo, o papa Clemente V deixou Roma e fixou residência perto da fronteira francesa em Avinhão. Embora o papado de Avinhão (1309-1377) tenha se de­senvolvido em uma burocracia altamente organizada e eficiente, para muitos contemporâneos parecia que o cabeça espiritual da cristandade tinha perdido sua independência. Uma tentativa para terminar com esta “ servidão babilónica da Igreja” gerou múlti­plos e competidores papas. Esta competição resultou numa divi­são na igreja conhecida como o Grande Cisma Papal (1378-1417).

Na confusão deste período, alguns cristãos voltaram-se para o interior de si mesmos. Estes místicos ajudaram a formar a cosmo­visão cristã promovendo a experiência direta com um Deus amo­roso e, contudo, Todo-poderoso. Para eles, a adoração de Deus e a vida do crente transcendiam as instituições e ações humanas. Se a Deus foi dado purgar o pecado das pessoas, isto tornou possível sua iluminação do coração e o fornecimento de meios, mesmo que apenas por um momento, de obter um senso de união com Ele . Os escritos dos místicos, frequentemente repletos de metáfo­ras apaixonadas de amantes, são alguns dos textos mais bonitos em toda a literatura cristã.8

Um místico cristão busca uma experiência ou um encontro direto e não mediato com Deus. Contrário ao misticismo oriental, o misticismo cristão apóia a transcendência última de Deus. Por exemplo, quando os místicos cristãos falam de uma consciência da "identidade com Deus" ou "possessão por Deus", não estão querendo dizer uma absorção que destrói o eu ou a distinção entre os seres humanos e Deus. Várias formas de misticismo cristão estiveram presentes ao longo da história da Igreja.

Catarina de Siena (c. 1347-1380 d.C .) demonstrou forte sensibilidade espiritual no início de sua infância em Florença (Itália). Depois de uma sé­rie de visões, com a idade de 15 anos Catarina jurou permanecer virgem e retirada a uma vida de oração e con­templação em associação com uma ordem das irmãs leigas dominicanas. E la continuou tendo experiências místicas ao longo da vida. Seu ensi­no místico enfatizava o sangue reden­tor de Cristo e a união com Deus pelo sofrimento mediante a identificação com Cristo na cruz. Sua combinação incomum de contemplação e ativida- de levou-a a um arrebatamento mís­tico que inspirou sua ação confiante e agressiva em nome da Ig re ja .

Catarina passou a maior parte de sua carreira lutando contra os abusos eclesiásticos medi­ante o ensino, a pregação e a instrução. Embora quase anal­fabeta, Catarina ditou centenas de cartas instrutivas, muitas orações e uma importante obra sobre experiência m ís­tica. Sua repreensão direta ao papa G regório X I , em Avinhão, ajudou a dar o im ­pulso para o retorno do papado a Roma. Morreu em resultado dos seus trabalhos e esforços para acabar com o cisma papal. Catarina fo i declara­da santa protetora da Itá lia em 1939. Escrito importante: O Livro da Provi­dência Divina.

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128 GREGORY J. MILLER

A Igreja Moderna

Renascença &] v Reforma )

Era do lluminismo

Era da Revolução

Século XX

1500 1650 1789 1914 2000

Martinho Lutero,

m. 1546

mJonathan Edwards, m .1758

RevoluçãoFrancesa

Walter Raus-

chenbusch, m .1918

PrimeiraGuerra

Mundial

C. S. Lewis,

m.1963

Karl Barth, 1968

João C a lv in o ,. Primeiro Grande John Friedrich Avivamentom. 1564 Despertamento, Wesley, Schleiermacher, daRuaAzusa,

1730-1740 m. 1791 m. 1834 1906-1909

Ilustração 4

Especialmente para muitas mulheres, o misticismo deu opor­tunidade para a liderança religiosa e atividades que tinham estado bloqueadas pela igreja institucional dominada por homens. Por exemplo, Catarina de Siena (c. 1347-1380), uma das místicas mais profundas e influentes, ganhou reputação internacional por sua santidade, sabedoria e intimidade com Deus. Falando com base em sua autoridade carismática, Catarina foi instrumental para o fim da “servidão babilónica” e o retorno do papado a Roma.

À medida que o ano 1500 se aproximava, ficou cada vez mais claro para muitos que só a experiência mística não podia resolver os problemas

sérios dentro da Igreja. Apesar da cura do Grande Cisma Papal e o fim da “servidão babi­lónica” , as res- ponsabilidades ministeriais não estavam sendo cumpridas. A imoralidade en­tre o clero era frequente. Mui­tas vezes apenas por mero lucro financeiro, os oficiais da igre­ja estimulavam

o povo a acreditar que as relíquias (porções preservadas dos corpos ou pertences dos santos) podiam fazer milagres. Fazia-se necessária uma reforma moral e governamental “na cabeça e nos membros” , ou seja, tanto na hierarquia quanto na vida dos cristãos em geral.

Algumas vozes foram mais adiante e requereram mudanças na doutrina. Os primeiros reformadores, inclusive João W ycliffe (m. 1384) e João Huss (m. 1415), advogavam novas maneiras de entender o sacramento da Ceia do Senhor. E o que é mais importan­te, eles exigiram que as Escrituras estivessem disponíveis no verná­culo (a língua do povo), e não apenas em latim (a língua da elite). Embora suas atividades estivessem lim itadas em número e exten­são geográfica (Inglaterra e Boémia, respectivamente), as reformas de Wycliffe e Huss foram um sinal das coisas que sucederiam.

A Igreja Moderna

V is ã o G e r a l

Mudanças rápidas e complexidade crescente caracterizaram a história durante os últimos 500 anos. O espírito de individualismo

Fundamentalismo

Movimento Carismático, 1963

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 1 2 9

da Renascença combinado com os avanços científicos do iluminismo, produziram uma série de inovações tecnológicas que revolucionaram a vida humana. Contudo, em lugar de resolver os problemas do mundo, a tecnologia moderna criou novos desafios. Em particular, as crises do século X X exigiram uma reavaliação crítica do futuro curso da civilização. A cultura ocidental enfrenta algumas questões difíceis na virada do milénio.

Os historiadores dividem o Período Moderno em quatro subperíodos (veja a ilustração 4). No Baixo Período Moderno (c. 1500-1650), também conhecido como Renascença e Reforma, ocorreu uma transição gradativa do Medieval para o Moderno. Ma­rinheiros europeus, como Colombo, exploraram o mundo. As des­cobertas astronómicas de Galileu Galilei e Johannes Kepler de­ram início à Revolução Científica. A proliferação da imprensa de tipos móveis revolucionou a comunicação de massa. Começando em 1517, demandas existentes há muito por uma reforma dentro da Igreja romperam em um cisma impetuoso.

Liderado por Martinho Lutero e outros, o protestantismo foi estabelecido como um ramo separado do cristianismo indepen­dente do controle católico romano. Em 1650, depois de uma longa luta m ilitar e política, o protestantismo foi estabelecido no norte da Europa e na América do Norte.

Durante a Era da Razão (1650-1789), as descobertas sobre o mundo natural incentivaram a visão de que o progresso pela ciên­cia e tecnologia era inevitável. Os líderes do Iluminismo acredita­vam que a razão humana podia retirar o véu da ignorância e su­perstição e revelar um universo formosamente ordenado. As artes também refletiram esta nova cosmovisão enfatizando a estrutura, a ordem e a simetria. Na política, a fundação dos Estados Unidos parecia demonstrar que os seres humanos racionais poderiam tra­balhar para construir uma sociedade justa e imparcial. A cosmovi­são do modernismo, baseado nos princípios do individualismo, da razão humana e do progresso por meio da ciência e tecnologia, passou a dominar a civilização ocidental.

A Era da Revolução (1789-1914) testemunhou várias mudan­ças políticas e culturais. Começando com a Revolução Francesa (1789), os cidadãos comuns usaram a política e a violência para destruir os privilégios aristocráticos antigos. Levada pelo exem­plo dos Estados Unidos, a democracia triunfou gradualmente na Europa Ocidental. Na cultura, o romantismo rebelou-se contra o “racionalismo seco” do Iluminismo. Artistas, músicos e escritores glorificaram o Sturm und Drang (tempestade e fúria) da natureza e emoção humanas. O espírito romântico também impulsionou a teologia. O liberalismo protestante clássico, com sua ênfase nos elementos subjetivos e imanentes da religião, veio a dominar as igrejas populares e seminários.

A lém das mudanças p o lítica s, uma série de avanços tecnológicos, coletivamente conhecido como Revolução Industri-

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130 GREGORY J. MILLER

Modernismo é a cosmovisão que dominou o pensamento ocidental desde o iluminismo. As características primárias do modernismo são 1) confiança no poder da razão humana, 2) fé no progresso e desenvolvimento, principalmente por meio da ciência e tecnologia, e 3) crença na soberania absoluta do indivíduo.

al, transformam a sociedade ocidental no século X IX . Novos mé­todos de conversão de energia (especificamente a máquina a va­por) capacitaram a indústria e transporte em larga escala. Popula­ções inteiras mudaram-se como operários migrados de zonas ru­rais para áreas urbanas, atravessando os limites nacionais. Como resultado das novas condições económicas, a classe média come­çou a crescer. A urbanização extensa produziu a cidade moderna orientada ao consumidor. Enquanto a tecnologia e a manufatura deram um padrão de vida mais alto para muitos, para outros as novas condições económicas nas cidades só trouxeram crime, pobreza e despersonalização.

Os avanços tecnológicos que capacitaram o rápido desenvol­vimento industrial também deram pela primeira vez ao Ocidente (Europa Ocidental e Américas) uma vantagem m ilitar sobre o Oriente Médio e o Extremo Oriente. Ambos saíram à procura de ma- térias-primas e mercados para os produtos industrializados que fabri­cavam, e sentiram o dever de civilizar os “selvagens” não-europeus. Os poderes ocidentais estenderam o controle sobre grande parte do mundo mediante a colonização ou intimidação em fins do século X IX .

As missões cristãs seguiram de perto as conquistas coloniais européias e, às vezes, até as precediam. De uma perspectiva glo­bal, o século X IX foi o “Grande Século” para o protestantismo; as igrejas cristãs foram estabelecidas por todo o mundo. Por volta de 1914, o Ocidente estava politicamente poderoso, cada vez mais democrático e economicamente próspero. Com os avanços tecnológicos em todos os campos, parecia a muitos que as pro­messas do modernismo triunfante, uma sociedade justa e racio­nal, estavam ao alcance da humanidade.

A perda de uma geração de jovens na Primeira Guerra Mundi­al (1914-1918) foi o primeiro grande revés para a esperança mo­dernista. A Grande Depressão, o totalitarismo de Hitler e Stálin, a Segunda Guerra Mundial (1940-1945) e o Holocausto demonstra­ram que os avanços na ciência e tecnologia não traziam automati­camente um mundo melhor.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e par­tes da Europa Ocidental desfrutaram um tempo de prosperidade sem igual. No entanto, por volta de meados dos anos de 1970, a prosperidade económica americana e a estabilidade cultural já es­tavam começando a frustrar a muitos. Apesar dos avanços tecnológicos da informação e a era do computador, o mundo ain­da está infestado por crime, pobreza, governos opressivos e de­sastres ambientais.

Na ciência teórica como também na cultura, a confiança mo­dernista na razão humana e no progresso fundiu-se na ansiedade e confusão pós-modemistas. Embora o pós-modernismo retenha a elevação da cultura ocidental do indivíduo, ele assevera que a ver­dade é subjetiva, dependente da perspectiva pessoal ou cultural e, portanto, é completamente relativa.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 1 3 1

A falta de verdade objetiva conduz à falta de significado obje- tivo. Consequentemente os pós-modemistas são deixados a en­contrar seu próprio caminho em um mundo que necessariamente não vai a lugar nenhum.

F o r m a n d o u m P e n s a m e n t o C r is t ã o

O mundo moderno de mudanças rápidas tem apresentado vári­os desafios significativos para a Igreja. Muitos mais indivíduos e eventos fizeram contribuições importantes para a formação de uma cosmovisão cristã no período moderno do que possam ser menci­onados em algumas páginas. Além disso, por causa da natureza direta de sua influência, os esforços protestantes em formar uma cosmovisão cristã ficarão enfatizados. Entre os mais importantes destes estão 1) a reforma e o nascimento do protestantismo, 2) a síntese puritana, 3) as respostas do século X IX ao modernismo, 4) a renovação do pensamento cristão ortodoxo no século X X , e 5) os movimentos carismáticos e pentecostais, e a realidade da cris­tandade sobrenatural.

A Reforma e o Nascimento do ProtestantismoEm 1517, um monge jovem e professor universitário em Wit-

tenberg, Alemanha, ficou muito aflito com as declarações ultra­jantes feitas por um vendedor de indulgências dominicano, John Tetzel. Tetzel declarou que para as “boas obras” de contribuir di­nheiro para a Igreja (isto é, comprar indulgências), Deus recom­pensaria os doadores perdoando-lhes os pecados. Se necessário, a pessoa poderia obter perdão com antecedência do pecado intenci­onal, ou por um ente querido já falecido (para ficar menos tempo no purgatório). Havia até uma tabela variável dependendo da se­veridade do pecado e da capacidade em contribuir.

Martinho Lutero (1483-1546) considerou isso não menos que comercializar a graça de Deus por um preço. A resposta escrita de Lutero ao comércio de indulgências, as 95 Teses sobre a Eficácia das Indulgências, ajudou a desencadear uma reforma da doutrina por toda a Europa. Dentro de uma geração, a maioria dos euro­peus do norte tinha se separado radicalmente da igreja romana para formar suas próprias confissões e instituições. Muito do cris­tianismo moderno é resultado direto deste “protesto” contra os abusos do catolicismo romano medieval.

Durante os anos seguintes às 95 Teses, Martinho Lutero gradu­almente percebeu que estava defendendo uma mudança completa da autoridade para a Igreja. Se o papa e até os concílios eclesiásti­cos (reuniões oficiais de líderes da Igreja) poderiam errar, como era o caso relativo às indulgências, como os crentes podiam saber o que fazer para agradar a Deus? A resposta de Lutero tornou-se o fundamento para todo o pensamento protestante subsequente. A autoridade final para a vida cristã era só a Escritura (sola scriptura). Usando o princípio de sola scriptura, Lutero não viu base alguma

Pós-modernismo é a cosmovisão que, durante o último século, ganhou cada vez mais influência sobre o modernismo. O pós- modernismo continua enfatizando a soberania absoluta do indivíduo, mas é pessimista em relação ao progresso humano e duvida da habilidade da razão humana em produzir a verdade objetiva. Onde não há verdade objetiva, há somente relações (políticas) de poder. Por isso, os debates intelectuais do pós- modernismo têm se centrado em volta de questões concernentes ao controle e interpretação da cultura.

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A autoridade final para a vidacristã era só a Escritura (sola

scriptura),

para indulgências, purgatório, relíquias, peregrinação. Em suma, todo o sistema católico romano medieval de perdão e mérito dian­te de Deus foi construído em fundamento falso.

Lutero achou o perdão completo de Deus, dado livremente, não com base no que o indivíduo tinha feito, mas baseado somen­te pela fé (sola fides) em Jesus Cristo. Para uma pessoa como Lutero, que tinha lutado intensamente com sua sensação pessoal

de culpa diante de Deus, esta “descoberta da reforma” foi como o amanhecer de um novo dia. Já não era mais necessário nenhum exer­cício religioso infinito para obter o favor e per­dão de Deus. Isto já tinha sido feito por causa da obra de Cristo na cruz. O crente não podia contribuir com uma coisa sequer para a salva­ção eterna, exceto com o receber humildemente

o perdão de Deus em Cristo pela fé. Para Lutero, isto deu ao cren­te a tremenda liberdade de viver uma vida de serviço a Deus mo­tivada pelo amor, e não pela culpabilidade ou responsabilidade.

Em um dos primeiros usos bem-sucedidos dos meios de co­municação de massas, a indústria da impressa recentemente de­senvolvida levou a mensagem de Lutero e a divulgou por toda a

M artinho Lutero (1483- 1546), o pai do protestantismo, é geralmente reconhecido como um dos indivíduos mais impor­tantes na história da Igreja. Nas­ceu na Alem anha central, de pais camponeses prósperos, que queriam que ele estudasse ad­vocacia. Entretanto, em resulta­do de um voto feito por ter es­capado por um triz de um raio,

aos 23 anos Lutero ligou-se a um mos­teiro agostiniano nos arredores de Erfurt (Alemanha). Lutero excedeu-se em dis­ciplina monástica e no estudo académi­co; ao mesmo tempo, passou por uma crise espiritual contínua, porque sentia que nunca podia satisfazer a Deus. Tanto pelo reconhecimento das habilidades de Lutero, quanto uma tentativa de satisfa­

zer suas necessidades espirituais, em 1508 sua ordem monástica o transferiu para a nova universidade de Wittenberg, a fim de que ele continuasse seus estu­dos académicos. Quatro anos depois, ele recebeu o grau de Doutor em Teo­logia e foi designado para a cátedra de estudos bíblicos. Durante os cinco anos seguintes, em grande parte pela prepara­ção de conferências sobre Salmos, Ro­manos e Gálalas, Lutero veio a entender que a justiça de Deus não era algo que alguém ganhava com base em seus pró­prios méritos, mas era creditada ao cren­te pela fé na obra de Cristo na cruz. À medida que Lutero explorava as conse­quências desta “ base” da reform a, monitorando a controvérsia acerca das indulgências e ocupando-se dos deba­tes que se seguiram (especialmente A

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IZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 133Europa. Muitos líderes políticos e religiosos uniram-se ao seu cla­mor pela reforma. Em grandes porções do norte da Europa, foi abolido grande parte dos m il anos anteriores de prática e doutrina cristãs. Os mosteiros, em lugares contendo proporção significati­va de população e possuindo tremendas quantidades de terra e riqueza, estavam fechados. (Ser monástico não garantia nenhum favor especial de Deus e era visto como um tipo de justiça pelas obras.) Os clérigos também perderam seu status especial como mediadores da graça de Deus. Em última instância, todo o mundo era o seu próprio sacerdote diante de Deus. A pessoa no arado recebia a mesma graça e agradava a Deus da mesma forma que o santo mais digno.

Então, qual era o papel das boas obras? Não deixando em momento algum de preocupar-se com a realidade do pecado, Lutero sabia que só o amor de Deus não m otivaria suficiente­mente a maioria das pessoas para fazer o que é certo. Mesmo depois da graça havia a necessidade da le i, contanto que as pes­soas não voltassem a crer novamente que suas boas obras as salvariam . A le i era um guia para o comportamento e uma res­trição ao pecado. Refletidas nos governos humanos, as leis pre­servavam a paz e a ordem. O Reino do Céu e os reinos da Terra,

Disputa em Leipzig , 15 19), ele se deu conta de que muito do catolicismo ro­mano medieval estava baseado numa justiça pelas obras, o que era contrário ao cristianism o b íb lico . Visto que o papa e muitas autoridades eclesiásticas tinham apoiado estas práticas, Lutero foi obrigado a argumentar que eles po­deriam errar e que só a Escritura deve ser a autoridade para a fé e prática. Lutero foi declarado herege pelo papa (1520) e proscrito pelo Santo Imperador Romano (1521), mas recebeu apoio po­lítico dos príncipes alemães, que o per­mitiram reformar muitas igrejas de acor­do com as linhas bíblicas independentes do controle romano. Quando Lutero mor­reu em 1546, os territórios da Suíça à Escandinávia tinham seguido Lutero em seu “protesto” contra a Igreja Católica

Romana. Mas nem todos os “protestan­tes” concordaram com Lutero em todos os pontos, e o movimento logo partiu-sc em muitas facções. Porém, a importân­cia de Martinho Lutero como originador e paladino da reforma é inegável. Entre os trabalhos do grande reformador inclu­em-se mais de cinquenta volumes de ser­mões, comentários bíblicos e escritos te­ológicos. Contudo, sua contribuição es­crita mais importante foi a tradução da Escritura para o alemão. Pelo fato de ter sido a primeira tradução em alemão, a B í­blia Alemã de Lutero foi um marco na história da tradução bíblica, e uma influ­ência significativa no desenvolvimento do próprio idioma alemão. Escritos mais im­portantes: Da Liberdade de um Cristão, Da Servidão Babilónica da Igreja, e a tra­dução da Bíblia para o alemão.

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não obstante separados, podiam e deviam coexistir em harmo­nia. Cada crente possuía cidadania dual, com responsabilida- des em cada reino.

Dos muitos outros reformadores importantes que ajudaram a formar a cosmovisão cristã, João Calvino também merece men­ção específica. Como Lutero, Calvino declarou a justificação so­mente pela fé, mas centrou esta justificação na soberania absoluta de Deus. Considerando que Deus estava no controle de todas as coisas, a base da salvação estava nas escolhas de Deus e não nas da humanidade.9 Nesta base, para seu grande conforto, Calvino podia agora, com energia e confiança, prosseguir na cruzada con­tra o pecado e as trevas, sem medo de perder a graça devido ao fracasso. Calvino não permitia nenhum desafio à sua autoridade e não tinha nenhuma tolerância pelo pecado aberto. O pecado e a falsa crença devem ser extirpados da comunidade cristã como cân­cer do corpo.

Lutero tinha algumas suspeitas sobre a razão humana, e caute­la dos grandes sistemas de Tomás de Aquino e dos escolásticos. João Calvino tinha uma confiança muito maior na mente cristã iluminada. O alto tom moral e o uso brilhante da mente fez de

Muitas das idéias de Lutero foram tomadas e desenvolvidas pelo maior sistematizador da Reforma, João Calvino. O fran­cês Calvino (1509-1564) havia sido treinado para uma carreira em Direito, mas foi forçado ao exílio por causa de sua crescen­te atração às idéias da Reforma. Enquanto viajava no exílio , pas­

sou por Genebra, Suíça, cidade que recentemente tinha optado pelo pro­testantismo. Embora preferisse a vida quieta de estudioso, Calvino foi per­suadido a lid e ra r a Reform a genebresa. Com um brilhante e pe­netrante intelecto, aguçado pelo trei­namento legal, Calvino fez contribui­ções importantes para os estudos bí­blicos, a teoria ministerial e a teolo­gia. As Instituías da Religião Cristã, sua magnum opus, permanece uma

das mais importantes teologias siste­máticas em toda a história da Igreja. A Genebra de Calvino tornou-se centro de treinamento importante para pro­testantes, especialmente para aqueles que fugiam da perseguição na França e Inglaterra. A ênfase de Calvino na soberania de Deus encorajou seus es­tudantes a verem-se especialmente escolhidos por Deus. Esta confiança triunfante permitiu que o estilo da Re­forma de Calvino causasse um impac­to sign ificativo na Holanda, Grã- Bretanha e no Mundo Novo. As deno­minações que hoje são sucessoras de João Calvino compõem o maior gru­po particular de protestantes e inclui os presbiterianos, os reformados ho­landeses e a maioria dos batistas. E s­critos mais importantes: Comentários Bíblicos de Calvino, e As Instituías da Religião Cristã.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 1 3 5

Genebra o centro da educação do protestantismo. Nas palavras do reformador escocês John Knox, a Genebra de Calvino “foi a me­lhor escola de Cristo desde os apóstolos” . A sensação do controle de Deus no destino deu aos que estudavam em Genebra grande confiança na justiça da causa que promoviam. Esta confiança capa­citou aqueles que seguiam Calvino a causarem profundo impacto na cultura ocidental, não apenas na Europa continental, mas tam­bém em grande parte da Inglaterra e Estados Unidos.

A Síntese PuritanaDurante o Iluminismo dos séculos X V II e X V III, os avanços

na ciência e tecnologia fincaram uma cunha entre a fé e a razão para muitas pessoas. Os líderes do Iluminismo, como Voltaire, entendiam que a religião era sinónimo de superstição. A religião prodtlzia escravidão, enquanto que a razão gerava liberdade, afir­mavam os iluministas. Alguns destes pensadores iluministas, cha­mados deístas, retiveram a ética cristã, mas rejeitaram qualquer sobrenaturalismo na religião. Embora Deus fosse visto como C ri­ador transcendente, seu papel era comparado ao de um fabricante de relógio, que construiu o mecanismo complicado do universo e

/Jonathan Edwards (1703-1758)

foi um menino prodígio, que domi­nava o latim, grego e hebraico e, já na adolescência, escrevia documen­tos científicos e filosóficos. Depois de completar os estudos na Yale C o llege , Edw ards assum iu o pastorado da Igreja Congregacional em Northampton, Massachusetts, com a idade de 24 anos. Foi do púl­pito em Northampton que Edwards apoiou e guiou o avivamento ameri­cano conhecido por Grande Despertamento. Além de desempe­nhar suas responsabilidades pastorais, Edwards era estudioso infatigável, trabalhando frequentemente doze a quatorze horas por dia em seu gabi­nete. Também era pessoa de profun­da experiência religiosa, talvez me­lhor ilustrado por sua resposta emo­cional ao Grande Despertamento, so­

bretudo a pregação de avivamen­to de George Whitefield. Embo­ra, in fe lizm ente , Jonathan Edwards seja mais conhecido por um sermão atípico: “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado” , seus trabalhos sobre filosofia, psi­cologia e teologia estão entre os mais importantes da história da Igreja americana. Seu apoio à ex­perimentação científica é tragica­mente ilustrado por sua concordância i

em se deixar ser injetado por uma for- |ma primitiva da vacina contra varíola. iMorreu em consequência disso, ape- Inas três meses depois de assumir a pre- isidência da College of New Jersey I(Princeton). Escritos mais importan- |tes: Uma Narrativa Fiel das Obras iSurpreendentes de Deus, Um Tratado \ Relativo ao Afeto Religioso, A Liber­dade da Vontade.

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ficou à parte dele. Na versão americana do deísmo, sob o disfarce da “providência” , Deus também moldava os destinos das nações. Contudo, o Deus dos deístas não intervinha na vida das pessoas comuns, nem se revelou em um Filho encarnado. Eles afirmavam que Jesus foi o maior mestre moral, e a B íb lia o melhor lugar de instrução moral, mas Jesus não era divino e a B íb lia era somente palavras de sábios.

No meio deste ambiente d ifíc il, foi feita uma das maiores con­tribuições para a formação de uma cosmovisão cristã ortodoxa. No século X V II, um grupo de protestantes ingleses, chamado pu­ritanos, povoou as colónias britânicas da Nova Inglaterra. Dedi­cados aos princípios da Reforma, eles exigiram a purificação da Igreja Anglicana de toda falsidade humana (que se entendia ser os vestígios do catolicismo romano), e a purificação de si mesmos do pecado. Punham grande ênfase na atuação de Deus em meio à comunidade e vida dos indivíduos. Os puritanos enfatizavam a conversão pessoal e estavam imensamente preocupados com o crescimento espiritual e o desenvolvimento na vida cristã.

Além deste enfoque moral e emocional, os puritanos também enfatizavam a importância do intelecto. Estimulavam-se uns aos outros a amar a Deus de coração e também de mente. Acredita­vam que a educação era responsabilidade da comunidade cristã. Ao povo da fé deveria ser ensinado ler, de forma que pudesse ler a Palavra de Deus por si mesmo. Como líderes da comunidade, os ministros precisavam de experiência pessoal com Deus e de rigo-

oAa 'WeáJÍety

John Wesley (1703-1791) foi o décimo quinto filho de uma fa­m ília ministerial emEpworth, In­glaterra. O pai de John Wesley, Samuel Wesley, tinha sido signi­ficativamente influenciado pelo puritanismo inglês e criado seus filhos em disciplina rígida e de­voção cristã. Enquanto era estu­dante na Oxford University, John, seu irm ão C harles, o amigo

George Whitefield e outros começaram a se encontrar para estudo da Bíblia e encorajamento mútuo (1727). Este “Clu­be Santo” , como veio a ser chamado, de­pois se tornou a fundação da qual o mo­

vimento metodista se desenvolveu. A pri­meira experiência independente de Wesley como ministro de congregação terminou em desastre; ele foi forçado a deixar sua posição missionária na coló­nia britânica da Geórgia (1737). Sua aventura fracassada, porém, resultou num contato importante com os morávios anabatistas. A certeza de salvação dos morávios encorajou Wesley a buscar uma experiência mais profunda com Deus. Em 1738, Wesley recebeu a certeza do per­dão dos seus pecados, quando seu cora­ção “ ficou estranhamente quente” , en­quanto ouvia a leitura do prefácio de Lutero ao comentário de Romanos. Esta

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DZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 137roso treinamento intelectual. O fruto deste esforço em unir “cabe­ça e coração” como cristão inclui a fundação de muitas institui­ções importantes de ensino superior.10 Contudo, o impacto da sín­tese puritana ultrapassa em muito o ensino superior. Os Estados Unidos da América têm suas raízes no cristianismo evangélico em grande parte por causa das contribuições dos puritanos da Nova Inglaterra.

O ápice da tentativa puritana em formar uma cosmovisão cris­tã é representado por Jonathan Edwards (1703-1758), pastor congregacional em Northampton, Massachusetts. Desde pequeno ele se interessava na exploração do mundo natural e no desenvol­vimento do intelecto. Edwards estava convencido de que sendo Deus realmente o Criador do universo natural e o Doador do inte­lecto, então a exploração racional do mundo era uma atividade que em si mesmo glorificava a Deus. Sempre permaneceu entusi­asticamente interessado nas descobertas científicas e avanços tecnológicos ao longo de sua vida.

Contudo, Jonathan Edwards não era desprovido de uma fé pes­soal fervente. Seu apoio ao avivamento colonial conhecido por Primeiro Grande Despertamento (1730-1740) foi essencial para o seu sucesso. A defesa que publicou sobre os aspectos emocionais do avivamento, Um Tratado Relativo ao Afeto Religioso (1746), permanece obra essencial para entender o equilíbrio formal entre a emoção e a razão na vida cristã.

Do outro lado do Atlântico, na Inglaterra, um contemporâneo

experiência dramática revolucionou a vida e ministério de Wesley: No ano se­guinte, ele começou a escandalosa práti­ca de pregar ao ar livre para grandes multidões. O avivamento metodista que se seguiu causou impacto em dezenas de milhares de pessoas de ambos os lados do Atlântico. Quando morreu, Wesley ti­nha viajado mais de 400.000 quilómetros, pregado 42.000 sermões e publicado mais de 200 livros. As pequenas sociedades metodistas que Wesley formou para a promoção da vida cristã tomaram-se hoje uma das maiores denominações dentro do protestantismo. John Wesley foi o primei­ro clérigo importante a adotar a posição

teológica do holandês Jacó Arm ínio (m. 1609), que enfatiza a responsabilida­de da humanidade em aceitar Cristo na salvação . (V e ja Pecota, “A Obra Salvadora de Cristo” , in : Teologia Siste­mática, editor Stanley M. Horton.) Isto, em combinação com sua doutrina da per­feição cristã (a cooperação da vontade humana c do Espírito Santo que levam à santificação e santidade crescentes), foi significativo em estabelecer o fundamen­to para a santidade e os movimentos pentecostais de fins do século X IX a prin­cípios do século X X . Escritos mais impor­tantes: Os sermões de Wesley, o Diário de Wesley e Notas sobre o Novo Testamento.

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de Jonathan Edwards estava pensando nesse mesmo sentido. John Wesley fez contribuições significativas para a história do cristia­nismo com seus escritos teológicos, a prática de pregar ao ar livre e o gênio organizacional. Embora conhecido primariamente como líder de um grande avivamento inglês e fundador do metodismo, Wesley também era entusiasta da ciência, tecnologia e letras.

As Respostas do Século XIX ao ModernismoNos anos seguintes à guerra pela independência americana

(1775-1781), a atividade cristã nos Estados Unidos estava em flu­xo muito baixo. Uma série de avivamentos, conhecida por Segun­do Grande Despertamento (c. 1798-1820), inverteu parcialmente esta tendência. Contudo, o crescente prestígio da ciência e as d ifi­culdades do ministério na fronteira (princípios do século X IX ) e nos centros urbanos (fins do século X IX ) deslocou distintamente os Estados Unidos em direção ao secularismo.

Na Europa, a Revolução Francesa e os vários movimentos de­mocráticos e socialistas que se seguiram foram ainda mais devas­tadores para o cristianismo. A fim de abrir alas para a autonomia da pessoa comum, estruturas tradicionais de autoridade foram ba­nidas, em muitos casos incluindo as da Igreja.

Na Europa e nos Estados Unidos, as novas perspectivas inte­lectuais aumentaram o vento para o secularismo. Karl Marx (1818- 1883) argumentou que a religião era só uma máscara para as rela­ções de poder entre as classes sociais. Em A Origem das Espécies (1859), Charles Darwin (1809-1882) popularizou uma explicação para a ordem e estrutura do mundo biológico que não exigia a atividade de um Arquiteto divino. Junto com os escritos geológi­cos de Charles Lye ll, o darwinismo parecia minar a credibilidade do relato bíblico da criação.

Houve duas respostas distintas dentro do cristianismo para es­tes desafios do século X IX . Parcialmente sob a influência do ro­mantismo, muitos cristãos abandonaram a defesa intelectual da fé e voltaram-se para seus aspectos interiores e subjetivos. Em Sobre a Religião: Discursos a seus Desprezadores Cultos (1799), o teó­logo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) definiu a es­sência da religião como um “sentimento de dependência” do “in­fin ito ” . Ao apelar diretamente para a experiência humana, Schleiermacher acredita que estava preservando um papel para a religião em um mundo cada vez mais dependente da razão e da ciência.

A religião certamente envolve emoções e experiência pessoal. Porém, os teólogos que seguiram Schleiermacher (geralmente co­nhecidos por “liberais protestantes clássicos”) pagaram preço muito alto por seus ganhos. A ênfase na religião como experiência sub- jetiva toldou as distinções entre as religiões, tomou grande parte da doutrina cristã irrelevante e, às vezes, desceu ao panteísmo fran­co, isto é, não vendo nenhuma distinção entre Deus e o mundo.

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OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 139Eles afirmavam que era possível conhecer a Deus na sua condição de imanente, quer dizer, ativo no mundo, mas não como transcen­dente, ou seja, acima e separado do mundo. Para o liberalismo protestante clássico, o racionalismo moderno não propôs nenhu­ma ameaça. O cristianismo simplesmente não tratava da defesa de doutrinas particulares, mas do sentimento religioso e dos valores morais.11

Nos Estados Unidos, as igrejas ficaram seriamente divididas na sua resposta ao modernismo. O liberalismo protestante clássi­co era atraente a muitos teólogos e líderes eclesiásticos importan­tes, que estavam buscando acomodar o cristianismo ao mundo moderno. O min istro congregacional Horace Bushnell (1802-1876) criticou o avivalismo e estimulou a educação cristã gradual em vez da conversão dramática. Em Nutrimento Cristão (1847), Bushnell argumentou que a humanidade poderia superar o mal pelo treinamento cristão, a in fluência moral de Cristo e a presença interna do divino.

Idéias semelhantes foram desenvolvidas por Walter Rauschen­busch (1861-1918). Sua experiência como pastor na famigerada HelVs Kitchen (Cozinha do Inferno) da cidade de Nova York, dei- xou-o com uma compreensão sagaz dos aspectos sociais do peca­do. Em O Cristianismo e a Crise Social (1907), Rauschenbusch popularizou o entendimento de que o intento dos ensinamentos de Jesus não era a salvação dos indivíduos, mas a promoção da justi­ça política e económica. Para Rauschenbusch, a verdadeira salva­ção significava salvação social, quer dizer, a criação de um siste­ma social justo. De acordo com esta interpretação social do Evan­gelho, Deus e a humanidade trabalhando juntos destruiriam pro­gressivamente a tirania do mal social. O evangelho social foi um esforço corajoso para lidar com os desafios da era industrial e for­necer um corretivo importante para o egocentrismo na Igreja. Con­tudo, assim como o liberalismo protestante clássico, ele também desviou-se do cristianismo ortodoxo negligenciando a doutrina, a autoridade da Escritura e o sobrenatural.

Mais perturbador para muitos cristãos foi o dano feito à autori­dade bíblica pela alta crítica. Usando a metodologia da alta críti­ca, estudiosos alemães como D. F. Strauss e F. C . Baur concluíram que grande parte do Novo Testamento não era produto autêntico do século I , mas uma tentativa de líderes eclesiásticos mais recen­tes de m itificar seu passado. A crença na inspiração verbal da B í­blia e na realidade dos milagres bíblicos foi vista como uma obs­trução à erudição genuína. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, muitos teólogos adotaram a alta crítica bíblica como a aplicação erudita da razão moderna para os estudos bíblicos.

Em oposição ao liberalismo principal com sua aceitação da nova ciência e da alta crítica, o fundamentalismo cristão emergiu nos Estados Unidos em fin s do século X IX . O termo fundamentalismo é derivado de uma série de folhetos chamados

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A alta crítica parte da suposição de que a Bíblia pode ser analisada como qualquer outra obra da literatura. Na prática, a alta crítica bíblica tendeu a questionar as visões tradicionais da autoria, data, local e contexto histórico de livros específicos da Bíblia.

Os Fundamentos (1909-1915), que foram escritos para delimitar base teológica comum a todos os cristãos conservadores, propor­cionando um guia breve e de fácil compreensão para a doutrina cristã essencial. Esses líderes que se reuniram pela causa de Os Fundamentos, inclusive o fundador do Westminster Seminary, J. Gresham Machen, e o ex-candidato ao governo presidencial dos Estados Unidos, W illiam Jennings Bryan, investiram muita ener­gia na defesa das doutrinas cristãs tradicionais, especialmente a autoridade da Escritura, a expiação sacrificial de Cristo pelo pe­cado, e a autenticidade dos milagres bíblicos.

Apesar de a defesa fundamentalista de que a doutrina e a auto­ridade da Escritura são necessárias tivesse sido absolutamente es­sencial para a preservação do cristianismo no século X X , ela tam­bém não ocorreu sem o pagamento de um preço. A retórica crescentemente severa e, às vezes, o antiintelectualismo radi­cal conduziram ao isolamento cultural e a uma falta de influên­cia nacional. Pelos anos de 1920, como ilustrado no famoso experimento do “macaco” (evolução) de John Scopes, muitos americanos acreditaram que a pessoa não podia ser cristã evan­gélica e “moderna” ao mesmo tempo. Ou era-se uma pessoa de fé supersticiosa e retrógrada, ou uma pessoa da razão progressiva e “atualizada” .A Renovação do Pensamento Cristão Protestante Ortodoxo do Século XX

Embora suíço-alemão, Karl Barth (1886-1968) recusou ser intimidado pela tentativa nazis­ta de dominar a vida religiosa na Europa Central. Barth foi influ­ência importan te por trás da for­mação da Igreja Confessional Alemã, que permaneceu fiel ao cristianismo ortodoxo e oposta a Hitler. Depois da guerra, Barth continuou ensinando teologia,

i muitas vezes nas ruínas das uni­versidades alemãs bombardeadas. Suas pregações, escritos e ensinamen­tos causaram enorme impacto na Eu­ropa e nos Estados Unidos. Suas con­ferências e caráter inspiraram espe­rança em uma sociedade despedaçada e desanimada. Para Barth, os horro­

res da guerra só podiam ser entendi­dos em termos de pecado e em neces­sidade de redenção, e não da ignorân­cia e cm necessidade de conhecimen­to, como ensinava o liberalismo clás­sico. A humanidade podia ter espe­rança, mas só com base na obra de Cristo na cruz. A contribuição mais importante de K arl Barth para o pen­samento cristão foi uma restauração de uma teologia centrada em Deus baseada na revelação divina da Pa­lavra de Deus em Cristo, Escritura e pregação. Na opinião de muitos histo­riadores da Igreja, Karl Barth é o teó­logo protestante mais importante do século X X . Escritos mais importantes: Comentário aos Romanos, Dogmas da Igreja, Credo.

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'OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 141Embora o pós-modemismo tenha ganho força, na maior parte

deste século os pensadores cristãos têm lutado com o velho adver­sário do modernismo. Esta não é briga fácil. Para muitos estudio­sos, dos anos 20 aos anos 60 parecia que o cristianismo ortodoxo seria derrotado. Em quase toda instituição cultural de influência, o liberalismo protestante clássico, com sua ênfase na subjetivida- de humana na religião, foi a voz dominante. Nas principais uni­versidades, os departamentos teológicos frequentemente desapa­reciam ou eram substituídos por departamentos de religião. Pela década de 1960, os teólogos populares estavam discutindo os efei­tos da “morte de Deus” na “cidade secular” moderna.

Contudo, o cristianismo tradicional e ortodoxo estava longe de acabar. Devido às contribuições de pensadores e líderes da igreja na Europa, Estados Unidos e nações em desenvolvimento, a cos- movisão cristã (especificamente a cosmovisão cristã evangélica) fez um retorno notável. Houve muitas contribuições significati­vas para esta renovação do pensamento cristão, mas três merecem reconhecimento particular.

Tanto em termos de quantidade quanto de qualidade do seu trabalho erudito, Karl Barth (1886-1968) pode ser o teólogo cris­tão mais importante do século X X . Embora Barth tivesse sido atra­ído pelo liberalismo protestante clássico no início da carreira, suas experiências como pastor jovem de 1911 a l 921 levou-o a inver­ter sua posição teológica. A rejeição de Barth do liberalismo e seu otimismo alegre sobre a natureza humana foi somente aprofundada pelo imenso sofrimento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Significativamente influenciado pelos escritos de Martinho Lutero, Barth voltou-se à revelação divina da Escritura em busca da ver­dade. Diferente do liberalismo protestante, que via a Escritura nada mais que sabedoria humana e literatura bonita, Barth enfatizou que a Escritura continha a revelação de um Deus todo-poderoso e transcendente. Barth suspeitava das habilidades da razão humana, e enfatizava a necessidade de o Espírito Santo tornar as palavras da Escritura em valor espiritual. Junto com outros teólogos, espe­cificamente Em il Brunner e os americanos Reinhold e Richard Niebuhr, Karl Barth enunciou habilmente as doutrinas cristãs tra­dicionais.12 Através do trabalho deles, doutrinas cristãs essenciais, como a realidade do pecado e a separação de Deus, a importância da redenção em Cristo e a convicção em um Deus transcendente, recuperaram credibilidade académica.

Nos Estados Unidos, certo teólogo, mais que qualquer outro, ajudou a restabelecer a respeitab ilidade in telectual do evangelicalismo: Cari F. H. Henry. Apesar de v ir de formação evan­gélica conservadora, ele estava determinado a não permitir que isso o impedisse de obter a mais avançada educação disponível.

Os escritos de Cari Henry demonstram pensamento cristão sis­temático e sério em uma larga variedade de tópicos teológicos, filosóficos e culturais. Talvez sua maior contribuição tenha sido o

O fundamentalismo reagiu contra os ataques à Bíblia defendendo a inspiração, a infalibilidade e a autoridade da Escritura. Porém, durante as últimas décadas, o termo fundamentalismo estreitou-se para significar ou uma confiança exclusiva na interpretação literal da Bíblia, ou qualquer posição conservadora dogmática e rígida.

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trabalho na formação de uma comunidade erudita evangélica. Cari Henry serviu como coordenador de relações públicas e membro da mesa diretora da Associação Nacional de Evangélicos, presi­dente da Sociedade de Teologia Evangélica e presidente da mesa diretora do Instituto para Estudos Cristãos Avançados. Henry edi­tou e supervisionou numerosos projetos da erudição cristã. Sob sua liderança, a revista Christianity Today (Cristianismo Hoje) tomou-se um respeitado foro para notícias, discussão e comentá­rio evangélicos.

Junto com o apoio do popular radialista evangelista Charles Fuller, Henry e outros estudiosos da mesma opinião fundaram o Fuller Theological Seminary (Seminário Teológico Fuller), em Pasadena, Califórnia, centro chave para o pensamento evangéli­co. Como estadista mais velho do “novo evangelicalismo” , o pen­samento cuidadoso, trabalho de qualidade e caráter cristão de Cari Henry demonstraram a crentes e não-crentes que ainda é possível no mundo moderno adorar a Deus com a mente tanto quanto com o coração.

Embora Clive Staples (C . S .) Lewis (1898-1963) não fosse te-

Fuller Theological Seminary, duran­te o curso de sua carreira Henry tam­bém ensinou em várias instituições evangélicas importantes de ensino superior, e serviu nas mesas direto- ras de numerosas organizações. Seus escritos foram reconhecidos como contribuições distintas à epistemologia cristã, ontologia e filosofia política. De 1974 a 1986, Henry foi freqiien- te preletor e pregador, notavelmente como conferencista em geral para a World Vision International. Especi­alm ente como editor da revista Christianity Today (de 1955 a 1968, depois como editor era geral), Henry serviu como o mais importante esta­dista e porta-voz no evangelicalismo americano. Escritos mais importantes: Deus, Revelação e Autoridade, A Consciência Intranquila do Fundamentalismo Moderno e sua au­tobiografia, Confissões de um Teólo­go.

c w t

C ari Ferdinand Howard j Henry (1913- ), filho de imi-

,v i grantes alemães, foi criado numa| pequena fazenda em Long

Island, Nova York. Durante os anos da Depressão, serviu como editor e escritor para os princi­pais jornais de Nova York, in­clu sive o New York Herald Tribune e o New York Daily News. Em 1933, teve urna expe­riência de conversão e, dois anos

depois, malricuiou-se no programa de estudantes universitários em filosoíla no Wheaton College (Illino is). Por volta de 1949, Henry era ministro ba- tista ordenado e tinha recebido um Mestrado (em Ciências) Humanas (M .A .) cm Filosofia pela Wheaton College, um Doutorado em Teologia (T h .D .) pelo Northern Baptist Theological Seminary e um Douto­rado em Filosofia (Ph.D .) pela Boston University. Além do seu trabalho no

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✓OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 143ólogo ou pastor, fez provavelmente mais para restabelecer a res­peitabilidade popular do cristianismo ortodoxo no mundo de fala inglesa que qualquer outro escritor deste século. Foi criado na Igreja Anglicana, mas na época em que começou a frequentar a Oxford University (1917) tinha se tornado ateu. C . S. Lew is ganhou títu­los académicos em literatura pela Oxford University e serviu como tutor e conferencista ali e em Cambridge durante toda a sua car­reira profissional. Fora de seus escritos religiosos, ele é mais co­nhecido pelo trabalho erudito sobre a literatura inglesa medieval e da Renascença. Como ele descreve em 1931, em sua autobiogra­fia Surpreendido pela Alegria, depois de longa luta intelectual, Lewis converteu-se ao cristianismo. Talentoso como escritor e pensador de clareza e estilo significativos, Lewis ficou famoso por suas explicações racionais sobre a fé cristã. Escreveu mais de 25 livros cristãos, inclusive Cartas do Diabo ao seu Aprendiz, Cris­tianismo Puro e Simples e a série de ficção para crianças As Cró­nicas de Namia. O sucesso do filme de 1993 baseado na vida de C. S. Lew is, Shadowlands, demonstra sua popularidade e influên­cia permanentes. (Veja o box sobre C . S. Lewis no Capítulo 10.)

Os Movimentos Pentecostais e CarismáticosComo cosmovisão, o modernismo secular colide com o cristi­

anismo em sua doutrina mais básica: a realidade do sobrenatural. Nenhuma quantidade de pensamento cristão teria mantido as igre­jas pelos anos difíceis deste século não fosse por esses crentes que reconheceram a necessidade da experiência cristã e da realidade da intervenção direta e sobrenatural de Deus na vida das pessoas. Mesmo dentro das igrejas, numa cultura que tende a ser dominada pela racionalidade, um papel absolutamente essencial na forma­ção da cosmovisão cristã foi representado por pentecostais e carismáticos no século X X .

Acentuando a experiência de Deus na conversão e também uma dotação especial pelo Espírito Santo para o serviço e ministério cristãos (Atos 2.4; 1 Coríntios 12), os pentecostais trouxeram ener­gia para o evangelismo e missões mundiais. Juntando impulso e atenção nacional como resultado de um avivamento contínuo na Rua Azusa, em Los Angeles (1906-1909), as denominações pentecostais lideradas pelas Assembléias de Deus, a Igreja de Deus em Cristo e a Igreja de Deus, ganharam muitos adeptos. De certa perspectiva mundial, o pentecostalismo foi o movimento de mais rápido crescimento no cristianismo do século X X .

Impressionado pela vitalidade da vida e culto pentecostais, os membros de outras denominações também começaram a buscar experiências legítimas do poder sobrenatural de Deus. A atenção nacional que cercou o apoio público dos dons carismáticos pelo sacerdote da Igreja Anglicana, Dennis Bennett, em 1963, incenti­vou muitos membros de igrejas importantes a buscar os dons do Espírito Santo. Enquanto alguns destes carismáticos permanece­

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ram em suas igrejas originais e outros se separaram para formar denominações independentes, o crescimento deles foi fenomenal. A renovação carismática católica, nascida de experiências seme­lhantes em reuniões de oração na Duquesne University, em 1967, acrescentou milhões de cristãos ao número daqueles que tiveram um encontro direto com o Deus vivo.

É importante notar que devido à forte ênfase em missões, os movimentos pentecostais e carismáticos são agora numericamen­te maiores fora dos Estados Unidos que dentro. Isto não só tem ajudado a formar a cosmovisão cristã pela “desocidentalização” do cristianismo, mas também legou uma fé vibrante e sobrenatu­ral ao cristianismo global nesta conjuntura importante da história do mundo.

ConclusãoA história ensina muitas lições. Uma das mais importantes é

que o mundo em que vivemos como cristãos mudou consideravel­mente. A verdade cristã não muda, mas a audiência que precisa ouvir essa verdade certamente muda. Contudo, a história do cris­tianismo pode nos dar confiança quando observamos a Igreja res­ponder ao seu meio formando e reformando sua cosmovisão. Esta não é nenhuma chamada insignificante e requer grande seriedade, trabalho intelectual e maturidade cristã. A essência do cristianis­mo ortodoxo não pode ser sacrificada, porém, a menos que sua formulação seja adequada ao seu contexto histórico, perdemos nossa eficácia no mundo.

Nas últimas décadas, ganhos significativos têm sido obtidos pelo cristianismo contra o modernismo. Mas o modernismo é uma cosmovisão que já está em declínio. Como os evangélicos respon­derão aos novos desafios de nossos tempos?

Há muitas razões para estarmos esperançosos. Como pode­mos ver pelos capítulos deste livro , os cristãos evangélicos estão fazendo contribuições importantes em várias disciplinas acadé­m icas. M uitas institu ições educacionais são fo rtes, e o evangelicalismo tem uma indústria editorial em crescimento. Estamos aprendendo a integrar nossa fé e nossa aprendizagem uma vez mais. Muitos crentes estão associando a chamada de amar a Deus com a mente e a “pensar como cristãos” . Será gra- tificante ler o relato dos esforços desta geração em formar um pensamento cristão. Mas esta é uma história ainda a ser vivida e escrita.

Revisão e Questões para Discussão

1. Quem você selecionaria como a(s) figura(s) identificadora(s) central(is) da Igreja Prim itiva? Da Igreja Medieval? Da Igreja Moderna? Em que aspectos a Igreja mudou e em que aspectos permaneceu a mesma durante os últimos dois m il anos?

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/OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 1452. A cosmovisão cristã foi elaborada na bigorna do conflito.

Na sua opinião, quais os desafios mais importantes enfrentados pela Igreja em cada um dos três períodos principais?

3. A conversão de Constantino foi um evento vital na história da Igreja. De que modo você consideraria que isto teve consequ­ências positivas? Consequências negativas?

4. Em que a Igreja Medieval era mais parecida com a Igreja Prim itiva? Mais diferente? Qual foi o fator responsável por esta continuidade e estas mudanças?

5. Os monges medievais consideravam que estavam vivendo a mais alta forma de vida cristã possível (a imitatio Christi). Qual era a imitatio Christi que se percebia existir na Igreja Prim itiva? Na Igreja Moderna? Qual é a imitatio Christi para os dias de hoje?

6. Em que a Igreja Moderna é mais parecida com a Igreja Me­dieval? Mais diferente? O que é responsável por esta continuida­de e estas mudanças?

7. Martinho Lutero é reconhecido como o pai da Reforma, mas a Reforma teria acontecido sem ele? Seria inevitável cedo ou tarde?

8. Depois dos avivamentos puritano e wesleyiano, por que os evangélicos geralmente se afastaram da investigação científica e da vida da mente? Que evidência você vê que esteja ocorrendo uma renovação do “pensamento como cristão” ?

9. Os movimentos pentecostais e carismáticos são dois dos eventos mais importantes na história da Igreja do século X X . Por que estes movimentos cresceram tão rapidamente nos Estados Unidos? No estrangeiro? O que isto pode nos dizer sobre a socie­dade humana deste século?

10. Baseado em sua compreensão da cultura contemporânea, quais são os desafios mais importantes que a Igreja enfrentará nas próximas décadas? Que aspectos da cosmovisão cristã devem ser reformados ou reafirmados para responder a estes desafios?

11. Resuma pelo menos três modos nos quais os cristãos têm historicamente entendido a relação entre a fé e a razão.

Bibliografia SelecionadaG ER A LB R A U ER , Jerald C ., editor. The Westminster Dictionary of

Church History, Louisville: Westminster, John Knox, 1971. Fácil de acompanhar e de ênfase mais americana, contudo não contém bibliografia.

CA IRN S, Earle E . Christianity Through the Centuries. Edição revista e ampliada. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1981. Um dos mais interessantes de ler.

CH AD W ICK, Henry, e EVAN S, G . R „ editores. Atlas ofthe Christian Church. New York: Facts on F ile , 1987. A melhor refe­rência geográfica disponível.

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CROSS, F. L ., editor. The Oxford Dictionary ofthe Christian Church. Oxford University Press, 1990. Uma obra de referência padrão.

D O U G LAS, J. D ., editor. Who’s Who in Christian History. Wheaton, Illino is: Tyndale House Publishers, 1992. Um dicioná­rio biográfico bom.

G O N ZALEZ, Justo L . The Story o f Christianity. 2 volumes. São Francisco: HarperCollins, 1984. Outro texto muito agradável de ler.

M cM ANNERS, John, editor. Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press, 1990. Embora con­trabalançado com perspectivas britânicas e o período moderno, fornece algumas imagens visuais empolgantes.

Série Pelican da History ofthe Church. 6 volumes. Nova York: Penguin Books, 1954ss. Cada livro foi escrito por destacado peri­to em um período principal da história da Igreja. A série não é técnica, mas faz uso de excelente erudição. O sexto volume, uma história de missões escrita por Stephen N eill, é uma gratificação.

P EL IK A N , Jaroslav. The Christian Tradition. 5 volumes. Chi­cago: University of Chicago Press, 1971ss. A combinação da pro­sa melódica de Pelikan e o seu domínio do material de fonte pri­mária, fazem esta série indispensável para o desenvolvimento do pensamento cristão.

R EV ISTAChristian History. Cada número oferece uma visão geral v ív i­

da de uma pessoa ou idéia da história da Igreja. Embora escrito para o público em geral, a erudição é excelente e a bibliografia fornecida torna este recurso lugar excelente para o estudante uni­versitário começar a pesquisar.

IG R EJA PR IM ITIVAAnte-Nicene, Nicene, and Post-Nicene Fathers o f the Early

Church. Série em 38 volum es. Peabody, M assachusetts: Hendrickson Publishers, Incorporated, reimpresso em 1994. A tra­dução em inglês é obsoleta, mas adequada, e contém muitos índi­ces úteis.

FER G U S O N , Evere tt, editor. Encyclopedia o f Early Christianity. Nova York: Garland Publishing, Incorporated, 1990. Obra de referência muito importante.

BROW N, Peter. Augustine ofHippo. Nova York: Dorset Press, 1967. A melhor biografia deste importante pai da Igreja; proporci­ona uma janela maravilhosa na vida do Império Romano tardio.

IG R EJA M ED IEV A LC atho lic U n ive rsity o f A m erica S ta ff. New C atholic

E ncyclopedia . 17 vo lum es. Nova Y o rk : M cG raw H ill, Incorporated, 1967ss. Com frequência a melhor fonte para a

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/OZES DO PASSADO: TENTATIVAS HISTÓRICAS PARA FORMAR UM PENSAMENTO CRISTÃO 147Tardia Idade Média, embora escrito de uma perspectiva distinta­mente católica romana.

OZMENT, Steven. The Age ofReform, 1250-1550. New Haven: Yale University Press, 1980. Excelente pesquisa sobre a Tardia Idade Média, especificamente em relação à Reforma que se seguiu.

STR A YER , Joseph R ., editor. Dictionary ofthe Middle Ages. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1982ss. Ú til ferramenta de referência.

IG R EJA M ODERNABAINTON, Roland H. Here I Stand: A Life o f Martin Luther.

Nashville: Abingdon Press, 1950. Um clássico.B U R G ESS , Stanley M ., e M cG EE, Gary B . Dictionary of

Pentecostal and Charismatic M ovements. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1988. Esta é a referência padrão sobre este assunto.

G R EN Z , Stanley J ., e O LSO N , Roger E . 20th Century Theology: God and the World in a Transitional Age. Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1992. Na verdade, começa com o surgimento do liberalismo protestante clássico no início do sé­culo X IX ; altamente valioso por causa dos seus resumos claros e concisos do pensamento de teólogos modernos, que às vezes são difíceis.

M cGRATH, A lister E . Reformation Thought: An Introduction. Cambridge: Blackwell Publishers, 1993. Pesquisa os principais assuntos intelectuais do período.

N O LL, Mark. The History o f Christianity in the United States and Canada. Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1992. Esta é a melhor pesquisa do seu tipo.

OBERM AN, Heiko A . Luther: Man between God and the Devil. Nova York: Doubleday & Company, 1992. Um livro eminente­mente fascinante.

Notas bibliográficas1. Como resultado da controvérsia com Márcion, foi escrita a

primeira lista conhecida de escritos cristãos autorizados, o Cânon Muratoriano. A lista muratoriana inclui a maior parte de nosso Novo Testamento, embora demonstre que a autoridade de certos livros (por exemplo, Hebreus, 1 e 2 Pedro, 3 João) ainda estava em questão, provavelmente porque eram ou pequenos ou ainda não tinham ganho circulação entre a maior parte das igrejas.

2. Há uma ou duas possíveis exceções. Veja Jaroslav Pelikan, The Christian Traditions, volume 1, The Emergence ofthe Catholic Tradition (Chicago: University of Chicago Press, 1971).

3. Deve ser observado que o Taciano da comunidade cristã era membro dos encratitas, que adotavam o celibato e, talvez, até o vegetarianismo, como exigência a todos os verdadeiros crentes.

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4. Veja Kerry D. McRoberts, “A Santíssima Trindade” , in : Te­ologia Sistemática, editor Stanley M. Horton (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1996), pp. 162-168.

5. Note que aqueles que pela primeira vez chamaram Maria de “Mãe de Deus” , estavam dizendo algo sobre Jesus e não sobre Maria: Jesus é Deus, é divino.

6. Adaptado de Henry Bettenson, editor, Documents o f the Christian Church, 2.a edição (Londres: Oxford University Press, 1963), pp. 161-179.

7. Stanley M. Horton, Nosso Destino: O Ensinamento Bíblico das Ultimas Coisas (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assem­bléias de Deus, 1998), pp. 136, 137.

8. Por exemplo, o popular autor devocional Richard J. Foster foi significativamente influenciado pelos místicos cristãos. Veja Richard J. Foster, Celebration of Discipline: The Path to Spiritual Growth, edição revista e ampliada (São Francisco: HarperCollins, 1988).

9. Veja Daniel B . Pecota, A Obra Salvífica de Cristo, in: Teolo­gia Sistemática, editor Stanley M. Horton, p. 356.

10. Começando com Harvard (fundada em 1636) e incluindo Yale (1701), Princeton (1746), Dartmouth (1769) e muitas outras. Veja Mark Noll, A History o f Christianity in the United States and Canada (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1992), pp. 97-105.

11. Na Inglaterra, uma visão semelhante de Deus compeliu um grupo influente de clérigos sob a liderança de John Henry Newman (1801-1890) a deixar a Igreja Anglicana pelo ritual mais elabora­do do catolicismo romano.

12. Contudo, eles não viam a Escritura como a objetiva Pala­vra de Deus escrita, mas como escritos humanos que poderiam se tomar a Palavra de Deus, quando o Espírito falava existencial- mente. Os evangélicos consideram esta uma visão deficiente da Escritura. Veja John R . Higgins, “A Palavra Inspirada de Deus” , in: Teologia Sistemática, editor Stanley M . Horton, pp. 112, 113.

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4O Cristão

e a Ciência Natural

Lawrence T. McHargue

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150 LAWRENCE T. McHARCUE

â biologia tem sido o trabalho e a profissão de toda a minha vida. Tenho sido ou estudante ou profissional nesse campo durante a maior parte de quatro décadas. Em meus anos de

estudo e trabalho, encontrei ampla gama de respostas entre os cris­tãos para a prática da ciência moderna. Alguns indivíduos, é claro, são indiferentes. Vivem em uma era de inigualável pesquisa cien­tífica, mas ignoram a prática da ciência e usufruem desapercebi- damente de seus benefícios. Outros são entusiastas imperturbáveis da ciência. Ou pelo menos adotam entusiasticamente os produtos que a ciência moderna toma possível. Outros ainda mostram-se duvidosos, desconfiados, até hostis para com a prática da ciência.

Meditando nestas atitudes, recordo-me de como certos cris­tãos reagiram diante do caso de um amigo meu, que sentia-se cha­mado para seguir carreira na ciência natural. Alguns deram pouca importância. Outros deram apoio e expressaram encorajamento genuíno, embora, em geral, tivessem pouca idéia do que tal cha­mada pudesse requerer. Mas alguns demonstraram séria preocu­pação. Sua fé, exortaram, se acabaria sob a influência secante dos cientistas ateístas. Será que ele não percebia os riscos envolvidos em se aventurar em tal carreira? As dúvidas que aqueles irmãos demonstraram não fizeram com que aquele rapaz desistisse de seus estudos, mas lhe causaram um conflito considerável.

A experiência de meu amigo não é única entre os cristãos que têm interesse pelas ciências naturais. Independentemente de para onde se voltem, eles encontram questões difíceis e conflitos cen­tenários supostamente irreconciliáveis entre a ciência modema e a vida de fé. Não é incomum que se sintam divididos entre dois campos que parecem determinados a perpetuar uma falsa dicotomia.

Um campo é povoado por certos cientistas agnósticos ou ateístas. Na ânsia de aplicar rigorosamente o método científico a um amplo alcance de questões importantes, eles passam dos lim i­tes do método que governa a pesquisa diária. Para eles, perguntas que não podem ser respondidas pelo método científico são sem importância ou irrelevantes. Eles descartam a noção de que o uni­verso em geral (e a vida humana em particular) é governado por um propósito último, visto que tal propósito não é encontrável pelo método científico. Deles é a concepção completamente natu­ralista do universo. (Veja os Capítulos 1 e 2 para discussões .sobre o naturalismo.)

O outro campo é ocupado por certos cristãos que, embora na maioria sinceros em seus propósitos, têm uma compreensão lim i­tada dos métodos da ciência empírica moderna. Eles juntam a ci­ência e o naturalismo. Então, na pressa de rejeitar o naturalismo, fazem declarações equivocadas contra toda a ciência. As vezes argumentam que, visto que algumas perguntas importantes (por exemplo, perguntas sobre questões morais ou sobre a existência de Deus) não podem ser respondidas cientificamente, a ciência não deve ser considerada como tendo a chave para qualquer per­

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O CRISTÃO E A CIÊNCIA NATURAL 151gunta importante. (Em outras palavras, visto que o naturalismo é falso, devemos ser céticos sobre o método científico adotado pe­los naturalistas.)

Ou, considerando que o método científico é silencioso quanto à questão de se o universo é governado por um propósito último, estes cristãos às vezes deduzem que as perguntas científicas são triviais ou perigosas aos nossos compromissos de fé. Em resumo, visto que sua cosmovisão cristã os leva a rejeitar as doutrinas básicas do naturalismo, eles acredi­tam que também têm de afastar-se da prática da ciência moderna.

Para aqueles que (como meu amigo) levam a sério a vida de fé e a prática da ciência mo­derna, a tarefa é integrar os dois dentro da es­trutura de uma cosmovisão cristã. Trata-se de tarefa d ifíc il, em parte porque exige um entendimento são da Escritura e da teolo­gia, e em parte porque requer um conhecimento sólido dos assun- tos básicos relacionados à prática da ciência empírica moderna. Os mais importantes desses assuntos podem ser formulados em perguntas: Como e por que a ciência moderna se desenvolveu? Que suposições filosóficas subjazem a prática da ciência natural? Quais são o âmbito e os limites do método científico?

No restante deste capítulo, exploraremos essas questões. Nos­so propósito é demarcar um caminho que não conduza a nenhum dos dois campos antagónicos. A ciência empírica moderna não é nem a fonte exclusiva das respostas às questões importantes da vida, nem uma barreira para alcançar tais respostas; nem é uma panacéia para todas as nossas doenças, nem a ferramenta do dia­bo. E , em última análise, um método extraordinariamente podero­so, mas limitado, para promover o conhecimento humano. Entendê- la e integrá-la com sucesso em uma cosmovisão cristã requer tra­balho duro e paciência, porque os assuntos são complicados e re­sistentes a esforços ingénuos para sim plificá-los, e paciência, porque a tarefa não pode ser concluída em pouco tempo. Não pre­tendemos completar a tarefa dentro dos limites deste capítulo. Não obstante, começamos na confiança de que considerar alguns dos assuntos chaves pelo menos indicará o caminho para o tipo de integração que buscamos.

Os Precursores Gregos da Ciência ModernaA ciência natural teórica tem uma história que ultrapassa dois

m il e quinhentos anos. Começou como um tema de interesse dos filósofos gregos que precederam Platão e Aristóteles. Estes filó­sofos foram os primeiros a explicar o mundo físico de um modo racional e analítico. Eles ponderaram a natureza da matéria, as leis físicas aceitas, a astronomia estudada, começaram a formular a teoria matemática, introduziram a composição de estruturas para

A tarefa é integrar a vida de fé e a prática da ciência moderna dentro

de uma cosmovisão cristã.

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152 LA W R E N C E T. M c H A R C U E

estudar os fenómenos naturais e propuseram a primeira teoria ató­mica. Estes primeiros filósofos gregos também deram início ao processo de considerar o que chamamos anteriormente de teoria de fundo sobre o cosmo. (Veja o Capítulo 1.) Suas considerações abriram o caminho para os pensadores subsequentes estudarem o mundo sistematicamente, em vez de atribuir todos os fenómenos a forças irracionais e imprevisíveis, como os deuses e deusas.

A R ISTÓ TELESAristóteles é considerado o filósofo cujo pensamento mais in­

fluenciou o desenvolvimento da ciência natural no período clássi­co (século V ao IV a .C .). Além disso, seus argumentos podem ter influenciado grandemente as subsequentes visões ocidentais so­bre a natureza, e o que pode ser conhecido dela. Na verdade, sua perspectiva filosófica afetou profundamente o pensamento cientí­fico até a segunda metade do século X V I.

O legado intelectual de Aristóteles é monumental. E le fez con­tribuições importantes em muitos campos de aprendizagem, in­clusive filosofia, lógica, física, biologia, astronomia, teoria literá­ria, ética e teoria política.

Aristóteles admitiu quatro categorias de causas ou fatores explicativos: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final.1 Falando toscamente, a causa material é a matéria do que algo é feito. A causa formal é a essência, natureza ou estru­tura de algo. Aristóteles acreditava que podemos expressar a cau­sa formal de um objeto em uma definição. A causa eficiente é o agente ou processo pelo qual algo é feito. A causa final é o propó­sito para o qual essa coisa existe, ou o fim (grego, telos) para o qual a ação é dirigida.

^ c á to te ie d

A ristó te les (384-322a .C .), um dos filósofos mais importantes do antigo mun­do grego, também é consi­derado um dos teoristas mais importantes da histó­ria hum ana. N asceu em Estagira, cidade na região da Trácia, norte da Grécia.

Com a idade de dezessete anos, foi man­dado a Atenas para estudar na Academia de Platão, onde permaneceu até vinte anos depois da morte deste. Em 343 ou 342, o rei F ilip e I I , da M acedônia, convidou

Aristóteles para ensinar seu filho de treze anos, Alexandre (mais tarde, conhecido como Alexandre, o Grande), posição que Aristóteles manteve por vários anos. Em 335, Aristóteles voltou a Atenas, onde fun­dou uma escola chamada Liceu. Ele admi­nistrou o Liceu até 323, quando forte sen­timento antimacedônico surgiu em Atenas. Pelo fato de ter tido ligações existentes há muito tempo com os macedônios e por te­mer rep resá lia de atenienses irados, Aristóteles decidiu deixar Atenas para habi­tar em Cálcida, na ilha de Eubéia, onde mor­reu em 322.

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O C R IS T Ã O E A C IÊ N C IA N A T U R A L 153Por exemplo, considere a fabricação de uma estátua. Se for

feita de mármore, então o mármore é a causa material. Mas, claro que a estátua é mais que apenas um bloco de mármore; tem certa estrutura, uma forma prescrita. Esta é sua causa formal. Tem esta forma prescrita, porque o escultor trabalhou no mármore com um cinzel e um martelo: O atrito do cinzel impactado pelo martelo no mármore é a causa eficiente da estátua. Mas não devemos esquecer da razão que o escultor deu para a estátua. Talvez tenha sido destina­da a comemorar a vida de uma pessoa famosa; este propósito, ou fim , que explica por que foi feito, é a causa final da estátua.

Aristóteles fez contribuições importantes e duradouras para a filosofia, psicologia, lógica e vários outros ramos de investigação. Na biologia, seu esquema de classificação foi essencial para o desenvolvimento da taxionomia. Seus reinos são maravilhosamente ordenados, intricados e interrelacionados.2 Seu reconhecimento da ordem é uma suposição básica da ciência moderna. Ele procurou considerar os fenómenos físicos de modo racional e lógico, base­ado na percepção da ordem. Entretanto, o legado duradouro que deixou para as ciências deriva do seu tratamento das causas finais (como descritas acima).

A visão de que as atividades das coisas na natureza são dirigidas a um fim , a uma meta, a um propósito, dominou os relatos que ele fez dos objetos animados e inanimados. O mesmo tipo de raciocí­nio — chamado explicação teleológica— eventualmente veio a do­minar a concepção medieval da física nos séculos X II e XH I. Só na metade final do século X V I é que as explicações teleológicas na prá­tica da ciência natural foram final e decisivamente substituídas pelas explicações mecanicistas de causa e do universo físico .3

Os Precursores Medievais Europeus da Ciência Moderna

Durante os m il anos que hoje são conhecidos como período medieval (400-1400), a Igreja desfrutou de influência sem parale­lo no continente europeu. Suas tesourarias estavam cheias. Seus edifícios eram as estruturas mais impressionantes do continente. Seus líderes exerciam influência política notável e, em alguns ca­sos, franco controle sobre as autoridades civis. A maioria da popu­lação em geral trabalhava longas horas nos campos para afugentar a fome; só uma minoria escassa tinha acesso à aprendizagem. Não admira que as cadeiras da aprendizagem estavam principalmente nas instituições da igreja, como mosteiros e algumas universida­des existentes.

A erudição da Baixa Idade Média foi profundamente influen­ciada não só pelos ensinos da Igreja, mas também pela herança poderosa do Império Romano. Os estudiosos estavam fam iliari­zados com os poetas e prosadores romanos. O latim era o meio de discurso para todo escrito e discussão eruditos. O fato de que os

Teleologia. Aristóteles explicou os fenómenos naturais em termos teleológicos. A teleologia éo estudo dos fins, ou propósitos, das coisas. Dizer que uma cosmovisão é teleológica significa que a cosmovisão entende que a realidade é dirigida por propósitos últimos. O cristianismo pode ser descrito como uma cosmovisão teleológica.

O Movedor Impassível de Aristóteles. Aristóteles raciocinou que deve haver uma causa primeira, ou movedor impassível, que é eterno e inalterável e, portanto, não é feito de material físico. Ele ensinou que o movedor impassível está distante, não ocupa espaço físico e não é infinito. O movedor impassível de Aristóteles não é o Criador da Bíblia. Contudo, o movedor impassível e os propósitos ordenados (causas finais) atraíram mais tarde a atenção dos cristãos. Os estudiosos medievais, em particular Tomás de Aquino, reconciliaram o ensinamento aristotélico da filosofia e ciência com o cristianismo até o tempo de Galileu.

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154 LA W R E N C E T. M c H A R G U E

primeiros pensadores foram afetados por influências cristãs e ro­manas, significou que frequentemente procuravam reconciliar as duas tradições.

Visto que o filósofo grego Platão tinha influenciado a filosofia romana, antigas tentativas em reconciliar o pensamento cristão com o não-cristão buscava comumente reconciliar os ensinos cris­tãos com certas características da filosofia de Platão, conforme

era entendida pelos filósofos romanos. A mais notável destas primeiras tentativas foi feita por Agostinho (354-430 d .C .). (Veja o box sobre Agostinho de Hipona no Capítulo 3.) Sua in­fluência foi incomparável até o século X III.

Os estudiosos europeus da Baixa Idade Média foram grandemente influenciados pela tradição e cultura romanas. Ao mesmo tempo,

quase não tinham nenhum conhecimento direto da extraordinária herança intelectual e cultural da Grécia clássica. Mas esta herança era tão rica e variada que pouco a pouco começou a dar nova for­ma ao pensamento e vida medievais, quando os europeus se de­ram conta disso. Sua influência veio em duas fases. A primeira aconteceu nos séculos X II e X III e é conhecida como a Renascen­ça Medieval. Foi incitada pela introdução na Europa de alguns manuscritos gregos importantes. A segunda, conhecida hoje por Grande Renascença, começou na Itália no século X V e, ao final do século X V I, tinha se espalhado por todas as partes da Europa. Este grande “despertamento” representou, em parte, uma resposta a uma efusão de traduções das obras de antigos poetas, dramatur­gos, cientistas e filósofos gregos. Vamos fazer uma revisão breve destes dois despertamentos para melhor entendermos o contexto cultural, teológico e filosófico do qual o método científico moder­no emergiu.

A R e n a s c e n ç a M e d ie v a l

A Renascença Medieval dos séculos X II e X III foi principal­mente desencadeada pelo redescobrimento de textos gregos im­portantes. Entres eles, incluíam-se a obra de Euclides sobre geo­metria e a de Ptolomeu sobre astronomia, mas especialmente a de Aristóteles, sobre lógica e método científico. Até o século X II, os estudiosos europeus só conheciam estes escritos por reputação. Seu redescobrimento acrescentou novo impulso e direção à erudi­ção medieval. Em particular, os escritos de Aristóteles enfatizaram a importância da observação, experimentação e argumento lógi­co. Eles representaram um real afastamento do tipo de especula­ção abstrata típica da antiga tradição romana-platônica.

A influência do pensamento de Aristóteles na Europa não pode ser superestimada. Agiu como catalisador ao modo de pensar que uns quatro séculos depois tomaria forma como modelo geral para a investigação científica moderna. A princípio, contudo, sua influ-

A erudição da Baixa Idade Média foi profundamente influenciada

pela herança poderosa do Império Romano.

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n

O C R IS T Ã O E A C IÊ N C IA N A T U R A L 155ência primária foi sentida na teologia. Tão persuasiva era a abor­dagem de Aristóteles a uma larga gama de assuntos, que os teólo­gos (ou escolásticos; veja box sobre a Escolástica neste Capítulo) do século X II foram compelidos a reconciliar a teologia cristã com as doutrinas chaves da filosofia aristotélica. Neste período, mais do que durante qualquer outro, eles se sentiram compelidos a de­monstrar que as declarações de fé eram consistentes com as de­mandas da razão. O teólogo mais notável em procurar empreen­der esta tarefa foi Tomás de Aquino. (Veja box sobre Tomás de Aquino no Capítulo 3.) Poucas décadas depois da sua morte, em 1274, sua obra Suma Teológica tornou-se fonte primária de instru­ção em teologia.

No século X IV , os estudiosos confirmaram cada vez mais a legitimidade de buscar explicações racionais não derivadas espe­cificamente nem ligadas diretamente a considerações doutrinári­as. O esforço de Tomás de Aquino de demonstrar a harmonia entre a fé e a razão foi chamado em questão em algumas esferas. Em particular, Guilherme de Occam argumentou que as reivindica­ções religiosas devem ser aceitas puramente pela fé. Occam tam­bém rejeitou a m etafísica medieval tradicional e a teologia escolástica. E le asseverou que o conhecimento não-revelado (co-

Os teólogos do período medieval tardio são conhecidos como escolásticos. A escolástica é distinti­va na tradição cristã por seu compro­m isso com o uso da razão para aprofundar a compreensão do que se crê pela fé. Alguns dos pensadores escolásticos mais proeminentes bus­caram dar um conteúdo racional à fé. A escolástica começou com Anselmo (fins do século X I), que desenvolveu uma das provas racionais mais famo­sas e duradouras para a existência de Deus (o argumento ontológico). Abelardo enfatizou a abordagem ra­cional na consideração da questão f i­losófica mais importante do século X II, a questão de se as noções uni­versais como “género humano” e “ca­valo” são reais (existem à parte do

pensamento e linguagem humanos) ou se tão-somente são nomes para agru­par indivíduos de uma categoria. Mas o sistema teológico de Tomás de Aquino cuidadosamente debatido é considerado a maior realização da época escolástica. E distinto e notável por sua síntese da fé e da razão. Ou­tros pensadores escolásticos — parti­cularmente João Boaventura (1221- 1274), John Duns Scotus (1266-1308) e Guilherme de Occam (1285-1349)- rejeitaram a síntese de Aquino da fé e da razão. A medida que a Gran­de Renascença começou a expandir- se pela Eu rop a, os métodos escolásticos foram conseqiientemen- te rejeitados nas ciências naturais, embora continuaram a ser seguidos na política e no direito.

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nhecimento encontrado fora da Escritura) deve ser baseado na experiência. No século X IV , sua abordagem ficou bastante influ­ente, especialmente nas Universidades de Paris e Oxford. Com Occam, as disciplinas da ciência e filosofia lentamente, mas com segurança, começaram a assumir identidades independentes da teologia. Esta tendência continuou nos tempos modernos.

A G r a n d e R e n a s c e n ç a

A idéia de que a aprendizagem e o conhecimento poderiam ser independentes das doutrinas da Igreja fixou raiz mais firme du­rante a Grande Renascença dos séculos X V e X V I. A invenção da imprensa (1450) e a exploração de novos continentes (começando na década de 1480) foram desenvolvimentos chaves que aumen­taram as concepções européias do mundo. Estes desenvolvimen­tos ocorreram assim pelo estímulo de novo grupo qualificado de

*Jfcctt6enme de Occam

Guilherme de Occam (c. 1285- 1349) era membro da ordem franciscana e filósofo inglês. Os en-

j sinos de Occam representamX-,. i um afastamento importante

i | da filosofia medieval anteri-i or. Ele é mais destacado por

' % i defender uma posição cha-| mada nominalismo, a visão

y | de que somente dctcrmina-J \ \ | dos objetos perceptíveis (por

j \j exemplo, os seres humanos! individuais ou os cavalos

singulares) existem. Os uni­versais (por exemplo, a hu­

manidade ou a cavalhada) não são reais (não existem de fato) exceto na mente das pessoas e no idioma. O nominalismo de Occam estava em violento contraste com o realismo aristotélico de Tomás de Aquino, de acordo com o qual os universais exis­tem de fato, independentemente da mente das pessoas e do idiom a. Occam também é célebre por rejeitar a evidência por si mesma da noção aristotélica da causa final. Embora

acreditasse em Deus, ele não cria que a existência de Deus é evidente por si mesma ou um assunto a ser demons­trado. Consistente com esta visão, ele declarou que a razão não é competen­te para julgar os assuntos da fc. Con- seqiientemenle, ele resolveu fazer uma distinção clara entre os assuntos da razão (como o estudo da lógica) e os assuntos da fé. Esta posição tornou-se muito importante no desenvolvimen­to da investigação científica.

Occam é famoso por propor um p rincíp io de econom ia chamado comumente de “navalha de Occam” : “O que pode ser feito com menos é leito em vão com mais” . O significa­do desta declaração é que em qualquer explicação dos fenómenos naturais, a explicação ou hipótese mais simples possível, que seja consistente com os fatos, deve ser a preferida. Qualquer explicação que seja incompatível com os fatos ou observações deve ser re­jeitada. A navalha de Occam perma­nece como característica básica do método científico para os dias atuais.

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O C R IS T Ã O E A C IÊ N C IA N A T U R A L 157profissionais - homens cujo espírito inquiridor os levou para mui­to além das paredes das instituições eclesiásticas. A medida que seu número aumentava, começaram a trocar idéias por cartas e a se visitarem.

Estes novos homens da cultura, conhecidos como humanistas, saíram à frente na tradução de grande quantidade de obras gregas clássicas além das de Aristóteles. Também inspiraram nova confi­ança no intelecto humano e despertaram um novo senso do valor e dignidade dos seres humanos individuais.

Em parte como resultado da confiança crescente e influência liberadora de homens instruídos da Renascença, duas revoluções desabrocharam silenciosamente. A primeira começou dentro da Igreja e tornou-se pública em 1517, quando Martinho Lutero pre­gou suas 95 Teses na porta da igreja em Wittenberg. (Veja box sobre Martinho Lutero no Capítulo 3.) A segunda foi incitada pelo trabalho de Nicolau Copémico, astrónomo polonês que desenvol­veu argumentos que demonstravam que a terra girava em volta do sol. Sua denominada teoria heliocêntrica do movimento planetá­rio desafiou a crença tradicional de que os planetas e as estrelas giravam ao redor da terra, ensinado pelo astrónomo alexandrino Ptolomeu (século I I d .C .).

t i Sxftíonação' alem da SwiofeaM ais ou menos na época em que

Colombo alcançou as índias Ocidentais, a exploração ampliou grandemente a visão européia do mundo. Impressionante quanti­dade de animais e plantas estranhas previa­mente desconhecidas foi trazida para a Eu­ropa do hemisfério ocidental, Á frica, índia e Ásia Oriental. Alimentos como milho, fei­jões, amendoim, pimenta, abóbora, tomate, batata, batata doce, mamão, manga e abaca­xi chegaram à Europa pela primeira vez. Os naturalistas europeus perceberam gradual­mente que o mundo continha imensamente mais tipos de seres vivos do que jamais ti­nham imaginado, e que seus esquemas de classificação eram calamitosamente inade­quados. A necessidade de classificar grande quantidade de seres vivos foi fator principal que fez com que a taxionomia, a ciência da nomeação e classificação, fosse o primeiro ramo da biologia a ser sistematicamente or­

ganizado. A mesma necessidade levou, em última instância, ao colapso do conceito de “espécies fixas” .

As viagens ao hemisfério sul com suas estações invertidas e grupos diferentes de animais e plantas acabaram com a noção medieval de que era impossível alcançar as partes meridionais do mundo. Os euro­peus observaram os céus do hemisfério sul com estrelas mais luminosas e mais nume­rosas do que poderiam ver em suas casas. A descoberta de terras distantes, a grande quantidade de animais e plantas previa­mente desconhecidos, os povos cultural­mente diversos e as visões dos céus meri­dionais brilhantes dispersaram a noção de uma terra auto-suficiente, que tem uma ordem fixa e relativamente bem entendi­da. As velhas maneiras de ver o mundo, a natureza e a ciência começaram a mudar para sempre.

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eâ&tw&j4me*tto4, /íútn^momía^

Os principais avanços na as­tronomia e física influenciaram profundamente todos os ramos da ciência à medida que a era moder-

na despontava. Nicolau Copémico

J j ,s, ■' (1473-1543), astrô-- í nomo polonês, esta-

M r <' '■ beleceu o fundamen-'■% to para a astronomia

■ * moderna com sua te-_________________ oria heliocêntrica do

movimento planetário. Esta teoria foi apresentada por ele pela pri­

meira vez em cerca de 1512 (tal­vez mais cedo), numa forma re­duzida em certo manuscrito iné­dito intitulado “ Commentario-

lus” . A ver­são m ais completa e apurada fo i p u b lica d a em 1543 em seu trabalho que marcou

a história De n wlui mibus orbium coelestium.

A concepção tradicional presumia que a terra era o centro do universo. Até os dias de Copérnico, essa teoria havia sido sancio­nada pela autoridade combinada de Aristóteles, Tomás de Aquino e a interpretação comumente aceita da Escritura. No início da dis­cussão, a evidência empírica disponível não favoreceu decisiva­mente nem a teoria tradicional nem a teoria de Copérnico. Porém, a simplicidade matemática da teoria de Copémico comprovou ser persuasiva. Copérnico cria que Deus tinha imposto a ordem e a harmonia em sua criação, e cria que essa ordem fora revelada na linguagem da matemática.4 O apoio à teoria revolucionária coperniana cresceu durante o século X V I. Concorrentemente, a concepção medieval da física, baseada em grande parte nos escri­tos de Aristóteles, perdeu sua influência persuasiva sobre os pen­sadores europeus. No século X V II, foi deposta.

O Aparecimento da Ciência ModernaOs procedimentos e modelos de pensamento que eventualmente

ordenaram a ciência empírica moderna começou a tomar forma no século X V com Copémico e continuou no século X V I com outros astrónomos e matemáticos. A segunda metade do século X V I viu o começo da era moderna e a firme substituição da escolástica aristotélica pela ciência moderna. Esta substituição do método investigador de Aristóteles pela investigação científica, culminando com o trabalho de sir Isaac Newton (1642-1727), é marcada por várias mudanças importantes e profundas:

1. A observação e o raciocínio quantitativo substituíram a au­toridade. Até fins do século X V I, uma forma comum do argumen-

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Johannes Kepler (1571-1630), luterano ardente, defendeu a teoria de Copérnico cerca de sessenta anos depois. Kepler divergia dos as­trónomos anteriores em sua lealda­de resoluta aos dados observados. E le aceitou a validez dos dados empíricos sobre a teoria prevalecen­te do mundo antigo. Afirmou que qualquer hipótese que não buscasse retratar a verdade é inadequada para entender o universo de Deus.

Kepler trabalhou nos princípios do movimento planetário usando da­

dos coletados por Tycho Brahe (1546- 1601), astró­nomo dina­marquês. Me­dida e dados precisos fo­

ram estabelecidos como a base para a verdade no reino físico. Kepler afirmou que as observações do universo são fidedignas, porque Deus tinha se revelado na Sua criação.

to erudito para uma tese era acumular citações apoiadoras rele­vantes e referências de fontes autorizadas, como textos clássicos e medievais, especialmente os de Aristóteles ou dos pais da Igreja. Porém, a astronomia e a matemática requeriam um tipo diferente de prova, e o seu desenvolvimento foi importante para o processo de substituição do argumento da autoridade pela observação dire- ta e o raciocínio quantitativo.

Francis Bacon exortou os pesquisadores a rejeitarem os argu­mentos baseados na autoridade, e a passarem a fundamentar suas conclusões estritamente na experiência e no estudo direto da natu­reza. Esta abordagem fomentou o uso da observação empírica e forneceu forte incentivo para o desenvolvimento do método expe­rimental.5 Assim , Bacon reconheceu que a aquisição do conheci­mento científico avançaria incrementadamente, e seria realizada por muitas pessoas. E le entendia que a experimentação científica seria necessária para desenvolver e prover sustentação para as novas idéias na ciência. Bacon defendeu o estabelecimento de um programa de pesquisa c ie n tífica . Também esboçou uma metodologia necessária para produzir resultados práticos, embora seja justo dizer que ele estava otimista demais sobre a capacidade do método render resultados contínuos e fidedignos.6

Sua ênfase na observação assinalou mudança significativa no pensamento ocidental. Embora seu método proposto de adminis­trar a pesquisa careça de direção quando visto pelos padrões de hoje, suas propostas para pesquisa abriram o caminho para pes­quisadores subsequentes abordarem o mundo físico em uma for­ma empírica mais sistemática, e sem as restrições dos argumentos da autoridade.

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2. Pensar em termos de analogias qualitativas foi substituído por argumentar puramente em termos quantitativos. Os estudio­sos medievais concebiam o universo como um todo hierárquico e orgânico, com níveis diferentes de coisas existentes - níveis dife­rentes de existência, por assim dizer. Entre esses níveis de exis­tência, entre o universo m acrocósm ico e a humanidade microcósmica, havia afinidades ou correspondências. Dessa ma­neira, os eventos naturais e sociais eram interpretados como aná­logos a certos processos no corpo humano ou num organismo vivo. Assim , por exemplo, as tempestades eram vistas como expressões da ira divina, e a relação entre o rei e a nação como moldada na relação entre Deus e sua criação. Durante o século X V I, o modelo hierárquico e a argumentação analógica que lhe acompanhava fo­ram substituídos por um modelo quantitativo.

Galileu G alilei fo i proeminente e influente na tentativa de quantificar a natureza. De acordo com ele, a ciência devia se pre­ocupar em ver-se a si mesma exclusivamente com as propriedades mensuráveis do mundo, como tamanho, forma e movimento. O conhecimento da natureza, pensou ele, devia estar baseado em dados que são transformados a partir dos sentidos para a forma numérica. Na verdade, ele recusou trabalhar com dados que não pudessem ser reduzidos à forma numérica.7 A abordagem quanti­tativa aos fenómenos naturais feita por Galileu e outros investiga­dores que sustentavam a mesma opinião não apenas minou a v i­são hierárquica do universo, mas também acelerou a aceitação de

É creditado a Francis Bacon (1561-1626) a influência no desen­volvimento da ciência moderna, por

ele ter enfatizado a observa­ção a e experiência, em vez de argumentos baseados em autoridade. Mas ele também é conhecido por seu desejo de alcançar resultados prá­ticos. Bacon tomou nota minuciosa de vários fatos importantes da vida diária européia: condições primiti­vas de vida, alta taxa de mortalidade, elevada inci­

dência de doenças infecciosas e co­municação e transporte lentos e in­

certos. Preocupava-lhe o fato de que o conhecimento científico tivesse produ­zido tão pouco poder, ou controle, so­bre a natureza. E le acreditava que Deus tinha dado aos seres humanos o domínio sobre a natureza, contudo viu pouco domínio sendo exercido. Bacon era c rític o da c iên cia aristotélica e queria adquirir conhe­cimento que pudesse ser usado para restabelecer o domínio que tinha sido perdido pela hum anidade em Génesis 3. Ele é creditado com o re­conhecimento de que uma carência de conhecimento sobre o mundo na­tural era fator importante nos proble­mas da Europa.

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sua substituição: um modelo cuja linguagem é a matemática. Se­gundo este modelo, todas as coisas naturais existem no mesmo nível, sujeitas às mesmas leis físicas e diferindo apenas nos mo­dos quantitativos. Claro que a aceitação destas mudanças em mo­delos de pensamento aconteceu no decorrer de longos períodos de tempo e aos arrancos.

3. Uma mudança radical ocorreu no modo como os europeus explicavam os fenómenos naturais. Desde o prim eiro despertamento na Europa no século X II, o relato de Aristóteles de quatro tipos de fatores explicativos, ou causas (material, formal, eficiente e final) dominou o pensamento erudito. Destes, a causa final (explicar coisas em termos dos seus fins ou propósitos) foi considerada a forma mais fundamental de explicação. Muitos pen­sadores medievais empregaram a causa final para explicar os even-

a íc íe c c t fa t c le i

Galileu G alilei (1564-1642), as­trónomo, matemático e físico italia­no, alterou significativamente a abor­dagem da ciência com relação ao mundo físico. Foi ele quem disse que o conhecimento dos fenómenos na­turais deve ser baseado em dados que possam ser reduzidos a uma forma num érica. Quando tinha apenas dezenove anos, descobriu o isocro- nismo — o princípio de que cada os­cilação de um pêndulo leva o mesmo tempo, apesar de mudanças na amplidão. Logo depois tornou-se co­nhecido por inventar um instrumento chamado balança hidrostática, e por ter escrito um tratado sobre o centro da gravidade dos corpos cadentes. Até os dias de Galileu, presumia-se que se uma coisa pesasse o dobro que outra, então cairia duas vezes mais ra­pidamente. Ele descobriu experimen­talmente que isto não ocorria. Os tra­dicionalistas reagiram com hostilida­de a esta conclusão, porque contra­d iz ia o ensinamento aceito de Aristóteles. Galileu também desco­briu que o trajeto de um projctil e uma

parábola, e não uma linha direta. A lém disso, ele é reconhecido como o cien­tista que se antecipou às leis de Isaac Newton sobre movimento. Em i 1609, ele construiu o primeiro i telescópio astronómico. Sua pes­quisa com este instrumento levou- o à descoberta dos quatro satéli­tes maiores de Júpiter, como tam­bém a composição estelar da Via Láctea. Em 1632, publicou um trabalho que apoiava a teoria coperniana em lugar da teoria ptolemaica tradicional do movi­mento planetário. Sua investigação sobre estes assuntos marcou ponto decisivo no pensamento científico e filosófico. Mas as autoridades religio­sas não viram suas descobertas de modo favorável. Em 1633, foi trazido diante da Inquisição, cm Roma, onde foi forçado a renunciar a todas as suas crenças e escritos que apoiavam a teo­ria coperniana.

Trabalhos mais importantes: Diá­logo Relativo aos Dois Principais Sis­temas do Mundo (1632) e Diálogos Re­lativos a Duas Novas Ciências (1638).

Ufa

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Ex nihilo: termo em latim que significa "do nada".

tos físicos, desde a queda das pedras até às órbitas dos planetas, em termos do seu propósito divino. Contudo, esta visão teleológica de explicação pouco a pouco abriu caminho para um relato mecanicista da causa primeira, e um modelo interpretativo geral que via tudo do universo físico como uma vasta máquina.

A pessoa que deu expressão mais sistematizada e eficiente ao modelo mecânico foi S ir Isaac Newton. Por exemplo, para expli­car o movimento dos corpos celestes como também dos objetos terrestres, Newton propôs uma hipótese da gravitação universal, e três leis de movimento dentro da estrutura de um modelo unifica­do da física. Num afastamento radical da tradição aristotélica, ele levantou a hipótese de que as leis físicas e os processos são aplicá­veis uniformemente ao universo inteiro.

O próprio Newton cria que o universo fora criado ex nihilo por um Deus transcendente, e que as leis que o regulam dão evidência do desígnio de Deus.8 Em outras palavras, embora Newton admi­nistrasse suas experiências rigorosamente de acordo com os mé­todos da ciência e sem referência a propósitos últimos (teleologia), ele subscreveu uma cosmovisão mais ampla do que permitia tais propósitos. Porém, muitos dos seus seguidores promoveram uma cosmovisão completamente naturalista, de acordo com a qual o universo é regulado somente por leis mecânicas impessoais.9 Eles não reconheciam nenhum propósito último, divino ou o que seja. Pelo contrário, afirmavam que o universo é uma máquina muito extensa e complicada, cujos movimentos são devidos a leis que podem ser empiricamente descobertas. Para eles, a realidade esta­va confinada a fenómenos mensuráveis, como peso, massa, velo­cidade, altura, largura e força física.

\e&coêenfa& t7Moden*ta& eta^M m cw çtz e 'Pentodo* ‘THoderuta ‘la ícó al

Várias descobertas científicas feitas du­rante ou logo após a vida de Galileu ajuda­ram a acabar com a visão medieval da natu­reza (veja o Item 3, neste Capítulo), sobre­tudo na ciência física. William Gilbert (1540- 1603) demonstrou que a terra é magnética; Jean-Baptiste van Helmont, médico cristão, descobriu o gás e a química pneumática en­quanto procurava meios de aliviar o sofri­mento. W illiam Harvey (1578-1657) demons­trou a circulação do sangue no corpo humano. Robert Hooke (1635-1703) foi o primeiro a

observar as células. Ele também inventou e melhorou vários instrumentos científicos. Gassendi, padre francês, reavivou a teoria ató­mica de Demócrito, e desta forma influenciou os cientistas mais recentes. Cada um destes confiou em cuidadosas observações e expe­rimentação para chegar às suas conclusões.

Para informação adicional, veja J . D . Bem al, Science in History, volume 2, The Scien lific and Industria l Revolution (Harmondsworth: Penguin Books, 1969), pp. 434-439, 459-464.

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A prevalência crescente desta interpretação naturalista do uni­verso representa mudança importante no pensamento ocidental. Porém, apesar de seu crescente apelo ter ocorrido nos círculos intelectuais concorrentemente com o surgimento da ciência mo­derna, não é o resultado direto do pensamento científico. Na ver­dade representa uma cosmovisão cuja fonte acha-se além do âm­bito do método científico moderno.10

O Método CientíficoAté aqui discutimos certos desenvolvimentos históricos que con­

duziram ao aparecimento da ciência moderna. Também discutimos algumas das mudanças importantes e profundas que marcaram a tran­sição dos métodos investigadores empregados pelos pensadores me­dievais (influenciados por Aristóteles) para o tipo de investigação posta em movimento durante a Renascença e aprimorada nos séculos se­guintes, conhecido como investigação científica moderna. Mas, em­bora tenhamos identificado algumas de suas características centrais, ainda não descrevemos seus princípios governantes e metodologia. Vamos nos dedicar agora a essa tarefa.

‘ Jà a a c ‘V le c u to tt

Sir Isaac Newton (1642-1727) era matemático inglês e fís ic o . Fo i inquestionavelmente o primeiro cien­tista de sua era e é considerado uma das mentes científicas mais sagazes de todos os tempos. De 1669 até 1701, ensinou m atem ática na Cambridge University. Em meados da década de 1660, descobriu o cálculo concorrentemente com W. G. Leibniz, mas independente dele. Durante o mesmo período, também enunciou a lei da gravitação universal, e desco­briu que a luz branca é composta de todas as cores do espectro. Na obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, demonstrou como seu prin­cípio da gravitação universal explica­va os movimentos dos corpos celes­tes e a queda de corpos na terra. A mesma obra explica a dinâmica (in­clusive as três leis de Newton sobre movimento), a mecânica dos fluidos,

os movimentos dos planetas e seus satélites, os movimentos dos cometas e as marés dos oceanos. Em uma pu­b licação de 1704, Óptica, Newton argumentou que a luz é composta de partículas. Sua te­oria dominou o campo da ótica por mais de um século, até ser suplantada pela teoria da onda de luz. (No século X X , ambas teo­rias foram combinadas na teoria dos quanta.) Além de suas prin­cipais realizações físicas, ele construiu o primeiro telescópio de reflexão, antecipando o cálculo das variações, e devotou atenção conside­rável à alquimia, teologia e história. Serviu como presidente da Royal Sociely de 1703 até sua morte.

Trabalhos principais: Philosophiae naturalis principia mathematica (Prin­cípios Matemáticos da Filosofia Na­tural) (1687) e Óptica (1704).

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ntífico requer metodologia consistente e resulta- 3. Desde a Renascença, os cientistas pouco a pouco rocedimentos pelos quais poderiam obter conhe- dar constantemente o universo fís ico . Esta imada método científico, envolve a integração de

car resultados.11ientífica não pode nem garantir os resultados es- ssegurar o progresso em adquirir conhecimento specíficos. Mas, como certo filósofo da ciência ium cientista competente faz experiências insen- íejadas” .12 Em outras palavras, a pesquisa cientí-

iade informada dos investigadores, as teorias ci- linantes e as restrições do método científico. Os ssados por uma questão ou problema particular, :ir primeiro o status atual do conhecimento sobre ;s de administrar qualquer experiência. Sendo as- tempo considerável lendo jornais, monografias, í eletronicamente armazenado para averiguar o ;imento atual nas áreas de seu interesse. Então, tarefa sistematicamente e comunicar aos outros, • cuidadosamente o problema no qual enfocarão i tarefa requer nomenclatura precisa para facilitar :lara e sem ambiguidade. Muitos dos termos e desta nomenclatura derivam tipicamente de teo- s nas várias ciências.tisiderar o que é conhecido sobre o problema sob e esclarecer a questão exata ser investigada, os

cientistas constroem uma explicação chamada hipótese. Uma hipótese aceitável tem der sa­tisfazer ao menos cinco critérios.

Relevância. Nenhuma hipótese é jamais proposta para o seu próprio bem. É proposta como explicação a algum fato ou outro. Por­tanto, para ser aceitável, deve ser relevante ao fato que se pretende explicar. A relevância é

determinada por fatores lógicos. “O fato em questão deve ser dedutível da hipótese proposta - quer da hipótese em si junto com as leis causais presumidas como altamente prováveis, ou destas junto com certas suposições sobre condições iniciais particulares” .13

Testabilidade. A marca registrada de uma hipótese científica (assim contra uma não científica) é que ela pode ser testada. O

fica não é fortuita. É guiada por um corpo acumulado de conheci-

dois elementos distintos, um empírico e um dedutivo. O elemento empírico requer que os investigadores na verdade examinem os fenómenos naturais, em vez de somente especular sobre eles. O elemento dedutivo (consistindo nas regras da matemática e da ló­gica) coloca restrições formais na pesquisa e explicação, fornece ferramentas para análise e predição, e constitui a linguagem for-

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critério de testabilidade significa que existe a possibilidade de se compor uma observação que tenderia a confirmar ou refutar a h i­pótese. Claro que quando dizemos observação, não queremos di­zer necessariamente observação direta. Com frequência o critério de testabilidade só pode ser conhecido indiretamente - por exem­plo, quando uma hipótese é enunciada em termos de tais entida­des não observáveis, como as ondas eletromagnéticas. Em todo caso, para uma hipótese qualificar-se como hipótese científica, deve em última instância estar de algum modo ligada com os fatos da experiência.

Compatibilidade com Hipóteses Previa­mente Bem Estabelecidas. Este critério não só é d ifícil de descrever, mas também d ifícil de satisfazer. No mínimo, compatibilidade signi­fica compatibilidade lógica. A medida que te: vez mais fatos da experiência, os cientistas objetivam alcançar um sistema de hipóteses explicativas. Claro que tal sistema é impos­sível se as hipóteses são logicamente incompatíveis entre si. As­sim, no mínimo, qualquer nova hipótese deve ser compatível com hipóteses previamente estabelecidas, no sentido de ser logicamente consistente com elas. Uma nota de atenção está na ordem aqui.

A tarefa da ciência não é simplesmente fazer hipóteses novas para conformar teorias velhas. A idade de uma hipótese não deter­mina sua verdade. A menos que isto seja assim, a ciência não ofe­rece nenhum prospecto de fazer progresso no avanço do conheci­mento. A presunção a favor de hipóteses mais antigas acha-se so­mente quando receberam confirmação extensa. Quando uma hi­pótese mais antiga e uma mais recente têm confirmação extensa, e quando as duas hipóteses são incompatíveis entre si, a única espe­rança de uma resolução final do conflito jaz com a prova empírica contínua.

Poder Explicativo ou Predito. O poder explicativo ou de pre­dição de uma hipótese refere-se à sua capacidade em apoiar dedu­ções sobre fatos observáveis. Quanto mais observáveis os fatos que podem ser deduzidos de uma hipótese, maior é o seu poder explicativo ou de predição. Este ponto pode ser entendido recor­dando nossas referências anteriores a Kepler, Galileu e Newton. A hipótese de Newton da gravitação universal, junto com suas três leis do movimento, tiveram maior poder explicativo e de predição do que as hipóteses de Kepler ou Galileu. Tiramos esta conclusão baseando-nos no fato de que a hipótese de Newton permitiu aos cientistas explicarem e predizerem tudo o que foi explicado e pre­dito por Kepler e Galileu, e muito mais.

Simplicidade. Este critério da ciência moderna é diretamente atribuível ao estudioso medieval Guilherme de Occam (veja box sobre Guilherme de Occam neste Capítulo.) Em sua versão mo­derna, o princípio de Occam de economia - a navalha de Occam,

Visto que testar jaz no coração do método científico, o desígnio experimental é criticamente

importante.

im explicar cada

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como é muitas vezes chamado - diz que se duas hipóteses são igualmente relevantes aos fatos, testáveis e compatíveis com as hipóteses previamente bem estabelecidas, então a mais simples das hipóteses deve ser preferida sobre a mais complexa.14

Quando formulada, a hipótese, ou parte dela, é testada experi­mentalmente. Visto que testar jaz no coração do método científi­co, o desígnio experimental é criticamente importante. No desíg­nio experimental mais simples e mais direto, uma experiência ade­quadamente controlada tem de ter dois sujeitos: um sujeito con­trole e um sujeito experimental. Todas as variáveis, permanecem as mesmas para ambos, com exceção de uma variável que é mani­pulada no sujeito experimental. Os cientistas tomam nota do efei­to da mudança naquela variável. As melhores experiências são projetadas de forma que, mudando uma variável, venha a testar a hipótese. Se os resultados de manipular a variável escolhida são incompatíveis com a hipótese, a hipótese é rejeitada. É mantida (embora não necessariamente de todo aceita) se os resultados ex­perimentais obtidos seguirem um padrão predito para isso. Como acompanhamento, os cientistas executam experiências adicionais para testar a validade de uma hipótese.

Antes de concluir nossa breve descrição do método científico, temos de tratar de dois tópicos adicionais: a lei da natureza e a teoria científica.

A lei da natureza• A expressão lei da natureza (também cha­mada lei científica ou lei experimental) é amplamente usada, mas não tem uma definição técnica precisa. Até os cientistas e filóso­fos da ciência não chegaram a um consenso sobre seu uso exato. Entretanto, alguns pontos gerais ainda podem ser feitos. Primeiro, concorda-se que a expressão é aplicada a uma considerada classe de declarações universais, que têm a ver com os eventos na natu­reza.15 Assim , como o nome sugere, as leis da natureza são sobre os fenómenos naturais e não sobre os fenómenos lógicos ou mate­máticos. Segundo, uma lei da natureza enuncia alguma ordem sis­temática em que subjaz os eventos naturais. Em outras palavras, uma lei da natureza enuncia um padrão que, caso contrário, pode­ria parecer eventos sem conexão. Terceiro, uma lei da natureza expressa um padrão que se estende além dos dados imediatos de uma série de experiências; formula algo universal. Finalmente, uma lei da natureza é elástica.

O que isto significa pode ser melhor explicado notando que as leis da natureza ficam incorporadas na estrutura de uma teoria in­clusiva. Mas também quando isto acontece, não perdem necessa­riamente a singularidade ou distinguibilidade do seu poder explicativo e de predição. Por isso frequentemente sobrevivem ao desaparecimento da teoria maior e acham lugar dentro da estrutu­ra da teoria sucessora. Neste sentido, pode-se dizer que são elásti­cas. Como ilustração, o século X X viu o desaparecimento da teo­ria newtoniana geral do universo. Ao mesmo tempo, as três leis de

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Newton sobre movimento ainda são comumente aceitas como vá­lidas para a maioria das áreas da física.

Teoria. O termo teoria é muitas vezes mal compreendido por aqueles que têm pouca familiaridade direta com a ciência. Por exemplo, uma interpretação equivocada comum entre os não es­pecialistas fora da comunidade científica, é que uma teoria é ape­nas uma especulação fantasiosa, uma idéia moderna ou a suposi­ção desapoiada de alguém. De fato, nos círculos científicos, dizer que uma explicação alcançou o status de uma teoria é dizer algo bastante significativo a res­peito. Na ciência, uma teoria possui poder explicativo e de predição muito mais amplo do que uma hipótese ou uma lei da natureza. Uma teoria científica fornece uma perspectiva vasta do mundo natural, que faz muito mais que des­crever como funciona.

Hipóteses e leis podem ser enunciadas em uma única proposição ou fórmula matemática. As teorias, ao contrário, são normalmente expressas em várias declarações relacionadas que são mais gerais e inclusivas. As teorias cien­tíficas mais inclusivas reúnem considerável variedade de leis experimentais e dados discrepantes em um todo coerente. Po­dem fazer isto, porque são modelos essencialmente explicativos (com frequência, matemáticos) para ligar as leis da natureza umas com as outras, e para vastas quantidades de dados que abrangem dados previamente inexplicáveis. É certo que as teo­rias científicas estão sujeitas a confirmar ou descontinuar a evi­dência empírica. Mas pelo fato de serem modelos essencial­mente explicativos que se espera se relacionem com larga vari­edade de fenómenos, são também julgados com base em sua compreensibilidade, coerência global e poder de predição.

As pressuposições importantes que subjazem na ciência natural são as

relacionadas com o método daciência em si.

Pressuposições Básicas que Subjazem na CiênciaUma pressuposição é algo dado por certo em uma discussão,

argumento ou campo de investigação. Considerando que as pres­suposições formam os pontos iniciais da argumentação em qual­quer disciplina, não são em geral os objetos de prova. Contudo, sua presença é importante porque afetam tanto a maneira na qual as atividades em uma disciplina são executadas, quanto as conclu­sões que serão obtidas. As vezes, na verdade, determinam os re­sultados dos processos do pensamento em uma disciplina.

As pressuposições importantes que subjazem na ciência natu­ral são as relacionadas com o método da ciência em si. Estas pres­suposições são comuns a todos os cientistas, cristãos ou não-cris- tãos. Aqui mencionaremos com brevidade três das pressuposições mais importantes que subjazem no método científico.

A ordem na natureza. A aplicação do método científico presu­

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me que as coisas no universo comportam-se de um modo ordena­do. A ordem mostra-se em padrões e regularidades que podem ser descobertos. Se a suposição da ordem na natureza estiver correta, a natureza será inteligível e sujeita a investigação. Se estiver in- correta, o empreendimento científico sucumbe.

A uniformidade na natureza. A pressuposição da uniformida­de significa que as leis da natureza são válidas sobre o universo inteiro no espaço e no tempo. Por exemplo, presumimos que os

instrumentos enviados para o espaço sideral, muito distante de nossos ambientes familiares na terra, operarão e nos mandarão de volta da­dos fidedignos, porque nossos princípios de física e química serão os mesmos para onde quer que os enviemos. Assim como na pressu­posição da ordem na natureza, a pressuposi­ção da uniformidade não pode ser estabelecida

conclusivamente. Não obstante, seria impossível administrar es­tudos significativos, se a natureza fundamental do universo vari­asse de lugar para lugar.

A singularidade das causas. Trata-se de pressuposição funda­mental no estudo da natureza que os eventos não ocorrem espon­taneamente, mas apenas sob certas condições. Um tipo de condi­ção é a condição necessária: uma circunstância em cuja ausência o evento não pode acontecer. O oxigénio é uma condição necessá­ria para a combustão, visto que na ausência de oxigénio não pode haver combustão. Outro tipo de condição é a condição suficiente: uma circunstância em cuja presença certo evento tem de aconte­cer. O oxigénio sozinho não é condição suficiente para que a com­bustão ocorra. Contudo, quando virtualmente qualquer substância é elevada a certa temperatura lim iar na presença de oxigénio, a combustão (ou outra forma de oxidação) ocorre.16

Assim , a substância que alcança a temperatura lim iar na pre­sença de oxigénio constitui a condição suficiente para a com­bustão daquela substância. Claro que é possível haver várias, até muitas condições necessárias para a ocorrência de um even­to. Além disso, todas estas condições necessárias devem ser inclusas na condição suficiente para o evento. Mas o que tudo isso nos diz sobre as causas e efeitos na natureza? Sim ­plesmente isto : Se identificam os a causa com a condição su­ficiente e consideramos a condição suficiente para um even­to como a conjunção de todas as condições necessárias para aquele evento, então somos levados à conclusão de que há uma causa única para cada efeito. C laro que singularidade não im plica em sim plicidade. A causa pode ser bastante com­plexa e envolver numerosos fatores. Mesmo assim, a pressu­posição prevalecente entre os cientistas é que existe só um único conjunto de fatores que pode produzir o efeito em questão.

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É concepção popular errónea que determinado evento pode ter sido o resultado de qualquer número de

causas alternativas.

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A pressuposição da singularidade das causas parece contra- intuitiva para muitos. De fato, é concepção popular errónea que determinado evento pode ter sido o resultado de qualquer número de causas alternativas. A morte de alguém, especulamos, poderia ter sido o resultado de envenenamento, ataque de coração, aciden­te de automóvel, ferimento produzido por bala. Então, por que assume uma causa única? Porque, dirão os cientistas, se sujeita­mos um efeito (a morte do sujeito, digamos) a escrutínio cuidado­so, e se especificamos esse efeito com precisão, a suposta plu­ralidade de causas evaporará e encontraremos a causa única.

O Âmbito e os Limites da Ciência NaturalApresentar razões que sustentam que a ciência moderna nos

afetou de maneira muito profunda, de longo alcance e benéfica, é fácil. Para começar, desde seu nascimento na Renascença, a ciên­cia moderna tem introduzido um grau de precisão e foco no co­nhecimento humano que se desconheciam nos períodos clássico e medieval. Especificamente, nos proporcionou a capacidade de res­ponder a certos tipos de questões com grau alto de probabilidade. Como ilustração simples, podemos indicar os caminhos em que os cientistas construíram um argumento, pois se sabe que desde fins da década de 1950 o uso de tabaco é prejudicial ao usuário. Usado como indicado, pode ser letal. Quando o primeiro relatório do diretor nacional de saúde americano foi lançado no início da década de 1960, os representantes da indústria tabaqueira insisti­ram que as evidências contra o uso do tabaco eram escassas e equivocadas.17 Mas a pesquisa científica contínua, feita durante as décadas seguintes, levou o debate muito além do âmbito da conje- tura e especulação. Hoje até os mais ardentes porta-vozes da in­dústria tabaqueira não disputam as conclusões científicas sobre os efeitos prejudiciais do tabaco em seus usuários.

A ciência moderna também permitiu e facilitou aplicações com as quais dificilmente alguém poderia ter sonhado. A ficção cientí­fica das décadas de 1940 e 1950 parece hoje exótica e humoristi­camente primitiva comparada com as conquistas e avanços de hoje. Os progressos na tecnologia dos computadores, a facilidade e se­gurança das viagens, as redes de comunicação mundiais intensifi­cadas, o controle e erradicação de muitas doenças transmissíveis, os melhoramentos dos produtos médicos e farmacológicos, que prolongam a vida e melhoram sua qualidade - estes e miríades de outros exemplos demonstram o poder da ciência moderna em afe- tar amplamente nossas vidas pelo conhecimento específico e a tecnologia que o torna possível.

O poder da ciência moderna está diretamente relacionado com a aplicação rígida do seu método, sua abordagem quantitativa à natureza e seu enfoque tacanho nos processos das causas eficien­tes (mecânicas) dos eventos na natureza. Mas estas fontes do seu

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poder também implicam em certas limitações notáveis. Mencio­naremos sucintamente três delas aqui. Todas se relacionam com a incapacidade da ciência de fornecer a direção última para suas próprias atividades.

A primeira limitação pode ser obtida considerando a história da ciência. É tentador ver a história da ciência moderna na quali­dade de produtora de um corpo de conhecimentos coerente, inter­ligado e continuamente em expansão. Nossa descrição anterior

dos desenvolvimentos na ciência desde a Re­nascença pode até implicitamente apoiar este quadro. Infelizmente, o quadro é falho e enga­noso. O que passa sob o nome de progresso na ciência na verdade expõe uma limitação im­portante da ciência. Esta limitação é captura­da sucintamente no ditado de que o insight é ganho, mas não guiado. Embora haja lógica e

um conjunto de procedimentos para testar as hipóteses científicas, nada existe para concebê-las.18 A visão confiantemente expressa por Francis Bacon no início do século X V II de que o progresso na ciência pode ser quase um processo mecânico é seriamente ilusó­ria. Quando revisamos o registro histórico, logo descobrimos que as descobertas científicas - grandes e pequenas - não são todas produto de alguma abordagem formulativa única. Antes, emergi­ram tipicamente por um processo no qual as pessoas de julgamen­to perceptivo adaptaram uma possível explicação e os dados, fize­ram revisões e modificações onde necessário, e desenvolveram testes para confirmar (ou não confirmar) suas hipóteses.

Por quase cinco anos, Kepler examinou cuidadosa e atenta­mente as observações de Tycho Brahe antes de descobrir a forma de uma elipse em seu diagrama.19 Somente depois de trinta e qua­tro anos de pesquisa incansável é que Galileu sentiu-se confiante em sua hipótese sobre aceleração constante.

A segunda limitação está relacionada com a primeira, mas mostra-se mais proeminentemente no modo como as principais mudanças nas disciplinas científicas acontecem. A limitação em questão pode ser descrita na qualidade de um tipo de miopia cien­tífica ou visão afunilada que ocorre numa comunidade de cientis­tas, que administram sua pesquisa dentro da estrutura de modelos comumente aceitos para resolver os problemas em sua disciplina. Claro que a certo nível (o nível das operações cotidianas) pressu­posições compartilhadas e técnicas compartilhadas de solução de problemas são benéficas, até necessárias, se os cientistas querem fazer progresso em seu trabalho.

Mas em outro nível (global), eles também podem propor lim i­tações e restrição na comunidade de cientistas que vivem e traba­lham por eles. Por exemplo, eles podem impor uma visão estreita do problema ou disfarçar possíveis soluções para o problema. Em tal caso, o progresso na disciplina pode depender de alguém de

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O ponto a salientar aqui é que o método científico não determina - na verdade, não pode determinar-

os fins da ação humana.

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fora da disciplina desafiando as pressuposições comumente acei­tas, e oferecendo um modelo radicalmente diferente para continu­ar a pesquisa no campo.

Numa obra hoje clássica intitulada A Estrutura da Revolução Científica, Thomas Kuhn descreve divergências radicais dos mo­delos científicos tradicionais como revoluções científicas.20 Os modelos em si (inclusive pressuposições, leis, teoria, aplicação e instrumentação), ele os chama de paradigmas. A migração ou tran­sição de um modelo consagrado pelo tempo para um modelo novo, ele chama de troca de paradigma. A transição da física aristotélica para a física newtoniana no início do período mo­derno pesaria como uma troca de paradigma, à medida que mudaria o século X X da física newtoniana para a teoria da re­latividade de Albert Einstein.

A transição radical de um modelo aceito a favor de um modelo novo - o que Kuhn chama de revolução científica - não pode ser predita nem planejada. Esta incapacidade de predizer ou planejar mostra que a descoberta científica e o progresso científico em ge­ral, não é um processo tão ordeiro, extremamente preciso ou line­ar como o leigo poderia supor. E o fato de que a descoberta e o

Albert E instein ( 1879-1955), ale­mão de nascimento e naturalizado cidadão americano (1940), é reconhe­cido como um dos maiores físicos teóricos de todos os tempos. Em 1905, escreveu um documento no qual desenvolveu sua teoria especial da relatividade, que tratou de siste­mas ou observadores em movimento uniforme (não acelerado) em relação um ao outro. Em 1911, afirmou a igualdade da gravitação e inércia e, em 1916, formulou uma teoria geral da re lativ idade , que in c lu ía a gravitação como determinador da cur­vatura de um continuum espaço-tem­po. Também fez contribuições impor­tantes para a teoria moderna dos quanta. Por seu trabalho na física te­ó rica , notavelm ente no efeito fotoelétrico, Einstein foi premiado em 1921 com o Prémio Nobel de Física.

Em 1914, Einstein ocupou a posi­ção de professor de física e diretor da fís ica teórica no Ka iser W ilhelm Institute, em Berlim . Porque era judeu, o governo anti-semítico nazista da Alemanha confiscou em 1934 sua propriedade e re­vogou sua cidadania alemã. De 1933 até sua morte em 1955, manteve um cargo no Instituto de Estudos Avançados em P rin ce lo n . Seu tempo em Princeton foi dedicado em gran­de parte a desenvolver uma teo­ria de campo unificada, de acor­do com a qual ele esperava explicar a gravitação e o eletromagnetismo com um conjunto de leis. Não foi bem-su­cedido em sua tentativa, e hoje mui­tos físicos proeminentes acreditam que, a princípio, tal tarefa não pode ser realizada.

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progresso não são graduais e previsíveis, mas intermitentes e às vezes arbitrários e acidentais, expõe uma das principais lim ita­ções no método científico.

A primeira e segunda limitações apontam para uma terceira limitação: O método científico não pode nem garantir o progresso em direção a um corpo completo e compreensivo de conhecimen­to científico, nem corretamente tratar certos tipos de questões.21 Especificamente, o método científico moderno carece da capaci­dade de avaliar ou explicar que assuntos devem ser tratados. Nes­te sentido, a ciência moderna não pesa como uma cosmovisão - pelo menos não no sentido densamente estruturado descrito no Capítulo 1. Por exemplo, não expressa ideologia clara e impressi­onante. Não nos pode dizer o que é merecedor de atenção, a que devemos aspirar ou o que esperar, e o que finalmente importa na vida.

O método científico, por exemplo, não nos pode dizer que ti­pos de tecnologia desenvolver, nem como aplicar a tecnologia que já foi desenvolvida. Eu ando com duas pernas artificiais. As cane­las e os encaixes de minhas pernas artificiais são feitas de um material de carbono-grafite leve e tecnicamente sofisticado, de­senvolvido por químicos. Eu estaria impossibilitado de andar como ando hoje se estivesse vivendo um século antes com os níveis de tecnologia decididamente mais baixos. Naturalmente, sou grato porque os avanços na ciência aplicada melhoraram a qualidade de minha vida pessoal. Mas o método científico em si não ditou a aplicação do conhecimento para este fim benéfico. Pessoas com uma visão mais ampla do que é possível e importante desenvolve­ram produtos que melhoraram minha vida. Dirigidas por motivos e objetivos diferentes, da mesma maneira elas bem poderiam ter produzido dispositivos tecnológicos contrários aos meus interes-

ie c itó & r tiO '

A convicção de que podemos alcançar a verdade última por meio do método científi­co é conhecida por cientismo ou imperialis­mo científico. O cientismo afirma que a c i­ência é o modelo primário da racionalidade. Muitos defensores do cientismo são franca­mente hostis à religião em geral, e ao cristi­anismo em particular.

Para tratamento adicional do cientismo, consulte as seguintes obras:

J . P. Moreland, Christianity and the

Nalure o f Science (Grand Rapids: Baker Book House, 1989), pp. 103, 104.

David N. Livingstone, “Farewell to Arms: Reflections on the Encounter Between Science and Faith” , in: Chrislian Faith & Practice in the Modern World, editores MarkA . Noll e David F. Wells (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1988), pp. 239-262.

Mary Midgley, “Can Science Savelts Soul?” , New Scientist, volume 135,1992, pp. 24-27.

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ses ou aos de outrem. O ponto a salientar aqui é que o método científico não determina - na verdade, não pode determinar - os fins da ação humana. Tais fins são grandemente determinados pe­las cosmovisões que os seres humanos, inclusive os cientistas, subscrevem.

De modo mais geral, o método científico não nos pode dizer que tipos de políticas sociais devem ser promulgados. Na década de 1960, o sociólogo George Lundberg fez esta pergunta funda­mental: A ciência pode nos salvar?22 Sua própria resposta à peí- gunta foi que o método científico, aplicado a todos os problemas sociais, representa nossa melhor esperança de alcançar a melhor sociedade que todos nós desejamos. Na época da publicação, cer­to comentarista opinou que Lundberg tinha feito as alegações mais contundentes que jamais vira em favor de acreditar que a ciência pode guiar o pensamento e a estrutura política de legisladores, funcionários e outros que ocupam altos cargos. Apesar do otimis- mo do período em que o livro foi publicado, há pouca evidência hoje de que qualquer coisa que a visão de Lundberg aborde seja possível.23

O insight maior a ser deduzido das três limitações do método científico discutido aqui é que a ciência não é autodeterminada. Requer a superintendência de uma perspectiva predominante ou estrutura de referência. Este tipo de perspectiva maior, como apren­demos no Capítulo 1, é uma cosmovisão. O próprio método cien­tífico não é uma cosmovisão. Contudo, empregá-la (ou o conheci­mento adquirido por ele ou as aplicações ganhas por tal conheci­mento) a determinados fins, ou metas, inevitavelmente pressupõe uma cosmovisão.

ConclusãoFechamos o círculo das reflexões e questões apresentadas no

início deste capítulo. Revisamos alguns dos pontos de toque notá­veis na história da ciência, desde seu começo na Grécia antiga até o aparecimento do método científico moderno durante a Renas­cença e período moderno in icial. Também descrevemos o método científico moderno e algumas das pressuposições chaves que subjazem na prática atual das ciências empíricas. Finalmente, exa­minamos o âmbito e os limites da ciência. O que aprendemos que se relacione com o centenário aparecimento de um conflito entre a prática da ciência empírica moderna e a vida de fé? E o que apren­demos que se relacione com o desejo de meu amigo responder a chamada de Deus para sua vida abraçando uma carreira como ci­entista?

A história da ciência nos mostra que as ciências clássica e me­dieval eram teleológicas em orientação. Eram dominadas por um interesse nos propósitos dos objetos e eventos naturais. Mas os propósitos não são necessariamente manifestos sem demora nos

"A função de estabelecer metas e exprimir declarações de valor transcende o domínio da ciência"— Albert Einstein

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fenómenos naturais, e os pensadores cujas investigações são ori­entadas no sentido de achar tais propósitos correm o risco de im­por suas próprias pressuposições e expectativas nas coisas que investigam. Durante os períodos clássicos e medievais, a preocu­pação em descobrir propósitos teve o efeito prático de impedir que a descoberta científica impusesse certas pressuposições filo­sóficas e teológicas nos processos da descoberta. As investiga­ções tenderam a se basear na argumentação dos primeiros princí­pios (cujas fontes eram filosóficas e teológicas) em vez de nas análises matemáticas dos dados empíricos.

Os pensadores e médicos europeus, que na Renascença e perí­odo inicial moderno começaram a enunciar o método moderno da ciência, eram principalmente pessoas de fé. Mas eles reconhece­ram que o progresso nas ciências empíricas lhes exigia que remo­vessem de suas investigações toda a conversa teleológica. Conse- qiientemente, buscaram limitar-se a medidas de quantidades como velocidade, massa e tempo; cálculos baseados em observações e experiências; e descrições em fórmulas matemáticas generaliza­das. Em vez de procurar causas finais, eles restringiram suas in­vestigações às causas eficientes (mecânicas).

Para indivíduos como Newton, a nova ênfase em formular em termos matemáticos as leis que descrevem os mecanismos da na­tureza não implicou numa rejeição completa da teleologia, apenas uma rejeição de sua aplicação na investigação empírica da nature­za. Nem para eles a nova ênfase na ciência implicou que a ciência poderia responder a todas as perguntas. A ciência, na avaliação deles, representou uma perspectiva nos fenómenos naturais. De­clararam que ela não ofereceu nem a única nem toda explicação da natureza, mas apenas um modo de explicação (ainda que im­portante). Neste sentido, suas reivindicações em favor da ciência permaneceram relativamente modestas.

Alguns dos sucessores de Newton no século X V III em diante foram menos resguardados. Eles não só seguiram Newton em obliterar as explicações teleológicas das investigações empíricas, mas foram mais longe, obliterando-as de todas as considerações da cosmovisão. Deduziram que se o método científico não pode descobrir os propósi­tos, então os propósitos não devem existir (exceto, talvez, na mente dos seres humanos). Em suma, fundiram suas visões concernentes à prática da ciência empírica em uma cosmovisão completamente na­turalista e mecanicista. Como seria evidente de nossa discussão até aqui, esta fusão não é nem necessária para a ciência, nem inevitá­vel de um ponto de vista filosófico mais abrangente.

Aqui temos de nos voltar uma vez mais aos conhecidos cris­tãos de meu amigo, que lhe exortaram a abandonar seus planos de buscar uma carreira na ciência. De certo modo, eles estavam fa­zendo o mesmo movimento lógico que os naturalistas do século X V III: Pelo fato de o método da ciência empírica não nos permitir investigar os propósitos, esses cristãos inferiram que necessária e ine­

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O C R IS T Ã O E A C IÊ N C IA N A T U R A L 175vitavelmente conduz a uma cosmovisão naturalista. E se a prática da ciência leva a pessoa ao naturalismo, prossegue a argumentação, en­tão seguramente os cristãos devem afastar-se disto. Mas este movi­mento para fundir a ciência empírica e a posição filosófica maior do naturalismo não está mais garantido para os cristãos de hoje do que estava para os naturalistas do século X V III.

Quando separamos a ciência empírica de uma cosmovisão na­turalista, não temos nenhuma razão para considerar a pesquisa c i­entífica de modo diferente do que trabalhamos em qualquer outra vocação. O indivíduo sem­pre deve estar em guarda para os modos sutis que a cosmovisão e a integridade pessoal po­dem ser compromissadas. E embora a ciência não possa desenvolver ou verificar os princípi­os morais, considerações morais nunca podem ser evitadas pelo cientista praticante, porque os assuntos morais permeiam toda profissão e todo empenho humano. Tendo dito isto, não temos razão para considerar a prática da ciência menos nobre do que qualquer outra vocação. “Do SENHOR é a terra e a sua pleni­tude” , e nós somos Seus filhos. Se E le pode chamar alguns para pregar o Evangelho, construir casas, escolas, templos, atender as necessidades dos pobres, escrever literatura, poesia e música ex­celentes, então com certeza E le pode chamar outros para estudar sua criação.

Mas também, de um ponto de vista moral baseado na Escritura, o estudo da natureza parece uma busca legítima para o cristão. Talvez num sentido mais amplo possamos até considerar o estudo da nature­za como algo de exigência ética para qualquer cristão no mundo de hoje. Génesis 1.26-30 é frequentemente citado como o mandamento cultural para exercermos domínio sobre a terra e, assim, sermos fiéis ao Criador a cuja imagem somos criados.24 De um ponto de vista moral, o exercício do domínio em todas as suas ramificações requer mordomia. (Veja o tratamento que Volf deu sobre este assunto no Capítulo 6.) Dadas as questões ecológicas que nos defrontam em um ambiente frágil, e dadas as necessidades médicas e nutricionais pre­mentes de tantas pessoas ao redor do mundo hoje, a mordomia segu­ramente requer que entendamos o mundo natural sobre o qual deve­mos exercer domínio. Se isto é assim, quase não deveríamos ficar surpreendidos que alguns cristãos sejam chamados a profissões como cientistas de pesquisa, ou que todo cristão tenha um pouco da respon­sabilidade de pelo menos adquirir uma compreensão científica básica do mundo natural em que nós humanos habitamos.25

Revisão e Questões para Discussão

1. Por que é importante o pensamento de filósofos gregos antigos na área da ciência natural? Por que os estudantes ainda o estudam hoje?

Embora a ciência não possa desenvolver ou verificar os

princípios morais, considerações morais nunca podem ser evitadas

pelo cientista praticante.

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2. De que modo o pensamento de Aristóteles dominou a ciên­cia natural na Europa durante a Idade Média?

3. Que fatores ou eventos causaram mudanças importantes no pensamento europeu sobre a ciência natural?

4. Em que ordem as várias disciplinas que se preocupam com a realidade física desenvolveram-se até o tempo presente? Por que seguiram essa sequência de desenvolvimento? Foi por causa da natureza das disciplinas em si ou por causa de outros fatores?

5. O que os primeiros cientistas modernos pensavam sobre a terra e o universo? Como a convicção deles em Deus e nas Escri­turas afetou o trabalho que fizeram?

6. Por que o uso da observação e experimentação por investiga­dores foi tão importante para formar a base da ciência moderna?

7. Por que Galileu, Bacon e Newton foram tão importantes no desenvolvimento das ciências empíricas?

8. Como o clima intelectual do iluminismo do século X V III afetou a ciência natural? De que modo o pensamento que era tão dominante durante aquele século ainda hoje afeta a ciência natu­ral? Explique.

9. O que é método científico? Que implicações os insights de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas e paradigmas têm com nossa compreensão do método científico?

10. Desenvolva um argumento a favor ou contra a seguinte declaração: Havendo tempo e pesquisa suficientes, as ciências empíricas podem atingir uma explicação completa de todos os aspectos da realidade.

1 1 .0 que é pressuposição? Quais são algumas das pressuposi­ções da ciência natural?

12. Desenvolva um argumento a favor ou contra a seguinte declaração: As pressuposições básicas da ciência natural estão em conflito com algumas das pressuposições básicas do cristianismo.

Projetos Sugeridos para Reflexão1. Galileu foi censurado pelas autoridades da Igreja e forçado

a negar algumas de suas conclusões científicas. Que lições para os cristãos de hoje podem ser compiladas da confrontação entre Galileu e os que o censuraram? Antes de responder este tópico, talvez seja sensato fazer alguma pesquisa na biblioteca de sua c i­dade e revisar o registro histórico dos eventos dos dias de Galileu.

2. Na última parte deste capítulo, o autor se refere a algo cha­mado mandamento cultural. Explique este mandamento com mais detalhes e desenvolva mais acerca de suas implicações para uma visão cristã das ciências naturais.

3. Escolha um dos seguintes tópicos e explique como o cristão pode lidar com o tópico escolhido, levando em conta as conside­rações desenvolvidas neste capítulo: milagres, a teoria da evolu­ção, a alma humana, o desmatamento das florestas tropicais.

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O C R IS T Ã O E A C IÊ N C IA N A T U R A L 1 7 7

Bibliografia SelecionadaBARBO U R, Ian G. Religion in anAge ofScience. The Gifford

Lectures 1989-1991, volume 1. São Francisco: Harper & Row Publishers, 1990. Este é um tratamento altamente erudito sobre teologia e ciência. Os evangélicos podem discordar de algumas das idéias de Barbour, mas é um tratamento pensativo sobre o assunto.

B EH E , M ichael J . Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution. Nova York: Free Press, 1996. Esta obra, escrita por um bioquím ico, argumenta que certos sistemas bioquímicos são irredutivelmente complexos e, portanto, não po­dem ter surgido gradualmente de certa maneira neodarwinista. Behe alega que estes sistemas indicam desígnio inteligente e, por im pli­cação, um Arquiteto, um Designer.

C LA R K , Gordon H. “The Lim its and Uses of Science” . In: Horizons o f Science: Christian Scholars Speak Out, editor Cari F.H . Henry. Nova York: Harper & Row Publishers, 1988. Esta é obra digna de nota, escrita por um filósofo cristão.

C LO U SER , Roy A . The Myth o f Religious Neutrality. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1991. Esta é obra interes­sante, que considera diversas atividades académicas, inclusive matemática e física. Clouser conclui que todo pensamento huma­no é influenciado pelas pressuposições e entendimentos religio­sos, quer sejam ou não reconhecidos.

D AW KIN S, Richard. The Blind Watchmaker. Nova York: Norton Publishers, 1986. Dawkins faz alegações contra qualquer possibilidade de desígnio na natureza. E le é fortemente contrário a qualquer idéia de criação ou desígnio.

KUHN , Thomas. The Structure o f Scientific Revolutions. 2.a edição, ampliada. Chicago: University of Chicago Press, 1970. Este livro é atualmente considerado um clássico sobre a filosofia da ciência.

LIN D BER G , David C ., e N UM BERS, Ronald L ., editores. God and Nature, H istorical Essays on the Encounter between Christianity and Science. Berkeley, Califórnia: University of Califórnia Press, 1986.

M O RELAN D, I . P. Christianity and the Nature o f Science. Grand Rapids: Baker Book House, 1989. Excelente obra de valor sobre a filosofia da ciência, escrita por um evangélico.

PEA R C EY , Nancy R ., e TH AXTO N , Charles B . The Soul o f Science: Christian Faith and Natural Philosophy. Wheaton, Illino is: Crossway Books, 1994. Este livro é excelente e, talvez, de certa maneira, o melhor desta lista. Foi bem escrito e pode ser entendido prontamente com certa concentração. Engloba mate­mática, ciência física e biologia.

RATZSCH , Del. Philosophy o f Science: The Natural Sciences in Christian Perspective. Downers Grove, Illino is: InterVarsity

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1 7 8 L A W R E N C E T . M c H A R G U E

Press, 1986. Trabalho proveitoso que considera a ciência de um ponto de vista cristão.

RO TH SCH ILD , Richard C . The Emerging Religion o f Science. Nova York: Praeger Publishers, 1989. Esta é obra que todo cristão tem de discordar profundamente, mas vale a pena ser lida, porque representa muito bem o pensamento de alguém treinado em ciên­cia física que crê que não há realidade última além dos fenómenos físicos.

W RIGH T, Richard T. Biology through the Eyes o f Faith. São Francisco: Harper & Row Publishers, 1989. Livro publicado para a Christian College Coalition (hoje conhecida por Coalition for Christian Colleges and Universities). O trabalho representa esfor­ço notável em abordar a necessidade do estudante cristão de bio­logia de alinhar a ciência e a fé.

Notas bibliográficas1. A discussão primária de Aristóteles de causas ou fatores

explicativos (grego, aitiai) pode ser encontrada em suas obras Metafísica (Volume V II) e Física (Volume II) . Para discussão adi­cional, veja George Sarton, A History o f Science, volume 1 ,Ancient Science through the GoldenAge ofGreece (Nova York: lohn Wiley & Sons, Incorporated, 1964).

2. Loren W ilk inson , editora, Earthkeeping, Christian Stewardship o f Natural Resources (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1980), p. 109.

3. Esta declaração aplica-se com precisão ao campo da física. Na biologia, as explicações teleológicas não foram suplantadas até o século X IX .

4. Nancy R . Pearcey e Charles B . Thaxton, The Soul o f Science, Christian Faith and Natural Philosophy (Wheaton, Illin o is : Crossway Books, 1994), pp. 126-128.

5. O efeito deste novo raciocínio foi desmitificar a natureza e dar permissão para examinar a criação em busca de causas. Para discussão adicional sobre este ponto, veja Paulos Mar Gregorios, Science for a Sane Society (Nova York: Paragon House, 1987), p. 173. S ir W illiam Cecil Dampier, A History o f Science and Its Relations with Philosophy and Religion (Cambridge: Cambridge University Press, 1968), pp. 319, 459.

6. Para Bacon, o objetivo do empenho científico era a conse­cução de conhecimento que pudesse ser posto em uso prático. O ímpeto em adquirir conhecimento científico devia exercer poder sobre a natureza. Veja W ilkinson, Earthkeeping, pp. 131-134.

7. W ilkinson, Earthkeeping, pp. 124-128; Mar Gregorios, Science for a Sane Society, p. 173.

8. Thomas F. Torrance, The Christian Frame ofMind (Colorado Springs, Colorado: Helmers & Howard, 1989), p. 46.

9. Margaret C . Jacob, “Christian ity and the Newtonian W orldview” , in : God and Nature, Historical Essays on the

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Encounter between Christianity and Science, editores David C.Lindberg e Ronald L . Numbers (Berkeley: University of Califórnia Press, 1986), pp. 246-249.

10. Pearcey e Thaxton, The Soul o f Science, p. 93.11. Durante o tempo do surgimento da ciência moderna, quan­

do a ciência começou a apresentar resultados fidedignos, filóso­fos e cientistas reconheceram que ambos os elementos eram ne­cessários. Contudo, não concordaram em exatamente como os dois elementos contribuem para a formação do conhecimento científi­co. De fato, os teoristas de hoje ainda não alcançaram nenhum consenso firme sobre este assunto.

12. Stephen Toulm in, The Philosophy o f Science, An Introduction (Nova York: Harper & Row Publishers, 1960), p. 66.

13. Irving M. Copi e Cari Cohen, Introduction to Logic, 10.a edição (Upper Saddle River, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1998), p. 547.

14. Para uma discussão sobre as dificuldades associadas com o critério de simplicidade, veja Copi e Cohen, pp. 548-552.

15. Os cientistas do século X IX pensavam que a natureza era governada pela “le i” . Sua concepção de lei levou-os a crer que sua tarefa primeira como cientistas era “descobrir” e registrar todas as “ leis da natureza” . Centenas destas leis daquele período podem ser encontradas impressas hoje. A maioria das leis “válidas” está, atualmente, expressa em “princípios” ou “regras” , e os cientistas já não acreditam mais que possam chegar a um relato completo e satisfatório dos fenómenos naturais simplesmente acumulando-se cada vez mais “leis” .

16. Há exceções a esta regra geral. Algumas substâncias são inertes à reação com o oxigénio.

17. Investigações em meados da década de 1990 feitas por novas organizações e comités congressionais indicam que os adminis­tradores da indústria tabaqueira já tinham há várias décadas fortes evidências dos males da saúde causados por seus produtos. Suas declarações públicas durante as décadas de 1950 a 1980 carecem, em muitos casos, de sinceridade ou eram simplesmente falsas.

18. Charles E . Hummel, The Galileo Connection, Resolving Conflicts Between Science & The Bible (Downers Grove, Illino is:InterVarsity Press, 1986), p. 155.

19. Norwood Hanson, Patterns o f Discovery (Cambridge:Cambridge University Press, 1961), pp. 72-84.

20. Thomas Kuhn, The Structure o f Scientific Revolutions, 2.a edição, ampliada. (Chicago: University of Chicago Press, 1970).

21. Del Ratzsch, Philosophy o f Science, The Natural Sciences in a Christian Perspective (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1986), pp. 97-105.

22. George A . Lundberg, Can Science Save Us? 2.a edição (Nova York: David M cKay Company, 1961).

23. De modo semelhante, Peter Atkins argumentou que pode­

O CRISTÃO E A CIÊNCIA NATURAL 1 7 9

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180 L A W R E N C E T . M c H A R G U E

mos obter toda verdade e conhecimento por meio do método cien­tífico. E le levanta a pergunta fundamental no título de uma de suas publicações: “W ill Science Ever Fa il?” (“A Ciência sempre Falhará?” ) New Scientist, volume 135, 1833, pp. 321-335, 1992. Atkins assevera que não há limite para se obter conhecimento pelo uso da razão e do método científico. A tese de Atkins, como a de Lundberg antes dele, parece otimista demais.

24. Richard T. Wright, Biology Through the Eyes o f Faith (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1989), p. 169.

25. Michael Palmer ajudou na organização e desenvolvimento deste capítulo. Gary Liddle, Professor Associado de Estudos B í­blicos na Evangel University, e Turner Collins, Professor de Biologia na Evangel University, leram e fizeram comentários sobre o texto.

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5Uma

Perspectiva Sobre a

Natureza Humana

Billie Davis

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1 8 2 B ILLIE D A V IS

que toma as pessoas reais?”“O que há com você? — perguntou papai em resposta à

minha pergunta.” “O que é que você quer dizer com ‘pessoas reais’ ?”

“Pessoas que moram em casas — tentei explicar. — Pessoas que ficam juntas nas cidades.”

Eu tinha expressado da maneira mais simples que uma criança poderia expressar o quebra-cabeça humano básico.

Minha fam ília estava entre os americanos sem-teto originais, hoje chamados trabalhadores migrantes. Nasci nos campos de lú­pulos do Oregon, e com as estações e os anos seguíamos as rotas da colheita de frutas e verduras mais tarde conhecidas por “fluxos de migrantes” . Vivíamos em tendas à beira dos campos, ou em filas de barracas de um compartimento só, fornecidas pelos plantadores, ou às vezes em acampamentos governamentais estri­tamente supervisionados. Sendo o primogénito e vivendo nestes confins exíguos, conheci os detalhes mais íntimos da vida e eco­nomia familiares. V i crianças nascendo, em geral sem a supervi­são de atendentes. Lá em casa havia oito crianças além de mim, e duas delas morreram bem diante dos meus olhos.

Eu sabia tudo sobre a Grande Depressão. Sabia que o suborno corria solto no governo; que os ricos fazem os pobres trabalharem até o lim ite da morte, e depois os chutam na boca; e que os pobres

de *7 M*viyirtatcd&de

Enquanto a necessidade de estar em as­sociação com outros é básica para a nature­za humana, algumas pessoas vivem em con­dições sociais que as fazem sentir-se sepa­radas de qualquer grupo. Para descrever este tipo de alienação, Robert Park (1864-1944) contribuiu com o termo marginal. Park foi figura chave na faculdade de sociologia de Chicago e co-autor, com Ernest W. Burgess, do primeiro livro didático importante sobre sociologia, Uma Introdução à Ciência da Sociologia, 1921. Conforme seu interesse permanente nas relações entre as raças, ele manteve um cargo na Fisk , uma universida­de de negros. Suas observações sobre as si­tuações interculturais o levaram a caracteri­zar como marginal a pessoa cuja experiên­cia a impedia de ajustar-se completamente em qualquer grupo social. Tais pessoas sem­pre se acham na “margem” , em vez de esta­

rem confortavelmente integradas. Podem se sentir como estrangeiras em todos os lu­gares. O aspecto positivo de ser marginal é que se pode observar os próprios e ou­tros grupos com considerável objetivida- de. Por causa da separação pessoal, tais indivíduos podem aprender a aceitar dife­renças, desenvolver avaliações abrangen­tes e fazer ajustamentos maduros. Alguns estudiosos cristãos têm comparado isto a “estar no mundo e, contudo, não ser dele” . Embora os cristãos tenham um forte senso de pertencer ao Corpo de Cristo (a Igreja universal), eles têm de manter uma sepa­ração crítica dos valores sociais que cons­tantemente estão mudando.

O conceito de marginalidade foi inteira­mente desenvolvido por um dos alunos de Park, Everett Stonequist, no livro O Homem Marginal ( 1961).

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U M A PE R SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 1 8 3

não têm nenhuma chance. Às vezes papai dizia que estava farto de fazer o trabalho sujo dos ricos, por isso fabricávamos cestas de salgueiro e flores de papel para vender. A primeiríssima coisa da qual me lembro é de estar vendendo cestas e flores. Papai dizia- me para começar por um lado da rua e voltar pelo outro depois de percorrer toda a cidade, batendo de porta em porta e entrando em todo estabelecimento comercial, dizendo: “Gostaria de comprar uma cesta? São 25 centavos cada” .

Mascatear cestas me fez ciente do padrão de1 ' munidade povoada e o contraste entre isto e o ■ meu estilo de vida, vestuário, linguagem e con- ■ dição global. Eu ouvi as pessoas nos chama- I rem de “ciganos” , “migrantes” , “andarilhos das Ifrutas” , “peões” , “errantes” e “oakies” . A se- Iparação era tão óbvia que comecei a conceber I a gente das cidades como pessoas reais. ■Mascatear pelas ruas me deu consciência dos —edifícios e instalações especiais no padrão da cidade. Pouco a pouco fui tomando conhecimento de uma vida onde havia escolas, igre­jas, bibliotecas e parques, e comecei a entender que alguns eram abastecidos pela cooperação da comunidade.

Perguntei: “O que toma as pessoas reais?” , porque eu tinha sentido, provavelmente de modo mais profundo e depressa que a maioria das crianças, os conceitos vitais de ser e pertencer a um grupo. Meu modo de vida me fez ter o que os estudantes da soci­edade descrevem como experiência marginal. Mudei-me para vá­rios mundos e pude ver contrastes que estavam ocultos àqueles cujas vidas eram mais ordenadas e previsíveis. Ficava a me per­guntar por que eu era diferente das crianças da cidade e como as pessoas se reuniam nas cidades. Eu era impelido a expressar como premissa menor sincera o que filósofos e teólogos sempre ponde­raram: Por que sou como sou? Quem sou eu? Por que estou aqui? Eu pertenço a algum lugar? Como me relaciono com os outros? O que é pessoal Das tentativas em responder perguntas como estas é que se desenvolveram os estudos, as descobertas e as teorias da psicologia e da sociologia.

O que significa ser Humano?Conforme já vimos, um relato ou perspectiva sobre a natureza

humana é um elemento de toda cosmovisão. Pode ser o elemento mais pessoalmente significativo para nós, porque o que substanci­almente cremos sobre a natureza humana controla como tratamos as pessoas e o que esperamos delas. Nosso sucesso e felicidade na amizade, educação, profissão, matrimónio, paternidade e até reli­gião dependem em grande parte do que acreditamos sobre nós mesmos e os outros.

Embora aprendemos muito da experiência pessoal e da mídia,

Meu modo de vida me fez ter o que os estudantes da sociedade descrevem como experiência

marginal.

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a maioria de nosso conhecimento formal sobre a natureza e com­portamento humanos vem dos campos da psicologia e sociologia. O propósito deste capítulo é ajudá-lo a entender e avaliar as idéias eruditas e populares à luz da verdade cristã. Os resultados práticos devem ser, primeiro, o conhecimento de você mesmo que lhe dá a confiança e controle em sua vida pessoal e, segundo, avaliações e insights que realcem todas as suas relações sociais.

No mundo académico e na vida cotidiana, a natureza do géne­ro humano é uma questão chave. A psicologia e sociologia basei­am a reivindicação de serem ciências na pressuposição de que os elementos da natureza humana podem ser isolados, como os ele­mentos em química, pela observação e experimentação. Mas ne­nhum método pode ser aplicado à natureza humana sem primeiro presumir algo a esse respeito. É por isso que as histórias destas disciplinas parecem girar em círculos. Inicialmente, os estudiosos procuraram separar-se das abordagens filosóficas e teológicas para que pudessem estudar os seres humanos como objetos de investi­gação científica.

Eventualmente, muitos deles perceberam que não podiam evi­tar o fato de que a pessoa é um ser inteiro e tem qualidades inter­nas que as teorias científicas precisas não podiam explicar com­pletamente. Vemos, então, por que é especialmente importante abordar a psicologia e sociologia com uma cosmovisão cristã: Estas disciplinas tratam os assuntos da personalidade, comportamento humano e relacionamentos pelos quais a Escritura é a primeira e mais alta autoridade.

Perspectivas PsicológicasA psicologia pode ser uma das mais importantes idéias do

mundo, não obstante, o significado preciso do termo no modo como se aplica à disciplina é enganoso. Ouvi a palavra dita pela primei­ra vez em 1938 por meu professor de estudos sociais no secundá­rio. E le era perito em definições. “Psico”, explicou ele, “vem de uma palavra grega que inicialmente significava ‘respiração’ , e depois desenvolveu-se para ‘alma’ e ‘espírito’ . Em inglês, a usa­mos para dizer ‘mente’ .1 Logia também vem do grego, e quer di­zer ‘palavra’ ou ‘fala’ . Leva a idéia de ‘discurso’ , ‘expressão’ e veio a incluir ‘estudo’ e ‘ciência’ . O termo psicologia, significan­do ‘ciência da mente’ , foi registrado primeiramente em 1693 e começou a ser aceito amplamente na década de 1830.”

Meu primeiro professor de faculdade usou o termo ajustamen­to para definir psicologia. E le disse que isto é mais consernente com o modo como os indivíduos respondem aos vários estímulos. Os dicionários modernos definem psicologia como “A ciência que trata dos processos mentais e dos comportamentos” .2 Os mais re­centes livros didáticos aludem à falta de uma definição única ge­ralmente aceita de psicologia, e relacionam numerosos ramos e

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U M A P ER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A

especialidades. Contudo, os dois conceitos principais, os proces­sos mentais e o comportamento, indicam os dois principais assun­tos dos psicólogos. O primeiro é relacionado com a filosofia e lida com a argumentação, pensamento, sentimento e percepção. O se­gundo diz respeito à fisiologia e estuda o comportamento como função do sistema nervoso.

A I m po r t a n te Q u e s t ã o d a M e t o d o l o g ia

A psicologia começou com questões sobre pessoas e logo de- senvolveu-se em questões sobre como estudar as pessoas. Ao lon­go da história registrada, as pessoas desejaram conhecer as rela­ções entre a mente e o corpo, o pensamento e o sentimento. A teologia e a filosofia eram as fontes do conhecimento e das teori­as. A psicologia como estudo ou ciência distinta posteriormen­te desenvolveu-se do mesmo tipo de autoconsciência humana que tinha levado à especulação filosófica. Os pensadores pro­puseram teorias e sugeriram explicações sobre a consciência, razão, percepção, memória e os motivos que determinam o com­portamento. Inevitavelmente alguém perguntaria: Como pode­mos realmente saber? Qual é a melhor maneira de achar as res­postas às nossas perguntas?

Nos séculos X V III e X IX , quando o mundo estava se empol­gando com os avanços da ciência natural, o caminho parecia cla­ro. Os fenómenos humanos podiam ser observados e analisados da mesma maneira que os outros aspectos da natureza. Os pensa­dores sociais decidiram que as perguntas dos filósofos e teólogos deveriam ser redeclaradas a fim de afastarem-se da religião.3 Os estudiosos deveriam encontrar base diferente para pensar sobre a mente humana e o comportamento. A psicologia deveria ser uma ciência independente.

Os historiadores geralmente dão crédito ao filósofo alemão,

fJo A a m t 0?n ie cO U c6 , 0Ç ¥ e n & zn t

WJohann Friedrich Hcrbart (1776-

1841) foi filósofo alemão. Alguns es­tudiosos o chamam de “pai da psico­logia'’, porque ele deu nome aos es­tudos e declarou que eles deveriam ser desenvolvidos corno uma verda­deira ciência. Outros dizem que ele deveria ser chamado de “avô da psi­cologia” , porque ele não fez nada mais que propor a idéia na qual ou­tros basearam a pesquisa que criou

uma ciência da psicologia indepen­dente. Seus escritos não estavam baseados na investigação empírica, mas era o que os cientistas moder­nos chamam de especulação de divã. Em dois livros ele discutiu a favor da separação da psicologia de outras dis­ciplinas: A Textbook o f Psychology (Um Livro Didático de Psicologia) e Psychology as a Science (A Psicolo­gia como Ciência).

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1 8 6 B ILLIE D A V IS

Johann Friedrich Herbart (1776-1841), por direcionar os psicólo­gos subsequentes a uma abordagem empírica, em vez de filosófi­ca, ao estudo das questões psicológicas. Quer dizer, ele propôs que a experiência direta e a observação objetiva eram métodos me­lhores para a psicologia do que tentar analisar pensamentos e senti­mentos. Wilhelm Wundt (1832-1920), que estabeleceu o primeiro laboratório para experiências, foi treinado como médico. Seu livro Os Princípios da Psicologia Fisiológica, publicado em 1873, muito contribuiu para estabelecer a psicologia como ciência distinta.

Mas, com suas raízes na filosofia e fisiologia, a psicologia ti­nha um problema. Certos filósofos já tinham convencido muitos estudiosos das teorias dualistas da natureza humana. A mais influ­ente foi a tese de René Descartes de que um ser humano represen­ta uma união entre uma mente psicológica e um corpo mecânico.4 Seu pensamento dualista abriu caminho para três concepções prin­cipais: 1) Os psicólogos que consideraram a psicologia uma ciên­cia mental, acreditavam que o conhecimento podia ser ganho pela introspecção. 2) Outros declararam que para tornar a psicologia uma verdadeira ciência deveriam ser usados somente dados obje- tivos, quer dizer, fenómenos sensoriais observáveis. Eles tende­ram a observar não só o comportamento dos adultos, mas também de crianças e animais inferiores, incapazes da observação do ego. Observar o comportamento, argumentaram, é o melhor meio de

M e ím ‘W u a c t i

Wilhelm Wundt (1832-1920) foi estudioso alemão, filho de pastor luterano. Wundt estudou medicina e ensinou fisiologia na Universidade de Heidelberg. Enquanto esteve ali, seu interes­se se voltou à psicologia e esta­beleceu um laboratório particu­lar para experiências. Em 1879, como professor de filosofia e psicologia na Universidade de Leipzig, desenvolveu o primei­

ro laboratório universitário. Seu in­teresse foi além das investigações ex­perimentais, incluindo estudos impor­tantes relativos à influência da cultu­ra na mente humana. Wundt é mais verdadeiramente o pai da psicologia, porque seu trabalho tomou-se o mo­

delo para a disciplina. Estudantes do mundo inteiro iam a Leipzig para apren­der sobre a nova ciência. Muitos deles levaram suas idéias e métodos aos seus respectivos países, onde tomaram-se a fundação na qual a psicologia se desen­volveria.

Wundt publicou em 1873 o livro Principies o f Physiological Psychology (Princípios de Psicologia Fisiológica). Seu trabalho mais ambicioso é um tratamen­to em dez volumes da psicologia cultural ou do povo, em alemão, Volkerpsychologie. O último volume foi publicado em 1920. As traduções em inglês dos trabalhos de Wundt incluem An Introduction to Psychology (Um a Introdução à P sico lo g ia ) e Elernents o f Folk Psychology (Elemen­tos da Psicologia do Povo).

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r

U M A PER S PEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 187entender a natureza e os processos mentais. 3) Outros ainda sus­tentaram que a psicologia deveria ser um estudo da mente e do comportamento. Esta escola nunca concordou plenamente com um sistema científico, mas hoje a definição mais frequentemente cita­da da psicologia inclui os processos mentais e o comportamento.

A história da psicologia, portanto, é uma história de esforços em reconciliar as rígidas prescrições da investigação científica com a dinâmica da humanidade. Um historiador reclama especifica­mente que a história do desenvolvimento teórico é d ifíc il, porque

*De&cante&

René Descartes (1596-1650), f i­lósofo e literato, é geralmente consi­derado na tradição intelectual ociden­tal como o pai do período moderno (séculos X V II a X IX ). Nasceu em La Haye (hoje Descartes) na região da Touraine, França. Sua primeira edu­cação, da qual tinha bastante orgulho, aconteceu na faculdade jesuíta em La Fléche, na região de Anjou. Mais tar­de, em 1616, obteve título académi­co em Direito pela Universidade de Piotiers. Não satisfeito com sua car­reira em Direito, Descartes resolver viajar. Esta decisão levou-o a unir-se ao exército holandês em 1618. Certo dia, em novembro de 1619, enquanto fazia uma excursão m ilitar na Alema­nha, sentou-se sozinho em uma pe­quena sala aquecida a fogão e passou a refletir num novo sistema filosófi­co que unificaria todos os ramos da aprendizagem e lhes daria a exatidão da matemática. Naquela noite, teve três sonhos que, segundo ele, o ins­piraram a construir este novo siste­ma de conhecimento e que parecem ter permanecido uma motivação per­manente em todos os seus trabalhos filosóficos, científicos e matemáticos posteriores. A medida que a reputa­ção de Descartes crescia no decorrer dos anos, ele foi convidado pela rai­nha Cristina da Suécia a ir a Estocol­

mo para ensiná-la filosofia. Depois de muita hesitação, no outono de 1649, ele aceitou o convite com relutância.O inverno severo de 1649- 1650, combinado com o horá­rio rigoroso imposto pela rai­nha (por exemplo, lições de fi- losofia às cinco da manhã), afetou adversamente sua saú­de. Em fevereiro de 1650 con­traiu pneumonia e morreu.

Dada a brevidade relativa de sua vida, o corpo dos escri­tos de Descartes é bastante im­pressionante. Escreveu sobre assuntos que variavam de matemática a ótica, física e filosofia. Mais impres­sionante do que a quantidade de escri­tos que produziu foi a influência que causou em filósofos mais recentes e o público em geral. Seus escritos mais famosos são dois trabalhos filosóficos: Discourse on lhe Method o f Righíly Conducting One ’s Reason andSeeking the Truth in the Sciences (Discursos sobre o Método de se administrar cor- retamente a Razão e buscar a Verdade nas Ciências, 1637) e Meditations on First Philosophy in Which Are Demonstrated the Existence o f God and the Immortality o f the Soul (Me­ditações sobre a Primeira Filosofia na qual é demonstrada a Existência de Deus e a Imortal idade da Alma. 1640).

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1 8 8 BILLIE D A V IS

os primeiros fundadores da psicologia teimavam em lidar com tais tópicos como o significado e o propósito da existência humana!5 Sua observação nos dá uma pista de como as questões da metodologia podem levar a algumas visões não-cristãs da nature­za humana, desembocando no antagonismo entre a psicologia e a religião. Um exame breve dos principais ramos da psicologia nos ajudará a entender melhor como as teorias e métodos sempre en­volvem pressuposições sobre a natureza humana.

P s ic o l o g ia E x pe r im e n t a l

Os primeiros psicólogos que consideraram a psicologia uma ciência da mente desenvolveram uma técnica para estudar a cons­ciência consciente. Pedia-se a pacientes que descrevessem o que experimentavam em várias situações de laboratório. Chamaram a isto de método de introspecção. Alguns estudiosos acharam que os resultados de tais experiências eram incertos. Sigmund Freud foi um que afirmou que não era possível uma pessoa observar com precisão sua própria vida mental. E le introduziu na psicolo-

cq m o c rtd 0? % e tc d

Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em Freiburgo, Morávia (no império austro-húngaro), e era filho de comerciante judeu. Morou a maior parte da vida em Viena. Freud estudou na facul­dade de medicina da Universi­dade de Viena, e resolveu espe­cializar-se em neurologia clín i­ca. Sua observação de pacientes levou-o à convicção de que a

_j mente consiste em três compar­timentos: consciente, pré-conscientc e inconsciente. Ele tinha de encontrar um método para observar os proces­sos inconscientes a fim de apoiar suas teorias. Assim , a psicanálise foi de­senvolvida como uma estratégia para recobrar evidências do inconsciente do paciente.

A vida de Freud foi repleta de dor e tragédia. Sua fam ília foi persegui­da por causa de sua herança judaica, quatro irmãs foram executadas nos

campos de concentração, seus livros fo­ram queimados publicamente e ele sofreu horrivelm ente com câncer na boca. Indubitavelmente um gênio, sua influên­cia ultrapassa os campos da medicina e psicologia para significativamente cau­sar impacto em nossa cultura. As idéias e terminologia distintiva freudianas im­pregnaram todas as áreas relativas à na­tureza e ao comportamento humanos: re­ligião, filosofia, literatura, artes visuais e de representação.

O livro Estudos sobre a Histeria, em co-autoria com Josef Breuer em 1895, marca o começo da psicanálise. A Inter­pretação dos Sonhos (1900) é considera­do seu trabalho mais brilhante. The Standard Edition o f the Complete Works o f Sigmund Freud (A Edição Padrão das Obras Completas de Sigmund Freud) foi traduzida do alemão para o inglês sob a editoria geral de J. Strachey, em colabora­ção com Anna Freud e publicada por I-Iogarth Press, em Londres, de 1953 a 1956.

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r

gia o conceito do inconsciente. A proposição principal de sua teo­ria é que as pessoas podem não ter completa consciência das for­ças que controlam seus pensamentos, sentimentos e ações.

Outros primeiros líderes no campo tentaram afastar a psicolo­gia dos estudos da consciência interior. A escola conhecida como behaviorismo desenvolveu-se a partir de esforços em fazer da psi­cologia um estudo de comportamento observável. Termos como mente e vontade foram eliminados, porque não podiam ser obser­vados. Foram considerados estados mentais que devem ser dedu­zidos do modo como a pessoa age. O behaviorismo presume que as pessoas podem ser estudadas como objetos de certa maneira estritamente empíricos. As pessoas são organismos que respon­dem de modos mecânicos a estímulos. Suas ações são controladas pelas leis previsíveis.

B . F. Skinner, importante behaviorista, disse que é inútil fazer teorias sobre os processos mentais que não possam ser observa­dos. E le acreditava que os psicólogos deveriam se dedicar a ob­servar o comportamento e descrever como os estímulos provocam resultados observáveis. Do seu trabalho veio o conceito de refor-

U M A PER SPEC TIVA SO BRE A N A T U R E Z A H U M A N A 1 8 9

"pted&tic Sáétttt&t

Burrhus Frederic Skinner (1904- 1990) nasceu em Susquehanna, Pensilvânia, de fam ília de classe mé­dia convencional. Como estudante universitário, Skinner especializou-se em inglês com o intento de tornar-se escritor. Seus biógrafos dizem con- sistentemente que ele era um jovem brilhante e rebelde. Desenvolveu uma técnica para controlar seu próprio comportamento, mas rccusou-se a respeitar idéias aceitas, que ninguém ousava questionar no campus da fa­culdade, ou conformar-se a regula­mentos impostos. Impossibilitado de ganhar reconhecimento por seus es­critos e intrigado com a questão do comportamento, matriculou-se no programa de pós-graduação em psi­cologia de Harvard. A li, tornou-se estudioso dedicado, concluindo seu trabalho com uma proposta de tese doutoral para pesquisas sobre O Com­

portamento dos Organismos. A publi­cação em 1938 de um livro com esse títu lo lançou sua carre ira no behaviorismo, e fez com que ele i ganhasse aceitação como líder no campo da psicologia. Foi profes­sor popular primeiro na Univer­sidade de Minnesota, depois na Universidade de Indiana e, final­mente, em Harvard. Skinner era imaginativo e foi extremamente ativo em toda sua vida. Além de escrever livros eruditos e popu­lares, in ventou máquinas pedagó­gicas e desenvolveu sistemas de controle de comportamento para (educação de criança) e auto-administração.

Entre suas muitas obras estão Ci­ência e Comportamento Humano (1953), Contingências do Reforço: Uma Análise Teórica ( \ 969), Além da Liberdade e Dignidade (1971) e So­bre o Behaviorismo (1974).

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ço, uma técnica para aplicar estímulos a fim de obter os resultados desejados em áreas como educação e paternidade. Em sua forma mais pura, o behaviorismo vê a pessoa como uma máquina e o comportamento em si como sendo, no final das contas, determi­nado por forças além do controle pessoal.

P s ic o l o g ia C l ín ic a

Como uma subespecialidade no campo, a psicologia clínica é definida como a prática de terapia e técnicas de aconselhamento, especialmente para lidar com problemas mentais e emocionais. A psicologia clínica tem seu início com o tratamento de Sigmund Freud de pacientes por um método que ele chamou de psicanáli­se. O termo deriva da idéia de que as experiências do indivíduo resultam de sentimentos interiores desconhecidos que podem ser trazidos à consciência através de análise. A visão de Freud é que as pessoas são controladas por impulsos sob o nível da consciên­cia. Muitos destes são impulsos sexuais e agressivos, frequente­mente relacionados com experiências da primeira infância. A psi­canálise tem como objetivo descobrir as causas ocultas de com­portamento e lidar com a vida em um nível consciente.

Hoje a psicologia clínica tem o que Gary Collins chama de imagem profissional “obscura” . Afastando-se do determinismo de Freud, os profissionais modernos não têm um senso unificado de direção. Eles estão divididos em uma variedade de teorias, técni­cas e opiniões. “Um psicólogo clínico aceita o método empírico” , afirma Collins, “mas também pode admitir que coisas difíceis de ser observadas, como esperança, significado, valores, motivos ou

I Abraham H. Maslow (1908-I 1970) era um de sete filhos de

uma fam ília im igrante no Brooklyn. Os biógrafos sugerem que pelo fato de ter se sentido socialmente isolado na escola, Maslow foi motivado a ser bem- sucedido academicamente para im pulsionar sua auto-estima. Sua introspecção levou-o a questionar a natureza e os va­

lores humanos e a fazer perguntas di- retas acerca da motivação. Mais que qualquer outro teorista famoso cm psicologia, Maslow preocupou-se

com valores e princípios éticos. Seu mé­todo principal em desenvolver a Hierar­quia das Necessidades, obra pela qual é mais conhecido, foi estudar pessoas específicas que ele considerava serem “auto-realizadas” . Desta forma espera­va descobrir “imperativos morais” que fossem responsáveis por mover as pes­soas além da mera sobrevivência para a realização significativa na vida. Seus livros mais frequentemente citados são: The Psychology o f Science (A Psicolo­gia da Ciência, 1966) e Motivation and Personaliiy (Motivação e Personalida­de, 1970)/

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U M A PER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A

metas, realmente existem e influenciam o comportamento.”6 P s ic o l o g ia H u m a n ist a

A concepção humanista de pessoas enfatiza a liberdade do in­divíduo em escolher o que fazer e ser. Incorpora a idéia de que o indivíduo deve ser encorajado a perceber seu próprio potencial. Alguns chamam o desenvolvimento potencial de auto-realização. As pessoas são responsáveis por suas vidas, e a responsabilidade não pode ser transferida a forças exteriores. O enfoque está prin­cipalmente no ser humano normal em vez de nas patologias ou problemas. Aplicar métodos de pesquisa com animais em huma­nos é desestimulado.

Neste contexto, o termo humanista implica um conceito de homem ou mulher que reconhece cada qual como pessoa, irredutível a níveis mais elementares, e seu valor singular como seres potencialmente capazes de julgamento e ação autónomos. Os humanistas seculares omitem o fato da criação de Deus e de­fendem a idéia da capacidade humana de transcender as condi­ções materiais e sociais em maneiras que sejam únicas aos seres humanos. “ O enfoque da psicologia humanista está sobre a especificidade do homem, sobre aquilo que o separa de todas as outras espécies. Difere de outras psicologias, porque vê o homem não somente como organismo biológico modificado pela experi­ência e cultura, mas como pessoa, uma entidade simbólica capaz de ponderar sua existência, de dar-lhe significado e direção.”7

A psicologia humanista chegou a ser chamada Terceira Força da Psicologia, porque começou na resistência às primeiras duas forças: a experimental e a psicologia clínica. Dois líderes muitas ve­zes citados neste contexto são Abraham H. Maslow e Cari Rogers.

A psicologia definida como o estudo científico do comporta­mento e processos cognitivos minimiza o papel da escolha e do livre-arbítrio e enfatiza as determinantes ambientais, fisiológicas e naturalistas do comportamento. Por outro lado, a Terceira Força da Psicologia acentua a natureza humana e é mais filosófica e especulativa que experimental ou clínica. Algumas de suas pres­suposições teóricas básicas podem ser resumidas assim:

1. Os seres humanos são agentes livres, que têm controle sobre seus destinos. O ambiente desempenha uma parte, mas nós fazemos escolhas significativas que podem nos mudar para pessoas melhores.

2. Em geral, uma pessoa melhor é aquela que é auto-realizada, que percebe seu próprio potencial.

3. Podemos entender o comportamento de outra pessoa na medida que podemos nos identificar com aquela pessoa ou com­partilhar sua cosmovisão de mundo, um ponto de vista muito dife­rente de tentar entender o comportamento com base em análise de estímulo-resposta.

4. A utilidade de grande parte da pesquisa empírica é questio­nada. Devemos tentar entender os indivíduos em vez das leis que

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governam o comportamento da espécie.5. O aqui e agora é acentuado em vez do passado ou futuro.

Devemos enfatizar as escolhas deste momento e não enfatizar as causas do passado.

A hierarquia de Maslow das necessidades que motivam o com­portamento representa contribuição importante para a Terceira Força da Psicologia. Maslow diz que os humanos são únicos entre os animais, porque exercem uma medida de controle sobre a pró­pria vida e, através da escolha, alcançam ou não o seu potencial mais alto. Na visão de Maslow, as experiências de auto-realização (ou seja, realizações do potencial) dão significado à vida.8

Dos livros didáticos seculares, os estudantes têm a impressão de que

a religião e a ciência são flagrantemente incompatíveis.

O P e n s a m e n t o C r is t ã o S o b r e P s ic o l o g ia

Em sua determinação de fazer a psicologia ajustar-se ao mode­lo da ciência natural, os psicólogos rejeitam as explicações religi­osas. Dos livros didáticos seculares, os estudantes têm a impres­são de que a religião e a ciência são flagrantemente incompatí­

veis. Mas os teólogos nos lembram de que o relato da criação inclui o mandamento de Deus para o povo cuidar da terra e de todas as cria­turas que nela há (Génesis 1.26-28). Menzies e Horton, por exemplo, interpretam o manda­mento como incentivo bíblico para o desen­volvimento da ciência física “que ajudaria as pessoas a aprender sobre a terra e como usá-la

corretamente” . “Era a permissão para avançar” , declaram eles, “em prol de uma ciência biológica que ajudaria as pessoas a aprender sobre todos os organismos vivos e como tratar deles” .9 Em parte, a afirmação dos teólogos de que a criação de Deus é ordeira e con­sistente (em contraste com a imaginação irracional e o m isticis­mo) estabeleceu um fundamento para o desenvolvimento da ciên­cia moderna.

Pensamento semelhante é revelado por Myers e Jeeves, que explicam que é provável que os cristãos que estudam os mecanis­mos do cérebro vejam a ciência e a fé como complementares. “A ciência explora os processos naturais em que subjazem tais fenó­menos, enquanto que a fé ajuda a entender o significado de todo o sistema humano.” 10 Por outro lado, os cristãos que estudam psico­logia geral ou treinam para trabalhar como psicólogos com pesso­as perturbadas vêem como as perspectivas (ou cosmovisões) da psicologia secular podem torcer o entendimento sobre a natureza humana. Assim , enquanto advertem os estudantes para estar cien­tes dos valores e pressuposições ocultas nos escritos seculares, também descrevem alguns “paralelos impressionantes entre o que os investigadores estão concluindo e em que os cristãos crêem” .11

Em resposta à pergunta da necessidade de uma psicologia cris­tã, a maioria dos estudiosos cristãos oferece em vários termos o

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U M A PE R SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 193conceito expresso no título do livro de Myers e Jeeves: Psychology Through the Eyes o f Faith (Psicologia pelos Olhos da Fé). Quer dizer, temos de examinar a verdade psicológica à luz da verdade cristã e não à parte dela. Podemos encontrar toda verdade neces­sária na B íb lia, mas ela não é um livro didático de psicologia. Deus nos dá princípios fundamentais que guiam nosso pensamen­to, mas E le deixa a nosso cargo pensar e aplicar o conhecimento.

Os psicólogos cristãos notam que todo achado básico nos estu­dos científicos do comportamento humano re­flete um pouco da verdade bíblica ou teológi­ca. Já declarei, mais grosseiramente, que os psicólogos seguem atrás dando pancadinhas leves nas costas da B íb lia . Um exemplo ilustrativo aparece em uma declaração de cer­to livro didático de teorias de aconselhamento.O autor diz que é “empolgante” sua descoberta de que as pessoas respondem melhor quando acreditam que a vida tem significado— chegando ao ponto de acreditar que o sofrimento tem um pro­pósito.12 Não acho que tal idéia seja nova. Ouvi-a pela primeira vez quando era criança na Escola Domin ical.

Os psicólogos cristãos concordam consistentemente que as principais teorias da personalidade estão relacionadas de perto com os temas religiosos. Muitos dos primeiros teoristas estava, ao lon­go da vida, pessoalmente envolvidos com a religião, sobretudo com o cristianismo. Embora muitas de suas palavras e ações pare­çam hostis ao cristianismo, suas teorias foram influenciadas por ele. Um exemplo é a teoria psicanalítica que fornece diretrizes para tratar as pessoas que sofrem de sentimentos de, por exemplo, culpa, fracasso, inadequabilidade ou inclinações más. As mesmas condições são tratadas na religião pelos conceitos de pecado, per­dão e graça.

Paul C . V itz, professor de psicologia e autor de muitos artigos de jornal, lembra-nos que as principais teorias da personalidade estão relacionadas de perto com a religião. E le menciona Freud, Jung, Adler e Rogers como teoristas que estavam pessoalmente envolvidos com religião. V itz afirma que muito da psicologia humanista de Cari Rogers pode ser entendida claramente como traduções de conceitos cristãos provenientes do mundo transcen­dente da teologia para o mundo natural da psicologia. “Declaro que há um campo da psicologia cristã” , explica V itz, “cujo propó­sito é desempacotar a psicologia oculta encontrada nas Escrituras e coordená-la com o conhecimento psicológico válido tanto para o campo científico quanto para o não científico.” 13

Outro forte proponente de uma psicologia cristã, Gary R . Collins, assevera ousadamente a esperança de que a psicologia pode ser reconstruída nos fundamentos da verdade cristã. E le pro- jeta uma psicologia imediatamente consistente com a verdade bí­blica revelada e a verdade descoberta por métodos científicos. Ele

Podemos encontrar toda verdade necessária na Bíblia, mas ela não é

um livro didático de psicologia.

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1 9 4 B ILLIE D A V IS

A palavra sociologia foi cunhada em 1830 pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857), que foi o primeiro a brincar com a noção de física social para designar uma abordagem científica ao estudo das associações humanas.

prossegue com base em quatro premissas. Primeiro, a psicologia é valiosa como ferramenta para entender a mente humana e o com­portamento humano e para desenvolver aplicações no tratamento dos problemas humanos. Segundo, as principais fraquezas têm como resultado a psicologia secular, porque suas teorias não ex­plicam as realidades humanas adequadamente. Não podem, por­que são construídas em pressuposições erradas sobre a origem e natureza das pessoas. Terceiro, os métodos da ciência não podem responder as questões essenciais, como as relativas a significado, propósito e condições espirituais dos seres humanos. Quarto, se Deus existe e revelou fatos cruciais sobre os seres humanos, então ou temos de incorporar tal revelação em nossas investigações, ou nunca formaremos uma visão completa da natureza humana. Collins conclui que precisamos reconstruir a psicologia, porque “Nenhuma outra visão mundial é tão lógica, interiormente consis­tente ou capaz de dar significando” como a da religião cristã.14

Perspectivas SociológicasDefinimos singelamente sociologia como um estudo da socie­

dade. A palavra social nos vem de um termo em latim que signifi­ca “ seguir” . Inclui a idéia de pessoas que estão ligadas, relaciona­das umas às outras em padrões. Então, é mais significativo dizer que a sociologia é um estudo das instituições - as estruturas e

Wm

Augusto Comte (1798-1857) nasceu em Montpellier, França. Foi o secretário e filho adotivo de Claude Henri Saint-Simon, que o inspirou a tomar-se filó ­sofo de carreira. Pelo fato de ter tido pouca educação form al, Comte não pôde ocupar as posi­ções pedagógicas que desejava. Contudo, perseverou em estudar e escrever e, com um cargo se­cundário de conferencista, pôde

atrair estudiosos para as suas idéias. Hoje é geralmente reconhecido como fundador da escola filo só fica do positivismo, que presume que o co­nhecimento válido só.pode ser obti­do por meio de métodos científicos. Foi ele que cunhou o termo sociolo­

gia, com o que queria dizer um tipo de “física social” , que revelaria as leis cien­tíficas da sociedade. Sua teoria era que se as instituições sociais, como o gover­no, fossem construídas em princípios c i­entíficos, as pessoas viveriam em harmo­nia em vez de discutirem sobre afirma­ções disputadas de filosofia, metafísica e religião. Os escritos pelos quais é mais conhecido são The Positive Philosophy (A Filosofia Positiva), em seis volumes, publicada em 1842, e System o f Positive Philosophy (Sistema da Filosofia Positi­va), em quatro volumes, 1851. Uma ex­celente fonte em inglês éAuguste Comte and Positivism: The Essenlial Writings (Augusto Conte e o Positivism o: As Obras Essenciais) Gertrud Lenzer, editor, Nova York: Harper Torchbooks, 1975.

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U M A PER S PEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 195processos formados por pessoas em associação. As instituições são construídas e perpetuadas, reproduzidas e mudadas, à medida que as pessoas agem juntas, em cooperação ou conflito, para sa­tisfazerem necessidades reais. As instituições usualmente tratadas pelos sociólogos incluem a fam ília, o governo, a economia, edu­cação e religião. Recentemente a saúde e, às vezes, o esporte e a recreação foram acrescentados à lista.

Durante grande parte da história humana, as pessoas viveram em organizações sociais tidas como certas. Quer dizer, a maioria das pessoas não questionava sua ordem social. Por exemplo, nas antigas eras medievais do Oriente Próximo e Europa, poucas pes­soas questionaram a posição social de reis, governantes, mordomos, escravos, criados, ricos, pobres e a hierarquia dos sacerdotes. A po­pulação mundial era pequena e dispersa. Havia pouca razão para muitas das pessoas suporem que seu estilo de vida não era natural. Então, no século X IX , o mundo entrou num período de mudanças sempre cres­centes. As revoluções políticas transtornaram a ordem tradicional.

A Revolução Industrial, com seus avanços tecnológicos, o pro­digioso crescimento da população e a multiplicação das cidades foram fatores importantes que radicalmente mudaram as relações humanas. As mudanças resultantes tomaram as pessoas mais cons­cientes, mais prontas a fazer perguntas, como nunca antes.

A sociologia desenvolveu-se durante esse período de mudan­ça, tanto quanto a psicologia. Os filósofos e teólogos fizeram as perguntas primeiro: O que faz a sociedade ser como é? Por que e como as pessoas associam-se em padrões e formam instituições? Que forças mantêm os padrões sociais estáveis? Como e por que mudam?15 Influenciados pelo sucesso das ciências naturais em explicar o mun­do material, alguns estudiosos decidiram aplicar os mesmos mé­todos para um estudo da sociedade. Eles criam que se a ciência natural pudesse descobrir leis universais em que subjazam os fe­nómenos que eles estudavam, então uma ciência da sociedade de­veria poder descobrir e explicar padrões na associação humana.

Os fundadores da sociologia como ciência expressaram mais que um desejo em analisar a sociedade. Percebendo o tumulto e desarranjo da moralidade e dos valores tradicionais, eles pensa­ram que a sociedade poderia ser melhorada se suas estmturas e processos pudessem ser entendidos. O conhecimento de padrões sociais deveria ajudar os estudiosos a definir “ leis” sociais seme­lhantes às leis na natureza, como a lei da gravidade. Argumenta­ram que para resolver os problemas sociais poderiam se basear só no conhecimento científico.

Tal pensamento conduziu a várias teorias que justificam as políticas e programas sociais. De interesse aqui é o fato de que definir um problema social envolve pressuposições sobre a natu­reza humana. Quando definimos um problema como social, im­plicamos que ele é causado principalmente por forças fora do in­divíduo. Uma pessoa fica desempregada por que é preguiçosa ou

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por condições económicas adversas? Até que ponto o divórcio, a falta de moradia e a maternidade de mães solteiras devem, por exemplo, ser definidos como problemas sociais?

Melhorar a sociedade motivou Ém ile Durkheim a estudar os fenómenos sociais. Muito de sua pesquisa objetivou demonstrar que as estruturas e processos sociais poderiam ser tratados como objetos de investigação científica. Nesta conexão, ele usou o ter­mo fatos sociais. Por exemplo, a fam ília existe como uma relação. E um fato social. Durkheim viu o fator de relação, ou sociedade, como forma distinta da realidade. Por exemplo, o conceito família é diferente do conceito de várias pessoas. E le ilustrou este ponto pela referência à água.

Quando os elementos físicos do hidrogénio e oxigénio associ­am-se em proporções adequadas e sob certas condições, surge um produto distinto (a água). A água tem características que não po­dem ser atribuídas a qualquer um dos seus elementos constituin­tes. Nem o oxigénio nem o hidrogénio, por exemplo, podem apa­gar o fogo, mas a água pode. Semelhantemente, quando as pesso­as interagem para formar uma sociedade (por exemplo, fam ília, organização, estado) normas, crenças e valores coletivamente com­partilhados desenvolvem-se ou surgem.16

191.7), filósofo francês que se- deriam ser aplicados às condições soci- guiu Comte, descendia de longa ais, o racismo, por exemplo, da mesma linhagem de rabinos judeus. Cri- maneira que o conhecimento da ciência ado para ser rabino, rejeitou a natural é aplicado para melhorar as con- religião pessoal para estudá-la dições da vida física. Comte tinha nome- como fenómeno social. Embora ado a sociologia. Durkheim legitimou-a Durkheim seja conhecido por no mundo académico e tornou-se o pri- seu agnosticismo, foi seu interes- meiro a receber o título de professor de se pelos valores morais existen- sociologia. Seu trabalho teve influência tes na sociedade que o dirigiu profunda na sociologia como ciência, o campo da sociologia. Preocu- uma disciplina académica e uma ferra-

pava-lhe a degeneração moral na so- menta na reforma social. Ele desenvol- ciedade francesa. Seu campo pedagó- veu metodologia precisa e demonstrou-a gico na Universidade de Bordeaux em estudos que ainda são modelos para a incluía educação moral para profes- teorização e investigação sociológicas, sores escolares. Seu interesse no mé- Trabalhos notáveis: As Regras do Méto- todo científico surgiu por ele acredi- do Sociológico (1893), Da Divisão do tar, como Comte, na possibilidade de Trabalho Social (1895), O Suicídio poder-se acabar com a desordem (1897)e As Formas Elementares da Vida moral descobrindo-se princípios mo- Religiosa (1915).

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U M A PER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 197A preocupação de Durkheim pela ordem social o levou a estu­

dar a origem e o papel da religião. E le propôs que a função da religião é unir a sociedade e assegurar que os indivíduos ajam em consenso com o bem comum. Portanto, a religião é criada pela sociedade para este propósito. Embora tivesse reconhecido a exis­tência de um Ser sobrenatural, ele afirmou que a religião é univer­sal, porque as pessoas devem ter compartilhado valores morais para sobreviver como sociedade.

O trabalho de Durkheim foi muito importante para o estabele­cimento da sociologia como estudo singular dos seres humanos que não podem ser reduzidos ao estudo da psicologia. Sua maior contribuição para as explicações da natureza humana é a idéia de um “estado de consciência” , que não é estritamente individual. Este estado de consciência, diz ele, vem da sociedade, transfere a sociedade para nós e nos conecta com algo que nos ultrapassa e nos dirige em direção aos “fins que mantemos em comum com as outras pessoas” .17

A sociologia moderna é dividida em muitas escolas de pensa­mento; a maioria incorpora de algum modo a visão de Durkheim de sociedade como força determinante na vida dos indivíduos. Os sociólogos estão divididos na questão de como as pessoas criam a sociedade e, depois, são criadas por ela. Suas teorias diferem uma da outra mais no grau e características da influência social. Os três modelos apresentados a seguir formam em geral a base de funcio­namento para a investigação sociológica moderna. Note que cada um envolve algumas presunções sobre a natureza humana.

M o d e l o F u n c io n a l -e s t r u t u r a l

O modelo funcional-estrutural está baseado na visão da socie­dade como um sistema de partes que trabalham para formar um todo relativamente estável. A sociedade é composta de duas par­tes: estrutura e função. A estrutura refere-se a padrões persisten­tes, como fam ília, religião, governo ou sistemas económicos. Cada estrutura tem funções necessárias para a estabilidade e continua­ção da sociedade em sua forma atual. Uma função é determinada encontrando-se as necessidades que estão dentro do sistema intei­ro. As instituições desenvolvem-se a partir da necessidade da so­ciedade por controle. O corpo humano é usado como ilustração. Cada parte tem estrutura e funções específicas que contribuem para a existência do todo.

Na sociedade, as instituições separadas são mutuamente de­pendentes, como os órgãos do corpo, e trabalham juntas para manter a organização social e a ordem. Os teoristas funcionais-estruturais concentram-se em como a sociedade é unificada e estabilizada. (Deixam de questionar o conflito e a mudança social.) Este mode­lo originado do trabalho de Comte e Durkheim foi mais tarde de­senvolvido nos Estados Unidos, sobretudo por Talcott Parsons e Robert K . Merton.18

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M o d e l o d e C o n f l it o

As teorias de conflito enfatizam o conflito como fator contí­nuo na vida social. Conflito, não unidade, é o processo que mais influencia o caráter da sociedade e causa mudança. A sociedade é vista como fragmentada, não integrada como um corpo. Tópicos principais de consideração incluem as desigualdades de classe e a distribuição desigual de recursos e oportunidades. As pessoas se dividem em grupos de interesse. Praticamente todos os padrões sociais favorecem algumas pessoas em detrimento de outras, as­sim a sociedade está em luta constante.

Posso ilustrar de minha experiência de infância como a teoria funcional e a teoria de conflito diferem de ponto de vista. O traba­lho migratório é funcional para a comunidade da agricultura, à medida que as plantações em vários lugares ficam maduras para a colheita. Mas promove um sistema de classe que deixa algumas pessoas da comunidade ou cidade sem benefícios e privilégios.

Karl Marx é a figura mais importante na origem e desenvolvi­mento da teoria de conflito. Marx não se considerava sociólogo académico, com a meta de estudar a sociedade, mas, antes, um

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mais direta e precisamente que outros teoristas, abordou a questão do que faz as pessoas serem o que são. O ego é a única capacidade humana capaz de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto. Conse- qiientemente, ele pressupõe um processo social: a comunicação entre os seres hu­manos. O ego não pode se desenvolver sem contato social, mas quando desen­volvido, pode continuar existindo como mente consciente de si mesma. A pessoa comunica, ouve e responde a si mesma.

Mead não produziu trabalhos escritos no mesmo nível que outros teoristas impor­tantes. O trabalho que esboça seu pensa­mento e tem influenciado grandemente a sociologia e a psicologia social, 1’oi resul­tado da reunião de suas notas e documen­tos, completados em 1934. Trata-se de Mind, S e lf and Society: Frorn the Standpoint of a Social Behaviorist(A Men­te, o Ego e a Sociedade: Do Ponto de Vista de um Behaviorista Social, 1962).

George Herbcrt Mead (1863- 1931), nascido em South Hadley, Massachusetls, foi treinado em filosofia e psicologia social, e tornou-se líder no desenvolvi­mento do interacionismo simbó­lico . Depois de colar grau de bacharel pela Faculdade de Oberlin, onde seu pai era profes­sor, ele ensinou na educação se­

cundária, depois estudou em Harvard e nas Universidades de Leipzig e Berlim . Embora nunca tivesse cola­do grau universitário, ele ensinou por pouco tempo na Universidade de Michigan e, depois, pelo resto da vida, na Universidade de Chicago. Mead era mais conhecido por sua ca­pacidade pedagógica. Os estudantes raramente perdiam suas aulas, e sob sua influência alguns se tornaram so­ciólogos importantes.

Ao tratar o conceito do ego, Mead,

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U M A P ER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 1 9 9

ativista, procurando meios de mudar e melhorar a sociedade. (Veja box sobre Karl Marx no Capítulo 1 e no Apêndice 3.) Teoristas mais recentes basearam-se no trabalho de Marx para enfatizar como as partes da sociedade contribuem para a mudança em vez da es­tabilidade, para o conflito em vez do acordo sobre valores e leis.

M o d e l o d e I n t e r a ç ã o S im b ó l ic a

O “ interacionismo simbólico” desenvolveu-se na Universida­de de Chicago, na década de 1920.0 nome foi cunhado por Herbert Blumer, num ensaio de 1937.19 Embora exista uma grande varie­dade de perspectivas e várias bases sejam citadas por estudiosos no campo, muitas fontes nomeiam George Herbert Mead como o contribuinte mais in fluente para o modelo básico.

As teorias da interação simbólica diferem do modelo estrutu­ral, funcional e de conflito, de um modo distintivo: a consideração sobre como as pessoas experimentam a sociedade mais que com descrições da sociedade como um todo. Este modelo fornece base para o desenvolvimento de teorias na psicologia social: o estudo de como as pessoas se relacionam, afetam umas às outras e são afetadas pelas pessoas e gru­pos. Os estudiosos que o articularam estavam buscando meios de evitar a idéia de que as ações individuais ou são diretamente determi- nadas pelos estados psicológicos internos, ou por forças estrutu­rais da sociedade. Ao invés disso, a pessoa experimenta a socieda­de por contatos com os outros.

Os gestos e o idioma - símbolos significantes - tomam a co­municação possível. A mente e o ego emergem desses contatos. A habilidade de ver a si mesmo do ponto de vista dos outros é essen­cial para formar o ego e organizar atividades de grupo. A medida que as pessoas interpretam os significados de símbolos e agem de acordo com suas interpretações, padrões de interação formam a sociedade. Mais uma vez vemos a questão subjacente que toma a investigação sociológica importante para todos nós: Até que pon­to criamos a sociedade e até que ponto a sociedade nos cria?

Eis a questão subjacente da nvestigação sociológica: Até que ponto criamos a sociedade e até que ponto a sociedade nos cria?

D uas T r a d iç õ e s F o r m a m a S o c io l o g ia M o d e r n a

Os primeiros sociólogos americanos estavam divididos em suas respostas a questões sobre a natureza humana e as qualidades es­senciais da sociedade. Segundo Comte e Durkheim, alguns se ape­garam ao conceito de sociedade como uma coisa em si mesma (separada da pessoa individual) a ser estudada objetivamente. Deste pensamento desenvolveu-se a sociologia naturalista (às vezes chamada positivista). Os sociólogos estudam o comportamento humano da mesma maneira que os cientistas naturais estudam as propriedades e interações físicas. Eles acreditam que os seres hu­

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manos individuais estão sujeitos a leis que determinam a ação, e esperam enunciar leis da sociedade - algo muito parecido com os cientistas naturais que enunciam leis da física e da química. As pessoas são, a certo nível significativo, socialmente determina­das, e representam as demandas e expectativas da sociedade. A categoria naturalista inclui tanto a teoria estrutural na sociologia quanto o behaviorismo na psicologia.

Outros estudiosos pensaram mais como Karl Marx e Max Weber, no sentido de que a sociedade é composta de pessoas interagindo em um complexo dinâmico de relações. Esta aborda­gem conduz à sociologia humanista. Rejeita a idéia de que a soci­ologia tem de seguir exatamente o padrão da ciência natural. In­vestigar os problemas sociais é mais importante que as estruturas ou a metodologia. As pessoas não são objetos passivos das forças sociais, mas têm vontade e escolha. (Esta visão aparece na análise de Marx de que a economia não é tanto uma estrutura quanto o efeito da luta de classes) As pessoas são potencialmente boas e capazes de influenciar seu ambiente se estiverem cônscias das condições e possibilidades. A reforma social é uma consideração principal para o teorista de conflito. Além disso, um propósito prin­cipal do conhecimento sociológico é dar às pessoas ferramentas para projetar um mundo melhor.

Recentes comentaristas citam o desenvolvimento contínuo dos dois conceitos, naturalista e humanista, como um problema para o

‘We&etiMax Weber (1864-1920), so­

ciólogo alemão, é considerado pela maioria dos historiadores de sociologia o indivíduo que, mais que qualquer outro, influenciou o desenvolvimento da sociologia ocidental. O pai de Weber é des­crito como burocrata bem-suce­dido, ligado ao meio político e à vida de prazeres mundanos da sociedade de classe média. Sua

mãe era calvinista devota que prefe­ria um estilo de vida ascético. A ten­são entre os dois indubitavelmente influenciou Weber à medida que ele tentava reconciliar o positivismo de Durkheim, as teorias de conflito de Marx e a influência na sociedade de idéias, como a religião protestante.

Diferente de Durkheim, ele rejeitou a idéia de um conjunto de leis que explica­riam o comportamento social. Diferente de Marx, ele rejeitou a idéia de que o sis­tema económico é o fator determinante primário do pensamento e das relações humanas. Ele buscou desenvolver uma sociologia que responderia pela natureza complexa da vida social. E le está entre Durkheim e Marx como humanista, po­rém mais erudito que revolucionário.

Weber produziu escritos volumosos dos quais o seguinte é representativo: Essays in Sociology (Ensaios sobre So­ciologia, 1946); The Protestam Ethic and the Rise o f Capitalism (A Ética Protes­tante e o Surgimento do Capitalismo, 1904-1905; 1958); Econorny and Society (Economia e Sociedade, 1978).

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U M A P ER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 201futuro da disciplina. A sociologia moderna não é nem uma ciência pura da vida, como a biologia, nem simplesmente um movimento de reforma social impulsionado pela pesquisa. Alguns vêem uma crise de identidade para a disciplina. Eles estão desapontados com o fracasso de a sociologia cumprir as expectativas de seus funda­dores. Em seu estado presente, ela não é uma ciência exata e não tem mudado o mundo até o ponto em que alguns dos seus primei­ros proponentes tinham esperado.20

O P e n s a m e n t o C r is t ã o S o b r e S o c io l o g ia

Os cristãos que estudam sociologia vêem que as divisões e dis­putas entre os teoristas são o resultado principalmente de sua in­terpretação equivocada da natureza e origem humanas. Tanto a tradição naturalista quanto a humanista, das quais a sociologia moderna se desenvolveu, são limitadas em suas tentativas de descrever a re­alidade, porque omitem a verdade da criação e são incapazes de entender o propósito da hu­manidade. Poderíamos dizer, ironicamente, que o que foi demonstrado na história da sociolo­gia é que a ciência não pode substituir a reli­gião, e que os seres humanos são atores volun­tariosos . Vários estudiosos cristãos tiraram pro- veito da fenda entre a sociologia naturalista e a sociologia humanista para sugerir modelos baseados em pressuposições bíblicas sobre a natureza humana.

Margaret M. Paloma declara: “É a questão da natureza deter­minada da pessoa que tem a chave para analisar as diferentes pers­pectivas teóricas” . E la esboça pressuposições sobre a pessoa tanto da sociologia naturalista quanto da humanista, e postula uma sín­tese que admite as verdades bíblicas. Uma teoria naturalista, como a de Durkheim, contém duas pressuposições implícitas: 1) que as pessoas são criaturas caídas cuja redenção pode ser possível por um mundo ordeiro e 2) que as pessoas são determinadas por estruturas sociais e normas. As principais pressuposições da sociologia humanista são: 1) que as pessoas, por natureza, são mais boas que ruins, e 2) que o mal presente pode ser eliminado libertando as pessoas de constran­gimentos opressivos. As pessoas não são determinadas absolutamen­te pela sociedade, mas devem ser estimuladas a uma conscientização de sua situação, de modo que possam fazer mudanças.

Paloma acredita que cada uma destas perspectivas concorda parcialmente com a imagem bíblica da pessoa. As pressuposições naturalistas são compatíveis com o conceito do pecado original, mas não com as doutrinas da criação e do livre-arbítrio. As pres­suposições humanistas são compatíveis com a visão da humani­dade criativa, mas não com a verdade da natureza caída e a inca­pacidade humana de prover sua própria redenção. E la sugere um modelo sociológico cristão que responde: 1) pela realidade da

As divisões e disputas entre os teoristas são o resultado principalmente de sua

interpretação equivocada da natureza e origem humanas.

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humanidade caída, moldada pela estrutura social, e 2) pela pessoa redimida que experimenta a salvação em Cristo e depois age como agente, pelo poder do Espírito Santo, para influenciar a sociedade conforme o plano de Deus.21

“Sempre obtenho um senso de prazer pessoal na conclusão de que estes princípios bíblicos foram determinados por Deus muito tempo antes que algum sociólogo moderno topasse com eles na pesquisa.” E deste modo que Russell Heddendorf começa seu li­vro Hidden Threads (Linhas Ocultas). Como suas palavras e o título implicam, ele opina que as verdades essenciais sobre as pes­

soas e a sociedade podem ser encontradas na B íb lia . Os sociólogos têm descoberto parte desta verdade. Usualmente inconscientes de sua fonte original, eles tentam explicá-la nas condições hum anas. A ssim , afirm a Heddendorf, podemos encontrar “linhas ocul­tas” nas Escrituras à medida que estudamos

sociologia. Esta abordagem nos ajuda a apreciar o trabalho de refle­xão de estudiosos, mesmo que nos lembremos de que as falhas e con­tradições podem ser o resultado de suas pressuposições não bíblicas.22

Outro defensor de aprender a ver a verdade humana de uma perspectiva cristã é Richard Perkins, autor de Looking Both Ways— Exploring the Interface Between Christianity and Sociology (Olhando para ambos os Lados — Explorando a Interface entre o Cristianismo e a Sociologia). Estudar sociologia, explica ele, pro­move o desenvolvimento potencial humano pela reflexibilidade - a habilidade de observar-se a si mesmo e olhar a vida de mais de uma perspectiva. Com frequência os cristãos se sentem ameaça­dos pela sociologia, porque seu método é analítico.

Em vez de olhar o comportamento humano da perspectiva das diferenças individuais, a sociologia teima em considerar muitos fatores sociais. Por exemplo, tendemos a pensar nas pessoas que fracassam academicamente como menos inteligentes ou menos ambiciosas; pobreza é fracasso pessoal; crime é pecado. Os soció­logos sugerem que o fracasso escolar e a pobreza podem ser o resultado da injustiça social; aquele crime poderia ser proveniente da pobreza como também da imoralidade pessoal.

Perkins acredita que a sociologia pode ajudar os cristãos a se tornarem mais cheios de insights. Ele usa o termo marginal como eu uso ao pensar em minha experiência migratória. Se aprender­mos a pensar como sociólogos cristãos, poderemos olhar para ambos os lados. Nossa tendência a pensar somente na religião como salvação pessoal e fé pode ser corrigida à medida que formos com­preendendo as implicações sociais da vida e ensinamentos de Je­sus. “Precisamos da reflexibilidade que o Cristianismo bíblico e a sociologia podem prover - não apenas cada perspectiva aprendi­da, mas ambas as perspectivas combinadas, de forma que uma possa agir como desafio para a outra.”23

202 BILLIE D A V IS

Com frequência os cristãos se sentem ameaçados pela sociologia,

porque seu método é analítico.

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U M A P ER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 3

David A . Fraser e Tony Campolo concluem seu livro Sociology Through the Eyes o f Faith (Sociologia pelos Olhos da Fé) com sugestões para combinar as verdades da sociologia com o pensa­mento cristão. Eles expressam pesar pelo fato de alguns cristãos mal informados rejeitarem completamente a sociologia, e a cha­marem de “nada mais que humanismo secular” . Esses sociólogos cristãos recomendam com insistência que os estudantes não ne­gligenciem o que a disciplina tem a oferecer. De maneira oposta, alguns são levados pelas explicações seculares a acreditar que os fenómenos religiosos são “nada mais que a operação de princípi­os sociais e psicológicos” .

Fraser e Campolo usam a expressão “parceria pela verdade” para descrever o modelo para evitar extremos. Os cristãos podem tirar proveito do conhecimento sociológico útil e, ao mesmo tem­po, ajudar outros a compreender as verdades bíblicas. A aborda­gem deles representa uma estratégia que cria os parceiros do diá­logo numa conversa cuja meta é descobrir e expressar a verdade. “A maior premissa é que a verdade de Deus na B íb lia e a verdade das realidades sociais são compatíveis, mesmo quando essa com­patibilidade nem sempre é imediatamente óbvia.”24

Alguns Princípios da Personalidade

Um dos meus professores de faculdade pediu que os alunos deixassem todos os pertences no corredor durante as provas. Lem­bro-me de ter olhado as pilhas de livros e roupas e pensado: Ele não gosta de nós. Ele pensa que todos nós somos trapaceiros.

O que cremos ser verdade sobre as pessoas afeta em geral o modo como tratamos indivíduos e grupos. Desde os mais prim iti­vos registros do pensamento humano ficamos sabendo que as pes­soas procuraram analisar a natureza humana, a ------------------fim de planejar relações e estabelecer a ordem social. Implícito nos escritos antigos de todas as civilizações está o conceito de que a bonda­de humana está, de alguma maneira, compro­metida. Grandes pensadores sentiram o poten­cial para o bem e ficaram perplexos com a in­capacidade das pessoas viverem no potencial delas.25 Uma idéia comum passa por todos os filósofos sociais: O comportamento humano é dirigido por uma sensação de necessidade que deve ser satisfeita, contida ou dirigida.26

Esforços em aplicar o conhecimento da psicologia e sociolo­gia conduziram a uma estratégia e conclusão semelhantes. Para saber como aproximar-se das pessoas e provocar mudanças dese­jadas, psicólogos, assistentes sociais e pedagogos tiveram de per­guntar: Como as pessoas realmente são? Muitos deles responde­ram descrevendo os seres humanos em termos de necessidades.

Os cristãos podem tirar proveito do conhecimento sociológico útil e, ao mesmo tempo, ajudar outros a

compreenderem as verdades bíblicas.

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2 0 4 BILLIE D A V IS

Durante meus anos nos campos de colheita, os estudiosos usa­ram vários termos, como desejos e impulsos, para descrever o que a maioria deles hoje chama de necessidades. Engendraram várias listas e teorias que explicam como a satisfação das necessidades relacionam-se com o comportamento. Em um princípio eles con­cordam: Todos os seres humanos, de algum maneira, tentam satis­fazer suas necessidades. O comportamento negativo é resultado de não se saber quais são as necessidades reais ou de procurar satisfazer as necessidades reais de maneira errada. As personali­dades individuais desenvolvem-se do modo como as pessoas per­cebem suas necessidades e procuram satisfazê-las.

T eo r ia s d e S a tisfa ç ã o d e N e c e ss id a d e

A Hierarquia de MaslowA hierarquia de necessidades elaborada por Abraham Maslow

é o melhor modelo conhecido de teoria de satisfação das necessi­dades. E le relaciona cinco necessidades, começando com as que ele considera muitos básicas. Sua teoria sugere que não somos

motivados a satisfazer as necessidades superiores até que as inferiores sejam sa­tisfeitas. Por exemplo, um homem com fome procuraria arranjar comida antes de sentir-se em segurança. Uma mulher pre­ocupada com sua segurança se importaria menos com o que as pessoas pensam dela. Em suma, esta é a hierarquia:

1. Necessidades fisiológicas - sobre­vivência, funcionamento físico do corpo.

2. Necessidades de segurança - prote- ção, estabilidade, liberdade do medo.

3. Aceitação e amor - afeto, aceitação dos outros.

4. Necessidades de estima - amor-pró- prio, sensação de domínio e realização.

5. Auto-realização - a necessidade de desenvolver o pleno potencial.27

O Modelo de BrillNaomi I . B rill propõe um modelo no qual duas categorias prin­

cipais de necessidades — a necessidade de segurança e a necessi­dade de oportunidade para crescer — estão relacionadas com cin­co aspectos da personalidade humana: o aspecto físico, o aspecto emocional, o aspecto intelectual, o aspecto social e o aspecto es­piritual.28

Diferente do modelo de Maslow, o de Naomi não coloca as necessidades numa hierarquia. Cada categoria de necessidade in­terage com cada aspecto da personalidade.

A hierarquia de necessidades de

Maslow

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U M A PE R SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 5

A primeira necessidade primária é de segurança. O aspecto físico da personalidade expressa a necessidade de bens materiais. O aspecto emocional, a necessidade de amor e aceitação. O aspec­to intelectual, a necessidade de saber, entender e dominar o co­nhecimento e as habilidades. O aspecto social, a necessidade de relacionamentos significativos. Finalmente, o aspecto espiritual expressa a necessidade de ter satisfações internas.

A segunda necessidade primária é de oportunidade para cres­cer. As pessoas precisam de algo mais que segurança. Precisam da oportunidade de crescer, desenvolver a maturidade e alcançar o potencial em cada um dos cinco aspectos da personalidade.

P er spec tiv a s H u m a n ist a s

O que torna as pessoas reais? Embora muitos estudiosos ten­tem evitá-la, até certo ponto todas as suas teorias dependem desta questão. Minhas pesquisas indicam que alguém em cada geração tentou caracterizar a natureza humana - descrever qua­lidades e comportamentos específicos que põem as pessoas de lado de todas as outras nature- zas. Pesquisas nas ciências sociais e comportamentais concentram-se muitas vezes nas semelhanças entre os seres humanos e os animais inferiores. Por exemplo, os antropólogos enfatizam que os seres humanos e os animais inferiores têm a habilidade de apren­der, fazer ferramentas, comunicar-se e formar relações sociais. Além de concordarem nestas habilidades, os antropólogos têm obtido pouco con­senso. Por exemplo, discordam sobre quais características são diferentes ape­nas em grau e quais são diferentes em tipo.

Uma exposição ambiciosa da psicologia humanista arrola as características humanas em duas categorias: as características

ASPECTOSESPIR ITU AIS

OINDIVÍDUO

TOTAL ASPECTOSIN TELECTUAIS

ASPECTOSSOCIAIS

SEGU RAN ÇA — Amar e ser amado, re- lacionar-se com os ou­tros, ter as necessidades materiais satisfeitas.

comportamentais, que são aces­síveis à observação direta, e as características experienciais, que requerem relatórios subjetivos, inferências e interpretação. Entre as características comportamentais estão: idioma que seja organiza­do e governado por normas; fabricação de ferramentas no sentido mais abrangente, incluindo o uso de fogo e as ilimitadas invenções e tecnologia; e produção de cultura, significando a variedade infinita das adaptações humanas, costumes, leis, religião e todas as atividades desenvolvidas para satisfazer as necessidades não biológicas.

OPORTUNIDADE D E CRESCIM EN TO — Desenvolver a maturida­de e a realização do po­tencial máximo.

A Hierarquia de necessidades de Brill

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As características experienciais incluem a consciência refle­xiva, a consideração ética, os desejos estéticos, a consciência his­tórica e a preocupação metafísica. A consciência reflexiva refere- se à habilidade de saber e saber que sabe, para engajar-se na ima­ginação, autocrítica, formulação de hipóteses, especulação filosó­fica e o desenvolvimento do conceito de si mesmo. A considera­ção ética significa um senso de certo e errado, de bom e de mau, e muitos valores transcendentes que não podem ser responsabilizados pelo condicionamento social. Os desejos estéticos são os expres­sos nas atividades que servem somente para o propósito do prazer sensório ou simbólico, destituído da preocupação utilitária.

A consciência histórica, ou uma sensação de tempo, diz respei­to à capacidade de olhar para trás e planejar para frente, e estar ciente da morte. Finalmente, a preocupação metafísica leva a fazer pergun­tas últimas, a capacidade de lidar com o infinito, a eternidade, as origens e os propósitos últimos e a expressão da religião.29

Perspectivas BíblicasDuas idéias emergem de todos os estudos e controvérsias so­

bre a natureza humana. Uma é que a religião é comportamental e experiencialmente universal. A outra é que todos os cientistas e estudiosos reconhecem uma qualidade humana que mantém-se significativamente à parte, e com a qual todas as outras caracterís­ticas humanas estão relacionadas. É a nossa capacidade extraordi­nária de lidar com símbolos.30 Quando os investigadores seculares declaram que o idioma é um instinto humano sem igual, meu res­peito pela erudição se eleva. Acredito que descobriram por estudo diligente e meditação aquilo que aprecio como a verdade básica da relação divina-humana. Deus nos criou com a capacidade de entender e criar o idioma, ou nunca poderíamos ter conhecido o Verbo ou sabido que o Verbo se fez carne (João 1.14).

As crianças nascem religiosas? Interpretando o religioso como uma força em direção ao relacionamento com Deus, creio que sim. Baseio meu raciocínio em duas outras questões: As crianças nas­cem com fome? Por quê?

A psicologia e a sociologia nos dão muitas informações valio­sas, mas deixam de explicar adequadamente como e por que nos­sas ações são o resultado de nossas necessidades. Seus esforços em explicar deixam a desejar, porque omitem o fato do propósito humano. Antes de respondermos a pergunta do que faz as pessoas serem o que são, temos de enfrentar a pergunta maior: Para que são as pessoas? Só nas Escrituras podemos achar uma explicação adequada. Deus formou os seres humanos para que estes cumpris­sem o propósito dEle. Se não entendermos esse propósito, nada fará sentido completo. Esse propósito é glorificar a Deus, amar e ser amado por E le , e desfrutar para sempre da interação com Ele e sua criação.

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U M A PER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 7

Pense no relato do Génesis. Deus criou Adão e Eva à sua ima­gem. Ele convidou Adão a unir-se na criação dando nomes aos animais. Sua primeira reflexão sobre Adão foi que ele precisava de uma companheira. Poder-se-ia dizer que a primeira interação de Deus com os seres humanos foi uma sessão pedagógica: Ele lhes disse para se reproduzirem e encherem a terra. Ordenou-lhes que cuidassem de sua criação. E não menos importante, ao deter- minar-lhes que não comessem de certa árvore, estava lhes dizendo para conterem seus impul­sos e serem obedientes à sua autoridade.

Não podemos ir longe ao fazermos pergun­tas sobre a natureza humana sem emitirmos a declaração básica de que somos criados por Deus para seus próprios propósitos. Compar­tilhamos sua imagem mas, como parte da criação, estamos sujei­tos às leis naturais. As vezes, choco meus estudantes ao dizer: “Suponha que você fosse Deus. Diante dos propósitos declarados, que tipo de pessoa você criaria? Que qualidades essenciais você lhe daria para tomar possível a realização desses propósitos?” A resposta é que você formaria dentro da natureza de sua criatura, junto com o potencial para o desenvolvimento, necessidades - fortes desejos ou apetites. Assim Deus criou as pessoas com ne­cessidades. Deu-lhes fome para que comessem e sobrevivessem. Deu-lhes desejos sexuais que incentivassem a intimidade humana e assegurassem o acasalamento e a procriação.

Então, será que Ele as deixaria sem um apetite espiritual para incitá-las à razão última delas existirem? Não. Ele as criou com uma necessidade de Deus, à qual seu Espírito falaria, atraindo-as a Ele . As necessidades poderosas de amor e aceitação movem as pessoas para formar relações atenciosas com Ele e outros seres humanos.

Porque o propósito básico da humanidade é estar com Deus, nossa necessidade primária é estar em harmonia com Ele . Esta necessidade leva-nos a procurar e aprender e, assim, desenvolve­mos as qualidades da imagem de Deus. Nossa necessidade de pen­sar e escolher, criar e ser tudo a que fomos designados ser, faz-nos potencialmente compatíveis com nosso Criador. A B íb lia começa com Deus criando os seres humanos e dando-lhes instruções concernentes ao seu propósito para as pessoas e a natureza. Do relato da criação do Génesis à Grande Comissão registrada no Evangelho de Mateus, a B íb lia é uma história de como Deus tra­balha nas pessoas para gerar e manter seu propósito.

Nosso propósito é o propósito de Deus. O pecado entrou na nossa natureza quando este potencial de ser como Deus foi explo­rado de modo abusivo. A Queda de Adão e Eva é a demonstração original de como todos os males e dificuldades são provenientes de não entendermos as necessidades reais humanas, ou de tentar­mos satisfazê-las de maneira errada.

Suponha que você fosse Deus. Diante de propósitos declarados, que tipo de pessoa você criaria?

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2 0 8 BILLIE D A V IS

O C o n c e i to P esso a I n c l u i R e la c io n a m e n t o s

Considere as seguintes declarações sobre você e os outros. Você compartilha com os outros algumas necessidades e metas. Você interage com essas pessoas e trabalha com elas de vários modos para satisfazer suas necessidades e alcançar suas metas. Você re­conhece um padrão em seus relacionamentos, inclusive liderança,

papéis individuais e responsabilidades. Você sente a lealdade e uma sensação confortável de afeto para com essas pessoas. Em essência, estas declarações definem a sociedade grupai. Você é aceito.

Se você meditar seriamente no conceito de aceitação, talvez fique surpreendido ao perce­ber que quase toda atividade significativa de

sua vida requer algum tipo de associação. Pense em seu nome, endereço, nacionalidade, classe, profissão. Você é o que é e faz o que faz num contexto de aceitação. Considere suas necessidades mais profundas e seus objetivos mais sublimes. O que é importan­te para você? O que é agradável e satisfaz? Na maioria dos casos você se achará pensando em termos de relacionamentos: fam ília, amigos, grupos na igreja, grupos no trabalho.

Muitas das necessidades são satisfeitas e metas são atingidas no contexto das interações interpessoais. Isto é tão natural aos se­res humanos que frequentemente nem é percebido. Os prazeres mais elevados vêm do compartilhamento. E no lado negativo, as decepções mais dolorosas e os problemas mais angustiantes sur­gem dos relacionamentos interpessoais, comunicação defeituosa e rejeição real ou percebida - a não aceitação.

As Escrituras indicam claramente que aceitação e união são o estado natural dos seres humanos. Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem” (Génesis 1.26). Aqui a idéia do plural e a idéia da natureza humana são introduzidas simultaneamente. As declarações criativas de Deus até este ponto são traduzidas como mandamentos impessoais: “Haja luz” , “Produza a terra erva verde” . A seguir, o estilo de expressão muda completamente com a criação dos seres humanos. Não é mais passivo e impessoal, mas íntimo e plural. Tam­bém notamos que o registro não mostra Deus preocupado com a com­panhia dos animais inferiores. Mas Ele disse que não era bom que a pessoa ficasse só. E isto apesar do fato de que Deus é todo-poderoso e poderia dar a Adão qualquer tipo de ajuda. Ele introduz o impressio­nante conceito de que Adão precisa de uma ajudante!

Rejeitar as teorias naturalistas que apresentam as pessoas como produtos da sociedade, pode, às vezes, nos levar a depreciar a de­pendência e a cooperação. Dando forte ênfase na salvação pesso­al, os evangélicos tendem a promover o individualismo e podem até negligenciar a responsabilidade social. Mas as Escrituras ensi­nam que a aceitação permite a pessoa fazer contribuições signifi­cativas. A pessoa cristã é membro do Corpo de Cristo.

As Escrituras indicam claramente que aceitação e união são o estado

natural dos seres humanos.

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U M A P ER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 2 0 9

Jesus disse: “Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, [...] o pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa-nos as nossas dívidas, as­sim como nós perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixeis cair em tentação, mas livra-nos do mal” (Mateus 6.9-13). A ora­ção que Jesus nos ensinou a fazer é uma oração de grupo. Talvez nossa tendência a pensar em religião como experiência completa­mente individual nos cegue para o fato de que Jesus pensou nos discípulos como um grupo de pessoas mutua­mente dependente. Se isto é assim, então po­demos concluir com precisão que a vontade dEle é que cuidemos uns dos outros. Quem poderia dizer com sinceridade: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje” e não se importar que outras pessoas estejam passando fome? Quem poderia falar sinceramente: “E não nos deixeis cair em tentação, mas livra-nos do mal” e não ligar para aqueles que estão sendo enganados por sistemas de va­lor mundanos e pelas pressões sociais?

Em ambos os Testamentos alguns termos que se referem a uma pessoa ou ao povo de Deus são intercambiáveis. As Escrituras des­crevem o comportamento, como o pecado, tanto individual (por exem­plo, 1 Samuel 25.17) quanto coletivo (por exemplo, 1 Samuel 15.18). Outrossim, as evidências bíblicas inequivocamente implicam que as pessoas são designadas a relacionar-se umas com as outras: cuidar umas das outras, interagir, cooperar e compartilhar experiências e res­ponsabilidades (por exemplo, 2 Coríntios 1.3-7). De fato, é impossí­vel ou ser completamente humano ou ser somente cristão.31

Os cristãos não podem achar respostas completas se não

tratarem da questão da influência cultural.

A s M u d a n ç a s S o c ia is A feta m Os R e l a c io n a m e n t o s

Assim como a psicologia e a sociologia não podem dar respos­tas completas caso não abordem o propósito da humanidade, as­sim os cristãos não podem achar respostas completas se não trata­rem da questão da influência cultural. Os estudos nas ciências comportamentais ajudam-nos a entender que os relacionamentos entre as pessoas são determinados mais pelos costumes e atitudes socialmente construídos do que pela natureza humana ou traços de personalidade individuais.

Na primeira aula de sociologia que assisti, aprendi uma pala­vra nova: coorte. Significa um grupo de pessoas nascidas em cer­to período de tempo, crescendo sob influência das mesmas condi­ções sociais e económicas, afetadas pelos mesmos eventos histó­ricos. “As gerações não são tão diferentes umas das outras, por­que as pessoas são jovens ou velhas” , explicou o professor. “Não há tanta mudança na maneira como as pessoas pensam, à medida que passam da adolescência para a maioridade. São diferentes porque pertencem a coortes diferentes.”

Recentemente a idéia de coorte foi popularizada. Nos Estados Unidos, damos nomes às gerações chamando-as, por exemplo, de

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Baby Boomers,32 Baby Busters33 e Geração X . Assim , não é sim­plesmente porque sejam velhos que os pais e avós pareçam pensar tão diferentemente dos filhos e netos. Pensam diferentemente, porque pertencem a um coorte diferente. Foram influenciados por políticas governamentais, estilos, modas, idéias, mídia e tecnologia diferentes.

O modo como as pessoas percebem suas próprias situações hoje e como interpretam as ações dos outros, normalmente refle­tem mudanças no modo como a sociedade vê os papéis do homem e da mulher, o divórcio, os comportamentos sexuais, a maternida­de de mães solteiras. As pessoas sentem-se ofendidas, oprimidas ou vítimas de diferentes maneiras por causa dos valores e costu­mes variáveis. Palavras e ações que outrora eram consideradas normais, hoje formam a base para processos judiciais. Palavras e ações que antigamente eram consideradas más e ofensivas, hoje são aceitas como normais.

Rememore as mudanças que moldaram sua vida: Os avanços técnicos que o colocaram fora do compasso com pessoas mais velhas em um mundo que veio do rádio para a televisão,

videocassete, computadores interativos. Avan­ços. Divórcio. Estilos de música, vestuário e datação. Mudanças económicas e programas governamentais. Considere como estes fenó­menos mudam o modo como nos relaciona­mos com as pessoas. Muito de nosso tumulto interpessoal não é inteiramente pessoal. O modo como nos relacionamos com aqueles que nos cercam - membros da fam ília, amigos, cônjuge, chefes, vizinhos, companheiros de

viagem em ônibus e aviões, as pessoas de várias formações raciais e os pobres - é influenciado pelos valores e costumes mudáveis de nossa sociedade.

A história nos mostra que as mudanças sociais e económicas influenciam como as pessoas se relacionam umas com as outras. Nas sociedades p rim itiva s, as pessoas entendiam sua interdependência. Elas sabiam que todos iriam sobreviver ou pas­sariam fome juntas. Por isso, o que quer que tivessem era compar­tilhado. Os indivíduos relacionavam-se de perto com o grupo in­teiro. No período do Antigo Testamento, as leis de Deus fizeram do cuidar dos outros uma obrigação religiosa. O Senhor ordenou que as sociedades hebraicas provessem sistematicamente a subsis­tência dos pobres. Deixar de fazê-lo era pecado lastimoso, assunto da repreensão e advertência dos profetas.34 As famílias de várias gera­ções eram responsáveis umas pelas outras, como também pelos em­pregados e estrangeiros que precisavam de hospitalidade. Jesus exemplificou e ensinou a igualdade absoluta no status social.

O mundo de hoje acha-se em nítido contraste com o mundo do Antigo Testamento. Nas sociedades industriais modernas exigi­

210 BILLIE D A V IS

O modo como nos relacionamos com aqueles que nos cercam é

influenciado pelos valores e costumes mutáveis de nossa

sociedade.

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U M A PER SPEC TIVA SO B RE A N A T U R E Z A H U M A N A 211mos direitos individuais, enfatizamos as possessões particulares e competimos por posições de status. As pessoas muitas vezes não sentem nenhuma obrigação em compartilhar o que têm. Se com­partilham, consideram em geral como ato de caridade e colocam as pessoas necessitadas num nível social mais baixo que elas. A falta de habitação e a pobreza das mães solteiras têm origens em atitudes relativamente recentes sobre a coesão e responsabilida- des familiares.

A maneira como as pessoas percebem umas às outras, com re­sultados positivos ou negativos, é afetado ou até ditado pelas in­venções sociais. Um exemplo de mudança que pode ter efeito sig­nificativo no modo como as pessoas pensam e agem em relação umas com as outras, é a lei americana que requer acesso igual aos deficientes físicos nas escolas e repartições públicas. Antes da le­gislação americana, carregávamos as pessoas de cadeiras de rodas por obras de cantaria e escadas. Hoje ouço as pessoas com incapa­cidade física reclamarem da indignidade implícita por algum tra­tamento diferente, só porque eles se movem sobre rodas e não com as pernas.

As leis americanas dos direitos civis mudaram as relações inter- raciais. Como prova de quão consequente algumas mudanças po­dem ser, precisamos apenas considerar a mudança oficial na des­crição dos psicólogos do termo homossexualidade, de uma “pato­logia” a um “estilo de vida alternativo” .

Quando entendermos o quanto as mudanças sociais podem afe- tar nossas atitudes e relacionamentos, então seremos mais capa­zes de evitar resultados negativos. As Escrituras, iluminadas pelo Espírito Santo, ajudam-nos a ver a nós e aos outros segundo a perspectiva de Deus. A fé cristã nos dá insights e nos faz menos sujeitos à influência dos fatores sociais. O apóstolo Paulo dá este conselho: “E não vos conformeis com este mundo [- com esta era, moldada e adaptada de acordo com seus costumes externos e su­perficiais —], mas transformai-vos pela [inteira] renovação [mudan­ça] do vosso entendimento [- mediante seus novos ideais e suas no­vas atitudes], para que experimenteis [por vós mesmos] qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12.2, amplia­ções extraídas de A Bíblia Amplificada, versão em inglês).

O Ser Humano das Escrituras

Voltemos à pergunta com a qual abrimos este capítulo: O que é um ser humano real? Os teólogos explicam a natureza do género humano pela referência à linguagem bíblica. Por exemplo, Deus criou Adão da terra e Eva do corpo de Adão, separados de si mes­mo e dos animais previamente criados. Além do mais, os seres humanos são parte da natureza como a mais alta criação de Deus, ainda que distintos da natureza criada à imagem de Deus. Os ter­mos usados ao longo do Antigo e Novo Testamentos indicam que

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212 BILLIE DAVIS

as palavras Adão e homem incluem macho e fêmea, e distinguem os seres humanos do próprio Deus, dos anjos e dos animais. Todas as pessoas descenderam de Adão e Eva e, portanto, todos somos de uma raça humana.

A questão da natureza humana logo conduz a outra pergunta: Que componentes compõem a pessoa e como estes componentes estão mutuamente relacionados? Como não seria diferente, as di­ferenças de opinião surgem à medida que diversos estudiosos dis­cutem os componentes que compõem uma pessoa inteira. A B íb lia usa palavras traduzidas por corpo, coração, mente, vontade, alma, espírito e por várias outras partes do corpo, como rins e entra­nhas. Reparando que o uso destes termos é ambíguo, o teólogo Timothy Munyon questiona se é possível incorporar todos eles em um único modelo coerente da pessoa humana. E le , juntamente com a maioria dos estudiosos bíblicos, identifica três posições:

Tricotomia. Esta interpretação vê os seres humanos compos­tos de três partes: corpo, alma e espírito. O corpo refere-se à exis­tência física e liga o ser humano a todas as outras criaturas vivas. A alma é o princípio da personalidade, incluindo os sentidos e as

emoções. O espírito é o poder mais alto que diferencia os seres humanos de todas as outras formas de vida, e capacita a pessoa a ter co­munhão com Deus.

Dicotomia (ou dualismo). Esta interpreta­ção considera os seres humanos em duas par­tes: material e imaterial, distinguindo o corpo

físico das qualidades mentais e emocionais não físicas. Historica­mente, esta interpretação tem sido a visão mais amplamente acei­ta entre os teólogos evangélicos.

Monismo. Esta interpretação vê os seres humanos como uma unidade indivisível.35 A pessoa é um ser unificado, em vez de ter tantos componentes. Muitos estudiosos modernos preferem esta interpretação do registro bíblico. Advertem, entretanto, que a pes­soa é uma unidade condicional, significando que corpo, alma e espírito são aspectos do todo, não um acoplamento das partes se­paradas.36

Os estudiosos cristãos nos campos da psicologia e sociologia lembram-nos constantemente de que a B íb lia não é um livro de ciência. E um relato de Deus e seu relacionamento com a criação. E um livro de histórias, ensinos e exemplos de vida. Muitos destes estudiosos traduziram e interpretaram passagens bíblicas para com­por descrições da natureza humana. Porquanto não tenham alcan­çado unanimidade, parecem estar convergindo para as seguintes conclusões:

Para começar, a B íb lia oferece um modelo psicossocial (ou seja, pessoal e relacional) geral do ser humano. A natureza huma­na é uma unidade psicofísica (ou seja, carne animada pela alma). As referências ao corpo e à pessoa interior não indicam partes

"O corpo é tanto quanto a 'pessoa' é a alma".

— Vincent Rush

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UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 3

separadas; antes parecem referir-se a certas funções da natureza humana. O corpo é o aspecto do nosso ser consciente do mundo. Foi criado por Deus e não deve ser considerado mau em si mes­mo. Não temos corpo. Somos corpo. Como Vincent Rush desta­cou: “O corpo é tanto quanto a ‘pessoa’ é a alma”?1

Segundo, a palavra traduzida por alma é usada de várias ma­neiras. Significa criatura vivente, uma pessoa fisicamente viva, tangível e real. O conceito de alma refere-se frequentemente ao intelecto, emoções e vontade. Nossa alma define nosso ser, define quem somos. Não temos alma. Somos alma.

Terceiro, mente e emoções não estão separadas do corpo. Tudo está indissoluvelmente unido como pessoa.

Quarto, o espírito diz respeito à nossa relação com o mundo espiritual que não vemos. É a nossa consciência de Deus. Paulo muitas vezes usa os termos espírito e carne não para se referir a duas partes da pessoa, mas a duas atitudes e estilos de vida.

Finalmente, a vida terrestre para os cristãos será seguida por um corpo ressuscitado e uma renovação de vida. Não sabemos os detalhes exatos. A imagem do Novo Testamento é de uma unidade corpo-mente restaurada e aperfeiçoada.38

A I m a g e m d e D eu s

Muitos cristãos estudiosos em filosofia e nas ciências soci­ais e comportamentais são compelidos a abordar o conceito imagem de Deus, porque toda teoria envolve a questão da natu­reza humana. O que significam exatamente as palavras bíblicas? Uma resposta generalizada é que se referem ao modo como a natureza humana reflete algo da natureza de Deus. Dizem res­peito aos elementos da personalidade e individualidade, a exis­tência do potencial, a possibilidade de desenvolvimento, a l i ­berdade de escolha, a responsabilidade moral, a habilidade c ri­ativa, a capacidade de amar e ser santo.

C . Stephen Evans declara: “A imagem de Deus consiste na­quele complexo de atividades que são distinta e exclusivamente humanas” . Então, ele propõe uma lista para ampliar seu significa­do. O primeiro item na lista é o conceito de ação. Deus toma deci­sões, faz planos e tem propósitos, e age segundo eles. A seguir, está o conceito de agente, uma pessoa inteira, propositada, apreciada, racio­nal, moralmente responsável, social, apaixonada e criativa.39

É característico dos sociólogos cristãos verem no conceito de imagem de Deus não só substância, mas também relacionamento. Pelo fato de termos sido feitos à imagem do Deus trino, somos feitos para ser interpessoais e relacionais. Além de termos as qua­lidades e capacidades divinas, os seres humanos refletem a ima­gem de Deus quando respondem ao amor de Deus e quando se relacionam de maneira santa em seu mundo. As habilidades e ca­pacidades refletem a natureza de Deus. Os relacionamentos são a expressão dinâmica de sua natureza.40

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2 1 4 BILLIE DAVIS

O P en s a m e n t o S o c ia l n o A n t ig o T est a m e n t o

A forma plural no idioma bíblico (como no uso que Deus faz de nós e nos em referência a Ele) implica uma associação, seme­lhante ao conceito inglês de social. Elohim, o nome usado nas Escrituras mais que qualquer outro, exceto Javé, é uma forma plu­ral. Javé é o nome que está relacionado a guardar o concerto de Deus. Está ligado com a promessa: “Eu serei contigo” . A socieda­de hebraica começou na qualidade de povo nómade firmemente

unido, empenhado em se distanciar das religi­ões de múltiplos deuses dos outros povos e não tendo nenhum Deus senão Javé. O código do concerto original (os Dez Mandamentos e as exposições adicionais das instruções de Deus, registradas em Êxodo 20 a 23) tem dois temas principais. Um é o relacionamento entre Deus e a pessoa. O outro é o regulamento da organi­

zação social e os relacionamentos entre as pessoas. As famílias extensas tinham de prover a subsistência dos seus membros sob a liderança de um pai. A comunidade devia cuidar das pessoas em condições desfavoráveis e estender hospitalidade para abranger os estrangeiros. Esperava-se que aqueles que tinham mais bens materiais compartilhassem com os que tinham menos.

Subsequentemente, à medida que os hebreus povoavam a Pa­lestina e desenvolviam uma economia florescente, extremas d ivi­sões de classe foram surgindo como resultado. Os ricos viviam em extravagância. Eles violavam o código do concerto, ignorando as situações difíceis dos pobres. No meio desta conjuntura, os pro­fetas Amós, Oséias e Miquéias apareceram e clamaram contra as injustiças sociais e o declínio espiritual. Estes profetas do século V III a.C. reafirmaram os valores da fraternidade e denunciaram a estratificação social. Enfatizaram o aspecto ético do servir a Deus, e estabeleceram para o futuro Cristianismo a verdade de que nos­sa religião deve ser praticada nos relacionamentos humanos. Como os sociólogos cristãos mais recentes têm dito, Deus odeia a idola­tria e a injustiça.41

O P e n s a m e n t o S o c ia l n o N ovo T e s ta m en to

Provavelmente a lição mais negligenciada sobre a preocupa­ção social está incorporada no relato que Lucas fez do ministério de João Batista. Muitos resumem esta passagem como pregar o arrependimento e proclamar o caminho da salvação. Eles se es­quecem de como João respondeu àqueles que lhe perguntaram o que deveriam fazer se sua tradição como filhos de Abraão não fosse suficiente. João respondeu abruptamente, em palavras dis­tantes do ritual religioso: “Quem tiver duas túnicas, que reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, que reparta da mesma maneira” . E le lhes disse que fossem justos e honestos em todos os seus procedimentos com as pessoas, como indivíduos e represen­

Os profetas Amós, Oséias e Miquéias apareceram e clamaram

contra as injustiças sociais e o declínio espiritual.

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UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 5

tantes da sociedade. Sua mensagem não parou com uma advertên­cia ao arrependimento. Em cada relato do ministério seu ponto era que deviam se arrepender e produzir “ frutos dignos de arrependi­mento” . Os detalhes acrescentados por Lucas mostram que este fruto inclui cuidar das pessoas e fazer justiça social.

Embora os ensinos de Jesus enfatizem o valor dos indivíduos como almas eternas, sua vida é um modelo para as relações huma­nas aqui e agora. Por suas palavras e ações, E le apresenta o indiví­duo como filho de Deus, escolhido para estar em companheirismo com Ele . Cada pessoa é infinitamente preciosa, sem considerar barrei­ras naturais e diferenças, como raça, naciona­lidade ou posição social. Em Jesus, entende­mos o verdadeiro significado da auto-estima, uma apreciação do ego no contexto cristão, sem o individualismo da satisfação excessiva dos próprios desejos.

Jesus afastou-se dos movimentos de reformas sociais, porque seu propósito singular era demonstrar que os valores do Reino de Deus são distintos dos valores dos sistemas humanos políticos e económicos. Embora Seus ensinamentos não advoguem uma luta contra a opressão social, eles exigem que aqueles que têm vanta­gens compartilhem com os necessitados. Ele não hesita em falar con­tra a hipocrisia. Ele apóia a santidade do casamento veementemente. Seu modo de vida é a família, a fraternidade e a comunidade.

Paulo e os outros apóstolos continuaram com os ensinos de Jesus sobre a igualdade dos indivíduos diante Deus. Eles reconhe­ceram as desigualdades inevitáveis do mundo caído, e ensinaram que os cristãos deviam estar dispostos a aceitar e adaptar-se a al­gumas delas. Até este ponto, a aceitação das condições sociais existentes era vista como submissão a Deus e à sua vontade. Con­tudo, a submissão nunca é desculpa para os cristãos serem apáti­cos. Nunca devemos apoiar de qualquer forma a perpetuação de qualquer coisa que prejudique as pessoas. Devemos monitorar nos­sas atitudes e ações, e falar contra todas as formas do mal. Os ensinos apostólicos sobre amor, igualdade e justiça lançaram fun­damentos para uma ação social posterior. Hoje, os cristãos que pensam e escrevem sobre assuntos sociais estão convencidos de que os ensinamentos do Antigo e Novo Testamentos são claros neste ponto: As pessoas são seres sociais e não podemos ser tudo o que Deus nos designou ser como humanos individuais, a menos que entendamos o fato de que somos seres sociais - isto é, relacionais - e aceitemos nossas responsabilidades sociais.

O que Aprendemos das Respostas?

Os estudiosos modernos e os pensadores sociais reclamam que as disciplinas da psicologia e sociologia estão fragmentadas em

Nunca devemos apoiar de qualquer forma a perpetuação

de qualquer coisa que prejudique as pessoas.

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escolas de pensamento, teorias contraditórias e especializações diversificadas. Eles afirmam que há muita razão para se duvidar que qualquer teoria única possa explicar os aspectos biológicos dos processos mentais e a introspecção, emoções e motivações hu­manas. Não emergiu nenhum corpo de respostas unificadas e fide­dignas a perguntas sobre a natureza humana e o comportamento.

A divisão entre, de um lado, os médicos clínicos e os ativistas sociais e, do outro, os cientistas académicos, amplia-se cada vez mais.42 Enquanto isto possa ser um problema para os teoristas se­culares, que querem pacotes bem-feitos para ajustar-se ao modelo da ciência natural, pode ser fonte de reforço para os estudiosos cristãos nas ciências comportamentais. Como Heddendorf disse sobre as linhas ocultas, fico emocionado quando os cientistas se­culares admitem suas limitações. Há alegria em conhecer as ver­dades unificadoras e dominantes que formam a base de qualquer busca adequada da verdade total.

Este insight nos traz para nossa conclusão principal: Ouvir os estudiosos é sábio e proveitoso se mantivermos nossa perspectiva cristã. Se nos lembramos de que o erro básico em todas as ciênci­as sociais e comportamentais acha-se no seu fracasso em lidar com o propósito humano como criação de Deus, podemos estudá-las vantajosamente e, no processo, aprender muito sobre nós mesmos e os outros. As fontes do nosso comportamento são muitas e comple­xas. Podemos resumir que a psicologia e a sociologia explicam em geral a natureza humana nomeando três fontes de comportamento.

Biológico. Como seres humanos e como indivíduos nascemos com características físicas e condições que afetam como respon­demos aos estímulos (ou seja, aprendemos), e como nos desen­volvemos como pessoas.

Psicológico. As pessoas percebem seu mundo de maneira seleti- va, por causa de suas experiências. Elas tomam decisões e agem com base na informação que têm ou pensam que têm. Cada experiência afeta outras percepções, sentimentos, emoções, atitudes e motivações.

Socialização e determinismo social. As pessoas adquirem as crenças, costumes, valores e atitudes do seu grupo social e da cul­tura. Elas aprendem o que se espera que façam e digam, a quem respeitar e temer. Suas escolhas de estilo de vida podem ser restritas severamente pelos fatores ambientais. Suas ações podem refletir in­fluência e situações sociais mais que refletir suas próprias decisões.

Os princípios incorporados nesta explicação secular do com­portamento são basicamente verdadeiros, por isso, as teorias são úteis. Mas são incompletas e, por conseguinte, enganosas no sen­tido de que implicam explicações totalmente humanas. Elas omi­tem duas fontes fundamentais do comportamento: o impacto do pecado e a direção do Espírito Santo.

Um grande mal-entendido entre os cristãos e os psicólogos não- cristãos envolve o significado do pecado. Os terapeutas e os assis­tentes sociais são especialmente desastrosos com a palavra, por­

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T

que pensam nela como um termo depreciativo dirigido às pessoas em referência ao comportamento específico. A verdade bíblica é que o pecado é a natureza caída da humanidade. Como resultado da queda, o pecado é o nosso primeiro estado e a fonte primária do comportamento humano. Todos sofremos as consequências do peca­do de Adão, dos nossos próprios pecados e dos pecados dos outros.

A direção do Espírito Santo é a principal fonte ideal do com­portamento cristão. O Espírito Santo nos atrai para a consciência do amor de Deus e nos toma conscientes do pecado. E le desperta nossas necessidades de propósito e significado de vida. A obra do Espírito Santo é abrir a porta pela qual podemos entrar e ter segu­rança e aceitação, como pessoas na comunidade cristã.

Minha Primeira e Melhor Resposta

Comecei este capítulo contando como vim a fazer a pergunta que, mais tarde, descobri estar entre as investigações mais desafi­adoras jamais expressadas pelos seres humanos. Quando eu tinha cerca de sete anos, descobri a chave que me levaria à resposta.Aconteceu assim:

Em algum lugar enquanto seguíamos o fluxo migratório para outra colheita, armamos nossa tenda ao lado de um rio. Naquela época, podia-se deixar a auto-estrada e encontrar uma área para acampamento satisfatória, onde se podia fazer fogueira, cozinhar uma panela de feijão e usar a água do rio para lavar pratos e roupas.

“Este é um bom lugar” , meu pai dizia. “Ficaremos aqui até domingo.”

De manhã, v i crianças atravessando a ponte. “Onde será que elas vão, todas tão arrumadas assim?” Pessoas reais. Incrível quanto possa parecer às pessoas de classe média dos dias de hoje, eu esta­va mais curioso do que amedrontado. Eu já tinha estado naquela região antes, vendendo cestas. Segui-as até chegar a uma igreji­nha nos limites do povoado e, por fim , vi-me dentro de uma classe de Escola Dominical.

Lá eu ouvi a primeira resposta direta à pergunta do meu coração.“Vocês são filhos de Deus” , disse a professora, encarando-nos

a todos com um pequeno gesto muito expressivo. Foi como se ela tivesse estendido o braço, qual fada com sua vara de condão, e me dado identidade. Eu era filho de Deus.

Muitos sentem-se, às vezes, como migrantes, perdidos e con­fusos. Alguns sentem-se culpados e culpando-se a si mesmos por causa de atitudes, situações, fracassos. Outros acham que são re­jeitados pelos outros. Alguns não se sentem realizados, e sim pres­sionados em papéis ou obrigações que parecem sem sentido, ou apanhados por forças desconhecidas em condições que não po­dem explicar. Estão procurando significado, propósito, um lugar onde sejam aceitos, e perguntam: Por que sou assim? Quem real­mente sou? O que faz as pessoas serem o que são?

UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 7

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Depois de 60 anos de estudo, pesquisa e ensinamento nas ciên­cias comportamentais, sei que a primeira resposta que recebi foi vital, uma da qual depende todas as outras verdades sobre a natu­reza humana. Se mantivermos isso em mente, podemos obter insights e sabedoria da psicologia e da sociologia e de todos os outros universos de conhecimento. É isto, em parte, o que quere­mos dizer por cosmovisão cristã.

Revisão e Questões para Discussão1. Explique por que os estudiosos têm dificuldades em definir

psicologia.2. Por que a metodologia depende de algumas suposições so­

bre a natureza humana?3. Descreva as diferenças básicas entre psicologia experimen­

tal, psicologia clínica e psicologia humanista.4. O material apresentado aqui sobre psicologia humanista o

esclareceu sobre o conceito humanismo conforme ele é usado nas ciências comportamentais? Explique. Você acha que podemos ser humanistas cristãos?

5. Escreva uma definição completa de sociologia. Quais são os dois principais objetivos da sociologia? Como o conhecimento em ambas as áreas pode ser aplicado à vida e serviço cristãos?

6. Explique por que deixar de considerar o propósito humano é a principal falha nas teorias psicológicas e sociológicas.

7. Margaret M. Paloma acredita que as suposições naturalistas e humanistas são parcialmente compatíveis com a imagem bíblica de pessoa. Explique o raciocínio dela.

8. Russell Heddendorf introduz a idéia de “linhas ocultas” da verdade bíblica nas teorias académicas. Examine os modelos de ne­cessidades de Maslow e B rill e destaque algumas linhas ocultas.

9. A autora sugere que ser uma “pessoa marginal” a ajudou a procurar respostas e obter insights relativos à natureza e relacio­namentos humanos. Como podemos aplicar este conceito para obter o máximo das experiências académicas e cristãs?

10. Enumere algumas maneiras em que nossa visão da nature­za humana afeta o conceito de nós mesmos e nossas atitudes e relacionamentos sociais.

Projeto Sugerido para ReflexãoQuando estiver estudando para cursos em quaisquer das ciên­

cias sociais e comportamentais (psicologia, sociologia, antropo­logia, assistência social, aconselhamento, governo, história), pro­cure as “linhas ocultas” que ou apóiem a verdade bíblica ou lhe sejam contrárias. Nos cultos da igreja e classes de Escola Domini­cal, busque idéias, conceitos, suposições sobre a natureza humana que ou sejam compatíveis com os estudos humanos, ou o levem a questionar o ensino secular. Manter-se alerta nestas áreas lhe aju­dará a obter o máximo da educação secular e da religião.

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UMA PERSPECTIVA SOBRE A NATUREZA HUMANA 2 1 9

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Notas bibliográficas1. Em português, usamos a palavra “psique” com o mesmo

sentido, ou seja, mente, alma, espírito (N. do T .).2. American Heritage Dictionary ofthe English Language, 3.a

edição, no verbete “Psychology” .3. Gary R . Collins, The Rebuilding o f Psychology (Wheaton,

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5. Ib id ., p. 20.6. Collins, The Rebuilding o f Psychology, p. 48.7. G. Marian Kinget, On Being Human — A Systematic View

(Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1975), Prefácio, p. v.8. M. Ray Denny e Robert H. Davis, Understanding Behavior

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9. W illiam W. Menzies e Stanley M. Horton, fíible Doctrines (Springfield, M issouri: Logion Press, 1994), p. 79.

10. David G. Myers e Malcolm A . Jeeves, Psychology through the Eyes ofFaith (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1987),

P- 11-11. Ibid ., p. 17.12. Lester N. Downing, Counseling Theories e Techniques:

Summarized and Critiqued (Chicago: Nelson-Hall, 1975).13. Paul C . V itz, “A Christian Theory of Personality: Covenant

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14. Collins, The Rebuilding o f Psychology, p. 138.15. No século IV a.C ., o filósofo grego Aristóteles explorou

algumas destas questões (além de outras) em sua obra Política. No século X III d .C ., o teólogo cristão Tomás de Aquino examinou as questões sobre a natureza dos seres humanos e as leis (naturais e civis) que os governam nas Questões 90 a 92 de sua obra Suma Teológica.

16. David Ashley e David Michael Orenstein, Sociological Theory: C lassical Statem ents (Boston : A lly n & Bacon, Incorporated, 1985), p. 95.

17. Ib id ., p. 117.18. George Ritzer, Sociological Theory, 3.a edição (Nova York:

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Disorganization” , American Journal o f Sociology, volume 42, maio de 1937, p p .871-877.

20. Joshua Glen, “Sociology on the Skids” , Utne Reader (No­vembro/Dezembro de 1995), p. 28.

21. Margaret M. Paloma, “Theoretical Models of Person in Contemporaiy Sociology: Toward Christian Sociological Theory” , in: A Reader in Sociology: Christian Perspectives, editores Charles P. De Santo, Calvin Redekop e W illiam L . Smith-Hinds (Scottdale, Pensilvânia: Herald Press, 1980), pp. 202-210.

22. Russell Heddendorf, Hidden Threads: Social Thought for Christians (Dallas: Probe Books, 1990), p. 14.

23. Richard Perkins, Looking Both Ways: Exploring the Interface Between Christianity and Sociology (Grand Rapids: Baker Book House, 1987), p. 170.

24. David A . Fraser e Tony Campolo, Sociology Through the Eyes ofFaith (São Francisco: Harper/San Francisco, 1992), p. 300.

25. O tratamento clássico deste assunto aparece na obra de Aristóteles Ética a Nicômano, Livro V II, onde Aristóteles discute a questão da fraqueza moral (grego, akrasia).

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26. Howard Becker e Harry Elmer Bames, Social Thoughtfrom Lore to Science (Nova York: Dover Publications, Incorporated, 1961), volume 1, pp. 78, 79.

27. Abraham H. Maslow, Capítulo 4, in : Motivation and Personality (Nova York: Harper & Row, 1970).

28. Naomi I. B rill, Working With People: The Helping Process (Nova York: Longman, 1985), p. 27.

29. Kinget, On Being Human, pp. 3, 4.30. Veja Steven Pinker, The Language Instinct (Nova York:

W illiam Morrow & Company, 1994). O argumento de Pinker apóia a existência de um instinto de idioma. Embora para ele “instintos” sejam qualidades biológicas desenvolvidas pela evolução, eu aceito os fatos de sua pesquisa como apoio ao fato de Deus ter criado tudo com um propósito.

31. Algum material desta seção foi adaptado de B illie Davis, The Dynamic Classroom, 1987, e Renewing Hope (Springfield, M issouri: Gospel Publishing House, 1995).

32. Acentuada subida na taxa de natalidade ocorrida nos Esta­dos Unidos, imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mun­dial (1946 a 1964). (N. doT.)

33. Acentuado declínio na taxa de natalidade nos Estados Uni­dos ocorrido entre os anos de 1965 e 1985, num efeito bumerangue à anterior geração de Baby Boomers. (N. do T .)

34. A preocupação pelos pobres é expressa 134 vezes no Anti­go e Novo Testamentos.

35. A visão apresentada aqui como monismo, às vezes também é conhecida pelo nome de hilomorfismo. Veja Vincent Rush, “What Is It To Be Human?” , Capítulo 2, in: The Responsible Christian (Chicago: Loyola University Press, 1984), pp. 25-73.

36. Timothy Munyon, “A Criação do Universo e da Humani­dade” , in : Teologia Sistemática, editado por Stanley M. Horton (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1996), pp. 238-245.

37. Rush, The Responsible Christian, p. 29.38. Veja Menzies e Horton, BiblesDoctrines, pp. 84, 85; Myers

e Jeeves, Psychology, pp. 24-30.39. C . Stephen Evans, Preserving the Person (Downers Grove,

Illino is: InterVarsity Press, 1977), pp. 144, 145.40. Fraser e Campolo, Sociology Through the Eyes o f Faith,

pp. 250-252.41. Ibid ., pp. 238.42. Morton Hunt, The Story o f Psychology (Nova York:

Doubleday, 1993), pp. 641-643.

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6Trabalho

Miroslav Volf

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Há um famoso personagem na literatura russa, o conde Oblomov, que sofria de um tipo peculiar de enfermidade: era preguiçoso. Enquanto a maioria de nós é ocasional­

mente afetado por esta enfermidade, nele tinha se tomado cróni­ca. Ele desenvolveu um desgosto geral por toda atividade. V ivia do rendimento de grandes propriedades, mas até isso lhe era mui­to trabalhoso. Havia a necessidade de supervisionar a administra­ção dos seus bens, visitar pessoas, levantar-se e vestir-se, masti­gar a comida e engolir. Numa palavra, ele tinha de viver. Mas sua preguiça monumental rebelou-se contra todos os privilégios. Por­tanto, decidiu retirar-se em completa apatia — desistiu de super­visionar suas possessões, recusou-se a ver a quem quer que seja, não abriu a correspondência e até deixou as janelas fechadas para que a luz do dia não entrasse. Porém, tudo isso foi em vão. Ainda havia movimento demais em sua inatividade, sentia Oblomov. Mesmo quando resolveu não fazer absolutamente nada, ainda res­tava uma coisa que ele não podia deixar de fazer, um assunto que nunca podia deixar de atender, um fardo que não podia deixar de carregar, que é o assunto e o fardo de sua própria existência. Como Alain Finkielkraut, de quem tomei emprestado esta história, es­creveu em seu livro Wisdom ofLove (Sabedoria de Amor): “Pode- se fazer greve contra tudo, mas não contra a própria existência. Oblomov remove todos os obstáculos que ficam no caminho de sua preguiça, apenas para bater contra esta barreira imóvel. Sua preguiça não é senão um suspiro inútil” .1 Dá trabalho só existir. Sem trabalho, sem vida — isto resume a lição que aprendemos da tentativa fútil de Oblomov de não fazer absolutamente nada.

Contudo, para muitos de nós hoje a questão não é o quão pre­guiçoso se pode ser sem deixar de viver, mas o quanto se pode trabalhar sem desmoronar. Alguns são viciados em trabalhar, mas a maioria sente que é forçado a trabalhar; outros precisam do tra­balho para obter coisas, mas a maioria tem de trabalhar para so­breviver. E , assim, trabalhamos um dia sim o outro também. No livro The Overworked American (O Americano Sobrecarregado de Trabalho), Juliet B . Schor destaca que as pessoas nas socieda­des industrializadas estão presas no “ciclo insidioso de ‘trabalhar e gastar’ ,”2 E la escreve: “Os empregadores pedem horas extras. O pagamento cria um alto nível de consumo. As pessoas compram casas e entram em dívida; luxos tornam-se necessidades; procura- se ter um padrão de vida igual ou melhor que os vizinhos. A cada ano, o ‘progresso’ , na forma de aumentos de produtividade anual, é repartido por empregadores como renda extra em vez de dias de folga. Trabalhar e gastar tomou-se poderosa dinâmica para nos afastar de um nível de vida mais descontraído e tranquilo” .3 Nos­so “ter” está numa corrida com o nosso “querer” , mas o nosso “querer” é mais rápido que o nosso “ter” . E assim parecemos as vítimas da maldição de Lewis Carroll: “Então, veja bem, é preciso toda essa lufa-lufa para você ficar no mesmo lugar” . Como afir­

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mou John Kenneth Galbraith em seu clássico A Sociedade Aflu­ente, nossa luta em satisfazer os desejos é como o esforço “do esquilo em manter-se em dia com a roda que é propelida pelos próprios esforços” .4

Se Oblomov quase “ se espreguiçou” até à morte, muitas pes­soas estão hoje, nas palavras de Schor, “ literalmente trabalhando até à morte — à medida que os empregos contribuem para as do­enças do coração, hipertensão, problemas gástricos, depressão, esgotamento e uma variedade de outras enfemidades” .5 Muito pouco trabalho e não podemos sobreviver; muito trabalho e a vida é sugada de nós. O trabalho é a nossa bênção e o trabalho é a nossa maldição.

Pegos entre o trabalho como bênção e o trabalho como maldi­ção, como viveremos? Que ajuda a B íb lia pode nos dar enquanto nos esforçamos diariamente em nosso trabalho? Como o trabalho se relaciona com quem Deus nos criou para ser? Qual é o lugar do trabalho nos propósitos de Deus para nossa vida? Que tipo de tra­balho está abaixo de nossa dignidade humana? Que tipo de im­pacto o trabalho cumulativo da humanidade causa em nosso am­biente? Estas são perguntas importantes, mas geralmente ninguém as faz. E , não obstante, a maioria das pessoas gasta muito do seu tempo trabalhando. Antes de eu tentar responder essas perguntas, deixe-me declarar brevemente o que quero dizer por trabalho.

O que é Trabalho?“Se ninguém me perguntasse, eu saberia; se quero explicar a

quem me pergunta, não sei.” Era assim que Agostinho expressava sua dificuldade em definir “tempo” . O mesmo parece verdade com “trabalho” . Pensamos que sabemos o que é trabalho, mas, quando tentamos pôr em palavras o que pensamos que sabemos o que é trabalho, gaguejamos.

Começarei explicando o que é trabalho destacando algumas coisas. Primeiro, embora muito estrénuo, trabalho não é simples­mente labuta e fadiga, como alguns tendem a pensar, interpretan­do Génesis 3 em parte incorretamente. Na verdade, muitos gozam do trabalho que fazem e os que fazem são os melhores trabalhado­res. Não seria estranho dizer que os melhores trabalhadores não trabalham? Segundo, trabalho não é simplesmente emprego re­munerado. Embora a maioria das pessoas nas sociedades in­dustrializadas esteja empregada pela remuneração que perce­bem, muitos trabalham duro sem receber pagamento. Pegue, por exemplo, as donas de casa (raramente donos de casa) que gastam quase todas as horas em que estão acordadas mantendo uma casa em ordem e criando os filhos. Muitas delas com razão se ressentem quando as pessoas insinuam que não trabalham; isto é acrescentar um insulto (“você não trabalha”) a uma injúria (elas não recebem pagamento).

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Precisamos de uma definição abrangente de trabalho, uma que inclua o trabalho desfrutado e o trabalho sofrido, o trabalho remu­nerado e o trabalho voluntário. Uma definição muito simples de trabalho seria “uma atividade que serve para satisfazer as necessi­dades humanas” : Você prepara uma refeição para ter algo que co­mer; você digita manuscritos para receber um cheque. Em con­traste, o propósito de jogar é jogar: Você joga futebol, porque gos­ta de jogar futebol; você lê um livro , porque gosta de ler livros. Claro que cozinhar pode ser seu passatempo; então você cozinha, porque gosta de cozinhar, e encher estômagos vazios é, nesse caso, um benefício colateral. Semelhantemente, jogar futebol (se você é jogador profissional) ou ler livros (se você é aluno ou professor) pode ser seu trabalho; então você joga, porque precisa de dinheiro ou reconhecimento, e lê livros, porque precisa passar nos exames ou preparar uma conferência; a pura diversão de jogar ou ler é, então, uma coincidência feliz. Portanto, trabalhar é uma atividade instrumental: Não é feito para o seu próprio bem, mas para satis­fazer necessidades humanas.

Por que Trabalhamos?

Lembrando as tentativas fúteis de Oblomov para não fazer nada, uma resposta rápida à pergunta, Por que trabalhamos?, seria: Por­que não sobrevivemos sem trabalhar. Esta resposta, embora corre­ta até certo nível, não diria muito sobre a razão de trabalharmos no que tange ao propósito de nosso trabalho. Assim , voltarei a abordar o trabalho como meio de “manter corpo e alma juntos” na próxima seção, O Propósito do Trabalho. Para os cristãos, a per­gunta, Por que trabalhamos?, tem uma resposta mais profunda.

Primeiro, Deus criou os seres humanos para trabalhar. Consi- dere os dois relatos da criação nos primeiros capítulos de Génesis. Em Génesis 1.26, lemos que Deus criou os seres humanos como macho e fêmea para “dominarem” sobre toda a terra. Dois versículos mais adiante, Deus abençoou o primeiro casal humano e ordenou-lhe que “ sujeitasse” a terra e “dominasse” sobre todos os seres vivos (o que, a propósito, não lhe deu licença para des­truir o meio ambiente, assunto que abordarei mais tarde). O “do­mínio” , que só pode ser exercido pelo trabalho, é o propósito para o qual Deus criou os seres humanos (não o único propósito, mas um propósito). Que isso esteja mencionado aqui explicitamente é, sem dúvida, significativo. O trabalho, podemos concluir, pertence essencialmente à própria natureza dos seres humanos conforme originalmente criados por Deus. Isto é porque encontramos reali­zação pessoal no trabalho significativo, e, por outro lado, se não podemos trabalhar achamos que nossa vida é vazia e sem sentido.

A mesma idéia é enfatizada até com mais vigor no segundo relato da criação (Génesis 2.4b— 3.24). Quando lemos este texto é frequente nos concentrarmos nas lições “espirituais” importantes

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e negligenciarmos o fato de que o trabalho é um dos seus temas centrais. O relato começa com a observação de que não havia nin­guém para lavrar a terra (Génesis 2.5) e conclui com a declaração de que Deus expulsou o homem do jardim do Éden para “lavrar a terra, de que fora tomado” (Génesis 3.23). Dentro desta estrutura a narrativa fala, de um lado, do trabalho e responsabilidade de Adão cuidar do jardim (Génesis 2.15) e, do outro, do trabalho no suor do seu rosto fora do jardim (Génesis 3.17-19). Conforme ar­gumentou Goran Agrell em Work, Toil and Sustenance (Trabalho, Labuta e Sustento), o modo como o trabalho paradisíaco no Éden se tornou em labuta exaustiva fora do Éden é um tema principal da narrativa.7

Para o nosso intento aqui, é importante no­tar que, depois da criação do homem, Deus o colocou no jardim do Éden com um propósito explícito: “Para o lavrar e o guardar” (Génesis2.15). A idéia hebraica de que a humanidade tinha a obrigação de trabalhar no paraíso está em nítido contraste com as imagens gre­gas de paraíso. Por exemplo, em Works and Days (Trabalhos e Dias) o poeta grego Hesíodo insiste que no paraíso os seres huma­nos deviam viver como deuses, “livres de trabalho e labuta” , que a terra abundante devia de si mesma prover-lhes a subsistência com seus frutos. Não é assim na B íb lia. Desde o começo, os seres humanos foram criados para trabalhar. Além da vida sem trabalho não ser possível, a vida sem trabalho para todos os que são física e mentalmente capazes de trabalhar não seria significativo. De fato, tal vida não seria adequadamente humana. O trabalho pertence à própria natureza da humanidade. Naquilo que o ser humano “ sai [...] para o seu trabalho” (Salmos 104.23), ele cumpre o plano ori­ginal do Criador para a sua vida.

Para os gregos, viver como deuses significava viver sem traba­lho. Para os hebreus, viver como Deus significava ter trabalho significativo. A característica mais notável no relato da criação apresentada no Antigo Testamento não é tanto que os seres huma­nos são designados a trabalhar, mas que Deus trabalha.8 A pri­meira vez que a idéia de trabalho ocorre na B íb lia não se refe­re ao trabalho humano, mas ao trabalho divino: “E , havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra [trabalho], que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito” (Génesis 2 .2). A mesma palavra aqui traduzida por obra (hebraico, mela ’khto, “ trabalho” ) para descrever a atividade de Deus, descreve o trabalho humano ordinário, por exemplo, de José, que “veio à casa para fazer o seu serviço [hebraico, nfia ’khto, ‘trabalho’]” (Génesis 39.11). Porque o Deus da B íb lia é trabalha­dor, o trabalho tem dignidade humana e não apenas valor econó­mico. Os seres humanos, criados à imagem de Deus, trabalham porque o Deus deles trabalha.

"O trabalho pertence essencialmente à própria natureza

dos seres humanos criados por Deus."

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"Porque o Deus da Bíblia é trabalhador, o trabalho tem

dignidade humana e não apenas valor económico".

Segundo, nós trabalhamos porque Deus nos dota e nos chama a trabalhar. É de se esperar que o Deus que criou os seres huma­nos para trabalhar, também lhes desses talentos para realizar as várias tarefas e os chamasse para estas tarefas. E é exatamente isto que encontramos no Antigo Testamento. O Espírito de Deus ins­pirou os artesãos e artistas que projetaram, construíram e adorna­ram o Tabernáculo e o Templo. “E is que o SENHOR tem chama­

do por nome a Bezalel. [...] E o Espírito de Deus o encheu de sabedoria, entendimento e ciência em todo artifício. [...] Também lhe tem disposto o coração para ensinar a outros” (Êxodo 35.30-34). “E deu Davi a Salomão, seu filho, [....] o risco de tudo quanto tinha no seu ânimo, a saber: dos átrios da Casa do S E­NHOR” (1 Cr 28.11,12). Além disso, a Bíblia diz frequentemente que os juizes e reis de Is ­

rael faziam suas tarefas sob a unção do Espírito de Deus (veja Juizes 3.10; 1 Samuel 16.13; 23.2; Provérbios 16.10).

Quando chegamos no Novo Testamento, a primeira coisa que notamos é que todo o povo de Deus é dotado e chamado para fazer várias obras pelo Espírito de Deus (veja Atos 2.17; 1 Coríntios 12.7), e não apenas as pessoas especiais como os artesãos do Tem­plo, reis ou profetas. Colocado no contexto do novo concerto, as passagens do Antigo Testamento citadas há pouco provêem ilus­trações bíblicas para uma compreensão carismática de todos os tipos básicos de trabalho humano: Todo o trabalho humano, quer seja complicado ou simples, é possibilitado pela operação do Es­pírito de Deus na pessoa que trabalha. Como poderia ser diferen­te? Se a vida inteira do cristão é por definição uma vida no Esp íri­to, então o trabalho não pode ser exceção, quer seja trabalho re li­gioso ou trabalho secular, trabalho “espiritual” ou trabalho munda­no. Em outras palavras, trabalhar no Espírito é uma dimensão do andar cristão no Espírito (veja Romanos 8.4; Gálatas 5.16-25).

Deus deseja que todos os cristãos utilizem pelo trabalho que fazem os vários dons que Deus lhes deu. Deus chama os indivídu­os para entrar no seu Reino e viver uma vida de acordo com as suas demandas. Quando eles respondem, Deus os capacita a dar o fruto do Espírito e os dota cada um com os múltiplos dons do Espírito. Na qualidade de pessoas dotadas pelo Espírito e guiadas pelas demandas do amor, os cristãos devem fazer seu trabalho na obra de Deus e da humanidade.

Se Deus criou as pessoas para trabalhar e se Deus as dota de dons para realizar as várias tarefas, seguem-se então duas conse­quências importantes. Primeiro, o trabalho não é meramente um meio para alcançar um fim . Não é apenas uma tarefa a ser supor­tada em consideração ao atendimento de necessidades e à satisfa­ção de desejos. Se você recorda nossa definição de trabalho, sabe­rá que trabalho sempre será um instrumento, sempre será um meio.

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Contudo, isto não é tudo o que o trabalho é e não é o que o melhor trabalho é. Pelo fato de o trabalho ser essencial para a nossa hu­manidade, trabalhar também tem um valor intrínseco.

Segundo, todos os tipos de trabalho têm dignidade igual. O trabalho religioso (como pregar ou ensinar num seminário) não é melhor que o trabalho secular (como assar pão ou construir pon­tes); ambos são igualmente bons se forem fei­tos em resposta ao dom e chamada do Espírito de Deus. A igualdade de todos os trabalhos era um dos insights básicos do grande reformador protestante Martinho Lutero. Junto com a idéia de que a pessoa é justificada somente pela fé, ele descobriu que o trabalho cotidiano deveria ser feito em resposta a uma chamada de Deus.Todos os cristãos, não só os monges, insistia ele, tinham uma “cha­mada” , e todo tipo de trabalho executado pelos cristãos, não ape­nas o serviço religioso, pode ser uma chamada. E le tinha razão. Pois Deus não é somente o Deus da redenção, mas também o Deus da criação; não simplesmente o Deus de nossa alma, mas também o Deus de nosso corpo; não simplesmente o Deus dos céus, mas o Deus dos céus e da terra.

O Propósito do Trabalho

Trabalhamos, argumentei, porque somos criados e dotados por Deus para trabalhar. A razão por que trabalhamos jaz na mesma natureza de quem somos como seres humanos e de qual é o nosso propósito nesta terra. E o propósito do trabalho?

Primeiramente, o propósito do trabalho é atender as necessi­dades da vida. De acordo com o apóstolo Paulo, os cristãos de­vem trabalhar com sossego e comer o seu próprio pão (2 Ts 3.12); devem trabalhar para que não necessitem de coisa alguma (1 Ts 4.12b). Como Karl Barth afirmou, o primeiro item em questão em todas as áreas do trabalho humano é a necessidade dos seres hu­manos “ganharem o pão cotidiano e um pouco mais” .

A necessidade de trabalhar para prover as necessidades da vida acha-se por trás do dever de trabalhar. Para Paulo, este dever é de importância primária, tanto que fazia parte da instrução original que Paulo deu aos tessalonicenses quando pela primeira vez os evangelizou: “Quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto: que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também” (2 Ts 3.10) — texto da B íb lia que foi citado até na Constituição da antiga União Soviética! Além disso, não temos nenhuma razão para pensar que os tessalonicenses eram exceção a este respeito. Outras igrejas paulinas receberam instrução semelhante. Pois isto fazia parte do ensino ou “tradição” (2 Ts 3.6) sobre o estilo de vida cristão.

"Todo tipo de trabalho executado pelos cristãos, não

apenas o serviço religioso, pode ser uma chamada".

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O segundo e estreitamente relacionado propósito do trabalho é prover subsistência aos necessitados. Em Efésios, os cristãos são exortados a trabalhar, “fazendo com as mãos o que é bom” , para que tenham o que “repartir com o que tiver necessidade” (E f 4.28). A exortação repercute a crença e experiência da Igreja Prim itiva de que não deveria haver “entre eles necessitado algum” (A t 4.34), um ideal inspirado, sem dúvida nenhuma, pelo ensino de Jesus e as promessas do Antigo Testamento (veja Deuteronômio 15.4). Semelhantemente, no discurso de despedida de Paulo em Mileto, o propósito primário do trabalho é ajudar os economicamente fra­cos: “Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é ne­cessário auxiliar os enfermos e recordar as palavras do Senhor Je­sus, que disse: Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber” (At 20.35). Este versículo é radical. Ordena mais que somente ajudar os pobres se pudermos; ordena labutar estrenuamente (que é o significa­do de kopiôntas, a palavra grega usada) para ter os meios necessários para ajudar. Além disso, apoiar os necessitados pelo trabalho diligen­te não era simplesmente um ato de generosidade; era preferencial­mente um mandamento de justiça. Por exemplo, Paulo é explícito em chamar a ajuda financeira dos cristãos gentios, dada aos cristãos ne­cessitados da Palestina, de “justiça” ou “retidão” (grego, dikaiosunê\ 2 Co 9.9). Isto ressoa a visão do Antigo Testamento de que a esmolaria não é apenas caridade, mas justiça. Como lemos no Salmo do justo, ele “é liberal, dá aos necessitados; a sua justiça permanece para sempre” (S I 112.9).

O terceiro propósito do trabalho é o desenvolvimento da cultu­ra. Superficialmente, este propósito do trabalho não é tão óbvio quanto os outros dois. Contudo, não é menos importante. O me­lhor modo de entendê-lo é contrastar o que o Antigo Testamento diz sobre o trabalho humano e o que os mitos mesopotâmicos da criação dizem. Na epopéia de Atra-Hasis, a história da criação humana começa com uma descrição de um episódio na vida dos deuses, dentre eles os deuses inferiores chamavam-se Igigi e os deuses superiores, Anunaki:

Quando os deuses eram como os homens,Suportavam o trabalho e sofriam a labuta,A labuta dos deuses era grande,O trabalho era pesado, o sofrimento era muito.O Sete grandes AnunakiEstavam fazendo os Igigi padecerem o trabalho.9

Os deuses Igigi estavam, claro, infelizes com sua sorte; esta­vam “reclamando” e “maldizendo” . Até resolveram se rebelar — meteram fogo em suas ferramentas e começaram a sitiar o templo do grande deus E n lil. Mediante negociações foi encontrada uma solução: a criação dos seres humanos. Os seres humanos deveri­am “suportar o jugo” e “ levar a labuta dos deuses” . Assim a deusa

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Mami criou os seres humanos. Depois de terminar o trabalho, ela se dirigiu aos deuses:

Eu removi seu trabalho pesado,Eu impus sua labuta nos homens.Vocês elevaram um clamor pelo género humano,Eu vos livrei do jugo, estabeleci a liberdade.10

Os seres humanos foram criados para liberar os deuses do tra­balho estrénuo; os seres humanos são uma solução ao problema criado pelos deuses inferiores que estavam em greve.11 Quando os seres humanos trabalham, eles servem aos deuses fazendo o tra­balho que os deuses deviam fazer. O trabalho humano está imedi­atamente relacionado com o serviço dos deuses. O trabalho é uma atividade cúltica.

Compare isto com o relato que o Antigo Testamento faz sobre a criação. Longe dos seres humanos serem criados para liberar os deuses de trabalho estrénuo, em Génesis 2 é Deus quem trabalha para os seres humanos: Deus planta o jardim para provisão huma­na (Gn 2.8). Além disso, em Génesis 1, o propósito da criação humana concerne muito a coisas mundanas: Tem a ver com domi­nar os animais e sujeitar a terra. O trabalho humano está, se lhe aprouver, “desmitificado” : está divorciado de sua conexão imedi­ata com o culto e posto à serviço da cultura.12 O trabalho não é uma atividade cúltica, mas cultural.

O quarto propósito do trabalho é cooperação com Deus.13 Gn 2.5 sugere que há uma dependência mútua entre Deus e os seres humanos na tarefa de conservar a criação. O trabalho de Deus e o trabalho dos seres humanos estão relacionados no texto quan­do é dada a razão porque no princípio “toda planta do campo ain­da não estava na terra, e toda erva do campo ainda não brotava; porque ainda o SENHOR Deus não tinha feito chover sobre a ter­ra” (Gn 2.5). A razão era dupla: primeiro, “o SENHOR Deus não tinha feito chover sobre a terra” e, segundo, “não havia homem para lavrar a terra” (Gn 2.5). São necessários a cooperação de Deus, que envia a chuva, e os seres humanos, que lavram a terra, para que as plantas cresçam. Por conseguinte, longe de serem bestas de carga para os deuses como nos mitos mesopotâmicos, na Bíblia, os seres humanos são colaboradores de Deus. Por um lado, os seres hu­manos são dependentes de Deus, pois “Se o SENHOR não edificai- a casa, em vão trabalham os que edificam” (SI 127.1). Por outro lado, Deus fez os seres humanos trabalharem como meio pelo qual reali­zam o trabalho deles no mundo. Como Lutero declarou, o trabalho humano é “a máscara de Deus atrás da qual Ele se esconde e rege tudo no mundo magnificentemente” .

Em Issues Facing Christians Today (Assuntos que os Cristãos enfrentam Hoje), John Stott conta uma história que ilustra bem a cooperação entre Deus e os seres humanos no trabalho mundano.

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“Um jardineiro londrino mostrava a um pastor a beleza do seu jardim , com suas bordas herbáceas em plena flor de verão. Ade­quadamente impressionado, o pastor irrompeu em louvores es­pontâneos a Deus. O jardineiro, porém, não ficou muito contente que Deus recebesse todo o crédito. ‘Você devia ter visto o jardim antes’ , disse ele, ‘quando Deus tinha tudo a seu cargo’ .”

“Ele tinha razão” , continua Stott. “Sua teologia estava inteira­mente correta. Sem um cultivador humano, todo o jardim depressa viraria um deserto.” 14

Há ainda outro propósito do trabalho hu­mano que podemos abordar aqui apenas bre­vemente: E a cooperação de Deus na trans­formação da criação. Quando nos colocamos em cooperação com Deus na preservação da criação levando em consideração a nova cria­ção prometida, então fica claro que os seres humanos também cooperam com Deus na an­tecipação da transformação escatológica que

Deus procede no mundo. Na verdade, não estamos introduzindo o Reino de Deus, construindo “um novo céu e uma nova terra” ; só Deus pode fazer isso. Muito semelhante à criação original, a nova criação é, em primeiro lugar, um dom da graça de Deus e não um resultado do esforço humano.

O Deus que dá também é o Deus que ordena e inspira. A ex­pectativa do Reino não é contrária à participação com Deus, que já está em trabalho construindo o Reino. Se trabalhamos no poder do Espírito, que é “a primeira prestação” da glória escatológica (veja 2 Coríntios 1.22; Romanos 8.23), então nosso trabalho pelo qual cooperamos com Deus é a antecipação ativa do Reino de Deus. Colocado no contexto da participação no Reino, o trabalho mundano para melhorar o mundo, embora possa ser de pouca monta e defeituoso e necessite de purificação divina, torna-se uma con­tribuição para o Reino escatológico, que em última instância virá pela ação de Deus. Como Jurgen Moltmann afirma em seu artigo “The Right to Work” (O Direito ao Trabalho), em seu trabalho diário os seres humanos são “colegas de trabalho no Reino de Deus, que completa a criação e renova o céu e a terra” .15 Deus purifica­rá, transfigurará e receberá em Seu Reino eterno todas as coisas boas e bonitas que as mãos humanas têm criado.

Contra a idéia de que o trabalho é cooperação com Deus na preservação e transformação do mundo, alguém pode objetar que glorifica o trabalho excessivamente. Por isso, é importante lem­brar que a noção de trabalho como colaboração com Deus não é uma teoria geral de trabalho, aplicável a todo e qualquer tipo de trabalho. Com frequência o trabalho humano é feito em coopera­ção com os poderes das trevas, que planejam arruinar a criação boa de Deus. Só pense em todo o trabalho duro que foi feito para apoiar a Alemanha de Hitler, a Rússia de Stálin ou o Chile de

"O trabalho humano é 'a máscara de Deus atrás da qual Ele se

esconde e rege tudo no mundo magnificentemente".— Martinho Lutero

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Pinochet. O trabalho humano não é apenas uma situação em que a glória dos seres humanos como colaboradores de Deus se mani­festa. Também é uma situação em que a misé­ria dos seres humanos, como impedidores dos propósitos de Deus, fica visível. Como na pro­va de fogo, o julgamento de Deus trará à luz o trabalho que tem o significado último, porque foi feito em cooperação com Deus. Mas tam­bém manifestará a insignificância última do trabalho feito em cooperação com aqueles po­deres demoníacos que planejam arruinar a cri­ação boa de Deus (veja 1 Coríntios 3.12-15).

"Com frequência o trabalho humano é feito em cooperação com os poderes das trevas, que planejam arruinar a criação boa

de Deus".

O Trabalho Humano e a Maldição de DeusCom exceção do parágrafo anterior, até aqui enfatizei só o lado

positivo do trabalho: O trabalho é essencial à nossa humanidade e pelo trabalho mantemos unidos não só a alma e corpo de nosso próximo, como também a nossa própria, e além disso cooperamos com Deus na preservação e transformação de nosso mundo. No entanto, como todos sabemos, também há um lado desagradável do trabalho. Considerando que a B íb lia não o encobre, seria alta­mente impróprio se os teólogos o fizessem. A teologia do trabalho não é uma ideologia projetada a glorificar o trabalho, mas é uma ferramenta que nos ajuda a transformar o trabalho, de forma que corresponda à vontade de Deus para a sua criação.

Considere no segundo relato da criação (Génesis 2— 3), um texto — você se lembrará, no qual o trabalho figura muito proe­minentemente — que tem a dizer algo sobre o lado desagradável do trabalho. No mesmo texto em que lemos que Deus criou os seres humanos e os colocou no jardim do Éden para cultivar e guardá-lo, lemos também sobre a labuta humana fora do jardim. Entre o trabalho realizador e o trabalho fatigante está um mistério inexorável do pecado humano. O texto não tenta explicar esse mistério; só narra o aparecimento do pecado, a responsabilidade humana a esse respeito e as consequências do pecado nos seres humanos. Uma das consequências tem a ver com o trabalho hu­mano. Deus diz a Adão: “Maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos e cardos também te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto, comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado, porquanto és pó e em pó te tornarás” (Gn 3.17-19).

Repare duas coisas sobre este texto. Primeiro, o que é amaldi­çoado é a terra e não Adão ou o seu trabalho. As vezes as pessoas declaram que o Antigo Testamento vê o trabalho como maldição; alguns filósofos, como Jíirgen Habermas, gostam de falar sobre a “maldição bíblica do trabalho necessário” .16 Em primeiro lugar, tal interpretação se evapora em face de Génesis 1.26-31 e Génesis

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2.15, onde o trabalho é claramente uma dimensão fundamental da vida humana. Porém mais importante, no próprio texto de Génesis 3.17-19 é que não há sugestão alguma de que o trabalho seja uma maldição. Antes, é uma consequência da maldição contra a terra que o trabalho se tornou labuta.

Em segundo lugar, para que o trabalho seja labuta significa que não é mais algo fácil e realizador; antes, os seres humanos

têm de cultivar a terra no suor do seu rosto. Além disso, depois da Queda o trabalho mais estrénuo não pode impedir que até espinhos e cardos cresçam na colheita. O trabalho resulta muitas vezes em fracasso e toda labuta é às vezes em vão. Alguém poderia objetar que esta é uma visão bastante pessimista do trabalho. E , não obstante, alguém removerá o suor do trabalho da maioria dos seres humanos quei­xando-se do pessimismo desta passagem? Os espinhos serão tirados dos produtos do traba­

lho, se os tirarmos do texto bíblico? Minha impressão é que a pas­sagem é realista, em vez de pessimista.

Temos de ter cuidado com o que fazemos com o realismo desta passagem. Muitas vezes na história do Cristianismo a passagem foi usada incorretamente pelos poderosos para justificar a explo­ração dos fracos: Depois da Queda, declarava-se, você tem de so­frer a fatiga do trabalho, suportar sua labuta, não procurar melho­rar sua condição. Contudo isto é claramente um mal emprego da passagem. Quase sem exceção, o Antigo Testamento censura o trabalho forçado, por exemplo. Os primeiros seis capítulos de Êxodo, que narra a história da escravidão de Israel no Egito, dão claro testemunho a esse respeito.

“Os egípcios faziam servir os filhos de Israel com dureza; assim, lhes fizeram amargar a vida com dura servidão, em barro e em tijolos, e com todo o trabalho no campo, com todo o seu serviço, em que os serviam com dureza” (Êx 1.13,14).

Como Deus reagiu à opressão de Israel?

“E disse o SENHOR: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores. Portanto, desci para livrá-lo da mão dos egípcios” (Êx 3.7,8).

Ou considere o que aconteceu quando o grande rei Salomão recrutou o trabalho forçado de seus súditos para construir a casa do Senhor, os palácios e as fortificações da cidade (veja 1 Reis9.15). O modo como Salomão tratou os trabalhadores fez com que seu sucessor, Roboão, perdesse grandes porções do reino (1 Rs

"A labuta, como a opressão, seguramente é uma consequência do pecado. Mas o pecado nunca deveria ser usado para justificar a

labuta e a opressão."

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12.1-24). O rei tinha a obrigação de ser “ servo deste povo” e não seu exator (1 Rs 12.7). De modo semelhante, os profetas atacaram os reis de Israel com veemência por explorar os súditos. Um bom exemplo são as palavras de Jeremias ao rei davídico, Jeoaquim:

Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos sem direito; que se serve do serviço do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o salário do seu trabalho; que diz: Edificarei para mim uma casa espaçosa e aposentos largos, e lhe abre janelas, e está forrada de cedro e pintada de vermelhão. Reinarás tu, só porque te encerras em cedro? Acaso, teu pai não comeu e bebeu e não exerci­tou o juízo e a justiça? Por isso, tudo lhe sucedeu bem. Julgou a causa do aflito e do necessitado; então, lhe sucedeu bem; porventura, não é isto conhecer-me? diz o SENHOR. Mas os teus olhos e o teu coração não atentam senão para a tua avareza, e para o sangue inocente, a fim de derramá-lo, e para a opressão, e para a violência, a fim de levar isso a efeito (Jr 22.13-17).

A labuta, como a opressão, seguramente é uma consequência do pecado. Mas o pecado nunca deveria ser usado para justificar a labuta e a opressão; antes, porque a labuta e a opressão são conse­quências do pecado, devem ser combatidas. A labuta e a opressão têm de acabar. Esta é a mensagem inscrita na libertação que Deus deu ao seu povo da escravidão egípcia; esta é a mensagem procla­mada corajosamente pelos profetas.

Trabalho Ruim, Trabalho BomOlhemos alguns aspectos negativos importantes do trabalho e

examinemos como a B íb lia nos ensina a reagir a eles. O que bus­camos aqui é como fazer o trabalho ruim que muitas vezes experi­mentamos no trabalho bom que Deus nos designou a fazer.

Primeiro, a exploração. Muitas pessoas ao redor do globo tra­balham longas horas por baixo salário, os contratos não são feitos, o molestamento sexual é uma prática e a saúde e as leis de segu­rança são desconsideradas. E bastante apropriado falar de “explo­ração” e “opressão” em tais situações. Como indicado na seção prévia, o Deus da B íb lia é o Deus cujo intento é libertar as pessoas do trabalho forçado e da escravidão (compare Deuteronômio 26.6- 8). Além disso, a libertação de Deus dos explorados e oprimidos é um modelo de como o povo de Deus deve tratar os explorados e oprimidos em seu meio (veja Levítico 25.39ss).

Como indicação de que Deus quer que a exploração e a opres­são sejam removidas da face da terra, considere as visões proféti­cas sobre a nova era de salvação. Na profecia sobre os céus novos e a terra nova, Isaías fala não só de uma intimidade especial das pessoas com Deus e de uma paz na natureza, mas também de um novo tipo de trabalho que as pessoas farão. “E edificarão casas e

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as habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu fruto. Não edificarão para que outros habitem, não plantarão para que outros comam. [...] Não trabalharão debalde, nem terão filhos para a perturbação, porque são a semente dos benditos do SENHOR, e os seus des­cendentes, com eles” (Is 65.21-23). O contraste é violento: Se hoje as pessoas trabalham e outros desfrutam do fruto do seu trabalho, na era de salvação que Deus ocasionará, aqueles que trabalham

também recolherão os benefícios do seu tra­balho. A mensagem é clara: chega de explora­ção, chega de opressão.

Segundo, a labuta. Para muitas pessoas em muitas partes do mundo, o trabalho é um “bem árduo” , como João Paulo I I diz na carta encíclica Laborem Exercens. E um bem, por­que ajuda a alimentar suas bocas e lhes dá sig­nificado à vida; porém, é árduo, porque sofrem

grandemente sob seu fardo e com frequência trabalham sob as condições mais apavorantes. Isto é contra a vontade de Deus, o Criador e Redentor. Os seres humanos são criados por Deus como pessoas dotadas de dons aos quais Deus as chama para exercerem livremente. Considere o modo como Deus quis que o Tabernáculo no deserto fosse construído. Em contraste com o trabalho forçado que Salomão impôs sobre o povo enquanto construía o Templo (1 Rs 9.15) e a escravidão cruel no Egito, Moisés não apenas pediu contribuições de materiais valiosos somente daqueles cujo cora­ção era “voluntariamente disposto” (veja Êxodo 35.5), mas tam­bém insistiu que o próprio trabalho fosse um ato de oferta volun­tária. Pois lemos que Moisés chamou “a todo homem sábio de coração em cujo coração o SENHOR tinha dado sabedoria, isto é, a todo aquele a quem o seu coração movera que se chegasse à obra para fazê-la” (Êx 36.2).

Para dizê-lo mais abstratamente, como dimensão fundamental da existência humana, o trabalho é uma atividade pessoal. As pes­soas devem então trabalhar livremente e nunca serem tratadas como meros recursos. Temos de resistir a qualquer tendência a tratar os trabalhadores como entrada de trabalho. Antes, as pessoas devem desfrutar do trabalho que fazem. Os reformadores tiveram razão em ressaltar que os seres humanos foram originalmente criados para trabalhar e também designados a trabalhar “ sem inconveni­ência” e, “por assim dizer, brincando e com o maior prazer” .17

Terceiro, o egocentrismo. Nunca foi fácil trabalhar para o bem comum. As pessoas sempre preferiram ser servidas a servir (veja Marcos 10.45) e, portanto, precisavam ser encorajadas a servir os outros, sobretudo os necessitados, pelo seu trabalho (E f 4.28). Em sociedades contemporâneas as forças poderosas contribuem para a troca geral do interesse pela comunidade para o interesse por si mesmo. Consideramo-nos como indivíduos autónomos que interagem com outros indivíduos autónomos. Além disso, a ten­

"Os seres humanos são criados por Deus como pessoas dotadas de

dons aos quais Deus as chama para exercerem livremente".

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são na autonomia individual é acompanhada por uma tensão igual na busca do interesse pessoal. Gostamos de pensar que é bom ser “dirigido interiormente” , e que se primeiro tomarmos conta de nós, seremos capazes e estaremos dispostos a tomar conta dos outros. Assim trabalhamos para nós mesmos, pegos na rede de nossos próprios desejos e expectativas sociais. Nosso trabalho tem utilidade pessoal, mas nenhum significado moral.

Contraste isto com o que encontramos no Novo Testamento. Lá também somos encorajados a trabalhar pelo nosso alimento (2 Ts 3.12), mas também somos chamados a trabalhar pelos com­panheiros humanos necessitados. Como está declarado em E f, de­vemos trabalhar honestamente com as mãos, para que tenhamos o que repartir com o que tiver necessidade (Efésios 4.28). Fazendo um comentário sobre Efésios 4.28, João Calvino escreveu: “Não é o bastante quando alguém diz: ‘Ó, eu trabalho, tenho minha ocu­pação’ , ou ‘Tenho tal comércio’ . Isso não é o bastante. Mas temos de ver se é bom e proveitoso para o bem comum, e se o próximo dessa pessoa passa melhor com isso” .18 Para Calvino bem como para a maioria da tradição cristã, além da utilidade pessoal, o tra­balho também tinha uma dimensão moral.

Deus chama as pessoas para usar os seus dons para o benefício da comunidade inteira.O trabalho humano deve ser uma contribuição para o bem comum. O interesse próprio indi­vidual pode ser buscado legitimamente. Em um mundo de recursos escassos que devem ser adaptados às necessidades humanas para que os seres humanos sobrevivam, há um senso importante no qual toda a individualidade deve ser “ interesseira” . Contudo o egoísmo legítimo deve ser acompanhado pela busca do bem dos outros. Estas duas buscas são complementares, não con­traditórias. Como podemos perceber de Efésios 5.25-28, o Novo Testamento não vê nenhuma contradição quando a pessoa “ se en­trega a si mesma” por alguém e, ao mesmo tempo, “ama-se a si mesma” .

Quarto, a discriminação. Apesar dos significativos ganhos que foram feitos na igualdade dos sexos em muitos países, a discrim i­nação no trabalho (como também em outras áreas) continua para muitas mulheres. As mulheres “ou são empurradas ou arrastadas a uma exígua esfera de ocupações” ,19 que frequentemente são mal pagas e oferecem pouco status, segurança, possibilidade de pro­moção ou benefícios adicionais.

Embora os homens e mulheres foram criados diferentemente, eles são iguais diante de Deus. Eva foi criada diretamente por Deus, da mesma maneira que Adão o foi. O fato de que ela devia ser adjutora não significa inferioridade ou subordinação em qualquer sentido. A mesma palavra “adjutora” (hebraico, ‘ezer) é usada muitas vezes para referir-se a Deus como ajudador do seu povo.

"O egoísmo legítimo deve ser acompanhado pela busca do bem

dos outros".

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Além disso, na comunidade da fé não há mais macho e fêmea, do mesmo modo que não há escravo ou mestre (G1 3.28). As mulhe­res devem, portanto, ser reconhecidas e tratadas como iguais aos homens na vida social e económica.

O Trabalho num Ambiente FrágilDepois de seis dias de trabalho, Deus criou o mundo e o pro­

nunciou “muito bom” (Gn 1.31). Em Isaías, lemos que Deus no fim vai criar novos céus e nova terra (Is 65.17). Por que será ne­cessária esta nova criação se a criação original foi criada boa, como nos é dito explicitamente? Porque hoje, por causa do peca­

do humano, “a criação geme e está juntamente com dores de parto” (Rm 8.22). Pela cobiça e violência os seres humanos pecadores estra­garam a criação boa de Deus. Temos abusado dos recursos da terra. Nosso planeta está en­frentando uma crise do sistema ecológico, que é em virtude principalmente dos atos cumula­tivos das gerações depois da Revolução Indus­trial. Se nós — mormente os que vivem nas

nações economicamente desenvolvidas — continuarmos usando os recursos do mundo à taxa atual, não só causaremos desastrosa instabilidade dentro do ecossistema global, mas também exaurire­mos os recursos essenciais para o bem-estar das gerações futuras. A ecologia da terra já não sustentará uma expansão indefinida das forças produtivas.20 O que chamamos de “crise ambiental” não é simplesmente uma crise de ambiente; é uma crise de vida neste planeta. Como criamos uma crise de vida no planeta? A resposta é: pelo trabalho! Assim , se queremos reparar o problema, temos de repensar como o trabalho se relaciona com o ambiente.

Os críticos têm culpado a fé cristã pela destruição progressiva do ambiente depois do início da industrialização. No centro de sua crítica está a ordem de Deus em Génesis 1 de sujeitar a terra e ter domínio sobre ela. Em seu contexto mais amplo, o mandamen­to, declaram, é problemático em três enquadramentos. Primeiro, o mandamento para sujeitar a terra pressupõe a singularidade dos seres humanos, sua separação do restante da criação, o que, por sua vez, incentiva o seu comportamento destrutivo. Segundo, o texto inteiro de Génesis 1 está centrado nos seres humanos: Eles são a coroa da criação. Isto, argumenta-se, desvaloriza o restante da criação. Terceiro, esta ordem para sujeitar dá licença à destrui­ção do ambiente. Vamos examinar estas objeções brevemente.

Primeiro, a singularidade humana. Sem dúvida, os seres hu­manos são singulares na criação e não apenas no sentido muito usado de que toda espécie é singular. Os seres humanos têm um lugar especial na criação. Isto parece bastante óbvio, se por ne­nhuma outra razão, que seja pelo fato de que só eles podem refle­

"O fato de que Eva devia ser adjutora não significa inferioridade

ou subordinação em qualquer sentido".

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tir sobre sua posição na criação. Os textos bíblicos sublinham a singularidade humana, declarando que os seres humanos foram criados depois de deliberação especial por parte de Deus. Todas as outras criaturas Deus simplesmente fez; quando chega a vez dos seres humanos, Deus diz: “Façamos” a humanidade “à nossa ima­gem” , e então passa a fazer o homem e a mulher (Gn 1.26,27).

A despeito da singularidade dos seres humanos seria um erro concentrar-se apenas no que os distingue do restante da criação. De tudo o que nos é dito sobre os seres humanos, provavelmente o mais fundamental é que eles são “criaturas” que estão ao lado das outras criaturas em frente de Deus. Criados no sexto dia, eles fa­zem parte da sucessão dos atos criativos de Deus. Semelhante­mente, no Salmo 104, onde o salmista adora a Deus olhando a maravilha da criação, os seres humanos e a natureza compreen­dem uma unidade inseparável.21 Como expressou Karl Barth, na criação os seres humanos são “os primeiros entre os iguais” .

Segundo, o antropocentrismo. A “Declaração Oxford sobre a Fé Cristã e a Economia” dá excelente resposta resumida à acusa­ção imputada contra a fé cristã, que é antropocêntrica, preocupada apenas com os seres humanos e não com o restante da criação:

A vida e cosmovisão bíblicas não estão centradas na humanidade. Estão centradas em Deus. A criação não humana não foi feita ex­clusivamente para os seres humanos. E nos dito repetidamente na Escrituras que todas as coisas, os seres Rm e o ambiente no qual eles vivem, são “para Deus” (Rm 11.36; 1 Coríntios 8.6; Cl 1.16). Correspondentemente, a natureza não é somente a matéria-prima para a atividade humana. Embora somente os seres humanos foram criados à imagem de Deus, a criação dos não humanos tem uma dignidade sua própria, tanto que depois do Dilúvio Deus estabele­ceu um concerto não só com Noé e seus descendentes, mas tam­bém “com toda alma [criatura] vivente, que convosco está, de aves, de reses, e de todo animal da terra convosco; desde todos que saí­ram da arca, até todo animal da terra” (Génesis 9.9,10). De modo semelhante, a esperança cristã para o futuro também inclui a cria­ção. “A mesma criatura [ou seja, a totalidade da criação não huma­na] será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21).22

E indisputável que a civilização cristã depois do início da modernidade desvalorizou a natureza. Contudo, é igualmente indisputável que a desvalorização da natureza não pode ser feita com a B íb lia, mas só contra a Bíb lia.

Terceiro, o significado do domínio. E verdade que os verbos usados em Génesis 1.26 e 28 são violentos; reger ou ter domínio (hebraico, radhah) é usado para dizer pisar o lagar (Joel 3.13) ou de um país subjugar o outro (Nm 24.19). A questão crucial, po-

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O termo modernidade refere-se à nova civilização desenvolvida na Europa e América do Norte durante os últimos séculos e plenamente manifestada no início do século XX. A perspectiva moderna é caracterizada pela confiança na razão humana de exercer controle tecnológico sobre a natureza e promover o conhecimento humano pelo método científico. Para um tratamento mais extenso sobre a modernidade, veja Lawrence Cahoone, editor, From Modernism to Postmodernism: An Anthology (Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1996).

rém, é se estes verbos têm conotações violentas em Génesis 1. Eles dão aos seres humanos domínio ilimitado sobre a terra?23 Os seres humanos permanecem “em cada caso e em cada fase” do domínio da terra “dentro da ordenação original do Criador” , como lemos na encíclica de João Paulo I I , Laborem Exercens'!24 Tudo fala contra tal compreensão de Gn 1.

1. Ainda que “domínio” às vezes tenha conotação de violência, em Génesis 1 diz respeito aos animais que não foram originalmente dados aos seres humanos como alimento (cf. Génesis 1.29,30). Por­tanto, não inclui a matança de animais. Alguns comentaristas pen­sam que se refere à domesticação desses animais.25

2. O Antigo Testamento usa radhah para designar o domínio do rei (veja 1 Reis 5.4; Salmos 110.2). Ao sujeitar a terra, os seres hu­manos estão exercitando sua responsabilidade real. Devemos enten­der este domínio no contexto do ideal de Israel de um rei. Um rei deveria ser “servo” do povo e cuidar dele (1 Reis 12.7). Além disso, como dominadores sobre a terra, os seres humanos são responsáveis a Deus que os criou à sua imagem. Eles têm de dominar conforme a vontade de Deus para a criação de Deus (Génesis 1.31).

3. E importante observar que Génesis 1.26-28 relaciona o m an­damento de ter dom ínio estreitam ente com a bênção de Deus. Por seu dom ínio régio, os seres humanos deviam m ediar as bênçãos de Deus para a criação. E essa bênção efetua o bem -estar e não a destruição.

4. Os seres humanos são criados à imagem de Deus como comu­nidade e não simplesmente como indivíduos isolados (Génesis 1.26- 28). Por conseguinte, eles têm de exercer domínio em responsabili­dade por toda a comunidade humana, a comunidade global na cadeia de gerações.

O segundo relato da criação confirma esta interpretação de domínio. Aqui lemos que Deus colocou os seres humanos no jar­dim de Éden não só para lavrá-lo (ou trabalhar, ‘avadh), mas tam­bém para guardá-lo (shamar, Génesis 2.15). Por conseguinte, o domínio humano consiste na tarefa dupla de “trabalhar” e “guar­dar” a criação. Trabalhar e guardar são dois aspectos complemen­tares da atividade humana. Todo trabalho tem de ter um aspecto produtivo e também um aspecto protetor. Os seres humanos só dominam sobre a criação conforme as intenções do Criador, so­mente quando seu domínio ajuda a preservar a inteireza da cria­ção de Deus. De que outra forma o trabalho deles poderia estar em cooperação com Deus?

Um comentário final sobre a natureza do domínio. No começo da modernidade, Francis Bacon admitiu que o “homem caiu do seu estado de inocência e do seu domínio sobre a criação” como resultado do pecado. Mas considerando que ele acreditava que a inocência poderia ser recuperada “pela religião e pela fé” , Bacon

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sustentava que para recuperar o domínio, “ as artes e as ciências” seriam suficientes.26 E le admitia que o exercício do poder tecnológico deveria ser governado pela razão perfeita e pela re li­gião. Mas não levou muito tempo e Deus foi esquecido e o domí­nio foi pervertido no exercício do poder tecnológico bruto guiado apenas pela razão instrumental.

Hoje, precisamos redescobrir as dimensões religiosas e mo­rais do domínio sobre a natureza. Os reformadores estavam côns­cios de que o domínio baseado somente nas artes e nas ciências é um domínio inferior. Só os seres humanos “verticais” podem exer­cer verdadeiro domínio sobre a natureza. Não seria este o princí­pio da declaração em Marcos que, durante a tentação de Jesus no deserto, E le “vivia entre as feras” , mas não precisava domesticá- las (Marcos 1.13)? Sua comunhão com os animais selvagens, a comunhão daquele que venceu a tentação de fazer mal-uso do poder do engrandecimento de si mesmo, não antecipou a paz futura en­tre os seres humanos e a criação não humana, uma paz que será o fruto da justiça (vejalsaías 11.6-8; 65.25)?

Em Lugar de Conclusão: A Advertência de Albert Speer

Em Truthfulness and Tragedy (Veracidade e Tragédia) Stanley Hauerwas narra a história de Albert Speer, o arquiteto de H itler e ex-ministro de armamentos. Como foi que um jo ­vem inteligente como Speer pôde concordar com H itler? Speer explica à sua filha:

Você deve entender que, com a idade de trinta e dois anos, em mi­nha habilidade como arquiteto, eu tinha as tarefas mais esplêndidas com as quais poderia sonhar. Certo dia, Hitler disse à tua mãe que o marido dela poderia projetar edifícios cuja semelhança não tinha sido vista por dois mil anos. Tinha-se de ser moralmente muito estóico para rejeitar a proposta. Mas eu não era assim.21

A expressão “razão instrumental” refere-se a um dos usos im­portantes da razão humana. Especificamente, diz respeito ao modo como os seres humanos procuram resolver problemas ou alcançar metas por meio da investigação racional. Neste sentido, a razão é o meio, o instrumento, para resolver um problema ou alcançar uma meta. Por contraste, os seres humanos às vezes também pen­sam em coisas finais: por exemplo, o significado da vida ou as obrigações morais da pessoa. A razão, assim empregada, é reflexi­va ou contemplativa, não instrumental. Assim , a razão instrumen­tal considera os meios para alcançar os fins, enquanto que a razão reflexiva considera os próprios fins.

Speer era “acima de tudo arquiteto” e com “medo de descobrir algo que pudesse ter-me feito sair do meu curso” , ele escolheu

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não saber. “Eu tinha fechado os olhos” , escreve ele. Com seus olhos, ele não estava consciente dos crimes do sistema ao qual servia, impossibilitado até de “ver qualquer base moral fora do sistema onde eu deveria ter assumido minha posição” .28

As tentações de Speer poderiam ter sido maiores, porque o Império para o qual ele trabalhava era mais sinistro, mas basica­mente não era diferente do nosso. Em The Gamesman: Winning and Losing the Career Game (O Jogador: Ganhando e Perdendo o Jogo da Carreira), Michael Maccoby ressalta que o carreirismo resulta na perda do eu:

Por demais preocupado em adaptar-se aos outros, em comercializar-se, o carreirista constantemente se trai, visto que tem de ignorar seus impulsos idealistas, compassivos e corajosos que poderiam prejudicar-lhe a carreira. Como resultado, ele nunca desen­volve um centro interior, uma forte e independente sensação do eu e, eventualmente, perde contato com suas forças mais profundas.29

A grandeza e tragédia de Albert Speer, esse carreirista consu­mado, são unicamente uma: Ele era “acima de tudo arquiteto” . Ser “acima de tudo arquiteto” foi sua grandeza, porque sua devo­ção singular à sua carreira fez dele um arquiteto excepcionalmen­te bom. Ser “acima de tudo arquiteto” foi sua tragédia, porque sua devoção singular à sua carreira fez dele um ser humano excepcio­nalmente ruim.

O trabalho é perigoso. Se você não ficar atento, dividirá sua excelência profissional de sua excelência pessoal, nutrirá uma e matará a outra. Pode iludi-lo a se esforçar para ganhar o mundo inteiro, enquanto o cega para o fato de que você está perdendo a própria alma (veja Marcos 8.36). A única maneira de ser, ao mes­mo tempo, um bom trabalhador e uma boa pessoa é esquecer-se de ganhar o “mundo inteiro” e, em vez disso, esforçar-se pelo Reino de Deus e a sua justiça (Mateus 6.33).

Revisão e Questões para Discussão

1. O que Volf quis dizer quando afirmou: “O trabalho é a nossa bênção e o trabalho é a nossa maldição” ?

2. Como Volf define trabalho? O que ele acha que não é trabalho?3. Volf distingue entre a razão porque trabalhamos e o propó­

sito pelo qual trabalhamos. Explique esta distinção. Qual é a res­posta dele à pergunta: Por que trabalhamos?

4. Como Volf explica o propósito do trabalho? Na verdade ele cita vários propósitos. Quais são?

5. Na seção intitulada “O Trabalho Humano e a Maldição de Deus” , Volf descreve a maldição associada com a Queda. Como ele relaciona a maldição com o trabalho humano?

r

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6. O autor identifica quatro aspectos negativos do trabalho: exploração, labuta, egocentrismo e discriminação. Resume e ilus­tre um deles.

7. Os críticos culparam a fé cristã pela destruição progressiva do ambiente depois do início da industrialização. Que evidências os críticos citam para a sua conclusão? Resuma a resposta de Volf aos críticos.

8. Qual é o princípio de contar a história de Albert Speer? E s­pecificamente, o que a história desse homem tem a ver com o trabalho?

Bibliografia SelecionadaH ARDY, Lee. The Fabric ofThis World: lnquiries into Calling,

Career Choice, and the Design o f Human Work. Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1990.

Laborem Exercens: Encyclical Letter o f the Supreme Pontiff John Paul II on Human Work. Londres: Catholic Trust Society, 1981.

M OLTM ANN, Jiirgen. “The Right to Work.” In : On Human Dignity: Political Theology and Ethics, traduzido para o inglês por D. Meeks. Filadélfia: Fortress Press, 1984.

STO TT, John. “Work and Unemployment.” In : Issues Facing Christians Today. Basingstoke, Inglaterra: Marshalls, 1984.

“The Oxford Declaration on Christian Faith and Economics.” In : Christianity and Economics in the Post-Cold War Era: The Oxford Declaration and Beyond, editores H. Schlossberg et al. Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1994.

VO LF, Miroslav. Work in the Spirit: Toward a Theology of Work. Nova York: Oxford University Press, 1991)

Notas Bibligráficas1. Alain Finkielkraut, Die Weisheit derLiebe, traduzido do russo

para o inglês por N. Volland (Reinbeck bei Hamburg: Rowohlt Verlag, 1989), p. 17.

2. Ju lie tB . Schor, The OverworkedAmerican: The Unexpected Decline ofLeisure (Nova York: Basic Books, 1992), p. 11.

3. Ibid ., pp. 9s.4. John K . Galbraith, TheAffluent Society (Boston: Houghton

M ifflin , 1958), p. 154.5. Schor, The Overworked American, p. 11.6. Omiti intencionalmente alguns aspectos do trabalho huma­

no, como a relação entre trabalho e descanso ou lazer, porque se­rão tratados em outro capítulo. No texto a seguir, não farei refe­rências extensas a literatura secundária. Para uma abordagem mais extensa dos temas que trato aqui, veja especialmente Miroslav Volf, Work in the Spirit: Toward a Theology ofWork (Nova York: Oxford University Press, 1991). Veja também “Eschaton, Creation, and

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2 4 4 MIROSLAV VOLF

Social Ethics” , Calvin Theological Journal, volume 30,1995, pp. 130-143; “Work and the Gifts of the Spirit” , in: Christianity and Economics in the Post-Cold War Era: The Oxford Declaration and Beyond, editores Herbert Schlossberg et al. (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1994), pp. 33-56; “On Human Work: An Evaluation of the Key Ideas of the Encyclical Laborem Exercens", Scottish Journal o f Theology, volume 36, 1984, pp. 65-79.

7. Veja Goran A g re ll, Work, Toil and Sustenance: An Examination o f the View o f Work in the New Testament, taking into Consideration Views Found in Old Testament, Intertestamental and Early Rabbinic Writings (Lund: Verbum/Hakan Ohlssons,1976), p. 8.

8. Sobre a questão do trabalho divino, veja Robert J. Banks, God the Worker: Journeys into the Mind, Heart, and Imagination o f God (Claremont: Albatros, 1992).

9. Atra-Hasis: The Babilonian Story ofthe Flood, editores W. G. Lambert e A . R . Millard (Oxford: Clarendon Press, 1969), p. 43.

10. Atra-Hasis, pp. 59s.11. Veja Walter Zim m erli, “Mensch und Arbeit im Alten

Testament” , Recht auf Arbeit — Sinn der Arbeit, editor Jiirgen Moltmann (Munique: Christian Kaiser, 1979), p. 52.

12. Jiirgen Ebach, “Zum Thema: Arbeit und Ruhe im Alten Testam ent. E in e U topische Erinnerung” , Zeitschrift fiir Evangelische Ethik, volume 24, 1980, p. 17.

13. Contra Stanley Hauerwas, “Work as Co-Creation: A C riti­que of a Remarkably Bad Idea” , in : Co-Creation and Capitalism: John Paul I I ’s Laborem Exercens, editores J. W. Houck e O. F. W illiam s (Lanham, M aryland: U niversity Press of Am erica, 1983), p. 48.

14. John Stott, Issues Facing Christians Today (Basingstoke, Inglaterra: Marshalls, 1984), p. 160.

15. Jiirgen Moltmann, “The Right to Work” , On Human Dignity Political Theology and Ethics, traduzido para o inglês por D. Meeks (Filadélfia: Fortress Press, 1984), p. 45.

16. Jiirgen Habermas, Erkenntnis und Interesse (Frankfurt A .M .: Suhrkamp, 1979), p. 80.

17. M artin Lu ther, M artin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe (Weimar: H. Bohlau, 1883—), volume X L II , p. 78.

18. John Calvin, Sermons on the Epistle to the Ephesians (Edim­burgo: Banner of Truth, 1973), p. 457.

19. W. T. Bielby e J. N. Baron, “Men and Woman at Work: Sex Segregation and Statistical Discrimination” , American Journal o f Sociology, volume 91, 1986, p. 760.

20. Parcialmente com base nisso, Christopher Lasch argumen­tou que temos de repensar a idéia de progresso. Veja seu livro True and Only Heaven: Progress and Its Critics (Nova York: Norton

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& Company, 1991).21. Veja O. H. Steck, Welt und Umwelt (Stuttgart: Kohlhammer,

1978), p. 68.22. “ The O xford D eclaration on C hristian Faith and

Economics” , in: Christianity and Economics in the Post-Cold War Era: The Oxford Declaration and Beyond, editores Herbert Schlossberg et al. (Grand Rapids: W illiam B. Eerdmans Publishing Company, 1994), pp. 13s.

23. Veja, por exemplo, B . Jacob, Das erste Buch der Tora. Genesis (Berlim : Shocken, 1934), p. 61.

24. Laborem Exercens; Encyclical Letter ofthe Supreme Pontiff John Paul II on Human Work (Londres: Catholic Trust Society, 1981), n.° 4.

25. Veja Norbert Lohfink, “Macht euch die Erde Untertan?” , Orientierung, volume 38, 1974, p. 139; Claus Westermann, Schõpfung (Stuttgart: Kreuz Verlag, 1979), p. 78.

26. Citado por W. Leiss, The Domination ofNature (Nova York: Georges Braziller, 1972), p. 49.

27. Citado por Stanley Hauerwas, Richard Bondi e David B . Burrell, Truthfulness and Tragedy: Further Investigations in Christian Ethics (Notre Dame: University of Notre Dame Press,1977), pp. 88ss.

28. Ibid., p. 90.29. Michael Maccoby, The Gamesman: Winning and Losing the

Career Game (Nova York: Simon & Schuster, 1976), pp. 204, 205.

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7Entrando no "Descanso Divino":

Rumo a uma Visão Cristã

de LazerCharles W. Nienkirchen

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248 CHARLES W. NIENKIRCHEN

Eu não tinha conhecimento ou experiência do 'Cristo do deserto',

chamado para usufruir de comunhão tranquila com seu Pai.

avia um menino que cresceu numa pequena cidade cana­dense. Como parte de uma subcultura alemã de classe tra­balhadora firmemente unida, sua fam ília o ensinou desde

cedo a acreditar no trabalho - sua necessidade, seu valor moral e suas recompensas. Lazer e descanso raramente eram menciona­dos ou exemplificados. O menino chegou a ver tudo na vida pela janela do trabalho. Tudo, inclusive a imagem de si mesmo, era avaliado a partir de sua relação com o trabalho. “Trabalhar para Deus” tornou-se a base que moldou sua vida espiritual. Crendo que Deus sempre estava lhe pedindo que fizesse mais pela via do serviço, seu estilo de vida tomou-se um ativismo cristão altamen­te extrovertido. Ele avaliava o sucesso espiritual em termos de quantidade de trabalho e produtividade - os únicos critérios que conhecia.

Os anos se passaram. A compulsão ao trabalho (“workaholismo”) permaneceu o padrão reinante em sua vida. Durante seus estudos de pós-graduação, um interesse pela história cristã levou-o a explorar as origens cristãs no Oriente Médio. Ele foi atraído por uma série de __________________ diálogos com monges que habitavam os de­

sertos do Egito e de Israel. Ficou intrigado com as motivações de determinado monge que du­rante mais de 40 anos tinha vivido ao lado do monte da Tentação, fora dos limites de Jericó. Achando divertidíssima a excentricidade do monge, e convencido da irrelevância de sua vida, o jovem travou conversa com o mon­ge, e lhe perguntou: “Como sua vida cum­

pre a Grande Comissão?” Sem perder a serenidade, o monge respondeu: “Como você segue a Cristo no deserto? - E além do mais, não estou voando de avião pelo mundo inteiro poluin­do a atmosfera!”

Eu era aquele jovem. O “pai deserto” tinha discernido meu coração. Eu não tinha conhecimento ou experiência do “Cristo do deserto” , chamado para usufruir de comunhão tranquila com seu Pai. O Espírito tinha me levado a sair da familiaridade confortável de minha cultura ocidental e tradição religiosa. O mesmo Espírito me tinha posto em equilíbrio para começar um novo capítulo de sua obra restauradora em minha vida. O encontro com o pai deser­to me lançou numa excursão de 15 anos no mundo da “vida contemplativa” e “lazer santo” . Nas páginas a seguir descrevo al­guns dos temas fundamentais para entendermos o lazer santo e integrá-lo em nossa vida diária.

O Surgimento Histórico da Sociedade de LazerA Revolução Industrial dos séculos X V III e X IX alterou dras­

ticamente as economias da Europa ocidental. Nos dois séculos seguintes, grande parte do mundo tem buscado a industrialização.

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r

As sociedades foram construídas e seus habitantes passaram a es­perar usufruir de riqueza disponível, bens disponíveis e tempo dis­ponível.1 A inexorável inovação tecnológica criou a “era do lazer” .Outrora privilégio apenas dos ricos, hoje o lazer se estende às clas­ses trabalhadoras. Isto é evidente em muitos aspectos da vida: se­mana de trabalho menor, mais feriados, férias mais extensas, edu­cação ampliada antes do trabalho, aposentadoria mais cedo, ex­pectativa de vida mais longa. O rápido crescimento da economia de trabalho, os dispositivos tecnológicos, inclusive os eletrodo- mésticos, e a melhoria dos meios de transportes e comunicação tornaram o lazer muito mais disponível para a pessoa comum.

Além disso, hoje o trabalho está em geral separado física e psicologicamente de onde as pessoas vivem. Todos estes fatores combinados enchem a vida da classe média trabalhadora de uma quantidade de lazer e descanso aparentemente sem precedentes na história do mundo.2

Numerosos observadores sociais têm chamado a atenção para um paradoxo do mundo ocidental de fins do século X X : As pesso­as trabalham duro no lazer. Escrevendo em meados do século,Walter Kerr lamentou o “declínio do prazer” na sociedade indus­trial. Ele reconheceu que o “ sonho de lazer” tinha sido realizado.Porém, lastimou que o século X X tinha “ao contrário e talvez de modo bastante cruel [...] nos aliviado do trabalho, sem ao mesmo tempo nos aliviar da crença de que só o trabalho é significativo” .3 O escritor britânico Jeremy Seabrook, escrevendo em fins da dé­cada de 1980, viu a degradação da cultura ocidental em uma “bus­ca agitada de entretenimento e fuga” como uma corrupção do lazer.Em sua visão, o lazer foi reduzido a “uma perpetuação da tarefa nunca completada do trabalho nas minas, moinhos ou fábricas” .4 Longe de ser uma experiência de repouso criativo, o lazer foi vis­to por Seabrook como tendo “uma semelhança extraordinária com a atividade febril do labor capitalista” .5

Mais recentemente, a antropóloga Mary Bateson descobriu que seus companheiros americanos de fins do século X X trabalham duro para se divertir: “Somos uma sociedade agitadamente ocu­pada, com pouca capacidade para vadiar ao sol (embora trabalhe­mos duro para ficar bronzeados) ou folgar na cama (onde o ‘delei­te’ é uma obrigação séria). Somos tão tiranizados pelo papel de domingo livre como nossos [...] antepassados eram pelos sermões de duas horas” .6 Tudo neste comentário nos faz lembrar dos deva­neios incisivos de Leslie Stephen, cínico inglês do século X IX .Stephen satirizou o uso pretensioso do tempo de lazer suposta- mente criado pela Revolução Industrial: “Milhares de pessoas no presente momento estão [...] fingido para si mesmas que estão desfrutando um feriado. Elas voltarão quase mortas de cansaço dos seus prazeres e deleites para retomar aos seus afazeres. [...]Contudo, irão se persuadir a si mesmas e aos outros que passaram um feriado incrivelmente agradável” .7

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A declaração irrefletida de que a industrialização deu o dom do lazer às massas trabalhadoras da sociedade ocidental durante os séculos X V III e X IX é enganosa. Pode ser bem mais verdade que a industrialização impôs na sociedade um novo conceito de tempo, e esse conceito na realidade reduziu o lazer e não o au­mentou.

Os estudiosos têm revisado cada vez mais a visão comumente mantida de que a Revolução Industrial criou o lazer. O historiador Richard Kraus, por exemplo, argumenta que a Revolução Indus­trial na verdade intensificou a glorificação puritana do trabalho e a condenação do lazer e do divertimento. Ele chama a atenção para as fortes ligações feitas por líderes religiosos do século X IX entre trabalho, disciplina e vida saudável. Kraus conclui que “os americanos ficaram mais conscientemente dedicados à ética pro-

O Sítáem a £tíc& ^unctaaO'

O que hoje passa pelo nome de “ética protestante” é quase o oposlo do que os protestantes orig inais [Calvino, Lutero, os puritanos) na verdade defendiam e praticavam. Só

quando a consciência religiosa e a estrutura teológica tinham sido removidas foi que a ética protes­tante adquiriu as características que são erroneamente atribuídas a ela.

O estereótipo comum sobre a ética protestante está correto em uma consideração: afirmou o valor do trabalho industrioso, [ ...] Poderíamos observar [ ...]

que os protestantes originais não de­fenderam o trabalho porque era ine­rentemente meritório, mas porque era o meio designado por Deus para pro­ver as necessidades humanas.

Uma ênfase importante da ética protestante original foi delinear as motivações e recompensas do traba­lho. As recompensas do trabalho eram dominantemente concebidas como espirituais e morais. [...] Além de for­necer uma visão cristã equilibrada das

metas e recompensas do trabalho, a ética do trabalho protestante objetivava um ideal de moderação no trabalho.

Muitas das acusações modernas con­tra os puritanos são inverídicas ou exa­geradas. Elas tendem a estar baseadas no preconceito dos puritanos contra mani­festações sclecionadas das atividades de lazer que, a princípio, eram aceitáveis aos puritanos. Dentro de sua estrutura religio­sa e moral, os puritanos se engajaram num âmbito saudável de atividades de lazer.

Sem a influência restritiva da crença protestante na primazia do espiritual, as doutrinas da ética protestante original foram pervertidas num credo de sucesso pessoal. Esta perversão secularizada é o que a maioria das pessoas de hoje quer di­zer quando fala loquazmente da “ética pro­testante” . A verdade é que as pessoas da era da Reforma ficariam horrorizadas ao ficarem sabendo de tudo o que foi colo­cado hoje sob a bandeira da “ética pro­testante” .

Material extraído de Leland Ryken, Work and Leisure in Christian Perspective (Portiand, Oregon: Multnomah, 1987), pp. 92, 93,97, 99, 104,69.

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testante do trabalho do que os europeus jamais tinham ficado” .8 De acordo com raciocínio análogo, certos protestantes exaltaram o trabalho e a produtividade económica. Em sua visão, o trabalho tem valor santificador e purificador. C . Wright M ills, por exem­plo, em sua pesquisa da história do trabalho, insistiu que antes do século X X um “evangelho do trabalho” ditou a imagem que os Estados Unidos tinham de si mesmos como também a imagem mantida pelo resto do mundo.9

Alguns futuristas por demais otimistas continuam prevendo o declínio do trabalho. Eles discutem que o trabalho será “remode­lado” para incorporar mais lazer nos horários de trabalho.10 Ou­tras vozes, porém, deduzem que o trabalho está na verdade au­mentando. Há algumas evidências, por exem­plo, de que o número de horas trabalhadas está aumentando em comparação ao que se traba­lhava há quarenta anos.11 A lvin Toffler, em A Terceira Onda, apresentou argumentos sobre o aparecim ento do “ prosum idor” . Um prosumidor (termo desconhecido em língua portuguesa), parece, é alguém que, sem fazer conta de compensação, gasta muito tempo do denominado lazer na produção voluntária de bens e serviços.12 Na visão de alguns, o lazer evaporou-se tão completamente da sociedade que a distin­ção entre trabalho e lazer tomou-se quase imperceptível.13 Alguns grupos de trabalho, na realidade, não têm tempo de lazer.14

Mesmo que certas tendências (algumas das quais trazidas pe­las recessões económicas) indiquem uma revivificação do traba­lho, numerosos países ocidentais têm testemunhado o surgimento da enigmática “indústria do lazer” . Nos Estados Unidos, a indús­tria do lazer só é ultrapassada pela indústria do automóvel nas vendas brutas a varejo.15 Alguns críticos cristãos, enquanto defen­deram que o lazer tem seu lugar legítimo na sociedade, atribuíram o crescimento rápido da indústria do lazer durante as décadas de 1970 e 1980 à corrupção da ética americana do trabalho.16 Em suma, enquanto ninguém imaginaria o retrocesso que houve no trabalho e diversão que ocorreu nos Estados Unidos de 1800 a 1950, neste momento a “era do lazer” pode ser mais ilusão que realidade.17 Neste caso, a ilusão não está em nenhuma parte mais dolorosamente simbolizada que na perda da infância como fenó­meno social.18 Neil Postman tem observado a “adultificação” da sociedade americana desde a década de 1950, como está evidente na mídia, nos estilos de vestuário, hábitos alimentares, jogos, es­portes e entretenimento, língua, práticas sexuais e a criminalidade da juventude.19

Outra complicação é que na literatura atual o termo “ lazer” necessita de definição clara. Nenhum consenso foi alcançado no que concerne a uma definição trabalhista do termo.20 Pelo menos três fatores parecem ser responsáveis. Primeiro, algumas pessoas

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Nos Estados Unidos, a indústria do lazer só é ultrapassada pela

indústria do automóvel nas vendas brutas a varejo.

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empregam conceitos superficiais e distinções espúrias (lazer e re­creação são a mesma coisa ou são diferentes?). Segundo, a versão “planejada” de lazer promovida pelo estado e outras agências so­ciais com frequência obtêm atenção imprópria. Terceiro, algumas definições do termo simplesmente são deficientes.21 Qual, por exemplo, é a relação entre lazer e certas atividades afins como jogo, diversão, prazer e consumo? (No que diz respeito ao assun­to, o que devemos fazer com o debate que gira em tomo das proje- ções de uma futura “ sociedade de lazer” ?22) Seu significado es­sencial fica mais obscurecido quando usado em frases como “ in­dústria do lazer” , “ tempo de lazer” , “viagem de lazer” e “adminis­tração do lazer” . Todas estas expressões associam o lazer com al­

gum tipo de atividade.Em sua etimologia, porém, o termo lazer

(derivado do latim licere) tem a ver com a li­berdade, no sentido de denotar um estado in­terior de reflexão e contemplação combinado com uma quietude externa. Para o filósofo Bertrand R u sse ll, o verdadeiro lazer,

contemplativamente definido, é o único remédio para a fadiga, infelicidade e tensão nervosa que tomam a vida urbana moderna uma “peregrinação no deserto” .23

Muito do lazer recreativo é uma busca do descanso por meio de atividades que não são parte das rotinas normais e diárias da pessoa. Por contraste, a contemplação, ou o “lazer santo” , não é um exercício de relaxam ento. O relaxamento fís ico é um subproduto da contemplação. Na tradição cristã, a contemplação tem muito mais a ver com desenvolver um estilo de vida religioso do que estar continuamente atento e aberto à presença divina. E uma atitude de receptividade à obra transformadora do Espírito Santo que abrange o todo da vida, não só o tempo fora do traba­lho. É viver confiantemente de um modo tranquilo, entregando tudo da vida da pessoa aos cuidados de Deus, e submetendo-se sem reservas à vontade divina. O corpo, mente e espírito são paci­ficamente integrados em uma vida de obediência.

Pelo menos duas outras distrações surgem quando considera­mos o lazer. A primeira é a tendência a associá-la com o tempo livre e o entretenimento. A segunda é tratá-la ou como preparação ao trabalho, recompensa pelo trabalho, ou como descanso do tra­balho. Mas é claro que se definirmos lazer desses modos, perpetu­amos o solo improdutivo urbano que Russell descreveu tão habil­mente. Isto é desta forma, porque o lazer, assim definido, é priva­do do papel integrativo na cultura. É reduzido a ser uma única parte da vida em vez de ser um estilo de vida. Além disso, se lim i­tarmos o lazer a um período restrito de tempo, minamos seu valor primário na experiência espiritual a favor dos seus benefícios so­ciais e económicos.24 Por exemplo, a maioria dos estudantes uni­versitários logo compararia o lazer com as férias de fim de ano, os

Em sua etimologia, o termo lazer (derivado do latim licere) tem a ver

com a liberdade.

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feriadões ou a diversão ao sol do que com ir às aulas, ou seja, uma busca folgada da verdade e significado último.

Frank Buckley fornece uma perspectiva mais significativa de lazer. E le o descreve como “a experiência da reunião sossegada e presença ociosa” . Sua idéia é útil, porque transcende as condições sociais das várias culturas e períodos de tempo. Aplica-se igual­mente bem, quer estejamos pensando em lazer como “tempo li­vre” em uma sociedade industrial, quer no tempo indiferenciado e cíclico da vida pré-industrial. Para Buckley, tudo da vida - seja “tempo livre” , seja “tempo de trabalho” - é designado a manar de uma “autêntica atitude de folga” .25

Em 1899, o sociólogo e economista americano Thorstein Veblen publicou The Theory ofthe Leisure Class (A Teoria da Classe do Lazer).26 Nesse livro, ele falou de um século de lazer que procriou uma cultura baseada no lazer. Um recente e fascinante estudo fei­to por Glenn Uminowicz mostra como os protestantes americanos de várias denominações na virada do século X X tentaram incorporar a denominada revolução do lazer em sua visão global da civilização cristã. Estabelecendo uma cadeia de “recursos res­peitáveis” , eles objetivaram combinar sua busca de santidade com as oportunidades de descanso, lazer e diversão que um novo século parecia pro­meter.27 Estes recursos foram os precursores do moderno parque de temas religiosos. Infelizmen­te, eles com relutância denegriram a vida espiri­tual, casando-a com a ética do consumidor no contexto de uma “Disneylândia Cristã” .

Sociologicamente, as Escrituras não estão familiarizadas com a “era do lazer” que Veblen antecipou. Ao mesmo tempo, uma visão de espiritualidade fundamentada na B íb lia é uma necessida­de do crente que enfrenta o surgimento do lazer na cultura norte- americana. Tal espiritualidade definiria o lazer e lhe daria enfoque e significado dentro de uma cosmovisão cristã.

Se o lazer levanta questões espirituais, também levanta ques­tões morais. Uma delas é a moralidade do consumo indulgente de bens materiais estimulada pelo comércio do lazer.28 Em sua ma­gistral história sobre a “vida simples” nos Estados Unidos, David Shi destaca a tensão na sociedade americana durante as últimas três décadas entre dois tipos de pessoas. Um tipo adota uma abor­dagem de consumidor para a vida. As pessoas deste tipo estão comprometidas com o nível excessivo de consumo material gera­do pelo sonho americano. Um segundo tipo defende uma aborda­gem mais simples e menos aquisitiva para a vida. As pessoas des­te tipo procuram um estilo de vida mais leve e simples, fundamen­tado na integridade espiritual e exibindo consciência ecológica.29 Significativamente, tanto a ética da vida simples quanto a consu­midora têm seus defensores sinceros nos meios evangélicos, pentecostais e carismáticos.30

A contemplação, ou o 'lazer santo', não é um exercício de

relaxamento. O relaxamento físico é um subproduto da contemplação.

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Uma análise completa do lazer invariavelmente mencionaria questões filosóficas, teológicas, sociológicas, psicológicas, histó­ricas e económicas. Muitas destas questões são bastante técnicas e acham-se fora do âmbito deste capítulo.31 Concentramos nossa aten­ção principalmente nos temas bíblicos, teológicos e históricos.

O Antigo Conceito Bíblico de DescansoVisto por nossos olhos, o mundo hebraico e o mundo greco-

romano do Antigo e Novo Testamentos, respectivamente, eram sociedades de trabalho.32 Dentro da tradição hebraica, porém, a ação interativa do trabalho e descanso, enraizada na narrativa da Criação em Génesis (Génesis 2.3), era intrínseca à sua socieda­de.33 O quarto mandamento, pertinente ao sábado, e as leis relaci­onadas concernentes ao Ano Sabático e ao Ano do Jubileu (Êxodo 20.8-11; 23.10-19; Levítico 25.1-17), veneraram o descanso para

todos governado pelo código legal de Israel.34 Com certeza este código nem sempre foi se­guido fielmente ao longo da história israelita. Contudo, no coração da lei mosaica acha-se uma visão de vida “folgada” , fazendo provi­são para a renovação regular pessoal, social e ambiental. Na tradição hebraica, o compromis­

so moral e legal com o descanso expressava dois temas centrais. Primeiro, refletia uma visão de um Deus que entendia e praticava o lazer. Segundo, compensava por quatro séculos de trabalho es­cravo constante suportado no Egito (Deuteronômio 5.15). O fato de que a quebra do sábado era tratada como ofensa importante (Êxodo 31.14; Números 15.32-36) mostra que peso as Escrituras dão à visão original do sábado. Notavelmente, a duração de seten­ta anos do exílio israelita na Babilónia era o equivalente exato dos anos de falha em observar o ano sabático (2 Crónicas 36.20,21).

A instituição do Antigo Testamento do sábado semanal trans­mitia vários significados. Primeiro, recordava a vida no Éden. Neste sentido, acarretava necessariamente a cessação de trabalho físico, a contemplação e recordação do Santo, a restauração de energia para os seres humanos e animais, e o reconhecimento da respon­sabilidade.35 Segundo, servia como sinal do concerto. Neste senti­do, olhava ao futuro para a vida tranquila do reinado do Messias.36 Terceiro, parece ser um mandato para diversão e celebração jubilosos.37 Evidências para esta visão aparecem nas passagens da legislação sabática para as festas (Êxodo 23.10-19) e em passa­gens que discutem o Ano do Jubileu (Levítico 25.8-55). O descan­so do sábado é chamado corretamente o contraponto rítmico dos outros seis dias.38

Como ocorre com todos os mandamentos, o mandamento de guardar o sábado foi estabelecido para libertar e não reprimir. Esta liberação deriva seu significado do evento monumental da reden­

Sociologicamente, as Escrituras não estão familiarizadas com a 'era

do lazer' que Veblen antecipou.

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ção no Êxodo (Deuteronômio 5.15) e ressalta que cada momento é um presente de Deus. A totalidade da vida devia ser vivida num espírito de libertação contra a tela de fundo do sábado.39 Ignorar o sábado provocava várias formas de opressão psicológica, social e económica. Além disso, ignorar o sábado significava negar o cui­dado providencial de Deus por suas criaturas. Ao longo do Antigo Testamento, as vozes proféticas execravam as violações do sábado. Tais violações corroiam o dom do lazer que beneficiava todos os israelitas (Isaías 58.13s; Jeremias 17.21ss; Amós 8.5; 4.4ss; 5.21ss).

A obsessão pelo trabalho, quer seja para maximizar o ganho económico ou apenas para obter segurança pessoal, era uma ten­dência a ser resistida, visto que reduzia a vida a uma luta pela sobrevivência terrestre. Por contraste, o sábado indicava uma or­dem eterna das coisas. Jiirgen Moltmann concluiu com exatidão: “O sábado não existe pelo bem do trabalho; o trabalho existe pelo bem da alegria de viver” . O descanso de Deus não é meramente a cessação de “trabalho exaustivo” . É o pináculo da Criação.40

A legislação de Moisés concernente ao lazer expressou uma teologia de descanso que permeia o Antigo Testamento. O des­canso em suas facetas espirituais, sociais e militares era visto como o principal benefício redentor para o povo de Deus que vivia na terra da promessa. Uma vida folgada era fruto de confiar na salva­ção de Deus. Isto era entendido holisticamente - como a liberta­ção do pecado, como a provisão para as necessidades materiais diárias da pessoa, e como a proteção contra seus inimigos.

Não sabemos com certeza até que ponto o antigo conceito hebraico do sábado foi transmitido para os tempos do Novo Testa-

^ladcçâa da Sãèacta e /ím * Çu&deet

Entre os muitos benefícios da redenção oferecida aos homens pelas Santas Escritu­ras, esta do “descanso” quase tem sido negli­genciada na teologia bíblica, apesar do fato de que, falando teologicamente, expressa uma noção altamente característica. Em vários li­vros do Antigo Testamento, compilados em períodos diferentes, a crença expressa é que Deus dará, ou deu, “descanso” ao seu povo.

Hoje, esta noção de “descanso” vem ocu­par um lugar importante no pensamento re­ligioso de Israel. Pensa-se nela como um descanso encontrado por uma nação cansa­da mediante a graça de Deus na terra que E le lhe prometeu.

Isto é visto claramente na declaração que liga o descanso de Deus do seu trabalho da criação com a instituição de um sétimo dia, um dia de descanso que é contrastado com os dias da criação. A declaração assevera que o mundo já não está sendo criado, mas que já recebeu o descanso de Deus. [...] Acima de tudo, porém, a frase é tão audaciosa quan­to declarar que até o Deus vivo e criativo está em repouso!

Os comentários precedentes são extraí­dos do ensaio fecundo de Gerhard von Rad: “There Remains Still a Rest for the People of God” (Resta ainda um Repouso para o Povo de Deus; veja a Nota 34 neste Capítulo).

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A legislação de Moisés concernente ao lazer expressou uma teologia de descanso que permeia o Antigo Testamento.

mento.41 Sem dúvida que guardar o sábado fazia parte do estilo de vida de Jesus. Por exemplo, E le frequentava a sinagoga no sábado (Marcos 1.21). Mas E le também pôs de lado as tradições do sába­do e incentivou outros a fazer o mesmo (Mateus 12.1-14). As ações supostamente escandalosas de Jesus no sábado são, com efeito, o renascimento de um antigo ideal para com o sábado. De acordo com este ideal, o sábado funcionava como meio de cuidar das ne­cessidades físicas dos fracos e necessitados que eram especial­mente vulneráveis à opressão económica (Marcos 2.27,28).

A legítima discussão erudita continuará a respeito do grau pre­ciso ao qual as visões sabáticas de Jesus conformam-se com os ensinos do Antigo Testamento sobre o sábado. O que não está em disputa, porém, é que Jesus enfatizou os temas sabáticos de des­canso e renovação tanto no seu estilo de vida quanto no seu ensi­no. Em sua regra de vida diária, Ele exemplificou a integração da vida ativa (trabalho) e da vida contemplativa (lazer). Para E le , os

lugares desertos para os quais regularmente se retirava não eram lugares apenas de prova e tentação, mas também de oportunidade para descanso e renovação. Nesses lugares, E le recarregava as forças para enfrentar as exigên­cias febris do ministério nas ruas.42 Robert K . Johnston, enquanto reconhece que nenhuma teologia de lazer completamente desenvolvi­

da pode ser encontrada nas páginas do Novo Testamento, tem intrigantemente sugerido que na rede de amizades de Jesus po- dem-se ver evidências de um “estilo de vida sociável” .43

Confessamente, a imagem do “Cristo folgado” não se ajusta facilmente com os tradicionais estereótipos ocidentais de Cristo. Certos aspectos da tradição intelectual e religiosa ocidental com- preensivelmente não prestariam atenção adequada à representa­ção bíblica de um Cristo contemplativo e folgado. Isto seria ver­dade, por exemplo, quanto a ética protestante do trabalho, que exalta o trabalho e tende a depreciar as dimensões contemplativas e come­morativas da vida. Retratar Cristo como figura contemplativa está muito mais em sintonia com o modo como as culturas orientais o viam.44 As sociedades orientais têm confirmado tradicionalmente o valor do que o escritor indiano Vandana Mataji chama de “lazer ascético” .45 A imagem de Jesus “de férias” é alienígena às Escrituras; o quadro de um Cristo “em contemplação” não é 46

Uma “semana de trabalho encurtada” no estilo ocidental nun­ca fez parte da encarnação; “descansar em Deus” fez. Para o Jesus terrestre, o trabalho feito no cenário da contemplação foi ordena­do pelo mesmo amanhecer exaustivo para obscurecer a rotina fa­m iliar de muitos nas nações pouco desenvolvidas ou em desen­volvimento de hoje.

A substância dos ensinos de Jesus apóia a prática de sua vida. Dois temas principais de sua mensagem são consistentes com as

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necessidades profundamente inseridas na fatigante condição hu­mana. E le oferece renovação espiritual e oferece descanso. Am­bos estes dons são vividos pela conversão (João 3.1-15; Mateus 11.28-30).47 Mais geralmente, o Evangelho é em si uma forma de sábado. Como tal, faz provisão para as necessidades espirituais básicas dos seres humanos descritas como “fome” e “sede” (Mateus 5.6; João 4.1-15). Liberta os seres humanos necessitados de todasas formas de escravidão e opressão. De fato, a __________________autoproclamada missão de Jesus é enunciada (num sábado) em linguagem profética que lem­bra o Ano do Jubileu (Lucas 4.18). A sugestão clara é que sua vida e trabalho eram a incorpo­ração pessoal do que havia sido expresso ori­ginalmente na le i judaica.48

No início de um movimento de renovação judaica, a primeira geração de cristãos utili­zou o sábado judaico como o Líder deles, o Profeta e Mestre ju ­deu, fez. Essa geração continuou a observar o sábado para os pro­pósitos de culto e oração, como também para a proclamação dos ensinamentos de Jesus (Atos 13.13-48; 16.13ss; 18.4). O signifi­cado das leis e instituições sabáticas do Novo Testamento dimi­nuiu gradualmente para o estado de “ sombras” . O próprio Cristo emergiu como a “substância” , o “corpo” (Colossenses 2.16,17). Esta troca de ênfase afetou o modo como os cristãos viam o des­canso. Com o passar do tempo, deixaram de pensar em descansar dentro da estrutura do calendário judaico. Ao invés disso, o des­canso tomou-se um ingrediente principal da vida vivida no poder do espírito do Messias.

Durante certo período de tempo no século I, a legislação do sábado do Antigo Testamento afetou favoravelmente judeus e cris­tãos. Ao estipular dias e estações de descanso essa legislação humanizou a vida antiga, tornou a labuta mais suportável. A me­dida que o Cristianismo se espalhava para além das fronteiras da Palestina e quando o estado político judeu foi dissolvido no últi­mo terço do século I d.C ., a legislação do sábado do Antigo Testa­mento ficou cada vez mais irrelevante para os cristãos. Contudo, o significado profético permanente do próprio sábado nunca foi per­dido pelos cristãos primitivos. Eles viam o destino último do povo de Deus, independente de sua localização geográfica específica, como a participação no futuro “descanso de Deus” , um descanso além da vida mortal (Hebreus 4.9,10).49

Apropriadamente, o cânon do Novo Testamento termina onde o cânon do Antigo Testamento começa - com uma cena idílica de jardim, um cenário para o lazer humano tornado possível por um ato divino de criação (Génesis 1; Apocalipse 22.1-5). Em Génesis, o jardim do Éden, lugar de íntima comunhão com o Criador, é suplantado por um mundo de trabalho suado e urbanização devi­do ao impacto do mal. No Livro de Apocalipse, o novo céu e a

Confessamente, a imagem do 'Cristo folgado' não se ajusta

facilmente com os tradicionais estereótipos ocidentais de Cristo.

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nova terra caracterizam o retomo do jardim para a cidade redimida. Na nova cidade, o trabalho amaldiçoado pelo pecado, refletindo a escuridão da experiência humana, é transformado de volta em lazer santo, desfrutado em um mundo de luz inextinguível.50 Nesta vida, os ritmos folgados da oração contemplativa e folguedo comemo­rativo, mais do que a indústria e o trabalho, parecem pressagiar a essência da vida no estado eterno. A chamada do Evangelho, en­

tão, não é para observar um sábado por sema­na, embora isto não seja impedido. Antes, é uma chamada para viver uma vida de guardar o sábado folgadamente. Só respondendo esta chamada é que podemos redimir nossas ten­dências ao trabalho compulsivo e recreação compulsiva. Com efeito, um entendimento adequado do descanso (sábado) até transfor­ma nossa visão de trabalho.

Nas Escrituras, as noções de lazer e trabalho estão intimamen­te relacionadas. Os cristãos de todas as épocas procuraram, desde o século I, entender e explicar a relação entre eles.

Durante certo período de tempo no século I, a legislação do sábado

do Antigo Testamento afetou favoravelmente judeus e cristãos.

A Tradição Cristã de Lazer Santo e Dias Santos

Uma visão cristã de lazer na sociedade norte-americana pós- modema pode ser vantajosamente apoiada por um conceito en­contrado nos escritos dos pais da Igreja Prim itiva. O conceito é conhecido por lazer santo (otium sanctum). De acordo com os pais de ambas as tradições cristãs - oriental e ocidental - , uma vida cristã era aquela na qual a ação alterna-se com a contemplação, o fazer com o ver e o serviço com a adoração. Dizia-se que o traba­lho sem o lazer santo destruía a atenção espiritual da pessoa. Como resultado, o trabalho era desumanizado. Em sua discussão alegó­rica sobre o significado simbólico das peças do vestuário sacerdo-

/ 'l e y ó n iO ' de 'lUfâ&a

Gregório de Nyssa (ca. 330-395) foi teólogo cristão no tempo de tran­

sição do Período Prim itivo para o Período Medieval da história da Igreja. Influenciado por seu irm ão B a s ílio e seu amigo Gregório de Nazianzo, ele entrou para a vida monástica. O mais jovem dos pais capadócios da

Ásia Menor (atual Turquia) tornou-

se conseqiientemente o bispo da Capadócia na Turquia Central orien­ta l. No Prim eiro C o ncílio de Constantinopla (381), ele argumentou contra os arianos, advogando a doutri­na nicena da substância única (pusia) dos membros da Trindade. Seus escri­tos incluem numerosos tratados antiarianos e apologias cm favor do ri­goroso ascetismo cristão.

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tal, Gregório de Nissa refletiu o amplo consenso dos pais a afir­mar que “o coração toma-se o símbolo da contemplação, e os bra­ços, do trabalho” .51 Para ele, a vida terrestre era melhor vivida como o dia da preparação para o futuro sábado eterno.52

Juliano Pomério, da Gália, século V, fez um discurso sobre os ideais da vida contemplativa e da vida ativa, louvando o lazer san­to como o estado interior no qual pode-se “administrar os assun- tos da alma” .53 A vida ativa era aperfeiçoada, completada, pela vida contemplativa. O lazer, argumentou Pomério, transcende o trabalho em vez de negá-lo.54 Grande parte do seu pensamento sobre lazer santo foi inspirado por Agostinho (354-430 d .C .).

Após sua conversão, Agostinho foi atraído para uma vida mo­nástica. E le até escreveu um regulamento para a vida religiosa em comunidade (c. 397 d .C .). Circunstâncias inesperadas, porém, não permitiram que Agostinho realizasse seu sonho de uma vida contemplativa. Não obstante, ele continuou afirmando o valor do lazer santo em seus escritos posteriores. Sua obra A Cidade de Deus (413-436 d .C .), uma defesa do Cristianismo motivada pela queda de Roma, exorta os cristãos a integrar as dimensões ativas e contemplativas da vida. Nada seria buscado às custas do outro. Para Agostinho, o amor da verdade estimula o desejo ao “lazer santo” . A “doçura da contemplação” devia ser preservada e des­frutada no meio de uma chamada para uma premente vida de ser­viço social. Caso contrário, os fardos da existência poderiam mos­trar-se insuportáveis.55

Agostinho acreditava que a história humana seria completada e aperfeiçoada quando um “grande sábado” sem fim fosse intro­duzido. Com esta culminação da história, a vida eterna consistiria em “descanso, [...] amor e louvor” . Em outras palavras, consisti­ria em “ lazer santo” ininterrupto.56 No seu livro Confissões, Agos­tinho antecipou o “ sábado eterno” como um período no qual Deus descansaria em suas criaturas da mesma maneira que E le traba­lha agora nas criaturas.57 sua visão do destino humano colocava o trabalho no tempo e o descanso na eternidade.

As declarações dos pais do deserto (séculos IV e V ) resumi­ram as experiências espirituais dos monges no deserto egípcio em forma de sabedoria popular. Os moradores da cidade, de então e de hoje, podem ser propensos a concluir a partir destas declara­ções que esses monges reclusos do deserto só se dedicavam à con­templação e exercícios espirituais. Mas se lermos as declarações com cuidado, veremos com clareza que os monges tentaram achar um ponto de equilíbrio entre o trabalho manual e o “lazer santo” . Uma história ilustra o assunto. Nela, um homem chamado Abba João, o Anão, é corrigido por tentar ganhar uma vida de lazer que eliminava o trabalho.

Abba John, o Anão, certo dia disse ao seu irmão mais velho: “Gos­taria de estar livre de todo o cuidado, como os anjos, que não traba­

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lham, mas incessantemente oferecem adoração a Deus”. Assim, tirou a capa e partiu para o deserto. Depois de uma semana, voltou ao irmão. Quando bateu à porta, ouviu seu irmão perguntar, antes que lhe abrisse: “Quem é?” Ele respondeu: “Sou João, seu irmão” . Mas ele lhe retrucou: “O João tornou-se anjo e daqui em diante não está mais entre os homens” . Então o outro lhe implorou, dizendo: “Sou eu”. Porém, o irmão não o permitiu entrar, mas o deixou lá fora em aflição até de manhã. Depois, abrindo a porta, disse-lhe: “Você é homem e tem de trabalhar de novo para comer” . Então João se prostrou diante dele e disse: “Perdoe-me”.58

Aos olhos da maioria das pessoas, os monges vivem uma vida radicalmente separada da rotina da sociedade normal. Contudo, a história acima mostra que mesmo a vida motivada a buscar a Deus sem o lazer das distrações mundanas não pode ser torcida para impedir o trabalho. Antes, a chamada do monge do deserto era para se ocupar de “trabalho folgado” .

De modo análogo, a tradição monástica ocidental reconheceu os benefícios diários do trabalho equilibrado com o lazer. Na tra­dição monástica oriental, o trabalho servia para a contemplação. Na tradição ocidental, por contraste, a síntese dos dois inclinou-se na direção do trabalho. A Regra de São Bento (ca. 540 d .C .), um

documento constitucional para o monasticismo no Ocidente, prescrevia um horário diário do que se considerava uma mistura apropriada de trabalho manual, leitura espiritual e contem­plação (Capítulo 48).

O monasticismo beneditino reconheceu de fato o valor do lazer. Porém, o lema beneditino

laborare est orare (trabalhar é orar) importou em uma “glorifica­ção do trabalho” . Esta ênfase no trabalho chegou aos seus limites máximos nos últimos séculos da civilização européia.59

Dos tempos de Agostinho em diante, os escritores cristãos dis­cutiram a relação entre trabalho e lazer santo no contexto do modo como pensavam sobre Marta e Maria, as irmãs de Lázaro e ami­gas de Jesus.60 Elas eram frequentemente vistas como personifica­ções da vida ativa e da vida contemplativa. Até o século X II, Mar­ta simbolizava a vida associada com as atividades do cuidado pas­toral; Maria representava aqueles que se entregavam à oração e esperam em Deus em um cenário de enclausuramento.61

No século X X , os defensores da antiga noção cristã de lazer santo sugeriram que a alimentação da vida interior, o lazer e a espiritualidade têm estreita afinidade entre si. O estudioso suíço Josef Pieper em Leisure, The Basic of Culture (Lazer, A Base da Cultura, 1952), descreveu o lazer em termos interiores como “ati­tude mental e espiritual” . Esta atitude não pode ser reduzida sim­plesmente ao produto de “ fatores externos” como aliviar as condi­ções de trabalho. Mais especificamente, ele a chamou de “condi­

A alimentação da vida interior, o lazer e a espiritualidade têm

estreita afinidade entre si.

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ção da alma” . Este estado, raciocinou ele, era quase impossível de experimentar à parte de um estado interior de calma e quietude quase ao ponto de dormir. Como tal, o lazer é a antítese do traba­lho e da ociosidade, cujos pecados corolários são o desespero e a ansiedade que privam a pessoa de entrar no estado interior de lazer.

O lazer constitui não só o fundamento da cultura, mas pertence a uma “ordem mais alta do que a vita activa [vida ativa]” . Em palavras bastante simples, o lazer, para Pieper, é um companheiro experiencial da contemplação e celebração que atrai a pessoa para uma união mística com o Criador e sua criação.62 Assim , na tradu­ção inglesa de Musse und Kult (Lazer e Culto), de Pieper, Salmos 46.10 diz: “Tende lazer e sabei que eu sou Deus” .63

O lazer santo abrange necessariamente o trabalho, em lugar de excluí-lo da vida. Para Thomas Merton, escritor trapista america­no, o lazer estimula o trabalho, aumenta sua produtividade. O lazer até converte o trabalho em uma forma de oração. Em direção se­melhante, Evelyn Underhill fala do “lazer da eternidade” . De acor­do com Underhill, se for permitido inspirar o local de trabalho, o lazer (corretamente compreendido) serve para vários propósitos. Por exemplo, parece inibir a desonestidade. Além disso, m ilita contra a preocupação nervosa, a subserviência à tirania do tem­po e a tendência a evitar aspectos monótonos do trabalho - to­das expressões do lado escuro do trabalho.65 A ausência deste lazer santo no coração da cultura ocidental priva o trabalho do seu significado espiritual e psicologicamente aliena o traba­lhador do seu trabalho.66 Por contraste, considere que o lazer impregna o trabalhador e os materiais de trabalho com signi­ficado fora dos limites de sua utilidade.67 O trabalho, como tipo da vida ativa, localiza os seres humanos no tempo e no espaço. O

O calendário cristão é herança direta da religião judaica, na qual a guarda de come­morações e observâncias regulares há muito tempo eram importantes. [... | É do calendá­rio [judeu] que a Igreja cristã tomou o con­ceito das grandes festas, como a Páscoa e o Pentecostes. [...] Claro que deram novo sig­nificado às antigas festas. A Páscoa judaica tornou-se a Páscoa e o Pentecostes. [...1 Des­de tempos antigos, a Igreja também adotou o costume judeu de uma semana de sete dias com jejuns regulares às quartas-feiras e sex- tas-feiras. [...] Só o sábado judeu foi muda­

do pelos cristãos. Eles escolheram como seu dia santo o dia da ressurreição, o Dia do Se­nhor. [ ,..| |Os romanos| dividiram o ano em doze meses e, então, quando a Igreja come­çou a instituir as festas que eram de impor­tância única para ela e não originalmente para os judeus, elas foram observadas em datas do calendário romano. Estas datas incluíam os dias dos santos [...] e, mais tarde, o dia de Natal.

Extraído de L . W. Cowie e John Selwyn Gummer, The Christian Calendar (O Calen­dário Cristão) (Springfield, Massachusetts: G. & C . Merriam Company 1974), p. 7.

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lazer permite que o trabalhador toque o eterno mesmo que ele seja incapaz de entendê-lo completamente.

As antigas tradições cristãs de lazer santo e dias santos eram mutuamente apoiadoras. Os cristãos primitivos moldaram a ob­servância dos dias santos segundo os hebreus antigos, que estruturaram a vida em volta do calendário anual de dias santos. O

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Advento (Vinda): Este dia do calendário da Igreja começa quatro domingos antes do Natal. Durante o advento, os cristãos recordam as pro­fecias messiânicas do Antigo Testamento. A l­guns cri stãos também observam o advento como um período de oração e jejum.

Natal: Este é o dia em que os cristãos mar­cam o nascimento de Jesus. Os protestantes e católicos romanos celebram o Natal em 25 de dezembro. A Igreja Ortodoxa Oriental celebra o Natal em 7 de janeiro.

Epifania: Frequentemente celebrada como festa, este dia comemora a vinda dos magos como a primeira manifestação de Cristo aos gen­tios. Na Igreja Ortodoxa Oriental a epifania co­memora o batismo de Cristo. Seis de janeiro é a data habitual para a celebração da epifania.

Quarta-feira de Cinzas: A quarta-feira de cin­zas é o primeiro dia do período da quaresma.

Quaresma: Quaresma é o nome dado aos quarenta dias que começam na semana da quar­ta-feira de cinzas e vão até à Páscoa. E observa­da pelos católicos romanos, ortodoxos orientais e algumas igrejas protestantes como período de penitência e jejum.

Domingo de Ramos: Este domingo, uma se­mana antes da Páscoa, comemora a entrada triun­fal de Jesus em Jerusalém.

Sexia-feira Santa: Este dia marca a morte de Jesus, considerada pelos cristãos como o sacri­fício que tornou possível a reconciliação de Deus com a humanidade.

Páscoa: A Páscoa comemora a ressurreição de Jesus. É geralmente considerada o dia mais im­

portante no calendário cristão. Nas igrejas católicas romanas e protestantes, a Páscoa é costumeiramente celebrada no primeiro domingo depois da lua cheia após o equinócio da primavera no hemisfério norte. A Igreja Ortodoxa Oriental celebra aPáscoavintee oito dias depois.

Ascensão do Senhor: Este dia, uma quinta- feira, quarenta dias depois da Páscoa, é obser­vado em comemoração à ascensão de Cristo ao céu.

Pentecostes: O Pentecostes é o dia em que os cristãos celebram a descida do Espíri to Santo sobre os apóstolos. E costumeiramente obser­vado (e às vezes comemorado como festa) no sétimo domingo depois da Páscoa.

Domingo da Santíssima Trindade: O Domin­go da Santíssima Trindade acontece no domin­go seguinte ao domingo de Pentecostes. É cele­brado em honra da Trindade.

Festa da Transfiguração: Seis de agosto é uma data da festa marcada para comemorar a ocasião em que Jesus levou Pedro, Tiago e João ao monte. A aparência física de Jesus mudou e Ele foi transfigurado em luz.

Dia da Reforma: Na tradição protestante, 3 1 de outubro relembra o começo da Reforma em 1517. A Reforma é caracterizada por duas ten­dências no século X V I: 1) a rejeição ou modifi­cação de algumas doutrinas e práticas católicas romanas; 2) o estabelecimento das igrejas pro­testantes.

Dia de Todos os Santos: Primeiro de novem­bro é observado nas igrejas litúrgicas ocidentais como festa cristã em honra de todos os santos.

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calendário incluía seis festas religiosas anuais e três peregrina­ções a Jerusalém. Os cristãos, durante a Baixa e Tardia Idade Mé­dia, desenvolveram sua própria versão de calendário religioso que santificava os dias para eles. O calendário cristão veio a revolver- se em tomo de dois pontos centrais: a época do Advento, Natal, Epifania; e a época da Quaresma, Páscoa, Pentecostes. Estas duas estações permitiram que a igreja refletisse e celebrasse todo o mistério de Deus que atua na história humana.

Intrínseco aos ritmos anuais de adoração cristã estava o ciclo semanal. O ciclo começou e terminou com o D ia do Senhor e in­corporou os temas da Criação, ressurreição e a paz de Deus na recriação futura. Até mais fundamental à santificação dos dias es­tava a observância dos momentos de oração que entremeavam di­ariamente o trabalho com descanso.68

Visto em sua totalidade, os ritmos diários, semanais e anuais de oração, reflexão e celebração no calendário cristão eram convi­tes regulares para entrar em lazer santo e ser renovado. Os cristãos eram encorajados a lembrar-se do drama divi­no da redenção, e antecipar seus eventos. Fa­zer isso tinha a intenção de servir de fonte de novas energias em meio às intensas pressões da sociedade e dos sofrimentos pessoais. Tam­bém protegia os cristãos, numa época posteri­or de liberdade religiosa sob o imperador ro­mano Constantino, de assumir compromisso com crenças e costu­mes pagãos que foram entretecidos na estrutura da vida política e c iv il. O calendário proporcionava um ritmo regular de festivida­des alternativas centralizadas em Cristo.69

A vida na Europa medieval veio a ser regida pela visão da igre­ja dos dias santos. Porém, eventualmente esta noção de tempo foi destruída pelo surgimento de dispositivos mecânicos de medir o tempo que serviram de instrumento para a demanda do sistema de fábrica de maior precisão, prontidão e regularidade.70 Os horários industriais - não as festas cristãs - tornaram-se as novas liturgias da cultura ocidental durante os séculos X V III e X IX . Durante a Revolução Industrial, o próprio tempo foi “industrializado” . As forças da produção económica foram instaladas como as novas deidades a ser adoradas no altar do trabalho. A esse respeito, John Farina chamou a atenção para dois pontos importantes.

Primeiro, ele notou que a “qualidade do tempo” é “cultural­mente determinada” . Isto significa que está ligada a valores cultu­rais. Segundo, ele observou que a tendência da maioria das socie­dades é dicotomizar o tempo. A cultura ocidental faz isso em ter­mos de “trabalho” e “sem trabalho” .71 Com o tempo “ industrial” (trabalho), o tempo “ livre” (sem trabalho) também apareceu, mas não teve valor intrínseco. Era simplesmente a cessação do traba­lho. Por contraste, quando a vida pré-industrial era governada pe­los ritmos sazonais da natureza, o tempo era inerentemente de

As antigas tradições cristãs de lazer santo e dias santos eram

mutuamente apoiadoras.

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Uma visão cristã de lazer requer como seu fundamento uma visão

cristã do tempo.

lazer.72 Nos tempos pré-industriais, o trabalho era acompanhado por uma sensação pessoal de alegria e renovação espiritual (o ver­dadeiro lazer). Esta experiência de tempo parece ser o que os tra­balhadores industrializados procuram encontrar no tempo de lazer, separado como compensação para o vazio que experimentam no trabalho.73

Atualmente, na América do Norte, deve-se procurar guarnecer as tradições cristãs como as dos Amish e Shakers, e a dos habitan­tes nativos do continente para recuperar uma perspectiva sobre o tempo que o vê ciclicamente e em concordância com os ritmos da natureza e as tradições antigas. Estes grupos tentam viver uma época pré-industrial dentro de suas comunidades contraculturais.74

Em suma, os conceitos de lazer santo e dias santos eram dois componentes vitais da antiga e medieval estratégia do cristianis­mo para a formação espiritual dos seus fié is. Os ciclos diários, semanais e anuais dos dias santos conduziram os cristãos à expe­riência festiva do lazer santo, e lhes permitiram contemplar e par­

ticipar mais completamente na vida de Cristo. Por este processo, os aspectos mundanos da vida receberam um senso de sagrado e trans­cendente. O “descanso santo” , um legado do judaísmo, era a chave para a dotação espiritu­al. Convidados pelos dias santos para o “ lazer santo” , a Igreja coletivamente em suas esta­

ções do ano cristão e os cristãos individualmente nos seus ciclos de vida, repetiram experiências de morrer, ressuscitar e ser ungido pelo Espírito para o serviço na Igreja e sociedade.

Considerando o sagrado do tempo, Noéle Denis-Boulet subli­nha as razões para o uso continuado do calendário cristão: “Devi­do ao fato de o nosso tempo humano, sujeito ao ritmo da repetição natural, ter a tendência a voltar-se à eternidade segundo seu pró­prio modo, é que precisamos de um ano litúrgico. Não podemos viver nossa vida cristã sem o calendário cristão” .75 Uma visão cristã de lazer requer como seu fundamento uma visão cristã do tempo. Sem tal visão, o lazer perde seu enfoque espiritual. O atual e di­fundido renascimento no interesse da “espiritualidade” (grande parte da qual tem origens não-cristãs) entre o povo, que também está buscando um estilo de vida de mais lazer, é fato que nos fala poderosamente. Exige que achemos lugar apropriado para o lazer em qualquer discussão culturalmente pertinente de espiritualidade.

Rumo a uma Espiritualidade Contemporânea de Lazer

O termo espiritualidade é rapidamente associado pelas mentes comuns a indivíduos extraordinários - santos e místicos que reali­zaram feitos espirituais extraordinários, e viveram num platô de perfeição além do que a vasta maioria das pessoas alcançou. Po­

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rém, definido dentro de uma estrutura bíblica, a “espiritualidade” refere-se à obra do Espírito Santo na vida de todo crente, da qual, em última instância, derivam suas atitudes interiores e ações exte­riores. Dallas W illard propõe habilmente que a “espiritualidade é meramente a qualidade holística da vida humana conforme foi desig­nada a ser, no centro da qual está nossa relação com Deus” .76

A visão que W illard tem de espiritualidade coloca a espiritualidade do lazer em harmonia com o domínio da vida cotidiana, em que a pessoa é renovada pelo Espírito Santo segun­do a imagem de Jesus Cristo. A presença da imago Dei (a imagem de Deus) em toda vida humana toma a vida, mesmo em suas di­mensões de lazer, intrinsecamente espiritual. Na mesma direção, a teologia espiritual (o estudo da espiritualidade) pode ser defini­da não como um ato intelectual que se encontra fora do alcance das pessoas comuns, mas como “ simplesmente o ato de refletir no mistério de Deus e sua relação com o universo criado, sobretudo a experiência humana de Deus” .77

As preocupações de lazer (mesmo que seja definido funcional­mente como “tempo livre” ) e espiritualidade necessariamente se sobrepõem. Ambos os domínios da vida têm como meta promo­ver o bem-estar pessoal e a auto-realização. Ademais, proporcio­nam oportunidade para a expressão das escolhas deliberadas e desejos internos da pessoa. Ultimamente, cada indivíduo direciona a seu modo a atenção para a necessidade de recreação e restaura­ção a fim de viver uma vida proveitosa, enquanto resiste à pressão para definir uma “vida proveitosa” somente em termos de utilida­de.78

O lazer e a espiritualidade podem ajudar as pessoas a ver que elas têm de resistir à pressão da cultura em definir a “vida provei­tosa” somente em termos de utilidade. (Para que algo seja consi­derado sem proveito não precisa necessariamente tornar-se sem proveito no sentido de não ter preço, significado ou propósito.) Mas as pessoas também precisam dar o próximo passo e influ ir na necessidade de recreação e restauração para que a vida realmente seja frutífera.

Viver de modo folgado não é direito exclusivo daqueles que buscam uma vida espiritual. Além disso, uma espiritualidade des­tituída de qualquer respeito pelo lazer não é adequada para satis­fazer as necessidades espirituais dos seres humanos. Uma religião sem lazer é destinada a se degenerar numa existência medíocre e ansiosa. Qualquer experiência de vida, como ocasião para renova­ção ou como expressão de criatividade humana, será sufocada por uma sensação fatigante de estagnação e tédio.79 Ironicamente, os não-cristãos que estão à vontade com o lado contemplativo da vida podem na verdade viver com integridade mais espiritual do que os

A experiência do lazer move o indivíduo a considerar o significado

da vida e a religar-se com seus anelos íntimos.

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O lazer como repouso interior e paciente na providência de Deus é

indicador claro de qualidade de vida no Reino de Deus".

cristãos frenéticos e estressados que não sabem como descansar. A experiência do lazer move o indivíduo a considerar o significa­do da vida e a religar-se com seus anelos íntimos. Destes instintos

mais profundos vem a energia vital para viver. Os mesmos instintos determinam o propósito e direção da vida da pessoa.80

O lazer é, ao mesmo tempo, uma experiên­cia profundamente humana e espiritual. Uma teologia contemporânea de lazer deve respon­der ao cenário cultural norte-americano e às suas necessidades espirituais. Uma teologia

adequada de lazer deve incluir pelo menos os seguintes três te­mas: a definição de lazer como estado interior, o lazer como a integração de dois tipos de tempo e o renascimento da vida sabática.

A D ef in iç ã o d e L a z e r c o m o E sta d o I n t e r io r

Como já observamos, o lazer é compreendido por muitos hoje como um uso ativo do “tempo livre” num sentido recreativo. Con­siderado deste modo, o lazer tem pouco significado espiritual. Porém, se o lazer for identificado com um estado contemplativo interior (como muitos escritores sobre a vida espiritual o fazem), então torna-se indispensável para a alim entação de uma espiritualidade autenticamente cristã. Nas palavras de Dietrich Bonhoeffer, uma verdadeira existência de lazer é refletida na “ sim­plicidade da vida despreocupada” prevista por Cristo no Sermão da Montanha. Tal disposição contrasta nitidamente com um esfor­ço aquisitivo pelo “pão de cada dia” , o que não pode ser “conse­guido” pela “ ansiedade ou trabalho” .81 O lazer como repouso inte­rior e paciente na providência de Deus é indicador claro de quali­dade de vida no Reino de Deus que distingue crentes de incrédu­los. Separa aqueles que descansam em Deus daqueles que por si mesmos se esforçam freneticamente para prover tranquilidade.

O pregador puritano inglês John Flavel (século X V II) reco­mendou a “devida consideração da Providência” . E le reputou tal “consideração” como meio de nutrir uma “tranquilidade interior” da mente que estabiliza a pessoa “entre as vicissitudes e revolu­ções das coisas num mundo instável e vão” .82

Definir o lazer em termos de vida interior torna-o expressão cristã universal estreitamente ligada com a oração. Além disso, esta forma de ver o lazer resiste a uma tendência comum nos estu­dos seculares de lazer recreativo: d ivid ir a vida artificialm ente em compartimentos de “ trabalho” e “ lazer” .83 Em seu livro Sabbath Time (Tempo de Sábado, 1992), Tilden Edwards cons­trói uma série de imagens de tempo de sábado e tempo de tra­balho e m inistério. Essas imagens apresentam o trabalho, o di­vertimento e a oração não como dissociados uns dos outros, mas como relacionados e conectados entre si - embora pare­çam ser ritmos opostos da vida.84

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K arl Rahner, teólogo jesuíta alemão, comentou habilmente que “ toda atividade humana que envolve o homem inteiro de qual­quer forma e em qualquer grau é trabalho e lazer” .85 O lazer santo, de acordo com a antiga tradição cristã, faz parte do opus Dei (tra­balho de Deus) e não é algo separado disso. O lazer santo relacio­na-se com o cumprimento da ordem do apóstolo Paulo de orar sem cessar (1 Tessalonicenses 5.17). O mes­mo tema aparece no pedido clássico do Irmão Lourenço, o Carmelita (século X V II) , que nos “chama a praticar a presença de Deus” em to­das as coisas.86 O reconhecimento da afinida­de do lazer com a tradição contemplativa da “oração de descanso” no Cristianism o refor­ça a contribuição vital que a discussão do lazer pode dar ao mundo de hoje. Em parti­cular, tal reconhecimento reforça a contribuição que tal discus­são pode trazer para renovar a vida espiritual da cultura de alta tecnologia dominada pelo ativismo, quer em sua variação secu­lar ou religiosa.87

O lazer definido em termos de vida interior começa a formar a resposta cristã a uma sociedade vencida por vícios e preocupada com programas de recuperação. Vícios de tipos variados podem ser considerados corretamente como o resultado inevitável da perda do lazer. A perda do lazer é de fato uma perda de liberdade interior. E parte do que James Houston descreveu como o “processo horrível de ‘perder a alma’ ” .88 O psiquiatra Scott Peck interpreta certos vícios (álcool e outras drogas) como “doenças espirituais” . Refletem uma tentativa desencaminhada por parte do viciado de ganhar o lazer de um Éden perdido ou um céu futuro.89 Compreensivelmente, a recuperação do lazer torna-se a preocupação dos médicos da alma- psicoterapeutas, conselheiros e diretores espirituais.

Ironicamente, a “grande doença” da era do lazer do século X X foi diagnosticada como “perda da alma” . Thomas Moore, famoso discípulo do psicoterapeuta suíço Cari Jung, fez uma observação sagaz: “Quando a alma é abandonada, não vai sim ­plesmente embora; aparece sintomaticamente em obsessões, vícios, violências e perda de significado” .90 Uma sociedade perturbada pela violência, materialismo e imagens pornográfi­cas da vida perdeu sua capacidade de lazer. Porém, quando de­finido como estado interior, o lazer funciona como corretivo poderoso. Repara os estilos de vida da sensualidade desenfrea­da, na qual as pessoas entregam sua liberdade pessoal e, com ela, sua capacidade de desenvolver a virtude moral. A conver­são cristã objetiva a transformação do coração com suas forças afetivas e poder da vontade, resultando numa vid a de autocontrole. A vida de lazer é então aquela na qual o coração é liberto para fazer o que foi criado para fazer - adorar o C ria­dor, desfrutar dos frutos da criação e amar o próximo.

"Toda atividade humana que envolve o homem inteiro de

qualquer forma e em qualquer grau é trabalho e lazer."

— Karl Rahner

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O L a z e r c o m o a I n t e g r a ç a o d e D ois T ipo s d e T em po

A presença ou falta de lazer na vida tem relação direta com a percepção do tempo, em seu uso e significado. A reflexão cristã sobre o tempo, influenciada pelo pensamento grego clássico, tem distinguido tradicionalmente dois tipos de tempo. O primeiro cha­maremos cronos-tempo. É o tempo medido, o tempo calculado pela duração. As Escrituras têm pouco a dizer acerca do cronos- tempo. O segundo chamaremos kairos-tempo. É o “tempo certo” , o tempo avaliado pelo conteúdo. O kai.ros-te.mpo é poeticamente expresso em tempo e estações no terceiro capítulo de Eclesiastes.91 Embora não totalmente cega ao kairos-tempo, a vida moderna no Ocidente é muito ordenada pelo cronos-tempo. O pensamento bí­blico de remir o tempo (Efésios 5.16) e o pensamento moderno de economizar tempo são bastante diferentes.

As Escrituras vêem o tempo como um presente e oportunidade a ser usada sob a direção do Espírito Santo. Remimos o tempo para realizar aquelas coisas que estão de acordo com os propósitos de Deus. A visão moderna de tempo é como um produto que pode ser eficaz ou ineficazmente usado, disputado, administrado, economi­zado, perdido ou até convertido em dinheiro.92 O kairos-tempo pro­move uma consciência descontraída e discernimento das oportuni­

dades de viver fornecidas pelo tempo.93 O cronos-tempo é propenso a ser compulsivamente tiranizado por uma planificação frenética da vida. Objetivar a riqueza, a produtividade eco­nómica e viver eficientemente nutrem a sensa­ção de ser rápido - a marca registrada das soci­edades regidas pelo cronos-tempo.94

Enquanto se vive numa cultura dominada pelo cronos-tempo, o lazer mostra para a pessoa o potencial do kairos em cada momento do cronos. Também derruba a barreira artificial, minando a unidade da vida, entre o tempo “ secular” e o “tempo sagrado” . Os momentos existem não para serem aglome­rados em agendas e socados em relógios digitais. Antes, existem para serem ouvidos pela sabedoria que eles contêm no que tange aos movimentos do Espírito nas áreas frequentemente tediosas, esfarrapadas e estressadas de nossas vidas. O lazer nos permite ouvir em cada uma das estações da vida - infância, adolescência, juventude, meia-idade e velhice - os assuntos que nos dizem res­peito e as oportunidades que nos são dadas.95 Além disso, a voz do Espírito pode ser aguçada pela experiência genuína do lazer em tempos de transição e deslocamento, quando as estruturas fam ili­ares e os movimentos da vida são desarraigados e alterados.

O lugar do lazer numa espiritualidade cristã está unido indissoluvelmente à questão do tempo. Sendo assim, o desafio para os cristãos norte-americanos contemporâneos é construir em seu estilo de vida o que James Whitehead chamou de “ascetismo do tempo” .96 A expressão de Whitehead refere-se a como levamos

Ironicamente, a 'grande doença' da era do lazer do século XX foi diagnosticada como 'perda

da alma'.

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em conta as inovações felizes e inesperadas do Espírito. O lazer, embora pareça (e frequentemente se sinta ser) desperdício de tem­po, na verdade nutre a sensibilidade para os encontros divinos. No cenário do lazer, todo tempo é tempo de Deus. O cronos-tempo e o kairos-tempo encontram-se em todo momento. Uma espiritualidade verdadeiramente carismática requer uma sensibi lidade descansadamente contínua à voz e mo­vimento do Espírito, na qual a vontade de Deus é comunicada ao crente. Sem esta sensibilida­de nenhuma reivindicação à espiritualidade pode permanecer fiel à sua visão de nutrir a vida na abundância do Espírito Santo.

A autenticidade, eficácia e longevidade do ministério carismaticamente capacitado não dependem de nenhuma maneira da profundidade do lazer santo, que o apóia e do qual nasce. Em The Spirit ofLife (O Espírito de Vida), o teólogo alemão luterano Jiirgen Moltmann reconhece o inter-relacionamento entre estes dois temas. Logo após tratar o tema “carismático” (inclusive o falar em línguas), ele faz conside­rações sobre o valor da meditação e contemplação em termos de aprofundamento da experiência que a pessoa tem com o Espírito. Sem a autoconsciência que vem com o lazer santo, os ativistas religiosos de qualquer tipo invariavelmente caem numa armadi­lha. Eles “passam [...] a infecção do seu próprio egoísmo, a agres­são gerada pela própria ideologia deles” , as quais são todos demó­nios da alma que habitam um deserto interior.97 Por contraste, vi-

A presença ou falta de lazer na vida tem relação direta com a

percepção do tempo, em seu uso e significado.

O (2nom<i e a 0?£aâio&Cronos é a duração, kairos é a

oportunidade. Nós serenamente me­dimos o cronos com re­lógios e calendários; perdemo-nos arrebata­damente no kairos por nos apaixonarmos ou saltarmos na fé. [...] Se somos dominados por uma sensação de cronos, o futuro é fonte de ansiedade, sangran­do energia do presente

ou deixando-nos lamurientamente descontentes com o presente. [_...] Mas se somos dominados por uma sensa­

ção de kairos, o futuro é fonte de ex­pectativa que verte energia no presen­te. Uma obsessão com o cronos - ho­rários rígidos, esque- i ' mas de atividades cui­dadosamente planeja­dos - é uma defensi­va disfarçada contra o kairos de Deus, os inesperados e des­controlados mistérios da graça.

Extraído de Eugene Peterson, Reversed Thunder (Trovão Invertido) (São Fran cisco : Harper & Row Publishers, 1988), pp. 192. 193.

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ver no momento kairos é descrito por Sue Monk Kidd como “trans­bordar na vida com de Deus” . Viver no momento kairos introduz a pessoa no aprofundamento dos “ estágios da consciência contemplativa da harmonização” .98

Há um corolário ao que temos dito: A secularização na cul­tura ocidental corroeu a sensibilidade da sociedade como um todo (e da de muitos cristãos) ao valor do kairos-tempo. O mesmo processo - pelo qual os arranha-céus das instituições financeiras e os estádios esportivos deslocaram as catedrais góticas do centro da vida urbana - tem levado à supressão do calendário eclesiástico como meio socialmente aceitável de guardar dias. Na vida moderna, onde não há método de instituir “dias santos” , o cronos-tempo secular frequentemente trata a pon­tapés o kairos-icmpo sagrado.

Suponha [...] que o tumulto da carne de um indivíduo cessasse e que

todos os seus pensa­mentos pudessem resol­ver, da terra, da água e do ar, não fa lar mais com ele. Suponha que os céus e até a própria alma desse indivíduo ficassem em silêncio, já não pensando mais em si mesma, mas indo

mais além. Suponha que os seus so­nhos e as visões da sua imaginação já não falassem mais e que toda lín­gua, todo sinal e tudo o que é transi­tório ficassem silenciosos - pois to­das estas coisas têm a mesma mensa­gem a dizer, se apenas a ouvíssemos, e a mensagem é esta: Nós não nos fi­zemos a nós mesmas, mas aquEle que vive para sempre nos fez. Suponha, dissemos, que depois de nos dar esta mensagem e nos ordenar a ouv ir a Ele que nos fez, essas coisas ficassem ca­ladas e só Ele nos falasse não por elas,

mas com a sua própria voz, de forma que o ouvíssemos falar, não por alguma língua de carne ou pela voz de um anjo, não no som do trovão ou em alguma pa­rábola velada, mas com a sua própria voz, a voz daquele a quem amamos em todas estas coisas criadas; suponha que o ou­víssemos, com nenhuma destas coisas entre nós e Ele, justamente naquele bre­ve momento [...] em que tínhamos al­cançado em pensamento e tocado a Sa­bedoria eterna que vive acima de todas as coisas; suponha que este estado con­tinuasse e que todas as outras visões das coisas inferiores fossem removidas, de modo que esta única visão extasiasse e embebesse aquele que a viu e o envol­vesse em alegrias interiores de tal forma que para ele a vida fosse eternamente igual àquele momento de compreensão ao qual tanto tínhamos desejado - isto não seria o que entenderíamos pelas pa­lavras “Venha e compartilhe a alegria do seu Senhor?”

Extraído de Agostinho, Confissões, Livro 9.10.

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A recente tendência a ressuscitar o calendário eclesiástico, mesmo nas igrejas desacostumadas com o culto litúrgico, ilustra a necessidade de muitos de libertar a vida cotidiana da escravidão do cronos-tempo. Em números crescentes, as pessoas sentem a necessidade de franquear suas agendas aos momentos de kairos santos, estimuladas por uma observância das estações do ano ecle­siástico.99 Nos últimos séculos, o “feriado” triunfou sobre o “dia santo” , mas este está fazendo seu retorno para combater os efeitos de uma perspectiva totalmente secular.100

O L azf.r e o R e n a sc im e n t o d a V id a S a b á t ic a

Confessamente, a situação sociológica do mundo dos dias de hoje difere substancialmente daquela dos hebreus antigos a quem foi dada a legislação divinamente originada de “descanso” . Féri­as, fins de semana e dias de trabalho das oito às seis eram tão estranhos ao mundo do Anti­go Testamento quanto as rígidas observâncias do sábado são para o mundo de nossa cultura ocidental de alta tecnologia, quando a terra ra­ramente é deixada sem cultivo e os anos sabáticos (para os poucos que os desfrutam) costumam muitas vezes produzir mais e não menos. Que relevância os “ritmos de descan­so” inventados por uma cultura primitiva e pré-industrial do Ori­ente Médio têm para uma sociedade ocidental, tecnológica, de passos rápidos, de sete dias por semana e orientada ao consumi­dor? Que relevância eles têm numa época em que “criação” é com­preendida por produção, as lutas da “ síndrome da fadiga crónica” para ganhar status como doença legítima e o “esgotamento” permeiam o local de trabalho?

Em resposta a estas tendências modernas, um número crescen­te de escritores cristãos nas últimas décadas buscou revitalizar a instituição quase esquecida do sábado, recuperando a ética da vida sabática. Esta resposta surgiu em grande parte do reconhecimento de que os ciclos regulares de descanso e relaxamento, quer ou não se traduzam em observância tradicional do dia de sábado, ainda são ingredientes essenciais de uma vida espiritual.101 A noção an­tiga de descanso está passando por um ressurgimento na atualida- de. Ao mesmo tempo, muitas pessoas desenvolveram um interes­se renovado pelas disciplinas espirituais clássicas que formavam parte rotineira da vida diária, anterior ao advento da sociedade industrial: oração, meditação, solidão, silêncio, manter um diário e escrito autobiográfico.102

A prática destas disciplinas frequentemente está ligada a um senso religioso com relação à essência do sábado. Num sentido secular, elas foram unidas pela necessidade das pessoas modernas encontrarem relaxamento e lazer em meio de suas vidas estressantes e aflitivas, quando até os feriados e as férias mostram sintomas de

A secularização na cultura ocidental corroeu a sensibilidade da sociedade como um todo ao

valor do kairos-tempo.

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compulsão ao trabalho (“workaholismo” ) em vez de uma estraté­gia para a recreação.103 Alguns têm proposto que devemos repen­sar a natureza e o propósito das férias. Eles acreditam que devía­mos vê-las como oportunidades para descanso e renovação genu­ínos e, assim, como meios para restringir a “ impulsão” individual e da sociedade engendrada por uma ética de trabalho que se tor­nou imprópria.104

Ao me preparar para um ano sabático em 1989, recebi forte convicção interior durante os momentos de oração silenciosa de que o intervalo dos deveres profissionais devia ser um período de descanso renovado para mim e minha fam ília. Devia ser vivido no

espírito do ano sabático do Antigo Testamen­to, e não ser abusado por excesso de trabalho e uma vida demasiadamente planejada - como os académicos são propensos a fazer. A medi­da que me submetia ao estudo vagaroso da ora­ção cristã - ou, talvez mais corretamente, per­mitia que as numerosas tradições da oração cristã me falassem - um processo nasceu. Cha- mei-o de “Caminhos de Oração a Deus” . Não

era tanto o produto dos meus esforços quanto era o fruto da obra do Espírito Santo em mim, para ser entregue como presente a muitos estudantes em várias escolas os quais buscam direção para as suas vidas interiores.

O teólogos cristãos há muito têm afirmado que para que a vida atinja seu potencial espiritual pleno, deve ser vivida de maneira dialética e rítm ica.105 O lazer e o trabalho merecem quantidades proporcionadas de tempo e energia. Deste modo a alma pode ser nutrida na contemplação e o corpo ocupado no trabalho.106 O tra­balho não é o inimigo. O inimigo é um estilo de vida que revolve- se exclusivamente em torno do trabalho.107 A inteireza na vida vem de reconhecer e experimentar a interação dos ritmos de trabalho, descanso, adoração e divertimento. Surge do reconhecimento da capacidade deles revitalizarem-se uns aos outros quando lhes é dado o devido lugar. Uma volta aos ritmos do sábado tem implica­ções refrescantes para indivíduos, famílias e a sociedade, embora integrá-los com os padrões de vida agitados e destrutivos de fins do século X X venha a testar a resolução até do mais devoto.108

A germinação do movimento de retiro por toda a América do Norte durante as últimas duas décadas ilustra um ponto notável. Uma parte significativa da população americana está hoje fazen­do sérios esforços para incorporar os ritmos de retiro interior em seus estilos de vida, de modo a opor-se aos hábitos do barulho e atividades gerados por uma sociedade por demais extrovertida. O “retiro” formal foi introduzido na história cristã durante o século X V I pela Sociedade de Jesus, fundada por Inácio de Loyola. Po­rém, a importância da solidão na espiritualidade judaico-cristã foi confirmada desde tempos antigos. A lista de pessoas ao longo da

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O trabalho não é o inimigo. O inimigo é um estilo de vida que revolve-se exclusivamente em

torno do trabalho.

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história cristã que maximizou o valor das experiências periódicas da solidão inclui muitas figuras notáveis: Paulo, António, Bento, Francisco, Inácio, Jonathan Edwards, David Brainerd, Hudson Taylor, A . W. Tozer. Em tempos recentes, o movimento de retiro espalhou-se ao redor do mundo e tem abarcado vasta extensão de tradições cristãs.109

Um retiro é um afastamento temporário e estruturado da vida normal. Como tal, expressa o ideal do sábado. E literalmente uma “retirada” da vida para a presença de Deus dentro de um contexto de silêncio, a fim de entrar em contato com realidades transcen­dentes. A solidão e o silêncio dos centros de retiro criam um ambi­ente no qual uma mudança de atitude para com o mundo cotidiano da pessoa pode ocorrer. Ao mesmo tempo, permite que a criatividade pessoal floresça.110 Os centros de retiro são descritos como “paisagens sagradas” , onde o processo de entrar em contato com a própria alma está casado com a procura de Deus, a conside­ração do significado da vida e uma reflexão do bem comum.111 Os propósitos do antigo sábado judeu - descanso, relaxamento, con­templação e brincadeiras - também são os mesmos dos centros de retiro. A atmosfera tranquila das instalações do retiro, frequente­mente realçadas por cenários bonitos, exalta a consciência espiri­tual daqueles que se disponibilizam. Sensível ao clamor pelo “lazer santo” , que está ficando cada vez mais alto na sociedade em geral, alguns centros de retiro e mosteiros afastados nos Estados Unidos agora anunciam “retiros de feriados” como remédios para a pres­sa, o estresse e a secularidade da vida moderna. Em suma, repre­sentam alternativa significativa para as férias típicas.112 O poder de o lugar sagrado induzir a um senso de sagrado interior também está sendo reconhecido por maior número de pessoas a quem uma sensação de ligação com a terra fo i corroída pelo aumento desordenado urbano.113 Ironicamente, um reconhecimento do po­der de renovação da natureza em sua beleza intacta está sendo recuperado numa época em que áreas desérticas estão sendo exau­ridas pelo turismo industrial e a invasão de hábitos urbanos.114

Conclusão — O Descanso Divino e a Renovação da Vida

Em seu livro clássico do século X X sobre o sábado, o filósofo judeu Abraham Heschel convoca os leitores a viver “além da civi­lização” . Suas metáforas para o sábado como símbolo arquétipo do descanso divino e lazer humano são muito eloquentes - “palá­cio no tempo” , “grande catedral” , “espírito na forma de tempo” , pedra angular numa “arquitetura do tempo” . Para Heschel, a civi­lização moderna tem uma casta tecnológica. Isto não significa meramente que estamos cercados por um número cada vez maior de dispositivos tecnológicos. Significa que de modo muito básico

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nos preocupamos com o controle e administração das forças e re­cursos naturais. Mas Heschel acredita que somos chamados para algo mais sublime. Somos chamados, argumenta ele, para um tipo de “vida espiritual” que leva cada um de nós a “enfrentar os mo­mentos sagrados” . A vida espiritual de qualquer civilização come­ça a se deteriorar quando a existência humana diária não experi­menta mais regularmente as “ intuições da eternidade” . Entrando na experiência terrestre do descanso eterno - embora aqui ainda seja breve e passageiro os seres humanos não renunciam uma civilização tecnologicamente fundamentada. Ao invés disso, “ul­trapassam” a vida civilizada e afirmam sua independência dela. Fazendo assim, contribuem para sua renovação espiritual. Heschel conclui afirmando que a “resposta para o problema da civiliza­ção” não é um vôo “ saindo do reino do espaço” . Antes, a resposta é descobrir um modo de vida que esteja “apaixonado pela eterni­dade” .115

Nas décadas finais do século X X , um corpo crescente de figu­ras eminentes no Ocidente ressoou com a preocupação de Heschel de preservar a santidade do tempo e do espaço no meio do domí­nio da tecnologia. O sociólogo francês Jacques E llu l ofereceu aná­lise reflexiva sobre a secularização da civilização ocidental. Se­gundo sua visão, qualquer senso de sagrado que ainda possamos ter já não é derivado da natureza, mas da sociedade e da “técnica” . Os “novos demónios” que contribuíram para a perda de um senso de mistério sagrado, foram identificados por E llu l como o materi­alismo, o racionalismo científico e a administração técnica. O efeito líquido destas forças secularizadoras é despojar a civilização oci­dental de qualquer senso de alma além daquela dada pela socieda­de. E llu l criticou os teólogos cristãos severamente. Ele opinava que eles casaram o Cristianismo com o secularismo. Contra isto, ele pediu a ressurreição de uma cosmovisão cristã que reinstale o Deus-Criador bíblico no centro do mundo.116 Para escapar do sis­tema tecnológico, E llu l reivindicou que precisamos de algo além de nós mesmos:

Precisamos de uma transcendência. [...] Somente algo que não pertença nem a nossa história nem a nosso mundo pode fazer isso. [...] Somos confrontados com a tecnologia como nosso destino ou a existência de um transcendente. A existência deste transcendente nos permite avaliar o mundo no qual nos achamos.117

Uma vida finita e humana só alcança seu potencial mais pleno e o senso de significado apenas pela conscientização de sua ori­gem no mundo do infinito. Caso contrário, os seres humanos se tomam meramente escravos de tudo que inventam.

Sem dúvida, nossa abordagem tecnológica trouxe à existência um número vasto de melhorias e confortos para as pessoas no Ocidente como também em outras partes do mundo. Mas, como

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estrutura de referência, tal abordagem só é capaz de construir uma civilização baseada no trabalho. Não pode produzir satisfação in­terior. Não pode dar descanso à alma. De fato, a sociedade tecnológica despoja de seus participantes a capacidade de experi­mentar “afeto religioso profundo” .118 Inevitavelmente, o lazer é roubado do seu poder criativo. Suas qualidades restauradoras são cegas pelas demandas universais da tecnologia, que impedem que os trabalhadores descubram sua verdadeira personalidade.119 A experiência do lazer santo deve ser estimulada por outras fontes. O destacado economista alemão E . F. Schumacher concluiu que trezentos anos consumidos pela acumulação de conhecimento para fins exploratórios, para a negligência da sabedoria tradicional, deixaram a civilização ocidental “rica em meios e pobre em fins” .120 Pouco antes de sua morte, Schumacher converteu-se ao Cristia­nismo. Sua jornada pessoal o levou a descobrir e adotar a “Oração de Jesus” no clássico espiritual russo The Way o f a Pilgrim (O Caminho de um Peregrino, 1884).121 E le pediu que o Ocidente voltasse às suas raízes cristãs contemplativas para evitar a catás­trofe. De acordo com sua visão, precisamos renovar nossa vida espiritual, danificada por uma perspectiva materialista. O remédio que ele recomendou é um retorno à contemplação santa.

O desenvolvimento de uma visão cristã de lazer é indispensá­vel para a causa da renovação pessoal, social e ambiental. No ní­vel pessoal, os cristãos no Ocidente (especialmente os protestan­tes) têm de reencontrar uma teologia da vida contemplativa. As­sim, eles poderão evitar tomarem-se aliados inconscientes de al­guns dos pecados mais comuns de nossa era. Afortunadamente, alguns teólogos protestantes no Ocidente começaram a tratar des­ta deficiência.122 A recuperação do “ lazer santo” , “dias santos” e “descanso divino” como ritmos necessários e desejáveis numa vida cristã tem vários benefícios. Detém o ativismo insalubre, modera o materialismo descontrolado e nutre uma atmosfera na qual a vitalidade espiritual pode ser renovada continuamente. No recen-

(Mieyca&tdfr Sifcaçfr ftma <z Sa&ztcaz

Talvez a parte mais d ifícil do sábado para os jovens seja seu ritmo muitas vezes mais lento e mais reflexivo, longe das atividades frenéticas de muitos dos seus colegas. Seu puro acondicionamento fisiológico àquele rit­mo pode dificultar a adaptação a um longo período de tempo. Pelo fato de eles serem ge­ralmente mantidos tão sobreexcedidos em nossa cultura, com o modo que pode obliterar

qualquer espaço para que o Espírito de Deus seja reconhecido em suas vidas, todo esforço é extremamente valiosoo. Eles podem adap­tar-se por algum período de tempo, até com alegria, se o que for leito permanecer sensí­vel à capacidade deles.

Extraído de Tilden Edwards, Sabbath Time (Tempo de Sábado) (Nashville: Upper Room, 1992), p. 103.

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te best-seller de Stephen Covey, The Seven Habits o f Highly Effective People (Os Sete Hábitos de Pessoas Altamente Eficazes,1989), ele destacou o lazer santo como importante para a transfor­mação pessoal. O modelo de Covey de lazer requer a renovação das dimensões espirituais, mentais, sociais e físicas da vida. Difere de modo importante da dependência de hoje da personalidade, atitu­des, habilidades, técnicas e imagem pública. O que realmente está em jogo para Covey na experiência do lazer é a restauração de uma “éti­ca de caráter” para a sociedade.123 Uma ética de caráter que envolve alimentar a integridade pessoal como meio para o sucesso.

Temos definido o lazer em termos contemplativos clássicos, retirados da tradição cristã que enfoca a vida interior. Chamamos a atenção aos seus benefícios para a renovação pessoal. Um bene­

fício adicional é que definindo o lazer deste modo, coloca o lazer num contexto não con­trolado pelos critérios relacionados com os tra­balhos mais seculares para determinar o lazer— “tempo livre” , “duração da semana de tra­balho” , “número de dias de trabalho por ano” . Todos estes pontos de referência estão sujei­tos à subida e declínio das fortunas económi­cas das nações industrializadas. (Notavelmen­te, os teoristas sociais que apelam para fontes

de dados sempre variáveis contradizem-se uns aos outros em suas tentativas de provar que o trabalho está na verdade declinando ou diminuindo.124)

Os indivíduos nas nações que passam por depressões econó­micas e taxas altas de desemprego ficam responsivos aos modos pré-industriais de manter o tempo. Eles buscam uma noção de tem­po que não separe artificialmente o trabalho do lazer da forma como domina a indústria moderna. Como resultado, eles chegam a apreciar de certo modo não distinto a antiga noção bíblica de fcairos-tempo.

Na formulação e proclamação de uma visão cristã de lazer tam­bém está em jogo a renovação da cultura como um todo. Em mui­tos aspectos, os Estados Unidos retratados por Neil Postman em Amusing Ourselves to Death (Divertindo-nos até à Morte, 1985), são uma sociedade que perdeu o significado e a arte do verdadeiro lazer.125 Está fora de contato com sua própria alma e, assim, vu l­nerável às “devastações espirituais da tirania” . Nas últimas déca­das, o caráter coletivo, a ética e a consciência pública americanos têm sido desgastados cada vez mais pela mídia pública e a indús­tria do entretenimento. Estes elementos da existência social ame­ricana só podem ser restabelecidos quando os indivíduos pensati­vos entrarem em “ descanso d ivino” e experimentarem o renascimento de sua própria imaginação moral.126 Da postura de uma “mente cristã” renovada, eles podem então ser conduzidos à reformulação do programa de trabalho social mais amplo.

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No nível pessoal, os cristãos no Ocidente (especialmente os

protestantes) têm de reencontrar uma teologia da vida

contemplativa.

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Por fim , considere a atordoadora gama das crises ecológicas criadas na Am érica do Norte e alhures. Estas crises foram provocadas pelo modo como a produção industrial tentou manter o passo no ritmo das demandas dos consumidores. Como resulta­do, a terra clama por descanso. A civilização humana está a ponto de entrar no século X X L As ameaças ao ambiente natural - ar, terra e água - parecem maiores que nunca. Além disso, mostram- se mais prováveis de aumentar, a menos que haja um retorno e respeito pelos ritmos tranquilos da criação pelos quais a natureza pode se restabelecer.127 O consumo excessivo dos recursos em muitas frentes ameaça o planeta com possibilidades apocalípticas muito horrorosas de visionar. As questões ambientais estão, em última instância, todas relacionados com o lazer. Será permitido que a terra descanse? Os seres humanos descansarão de modo que seja permitido que a terra descanse? Os cristãos se darão conta do seu destino eterno como pessoas de descanso? A sobrevivência de sociedades inteiras, senão de todo o género humano, bem pode depender de nossa boa vontade em entrar novamente no “descan­so divino” .

Enquanto a cortina se encerra no século X X , os monges conti­nuam proclamando sua mensagem de tranquilidade para o mundo moderno. Recentemente, os monges beneditinos espanhóis de Santo Domingo de S ilo s , cantando os centenários cantos gregorianos de “lazer santo” , encontram-se no topo das paradas de sucesso musical - depois de centenas de anos sem nem ousar! O sucesso deles - irónico - ilustra bem a eterna atração do “des­canso antigo” em uma era de inquietude.

Revisão e Questões para Discussão1. Você considera o trabalho como parte de sua jornada espiri­

tual? Tente explicar sua resposta usando razões e exemplos de sua própria experiência ou do que você leu ou ouviu a respeito.

2. O lazer é parte de sua jornada espiritual? Aqui também tente explicar sua resposta utilizando razões e exemplos de sua experi­ência. Tente também incorporar em sua resposta algumas refle­xões sobre a diferença do modo como Nienkirchen usa o termo lazer e do modo como você usava o termo antes de ler este capítu­lo.

3. Que relevância tem o “ sábado” na cultura moderna? Tente utilizar alguns dos pontos de Nienkirchen sobre o sábado. De que maneira você acha que a cultura pode estar perdendo algo impor­tante - até crucial - para o seu bem-estar ao ignorar os ritmos sabáticos?

4. Como os ritmos sabáticos podem ser integrados como um todo na sociedade? Em seu estilo de vida?

5. Onde o “lazer/recreação” se ajusta em uma cosmo visão cris­tã? Brincar e orar são compatíveis?

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6. Qual é sua filosofia de “tempo” ? A distinção entre cronos- tempo e kairos-tempo é significativa para você? Você consegue integrá-la em sua agenda diária?

7. O que você faria num dia de isolamento?8. Você consegue integrar o conceito de “dia santo” em seu

estilo de vida? Dê alguns exemplos específicos e procure explicar o que poderia ser ganho com tal integração. Você conhece pessoas que tentaram algumas das idéias que você expôs?

9. Explique a diferença entre uma visão “ secular” e uma visão “cristã” de lazer.

Bibliografia SelecionadaBAN KS, Robert. The Tyranny ofTime. Downers Grove, Illinois:

1983.DAWN, Marva J. Keeping The Sabbath Wholly. Grand Rapids:

W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1989.DOOHAN, Leonard. Leisure, A Spiritual Need. Notre Dame:

Ave Maria Press, 1990.FLEM IN G , Jean. Between Walden and the Whirlwind. Colorado

Springs, Colorado: Nav Press, 1985.FO STER , Richard. The Freedom o f Simplicity. São Francisco:

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David C . Cook Publishing, 1979.LEH M A N , Harold D . In Praise o f Leisure. Scottdale,

Pensilvânia: Herald Press, 1974.P IEP ER , Josef. Leisure, The Basis ofCulture. Nova York: New

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Portland, Oregon: Multnomah Press, 1987.

Notas bibliográficas

1. O impacto global da Revolução Industrial da Europa está substanciado em Femand Braudel, A History ofCivilizations, tra­duzido para o inglês por Richard Mayne (Londres: Penguin, 1994), pp. 373-398. Sobre o desenvolvimento do lazer anglo-americano da industrialização para o “ lazer das massas” do século X IX , veja Gary Cross, A Social History o f Leisure Since 1600 (State College, Pensilvânia: Ventura, 1990), pp. 39-139. Hugh Cunningham em Leisure in the Industrial Revolution ca. 1780 - ca. 1880 (Londres: Croom Helm, 1980), pp. 140-191, identifica os padrões de lazer da moderna sociedade urbana industrial que começou a tomar for­ma em meados do século X IX , como 1) padrões de trabalho mais regulares, 2) distinção mais clara entre trabalho e lazer, e 3) me­

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nos horas de trabalho e uma busca crescente pelo lazer.2. A expansão do lazer e “diversão” no contexto inglês do sé­

culo X X foi sucintamente analisado por John Armitage em Man at Play: Nine Centuries ofPleasure Making (Londres: Frederick Warne, 1977), pp. 134-184. O aparecimento do lazer como item principal no programa de trabalho social ocidental do fim do sé­culo X X foi estudado substancialmente por A . J. Veal em Leisure and the Future (Londres: Allen & Unwin, 1987).

3. Veja o capítulo intrigantem ente intitu lado “ Some Observations on the Oddness of Our Lives” , no livro de Walter Kerr, The Decline o f Pleasure (Nova York: Simon & Schuster, 1962), pp. 11-42, especialmente a p. 40.

4. Jeremy Seabrook, The Leisure Society (Oxford/Nova York: Basil Blackwell, 1988), p. 5.

5. Seabrook, The Leisure Society, p. 5.6. Mary C . Bateson, Composing a Life (Nova York: Plume,

1990), p. 125.7. Um cínico [Leslie Stephen], “Vacations” , in: Mass Leisure,

editores Eric Larrabee e R o lf Meyersohn (Glencoe, Illino is: Free Press, 1958), p. 284,

8. Richard Kraus, Recreation and Leisure in Modern Society,4.a edição (Nova York: Harper Collins, 1990), p. 147; concernente à glorificação do trabalho feita pela Revolução Industrial consulte Clive Jenkins e Barrie Sherman, The Leisure Shock (Londres: Eyre Methuen, 1981), p. 2. Em defesa das visões de recreação purita­nas e da ética protestante original do trabalho, consulte o livro Work, de Leland Ryken (apresentado no box A Ética Puritana, neste capítulo), pp. 87-115.

9. C . W right M ills , “The Meaning of Work Throughout History” , in: The Future o f Work, editor Fred Best (Englewood C liffs, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1973), p. 9; cf. D. Rogers, The WorkEthic in Industrial America 1850-1920 (Londres: University of Chicago, 1978), p. 14. “A premissa central da ética do trabalho era que o trabalho era o cerne da vida moral.”

10. Sobre estes temas, veja Ken Dychtwald e Joe Flower, Age Wave (Nova York: Bantam, 1990), pp. 115-145, 173-207; Russell Chandler, Racing Toward 2001 (Grand Rapids/São Francisco: Zondervan/Harper, 1992), pp. 82-89. Para predições sobre o lazer continuamente corroendo o trabalho em direção ao fim do século X X , veja Marion Clawson, “How Much Leisure, Now and in the Future?” , in: Leisure in America: Blessing or Curse?, editor James C. Charlesworth (Filadélfia: American Academy of Political and Social Science, 1964), p. 12; John K . Galbraith, The Affluent Society, 2.a edição (Boston: Houghton M ifflin , 1969), pp. 297-310, especialmente as pp. 302, 303 e sobretudo as previsões do Hudson Institute concernentes à futura sociedade “orientada ao lazer” . Herman Kahn e Anthony J. Weiner, The Year 2000 (Nova York: The Macmillan Publishing Company, 1967), pp. 186-197.

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11. Juliet B . Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline o f Leisure (Nova York: Basic Books, 1991), p. 51, atribui esta tendência à síndrome de “trabalhar e gastar” , na qual o “di­nheiro” toma precedência sobre o “tempo liv re ” . C f. Robert Wuthnow, Christianity in the 21 st Century (Nova York/Oxford: Oxford University, 1993), pp. 194-196, para uma discussão simi­lar das “doenças da classe média” . Para uma discussão semelhan­te sobre a observação numa situação canadense, veja W illiam G. Watson, National Pastimes, The Economics o f Canadian Leisure (Singapore: The Fraser Institute, 1988), pp. 10, 11.

12. Atvin Toffler, The Third Wave (Nova York: W illiam Morrow, 1980), pp. 282-305.

13. Ibid ., p. 294.14. Sobre o dilema das mulheres que trabalham fora de casa,

veja John N aisb itt e Patricia Aburdene, Re-inventing the Corporation (Nova York: Warner, 1985), p. 251.

15. Veja Howard W. Kelley, “A New Century Dawns” , Leisure Management, volume 13, Outubro de 1993, p. 46. Sobre a indus­trialização do lazer na Grã-Bretanha, Europa e Austrália, veja B ill Martin e Sandra Mason, “Research Note: Current Trends in Leisure: the Changing Face of Leisure Provision” , Leisure Studies, Janeiro de 1992, pp. 81-86; “The Leisure Industry and the Single European Market,” Leisure Studies, volume 10, Janeiro de 1991, pp. 1-6; J. R . Brehaut e K . C . Poole, “The Industrialization of Leisure” , Leisure Studies, volume 1, Janeiro de 1982, pp. 95-107. De acordo com John Naisbitt, Global Paradox (Nova York: Avon, 1994), p. 133, as viagens/turismo, a maior indústria mundial, é “a principal fonte” dos Estados Unidos “de ganhos por câmbio de moeda estrangeira” .

16. Chuck Colson e Jack Eckerd, Why America Doesn’t Work (Dallas: Word, 1991), pp. 52, 53.

17. Sobre a continuação da antiga ética de trabalho e seu condicionando do lazer, veja Gene Quarrick, Our Sweetest Hours (Jefferson, Carolina do Norte: McFarland, 1989), pp. 14, 15.

18. Uma obra provocativa sobre este tema é David Elkind, The Hurried Child (Reading, Massachusetts/Don M ills, Ontário: Addison-Wesley, 1981).

19. Neil Postman, The Disappearance o f Childhood (Nova York: Laurel, 1982), pp. 67-80.

20. Esta observação aparece em Peter Emerson, “Leisure Counseling: A C a ll to Order” , Career Planning and Adult Development journal, volume 8, Primavera de 1992, p. 5.

21. Harry van Moorst, “Leisure and Social Theory” , Leisure Studies, volume 1, 1982, p. 157.

22. Veja os esforços para dar ordem conceituai ao caos de defi­nições na obra de Sheila Mullett, “Leisure and Consumption: Incompatible Concepts?” , Leisure Studies, volume 7, 1988, pp. 241-253, Walter Podilchak, “Distinctions of Fun, Enjoyment and

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Leisure” , Leisure Studies, volume 10, 1991, PP- 133-148; cf. Otto Newman, “The Corning of a Leisure Society” , Leisure Studies, volume 2, 1983, pp. 97-109.

23. Veja a discussão de Bertrand Russell sobre as doenças da vida moderna em The Conquest ofHappiness (Nova York: Bantam, 1968), pp. 3 ,4 , especialmente a p. 43. Para Russell, o lazer tem a ver com coisas “não de importância prática na vida da pessoa” (p. 160).

24. Veja o tratamento de lazer como “forma de atividade” apre­sentado por James F . M urphy em Concepts o f Leisure: Philosophical Implications (Englewood C liffs , Nova Jersey: Prentice-Hall, 1974), pp. 109-166; cf. Richard Kraus, Recreation and Leisure in Modern Society (Nova York: Appleton-Century- Crofts, 1971), p. 256. Charles K . Brightbill e Tony A . Bobley, Education for Leisure-Centered Living, 2.a edição (Nova York/ Santa Bárbara: John W iley & Sons, 1977), p. 8, definem lazer como “tempo discricionário que é melhor esboçado no modelo quantitativo” .

25. Frank M . Buckley, “The Everyday Struggle For The Leisurely Attitude” , Humanitas, volume 8, 1972, pp. 310, 311.

26. Thorstein Veblen, The Theory ofthe Leisure Class (Franklin Center, Pensilvânia: Franklin Library, 1979),

27. Glen Uminowicz, “Recreation in a Christian America: Ocean Grove and Asbury Park, New Jersey, 1869-1914” , in: Hard at Play: Leisure in America, 1840-1940, editora Kathryn Grover (Amherst, Massachusetts: University of Massachusetts, 1992), pp. 8-38.

28. Esta tendência harmoniza-se bem com a preferência dos americanos pelo empreendimento económico individual e consu­mo privado sobre o bem-estar público identificado em Robert N. Bellah et al., The Good Society (Nova York: Alfred A . Knopf,1991), pp. 86-90; cf. John K . Galbraith, The Culture o f Contentment (Boston: Houghton M ifflin , 1992).

29. Veja a discussão sobre “riqueza e preocupação” em David E . Shi, The Simple Life (New York: Oxford University, 1985), pp. 248-276.

30. Por exemplo, veja o conjunto dos defensores evangélicos e carismáticos da simplicidade em Lifestyle in the Eighties, editor Ronald J. Sider (Filadélfia: Westminster, 1982), bem como o pe­dido dos carismáticos e evangélicos para rejeitar o materialismo em Jeremy R ifkin com Ted Howard, The Emerging Order (New York: G. P. Putnam’s Sons, 1979), pp. 211-272.

31. Para uma recente avaliação da literatura multidisciplinar somente sobre a relação do trabalho e lazer, veja J. Zuzanek e R . Mannell, “Work-Leisure Relationships from a Sociological and Social Psychological Perspective” , Leisure Studies, volume 2, 1983, pp. 327-344.

32. Claro que a noção recreativa do lazer foi certamente enun­ciada pelos filósofos gregos e romanos e desfrutada pelos ricos e

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poderosos que exploraram as massas sobre as quais dominavam.O conceito filosófico greco-romano de lazer como vida ideal além do trabalho para a minoria, baseado no trabalho da maioria, é dis­cutido em Sebastian De Grazia, O f Time, Work, and Leisure (Garden City, Nova York: Doubleday, 1964), pp. 9-30; Byron Dare, George Welton, W illiam Coe, Concepts of Leisure in Western Thought: A Criticai and Historical Analysis (Dubuque: Iowa, Kendall/Hunt, 1987), pp. xiii-2 , 27-44.

33. Veja a referência de James M. Houston à dialética do “des­canso/inquietação” na civilização humana, como está fundamen­tada nos ritmos da Criação, em I Believe in the Creator (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1980), pp. 217-219, especialmente a p. 219.

34. Veja o estudo fundamental (1933) de Gerhard von Rad so­bre o “descanso” como “benefício da redenção” , em “There Remains S till a Rest for the People of God” , in : The Problem of the Hexateuch and other Essays, traduzido para o inglês por E . W. Trueman Dicken (Nova York: McGraw, 1966), pp. 94-102, e mais recentemente, Walter C . Kaiser Jr., “The Promise Theme and the Theology of Rest” , Bibliotheca Sacra, volume 130, Abril de 1973, pp. 135-150.

35. Sobre o significado do sábado, veja Hans Walter Wolff, “The Day of Rest in the Old Testament” , Concordia Theological Monthly, volume 43, Setembro de 1972, pp. 498-506; Paul K . Jewett, The Lord’s Day: A Theological Guide to the Christian Day of Leisure (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), pp. 13-28; Harold H. P. Dressier, “The Sabbath in the Old Testament” , in: From Sabbath to Lord’s Day: A Biblical, Historical and Theological Investigation, editor D . A . Carson (Grand Rapids: Zondervan Publishing House,1982), pp. 21-12. Em Slavery Sabbath, War andWomen (Scottdale, Pensilvânia: Herald, 1983), pp. 65-95, o autor, Willard M. Swartley, fornece pesquisa útil sobre o debate do sábado na literatura recen­te. Com relação ao sábado como cura para algumas das doenças da modernidade (a falta de finalidade, a rivalidade e o desassosse­go), veja W. Gunther Plaut, “The Sabbath as Protest: Thoughts on Work and Leisure in the Automated Society” , in: Tradition and Change in Jewish Experience, editor A . Leland Jamison (Syracuse, Nova York: Syracuse University, 1978), pp. 169-183, especial­mente as pp. 176-178. Os benefícios psicológicos e físicos da ob­servância do sábado são explorados em Alan D. Goldberg, “The Sabbath: Implications for Mental Health” , Counseling and Values, volume 31, Abril de 1987, pp. 147-156; Influence o f the Weekly Rest-Day on Human Welfare (Nova York: The New York Sabbath Committee, 1927).

36. Jiirgen Moltmann, The Church in the Power o f the Spirit (Nova York: Harper & Row Publishers, 1977), pp. 269, 270; cf. Jiirgen Moltmann, The Passion for Life: A Messianic Lifestyle (Filadélfia: Fortress, 1978), p. 76.

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37. Em seu soberbo e holístico estudo do sábado, Marva J. Dawn o vê como oportunidade para “festejar no eterno” . Veja Keeping the Sabbath Wholly (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1989), pp. 151-202. Em The Christian Use o f Time (N ashville : Abingdon Press), p. 71, N ie ls-E rik A . Andreasen vê “o sábado” um ousado “não fazer nada e uma diver­são festiva” que transcende o mundo do trabalho. Em The Christian at Play (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1983), pp. 88-93, Robert K . Johnson vê o “descanso do sábado” como análogo a divertimento. O estudo clássico de Johan Huizinga, Homo Ludens: A Study of the Play Element in Culture (Boston: Beacon, 1955), discute a festividade religiosa como forma de divertimento.

38. John C. Haughey, Converting Nine to Five (Nova York: Crossroad, 1989), p. 47.

39. Sobre a intenção da lei mosaica de que o espírito do sábado é suficiente para a totalidade da vida em vez de compartimentar a vida pela observância de um “dia especial” fixo separado dos ou­tros, veja S. R . Hirsch, Horeb: A Philosophy o f Jewish Laws and Observances (Nova York: Soncino, 1962).

40. Moltmann, The Church in the Power o f the Spirit, p. 269.41. Este assunto é amplamente estudado por D. A . Carson, “Je­

sus and the Sabbath in the Four Gospels” ; M. Max B . Turner, “The Sabbath, Sunday and the Law in Luke/Acts” ; e D. R . de Lacey, “The Sabbath/Sunday Question and the Law in the Pauline Corpus” , From Sabbath to Lord’s Day, editor D. A . Carson (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1982), pp. 57-196.

42. O significado do deserto como lugar de renovação e res­tauração espiritual, e não apenas como lugar de rebelião e ju ízo , é desenvolvido em Kenneth Leech, Experiencing God: Theology as Spirituality (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1985), pp. 35-38, 127-161.

43. Johnston, Christian at Play, pp. 119-125, especialmente a p. 120. Elton Trueblood, o quacre, documenta o divertimento de Jesus em The Humor o f Christ (Nova York: Harper & Row Publishers, 1964). C . S, Lew is vê o milagre em Caná da Galiléia como “santificador, [...] um uso recreativo da cultura” , em Christian Reflections (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1967), p. 15.

44. Na obra Jesus Through the Centuries (Nova York/São Fran­cisco: Harper & Row Publishers, 1987), Jaroslav Pelikan pesqui­sa a tendência histórica para diversamente descrever Cristo de acordo com as pressuposições culturais; cf. Priscilla Pope-Levison e John R . Levison, Jesus in Global Contexts (Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox, 1992).

45. Em Gurus, Ashrams and Christians (Bombaim: St. Paul, 1978), pp. 59-63,66, Vandana Mataji pede um estilo contemplativo do Cristianismo e presumivelmente uma imagem correspondente de Cristo mais apropriada com as necessidades da cultura asiática.

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46. Sobre “Cristo contemplativo/no deserto” , veja “W illiam McNamara, Mystical Passion: Spirituality fo r a Bored Society (Nova York/Ramsey, Nova Jersey: Paulist, 1977), p. 94; John R . Sheets, “Graced-Life as Contemplative” , Contemplative and the Charismatic Renewal, editor Paul Hinnebusch (Nova York/ Mahwah, Nova Jersey: Paulist, 1986), pp. 40-43.

47. Veja Charles Cummings, The Mystery ofthe Ordinary (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1982), pp. 75-79, sobre a importância do “descanso” no ensino e estilo de vida de Jesus.

48. O intento e historicidade da legislação do Jubileu em Levítico 25 são analisados em Robert North, The Sociology ofthe Jubilee Year (Roma: Pontifical B ib lical Institute, 1954).

49. F. F. Bruce considera isto importante em seu comentário de Hebreus 4.9,10, Commentary on the Epistle to the Hebrews (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1964), pp. 77-79.

50. Meu pensamento sobre esta consideração foi estimulada pela tese de Jacques E llu l concernente à redenção da cidade em The Meaning o f the City (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1970). Sobre a importância dos jardins nas Escrituras e na civilização urbana, veja Matthew Fox, The Reinvention ofWork (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1994), p. 160. Fox nota prestimosamente a derivação da palavra paraíso do termo persa traduzido por jardim.

51. Gregory of Nyssa, The Life ofMoses, traduzido para o in­glês por Abraham J. Malherbe e Everett Ferguson (Nova York/ Ramsey, Nova Jersey: Paulist, 1978), p. 106.

52. Ibid., p. 89.53. Julianus Pomerius, The Contemplative Life, traduzido para

o inglês por Mary I. Suelzer (Nova York/Ramsey, Nova Jersey: Newman, 1947), p. 28.

54. Ibid ., pp. 31-33.55. Augustine, The City o f God (Grand Rapids: W illiam B .

Eerdmans Publishing Company, 1973), p. 414.56. Ibid., p. 511.57. Augustine, Confessions, traduzido para o inglês por R . S. Pine-

Coffin (Harmondsworth, Inglaterra: Penguin, 1961), pp. 37, 38.58. The Desert Christian: The Sayings o f the Desert Fathers,

traduzido para o inglês por Benedicta Ward (Nova York: The Macmillian Publishing Company, 1975), p. 86. Confira o comen­tário sobre a história do entendimento de Aba Silvano da relação Marta-Maria (Desert Christian, p. 223) em Rembert Sorg, Towards a Benedictine Theology o f Manual Labor (L is le , Illin o is: St. Procopus Abbey, 1951), p. 20; Robert Taft, The Liturgy ofthe Hours in East and West (Collegeville, Mineápolis: Liturgical Press, 1986), pp. 68, 69.

59. Sobre a glorificação beneditina do trabalho, contra o traba­lho meditativo da tradição monástica oriental, veja Herbert B .

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T

Workman, The Evolution ofthe Monastic Ideal (Boston: Beacon,1963), pp. 165-158. A oração, estudo e trabalho correspondentes às polaridades do espírito, mente e corpo estão discutidos em Brian C . Taylor, Spiritually For Everyday Living (C o lleg eville ,Mineápolis: Liturgical Press, 1989), pp. 30-46.

60. Cuthbert Butler, Western Mysticism, 2.a edição (Londres:Constable, 1927), pp. 159, 160.

61. Este tipo de estilo de vida, observaríamos, nem sempre foi visto positivamente mesmo em círculos monásticos. Veja a dis­cussão do valor relativo de Marta, a “ativa frutífera” , contra Ma­ria, a “estéril contemplativa” , entre os escritores cistercienses do século X II em Christopher J. Holdsworth, “The Blessings of Work:The Cistercian View” , Sanctity and Secularity: The Church and the World, editor Derek Baker (Oxford: Basil Blackwell, 1973), p. 65.

62. Josef Pieper, Leisure, the Basis o f Culture, traduzido parao inglês por Alexander Dru (Nova York: Random House, 1963), pp. 38-45.

63. Pieper, Leisure, p. 19. A melhor análise da vita activa e da vila contemplativa na civilização ocidental e “a reversão da or­dem hierárquica” entre os dois está no livro de Hannah Arendt,The Human Condition (Chicago: University of Chicago, 1958), especialmente as pp. 289-292. Arendt denomina o deslocamen­to da vita contemplativa como “talvez a mais importante das consequências espirituais” da modernidade (p. 289). Também proveitoso é Robert Bellah, “To K ill and Survive or To Die and Become: The Active Life and Contemplative as Ways of Being Adult” , in: Adulthood, E rik Erikson (Nova York: Norton, 1978), pp. 61-80, especialmente as pp. 76-78, sobre a necessidade de re­cuperar a vida contemplativa nos Estados Unidos modelada por Thom as Jefferson e Abraham L in co ln - dois grandes “contemplativos em ação” .

64. Thomas Merton, Spiritual Direction and Meditation (Collegeville, Mineápolis: Liturgical Press, 1960), pp. 76,77. Para as primitivas raízes cristãs da tradição do “trabalho como oração” , veja o tratado de Orígenes “On Prayer” , Origen, traduzido para ao inglês por Rowan A . Greer (Nova York/Ramsey, Nova Jersey:Paulist, 1979), p. 104.

65. Evelyn Underhill, The Spiritual Life, edição reimpressa (Londres/Oxford: Mowbray, 1984), pp. 97, 98.

66. Sobre a falta de contemplação/lazer no Ocidente, veja o ensaio de Douglas Steere, “Contemplation and Leisure” , Together in Solitude (Nova York: Crossroad, 1982), pp. 112, 113.

67. Ao descobrir a essência da vida pela contemplação, Maisie Ward cita uma carta de G. K . Chesterton (1899), na qual ele se refere a estar excitado e intoxicado pela “surpreendente umidade da água” , a “ fogosidade do fogo, a “ dureza do aço” e o “indescritível lamaçal da lama” . Gilbert Keith Chesterton (Nova York: Sheed & Ward, 1943), pp.108, 109.

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68. Sobre o calendário cristão como a “ santificação do tempo” e a noção cristã prim itiva de “guardar dias” , veja Dom Gregory D ix, The Shape ofthe Liturgy, 2.a edição (Londres: Dacre/Adam & Charles Black, 1945), pp. 303-396; John Westerhoff I I I e William H. W illimon, Liturgy and Learning Through the Life Cycle (Nova York: Seabury, 1980), pp. 55-72. A origem do ofício divino é su­cinta mas competentemente explicada por G . J. Cuming, “The First Three Centuries” , in: The Study o f Liturgy, editores Cheslyn Jones, Geoffrey Wainwright e Edward Yarnold (Nova York: Oxford University, 1978), pp. 353-357.

69. Para inteirar-se de todo o calendário das festas greco-ro- manas, veja Nigel Pennick: The Pagan Book ofDays (Rochester, Vermont: Destiny, 1992).

70. Sobre a transição do tempo natural para o tempo mecânico ou industrial e o efeito correspondente no trabalho e lazer, veja Robert Banks, The Tyranny o f Time (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1983), pp. 116-145.

71. John Farina, “Perceptions of Time” , in : Recreation and Leisure: Issues inAn Era ofChange, editores Thomas L . Goodale e Peter A . Witt (State College, Pensilvânia: Venture, 1980), p. 23.

72. Estou em dívida com as distinções feitas por James Murphy entre o tempo “cíclico” , “mecânico” e “psicológico” em Concepts o f Leisure, pp. 5-9. Em Work, Leisure and the American Schools (Nova York: Random House, 1968), pp. 48-60, Thomas Green diferencia entre o tempo “diurno” e o tempo “do relógio” .

73. Sobre a afinidade do verdadeiro lazer com o verdadeiro trabalho, veja Wayne Stormann, “Work: True Leisure’s Home” , Leisure Studies, volume 8, 1989, pp. 25-33.

74. Em MeettheAmish (New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers, 1947), p. 1, Charles S. Rice e John B . Shenk aludem ao Condado de Lancaster, Pensilvânia, um mostruário da cultura Amish, como “o Lugar do Jardim dos Estados Unidos” . Com relação à proximi­dade dos Amish da natureza e seus ritmos de vida comunal segun­do são governados pelas estações “agrícolas” e dias “santos” , veja John A . Hostetler, Amish Society, 3.a edição (Baltimore, Maryland: John Hopkins, 1980), pp. 89-92,136-138,220-222. Sobre o compro­misso dos Shakers com a simplicidade de vida, a quietude e uma economia principalmente agrícola, veja Mark Holloway, Heavens on Earth, 2.a edição (Nova York: Dover, 1966), pp. 71-74. Mais geral­mente, sobre a teologia e espiritualidade dos Shakers, veja The Shakers, editor Robley E . Whitson (Nova York/Ramsey/Toronto: Paulist Press,1983), pp. 4-32. Para os conceitos aborígines do “tempo cíclico” con­tra o “tempo linear” , veja Peter Knudtson e David Suzuki, Wisdom of the Elders (Toronto: Stoddart, 1992), pp. 142-154.

75. Noêle M. Denis-Boulet, The Christian Calendar (Nova York: Hawthom, 1960), p. 199.

76. Dallas W illard, The Spirit ofthe Disciplines (São Francis­co: Harper & Row Publishers, 1988), p. 77.

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77. Robin Maas e Gabriel 0 ’Donnell, Spiritual Traditions for the Contemporary Church (Nashville: Abingdon Press, 1990), p. 12.

78. Sobre este assunto, meu modo de pensar foi estimulado por Stanley Parker, The Sociology o f Leisure (Londres: George A lien& U nw in , 1976), pp. 103-113.

79. Quanto à importância da reclusão quieta e lazer relaxante em viver uma vida espiritual, veja Klaus Bockmuehl, Living by the Gospel (Colorado Springs, Colorado: Helmers & Howard, 1986), pp. 49, 50; Adrian van Kaam, Am ILiving a Spiritual Life? (Denville, Nova Jersey: Dimension, 1978), pp. 83-87.

80. Quanto ao lazer como experiência de integração pessoal e psicológica/espiritual, veja Ela ine Smurawa, “ Le isu re : An Integrative Attitude” , Humanitas, volume 8, 1972, pp. 323-346.

81. Dietrich Bonhoeffer, The Cost o f Discipleship, edição re­vista (Londres: SCM , 1959), pp. 154ss. Um dos mais recentes tra­tamentos sobre a simplicidade cristã é Richard Foster, Freedom of Simplicity (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1981).

82. John Flavel, The Mastery o f Providence (Londres: Banner of Truth Trust, 1963), p. 167.

83. Veja Judith Brook, “Leisure Meanings and Comparisons with Work” , Leisure Studies, volume 12, Abril de 1993, pp. 149- 162.

84. Tilden Edwards, Sabbath Time, pp. 41, 42. Também fui ajudado em meu modo de pensar sobre a relação entre o trabalho e o lazer pelos cinco modos possíveis de definir a relação entre trabalho e lazer elaborados pelo sociólogo japonês Kunio Osaka: 1) modo un ilateral orientado ao trabalho (a vida consiste em tra­balho); 2) modo un ilateral orientado ao lazer (a vida consiste em trabalhar para viver e o lazer pelo prazer que faz a vida valer a pena; 3) modo à identidade (nenhuma distinção entre trabalho e lazer); 4) modo dividido (trabalho é trabalho e lazer é lazer); 5) modo integrado (o trabalho toma o lazer aprazível e o lazer dá nova energia para trabalhar). “Work and Leisure: As Viewed by Japanese Industrial Workers” , citado em Stanley Parker, The Future ofWork and Leisure (Nova York: Praeger, 1971), p. 70.

85. Karl Rahner, Theological Investigations, traduzido para o inglês por Kevin Smyth (Baltim ore/Londres: Helicon/Daron Longman & Todd, 1966), volume 4, p. 379.

86. Brother Lawrence, The Practice o f the Presence o f God, traduzido para o inglês por E . M. B laiklock (Nashville: Thomas Nelson, 1982).

87. Veja Richard Foster, Prayer, Finding the Heart’s True Home (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1992), pp. 93-103, para uma identificação e explicação proveitosas sobre a “oração de descanso” como entendida por um bom número de escritores es­pirituais. Para uma espiritualidade do lazer mais geral e recente, veja Leonard Doohan, Leisure - A Spiritual Need (Notre Dame: Ave Maria, 1990).

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88. James Houston, The Heart’s Desire: A Guide to Personal Fulfillment (Oxford: Lion, 1992), p. 53. O vício como o oposto da liberdade é analisado mais completamente em Gerald May, Addiction and Grace (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1988), pp. 1-15. Como argumento para ilustrar, veja a discussão de Richard Foster sobre a liberdade interior da simplicidade como força para quebrar um vício em gastar dinheiro, em The Challenge ofthe Discipline Life (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1985), pp. 71-87.

89. Scott Peck, Further Along the Road Less Traveled (Nova York: Simon & Schuster, 1993), pp. 136, 137.

90. Thomas Moore, Care o f the Soul (Nova York: Harper Perennial, 1992), p. x i. A observação de Thomas Moore sobre a moderna “falta de alma” foi antecipada por seu mentor Cari Jung; veja sua obra Modern Man in Search o f a Soul, reimpresso (Orlando, Flórida: Harcourt Brace Jovanovich, 1933), pp. 196- 220. Veja também Martin Luther King, Where Do We Go From Here? Chaos or Community? (Boston: Beacon Press, 1967), p. 186, para um discernimento da relação do materialismo e os pro­blemas espirituais como o racismo e o militarismo. Para obra mais recente, veja Jim W allis, The Soul o f Politics (Nova York: New Press/Orbis, 1994), pp. 126-144, para inteirar-se de uma exposi­ção de fatos do credo do consumidor “Eu faço compras, logo exis­to” e um reconhecimento da conexão entre o consumismo, a vio­lência e a exploração sexual. W allis argumenta que o consumismo promove a “acomodação da vida” e até já usurpou o lugar da “ci­dadania” nos Estados Unidos.

91. Veja John M clnnes, New Pilgrims (Palm Springs, Califórnia: RonaldN. Haynes Publishers Incorporated, 1981), pp. 18-35; Robert Banks, Tyranny ofTime, pp. 168-177, relativo à distinção entre kairos e cronos; e Jean M. Blomquist, “Holy Time, Holy Timing” , Weaving, volume 6, Janeiro/Fevereiro de 1991, pp. 7-13.

92. Veja a comercialização do tempo de Benjamim Franklin com seu famoso ditado “tempo é dinheiro” em seu ensaio “ Advice to aYoung Tradesman (1748)” , The Autobiography o f Benjamin Franklin (Nova York: Random House, Modern Library, 1944), p. 232.

93. Interessante sobre esta consideração é a observação que está em Staffan B . Linder, The Harried Leisure Class (Nova York: Columbia University, 1970), p. 17, que diz que as culturas com “ superfluidade do tempo” são encontradas nos países mais po­bres, onde grande parte do tempo não tem nenhum significado produtivo.

94. Veja a pesquisa, “Rapid Growth in Rushin’ Americans” , American Demographics, volume 15, A bril de 1993, p. 26; Nancy Gibbs, “How America Has Run Out ofTim e” , Time, 24 de abril de 1989, pp. 48-55.

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ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER 2 8 9

95. Cada parte do ciclo de vida apresenta seus próprios desafi­os para viver folgadamente. As coações ao lazer que acompanham cada estação da vida são o foco da parte três do livro Constraints on Leisure, editor Michael G . Wade (Springfield, Illino is; Charles C . Thomas, 1985), pp. 289-353.

96. James Whitehead, “An Asceticism of Time” , Review for Religious, volume 39, Janeiro de 1980, pp. 16, 17.

97. Jiirgen Moltmann, The Spirit o f Life (Mineápolis: Fortress, 1992), pp. 199-205, especialmente as pp. 201, 202.

98. Veja a descrição esplendidamente eloquente dos estágios da “consciência contemplativa” por meio da qual a pessoa é trans­formada de ouvir música a ser música, na obra de Sue Monk Kidd, When the Heart Waits (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1990), pp. 194-196; cf. a autora anglicana evangélica Joyce Huggett, The Joy ofListening to God (Downer’s Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1986), pp. 41-74, para conhecer os estágios de sua jornada na experiência da contemplação.

99. Para ilustração desta tendência, veja Storiesfor the Christian Year, editor Eugene H. Peterson (Nova York: The Macmillian Publishing Company, 1992). Robert Webber discute o “ fenómeno da convergência” nas igrejas litúrgicas e carismáticas no modo como afeta o renascimento do calendário eclesiástico, em Signs of Wonder (Nashville: Abbott Martyn, 1992), pp. 99-115.

100. Bruce Lockerbie argumenta em favor do valor do ano litúrgico na formação espiritual em “Living and Growing in the ChurchYear” , in: The Christian Educator’s Handbook on Spiritual Formation, editores Kenneth Gangel e James C. Wilhoit (Wheaton, Illino is: Victor, 1994), pp. 130-142; cf. a chamada para substituiro “entretenimento” pelo lazer autêntico e o renascimento das fes­tas sociais na obra de Fox, Reinvention ofWork, p. 161. Fox (pp. 34-37) também sugere uma relação entre trabalho viciador e as­sistir televisão na cultura americana e japonesa.

101. Para os escritores protestantes evangélicos que restabele­cem o sábado, veja Karen B . Mains, Making Sunday Special (Waco, Texas: Word, 1987); Eugene H. Peterson, Working the Angles (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1987), pp. 44-58; Gordon MacDonald, Restoring Your Spiritual Passion (Nashville: Oliver Nelson, 1986), pp. 157-171, e (o protestante que virou católico) Ernest Boyer Jr., A Way in the World (São Fran­cisco: Harper & Row Publishers, 1984), pp. 101-105; cf. o católi­co Thomas Ryan, Discipline For Christian Living (Nova York/ Mahwah, Nova Jersey: Paulist, 1993), pp. 69-102.

102. Por exemplo, veja Richard Foster, Celebration o f Disci­pline, edição revista (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1988); Henri J. M. Nouwen, The Way ofthe Heart (Nova York: Ballantine, 1981); Susan A . Muto, Pathway o f Spiritual Living (Garden City, Nova York: Double Day, Image Books, 1984).

103. Veja o reconhecimento de Harvey Cox da meditação como

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2 9 0 CHARLES W. NIENKIRCHEN

expressão da essência de “guardar o sábado” , em Turning East (Nova York: Simon & Schuster, 1977), pp. 63-73. No seu best- seller The Relaxation Response (Nova York: Avon 1975), Herbert Benson promoveu um modo “ secular” de meditação para aliviar a tensão e depois combinou seu método religiosamente neutro com um “fator de fé” , em Beyond the Relaxation Response (Nova York: Berkeley, 1984).

104. Na obra When IRelax Ifeel Guilty (Elg in , Illino is: David C . Cook, 1979), pp. 109-142, Tim Hansel cunhou a expressão “des­canso ativo” para a sua estratégia de remodelar as férias segundo princípios mais voltados ao lazer. C f. Gordon MacDonald, Ordering Your Private World (Nashville: Oliver Nelson, 1984), pp. 33-38, para as características das pessoas “ impulsionadas” que vivem à beira do “síndrome do sumidouro” (pp. 13-18). A brochu­ra mais antiga de Charles E . Hummel, Tyranny o f the Urgent (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1967), apresenta es­forços para levar os “ativistas” evangélicos a um estilo de vida mais de lazer.

105. Por exemplo, veja as Questões 179 a 182, segunda parte da segunda parte, sobre a vida ativa e contemplativa em Tomás de Aquino, Summa Theologica, volume 2 (Nova York: Benziger Brothers, 1947), pp. 1929-1946. A obra clássica (originalmente publicada em inglês em 1920) de A . D . Sertillanges, The Intellectual Life, 5.a edição (Westminster, Maryland: Christian Classics, 1980), pp. 66-68, 87-93, exalta o potencial reconstituin­te e rejuvenescedor da solidão e do descanso para aumentar a fer­tilidade da vida intelectual da pessoa.

106. Karl Rahner, Theological Investigations, volume 4, p. 378, arrola “a recreação, o divertimento, a liturgia, o pensamento cria­tivo, a poesia e a arte e conceitos semelhantes” como atividades de lazer. O esporte, entretanto, ele chama uma “mistura peculiar de lazer e trabalho” (p. 379).

107. Claro que alguns também têm visto o lazer como perigo sério para a civilização. O reitor da Colgate University, George B . Cutten, em The Threat o f Leisure (Washington D .C .: McGrath, 1926), pp. 87-99, relacionou a degeneração física e mental, o declínio moral, o enfado, o amor ao prazer, a riqueza excessiva, a perpetuação de elementos degenerativos, a frouxidão sexual e o declínio das belas artes como efeitos danosos do lazer.

108. O desafio de desenvolver uma espiritualidade mais passi­va e contemplativa numa cultura impaciente orientada à ação é tratado habilmente por W. H. Vanstone em The Stature ofWaiting (Londres: Darton, Longman & Todd, 1982), pp. 52-68, 101-115. Sentimentos análogos são expressos em Henri J. Nouwen, “A Spirituality of Waiting: Being Alert to God’s Presence in Our Lives” , Weavings, volume 2, Janeiro/Fevereiro de 1987, pp. 7-17, especialmente as pp. 7,8. Em Workaholics: The Respectable Addicts (Toronto: Key Porter, 1991), pp. 6, 7, Barbara Killinger sugere

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ENTRANDO NO "DESCANSO DIVINO": RUMO A UMA VISÃO CRISTÃ DE LAZER 2 9 1

que o divertimento, a meditação e os exercícios espirituais no cen­tro da vida são remédios eficazes para a compulsão ao trabalho (“workaholismo”).

109. Quanto à origem e desenvolvimento do movimento de retiros, veja N. W. Goodacre, “Retreats” , A Dictionary o f Christian Spirituality, editor Gordon Wakefield (Londres: SCM , 1983), pp. 335, 336. As várias nuanças de “retiro” são consideradas em Anthony Starr, Solitude (Londres: Flamingo/Fontana, 1989), pp. 32-41. Quanto às tentativas históricas de ricos moradores urbanos ocidentais de achar “retiro” , veja Witold Rybczynski, Waitingfor the Weekend (Nova York: Penguin, 1991), pp. 162-185.

110. O propósito e padrão do retiro são discutidos amplamente por John L . Casteel em Renewal in Retreats (Nova York: Association Press, 1959). Para obras mais recentes, veja o exce­lente programa de retiro pessoal elaborado por Brother Ramon em Heaven on Earth (Londres: Marshall Pickering, 1991), e a dis­cussão mais religiosamente eclética de retiro defendida por David A . Cooper em Silence, Simplicity and Solitude (Nova York: Bell Tower, 1992).

111. Concernente à missão dos centros de retiro, veja Tom Gedeon, “Holding Environments for the Blue Planet in Our Search for God, for Meaning, for the Common Good” , Newsletter (Retreats International), Inverno de 1992-1993, pp. 3-5.

112. Veja o artigo de viagem “Holiday Retreats” , Good Housekeeping, Julho de 1989, pp. 138-140, e a série de santuários dos guias excursionistas a mosteiros, abadias e centros de retiro feita pela Harmony Books; Jack e Mareia Kelly, Sanctuaries, The Northeast (Nova York: Bell Tower, 1991); Sanctuaries, The West Coast and Southwest (Nova York: B e ll Tower, 1993).

113. Quanto ao impacto da geografia física em vários movi­mentos e mentores espirituais americanos, veja Belden Lane, Landscape o f the Sacred (Nova York/Mahwah, Nova Jersey: Paulist, 1988). Os entendimentos aborígines de “espaço sagrado” são inspecionados em Knudtson e Suzuki, Wisdom ofthe Elders, pp. 121-141. Quanto à sensação renovada entre os americanos urbanos do poder do lugar para moldar a experiência, veja o livro do sociólogo Ray Qldenberg, The Great Good Place (Nova York: Paragon, 1989), pp. 294-296.

114. Irene M. Spry, “The Prospects for Leisure in a Conserver Society” , in: Recreation and Leisure: Issues In an Era ofChange, editores Thomas Goodale e Peter A . W itt (State College, Pensilvânia: Venture, 1980), p. 152. Concernente aos assaltos em parques nacionais, veja John G . M itchell, “Our National Parks” , National Geographic, volume 186, Outubro de 1994, pp. 2-55. Sobre as origens “milenaristas” do século X IX da agressão ameri­cana contra os desertos, veja a obra do ecoteólogo Thomas Berry, The Dream ofthe Earth (São Francisco: Sierra Club Books, 1990), pp. 114-116. Em “Wilderness inAmerica” , Journal ofthe American

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2 9 2 CHARLES W. NIENKIRCHEN

Academy o f Religion, volume 42, Dezembro de 1974, pp. 614- 620, Henry C . Bugbee vê a “tradição/povos” do deserto america­no com sua espiritualidade associada, no sentido de estar em “con­trariedade dialética” com a cultura tecnológica e mecânica que cria o consumismo. E le exige que as pessoas e a natureza vivam em “mutualidade” .

115. Abraham J. Heschel, The Earth is the Lord’s and the Sabbath (Nova York: Harper & Row Publishers, 1966), pp. 8, 13- 32.

116. Jacques E llu l, The New Demons (Nova York: Seabury, 1975).

117. Jacques E llu l, Perspectives on Our Age (Toronto: Canadian Broadcasting Corporation, 1981), p. 101.

118. Os fatores contribuintes para a dessacralização na socie­dade industrial estão elucidados em S. S. Acquaviva, The Decline ofthe Sacred in Industrial Society (Oxford: Basil Blackwell, 1979), pp. 133-141. Acquaviva sugere que a industrialização até esterili­za a vida emocional da sociedade (p. 146).

119. Em The Technological Society, traduzido para o inglês por John Wilkinson (Nova York: Random House, Vintage Books,1964), pp. 401, 402, Jacques E llu l fala sobre a destruição do lazer pela sociedade tecnológica.

120. Schumacher, A Guidefor the Perplexed (Londres: Jonathan Cape, 1977), p. 68.

121. Ibid., pp. 73-91, especialmente a p. 88.122. Por exemplo, veja o livro do anglicano John Macquarrie,

Paths in Spirituality, 2 .a edição (H arrisburg, Pensilvânia: Morehouse, 1992), pp. 140-152. Os teólogos do divertimento tam­bém estão ajudando nesta consideração. Consulte Jiirgen M oltmann, Theology o f Play (Nova York: Harper & Row Publishers, 1972), e a obra mais antiga de Hugo Rahner, Man at Play (Nova York: Herder & Herder, 1967).

123. Stephen R . Covey, The Seven Habits o f Highly Effective People (Nova York: Simon & Schuster, 1989), pp. 287-307, 18-21.

124. A dificuldade de determinar as preferências da troca de tempo de renda dos trabalhadores americanos devido aos diferen­tes tipos de dados usados pelos analistas, foi anotada por Fred Bestem FlexibleLifeScheduling (NovaYork: Praeger, 1980), 107,108.

125. Neil Postman, Amusing Ourselves to Death (Nova York: Penguin, 1985).

126. Quanto à descida dos Estados Unidos em uma “nova ida­de das trevas” , veja Charles Colson, Against the Night (Ann Arbor, Michigan: Servant, 1989).

127. Concernente à tensão projetada que a industrialização colocará sobre o ambiente natural no século X X I, veja Paul Kennedy, Preparing For the Twenty-First Century (Nova York: Harper & Row Publishers, 1993), pp. 95-121.

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8A Ética de Ser:

Caráter, Comunidade,

Práxis

Cheryl Bridges Johns e Vardaman W. White

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2 9 4 CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE

eff, um novato da faculdade, considera-se cristão. Frequenta uma faculdade cristã particular, onde participa no coral do campus e em clubes académicos. Jeff vai à Igreja e emprega

o seu tempo no grupo da mocidade. Nunca usou drogas e não in­gere bebidas alcoólicas. Contudo, Jeff e sua namorada são sexual­mente ativos. Tendo crescido em volta de pessoas que mantêm as Escrituras em alta consideração, Jeff está familiarizado com as declarações bíblicas que proíbem o sexo fora do casamento. Po­rém, em seus momentos de reflexão, ele diz consigo mesmo que esse comportamento não é pecaminoso, porque ele e a namorada se amam e planejam se casar. Para ele, sexo antes do casamento só é moralmente errado se a pessoa é promíscua ou se não há com­promisso a longo prazo.

Ainda que se confesse cristão, Jeff é produto de sua cultura. E le é o que poderia ser chamado de “pessoa pós-moderna” . Nos últimos anos, ocorreram mudanças culturais e sociais de tal mag­nitude que muitas pessoas afirmam que estamos numa era radical­mente diferente das gerações anteriores. As pessoas acreditavam que havia um centro de verdade que definia para todos uma visão unificada de certo e de errado. Contudo isso já não é mais assim. Jeff cresceu num mundo em que as normas comportamentais são consi­deradas invenções humanas. Já não se acredita que sejam derivadas de uma fonte fora da humanidade (Deus). A verdade também tomou- se relativa e individualizada. Até a própria realidade é vista como uma construção e não como algo concreto e pré-existente.

Consequentemente, as pessoas hoje são encorajadas a viver por suas próprias regras, a definir a verdade por elas mesmas e a fazer o seu próprio mundo. Como quem costura uma colcha de retalhos, somos incentivados a misturar os símbolos que no pas­sado julgavam-se ser incompatíveis. Por exemplo, atualmente se diz que se pode tomar elementos de muitas religiões diferentes e estilos de vida e misturá-los para criar uma expressão única e in­dividualizada da verdade.

Em tal mundo, como saber definir o certo do errado? Claro que as Escrituras fornecem base importante para obtermos res­posta a tal questão. No decorrer dos séculos e em muitas culturas, os cristãos derivaram regras morais das Escrituras. Jeff também tem uma familiaridade básica com as regras morais derivadas das Escrituras. Mas Jeff precisa de algo mais que uma lista de regras - mesmo que essas regras venham da B íb lia - para navegar na con­fusão das decisões morais que ele enfrenta na vida diária.

O mero fato de ele conhecer certas regras ainda não significa que ele esteja equipado para enfrentar os desafios de um contexto social pós-moderno popularizado por cosmovisões competidoras. Jeff precisa de algo que venha centralizar sua vida e unificá-la, de maneira que ele não apenas tenha crenças e ações cristãs, mas que seja cristão. Jeff precisa ter o coração e a mente de um cristão. Só isto poderá transformar sua visão da realidade.

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 2 9 5

Uma Ética de SerUma maneira de começar a falar sobre moralidade é concen­

trar-se na ação humana e na observância de regras. A questão cen­tral nesta abordagem é: O que devo fazer? Responder esta pergun­ta inevitavelmente leva a pessoa a considerar questões como de­ver ou obrigação, as características de um código satisfatório de regras éticas, a justificação para fazer exceções à regra, os méto­dos para determinar as prioridades entre as regras, e as sanções para reforçar as regras.

Embora seja óbvio que “ética bíblica” se refira à ética encontrada na B íb lia , não é óbvio se há ou não uma ética consistente esposada nas Escrituras. A B íb lia foi escrita ao longo de muitos anos por autores dife­rentes que focalizaram indivíduos e comu­nidades diversos. Porém, se a B íb lia é a re­velação de Deus inspirada por seu Espírito, então é razoável crer que há alguma consis­tência no que ela revela concernente à natu­reza do ser humano, a natureza dos relacio­namentos humanos entre si e com Deus, e a natureza das ações humanas. Dentro desta consistência relativa, porém, estão ênfases éticas diversas, comunidades diferentes que enfrentam problemas diferentes, vários pon­tos na história que lidaram com problemas novos, e assim sucessivamente. Este reco­nhecimento não relativiza a ética, mas nos força a lidar honesta e sensivelmente com as narrativas e instruções que encontramos nas Escrituras. Temos de nos lembrar de que tra­tar a ética bíblica como um todo ou tratá-la assim brevemente, é simplista.

O Antigo Testamento é especialmente d ifíc il de caracterizar. Contudo, W alter Kaiser Jr. identifica cinco elementos da éti­ca do Antigo Testamento: E pessoal, teísta, interna, orientada ao futuro e universal (Toward Old Testament Ethics [Com vistas à Ética do Antigo Testamento]). Baseado cm Deus e sua relação com a humanidade, o An­

tigo Testamento salienta as disposições hu­manas, as atitudes, as intenções e motivações, oferece esperança e julgamento em algum momento futuro e aplica o padrão de Deus para todas as pessoas. O Antigo Testamento também destaca o seguinte: O caráter de Deus, especialmente como santo; o concer­to entre Deus e seu povo; relacionamentos justos pessoais e em sociedade; a fam ília ea comunidade; e a Le i de Moisés.

O Novo Testamento enfatiza responder a Jesus e sua mensagem. A ética de Jesus é achada na resposta ao Reino inabalável de Deus. Assim escreve Allen Verhey: “Esta é a primeira e fundamental tese com respeito à ética de Jesus: é uma ética de resposta, res­posta à ação apocalíptica de Deus, que está às portas e já se sente o seu poder” (The Great Reversal [A Grande Reversão], p. 15). A res­posta correta para o Reino é arrependimen­to. A lei é cumprida pelo amor, que é “uma disposição que se dirige à sua própria concreção em obras de amor” (p. 24). As­sim, a pessoa responde a Deus cm arrepen­dimento e amor, e então age de acordo com esse amor. Paulo reconhece que em Cristo algo novo foi criado, que o crislão é orienta­do à vida nova, e participa na obra e no ser dc Cristo. Os cristãos são livres da escravidão do pecado, morte e lei. A pessoa é livre não para praticar a libertinagem, mas para praticaro amor, que é a realização da lei (p. 108).

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2 9 6 CHERYL BRIDGES JOHNS E VARDAMAN W. WHITE

Com certeza parece natural e até necessário responder a per­gunta: O que devo fazer? Na teoria moral tradicional, a resposta a esta pergunta tomou duas formas gerais: 1) Devo fazer (ou me abster de fazer) a ação a, porque estou preso ao dever de agir as­sim, ou 2) devo fazer (ou me abster de fazer) a ação a, por causa das consequências que provocará. A primeira forma é chamada abordagem deontológica, a segunda, abordagem consequencialista. (Veja o box sobre a Ética Deontológica e o box sobre a Ética Consequencialista para tratamentos sucintos destas abordagens às questões éticas.)

É digno de nota que a própria natureza da pergunta: O que devo fazer?, focaliza a atenção na ação e nas regras que a gover­nam, e ficamos desejando saber sobre a pessoa que executa as ações - o agente. Seguramente nenhuma ação está inteira ou com­pleta à parte da referência da pessoa que faz a ação.1 Este insight fornece um ponto de afastamento para criticar o enfoque na ação humana com sua ênfase nas regras. De acordo com esta crítica, a pergunta anterior não diz tanto respeito ao que devo fazer, mas,

Stcca 'DeortfolSytca,A palavra deontologia deriva do verbo

grego dei, que significa “é necessário” . Uma abordagem deontológica à ética enfatiza o que é necessário, ou seja: do nosso dever ou obrigação. Em vez de buscar os fins ou as conseqiiências, um agente moral deve agir por dever ou obrigação. Uma teoria de ética deontológica assevera que uma ação ou re­gra é certa para uma razão diferente da con­sequência da ação ou regra (por exemplo, é comandada por Deus, é inerentemente cor­reta) (Frankena, Ethics [Ética], p. 15).

Emanuel Kant (1724-1804) fez uma abordagem deontológica da ética. E le afir­mou que uma ação deve ser feita por de­ver a fim de ter valor moral. Para Kant, agir por dever significa agir por respeito à lei moral. Sem esse respeito, a ação não é feita por dever. Claro que Kant reconhe­cia que as pessoas nem sempre agem por motivação adequada. As vezes, fazem coi­sas que são consistentes com o que o de­ver requer, mas são motivadas por algo di­ferente do dever. Por exemplo, a motiva­

ção pode ser o egoísmo. Diz-se que as ações deste tipo não são feitas por dever, mas somente de acordo com o dever. Se­gundo Kant, tais ações não têm nenhum valor moral e não merecem elogio moral. Por exemplo, se o dever ordena dizer a verdade, e se certa pessoa diz a verdade simplesmen­te por motivos egoístas, então esse ato de dizer a verdade carece de valor moral.

No centro da teoria moral de Kant está algo chamado imperativo categórico. Um imperativo é uma ordem. Algumas ordens têm um formato se-então, e são chamadas imperativos hipotéticos', por exemplo: “Se você quer ter amigos, então seja amigo” . A ordem aqui é “ seja amigo” . Mas a ordem só está ligada com a condição específica de que você quer ter amigos. De acordo com Kant, a moralidade está baseada em uma ordem que não tem tais condições ligadas a ela. A ordem da moral idade não está ligada a ne­nhuma qualificação. Dito de maneira sim­ples, a ordem da moralidade é categórica (ou seja, incondicional).

1

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 2 9 7

antes, que tipo de pessoa devo ser. Responder esta pergunta re­quer que consideremos não só o que significa ser humano, mas também o que vale a pena buscar na vida. (Por exemplo, o com­portamento de Jeff relativo ao sexo antes do casamento reflete mais do que apenas não seguir as regras de comportamento cristão. Reflete algo do próprio Jeff - suas crenças, hábitos, sentimentos, caráter, re­flete algo do seu ser.) Claro que quando tivemos a intenção de consi­derar estes assuntos, não ignoramos completamente as regras ou o conceito de dever. Mas a ênfase muda quando se trata da preocupa­ção com o desenvolvimento do caráter, o papel desempenhado pelas virtudes e vícios, e os componentes de nossa natureza espi­ritual, biológica e psicológica, pelos quais somos afetados e influ­enciam o crescimento moral. Em suma, o enfoque passa de uma pre­ocupação primária sobre a ação (e sua ênfase nas regras e obriga­ções) para uma preocupação primária sobre o ser (com o seu empuxo básico para a transformação e formação de caráter).

Em um mundo pós-modemo no qual há pouco admitido ou presumido que prescreveria o que a pessoa deve fazer, é imperati-

Kant sustentou que só há um imperativo categórico'. “Aja somente de acordo com aque­la máxima pela qual você possa querer que, ao mesmo tempo, se torne lei universal” . Esta versão do imperativo categórico usa o termo máxima. Uma máxima é uma regra particular da ação ou uma razão particular para agir. Kant acreditava que as pessoas têm razões para o que fazem. O imperativo categórico declara que para que a ação da pessoa seja moral, a razão da pes­soa agir (a máxima) deve ser aquela pela qual todo o mundo possa agir. O que Kant está que­rendo dizer pode ficar mais claro considerando os casos de roubo. Suponha que eu veja uma caneta na escrivaninha de minha secretária. Eu preciso de uma caneta, mas minha secretária não está presente para me conseguir uma, e assim penso em roubar a caneta dela. Minha máxima (minha regra particular de ação) poderia ser algo assim: “Sempre que eu precisar de algo, sou livre para tomá-lo de onde quer que esteja disponível, mesmo que eu tenha de roubá-lo” .

Agora o teste da moralidade de minha ação proposta é se a máxima que a alicerça

pode ou não se tornar lei universal (uma lei para todo o mundo). Um momento de refle­xão mostra que minha máxima não pode se tornar lei universal. Não me é possível que­rer que minha máxima autorizando o roubo deva servir de base para a ação de todo o mundo. Ainda que eu proponha roubar a ca­neta de minha secretária, não quero que ou­tras pessoas me roubem. Também não quero que outras pessoas nem suspeitem que sou ladrão. Em palavras bem simples, quero que lodo o mundo se contenha de roubar, mas quero que seja feita uma exceção para mim. Minha máxima não pode se tornar “ lei uni­versal” . Portanto, não é uma máxima moral. Não devo agir assim.

Há elementos deontológicos na Bíblia. Deus é o doador da Le i. Espera-se que o povo de Deus obedeça aos mandamentos de Deus, independentemente das consequências. Além disso, os princípios deontológicos podem ser resumidos da Escritura; por exemplo, o prin­cípio de amar o próximo, o princípio da san­tidade da vida humana.

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vo que a ética cristã comece com a transformação do ser. Jeff tem de se tornar alguém distintamente cristão antes que possa expres­sar em ação um estilo de vida cristão íntegro. Em outras palavras, Jeff tem de desenvolver o caráter de um cristão.

Mas como uma ênfase no caráter nos ajuda na ética? Primeiro,o caráter nos ajuda a responder na situação particular, porque na situação particular ainda somos nós! As circunstâncias mudam, mas o fator constante nas areias movediças é a pessoa que enfren­ta as circunstâncias. O caráter daquela pessoa, suas disposições, valores, virtudes e vícios, movem-se com a pessoa no panorama de sua vida. Em palavras bastante simples, o caráter dá consistên­cia à ação. Arthur Holmes observa que um caráter desenvolvido torna o comportamento muito mais previsível do que o impulso súbito ou a inclinação passageira. Torna a pessoa fidedigna, um agente responsável” .2 Em resumo, fazemos o que somos, e a con­sistência do ser traduz-se na consistência da ação. Um indivíduo

S tccaUma abordagem consequencialista da

ética avalia o valor moral de uma ação me­diante a referência às consequências que pro­duz. Um ato é certo ou bom se produz certo resultado ou consequência, é errado se não produz. Um exem plo de uma ética consequencialista é o utilitarismo, articula­do classicam ente por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mi 11 (1806-1873).

Bentham identificou o bem como o pra­zer. Entre as ações alternativas que se pode praticar em dada situação, o ato moral terá a consequência de produzir a maior quantida­de de prazer. O utilitarismo de Bentham era quantitativo. Para este fim , ele inventou o cálculo hedônico, um conjunto de elemen­tos que podem ser quantificados (por exem­plo, duração, intensidade, extensão) aplica­dos às consequências esperadas de uma ação ou política de acordo com o que o prazer e a dor poderiam ser medidos.

M ill rejeitou o utilitarismo quantitativo de Bentham em favor de uma versão mais qualitativa. E le escreveu em seu liv ro Utilitarianism (Utilitarism o): “O credo que aceita como fundamentos da ‘utilidade’ mo­

ral ou o ‘princípio de maior felicidade’ , sus­tenta que as ações são certas na proporção que tendem a promover a felicidade; erra­das à medida que tendem a produzir o con­trário de felicidade. Por felicidade entende- se o prazer e a ausência de dor; por infelici­dade, a dor e a privação de prazer” . M ill acre­ditava, entretanto, que as pessoas que des­frutavam tanto os prazeres básicos quanto os prazeres mais altos dão preferência aos pra­zeres mais altos. Ele atribui isto a uma dig­nidade inata nos seres humanos. Assim ele escreveu: “É melhor ser um ser humano in­satisfeito do que um porco satisfeito; é me­lhor ser um Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito” . Consequentemente, seu utilitarismo tende a ser mais qualitativo queo de Bentham.

Nem todas as éticas conseqiiencialistas são militaristas. Por exemplo, elementos con- seqiiencialistas podem ser notados em am­bos os Testamentos da B íb lia, em muitas das referências a um tempo futuro de bênçãos e julgamento. As Escrituras nos fazem espe­rar um julgamento - e, portanto, as conse­quências - de nossas ações e disposições.

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 2 9 9

cuja natureza é ser corajoso será geralmente corajoso, não impor­ta a circunstância. Pode-se contar que será corajoso, porque tal coragem é parte da sua pessoa.

Segundo, os eventos não nos acontecem simplesmente, mas são interpretados por nós. Hauerwas escreve que “o caráter deter­mina a circunstância, mesmo quando a circunstância é forçada sobre nós, mediante nossa própria habilidade de interpretar nos­sas ações numa história que é responsável pela atividade moral” .3 Os eventos não são eventos meramente passados, mas estão liga­dos uns aos outros para formar histórias. Os seres humanos são contadores de histórias: Eles ganham sua identidade e entendi­mento do mundo pelas histórias que compõem a história deles. De certo modo, nós somos histórias,4 ou talvez melhor, as histórias estão encarnadas em nosso caráter.5 O ponto importante é que to­dos os eventos tornam-se parte de nossas histórias de vida, parte de como nos descrevemos, parte de como interpretamos nossa vida. A situação não é alguma “coisa” abstrata separada de nós, mas também é parte de nossa história de vida, é um evento numa histó­ria de eventos e a enfrentamos no caráter, quer dizer, como pessoa que utiliza a história pessoal para responder ao presente.

Não podemos separar o que fazemos do que somos; na ética temos de nos concentrar principalmente no agente, não no ato. Seo ser do ator está bem formado, então é provável que as ações que derivam dele também sejam formais. A questão essencial da teo­ria ética não é: O que devo fazer?, mas: O que devo ser? Nas páginas a seguir discutiremos três aspectos que pertencem ao nos­so ser: o caráter, a comunidade e a práxis.

O Caráter

O primeiro e mais básico elemento da tríade é o caráter. Esta seção explorará o que é caráter, por que o caráter cristão requer transformação e formação, a linguagem bíblica da santificação e os aspectos do caráter.

D e f in iç ã o

Há um inter-relacionamento com nosso ser que define nosso caráter. Por exemplo, Jeff não é apenas uma combinação de ações; antes, ele é composto de uma unidade misteriosa de ações, afetos e razões. Craig Dykstra observa que estes aspectos de nós mes­mos são expressos no drama revelador da história de nossas vidas. Como dramas que têm um passado e um futuro, nossas ações atu­ais refletem como percebemos o passado e o que pretendemos fazer do futuro. Ter um caráter bem formado é vivenciar uma his­tória que seja inteligível, que verdadeiramente corresponda à rea­lidade.6

A história de nosso caráter mostra-se por nossa vida. E com­posta de nossas convicções: “Daquelas crenças tenazes que quan­

I

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do mantidas dão definição ao caráter de uma pessoa ou de uma comunidade, de forma que se fossem renunciadas, a pessoa ou a comunidade seria significativamente mudada” .7 Em outras pala­vras, somos nossas convicções.

As convicções são obtidas pela dinâmica da formação (cresci­mento gradual). De fato, nossas convicções estão constantemente sendo formadas por grande quantidade de forças. Por exemplo, as convicções de Jeff foram moldadas por sua fam ília, as experiênci­as na escola e na Igreja, e a sociedade em geral conforme está refletida na mídia. Mas Jeff também precisa de transformação, a fim de conhecer e adorar a Deus corretamente. E le precisa ter seus desejos transformados, porque seus desejos, torcidos pelo peca­do, proporcionam-lhe pouca noção do que ele deve querer corre­tamente. É declaração cristã que “a fé em Cristo junto com a graça de Deus têm um efeito transformador na natureza humana em ge­ral e em cada cristão em particular” .8 A ética cristã contemporânea tem de descansar nessa premissa - a qual é a própria base do Cris­tianismo.

A Base do Cristianismo

Uma abordagem à ética cristã baseada no caráter é proveniente da natureza do Cristianismo em si. A ética não é redutível ao que os cristãos fazem, visto que o Cristianismo não é redutível ao que os cristãos fazem. Esta discussão da base do Cristianismo pressu­põe certas doutrinas que não podem ser investigadas neste estudo: que a humanidade foi criada por Deus, para Deus e à imagem de Deus; que a humanidade é pecadora, alienada de Deus e dos pro­pósitos de Deus para a vida das pessoas e, desta forma, alienada do próprio ser verdadeiro delas; que Jesus Cristo era Deus encar­nado, morreu e foi ressuscitado para efetuar a reconciliação da huma­nidade com Deus; que esta reconciliação envolve transformação da pessoa inteira pelo Espírito Santo, pois que participa na natureza divi­na. Declarada assim, a pergunta pode ser feita: O que pode participar na natureza divina? A resposta: Aquilo que é santo.

A natureza essencial de Deus é santa. A santidade de Deus qua­lifica todas as outras qualidades de Deus, de forma que, por exem­plo, o poder de Deus é um poder santo e o amor de Deus um amor santo.9 Para que uma pessoa seja reconciliada com Deus, ela tem de entrar na presença do Deus santo. Considerando que um aspec­to essencial da santidade é a separação do profano,10 como pode o profano permanecer diante do santo? Só pela própria santidade, pela graça ou dom da santidade dada por Ele mesmo que é santo, é que isto pode ser realizado. “E um presente que indica transfor­mação interior para reconhecer o que é bom, agradável e perfeito (Romanos 12.1,2)” .11 Temos de não só reconhecer o que é bom, agradável e perfeito, mas também temos de nos tornar bons, agra­dáveis e perfeitos. Somos ordenados a ser santos, a ser perfeitos.

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER. COMUNIDADE. PRÁXIS 3 0 1

Desde a antiguidade até o presente, muitas listas diferentes de virtudes foram propostas. Em vários de seus diálogos, o filósofo Platão (século IV a.C.) encontra razão para mencio­nar e discutir diversas das virtudes gregas clás­sicas: sabedoria, devoção, coragem, temperan­ça e justiça. Em Gálatas 5.22,23, Paulo (sccu-

i lo l d.C.) arrola várias virtudes chamadas por ele de fruto do Espírito: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, man-

! sidão, temperança. O teólogo do século XITI,i Tomás de Aquino, discute muitas virtudes eI inclui quatro virtudes primárias (a temperan-i ça, a j ustiça, a fortaleza, a prudênc i a) e três vi r-

tudes teológicas (a fé, a esperança, o amor). O teólogo do século X V III, Jonathan Edwards,

i acentua o amor e a santidade e comenta que a vida religiosa é um dos afetos de acordo com o qual o cristão vive uma vida de amor, amando as coisas santas de Deus.

No início da década de 1990, William Bennetti publicou uma antologia de histórias folclóricas| sob o título The Book qfVirtues (O Livro dasI Virtudes). Nele, o autor ordena as histórias con-i forme dez virtudes: autodisciplina, compaixão,

responsabilidade, amizade, trabalho, coragem, perseverança, honestidade, lealdade e fé.

O que é virtude? Para Aristóteles, virtudeI (aretê, que significa “excelência” ) é uma dis-! posição da alma (um estado do caráter) desen-i volvida por hábitos que ajudam a pessoa a al-| cançar a felicidade (eudaemonia). A virtude temi por fim o intermédio: é um meio-termo entre

os vícios do defeito e do excesso. Por exem­plo, a coragem da virtude encontra-se em um

i meio-termo entre a precipitação (excesso) e atimidez (deficiência). A virtude não é uma ques­tão de determinar uma média aritmética entre

i dois vícios e agir. Antes, a virtude sempre re­quer a sensibilidade a um contexto: fazer o ato certo, no momento certo, do jeito certo com vistas às pessoas certas.

Em sua obra Suma Teológica, Tomás de Aquino define a virtude como “uma qualidade

e *(/tntude&

boa da mente, pela qual vivemos corretiimentc, da qual ninguém pode fazer uso ruim, que Deus trabalha em nós sem nós". Para que um ato seja virtuoso, a razão e o desejo devem estar dispos­tos para o ato. Em outras palavras, se alguém sabe que o ato que está fazendo é um ato bom, mas deseja fazer alguma outra coisa, então essa pes­soa não agiu virtuosamente. Do mesmo modo, se alguém age de um modo bom, mas não enten­de a qualidade moral do ato, então não agiu vir­tuosamente. Assim, para Aquino, a virtude inte­lectual (a perfeição de nossa habilidade de saber) e a virtude moral (a perfeição de nossos desejos) são necessárias, se devemos alcançar nosso fim formal, a beatitude, a visão de Deus.

Alasdair Maclntyre identifica três estágios das virtudes, os últimos estágios pressupondo os primeiros. No primeiro estágio, as virtudes tornam possível a aquisição de bens interiores para as práticas (por exemplo, ciências, jogos). No segundo estágio, as virtudes nos fortale­cem para buscar o que é bom. As virtudes for­necem conhecimento do eu e do que é bom. No terceiro estágio, as virtudes sustentam uma tradição vital. Uma pessoa começa e vive den­tro de uma tradição, e a busca do que c bom toma lugar na tradição da pessoa. A noção de Maclntyre de virtude é comunal e teleológica: a virtude é a persuasão ou a ordenação de ca­racterísticas que ajudam o indivíduo, e a co­munidade da qual o indivíduo é membro, na busca da excelência na forma de viver.

Na tradição aristotélica-tomística, levada para o presente por pessoas como Maclntyre e Stanley Hauerwas, as virtudes são as perfei- ções das atividades. as excelências que capa­citam as pessoas a viver com êxito. São as dis­posições e as capacidades encarnadas no agen­te moral, que são postas em execução em qual­quer situação, e que capacitam o agente a nego­ciar a situação prosperamente. (Para informa­ções adicionais, veja Westrninster Dictionary of Christian Ethics (Dicionário Westrninster de Ética Cristã), no verbete: “Virtue” .)

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Santificação é uma transformação concreta do caráter

no qual somos feitos santos ou justos.

Somente por este tomar-se é que podemos evitar ter uma iden­tidade confusa que compõe as escolhas morais baseadas no que achamos que é bom ou no que parece que é certo para o momento. A medida que nos tornamos santos e perfeitos, viajamos mais pro­fundamente em Deus e para Deus. Isto não significa que nunca cometemos pecado ou que não temos nenhuma falta. Antes, signifi­ca que nossos afetos e nossos desejos se tomam os afetos e os desejos de Deus. Nossos pensamentos e ações tomam-se, assim, o que reflete os desejos de nosso coração segundo são os desejos de Deus. Nosso ser santo se expressa pelo viver santo, pelo fazer santo.

Tomamo-nos santos pelo processo de santificação. Há vários aspectos da santificação que devem ser observados. Primeiro, é um ato da vontade graciosa de Deus para nós. É o dom de Deus para nós e não algo que realizamos por nossa própria habilidade.

Segundo, é uma transformação concreta do caráter no qual somos feitos santos ou justos. Este processo acarreta necessariamente limpe­za e separação. Significa, de acordo com certo estudioso, “ ser enxertado na justiça de Deus” .12 R . Hollis Gause escreve: “E um ato purifica­dor de Deus fornecido para limpar a natureza do crente e libertá-lo da lei do pecado e da

morte” (Romanos 8 .2).13 Terceiro, produz viver santo. Novamen­te, o fazer segue o ser.

A santificação não é um ato de limpar apagando a lousa de nossa vida; antes, é um processo de purificar, purgar, tornar santo quem somos. Nós que somos santos participamos da natureza di­vina. Somos nós mesmos, com nossa vivência, nossa história, nos­sas idéias, nosso caráter, encontrando (e tomando nossa) a experi­ência, a história, as idéias e o caráter de Cristo e do Cristianismo. Não perdemos o que é nosso, mas adquirimos o que faltava e pas­samos por uma transformação do que foi corrupto.

T r a n s fo r m a ç ã o e F o r m a ç ã o

Foi durante seu segundo semestre na faculdade que Jeff parti­cipou de um culto de avivamento em sua Igreja. Naquela noite, o evangelista fez um sermão poderoso concernente à nossa inabili­dade de esconder de Deus nossa pecaminosidade. Durante o ser­mão, Jeff sabia que o Espírito Santo estava esquadrinhando sua vida, revelando e trazendo à luz áreas ocultas de pecado. Quando o apelo foi feito, ele literalmente correu ao altar. Mais tarde, teste­munhou que sentia como se o Senhor estivesse lhe esperando de braços abertos, braços que ele sentia que se abriram para abraçar sua pecaminosidade. Ele experimentou uma limpeza e cura pode­rosas. Daquela noite em diante, Jeff tornou-se uma pessoa dife­rente. Depois de aconselhar-se, ele deu um basta ao relaciona­mento pecaminoso com sua namorada, e começou a desejar mo­mentos a sós com Deus. E le sabia que tinha uma jornada a seguir,

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consistindo em um andar diário com Deus e um crescimento em seu relacionamento com Ele, mas sempre rememoraria aquele culto de avivamento como um momento decisivo em sua vida cristã.

A santificação é uma experiência transformadora. O próprio Cristianismo é transformador. A transformação se refere a mudar de uma coisa ou característica para outra. O Cristianismo não é redutível a “crença” ou “moralidade” , mas é um relacionamento entre o Criador e a criatura, e, como já foi visto, um aspecto essencial deste relacionamento é a transformação. E importante para a ética cris­tã refletir sobre a natureza e o poder da trans­formação. Só porque a transformação não é algo que fazemos, não significa que seja sem importância ou que possa ser ignorada. Entendendo o que acontece na transformação, podemos entender melhor o que se supõe que somos.

Embora a transformação seja vital, não é a meta em si. Antes ocorre em pontos estratégicos ao longo de nossa jornada, sempre nos movendo em direção à nossa meta - o próprio Deus. Apreci­ando a meta da transformação, podemos reivindicar melhor para nós a vida do ser transformado.

Depois daquela experiência de transformação de Jeff durante o culto de avivamento, ele precisava das experiências regulares da formação, como o estudo da B íb lia, a oração e o culto. E le preci­sava entender e se apropriar do significado do que lhe tinha acon­tecido. Entre os momentos de transformação, o caráter também é servido formação. As tarefas de compreender, apreciar e se apropriar não são experiências transformacionais em si mesmas, e sim atividades formacionais. A formação diz respeito ao desen­volvimento ou maturação; uma coisa ou característica não é mu­dada em outra coisa ou característica, mas fica mais forte ou mai­or ou melhor.

O caráter cristão é desenvolvido em nosso ambiente social. Os cristãos não são meros produtos do ambiente. Depois da experiên­cia transformacional, Jeff teve de aceitar ou rejeitar as influências sociais que o cercavam. Esta aceitação e rejeição, esta escolha, são autodeterminação ou auto-agência. Mediante as escolhas que fazemos por certas ações, “não apenas reafirmamos o que fomos, mas também determinamos o que seremos no futuro” .14 Deste modo, utilizamos ativamente o caráter já formado para intencio­nalmente formar o caráter que teremos no futuro.

Visto que cada pessoa tem muito a ver com a formação do seu caráter, cada pessoa é moralmente responsável pelo que é forma­do. O que é essencialmente mudado, santificado, na santificação é o caráter. O cristão deve ser responsável em desenvolver o cará­ter de acordo com o seu movimento em direção à perfeição.

As experiências transformacionais abrem diante de nós uma visão da realidade que nos capacita a prosseguir vigorosamente

Devemos não só nos perguntar: O que estamos sendo?, mas também: Estamos sendo em

direção a quê?

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em nossa jornada. A partir de tais experiências, transformamos o entendimento de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Já não somos mais mantidos presos a uma estrutura de referência que trabalha contra nosso caráter. Pelas experiências transformacionais somos libertos para ver o que Deus vê, e cumprirmos as intenções de Deus neste mundo. Nossas mentes e nossos corações são reno­vados na mente de Cristo (Romanos 12.2). Já não somos mais conformistas ou pessoas confusas; somos capacitados a nos tor­nar vencedores.

O que fazemos surge do que vemos; assim, formando o que somos, finalmente formamos nossa visão. O movimento dos even­tos é circular: de visão, para a ação, para o ser e assim por diante ao longo da vida, impulsionando o caráter na direção do cresci­mento. A visão, movendo-se rapidamente de quem somos, forne­ce direção a este crescimento, porque o que se abre diante do cen­tro de nosso ser é a nossa percepção do futuro. Devemos não só nos perguntar: O que estamos sendo?, mas também: Estamos sen­do em direção a quê?15

Esta seção explorou o que é caráter, a necessidade de transfor­mação e formação do caráter e a santificação. Dentro desta estru­tura, a base do Cristianismo foi identificada como relacionamen­to, no qual os seres profanos são mudados por Deus em seres san­tos para comunhão com Ele. Chamamos a atenção para a impor­tância da autodeterminação e comentamos a relação circular de ser, visão e ação. Embora estes sejam muito importantes para a formação, não são os únicos meios de formação de caráter. O ca­ráter cristão requer um ambiente no qual possa ser formado apro­priadamente. Este contexto é o tópico da próxima seção.

A Comunidade

A N e c e s s id a d e d e C o m u n id a d e

A ética cristã tem de considerar o cenário social no qual a transformação e a formação acontecem. O cenário requerido é koinonia. Nesta seção, vamos sugerir algumas razões para a ne­cessidade de koinonia, sua definição e natureza.

Depois de sua experiência durante o avivamento, Jeff achou- se almejando um grupo de pessoas com quem pudesse comparti­lhar suas lutas e cultuar a Deus regularmente. Embora tivesse par­ticipado ativamente no grupo da mocidade, Jeff nunca tinha de­senvolvido um hábito regular de frequentar a Igreja. Ele fazia tra­balhos para a Igreja, mas nunca tinha se tornado parte do companheirismo da Igreja. Porém, depois do avivamento, ele se juntou a um pequeno “grupo de concerto” que se reunia regular­mente para oração e encorajamento. (Um grupo de concerto con­siste em pessoas que se comprometem a orar, apoiar, fortalecer e abençoar uns aos outros.) Ele tomou-se mais fie l na frequência aos cultos. Imediatamente notou uma diferença em sua vida. Sen­

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tia-se relacionado, útil e amado. Seu grupo de concerto o encora­jou em seu andar diário e forneceu companheirismo regular com os crentes. Sempre que tinha uma necessidade, ele sabia que po­dia chamar outros crentes para orar com ele.

O grupo de concerto ao qual Jeff se juntara, é construído no insight básico de que os seres humanos são criaturas sociais. Isto significa que eles precisam de interação com outros seres huma­nos em um cenário comunitário. Na comunidade, as pessoas compar­tilham suas experiências entre si e vêm a se sentir como se pertences­sem uns aos outros.16 O desejo por comunidade nos foi dado por Deus. Ademais, a comunidade é necessária para o desenvolvimento do cris­tão. É quase impossível desenvolver um estilo de vida cristão sem o companheirismo da Igreja;17 de fato, “a formação ocorre no contexto das relações” .18 Somente na comunidade é que a pessoa toma conhe­cimento de quem é, desenvolve seu caráter e vive de acordo com ele. Mas a comunidade deve ser uma comunidade fiel, pois devemos nos preocupar em nos formar fielmente.19

D ef in iç ã o

A palavra do Novo Testamento usada para identificar o tipo de comunidade necessária é koinonia. Paulo a usou para indicar “o companheirismo do relacionamento dos cristãos com Cristo e, por conseguinte, uns com os outros” .20 Koinonia tem o significado básico de “compartilhar algo com alguém” .21 Assim , para nós, koinonia é o companheirismo dos crentes em Cristo, que deve ser encontrado na Igreja.

C a r a c t e r í s t i c a s d a K o in o n ia

Howard Snyder especifica três aspectos da comunidade cristã importantes para este estudo: compromisso e concerto, vida compartilhada e transcendência.22 Pode ser proveitoso aplicar estes aspectos da koinonia aos elementos que James McClendon sugere que os cristãos precisam: estabilidade (para o corpo), integridade (para a mente) e liberdade (para o espírito). Os cristãos precisam estar em um ambiente que venha a nutrir o corpo, a mente e o espírito.23

Compromisso e ConcertoCompromisso e concerto referem-se ao vínculo entre uma pes­

soa e Deus e, como consequência disto, o vínculo entre uma pes­soa e os outros membros da comunidade cristã. Snyder fala sobre compromisso e concerto: “Não há comunidade cristã genuína sem um concerto. [...] A comunidade cristã não pode existir sem com­promisso com Jesus como Senhor, e uns aos outros como irmãs e irmãos” .24 Embora o conceito de koinonia como organismo m ísti­co seja importante, este fato não nega a necessidade da lealdade simples e pessoal dentro da comunidade e entre seus membros. James Nelson enfatiza com exatidão o aspecto orgânico e do con­certo de koinonia, mas observa que há o perigo de que a individu-

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alidade da pessoa seja perdida, se a comunidade só for vista como orgânica. Deve haver unidade, mas essa unidade deve ser o resul­tado do compromisso consciente dos membros uns para com os outros, sendo leais e fiéis uns aos outros.25

É importante que a beleza e a singularidade de cada indivíduo sejam expressas na comunidade cristã. O legalismo - o apego r í­gido e não crítico a regras - é frequentemente um meio de substi­tuir a conformidade pela koinonia genuína. Não celebra, mas, an­

tes, teme a individualidade. O legalismo mui­tas vezes dá uma falsa sensação de comunida­de, fornecendo segurança para as pessoas e l i­mites definidos num mundo em que parece não haver lim ites. Em um ambiente legalista, as pessoas não têm de ser responsáveis por suas ações. Não têm de se preocupar em se empe­

nhar para se relacionar com aqueles que podem ser diferentes.Pelo fato de o legalismo não mudar a natureza interior das pes­

soas, o fazer e o não fazer exteriores sempre têm de estar presen­tes. As pessoas são julgadas e apreciadas de acordo com a confor­midade delas a regras e não de acordo com suas convicções. A s­sim, o “ ser” delas não é transformado pelos relacionamentos en­contrados na comunidade. O que parece ser comunidade cristã genuína é, na verdade, totalmente o oposto!

Uma verdadeira comunidade deve ser convencional', quer di­zer, seus membros devem ser unidos, porque escolheram refleti- damente suas mais profundas crenças e valores, e não só porque se conformam não criticamente a um código externo de compor­tamento comumente mantido. Uma comunidade convencional é aquela “que mantém crenças, histórias, linguagem, rituais e for­mas particulares de ação em comum” .26 Estes elementos da comu­nidade são maravilhosa e misteriosamente mantidos pelo Espírito Santo, o que toma a koinonia uma realidade viva. A medida que as pessoas (que são seres) relacionam-se umas com as outras, elas também se acham relacionando-se com o Ser Supremo, Deus.

A proporção que a Igreja contemporânea reagia contra as pri­meiras formas de legalismo (e as falsas noções de comunidade resultantes dela), enfrentava a dificuldade de criar comunidades convencionais genuínas. Ao invés disso, o Cristianismo contem­porâneo tem optado muitas vezes por um individualismo que, como a sociedade dominante, toma a vida moral um assunto particular do indivíduo. Por conseguinte, as pessoas podem frequentar uma Igreja e nunca ser desafiadas a considerar seus estilos de vida. Podem nem mesmo saber em que os outros da congregação acre­ditam sobre assuntos morais críticos. Até pior, podem nem mes­mo se preocupar em conhecer as histórias e crenças dos outros.

Se Jeff deve crescer como cristão, ele não precisa de uma co­munidade legalista, que o forçaria a seguir uma lista de regras e regulamentos. Por outro lado, ele também não precisa de uma co­

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Koinonia tem o significado básico de 'compartilhar algo

com alguém'.

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munidade que não se preocupe o bastante para confrontar, instruir e modelar para ele as alternativas para a sociedade dominante. Jeff precisa de uma comunidade caracterizada por compromisso, concerto e lealdade. Jeff precisa de outros crentes que estejam dis­postos a compartilhar a vida cristã com ele nos laços da koinonia.

Vida CompartilhadaSnyder descreve a vida compartilhada como “passar tempo

juntos”27 e diz que “tal vida encontra seu real significado no equi­líbrio da adoração, nutrimento e testemunho compartilhados” .28 Talvez na expressão “vida compartilhada” esteja o significado encapsulado de koinonia. “Compartilhado” implica pluralidade; deve haver mais de um para compartilhar. “Vida” é singular. As vidas não são tanto compartilhadas quanto a vida é compartilha­da. Koinonia é uma unidade orgânica composta de muitas pesso­as. As pessoas testemunham com o objetivo de edificação, ado­ram juntas, participam de uma essência, buscam uma experiência, contam a mesma história, olham para o mesmo futuro, professam a mesma esperança. Compartilham da única vida. Contudo, as pessoas permanecem distintas, trazendo suas próprias histórias para uma his­tória, trazendo suas próprias características para uma essência.

Tanto o concerto quanto a vida compartilhada fornecem inte­gridade. Para McClendon, integridade “ significa a sociedade não apoiada principalmente em mentiras; significa oportunidade para a educação que nutre a sinceridade da mente, o exame crítico das crenças atuais, maneiras coerentes ou integrantes de pensamento para cada um consistente com o próximo item a seguir, a liberda­de espiritual plena” .29 Para que a integridade seja nutrida, os indi­víduos têm de se comprometer mutuamente e compartilhar suas vidas uns com os outros.

Tal compromisso e compartilhamento também conduzem à le­aldade. Lealdade não é obediência cega ou confiança ingénua, mas fidelidade crítica originada da veracidade comprovada na prova. Hauerwas escreve: “Nenhuma sociedade pode ser justa ou boa se tiver sido construída na falsidade. A primeira tarefa da ética social cristã é [...] ajudar o povo cristão a formar sua comunidade con­sistente com sua convicção de que a história de Cristo é um relato verdadeiro de nossa existência” .30 Os indivíduos são leais uns aos outros e a Deus quando sabem que sua comunidade está baseada no que é verdadeiro e que suas crenças são verdadeiras.

A integridade e a lealdade são, então, recíprocas. O cristão e a comunidade têm integridade e tomam-se leais sendo verdadeiros à história de Cristo; Deus tem integridade e demonstra lealdade fornecendo uma história que é verdadeira.

TranscendênciaA verdadeira koinonia está além da habilidade que os seres

humanos têm de a produzirem. Não criamos koinonia; ela nos é

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dada. É um presente. Não só isso, mas os cristãos a compartilham com Cristo e com os outros cristãos. Tudo isto é koinonia, sobre­tudo conforme é entendida pelos escritores do Novo Testamento, que viram todos estes aspectos da koinonia derivada de Cristo e do Espírito Santo.31 Hollis Gause explica: “Num sentido espiritu­al e real, a presença de Cristo proporciona um padrão duplo. P ri­meiro, como Ele habita no Pai, os crentes devem habitar em Cris­to. Segundo, como Cristo habita nos crentes, eles devem habitar

uns nos outros. Este é o padrão bíblico de uni­dade, que é a experiência e prática da santida­de” .32 Para que a koinonia exista, os cristãos devem não apenas experimentar a presença de uns com os outros e comprometerem-se uns com os outros, mas também têm de experimen­tar a presença de Deus e comprometer-se sem reservas a Ele .

A L ib e r d a d e C r is t ã

Acompanhando a experiência transformacional de Jeff, ele comentou com um amigo que já não se sentia preso a padrões da prevalecente cultural popular. E le sentia uma nova liberda­de para dizer “não” ao que é mau e “ sim” ao que é justo. Sua participação no Corpo de Cristo também lhe deu a coragem para ser o que antes ele estava incapacitado de ser. Je ff era livre . Era livre para ser vitorioso sobre o pecado e a tentação, não só como alguém que mal estava conseguindo se arranjar. E le continuou a ter lutas, mas as lutas não tinham poder sobre ele como tinham outrora. A vergonha e a culpa já não eram mais seus companheiros constantes.

O espírito precisa de liberdade (como o corpo e a mente), e a liberdade religiosa é uma faceta importante da vida social. A li­berdade não está limitada a estruturas sociais. Gerhard Lohfink adverte: “É impossível libertar os outros a menos que a liberdade irradie dentro do próprio grupo que a pessoa participa. Não é pos­sível pregar arrependimento social aos outros se a pessoa não v i­ver em uma comunidade que leva a sério a nova sociedade do Reino de Deus” .33 Como podem aqueles que estão algemados abrir as algemas dos outros? Como podem os que vivem em uma co­munidade injusta, preconceituosa, irreconciliável, sem amor e de­sinteressada exemplificar as virtudes do Reino de Deus? A comu­nidade cristã tem de primeiro evidenciar o Reino de Deus, antes que os cristãos possam conclamar outras comunidades a submete­rem-se àquele Reino.

Embora esta liberdade dentro da comunidade tenha um ele­mento social, trata-se essencialmente de liberdade fundamen­tada num relacionamento com Deus. Groome comenta com pre­cisão que “é pela liberdade de nosso ‘espírito’ que podemos transcender o mundano, passando a alcançar a união com o

Liberdade é o poder de ser cristão, de fazer a vontade de

Deus, de agir de acordo com a natureza santa da pessoa.

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Transcendente último” .34 Esta liberdade transforma e é produ­to da transformação; é uma liberdade de ser que reflete a natu­reza da koinonia. Isto pode ser visto se a definição que Hauerwas fez da liberdade for aceita: “A partir de nossa perspectiva de uma ética de virtude, a liberdade é mais como ter poder do que ter escolha. [ ...] Para o virtuoso, ser livre não im plica numa escolha, mas na capacidade de que o que foi feito ou não feito era ele mesmo” .35

Liberdade é o poder de ser cristão, de fazer a vontade de Deus, de agir de acordo com a natureza santa da pessoa. A transcendência é especialmente importante para o conceito de liberdade, pois a liberdade emana do que Deus fez na formação da koinonia. É um presente, e vem de Deus. Começa na transformação e é perpetua­da na formação. É primeiramente de Deus e secundariamente re­conhecida e fomentada pela comunidade.

Deus transforma e forma não só o caráter cristão, mas também a comunidade cristã. A ética tem de atender a ambos, certificando- se de que as metas de cada um sejam enunciadas e entendidas. Nenhum pode sobreviver sem o outro: A comunidade não pode existir sem uma congregação de pessoas individuais; o caráter não se desenvolverá sem um ambiente social apropriado que forneça transmissão, persuasão e vida da fé cristã. Deve haver uma narra­tiva , uma h istó ria , um caráter, uma identidade, um compartilhamento que sejam cristãos para, pelo nutrimento, levar o ser cristão imaturo ao crescimento.

A fé não é algo que os cristãos meramente têm, mas é algo que é vivido. A próxima seção examina o que dimana do caráter e da comunidade: a práxis.

A Práxis

Durante o verão seguinte ao seu ano de calouro, Jeff participou de uma viagem missionária de curto prazo à América do Sul. Que experiência! Durante o dia, ele dava aulas cristãs em bairros onde as crianças viviam numa pobreza miserável. À noite, ele se reunia com os irmãos latino-americanos para o culto. Os cultos eram in­críveis ! O mês em que ele viveu, trabalhou e cultuou a Deus num cenário do terceiro mundo radicalmente mudou o conceito que Jeff fazia do Cristianismo. E le começou a entender que servir a Cristo envolve mais que somente frequentar a Igreja. É um modo de vida que exige ação propositada, informada e circunspeta no mun­do. Como Jeff descobriu durante sua permanência na América Lati­na, tal ação revela os valores e crenças reais da pessoa.

Nesta seção, investigaremos a relação entre fazer e ser confor­me se relacionam com a práxis. Exploraremos como fazer não é meramente uma opção, mas um mandato para o desenvolvimento de uma ética cristã. Também discutiremos as maneiras pelas quais a práxis forma o ser e a comunidade cristãos.

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D e f in iç ã o

Práxis não é apenas ação ou prática. Antes, é “ação reflexi­va” ,36 quer dizer, a prática que está instruída pela reflexão teórica. Para entender a práxis, deve-se primeiro parar conscientemente de separar a teoria da prática. Isto não significa que teoria e práti­ca devam ser reduzidas uma à outra, ou que sejam idênticas. An­tes, esta abordagem busca uni-las, de forma que a prática não seja vista como a aplicação da teoria. Na práxis, a teoria e a prática estão unidas.37 O que pensamos sobre a nossa situação social será refletido em nossas ações dentro daquela situação social. Reci­procamente, nossas ações (para o bem ou para o mal) revelam nosso pensamento sobre as coisas que fazemos. O que, no final das contas, é revelado por nossas ações é o nosso ser — quem somos - , o nosso caráter. Por conseguinte, o caráter cristão é reve­lado e formado por nossas ações.

A R e l a ç ã o d a P r á x is c o m o C a r á t e r e a C o m u n id a d e

A práxis surge fora do caráter e da comunidade. Pensar e fazer não estão separados de quem somos e o que somos, de nosso cará­ter, de nossa história.

Embora o que somos não seja redutível ao que fazemos, o que fazemos reflete e está fundamentado no que somos. Outrossim, embora a fé não seja redutível ao que fazemos, o que fazemos reflete nossa fé e está fundamentado nela. A ação é, então, um ingrediente necessário da fé. A fé implica em resposta. Não é só participação na natureza divina pela transformação do caráter. Também é a participação no trabalho divino que surge daquela participação na natureza divina.

Se a ação (resposta) é um lado da moeda da práxis, o outro lado é o pensamento crítico. Como a ação, o pensamento crítico é integrante à fé. Steve Land afirma que “a doutrina sã produz e mantém os cristãos sãos ou saudáveis” e que “ela está preocupada principalmente com o cultivo de uma comunidade com o caráter e as virtudes de Cristo” .38 A doutrina cristã, como também a refle­xão crítica na narrativa cristã, as histórias da comunidade e os indivíduos na comunidade, a missão da comunidade, as virtudes promovidas na comunidade, são todas expressões de fé. A fé é expressa no que pensamos como também no que fazemos. De fato, na expressão da fé, o pensamento e a ação influenciam-se mutua­mente. O que pensamos não apenas ajuda a formar o que somos, mas também é resultado do que somos. Nosso pensamento crítico não é formado num vazio, mas como qualquer outro aspecto de nossa vida, é formado no pano de fundo de nossas experiências.

A práxis também provém da comunidade. Poling e M iller fa­lam da práxis como “a reflexão de uma comunidade sobre aquela interação na qual já está engajada” .39 De fato, Groome chama a comunidade de “um grupo de pessoas que juntas compartilham de um esforço comum para viver a práxis cristã” .40 A práxis, então,

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 3 1 1

não só reflete o caráter individual, mas também o caráter da co­munidade.

À medida que mudamos, desenvolvemos e nos tornamos o que seremos, nosso desenvolvimento ocorre em resposta às nossas ações.41 Em outras palavras, o que fazemos não é apenas o resulta­do de um caráter completamente formado; nossas ações nos for­mam também. Hauerwas alude às ações como “atos de autodeter­minação; neles reafirmamos o que fomos e determinamos o que seremos no futuro” .42 Entendendo quem somos e quem precisa­mos ser, escolhemos com autoconsciência o que fazemos (ação reflexiva). Pelo que fazemos, escolhemos com autoconsciência quem e o que seremos (reflexão ativa).

Os R e s u l t a d o s d a P r á x i s

O indivíduo e a comunidade cristã existem dentro de um con­texto social maior - o mundo. O que eles têm a dizer ao mundo? Que responsabilidades eles têm para a sociedade? Nesta seção, desenvolveremos a visão de que na práxis o indivíduo e a comuni­dade conhecem o mundo.

Contexto e ResponsabilidadeQuer os cristãos gostem ou não, eles existem dentro do con­

texto do mundo. A situação é que o Cristianismo existe na terra, que os cristãos vivenciam no mundo a fé, que a comunidade cristã é uma entre muitas comunidades, e que influencia e é influencia­da pela sociedade em geral. Os aspectos da sociedade mais ampla, como a economia ou a política, são parte do mundo do cristão. Não há vida cristã à parte da vida neste mundo.

Também há uma responsabilidade inevitável devido à nature­za do Cristianismo em si. Lehmann elabora argumentos em favor de Deus como “político” . E le argumenta que “o Deus a quem na koinonia passamos a conhecer como real, o único Deus que há, o único Deus digno sobre quem falar, não é dividido, mas é um; e o Deus que é um é o Deus da política” .43 Com isto, ele quer dizer que Deus é ativo na vida humana no mundo. Sua comunidade é política, porque é ativa no mundo que habita. A práxis é a reflexão ativa/ação reflexiva do Cristianismo vivendo, dialogando e cau­sando impacto no mundo.

Durante sua permanência na América Latina, Jeff ouviu histó­rias de cristãos que tinham “desaparecido” , porque haviam falado contra o tratamento violento dos indígenas. E le começou a enten­der que um cristão verdadeiro não pode deixar de relacionar-se com as dimensões político-sociais deste mundo, embora muitas vezes pague um preço por tal envolvimento. Na sua volta aos E s­tados Unidos, Jeff começou a trabalhar como voluntário no ramo da construção num capítulo local da organização chamada Habitat for Humanity (Habitat para a Humanidade). Também tornou-se mais consciente do aumento da pornografia em sua cidade natal, e

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ajudou a organizar uma campanha para fechar os negócios que lucravam com isso.

Como Adão e Eva que se esconderam no jardim do Éden,

não queremos enfrentar a verdade sobre nós mesmos e nosso mundo.

Conhecendo a VerdadeComo sabemos se nossa práxis, ou ação-reflexão no mundo,

reflete a mente e a vontade de Deus? Como podemos estar segu­ros de que nossas ações não refletem interesses investidos em nós mesmos sob o disfarce da religião? A ação-reflexão humana, por­

quanto importante, é torcida e pode se tornar interesseira. Sem uma autoridade fora do eu que transcenda e, às vezes, até negue a ação- reflexão, somos deixados com a possibilida­de, a despeito de nossas melhores intenções, da práxis pecadora. Por exemplo, as pessoas que atiram bombas em clínicas de aborto nos Estados Unidos declaram estar fazendo guer­ra justa contra os males do aborto. Não

obstante, a violência que perpetuam só torna pior a alienação e o ódio encontrados em nossa sociedade. Tais bombardeios não conseguiram nada de justo relacionado ao problema do aborto.

Daniel Schipani reformulou a práxis de um modo a conhecer e engajar o mundo, numa reformulação que incorpora o discipulado como “ seguir a Jesus dinâmica, dialogai e discementemente” .44 E le comenta mais adiante que a verdade que praticamos, deve, em última instância, nos ser revelada.45 Portanto, nossa prática da ver­dade é uma questão de obediência amorosa à vontade conhecida de Deus.

Mas como conhecer a verdade? Como discernir a vontade co­nhecida de Deus? Com frequência há um espaço entre nós e a verdade. De fato, empreendemos grandes esforços para nos es­conder da verdade. Conforme comenta Parker Palmer, “nos es­condemos do poder transformador da verdade; nos evadimos da busca da verdade para nós” .46 Agimos assim porque esta verdade nos conhece. Como Adão e Eva que se esconderam no jardim do Éden, não queremos enfrentar a verdade sobre nós mesmos e nos­so mundo. Contudo, esta verdade não é inerte, é ativa. E la nos procura. Busca-nos. Por quê? Porque a verdade é claramente en­contrada em Deus, que deseja um relacionamento pessoal conosco.

As palavras de Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (João 14.6a), não só revelam que Deus é a verdade, mas que Ele preparou um caminho para que conheçamos a verdade. Por meio de Cristo podemos conhecer Deus, e este conhecimento de Deus revela a verdade sobre nós mesmos.

A Bíblia fala de um caminho, de um modo para conhecer Deus, que é mais do que ter conhecimento dEle. A palavra hebraica traduzida por “conhecer” é yada ’, e significa ãquilo que transmite um conhecimento que vem pela experiência. Implica que há uma relação específica entre o conhecedor e o que será conhecido. Este

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modo de conhecer tem um forte componente afetivo. Em vez de ser um assunto da mente, também é experiencial. Notavelmente a palavra yada ’ era usada como eufemismo para as relações sexu­ais; outra forma da palavra yada ’ era usada para referir-se a amigo ou confidente.

Para os escritores bíblicos, se um indivíduo conheceu Deus, ele foi encontrado por um Deus que viveu no meio da história e que iniciou um relacionamento de concerto que requereu uma res­posta da pessoa inteira. Não se podia conhecer Deus e não ter um relacionamento com Ele . A medida para saber se a pessoa conhe­cia Deus ou não, seria como essa pessoa estava vivendo em res­posta a Ele . Portanto, conhecer Deus é amar e obedecê-lo!

Em contraste, certos pensadores gregos explicaram o conheci - mento de maneira muito diferente: colocando-se atrás de algo a fim de conhecê-lo objetivamente. Poder-se-ia dizer que a pessoa teria medo de “ ficar com as mãos sujas” pelo que seria conhecido. Nossa palavra teoria provém do grego theoros, que quer dizer “es­pectador” . Sugere um tipo de conhecimento sobre o mundo carac­terizado por uma audiência de teatro. O que será conhecido está “ lá fora” , no palco, e nos relacionamos a distância. Parker Palmer dá uma descrição cheia de insights sobre o conhecimento, quando visto sob esta luz:

Nosso conhecimento não nos atrai ao relacionamento com o conhe­cido, à participação no drama. Ao invés disso, nos mantém à dis­tância como destacados analistas, comentaristas, avaliadores uns dos outros e do mundo. Como frequentadores de teatro somos li­vres para assistir, aplaudir, assobiar e gritar, mas não nos entende­mos como parte integrante da ação.47

O objeto é algo exterior à questão do conhecimento; deve ser visto, identificado, catalogado, suas partes relacionadas a outras partes e julgado.

A primeira epístola de João fornece contraste nítido a este modo de conhecimento de “audiência” . Parece que ele intencionalmente prega contra esta compreensão de conhecimento e ataca suas im­plicações para a vida cristã, isto é, que é possível conhecer Jesus sem se esforçar para segui-lo. Para João, o conhecimento de Deus está fundamentado em um relacionamento amoroso (1 João 4.3,16,20), e este conhecimento é manifestado pela obediência à vontade conhecida de Deus.

E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus manda­mentos. Aquele que diz: Eu conheço-o e não guarda os seus man­damentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nele. Aquele que diz que está nele também deve andar como ele andou (1 João 2.3-6).

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Em palavras bastante simples, conhecer Deus envolve algo mais do que ter uma teoria correta sobre E le ; também envolve experimentá-lo, obedecê-lo e ser desafiado e mudado por aquele conhecimento experiencial dEle.

O envolvimento de Jeff na vida da Igreja e o envolvimento dele como cristão no mundo em geral, reflete uma mudança em sua visão da relação dele com Deus. E le já não é mais “parte da audiência” , observando o drama cristão de longe. Jeff tornou-se parte do drama e tomou-se parte de sua história. Seu conhecimen­to de Deus ficou pessoal e direto e o alimentou num estilo de vida de obediência.

E mais confortável estar na audiência, assistir enquanto outros cultuam, observar outros testemunharem, contemplar de longe en­quanto outros entram no mundo com o testemunho cristão. É mui­to mais fácil dar consentimento verbal a uma ética cristã do que encarnar e viver uma ética cristã! Todos temos de tomar a decisão crucial no que diz respeito a se seremos experiencialmente familiari­zados com Deus ou apenas nos acomodaremos em conhecer Deus.

Aceitando o DesafioOs indivíduos não só devem tomar a decisão de ter uma fé

ativa, mas a Igreja como corpo coletivo tem de tomar esta mesma decisão. Quando o programa de trabalho é estabelecido pela cul­tura popular prevalecente, a Igreja não tem a influência que deve­ria ter. A Igreja é a Igreja e não a cultura popular. Sua práxis deve permanecer verdadeira com seu caráter.

A Igreja permanece verdadeira ao seu caráter preservando sua distinguibilidade. E la não faz nenhum favor à sociedade adaptan­do-se à cultura popular prevalecente, porque falha em sua tarefa justamente no ponto em que deixa de ser ela mesma. Como Hauerwas argumenta com exatidão: “A Igreja não tem uma ética social, mas é uma ética social, [...] na medida que é uma comu­nidade que pode ser claramente distinta do mundo. Pois o mundo não é uma comunidade e não tem tal história, visto que está base­ado na pressuposição de que os seres humanos, e não Deus, go­vernam a história” .48 Quando a Igreja adota uma ética moral for­mada pela cultura popular prevalecente, está negando sua nature­za. Antes, a Igreja tem de expressar a ética social que já encarna; tem de transmitir a história de Cristo, uma história que continua­mente causa impacto nas relações sociais dos seres humanos.

A Igreja deve ser ela mesma pelo bem da humanidade. E o papel da Igreja servir e transformar a sociedade e suas institui­ções. Para realizar esta tarefa, a Igreja deve ser a Igreja e não se assimilar com a cultura popular prevalecente. Só um Cristianismo que não se envergonha de ser ele mesmo pode fazer isto.

Ser “para a humanidade” significa ser verdadeiro à mensagem da Igreja. Como afirma John Westerhoff: “É [...] a qualidade de uma comunidade que testemunha que a Igreja deve ser entendida.

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A Igreja tem uma história a contar, uma visão a compartilhar, boas- novas a proclamar. E essa história, visão e boas-novas são melhores comunicadas pela sua vida, por suas ações-palavras no mundo” .49

A Igreja é a manifestação física da história de Cristo; aponta para Deus além de si mesma. E uma testemunha da ação de Deus na história. Pelas ações e palavras da Igreja, as pessoas devem ver as intenções, ações e caráter do próprio Cristo.

O Cristianismo só pode mostrar ao mundo o que está faltando e só pode reter o seu fator diferenciador sendo uma sociedade de contraste ou uma con­tracultura. O que é uma sociedade de contraste ou uma contracultura? Snyder define uma subcultura como aquela que concorda basica­mente com a cultura dominante no que tange aos valores primários, e difere nos valores menos importantes, ao passo que uma contracultura pode concor­dar com uma cultura dominante no que tange aos valores menos importantes, mas divergir da cultura dominante na questão dos seus valores primários.50 A Igreja funciona como subcultura quando, por exemplo, adota um valor como o individualismo na particulari­dade em que deixa de alcançar as pessoas em desespero, mas difere do mundo no modo como esse individualismo pode ser expresso.

(Por exemplo, pode condenar o individualismo que defende o “direito à privacidade” dos direitos do aborto, mas aplaudir o in­dividualismo que diz que a comunidade não tem nenhuma res­ponsabilidade em ajudar as mulheres que ficam grávidas por cau­sa do seu pecado.) A Igreja funciona como contracultura quando valores secundários são compartilhados (como usar roupas seme­lhantes ou participar de entretenimentos em comum), mas desafia a cultura dominante em suas crenças centrais e valores fundamen­tais (como lembrar a sociedade que ela está sujeita a um poder maior do que ela ou que isso pode não tomar as coisas certas). Snyder considera que a Igreja na América do Norte é em grande parte uma subcultura e não uma contracultura.51

A sociedade de contraste é a que está contra muitas das metas e práticas comumente aceitas da cultura popular de hoje. Por exem­plo, rejeita as falsas imagens (como os retratos estereotipados e humilhantes das mulheres) projetadas pela mídia de entretenimento popular, e fica contra a auto-ilusão daqueles que defendem a auto­nomia, mas não a responsabilidade. Ao invés disso, a sociedade de contraste toma partido da verdade revelada em Jesus Cristo e vivida na fé cristã, apóia a reconciliação de todas as pessoas com Deus e defende um padrão de vida em conformidade com a santi­dade de Deus. Não espera que a sociedade se conforme, mas mo­dela o viver santo pela vida dos cristãos individuais. A santidade é inerentemente antitética aos elementos não regenerados da cultu­ra popular. Só como comunidade santificada é que a Igreja funci­ona como sociedade de contraste ao mundo.52

É o papel da Igreja servir e transformar a sociedade e suas

instituições.

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Este entendimento da sociedade de contraste como comunida­de santificada complementa a declaração de Jackie Johns de que “a Igreja (Prim itiva) compreendia o ímpeto de sua existência como sociedade de contraste enquanto lutava bravamente para manter- se impulsionada pelo Espírito de Deus” .53 O mesmo princípio pode ser dito sobre a Igreja da era pós-moderna. Nada está em maior contraste com certas metas e práticas comumente aceitas da cultu­ra de hoje do que a santidade. A Igreja tem de reconhecer as dife­renças fundamentais entre ela e as instituições que capturaram os corações e mentes das pessoas na era atual.

A santidade da Igreja divulga-se na práxis. Esta práxis é espe­cificamente profética em natureza. Não é apenas o dever de os indivíduos serem testemunhas proféticas, mas é a comissão de a Igreja existir como comunidade profética e santa. Só deste modo as pessoas podem em todos os lugares ver a luz do Reino que brilha nas trevas.

Durante sua viagem missionária, Jeff experimentou a vida em comunidades proféticas de pessoas, cuja koinonia o recebeu nos laços do amor cristão e cuja práxis o desafiou a tornar visível a fé cristã. Jeff fez uma transição em seu pensamento sobre a relação entre o cristão e o mundo. E le se afastou de ser parte de uma subcultura cristã para ser parte de uma sociedade de contraste. Este movimento representou mudança importante no seu modo de ser no mundo. Para Jeff, agora havia destacada diferença entre uma cosmovisão cristã e as outras cosmovisões prevalecentes na cultura. Considerando que antes ele só via o Cristianismo como algo que aumentava a qualidade de sua vida, agora ele via a fé como algo que radicalmente alterava sua vida. Sua vida foi altera­da de tal modo a expressar uma chamada profética.

A fim de expressar esta chamada verdadeiramente, Jeff preci­sa ser parte de uma comunidade profética de crentes que existem como sociedade de contraste. Tais comunidades são encontradas onde quer que haja cristãos que coletivãmente busquem ser o povo de Deus, pouco importando os custos. Tais comunidades existem ao redor do mundo. Algumas estão pagando grande preço por seu testemunho profético.

Na América do Norte, ainda que não haja perseguição pública de cristãos, os crentes como Jeff levantam-se em contraste com a sociedade rapidamente secularizante. Sua práxis cristã entrará cada vez mais em conflito com o que o Stephen Carter chama de “a cultura da descrença” .54 Nesta cultura, Deus é visto como um pas­satempo. Carter comenta que “a mensagem da cultura contempo­rânea parece ser que é perfeitamente certo acreditar nessas coisas- temos liberdade de consciência, [...] mas na verdade você deve guardá-la para si, sobretudo se suas crenças são do tipo que fazem você agir de modo [...] um tanto quanto não ortodoxo” .55

Aqueles que levam a fé cristã mais a sério do que um mero passatempo, arriscam ser rotulados de “ fanáticos” ou

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 317“fundamentalistas religiosos” . Tais rótulos indicam o nível do medo presente em nossa sociedade para com o cristianismo profético. Carter observa que tal medo é compreensível, visto que “a re li­gião realmente é um modo estranho de conhecer o mundo — es­tranho, ao menos, numa cultura política e legal, na qual a razão supostamente impera” .56 E le considera que a religião é subversi­va, especialmente nas nações onde a norma é desprezar a visão religiosa como irrelevante.57 A Igreja americana contemporânea tem de aceitar o risco de ser mal-entendida, rotulada e até perse­guida ativamente. Só então seu testemunho profético pode ser v is­ta claramente.

A s V ir tu d es da s D isc ipl in a s

Ser uma pessoa de virtude não é fácil ou automático. Muitas pessoas vão a Cristo com inveterados hábitos pecaminosos. En­quanto a transformação nos encontra livres da escravidão e tirania do pecado, o Espírito Santo deseja continuar a obra transformadora do interior da recriação. Durante séculos, a práxis das disciplinas cristãs foi um meio pelo qual os crentes têm vencido o pecado e possuem o caráter de Cristo profundamente inveterado no íntimo do seu ser.

As disciplinas em si não transformam, mas Richard Foster ob­serva que elas “nos permitem nos colocar diante de Deus, de for­ma que Ele possa nos transformar” .58 Foster compara as discipli­nas espirituais ao agricultor, que faz tudo o que humanamente é possível para proporcionar as condições certas para o crescimento da semente: o Espírito semeia pelas disciplinas, plantando-nos na terra em que Deus pode nos mudar de dentro. Assim , as discipli­nas não fazem nada por si mesmas; são meios que Deus usa para o nosso benefício.59

Foster divide as disciplinas em três categorias: as disciplinas interiores, consistindo em meditação, oração, jejum e estudo; as disciplinas exteriores, consistindo na simplicidade, solidão, sub­missão e serviço; e as disciplinas coletivas, consistindo na confis­são, culto, direção e celebração.

A práxis das disciplinas nos leva a uma experiência mais pro­funda com Deus e, à medida que continuamos em nossa jornada, descobrimos que fizemos com que nosso coração ficasse à vonta­de na presença dEle.

A jornada à FrenteComeçando seu segundo ano de faculdade, Jeff reflete sobre

seu primeiro ano significativo e percebe que é uma pessoa muito diferente. Há um ano, ele tinha sentido e respondido à voz do Es­pírito Santo que o levou a um andar mais profundo com Cristo. No caminho, ele aprendeu que ser era primeiríssimo em impor­tância. Agora suas escolhas morais e decisões éticas já não são

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mais baseadas em uma miscelânea de valores e crenças. Pelo con­trário, dimanam de uma individualidade bem formada e unificada. Atualmente o caráter de Jeff reflete, mais do que nunca, o caráter de Deus. Jeff começou seu primeiro ano de faculdade vagamente ligado ao Corpo de Cristo. Agora, como estudante de segundo ano, ele participa ativamente em uma Igreja local, onde encontra ir­mãos e irmãs para compartilhar na koinonia do Espírito Santo. Finalmente, hoje a vida de Jeff reflete a práxis da vida cristã. Suas ações como cristão são mais consistentes com quem ele é como crente em Cristo.

Jeff está numa jornada surpreendente. E uma jornada em dire- ção a Deus. É uma jornada em Deus e com Deus. No caminho, há a possibilidade de mais transformação e crescimento ininterrupto. Enquanto a jornada o leva para um futuro incerto, Jeff o encara com a garantia de que ele, como o apóstolo Paulo, pode terminar a carreira sabendo que há uma coroa de justiça que o espera (2 T i­móteo 4.7,8),

Revisão e Questões para Discussão

1. O que é uma “pessoa pós-moderna” ? Que problemas concernentes à moralidade o mundo contemporâneo coloca aos cristãos?

2. Faça a distinção entre ética deontológica, ética conseqiiencialista e ética de caráter. Identifique elementos de cada uma em sua ética pessoal e especificamente na ética cristã.

3. O que é santificação? Qual é a relação entre santificação e transformação? Como a santificação afeta o caráter da pessoa?

4. Como a visão pessoal afeta o caráter da pessoa? Uma ênfase na visão significa que a ética de caráter é, em última instância, conseqiiencialista?

5. Por que a integridade e a lealdade são importantes para a comunidade cristã, e por que ambas são importantes para o desen­volvimento do caráter cristão? O compromisso e o concerto en­contrados na koinonia são diferentes dos que são encontrados em outras comunidades?

6. Descreva sua comunidade cristã. É verdadeira koinonia? Você encontra compromisso e concerto, vida com partilhada e transcendência em sua comunidade? Você encontra estabilidade, integridade e liberdade em sua comunidade?

7. A liberdade implica em liberdade para pecar? A verdadeira liberdade não significaria que nenhuma ação é pecadora se for executada por um cristão?

8. O que significa pensar em Deus como “político” ? O que isto implica para o envolvimento cristão nas questões sociais?

9. Como a Igreja difere do mundo? O que a Igreja pode fazer pelo mundo ou contar ao mundo? Qual deveria ser o programa de trabalho da Igreja? Seria o mesmo programa de trabalho executa­

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 3 1 9

do pelo mundo? Se não, em que diferem? Há somente um progra­ma de trabalho para a Igreja? Há somente um programa de traba­lho para o mundo?

10. Identifique as disciplinas espirituais. Você as vê em opera­ção em sua vida? Como?

11. Jeff mudou de muitas maneiras durante sua jornada no pri­meiro ano de faculdade. Descreva essas mudanças. Por que ele mudou? O que o afetou?

Projetos Sugeridos para Reflexão1. Conte sua história. Quem é você? Qual é a sua tradição do­

minante? O que você valoriza? Para onde você está indo? Identifi­que as experiências que são muito importantes em sua vida, que o ajudaram a se tornar quem você é.

2. A cosmovisão pós-moderna caracteriza a verdade como re­lativa. Qual é a relação entre o cristão e a verdade? Como os cris­tãos podem conhecer a verdade e saber que suas crenças são ver­dadeiras? Explique para a mente pós-moderna como as reivindi­cações cristãs são verdadeiras.

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 3 2 1

Notas bibliográficas1. Como escreve Stanley Hauerwas: “Os ‘problemas’ ou ‘situ­

ações’ não são entidades abstratas que existem à parte de nosso caráter; eles tornam-se tais abstrações à medida que recusamos ser diferentes de nós somos” . Veja Vision and Virtue: Essays in Christian Ethical Reflection (Fides Publishers, 1974; Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1981), p. 49.

2. Arthur Holmes, Ethics: Approaching Moral Decisions, Contours of Christian Philosophy Series (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1984), p. 117.

3. Stanley Hauerwas, The Peaceable Kingdom: A Primer in Christian Ethics (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1983), p. 8.

4. Stanley Hauerwas, Truthfulness and Tragedy: Further Investigations into Christian Ethics (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1977), p. 78.

5. Richard Bondi, “The Elements of Character” , The Journal o f Religions Ethics, volume 12, Outono de 1984, p. 209.

6. Craig Dykstra, Vision and Character: A Christian Educator’s Alternative to Kohlberg (Nova York: Paulist Press, 1981), p. 52.

7. James W. McClendon, Biography as Theology (Nashville: Abingdon Press, 1974), p. 34.

8. The Westminster Dictionary o f Christian Ethics, editores James F. Childress e John Macquarrie (Filadélfia: The Westminster Press, 1986), no verbete: “Character” .

9. Paul T illich , Systematic Theology, volume 1 (Chicago: The University of Chicago Press, 1951), p. 272.

10. Donald C . Bloesch, Essentials o f Evangelical Theology, volume 1, God, Authority, and Salvation (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1978, 1982), p. 33.

11. The Westminster Dictionary o f Christian Ethics, editores James F. Childress e John Macquarrie (Filadélfia: The Westminster Press, 1986), no verbete: “Holiness” .

12. Bloesch, Essentials o f Evangelical Theology, volume 2, Life, Ministry, andHope (São Francisco: Harper & Row Publishers,1982), p. 41.

13. R . Hollis Gause, Living in the Spirit: The Way of Salvation (Cleveland, Tennessee: Pathway Press, 1980), p. 49.

14. Hauerwas, Vision and Virtue, p. 49.15. James W. Fow ler, “ Future C hristians and Church

Education” , in: Hopefor the Church: Moltmann in Dialogue with Practical Theology, editor Theodore Runyon (Nashville: Abingdon, 1979), p. 95.

16. James Poling e Donald E . M iller, Foundations fo r a Practical Theology o f Ministry (Nashville: Abingdon Press, 1985), p. 126.

17. Stanley Hauerwas e W illiam H. W illimon, “Embarrassed

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3 2 2 CHERYL BRIDGES JOHNS EVARDAMAN W. WHITE

by God’s Presence” , Christian Century, volume 30, Janeiro de 1985, p. 99.

18. James W. Fowler, “Practical Theology and the Shaping of Christian Lives” , in: Practical Theology, editor Don S. Browning (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1983), p. 162.

19. Stanley Hauerwas, “The Gesture of a Truthful Story” , Theology Today, volume 42, Julho de 1985, p. 187.

20. Paul Lehmann, Ethics in a Christian Context (Nova York: Harper & Row Publishers, 1963), p. 86.

21. Friedrich Hauck, no verbete: “ [Koinos]” , in: Theological Dictionary ofthe New Testament, editores Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, traduzido para o inglês por Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1965, 1982), volume 3, p. 808.

22. Howard A . Snyder, Liberating the Church: the Ecology of Church andKingdom (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press,1983), pp. 127, 128.

23. James W. McClendon Jr., Ethics: Systematic Theology, volume 1 (Nashville: Abingdon Press, 1986), p. 236.

24. Snyder, p. 127.25. James B . Nelson, MoralNexus: Ethics o f Christian Identity

and Community (Filadélfia: Westminster Press, 1971), p. 119.26. Dykstra, Vision and Character, p. 57.27. Snyder, p. 127.28. Ibid., p. 128.29. McClendon, p. 236.30. Hauerwas, A Community o f Character: Toward a

Constructive Christian Social Ethics (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1981), p. 10.

31. Eric G . Jay, The Church: Its Changing Image through Twenty Centuries (Londres: SPC K ; Atlanta: John Knox Press, 1977, 1978), pp. 23, 24.

32. Gause, p. 56.33. Gerhard Lohfink, Jesus and Community: The Social

Dimensions o f the Christian Faith, traduzido para o inglês por John Calvin (Londres: SPCK, 1985), p. 138.

34. Groome, p. 96. Groome identifica três dimensões da liber­dade: a dimensão “espiritual” ; a dimensão “pessoal” , que é o as­pecto interior e psicológico da liberdade; e a dimensão “ social/ política” (p. 96).

35. Hauerwas, Community and Character, p. 115.36. Groome, p. xv ii, nota.37. Ibid., p. 152.38. Steven J. Land, “Modest Appearance” , in: A Life Style to

His Glory (Cleveland, Tennessee: Pathway Press, 1988), p. 115.39. Poling e M iller, p. 65.40. Groome, p. 122.41. Dermot A . Lane, Foundations for a Social Theology: Praxis,

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A ÉTICA DE SER: CARÁTER, COMUNIDADE, PRÁXIS 3 2 3

Process and Salvation (Nova York: Paulist Press, 1984), p. 3.42. Hauerwas, Vision and Virtue, p. 49.43. Lehmann, pp. 82, 83.44. D aniel Sch ipani, Religious Education Encounters

Liberation Theology (Birmingham, Alabama: Religious Education Press, 1988), p. 125.

45. Schipani, p. 136.46. Parker Palmer, To Know As We Are Known: A Spirituality

of Education (São Francisco: Harper & Row Publishers, 1983), p. 59.

47. Palmer, p. 23.48. Hauerwas, “Gesture of a Truthful Story” , p. 182.49. John Westerhoff, Will Our Children Have Faith? (São Fran­

cisco: Harper & Row Publishers, 1976), p. 48.50. Snyder, p. 120.51. Ibid.52. Lohfink, p. 130.53. Jackie Johns, The Pedagogy ofthe Holy Spirit According

to Early Christian Tradition (Tese para Doutorado em Educação, The Southern Baptist Theological Seminary, 1986), p. 169.

54. Stephen L . Carter, The Culture o f Disbelief (Nova York: Basic-Books, 1993).

55. Carter, p. 25.56. Ibid ., p. 43.57. Ibid.58. Richard Foster, Celebration o f Discipline (São Francisco:

Harper & Row Publishers, 1978), p. 6.59. Ibid.

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9Música que

Vem do Coração da

Johnathan David Horton

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3 2 6 JOHNATHAN DAVID HORTON

A palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando ao Senhor com gra­ça em vosso coração.

— Apóstolo Paulo

Ter um mundo sem música seria como ter um mundo sem sentido. A música evidencia os mais profundos sentimentos e aspirações do género humano.

— Norman Dello Joio

Prelúdio: O Poder da Músicaoi logo que entrei na faculdade que pela primeira vez assisti a um recital vocal solo. O auditório parecia enorme e havia pessoas em todas as partes. Subindo as escadas, encontrei

meu lugar perto da frente da sacada. O entusiasmo parecia quase palpável, pairando sobre a multidão como névoa densa. Sentado sozinho no meio da multidão, fui surpreendido pela expectiva do momento. Aquele não seria um concerto comum.

George London, o solista convidado, voltara recentemente de Moscou, onde tinha cantado no Bolshoi Opera Theatre, na mais famosa de todas as óperas russas, Boris Godunov. London cantou em plena guerra fria, quando as relações entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética eram tensas. Esse estrangeiro america­no tinha cantado o papel principal. Embora os russos a princípio não tivessem querido gostar dele, foram completamente conquis­tados pela beleza da voz e força do seu caráter. Seu desempenho foi aclamado como triunfo! A história do seu sucesso fora levada pela mídia americana e ele se tomara herói nacional, uma celebri­dade da noite para o dia. Mal podíamos esperar ouvir esse famoso baixo cantar.

Um silêncio encheu o auditório quando as luzes se escurece­ram. London subiu ao palco sob um trovão de aplausos. E que apresentação! A canção brotava de sua própria alm a. A expressividade do seu cantar construiu um vínculo de comunica­ção entre o cantor e a audiência - algo tão poderoso que transcen­deu a expressão verbal.

No fim do programa, ele cantou a pequena balada popular in­glesa Lord Randall. Esta canção é um diálogo entre uma mãe e seu filho agonizante. Embora simples o bastante para ser cantado por qualquer estudante de canto da audiência, ele deu vida à can­ção que mexeu as profundezas da alma. À medida que a canção se desenrolava, ele cantava com uma voz cada vez mais fina, contu­do, suave. A canção terminou num mero sussurro, quando nós, a audiência, sentimos a dor da morte de Lord Randall. O silêncio que se seguiu foi o mais longo que jamais ouvi num concerto. A audiência permaneceu sentada, paralisada, olhando fixamente para o palco em meio às lágrimas.

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MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 2 7

Por fim uma explosão de aplausos rolou pelo auditório em on­das após ondas após ondas. Completamente subjugado pela emo­ção do momento, sentei-me em quietude atordoada, impossibili­tado de erguer as mãos para aplaudir. Pensei: Tenho de escrever uma carta para minha mãe e lhe dizer: “Hoje à noite descobri o poder da música! ”

A música tem o poder de influenciar nossa vida de maneira profunda. Quando consideramos essa influência, podemos nos fazer estas perguntas: O quão importante é a música na vida do indivíduo? Qual é o papel da música na sociedade? Qual é a fonte da música? Qual é o seu propósito? Como damos significado a um sortimento abstrato de sons e silêncio? Como podemos tirar mais proveito da música? Qual é o impacto da música como parte e pacote da mídia popular? E , finalmente, há diretrizes que nos ajudam a fazer escolhas morais e artísticas sobre a música? Este capítulo foi desenvolvido para responder essas questões. Come­cemos com o lugar que a música ocupa na vida do indivíduo e na sociedade.

A Supremacia da Música

Pareceria improvável, a priori, que todo o género humano fosse dotado da faculdade de desfrutar a beleza, a menos que ele alcan­çasse alguma realização nobre.

— H. E . Huntley

A música nos cerca. Satura a urdidura de nossa vida. É a com­panheira quase constante em nossa vida pública e particular. Se vamos comprar mantimentos num supermercado, ouvimos músi­ca. Se vamos passear de carro, música é ouvida do painel. Se nos reunimos com alguns amigos para uma sessão de estudo, a música é o monitor do estudo. A música aumenta e exalta nossos momen­tos de celebração. A liv ia a carga de nosso trabalho. Conforta-nos quando nos sentimos sós. A música expressa nossa fé em Deus. Dá expressão aos nossos pensamentos e emoções, desde o capri­cho mais trivial até ao insight mais sublime.

Há muitos estilos de música. De fato, parece que quase há tan­tos estilos quanto há pessoas. Em nenhum lugar a diversidade de estilos é mais evidente do que nos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. Se você surfa pelas ondas do rádio descobrirá estações especializadas em determinados estilos de música: Top 40 (canções mais vendidas na década de 1940), rock suave, rock popular, rock alternativo, heavy metal, rap, soul, reggae, jazz, blues, country, gospel, música cristã contemporânea, inspirativa, clássica, da Nova Era , e vários estilos de músicas nacionais e étnicas. Já se disse muitas vezes que a música é uma língua universal, mas também descobrimos que é uma língua da di­versidade. (Veja Apêndice 4, “A M úsica e o Espaço de Execu­ção” , ao final deste livro .)

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3 2 8 JOHNATHAN DAVID HORTON

A maioria de nós está fam iliarizada com um ou mais estilos de música. Aprendemos a amar e apreciar a música que entendemos, que faz sentido para nós. Entendemos sua sintaxe - a estrutura do seu significado. As pessoas muitas vezes dizem: “Não sei muito sobre música, mas sei do que gosto” . O que realmente querem dizer é: “Gosto do que sei” . As vezes ouvimos música pouco co­nhecida e comentamos: “Puxa, isso nem mesmo é música!” O que provavelmente queremos dizer é: “Não entendo esta música que me tira o sossego” . Quando nos restringimos a apenas a música que sabemos e entendemos, podamo-nos de novos mundos de pra­zer e insight potenciais.

A música não é o elemento essencial apenas da cultura ameri­cana; é parte vital de toda cultura ao redor do globo - passado e presente. A música é integrante a toda sociedade, da tribo mais primitiva à comunidade urbana mais complexa. Pela música, as pessoas expressam todas as emoções humanas, do êxtase e fe lic i­dade ao pesar e desespero. Casamentos, enterros, festas, cerimo­nias cívicas - onde quer que as pessoas se reúnam, haverá música.

Embora poucos questionariam a qualidade penetrante das ex­periências musicais que enchem nossa vida, a pergunta é inevita­velmente feita: A música é necessária para a vida? Em sentido estritamente biológico, do que precisamos para manter a vida? Precisamos de ar - só podemos viver durante cerca de três minu­tos sem ar. Precisamos de água - só podemos viver durante cerca de três dias sem água. Precisamos de comida - só podemos viver durante cerca de três semanas sem comida. Mas se precisamos de música, quanto tempo podemos viver sem ela - um dia, uma se­mana, toda a vida? E questão filosófica que não gera uma resposta simples.

Em vez disso, considere a seguinte pergunta: No período em que você está acordado, qual é o tempo mais longo que você fica sem ouvir música? Com frequência faço esta pergunta aos meus alunos. As respostas que me dão revelam o quanto a música faz parte da nossa vida. Alguns dizem que ouvem música quase que continuamente, outros afirmam que não passam mais que quinze

A expressão “clássica” tem vários usos e é aplicada a ampla esfera musical. Em um dos seus usos mais genéricos, refere-se à música de câmara, ópera e música sinfónica na tradi­ção européia culta. Neste sentido, escolhe ti­pos de música que, em sua sofisticação técni­ca e nível de cultura, diferem da música fol­

clórica ou popular. Às vezes a “música clássi­ca” diz respeito mais estreitamente à música européia de fins do século X V III e início do século X IX . As vezes, seu uso é estendido para incluir a música sinfónica e outras músicas tec­nicamente sofisticadas e sérias do final do sé­culo X IX e começo do século X X .

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MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 2 9

minutos sem ouvir música, e outros relatam que ficam duas horas ou mais sem ouvir música. A resposta mais comum que os alunos me dão é que não passam mais que trinta minutos por dia sem música!

Pare e faça a si mesmo essa pergunta: No período em que es­tou acordado, qual é o tempo mais longo que eu fico sem ouvir música? Enquanto considera esta pergunta, inclua toda música que você ouve na performance ao vivo, toda música que você ouve no rádio ou televisão, e toda música que você ouve em cassete ou CD. Além disso, inclua toda música que você ouve em film es, toda música que você ouve nos elevadores, lojas e festas.Finalmente, inclua toda música que você ouve até dentro da cabeça, quando não há nenhum som físico! Parece que a música é tão prevale­cente quanto o idioma.

O valor de se entender um idioma, falado e escrito, é óbvio a quase todo mundo. Usamos a língua falada e escrita na vida cotidiana para comunicação interpessoal, comér­cio e expressão das próprias idéias ou sentimentos. Compreende- se que o domínio das habilidades do idioma é fundamental para se viver com êxito no mundo de hoje. Mas o quanto é óbvio o valor do domínio do conhecimento e habilidades musicais? Curiosa­mente, é a própria onipresença da música que leva alguns a negar a necessidade de adquirir conhecimento sistemático de música.

Se as pessoas já amam e apreciam a música, prossegue o argu­mento, por que estudá-la? Eles não vêem que a educação musical é “menos uma comunicação de amor para a música do que uma extensão e reforma de um amor já existente” .1

Saber mais de música aumenta nosso prazer? Falamos de apre­ciação da música, mas ninguém fala de apreciação do futebol, por exemplo. Entende-se em geral que quanto mais a pessoa sabe so­bre futebol, mais é provável que goste de assistir um jogo de fute­bol. Porquanto seja verdade que não haja nenhuma correlação en­tre conhecimento de futebol e prazer do jogo, há uma ligação no­tável entre os dois: conhecimento gera apreciação.

Ninguém dúvida que o mesmo princípio se aplica à música, sobretudo quando o conhecimento está ligado diretamente com a própria música. Um pouco de conhecimento de música é necessá­rio para se entender os muitos mundos diferentes da música, de­senvolver as habilidades necessárias para fazer música, aprofundar o entendimento intelectual e estético da arte da m úsica. Comprovadamente, um pouco de conhecimento de música é até ne­cessário para podermos expressar nossos pensamentos e sentimentos pessoais pela música. Se estas declarações são verdadeiras, o que temos de saber para aumentar nossa apreciação da música?

Para começar, é provável que a apreciação se aprofunde pro­porcionalmente ao conhecimento que a pessoa tenha nestas três

Curiosamente, é a própria onipresença da música que leva alguns a negar a necessidade de

adquirir conhecimento sistemático de música.

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3 3 0 JOHNATHAN DAVID HORTON

áreas: 1) os grandes e duradouros marcos musicais da civilização (da pessoa) -a herança cultural; 2) os fundamentos da música, inclusive análise, composição e desempenho - arte da música; e 3) a natureza expressiva ou afetiva da música - a estética da músi­ca. W illiam J. Bennett, ex-secretário do Departamento de Educa­ção, expressou a natureza fundamental do conhecimento da músi­ca: “Nenhuma educação é completa sem a consciência musical; a música é a expressão essencial do caráter de uma sociedade” .2

N o s sa H e r a n ç a C u ltu r a l

Um cidadão bem-educado deve estar familiarizado com pelo menos algumas das monumentais realizações musicais da c iv ili­zação ocidental. A música do passado antigo está hoje para sem­pre perdida, mas a música do período medieval até aos dias atuais é parte de nossa herança musical. Os grandes compositores do passado deram-nos insights sobre a condição humana do tempo deles e do nosso também. É interessante notar que a matéria dos textos musicais - as letras - permanecem incrivelmente constan­tes de geração em geração.

Bach e Handel, Haydn e Mozart, Beethoven e Brahms, Debussy e Stravinsky e muitos outros moldaram a música do mundo coti- diano.3 O estudo da música destes mestres do passado produzirá colheita de enriquecimento e prazer, como também maior com­preensão da música atual. “A declaração inteira para a importân­cia da música clássica acha-se na base de que não há substituto para o conhecimento de primeira mão” .4 Um conhecimento sólido da música clássica deve incluir familiaridade com obras-primas representativas dos principais géneros - como sinfonia, abertura, ópera, balé, oratório, concerto - incluindo um entendimento da forma, estilo e desenvolvimento temático.

O estudo da música popular dos Estados Unidos -fo lk , Top 40, jazz, blues, rock, Broadway show, country, gospel, música cristã contemporânea - também deve estar incluído numa educação musical bem planejada. Nossa herança musical popular inclui a música folclórica de muitos países e culturas. Ademais, os própri­os Estados Unidos provaram ser solo fértil para produzir novas músicas mediante a transpolinização de suas muitas e variadas culturas musicais. A música popular americana, em suas muitas formas, deixou marca expressiva por todo o mundo.

A A rte d a M ú sic a

Num mundo ideal, todos aprenderiam a ler música, cantar e tocar um instrumento. A porta para o mundo da performance mu­sical abre-se amplamente para a pessoa que lê música e sabe os rudimentos de cantar e/ou tocar um instrumento. A performance musical é em si um tipo de conhecimento. Tudo que diz respeito a escutar e analisar o mundo nunca pode duplicar completamente a compreensão inerente na performance musical.

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r

O conhecimento da melodia, estrutura harmónica, ritmo e metragem é essencial para uma compreensão plena da música. O conhecimento da forma musical, que é feito pelo ritmo natural em grande escala, é necessário para se entender muitos dos monu­mentos musicais da civilização ocidental. Quanto mais se aprende sobre os funcionamentos internos da música, mais a música faz sentido. Cada aspecto da estrutura musical pode ser usado para expressar o que está na mente e coração do compositor e artista.Em resumo, saber a arte da música facilita a apreciação que a pes­soa tenha da música.

A E s t é t ic a d a M ú s ic a

Temos desenvolvido a visão de que o amor da música cresce em proporção ao aprofundamento do entendimento que a pessoa tenha da música. Engajar nossa herança cultural e entender alguns dos aspectos técnicos da arte da música marcam passos importan­tes para o tipo de compreensão que aumenta a apreciação. Mas ainda que a estética da música esteja relacionada com estas duas coisas, não é idêntica a nada. A estética musical vai além dos as­pectos históricos, culturais e técnicos da música, e fala de sua na­tureza essencial.

Algumas teorias da estética requerem que a pessoa se distan­cie da experiência musical para fazer o julgamento estético.5 Tal ponto de vista cria um ouvinte que é crítico em vez de participan­te. Como músico, considero o envolvimento no momento musical como a essência da experiência estética. Nesta conexão, temos de apreciar completamente o fato de que música é mais do que notas ou sons. É mais do que melodia, harmonia, ritmo e contraponto. Como certo artista observou: “Música é primeiro uma expressão do espírito- caso contrário é meramente ruído bonito” .6 A música salta do fundo do espírito do artista e fala com as profundidades do espírito do ou­vinte, eliminando, inclusive, palavras. O ouvinte que é completamente afinado com a música é, nas palavras de H. E . Huntley, “restabeleci­do ao ato criativo e, atraído pela beleza, está experimentando a ale­gria da atividade criativa. Está, de fato, na frase de Kepler, ‘pensar os pensamentos de Deus segundo Ele ’ ,”7 O que Huntley descreve tão poeticamente representa em seu cerne uma produção e troca profun­das de significado. A estética da música tem a ver com o fazer sentido nesta profunda produção e troca de significado. Mais adiante, neste capítulo, descreveremos esse processo mais completamente, quando respondermos à pergunta: O que significa música?

A Fonte da Música

Onde estavas tu quando eu fundava a terra? [...] quando as estre­las da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?

— Jó 38.4-7

MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 3 1

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Muitos dos atuais textos da história da música não tentam tra­çar as origens da música. Escolhem começar com a história regis­trada. A Enciclopédia Britânica declara que cada sociedade anti­ga conhecida “entrou nos tempos históricos com uma cultura mu­sical em florescimento” .8 Os primeiros escritores especularam que o que conhecemos hoje por música começou como forma rudi­mentar de comunicação, que aliviava o fardo do trabalho das co­munidades, e que era elemento poderoso da cerimónia religiosa. De fato, grande parte dos primeiros escritores falou de música em termos de lenda e mito. Aqueles que não aceitam a revelação bíblica só po­dem ver a origem da música envolta numa névoa mística.

A fonte da música pode ser descoberta pela revelação das E s­crituras. Deus disse a Jó: “Onde estavas tu quando eu fundava a terra? [...] quando as estrelas da alva juntas alegremente canta­vam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?” (Jó 38.4-7). Por­quanto seja claro que esta é uma passagem poética que lida com a criação, a verdade da revelação de Deus é, todavia, real - a música existia antes que os seres humanos fossem criados! Deus, o Cria­dor do cosmo, é o Criador da música.

Somos feitos à imagem de Deus. Isto significa que somos do­tados dos atributos de Deus. Deus é espírito, portanto, somos do­tados de um espírito. Deus tem personalidade, e nós temos perso­nalidade. Deus é criativo; nós também somos criativos. É verdade que só Deus pode criar ex nihilo, ou seja, só E le pode criar algo do nada. Mas nós, os seres humanos, podemos pegar algo e criar algo completamente novo - algo que antes não existia. Deus é infinito em cada uma das suas características; os seres humanos são finitos. Todavia, sendo feitos à imagem de Deus, possuímos (embora em medida limitada) suas características.9

Deus é musical. A Bíblia nos apresenta um registro claro que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo cantam. No Dia do Senhor, Deus Pai cantará em seus filhos com grande alegria (Sofonias 3.17). Concluindo a celebração da última Páscoa com os discípulos, Deus Filho cantou um hino com eles (Marcos 14.26; Mateus 26.30) e Deus Espírito Santo canta no coração do crente (1 Coríntios 14.15).

Porque Deus é musical e somos criados à sua imagem, tam­bém somos musicais.10 A criatividade musical da fam ília humana parece quase ilimitada. Uma pessoa munida com os doze tons da escala crom ática11 pode cria r uma sinfonia sublimemente arrebatadora. Outra pessoa com esses mesmos doze tons pode cri­ar uma canção country. Outra pode criar uma complicada peça de jazz e, ainda outra, uma balada romântica. Usando apenas essa paleta aparentemente limitada de doze tons musicais, compositor após compositor têm achado uma esfera ilimitada de possibilida­des musicais.

Como o músico, o compositor, cria a música? Paul Hindemith, um dos mais influentes compositores do século X X , descreve a inspiração musical: “Algo - você não sabe o que - surge inespera­

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damente em sua mente - você não sabe de onde - e lá cresce - você não sabe como — ganhando forma - você não sabe por quê” .12 Se o compositor profissional não sabe de onde vem a inspiração musical, não é de admirar que o público em geral encare a compo­sição como um mistério.

Alguns afirmam que a criatividade musical é lim itada àqueles dotados de alto grau de treinamento musical, ou àqueles especial­mente talentosos. Contudo, pessoas comuns experimentam momen­tos de inspiração musical quando um fragmento de melodia ou umtrecho de uma nova canção entra em sua consci- __________________ência. Independente da qualidade destes peque­nos momentos de inspiração musical, a maioria das pessoas pensa em seu pedacinho de música e o esquece. Sem a disciplina do treinamento mu­sical, é difícil preservar tais inspirações musicais ou transformá-las em algo memorável.

Duas diferenças entre a pessoa comum e o gênio concernentes à criação musical são a tenacidade do gênio em desenvolver a idéia e a visão para transformar essa idéia em algo de genuína significância.13 O compositor verdadeiramente talentoso é impulsionado a perseguir cada idéia musical que lhe vem à mente. Durante o período do dia em que o compositor está acordado, alguma parte do seu cérebro está procurando pedaci­nhos de música potencialmente valiosos nos despojos do mar da inspiração. Quando estas idéias musicais vêm, o compositor as agarra e as guarda. Para o compositor que é consumido pela paixão de criar música, estas idéias musicais, nas palavras de Aaron Copeland, “parecem estar implorando por vida própria, pedindo ao criador, ao compositor, que encontre o invólucro ideal para elas, que desenvolva uma forma, cor e conteúdo, que venham a explorar plenamente o potencial criativo delas” . Por meio destas inspirações musicais, nos­sas esperanças e sonhos mais profundos podem ser “incorporados em uma estrutura translúcida de materiais sonoros” .14

A maioria das pessoas que tem interesse sério na música é ca­paz de criar música. Da mesma forma que a pessoa não precisa ser chefe de cozinha de classe internacional para desfrutar a arte da culinária e beneficiar-se dela, assim a pessoa não tem de ser gênio musical para gostar de compor música e gozar dos seus benefíci­os. Todo músico sério, amador ou profissional, deve ser encoraja­do a agarrar esses momentos de inspiração musical que brotam da consciência e desenvolver cada um deles ao seu mais pleno poten­cial. Compor música é um território relativamente inexplorado no mundo do prazer musical para a maioria dos músicos.

O Propósito da Música

Porque Deus é musical e somos criados à sua imagem, também

somos musicais".

Asno prepóstero, que até hoje nunca leu Para saber que a música fo i ordenada

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Para refrescar a mente do homem,Depois dos seus estudos ou de sua dor habitual?

— Shakespeare

Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder, porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas.

— Apocalipse 4.11

W illiam Faulkner, ganhador do Prémio Nobel da Literatura em 1954, abordou o propósito dos seus escritos no prefácio de sua coletânea de trabalhos The Faulkner Reader. Ele disse que não tinha escrito seus romances somente para entreter, ou ganhar di­nheiro, ou ficar famoso, ou mesmo para criar arte. Antes, ele es­creveu suas histórias para “enaltecer o coração humano” .15 Era seu desejo ajudar seus leitores a transcender o mundo cotidiano deles. Como escritor secular, ele buscava tocar e, talvez, transfor­mar as vidas espirituais dos seus leitores. Esta visão representa alta e bonita aspiração humana. Contudo, tão digna quanto tal meta possa ser, há um propósito mais sublime e ainda mais nobre para a música.

A música é um presente de Deus. Deus nos deu a música de forma que pudéssemos comungar com E le . A música pode e serve a muitos propósitos variados, mas a B íb lia deixa claro que sua função mais importante é adoração. O cântico dos anciões é ins­trutivo: “Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder, porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas” (Apocalipse 4.11). Deus é a fonte de toda a criação, e toda a criação, inclusive a música, foi projetada para o prazer dEle.

A música foi projetada primeiramente para adoração, e este é o seu propósito mais sublime e mais nobre. Este ponto não signifi­ca, porém, que toda música deve ser música de igreja. Nem que toda música deve ser religiosa. A própria B íb lia contém arte,secu­lar.16 O cântico de lamentação do rei Davi por Saul e Jônatas é um exemplo. Exalta a vida destes dois heróis de Israel (2 Samuel 1.19- 27). A Bíb lia também exalta o amor humano. Cantares de Salomão, embora seja comumente interpretado de modo alegórico (repre­sentando Cristo e a Igreja), é em primeiro lugar um poema de amor. (Veja Apêndice 5, “A Música e o Estilo de Adoração” .)

Em geral, a música de romance, amor, fam ília, amizade e de todos os assuntos da vida são apropriadas para o cristão, e todas têm mérito. Porém, o princípio predominante para a nossa música é: Deus é a audiência primária! Se cantamos um cântico de adora­ção diretamente a Deus, ouvimos “a nossa canção” com nosso amado ou amada, tocamos na sala de ensaio um concerto para trompete de Mozart, ou apenas improvisamos com alguns ami­gos, fazemos tudo com a consciência de que há um Deus que nos vê. Não precisamos ir a E le em oração, como o filho que diz: “Olhe, mamãe” , para informá-la do que fizemos. E le vê tudo e entende a

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intenção de nossos corações até mais que nossos pais ou amigos mais chegados (veja Salmos 139). Oferecemos toda nossa música como ato de adoração. Todavia, se ela não pode ser uma glória para o Senhor, não deve ter lugar na vida do cristão.

Claro que Deus está interessado em nossa adoração. Jesus nos oferece insights maravilhosos sobre o cerne da adoração na con­versação dEle com a mulher junto ao poço de Jacó (João 4). A adoração, Jesus lhe diz, não é questão de lugar, mas de adequada orientação a Deus: “Deus é Espírito, e importa que os que o ado­ram o adorem em espírito e em verdade” (João 4.24).

O que queremos dizer quando falamos em adorar a Deus em espírito? Porque Deus é es­pírito e porque nós somos feitos à sua imagem, também somos seres espirituais. Nossa dimen­são espiritual nos toma bastante distintos de outras criaturas na terra. Quando adoramos Deus em espírito, o adoramos de certo modo que é distintivo à nossa humanidade (entre os seres criados) e, contudo, de certo modo também verdadeiramente salienta como somos semelhantes a Deus. Na genuína adoração espiritual não pode haver fingimento, pretensão. A adoração em espírito deve ser honesta e sincera, porque Deus vê diretamente o centro de nos­sos corações (1 Samuel 16.7).

Para adorar em verdade, temos de adorar conforme os padrões e princípios encontrados nas Escrituras. Pelo fato de poucos as- suntos gerarem maiores diferenças de opinião do que a música e a adoração, começaremos com esta pressuposição: Toda opinião tem de se submeter à autoridade das Escrituras. Nossa adora­ção - inclusive a adoração que incorpora a música - também deve ser guiada pelos princípios das Escrituras. Então, o que as Escrituras dizem sobre adoração, em particular, sobre a adora­ção que envolve a música?

Primeiro, Deus está interessado em nossa música. Sabemos do seu interesse, porque a B íb lia está repleta de música. Há literal­mente centenas de referências à música e à doração ao longo da B íb lia, de Génesis 4.21, onde encontramos Jubal, que é “o pai de todos os que tocam harpa e órgão” , a Apocalipse 15.2-4, onde vemos aqueles que venceram a besta cantando “o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro” . O Livro de Sal­mos é o grande hinário da B íb lia. A maioria dos estudiosos con­corda que os salmos foram feitos para serem cantados. Além dis­so, o Livro de Salmos provê riqueza de informação sobre música e adoração - é um rico manual de adoração para o povo de Deus.

Segundo, cantar louvores a Deus não é sugestão, é uma orde­nança divina. O Salmo 149 é particularmente instrutivo: 1) “Cantai ao SENHOR um cântico novo” ; Deus quer que haja frescor em nossa adoração. E le não quer que nossa música de adoração se

Deus está interessado em nossa música. Sabemos do seu interesse,

porque a Bíblia está repleta de música.

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Um estudo é uma peça musical escrita para explorar ou desenvolver uma técnica particular. E projetado como peça de estudo, mas é frequentemente tocado em concerto.

torne rotineira na tradição ou fique atolada na familiaridade. 2) “Cantai [...] o seu louvor, na congregação dos santos” ; sempre que o povo de Deus se reúne, é o desejo de Deus que unamos nossas vozes e corações na unidade do cântico. E 3) “Cantai [com alegria em vossa cama]” ; o povo de Deus deve entoar cânticos de louvor, onde quer que esteja, quer só ou em companhia. A adora­ção não é algo que deve ocorrer somente no edifício da igreja. A adoração é um estilo de vida! Tudo em nossa vida deve ser uma oferta de adoração ao Senhor. Toda nossa música deve ser um louvor, uma glória ao Senhor! (Veja 1 Coríntios 10.31).

Terceiro, a B íb lia implica que a música desempenha um papel pedagógico. Pelo fato de que quando cantamos memorizamos sem ter a intenção, somos instruídos a usar a música “em toda a sabe­doria, ensinando-[nos] e admoestando-[nos] uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando ao Senhor com gra­ça em [nosso] coração” (Colossenses 3.16). A teologia viva de uma congregação é revelada tanto nos cânticos que são cantados quanto nos sermões que são pregados. As letras dos cânticos per­manecem por muito tempo depois que o sermão é esquecido.

Alguns argumentariam que a igreja hoje tem de confiar so­mente no Novo Testamento para obter direção nos assuntos da adoração. Esta visão não se harmoniza com as Escrituras. Vamos examinar o que o Novo Testamento diz sobre o Antigo Testamen­to e particularmente sobre o Livro de Salmos.

Primeiro, Jesus faz repetidas referências aos Salmos, estabele­cendo assim sua confiabilidade. Segundo, cada seção do Novo Testamento - os Evangelhos, o Livro de Atos, as Epistolasse o Livro do Apocalipse - cita o Livro de Salmos. Terceiro, o apóstolo Paulo está se referindo ao Antigo Testamento, o cânon das Escrituras então contemporâneo a Paulo, quando escreve: “Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfei­tamente instruído para toda boa obra” (2 Timóteo 3.16,17).

Ademais, o profeta Amós (Amós 9.15) e o apóstolo Tiago (Atos 15.16) nos falam que nos últimos dias Deus tornará a levantar o tabernáculo de Davi. Quando a arca do concerto, o próprio símbo­lo da presença de Deus, foi devolvida a Israel, Davi não a colocou de volta em Siló, onde tinha estado durante a divisão da terra, nem devolveu a arca ao novo local do Tabernáculo em Gibeão, onde as ofertas queimadas e a música eram oferecidas pelos sacerdotes. A arca do concerto foi trazida para Jerusalém e colocada em uma tenda - o tabernáculo de Davi. Este novo tabernáculo caracteriza­va uma nova ordem de adoração. Embora as ofertas queimadas e as ofertas de comunhão fossem apresentadas diante do Senhor, as instruções para os líderes de adoração eram simples e diretas: Fa­çam petição, agradeçam e louvem ao Senhor. A adoração centrali­zava-se em torno de duas atividades - oração e adoração musical.

E pôs perante a arca do SENHOR alguns dos levitas por ministros;

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e isso para recordarem, e louvarem, e celebrarem ao SENHOR, Deus de Israel. Era Asafe o chefe, e Zacarias, o segundo, e depois dele Jeiel, e Semiramote, e Jeiel, e Matitias, e Eliabe, e Benaia, e Obede-Edom, e Jeiel, com alaúdes e com harpas; e Asafe se fazia ouvir com címbalos. Também Benaia e Jaaziel, os sacerdotes, esta­vam continuamente com trombetas, perante a arca do concerto de Deus (1 Crónicas 16.4-6).

É evidente que a adoração musical jaz no próprio centro das atividades que cercam a presença de Deus. Muitos acreditam que a tenda, diferente do tabernáculo antes dela, era uma estrutura aberta que permitia que os levitas tivessem acesso à arca do con­certo, onde a glória de Deus habitava entre os querubins. Do mes­mo modo, muitos pensam que o tabernáculo de Davi está sendo restabelecido espiritualmente com relação à expressão musical na adoração nesta geração.

Deus se preocupa com o conteúdo dos cânticos que cantamos e com a atenção com que os cantamos. No Salmo 47, somos ins­truídos a cantar cânticos de louvor a Deus, nosso Rei. Examine a insistente repetição destes versículos: “Cantai louvores a Deus, cantai louvores; cantai louvores ao nosso Rei, cantai louvores. Pois Deus é o Rei de toda a terra; cantai louvores com inteligência” (Salmos 47.6,7). Evidentemente, se desejamos agradar Deus com nosso cântico, temos de entender quem Ele é. Se verdadeiramente entendermos que E le é o Rei de toda a terra, não cantaremos irre- fletidamente.

No ato sincero da adoração, o Espírito Santo penetra cada as­pecto da música. Como nos lembra LaM ar Boschman: “E le não só nos chama para adorar, mas nos capacita a adorar. O Espírito Santo nos dá a música de adoração, as letras de adoração e o dese­jo de adorar” .17 É a unção do Espírito Santo que faz a música pe­netrar com a força de mudar vidas. A música sozinha não muda o coração para melhor; somente quando é conduzida pelo Espírito Santo é que há tal benefício.

O que significa Música?

Falar sobre música é como dançar sobre arquitetura.— Thelonious Monk

Quando foi pedido ao compositor Robert Schumann que ex­plicasse um estudo d ifíc il, ele se sentou ao piano e tocou o estudo outra vez. Visto que nenhuma palavra poderia explicar adequada­mente o significado daquele estudo musical, ele não usou nenhu­ma. A pessoa que fez a pergunta obteve melhor entendimento do estudo depois de ouvi-lo pela segunda vez? Não sabemos, mas a probabilidade de mais insight foi maior na segunda audição do que depois de uma explicação verbal. “Quando se fala de música,

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o idioma é manco” .18O cerne da dificuldade é que o significado na música é essen­

cialmente não-verbal. O que a música significa não pode ser redu­zido a palavras; o significado musical não se transmite pronta­mente para o discurso proposicional. Este princípio permanece verdadeiro até para com canções com letras. A música pode real­çar o significado das palavras ou estar em conflito com o signifi­cado delas, mas, em todo caso, a música não significa meramente o que as palavras querem dizer.

Os compositores da Era Barroca acreditavam num conceito chamado doutrina dos afetos. Eles criam que certos ritmos especí­ficos e padrões melódicos específicos têm um significado particu­lar que pode ser usado para realçar o significado do texto. De Platão aos diais atuais, muitos pensam que a música tem um significado inerente. Em outras palavras, alguns teoristas cogitam que a me­lodia e o ritmo da música comunicam, em certa medida, um signi­ficado específico para o ouvinte.20 Por contraste, outros asseve­ram que a música expressa primariamente o eu interior e não é um recipiente para o significado.21 Neste capítulo, traçaremos um curso diferente de ambas as visões.

Leonard Bemstein sugere que há quatro níveis de significado na música: 1) significado narrativo-literário, 2) significado atmos- férico-pictórico, 3) significado afetivo-reativo e 4) significado puramente musical.22 Sob exame mais detido, vemos que cada um dos três primeiros pode ser agrupado sob a categoria música de programa, quer dizer, música instrumental que recebeu associa­ções verbais ou visuais. O significado é sugerido pelo título ou pelo “programa” explicativo fornecido pelo compositor ou editor. A natureza do significado fornecido pode ser uma história, uma idéia, um local, uma disposição de espírito ou qualquer outra coisa. A quar­ta categoria que Bemstein sugere é chamada música absoluta ou música pura. A música pura não tem significado extramusical.

S ig n if ic a d o p o r A s so c ia ç ã o

A música muitas vezes é chamada de língua universal; contu­do, não é possível transmitir um pensamento verbal pela música em si. O compositor, só por sua música, não pode comunicar um significado preciso (conceito, idéia, pensamento). Uma idéia mu­sical única ou uma composição inteira pode ganhar significado por associação, mas tal significado é dependente do conhecimen­to do ouvinte individual.

Os significados ganhos por associação não são universais. Por exemplo, a música gospel de dois tempos pode ser para uma pes­soa o som das reuniões de acampamento e renovação espiritual, contudo, para outra, a mesma música de dois tempos pode ser o som de cabaré reles, totalmente inadequado para uso no culto. Para alguns, o som do órgão de tubo é o epítome da música espiritual; para outros, é a própria essência do formalismo morto e sem vida.

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Estes significados não são inerentes à música. Antes, são produto das associações pessoais com a música ou estilo musical.

O significado por associação é significado aprendido. Quando as pessoas vêem na tela da televisão uma cena de oceano e ouvem repetidamente um movimento de duas notas de semitom grave e acentuado, como elas sabem que um tubarão está a ponto de ata­car? Aqueles que assistiram o filme Tubarão conhecem o som, porque aprenderam a associar este motivo musical muito distinti­vo ao grande tubarão branco do film e; só parece ameaçador, por­que está associado com um evento ameaçador. __________________

Tais associações são dinâmicas, não estáti­cas. Nossa compreensão do significado de cer­tos motivos ou estilos musicais está em cons­tante mutação. Muitas pessoas associaram o som do modo menor com a tristeza. Contudo, a maioria das pessoas que ouve o cântico de Natal atualmente popular Não sabias Tu, ó Maria?, acham-no emotivo e alegre em seu tom. A música de E lv is Presley e a música dos Beatles eram o som da rebelião quando esses artistas estouraram nas paradas de su­cesso. Agora são música de fundo em elevadores. Evocam o con­forto da nostalgia.

Não faz muito tempo eu estava ouvindo uma estação de rádio cristã conservadora. Fiquei surpreso ao ouvir uma música popular dos tempos de outrora que dez anos atrás tinha um som das can­ções mais vendidas na década de 1940! Quando foi lançada, a canção não seria tocada naquela estação de rádio por ser muito “mundana” , mas hoje está na lista das músicas tocadas por ela. A canção foi santificada pela idade?

O significado é sugerido pelo título ou pelo 'programa'

explicativo fornecido pelo compositor ou editor.

M ú s ic a P u r a

O que é “música pura” ? De acordo com Malcolm Budd: “É a arte dos sons aos quais não são especificados interpretação não auditiva” .23 O Código Morse é exemplo de sons aos quais não são especificados interpretações não auditivas, visto que é composto de sons organizados para o propósito expresso de comunicar uma mensagem verbal. Porém, estes sons não servem para nenhum propósito artístico ou estético. Por contraste, os sons da música pura não têm significados não auditivos (isto é, linguísticos ou verbais). São puramente significados musicais.

O significado na música não é antiintelectual, mas pode ser descrito como não linguístico ou não conceituai. Embora compor, organizar e tocar requeiram atividade intelectual de alta ordem, o significado da música não é primariamente cognitivo. Ninguém pode explicar como as simples ondas de som que assaltam o ouvi­do humano ocasionam a transmissão dos impulsos nervosos para o cérebro, “de forma que emergimos do engolfamento daquela apresentação ordenada de estímulos sonoros como se tivéssemos

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vivido por um simulacro de vida, a vida instintiva das emoções” .24

O S ig n i f ic a d o V e r s u s um S ig n i f ic a d o

David Pass sugeriu que o significado não reside no artefato (a peça musical). Antes, o significado emerge da interação do que o artista pretende e do insight que o ouvinte traz à experiência de ouvir. E le sugeriu o seguinte modelo: designer/produtor - artefato- intérprete. Neste modelo, o designer é o que cria a música e o

produtor é o que toca a música. O designer/produtor podem ou não ser a mesma pessoa. As no­tas, pausas, som articulado, mar­cas de expressão e instruções in­cluem o próprio artefato. O in­

térprete é o que ouve a música e averigua seu significado. Deve ser dito que não é possível tencionar qualquer coisa sem a presen­ça de um artefato.25

Vamos considerar por um momento a intenção do designer/ produtor e o artefato conforme foi determinado. O que o ouvinte - o intérprete - receberá da música é dependente da compreensão, experiências e gosto pessoal que ele traz ao ouvir a experiência.26 Cada pessoa chega ao momento musical com uma história pessoal única. Essa história vai necessariamente causar um impacto poderoso na percepção que a pessoa tenha do significado da música. Da mes­ma maneira que não há duas histórias que sejam semelhantes, não há duas interpretações de significado que sejam semelhantes.

Por que uma peça musical produz tais reações contraditórias em uma diversidade de ouvintes? Suzanne Langer dá esta expli­cação: “A música em sua forma mais sublime, embora claramente simbólica, é um símbolo não consumado, [...] pois a designação de um em vez de outro significado possível para cada forma nun­ca é feito explicitamente” .27

A música não é apenas sons, é uma expressão do espírito. Por­quanto o som é o veículo dessa expressão, a música nunca pode ser explicada somente pelo físico. A expressão espiritual do executan­te comunica de certo modo ao espírito do ouvinte aquilo que trans­cende o idioma. Embora a habilidade do compositor e a habilida­de do executante venham a influenciar o modo como efetivamente a mensagem espiritual é comunicada, não é a técnica que fala, é o espí­rito. A música que fala ao espírito tem de se originar no espírito. Isto é verdadeiro independente da intenção do executante.

Audição como Execução

Uma “audição ” é em si uma execução, um processo ativo de dar significado.

— Jeanne BambergerO jovem comum nos Estados Unidos gasta muitas horas por

Novo Modelo para o Significado da Música

(_ Designer/Produtor J Ç Artefato Ç Intérprete ~ )

O compositor/executor A própria música O ouvinte

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semana ouvindo música em cassete ou CD , indo a concertos e assistindo programas de televisão e filmes que apresentam músi­ca. Depois de ouvir toda essa música, precisamos mesmo apren­der a ouvir música? Há pouca dúvida de que um conhecimento maior de música aumentará a qualidade da percepção musical. Como observa Jeanne Bamberger: “O que ouvimos depende do que somos capazes de pensar para ouvir - mesmo que não perce­bamos absolutamente que esse pensar esteja em andamento” .28 O comentário faz sentido se você imaginar alguém numa festa onde o “fundo” musical estava num volume de concerto de rock. Tal­vez, ao ser-lhe perguntado o nome do sucesso que estava sendo tocado, o indivíduo só tenha podido responder: “Desculpe, não sei; só estava ouvindo” . Ele ouvia os sons, mas não tinha ouvido a música. O ouvir ativo e atento requer concentrar a atenção mental na música.

Mas por si só, prestar atenção não é o bastante. O ouvinte pre­cisa de conhecimento e exposição significativa à música para com­preender o que a música tem a oferecer. Se numa noite clara eu estivesse no quintal de minha casa contemplando o céu e um as­trónomo me perguntasse: “Vê as estrelas?” Talvez quisesse dizer: Vê as constelações e os planetas? Bem que eu poderia lhe respon­der: “Sim , vejo as estrelas” , mas como principiante não veria o que o astrónomo treinado vê. Para encontrar as constelações e os planetas, preciso de conhecimento do que procurar nas estrelas. De modo análogo, para ouvir os detalhes da estrutura da música, preciso saber como a música é formada.

Você provavelmente já tem muitas e importantes habilidades de audição, e pode ter um conhecimento maior de música do que pensa que tem. Considere o exemplo da aluna que diz que gosta de música. Se alguém lhe perguntasse, ela admitiria que “bate com as mãos ritmos simples, reconhece melodias que já ouviu antes e até canta ou assobia ao menos algumas delas” .29 Todavia, ela provavelmente logo acrescentaria: “Na verdade não sei mui­to sobre música” . No entanto, bater com as mãos ritmos e reco­nhecer e tocar melodias são habilidades de alta ordem. Se você já tem estas habilidades, tem sólidos fundamentos sobre os quais construir.

Muitas pessoas aprenderam a dar sentido à música que conhe­cem e amam. Embora possam não entender a terminologia precisa dos músicos, a música que conhecem faz sentido para elas. Enten­dem a sintaxe - a estrutura do seu significado. Da mesma maneira que as crianças aprendem a sintaxe da língua falada muito tempo antes de começar o estudo formal da língua, assim também apren­demos de modo auricular e intuitivo a sintaxe da música, mesmo que não estudemos música formalmente.

Contudo, não ouvimos música do mesmo jeito. Alguns consi­deram a melodia a chave para a música: Ouvem a música horizon­talmente. Outros ouvem a música verticalmente: Pensam em acor-

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Contraponto é a combinação de duas ou mais linhas melódicas independentes, executadas ao mesmo tempo. A maioria das músicas é composta de uma melodia predominante acompanhada nas outras vozes pela harmonia.

des e harmonia. Concentram-se nos sons que ocorrem ao mesmo tempo. Ainda outros são fascinados pelo ritmo, ou a forma, ou as cores tonais dos instrumentos em todas as suas combinações e permutações.

Há muitas coisas diferentes para ouvir na música. Suponha que tivéssemos de comparar ouvir música com olhar uma paisagem panorâmica. Podemos escolher vê-la de diversas maneiras: da es­querda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para bai­xo. Podemos até tentar abranger o panorama inteiro de uma vez. O que vemos é em grande parte afetado por onde escolhemos enfocar nossa atenção. Assim é com a música.30 Ouvimos música de pelo menos três modos: o nível sensual/emocional, o nível cognitivo/intelectual e o nível espiritual.

O N ív e l S e n s u a l /E m o c io n a l

As vezes ouvimos música e simplesmente deixamos que ela nos inunde como os raios do sol quente. Ouvimos passivamente sem qualquer esforço. Em outros momentos, permitimos que a música mexa com nossas emoções. Consentimos que nossos sen­timentos mais profundos venham à superfície. Essas emoções tor­nam-se parte da experiência da audição. Neste nível, audições re­petidas dão uma sensação de confortabilidade, uma sensação de familiaridade com a experiência da audição. O ouvinte pode rela­xar e desfrutar a música com um conhecimento razoável do que vem a seguir.

O N ív e l C o g n it iv o / I n t e l e c t u a l

Às vezes ouvimos o modo como a música é feita, ou seja, as operações internas da música. Ouvimos a melodia, a harmonia, o contraponto. Consideramos a forma, a estrutura da música. Temos prazer na música como arte. Desfrutamos os dons criativos do compositor e do executante. Por vezes, gozamos o contexto da música tanto quanto a própria música. Na ópera e balé (que tem uma linha de história) e na música de programa (música dotada de uma associação literária ou pictórica), ouvimos às vezes o enredo ou os aspectos extramusicais para fornecer a chave para a música. E neste nível, particularmente, que mais conhecimento se toma essencial. Quanto mais se entende as operações internas da músi­ca, mais se ouve o contexto da mensagem espiritual.

O N ív e l E s pir it u a l

A música tem a capacidade notável, senão única, de falar dire- tamente ao espírito. Sempre somos afetados pelo conteúdo espiri­tual da música. A melodia, harmonia, forma e outras característi­cas técnicas da música existem com a finalidade de transmitir con­teúdo espiritual. Isto é verdade quer se trate de música sacra ou secular. O conteúdo espiritual pode tocar as emoções, mas o espi-

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ritual e o emocional não são a mesma coisa. A música fala à parte mais profunda do indivíduo e expressa a linguagem indescritível do espírito.

A Música e a Mídia

Para mim, a música que escolho ouvir ou navegar é importante, porque alcança meu espírito e afeta minha vida.

— Janet Lynn Salomon

A música e a mídia influenciam nossa vida de numerosas e complexas maneiras. Em geral, quanto maior a exposição, maior o impacto. As tendências constantemente variáveis nos pentea­dos, roupas e produtos prontos afetam-nos em nível superficial e efémero. Por outro lado, as mudanças nas atitudes sociais relati­vas às questões da moralidade afetam-nos num nível profundo e eterno. Que efeitos as mudanças na música têm sobre nós?

Que haja um efeito importante parece óbvio. Precisamente como e de que modo acontece não é tão óbvio assim. Um executi­vo da televisão declarou diante de um auditório congressional que era absurdo acreditar que a música influenciasse o comportamen­to dos jovens. Apenas poucas semanas depois, num boletim para anunciantes potenciais, o executivo garantiu aumento nas vendas para qualquer empresa que anunciasse em seus programas. O exe­cutivo podia garantir, porque estava convencido de que o veículo transmissor, com seu uso da música e do vídeo, tem um efeito na audiência. E le desprezou o efeito da música perante o auditório congressional, porque os mecanismos precisos do efeito não são bem conhecidos.

A dificuldade surge em procurar estabelecer uma relação de causa e efeito entre ouvir certa música e depois comportar-se de modo particular. O comportamento humano não é tão previsível assim. Os efeitos causais são frequentemente sutis e complexos. A s mudanças de atitude e comportamento acontecem gradativamente - pouco a pouco, um passo pequeno de cada vez. Mas se o impacto e as influências causais da música na mídia são sutis e complexas, tomando-as virtualmente imperceptíveis, isso não quer dizer que sejam irreais ou sem importância. O ouvinte pode não estar consciente das influências em ação na música con­temporânea popular e, mesmo assim, ser influenciado.

O guru da mídia da década de 1960, Marshall McLuhan, reco­nheceu este fato numa era do rádio e televisão muito menos sofis­ticada: “Os efeitos da Tecnologia não acontecem no nível das opi­niões ou conceitos, mas alteram as relações de sensação ou pa­drões de percepção continuamente e sem resistência” .31

Uma das influências mais poderosas na geração atual é a Music Television Video: a M TV criou essencialmente um novo tipo de arte não-linear. E um casamento da música rock com filmes de

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sequências rápidas. Considerando que os programas de televisão típicos têm enredo e continuidade, a programação de música e vídeo da M TV conta com o humor e a emoção. A idéia é fazer o espectador/ouvinte sentir-se de certa maneira, não pensar de certa maneira. A M TV é em si um contexto que busca abolir a idéia de contexto. As imagens aparecem tão rapidamente que é impossível o espectador editar ou filtrar a experiência.32 Não é possível refle­tir sobre a moralidade da situação segundo é apresentada. O es­pectador/ouvinte só pode seguir a corrente da consciência confor­me flu i. A moralidade da M TV infiltra - infecta, contamina - a moralidade do espectador/ouvinte tão sutilmente e silenciosamente quanto um vírus no corpo humano.

A música, a mídia e a M TV estão moldando as atitudes dos jovens. Em recente pesquisa feita entre jovens de igrejas evangé­licas e pentecostais, os pesquisadores descobriram que os jovens que iam à igreja regularmente, mantinham atitudes para com a moralidade que não eram notadamente diferentes dos jovens que não iam à igreja. Os valores essenciais de ambos os grupos eram manifestamente afetados mais pela música, mídia e M TV, do que pelos pais ou a igreja que frequentavam.

A luta entre o bem e o mal é constante. A música é senão um elemento na arena dessa luta. Contudo, é uma arena extremamen­te importante, porque tem a capacidade de afetar a alma (inclusive o intelecto e as emoções) e o espírito. A música e a mídia podem ter influência positiva ou influência negativa. Sua influência mais duradoura na atual geração de jovens pode ser que sirva mera­mente como diversão.

Kenneth Meyers parece considerar este ponto quando observa que há algo novo sobre a cultura popular de hoje, incluindo a música: “A moderna cultura popular não é apenas a mais recente numa série de diversões. E , antes, uma cultura de diversão” ,34 Bob Sorge pinta para o cristão um quadro gráfico e sóbrio desta cultu­ra de diversão:

Você não ouve [Deus], porque você está ouvindo m uitas outras coisas. Oprah W infrey, Sally Jesse Raphael, Phil Donahue, [Domingão do Faustão, Program a Sílvio Santos]. Você está lam ­bendo os dedos sujos das guloseimas da Babilónia. A noite que poderia ser passada ouvindo as palavras de Jesus, é desperdiçada diante da televisão. “Enquanto o M undo Queim a.” Pobre do cristão que esqueceu de si mesmo assistindo novelas.E com ida de abutres.Você embarca no carro de manhã e, a caminho do trabalho, sintoni­za a estação de rádio que apresenta “rock para adultos contemporâ­neos”. Dançando os jingles da Babilónia. Cantarolando as melodias da Grande Meretriz. E então você clama: “O Senhor, quero ouvir Tua voz”. “Não, não quer.” Você não sabia que no Livro de Apocalipse eles lamentam a morte das músicas da Babilónia?35

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MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 5

A implicação das palavras de Sorge dá testemunho à necessi­dade de prestar atenção cuidadosamente aos detalhes do que a vida cotidiana tem a oferecer. Deixar-se levar pela vida passivamente, absorvendo as mensagens musicais e outras da cultura popular contemporânea, é viver uma vida afastada do que finalmente, e em última instância, importa na vida.

Poslúdio: Fazendo EscolhasQuando ouvimos estilos musicais pouco conhecidos, fazemos

bem em nos perguntar: Do que se trata esta música? O que signi­fica? Até que entendamos a música, não estamos qualificados para avaliar o seu valor. Claro que não podemos evitar ter uma resposta emocional in icial à música que ouvimos. Contudo, devemos nos dar conta de que nossa resposta in icial a uma nova peça musical é tão semelhante às músicas que ouvimos no passado quanto é à música que estamos ouvindo no momento!

O não-músico pode algum dia estar qualificado para fazer um julgamento sobre o valor de uma obra musical? Num sentido prá­tico, cada um de nós faz tais julgamentos diariamente. Formamos opinião baseados no conhecimento ou na ignorância, mas faze­mos julgamentos. Se o nosso julgamento deve ser válido, temos de ouvir um número suficiente de composições de determinado estilo ou género musical, antes de formarmos um julgamento final sobre um trabalho específico. Como Francis Schaeffer mostrou: “A qualidade mais sublime de certo estilo pode ser melhor deter­minada, não por ouvir os pronunciamentos dos outros, mas por ouvir uma quantidade suficiente do todo, a fim de que você faça seus próprios julgamentos” .36

Familiaridade direta com composições representativas de cer­to género de música, é requisito indispensável para formar um julgamento sadio sobre determinada peça musical daquele géne­ro. Em palavras bastante simples, este princípio significa que, como estrutura in icial de referência, devemos avaliar uma composição específica de jazz, folk, rhythm and blues, canto gregoriano ou barroco, comparando-a com outras composições do mesmo géne­ro com as quais temos experiência direta.

O verso deste princípio é que não devemos escolher música simplesmente por causa de sua popularidade. O padrão para ser “merecedor” é primariamente o mérito técnico da composi­ção m usical. Se escolhemos ouvir uma sinfonia de Mozart in­terpretada pela Filarm ónica de Nova York, uma balada popular irlandesa executada pelos The Chieftains,' um refrão de jazz tocada pela grande banda de Stan Kenton, uma balada country por R icky Skaggs, uma execução de blues feita por B . B . King ou uma canção gospel cantada por A lv in Slaughter, nossa per­gunta in icia l deve ser a mesma: Esta é composição merecedora do seu género?

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3 4 6 JOHNATHAN DAVID HORTON

Uma segunda estrutura de referência requer que nos concen­tremos na cosmovisão apresentada na música. Em particular, estamos interessados na ideologia e normas morais, explícitas ou implícitas, da composição. Com respeito a esta estrutura de refe­rência, tanto a música séria quanto a popular devem ser avaliadas da mesma maneira que avaliamos outras obras de arte. Uma per­cepção comum, mas equivocada, é que a música séria e as belas artes têm um nível mais alto de moralidade do que a música popu­lar e as artes populares. Isto simplesmente não é verdade. Todo compositor, músico e artista tem uma cosmovisão. Essa cosmovi­são pode se harmonizar com as Escrituras, ou não. Não endossa­mos uma composição musical ou obra de arte como ideologica­mente sã ou moralmente boa, só porque satisfaz alto padrão de mérito técnico. “Como cristãos, temos de ver que só porque um artista - mesmo um grande artista - retrata uma cosmovisão por escrito ou na tela, não significa que devemos aceitar essa cosmovisão automaticamente.”37

mmnartcôi ScÁaefóen

Francis Schaefler suge­riu quatro padrões básicos para avaliar uma obra de arte. Embora Schaeffer fale primariamente da pintura, os padrões aplicam-se fa c il­mente à música.

I / 'xcelência técnica. A qualida­de técnica da música deve ser consi­derada totalmente à parte de sua mensagem ou de sua cosmovisão. A música é bem elaborada - melodia, estrutura harmónica, ritmo, forma, instrumentação/orquestração, con­traponto, unidade/contraste, e assim por diante? Pode haver variados graus de excelência técnica em cada um destes aspectos. Todas as outras coisas sendo iguais, quanto mais se sabe sobre mú­sica, mais precisa será a avaliação da qualidade técnica da música.

2. Validez. O músico é honesto consigo mesmo, com o género de música e com sua cosmovisão? A questão aqui tem a ver com a integri­dade do músico. Se o artista está cri­

ando uma obra de arte apenas por di­nheiro ou para ser aceito, seu trabalho carece de validez. A música brota do eu real - do eu autêntico?

3. Conteúdo intelectual. Todos os artistas têm uma cosmovisão que se evidencia pelo trabalho. Não importa quão grande ou famoso seja o artista ou músico, o corpo do seu trabalho deve ser julgado pela luz da verdade bíblica. De fato, quanto maior o artis­ta, maior será o impacto de uma cos­movisão negativa.

4. A integração do conteúdo com o veículo. O quanto se adaptam a forma e estilo musicais ao conteúdo da cos­movisão? O quanto se ajustam entre si os vários aspectos da música? Uma fuga para quatro vozes no estilo de J.S. Bach executada por brinquedos musicais soaria ridícula, mesmo que a composição seja de primeira linha e o desempenho impecável. (Schaeffer, Art & The Bihle [A Arle & a Bíblia) [Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1973 ], pp. 41-48.)

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MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 7

O Catecismo Westminster Menor nos conta que o objetivo prin­cipal de todo ser humano é “glorificar Deus e agradá-lo para sem­pre” . A música que você escolhe deve glorificar Deus e aumentar seu prazer nEle. 1 Coríntios 10.31 diz: “Quer [..] façais outra qual­quer coisa, fazei tudo para a glória de Deus” . Deus nos deu a mú­sica para que nós a desfrutássemos - tanto a música sacra quanto a secular. O mundo da música está aberto diante de você. Você é convidado a ir numa jornada, uma aventura incrível, para experi­mentar novos e gloriosos mundos da música.

Revisão e Questões para Discussão1. Quando alguém diz: “Essa música é tão bonita!” , em que estilo

de música você imediatamente pensa? Em que sua mãe pensaria? Sua avó?

2. Com relação ao estilo musical na adoração, como reconcilia­mos os princípios aparentemente contraditórios de 1 Timóteo 4.4,5 e1 Coríntios 8.9-13?

3. O mesmo estilo de música é apropriado para toda cultura? Explique.

4. Toda cultura precisa de uma variedade de estilos para expressar a vasta gama de adoração? Explique.

5. O que o autor quer dizer quando diz: “A música de romance, amor, família, amizade e de todos os assuntos da vida são apropriadas para o cristão e todas têm mérito. Porém, o princípio predominante para a nossa música é: Deus é a audiência primária!” ?

6 .0 que você acha que Thelonious Monk quis dizer quando disse: “Falar sobre música é como dançar sobre arquitetura”? Você concorda?

7. O que o autor quer dizer quando fala de audição como desem­penho? Ilustre.

8. Avalie os quatro critérios que Francis Schaeffer estabeleceu para avaliarmos uma obra de arte, usando duas composições musicais com as quais você esteja familiarizado - uma sacra e uma secular.

Bibliografia Selecionada

BER N STEIN , Leonard. The Joy ofMusic. Nova York: Simon & Schuster, Incorporated, 1954.

B EST , Harold M. Music Through the Eyes ofFaith. São Fran­cisco: Harper & Row Publishers, 1993.

BUDD, Malcolm. Music and the Emotions: The Philosophical Theories. Nova York: Routledge, Incorporated, 1985, 1992.

FLO YD , Samuel A . Jr. The Power o f Black Music. Nova York: Oxford University Press, 1995.

H O FFER , Charles R . The Understanding ofMusic, 5.a edição. Belmont, Califórnia: Wadsworth Publishing Company, 1985.

JOHANSSON, Calvin. Discipline Music Ministry: Twenty-first Century Directions. Peabody, M assachusetts: Hendrickson Publishers, 1992.

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3 4 8 JOHNATHAN DAVID HORTON

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LA W H EA D , Steve. Rock Reconsidered. Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1981.

M YERS, Kenneth A . All God’s Children andBlue Suede Shoes: Christians and Popular Culture. Westchester, Illino is: Crossway Books, 1989. \

PASS, David B . Music in the Church: A Theology o f Church Music. Nashville; Broadman Press, 1989.

SC H U LTZE, Quentin J. et al. Dancing in the Dark: Youth, Popular Culture and the Electronic Media. Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1991.

SO RGE, Bob. In His Face. Canandaigua, Nova York: Oasis House, 1994.

STO LBA, Marie K . The Development of Western Music: A History. Madison, Wisconsin: Brown & Benchmark Publishers, 1992.

ZORN, Jay D. Listening to Music. Englewood C liffs, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1991.

Notas bibliográficas1. Harold M. Best, Music Through the Eyes ofFaith (São Fran­

cisco: Harper & Row Publishers, 1993), p. 69.2. A lice Potosky, editora, Testimony to Music (Reston, Virgínia:

M ENC, 1986), p. 15.3. Isto não deve implicar que todas as suas músicas tenham letras.4. Alfred North Whitehead, TheAims o f Education (Nova York:

The Macmillan Publishing Company, 1929), p. 79.5. AbrahamA. Schwandron, Aesthetics: Dimensions for Music

Education (Washington: M ENC, 1967), p. 17.6. Entrevista com David van Koevering , M ighty Horn

Ministries, Cleveland, Tennessee, Maio de 1985.7. H. E . Huntley, The Divine Proportion (Nova York: Dover

Publications, 1970), p. 22.8.EncyclopediaBritannica, 15.a edição; no verbete: “Music, Western.”9. Francis A . Schaeffer, Art and the Bible (Downers Grove,

Illino is: InterVarsity Press, 1973), p. 34.10. Stan ley M . Horton, editor, System atic Theology

(Springfield, M issouri: Logion Press, 1994), pp. 250-253.11. Na música do mundo ocidental cada oitava é dividida em

doze semitons iguais, os quais então se repetem para cada oitava. A oitava é um fenómeno naturalmente ocorrente, no qual as notas soam “parecidas” quando vibram em múltiplos de dois, por exemplo, Lá = 440 é uma oitava mais alta que Lá = 220. Portanto, só há doze notas e as duplicações de suas oitavas para delas criar música.

12. Paul H indem ith, A Composer’s World (Cam bridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1952), p. 57.

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13. Ibid., p. 60.14. Aaron Copeland, Copeland on Music (Nova York: W. W.

Norton & Company, Incorporated, 1960), p. 63.15. W illiam Faulkner, The Faulkner Reader (Nova York: The

Modern Library, 1954), p. ix .16. Schaeffer, Art, p. 21.17. LaM ar Boschman, A Heart ofWorship (Orlando, Flórida:

Creation House, 1994), p. 38.18. George Steiner, Real Presences (Chicago: The University

of Chicago Press, 1989), p. 19.19. Joseph Machlis e Kristine Forney, The Enjoyment ofMusic,

6.a edição (Nova York: W. W. Norton & Company, Incorporated,1960), p. 260.

20. Calvin Johansson, Discipline Music Ministry: Twenty-first Century Directions (Peabody, M assachusetts: Hendrickson Publishers, 1992), p. vi.

21. Ralph Vaughn W illiams, TheMaking ofMusic (Ithaca, Nova York: Comell University Press, 1955), p. 55.

22. Leonard Bernstein, The Joy ofMusic (Nova York: Simon & Schuster, 1954), p. 15.

23. Malcolm Budd, Music and the Emotions: The Philosophical Theories (Nova York: Routledge, 1985, 1992), p. ix .

24. Copeland, On Music, p. 24.25. Pass, Music, pp. 42, 43.26. Ibid.27. Susanne K . Langer, Philosophy in a New Key. A Study in

the Symbolism ofReason, Rite, and Art (Cambridge, Massachusetts:Harvard University Press, 1942, 1951), p. 200.

28. Jeanne Bamberger, The MindBehind the Musical Ear: How Children Develop M usical Intelligence (Cam bridge,Massachusetts: Harvard University Press, 1991), p. 5.

29. Ibid ., p. 7.30. Jay D. Zorn, Listening to Music (Englewood C liffs, Nova

Jersey: Prentice-Hall, 1991), p. 3.31. Marshall McLuhan, Understanding Media: The Extensions

ofM an (Nova York: Signet Books, 1964), p. 33.32. Quentin J. Schultze et al., Dancing in the Dark: Youth,

Popular Culture and the Electronic Media (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1991), pp. 203-207.

33. Josh McDowelI e Bob Hostetler, Rightfrom Wrong (Dallas:Word Publishing, 1994), pp. 8, 9.

34. Kenneth A . Myers, All God’s Children and Blue Suede Shoes: Christians and Popular Culture (Westchester, Illino is:Crossway Books, 1989), p. 56.

35. Bob Sorge, In His Face (Canandaigua, Nova York: Oasis House, 1994), p. 56.

36. Schaeffer, Art, p. 41.37. Best, Music, p. 73.

MÚSICA QUE VEM DO CORAÇÃO DA FÉ 3 4 9

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10O Lugar da Literatura

noPensamento

Cristão

Twila Brown Edwards

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3 5 2 TWILA BROWN EDWARDS

No princípio, era o Verbo [...] e o Verbo era Deus.— João 1.1

Jesus não era teólogo. Ele era Deus que contava histórias.— Madeleine L ’Engle'

Recentemente meu marido e eu visitamos uma grande e nova livraria da Bames & Noble. Tantos livros e milhões de pa­lavras! Livros sobre religião, arqueologia, computadores,

viagem e jardinagem. Livros imaginativos de histórias, drama e poesia. Livros infantis, alguns de papelão, outros de pano para que pudessem ser lavados, muitos outros livros com ilustrações primorosas. Percorremos um longo caminho desde que o primeiro e grande livro, a B íb lia de Gutenberg, foi impresso na prensa de tipos móveis em 1456. Embora tenhamos uma sociedade altamente tecnológica, os livros nos são incrivelmente importantes. Amiza­des nascem e são alimentadas pelo compartilhamento de livros.

Os livros nos fazem rir, chorar, às vezes até causam mudanças dramáticas em nossa vida. Quando nosso filho era jovem, nossa fam ília viajava muitas vezes e, assim, passávamos muitas horas juntos na estrada lendo livros, principalmente literatura imagina­tiva. Ríamos bastante com as travessuras de Huck Finn e Tom Sawyer. Ficávamos sentados, admirados e silenciosos ao término da descrição que Madeleine L ’Engle fez do nascimento de um unicórnio.2 Choramos juntos silenciosamente quando percebemos que a irmã de Laura Ingalls, Mary, nunca mais voltaria a ver. Com frequência nos sentíamos mais unidos uns aos outros como famí­lia por causa das experiências da leitura compartilhada.

Hoje, percorrendo à esmo esta livraria enorme, pensamos no lugar da leitura de livros na vida do cristão. Com tantos livros disponíveis, como os cristãos podem fazer escolhas sábias? Ou muitos cristãos escolhem não ler literatura imaginativa absoluta­mente? É mais fácil assistir televisão do que ler? Neste capítulo, desenvolvo uma abordagem cristã à literatura imaginativa. Creio que ler a chamada grande literatura é parte essencial do desenvol­vimento de um pensamento Cristão saudável.

Minha crença na importância da literatura está fundada na pe­dra fundamental da própria literatura — a Palavra. O significado poderoso da literatura para uma cosmovisão cristã tem a ver com a ligação que vejo entre a palavra literária e o Verbo divino. Michael Edwards também sugeriu a ligação crucial entre Deus e a língua literária: “Deus não só tem um idioma, mas [...] é um idioma, ou ao menos [...] um modo de descrevê-lo, ou um aspecto dEle, é chamá-lo de ‘a Palavra’ .”3 Edwards opina que:

Não apenas a segunda Pessoa da Trindade, mas a terceira Pessoa tem esta referência linguística, pois Deus também é o Espírito, ou o So­

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O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO 3 5 3

pro, e embora o pneuma [o espírito, o sopro] tenha uma variedade absorvente de significado, como tem o logos [a palavra, a expres­são], sugere o sopro que é a base da fala. Mesmo na história da cria­ção que abre a Bíblia, observa-se que a narrativa do Espírito ou do Sopro de Deus que ‘se movia sobre a face das águas’, é seguida ime­diatamente por sua fala: ‘E Deus disse: Haja luz’, como se seu sopro estivesse se movendo em parte com a finalidade de expressar essas palavras.4

Deus criou o mundo pela Palavra. Além disso, quando o mun­do - inclusive o idioma - caiu, E le redimiu o mundo pela Palavra, Jesus Cristo, o Verbo. A literatura é importante, porque os artistas literários são “subcriadores” . Eles usam palavras para criar um mundo imaginário no qual entramos como leitores, a fim de nos vermos a nós mesmos e uns aos outros com mais nitidez como divinamente criados, como pecaminosamente caídos e como redimidos pela Palavra, de forma que quando voltamos para o nosso próprio mundo, tenhamos uma vida mais rica.5

Este capítulo explorará o modo como a literatura liga-se com quatro doutrinas importantes da fé cristã: A Criação, A Queda, A Redenção e o Pentecostes. Tentarei responder as seguintes per­guntas: 1) Por que a criatividade do artista literário é importante para o cristão? 2) Por que as representações literárias da Queda são importantes para o cristão? 3) Por que as representações lite­rárias da Redenção são importantes para o cristão? 4) Por que a literatura que emprega as imagens do Pentecostes é importante para o cristão?

A Criação

A I m p o r t â n c ia da C r ia tiv id a d e d o A rtista L it e r á r io

Deus começa sua história descrevendo o poder criativo das pa­lavras sobre o caos: “E a terra era sem forma e vazia; e havia tre­vas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Génesis 1.2,3, ênfase minha). No relato que Deus faz da Criação, o cená­rio, a terra, estava sem características distintivas, sem habitantes e no escuro. A primeira menção do Espírito retrata o sopro de Deus que fala Palavras poderosas, dando nascimento a partir do caos a um mundo de ordem.

O mundo de nossa vida também está muitas vezes caótico. A importância da criatividade dos artistas literários está relacionada diretamente com as nossas trevas caóticas. Nessas trevas, os artis­tas literários não diferentes de Deus à cuja imagem divina eles são criados vêm com seu mundo de história, moldados e criados pela estrutura e forma que falam ao caos dentro de nós. Entrando no mundo criado dos artistas literários, embora ele possa ser um Éden caído, somos capazes de restaurar e remodelar um pouco o nosso

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próprio Éden perdido. Por exemplo, o artista participa na criatividade do próprio Deus quando molda um mundo onde uma fera, como nós, pode ser amada por uma princesa cujo beijo trans­forma algo de nossa feiúra em beleza. A história cura um pouco de nosso ser interior caótico. A beleza da estrutura e forma criada pelo talento do artista - talento este dado por Deus - , nos devolve um pouco da beleza de nosso próprio Éden perdido.

Deus não apenas controlou o caos e fez nosso mundo, mas também criou a humanidade segundo a sua imagem divina. Como Michael Edwards ressalta, Deus, como Criador, nos formou “per­

sonagens” por sua palavra e sopro. Por sua Pa­lavra, E le nos fez à sua imagem; e por seu so­pro em nossas narinas, Ele nos deu o fôlego de vida. “Nossa própria existência depende de um ato de linguagem” . Além disso, o apóstolo Pedro explica que os crentes estão “ sendo de novo gerados, [...] pela palavra de Deus, viva e que permanece para sempre” , e acrescenta que “ esta é a palavra que entre vós foi

evangelizada” (1 Pedro 1.23-25, ênfase minha).6 Deus, então, nos deu nascimento e renascimento segundo a sua imagem por sua Palavra e Sopro. Se o artista literário é verdadeiro em suas obser­vações sobre a natureza humana, ele criativamente dá à luz a per­sonagens imaginários que nos ajudarão, quando lermos, a achar a imagem de Deus em nós mesmos.

Não só na criação de mundos, mas também na criação dos perso­nagens, o artista terrestre é um subcriador que imita Deus. Pelos ta­lentos dados por Deus, os artistas literários criam personagens que nos lembram de que somos criados à imagem de Deus, mesmo que nos vejamos abominavelmente caídos. Por exemplo, ler contos de fadas pode ajudar uma mãe desesperada a perceber que ela nem sem­pre parece aos filhos como uma madrasta má ou até uma bruxa, mas que ela, às vezes, parece como a fada madrinha boa e bonita.

Os contos de fadas também ajudam as crianças a dar sentido ao caos do seu mundo. Walter Wangerin Jr., por exemplo, conta como os contos de fadas lhe ajudaram a processar a confusão que, quando menino, tinha sobre os humores bons e ruins de sua mãe.7 Quando sua mãe lhe dava um beijou de boa noite amorosamente, ela cheirava a rosas e ele se sentia contente e seguro pelo abraço carinhoso dela. Na manhã seguinte, ele se levantava esperando encontrar as mesmas respostas amorosas dela. Porém, era confrontado por uma mulher que repreendia-o, porque ele tinha se levantado tarde, ralhava para que se vestisse depressa e fosse à escola, e ameaçava-o (e cumpria a amea­ça) fazê-lo ir a pé à escola, caso não ficasse pronto na hora certa. Ele se sentia rejeitado, culpado e confuso. Tomou-se retraído por não sa­ber como entender suas “duas mães” .

Porém, certo dia a professora leu para a classe a história da Branca de Neve com suas “duas mães, uma original e uma ma-

3 5 4 TWILA BROWN EDWARDS

Entrando no mundo criado dos artistas literários, somos capazes de restaurar e remodelar um pouco o

nosso próprio Éden perdido.

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O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO 3 5 5

drasta” . Este conto de fadas estimulou a imaginação do jovem Walter, libertando-o do medo de que havia algo nele que causava a mudança terrível da sua “mãe noturna” para a sua “mãe matuti­na” . E le pôde subconscientemente processar o __________________fato de que o mesmo ser humano, até uma mãe, é às vezes extremamente amoroso e, em ou­tras ocasiões, é tenso e irrefletido. Agora ele podia evitar conduzir a falta de amabilidade da outra pessoa para dentro dele de modo destrutivo. O conto de fadas tinha comunicado à criança algo importante sobre a humanidade.

Sustento que, em termos doutrinários, a Verdade (a Verdade de Deus) que a criança aprendeu por este conto de fadas foi que sua “mãe matutina” era a mulher que permitia que a queda obtivesse o melhor dela, enquanto que a “mãe noturna” era a mulher que per­mitia que sua imagem criada brilhasse por sua natureza caída.

Muitas mães, lendo Wangerin, podem se identificar fortemen­te, talvez redentoramente, com esse procedimento duplo para com os filhos. A história ajuda a mãe a lembrar que ela não apenas está miseravelmente caída, mas também é criada à imagem de Deus, e ajuda a criança a estabelecer ordem em seu mundo caótico. “A história que forma o universo da criança também forma a criança- e pela criança, o homem. A memória de um conto de fadas ar­dente pode influenciar o comportamento” .8

Até aqui procurei fundamentar meu argumento na importância da literatura na teologia da Criação, estabelecendo paralelos entre a criação divina de uma ordem boa no mundo e na humanidade, e a criação literária de uma ordem boa no mundo e na vida de personagens e leitores. Meu terceiro fundamento bíblico ao nosso argumento revela uma interseção fascinante deste parale­lo divino-literário.

Na história da Criação em Génesis, o próprio Deus, que tinha acabado de criar o universo nomeando-o, concede o poder da no­meação, do idioma, das palavras (os fundamentos da literatura) aos humanos. Depois de haver criado os animais, “o SENHOR Deus [...] os trouxe a Adão, [...] e tudo o que Adão chamou [no­meou] a toda a alma vivente, isso foi o seu nome” (Génesis 2.19). Da mesma maneira que Deus tinha criativamente falado: “Haja luz. E assim foi” , assim Adão criativamente falou: “Seja chamado ‘Avestruz’ . E assim foi” . Ao dar nome ao mundo, que foi derivado da palavra de Deus e era o texto (falado) de Deus, agora também se tomou o texto de Adão.9

Michael Edwards afirma que embora seja a palavra de Deus que tenha criado os animais, a “nomeação” de Adão ajudou a identificar a natureza destas criaturas. “Depois que a toda-po- derosa palavra de Deus tinha criado o mundo, a poderosa pala­vra humana de Adão, nomeando, pôde entrosar-se com o mun­do e modificá-lo” .10

"A história que forma o universo da criança também forma a criança

- e pela criança, o homem."— Walter Wangerin Jr.

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3 5 6 TWILA BROWN EDWARDS

Os artistas literários podem participar desta poderosa qualida­de da palavra humana de dar nomes. Esta capacidade de dar no­mes, documentada na passagem bíblica da Criação, ajuda-nos a integrar nossa teologia com nossa teoria literária, e dar uma res­posta energética à pergunta que abre esta primeira seção: Por que a criatividade do artista literário é importante para o cristão?

Primeiro, a criatividade do artista literário ajuda a vencer nos­so caos e nos restabelecer em algum sentido com uma ordem edênica. Segundo, a criatividade do artista literário nos ajuda a perceber a imagem divinamente criada em cada um de nós. E ter­ceiro, a literatura criativa pode ser vista como a continuação da comissão divina de usar a palavra para nomear, ou identificar, a verdadeira natureza de nós mesmos e do universo que nos cerca.

Concluo esta discussão sobre a Criação com dois exemplos de artistas literários que cumpriram essa comissão original, concen­trando-se criativamente no poder da nomeação da palavra literá­ria. Ao recontar para crianças a história da Criação, Jean Richards retrata humorística e imaginativamente o esforço de Adão para dar nome à borboleta:

jfyM ent ‘TZectá &6eatento*t

G. K . Chesterlon (1874-1936), importante escritor cristão, acredita­

va que os contos de fada o ti­nham preparado para crer no cristianismo. “Minha primeira e última filosofia, na qual creio com certeza ininterrupta, apren­di no berço. [...] As coisas em que mais cri então, as coisas que mais creio agora, são as coisas chamadas contos de fada” (p.

\ -* 49). Chesterlon aprendeu a éticai e a filosofia de “ ser alimentado

com contos de fada. Se eu esti­vesse descrevendo-os em detalhes, poderia notar muitos princípios no­bres c saudáveis que surgem deles. [...] Há a lição da ‘Cindercla’ , que é a mesma do M agnificat - exaltavit humiles |a exaltação da humildadej. Há a grande lição de ‘A Bela e a Fera’- uma coisa deve ser amada antes que seja amável. Há a alegoria terrível da

‘Bela Adormecida’ , que conta como a criatura humana era abençoada com todos os presentes de aniversário, con­tudo amaldiçoada com a morte; e tam­bém como a morte talvez possa ser suavizada por um sono. Porém, não estou interessado em quaisquer dos estatutos distintos da terra dos duendes, mas com o espírito inteiro de sua lei, que aprendi antes de falar e que per­manecerão quando eu não puder mais escrever. Estou interessado em certa maneira de olhar a vida que foi criada em mim pelos contos de fada” (p. 50). Para mais pormenores de sua visão so­bre os contos de fada, veja o Apêndice6, “G. K . Chesterlon e o Poder dos Con­tos de Fada” , no final deste livro.

Extraído de Gilbert K . Chesterlon, “The Ethics of Efland” (A Ética da Terra dos Duendes), in : Orthodoxy (Ortodoxia). Doubleday, Image Books, Nova York, Nova York, 1973.

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Deus pensou que faria algo diferente.Pegou uma pitada de barro e fez um corpo minúsculocom uma cabeça minúscula e seis pernas em miniatura.

Então acrescentou duas asas.Deus achou que as asas pareciam planas demais, então pintou-as com cores luminosas.

Ele colocou-a no ar, e a criatura começou a agitar as asas.“Que esquisito” , disse o Homem.“Acho que vou chamá-la de Borborema” .

Mas Deus franziu as sobrancelhas.O Homem pensou e pensou.Talvez Borborema não fosse o nome certo.“Já sei!”, gritou ele.“Borboleta!”

No instante em que o Homem disse a palavra,A borboleta elevou-se graciosamente, voando pelo céu."

Até uma criança entende que chamar algo (ou alguém) de uma qualidade que não possui, constitui uso desonesto da língua. Há um poder peculiar em dar o nome que identifica com precisão a verdadeira natureza da coisa ou do ser nomeado. Ao nomear com exatidão as qualidades de um personagem, às vezes o artista lite­rário ajuda nossas habilidades e talentos ocultos a levantarem vôo. Então, a literatura pode ser auxílio para que nos entenda­mos a nós mesmos e ao nosso mundo, dessa forma identifican­do e desenvolvendo essas qualidades boas que Deus tornou ine­rentes em nós e em toda a sua criação. Os psicólogos dizem- nos, por exemplo, que crianças inteligentes que muitas vezes são chamadas de “burras” ou “ ignorantes” , podem ter um de­senvolvimento mental muito abaixo do potencial delas. Da mesma m aneira que Deus estrem eceria com o nome de Borborema para uma criatura feita para voar, assim E le nos franziria as sobrancelhas quando chamássemos outras pessoas de certo modo que estreitasse as possibilidades delas descobrir a imagem divina nelas. Nomeando corretamente uns aos ou­tros e a nós mesmos, atividade na qual o artista literário grandemente pode nos assistir ajuda-nos a perceber nosso poten­cial como criaturas feitas à imagem de Deus.

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Madeleine UEngle, que diz que “todas as grandes obras de arte são ícones da Nomeação” ,12 também está interessada em aju­dar seus leitores a conscientizarem-se do potencial divino deles pela nomeação criativa. Em seu romance A Wind in the Door (Um Vento na Porta), UEngle cria personagens que sugerem que pode­mos ou nos compartimentar uns aos outros por nossos atos odio­sos, ou nos nomear uns aos outros por nossos atos amorosos.

Meg, jovem que repetidamente teve experiências negativas com o diretor da escola, é desafiada por uma escolha: enfatizar as qua­lidades ruins do senhor Jenkins ou lembrar-se do ato mais gentil que ela soube a respeito dele. Embora preferisse odiar o senhor Jenkins, no fim ela se esforça para lembrar o ato mais amável dele. Calvin, o bom amigo de Meg, é um jovem extremamente pobre que certa vez lhe falara sobre um ato amável feito pelo se­nhor Jenkins. Calvin fora forçado a ir para a escola usando uns sapatos que sua mãe lhe comprara numa loja de artigos usados. Meg se lembra da história de Calvin:

Custaram -lhe [para a mãe de Calvin] um dólar, que era mais do que ela podia gastar, e eram sapatos fem ininos clássicos, o tipo de sapatos pretos de am arrar que as m ulheres velhas usam, e no m í­nimo três tamanhos m enores que o meu. [...] Quando os vi, cho­rei, e então m inha mãe chorou. [...] Peguei um serrote e cortei os saltos dos sapatos, depois recortei a biqueira, de form a que pu­desse esprem er meus pés dentro dos sapatos, e fui para a escola. [...] Depois de alguns dias, o senhor Jenkins me chamou a seu gabinete e disse-m e que tinha notado que eu crescera mais que os meus sapatos e, por acaso, ele tinha um par extra de sapatos que, achava ele, me serviria. Ele tinha tido muito trabalho para fazer com que tivessem a aparência de usados, como se ele não tivesse saído e os com prado para m im .13

Embora Meg preferisse contar uma das muitas histórias nega­tivas que ela sabia do senhor Jenkins, ela repetiu a história do amável presente de sapatos que ele fez. A escolha de Meg de no­mear em vez de compartimentar o senhor Jenkins, suscita o me­lhor da natureza do diretor, ajudando a ele e à comunidade onde vive a crescerem em bondade, em vez de permanecerem prisio­neiros em seu ódio.

O leitor desta história também é nomeado, visto que o conta­dor de histórias nos ajuda a ver nosso poder de nomeação do bem sobre o mal. A nomeação feita pelo artista literário desenvolve o caráter do leitor. Assim como a poderosa palavra da nomeação de Adão, a nomeação do artista literário ajuda a restaurar um pouco a imagem de Deus em nós, que foi arruinada na Queda.

Deus criou o mundo por sua Palavra e Sopro, e comparti­lhou a palavra com Adão, dando-lhe o poder da palavra para nomear. Lemos a grande literatura criativa porque o artista l i­

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terário cria um mundo secundário no qual entramos a fim de nos vermos a nós mesmos e uns aos outros com mais clareza. As histórias criativas ajudam a dar ordem e forma a vidas chei­as de caos e escuridão. Esses artistas também criam persona-

John Milton (1608-1674) viveu durante tempos turbulentos: a deca­pitação de Charles I, como rei da In­glaterra, o começo e término da re­pública inglesa sob o governo de Cromwell. e a reinstalação da monar­quia sob o reinado de Charles I I . Seu pai educou John liberalmente, espe­rando que cie se tomasse pastor. Con­tudo, o jovem brilhante foi gradual­mente sentindo uma chamada para se tomar poeta. Mais tarde ele escreveu que “uma instigação interior agora cres­cia diariamente em mim, que por labor e estudo concentrado [...] somados com a forte propensão da natureza, eu pu­desse talvez deixar algo escrito para os dias vindouros, de modo que de boa vontade não deixassem que isso mor­resse” (“Church Government” [O Go­verno da Igreja], p. 668). Certamente que essa instigação interior era uma voz verdadeira, porque O Paraíso Perdido, de Milton, é considerado um dos mai­ores poemas da língua inglesa.

M ilton, quando tinha dez anos, compôs poesia em latina, e aos vinte e quatro anos já era poeta inglês realiza­do. Era fluente em mais quatro línguas- grego, francês, i tali ano e hebraico. Ele acreditava que se alguém quisesse ser um bom poeta, “devia ele mesmo ser um verdadeiro poema” (“Apology for a Pamphlet” LApologia a um Livrete], p. 694). Para Milton, ser um bom poeta significava ser primeiro uma boa pes­soa. Era sua crença que o poeta tinha poder semelhante ao de um pastor, de

instilar nas pessoas o desejo à virtude. Por isso, Milton usou sua pena poderosa para tentar trazer liberdade religiosa, so­cial, política e pessoal para a hu­manidade. Por ter escrito a favor da república e contra o retomo da monarquia, Milton escapou por um triz de ser condenado à mor­te, quando Charles II voltou ao trono. Embora a nova monarquia tivesse queimado os livros de Mi I- ton publicamente e ele tivesse sido encarcerado durante algum tempo, Milton sobreviveu milagrosamente para escrever uma das duas grandes epopéias inglesas: O Paraíso Perdido.

Embora eu não tenha citado O Para­íso Perdido neste capítulo, seu poema épico lida extensivamente com os temas da Criação e da Queda. Recomendo cm alta conta os insights poéticos de Milton sobre estas duas doutrinas, que são im­portantes para a discussão do lugar da literatura numa cosmovisão cristã.

A idéia de Milton sobre a aprendiza­gem de uma cosmovisão cristã é esta:

“O objetivo da aprendizagem é con­sertaras ruínas de nossos primeiros pais, tornando a conhecer Deus corretamente e, a partir desse conhecimento, amá-lo, imitá-lo, para ser como Ele é” (“Of Education” [Da Educação], p. 631).

As citações de Milton foram extraí­das da edição de Merritt Y. Hughes de John Milton: Complete Poems and Major Prose (John Milton: Poemas Completos e Grande Prosa). Odyssey Press, 1957.

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gens que nos ajudam a ver e nomear a imagem de Deus em nós mesmos, e nos nossos seres humanos companheiros. O que John M ilton diz sobre a educação aplica-se à literatura: As histórias ajudam a “ consertar as ruínas causadas por nos­sos primeiros pais” .14

A Queda

A I m portância das R epresentações L iterária s da Q ued a

Parte Um: A Importância de Ler Literatura sobre a Queda

Embora a toda-poderosa Palavra Deus tenha trazido à existên­cia um mundo glorioso e o seu Sopro brotasse vida em Adão, e embora a palavra humana tenha sido usada para nomear as criatu­ras de Deus, a palavra (e por extensão, a literatura) também parti­cipa da Queda. “Entre a palavra de Deus e a do homem se intro­mete a palavra da serpente” .15 No princípio, como nos lembra Michael Edwards, a serpente só procura levantar suspeitas das palavras de Deus: “E assim que Deus disse: ‘Não comereis de toda árvore do jardim ?’ E disse a mulher à serpente: [...] Do fruto da árvore que está no meio do jardim , disse Deus: ‘Não comereis dele, [...] para que não morrais” ’. Ficando mais corajoso, Satanás categoricamente contradiz as palavras de Deus: “Certamente não morrereis” (Génesis 3.1-4, ênfases minhas). Edwards faz comen­tários adicionais sobre este episódio:

E outra participação importante da linguagem, que distorce e trans­forma a grandeza do ato de Adão nomear na miséria da contradição e ambiguidade. Ao contradizer as palavras de Deus, a serpente pro­duz um a linguagem em conflito com o mundo, oposta, isto é, ao seu Criador e aos fatos, visto que Adão e Eva morrerão, e também em conflito com a linguagem em si. [...] A frase da serpente é o início da obscuridade semântica, e considerando que foi eficaz, deixou-nos um mundo no qual o significado já não é mais evidente e uma palavra igualmente incerta, conforme a interpretamos e confor­me a usamos.16

Depois de Adão e Eva terem participado da mentira da serpen­te, “foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus” . Quando Deus, passeando pelo jardim , pergunta onde eles estão, Adão responde: “Temi, porque estava nu, e escondi-me” (Génesis 3.7-10). A transparência desnuda do relacionamento de Adão e Eva entre si e com Deus acabou. Pelo fato de Adão ter tomado parte na mentira da serpente, ele tenta se esconder com folhas de figueira e com uma palavra decaída e enganosa. A pala­vra de Adão, embora fosse poderosa em sua criatividade para dar nomes aos animais, agora é caracterizada por falsidade e auto- ilusão. Ele distorceu a imagem de Deus nele.

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William Shakespeare (1564-1616) foi o maior dramaturgo de todos os tempos. Ele também foi um dos mai­ores poetas de todos os tempos, prova­velmente junto com Dante e Milton.

As 37 peças de Shakespeare for­mam um corpo de obra maior do que todos os outros dramaturgos por vári­as razões. 1) Ele escreveu renomadas peças em todas as formas dramáticas: tragédia, comédia, história, romance e tragicomédia. 2) Ainda que muitos outros dramaturgos tenham escrito obras de arte excepcionais, ninguém mais compôs tantas peças com tal poder dramático permanente. 3) Suas obras revelam um conhecimento pene­trante da natureza humana numa vari­edade surpreendente.

Shakespeare criou memoráveis personagens femininos. Beatriz (Mui­to Barulho para Nada), lógica e en­genhosa, nos encanta com suas a lfi­netadas jocosas em seu namorado, ao mesmo tempo em que se apaixo­na por ele. Viola (Noite de Reis), en­genhosamente imaginativa, protege sua pureza e engana até seu patrão com seu disfarce masculino, com muita destreza o tempo todo, mas também divertidamente, desenvol­vendo o enredo.

Personagens complexos como Hamlet (Hamlet) e Próspero (A Tem­pestade) ajudam-nos a sondar o mis­tério da personalidade humana. Shakespeare nos assusta com estudos íntimos de vilãos, como Ricardo I I1 (.Ricardo III), que sem misericórdia mata seus sobrinhos para ganhar o poder do trono. Mas ele também ex­trai nosso riso tumultuoso com um personagem como Dogberry (Muito

Barulho para Nada), que pronuncia mal as palavras e murmura seus esfor­ços de promulgar justiça. E entre seus personagens estão alguns dos amantes mais famosos na literatura ocidental: Romeu e Julieta, António e Cleópatra. O primeiro casal é jovem c inocente, o segundo, maduro e lascivo.

Os personagens de Shakespeare sempre são envolvidos em enredos que exigem honestidade m oral. Nem Ricardo II (Ricardo II) nem Ricardo I I I (Ricardo III) saem ilesos do i abuso do poder real. A cumplici­dade de Lady Macbeth no assas­sinato do rei Duncan (Macbeth) contribui pai a a sua psicose e sui­cídio. O orgulho vanglorioso de Malvólio é castigado por seu iso­lamento da sociedade (Noite de Reis). O gênio de Shakespeare em criar personagens tem nos entre­tido e nos dado modelos a imitar; mas ele também nos ajudou a rechaçar o mal.

Talvez a medida mais óbvia da pe­netração shakespeariana na cultura ocidental seja a nossa citação dele - muitas vezes inconscientemente - para definir a nós mesmos e as nossas situ­ações. Estas citações nos farão lembrar da qualidade duradoura das declara­ções dos seus personagens:

“ Para mina é grego” .“Ser ou não ser: eis a questão” .“O que há num nome? Com ele

chamamos uma rosaQue por qualquer outro nome chei­

raria tão docemente” .Shakespeare nos deixou um lega­

do duradouro com sua criação de una mundo povoado de personagens me­moráveis: caídos e redimidos.

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No relato do Génesis, Adão e Eva têm de deixar o jardim do Éden e continuar seu casamento em circunstâncias muito abaixo do ideal. O seu relacionamento transparente, como também a pa­lavra, foram para sempre arruinados. “Um abuso da palavra [...] provoca a Queda, e é uma palavra caída que o casal agora mortal leva consigo para o exílio .” 17

Edwards sugere que o artista literário também experimenta as consequências desta queda linguística. T . S. Eliot, um dos poetas mais importantes do século X X , expressa os esforços dolorosos do escritor para dar forma e poder à história pelas palavras, só para descobrir este resultado da maldição: as palavras “deslizam, escorregam, perecem” .18 Considerando que antes da Queda as pa­lavras eram veículo de energia criativa, agora os seres humanos têm de lutar para transmitir significado. Apesar desta maldição linguística, os artistas literários (talvez melhor que qualquer um de nós) retiveram o dom criativo da nomeação. Na seção da Cria­ção deste capítulo, vimos a habilidade do escritor imaginativo em nomear a bondade da humanidade segundo criado à imagem de Deus. Aqui estamos interessados na habilidade do artista literário de verdadeiramente nomear a queda da humanidade.

A mais alta chamada do cristão é conhecer a verdade. Em últi­ma instância, claro que isso significa conhecer a Cristo que se caracterizou assim: “Eu sou [...] a verdade” (João 14.6). Conhecer a Cristo também significa conhecer as pessoas pelas quais Ele morreu para salvá-las. Embora ler sobre indivíduos grotescamen­te caídos possa ser incómodo para os cristãos, entender a Queda também faz parte da verdade da natureza humana. A verdade nem sempre é bonita. Se somos fiéis à nossa chamada para conhecer a verdade, não podemos evitar a fealdade horrenda da Queda. Le­mos tal literatura para nos ajudar a entender a verdade do poder do pecado. Somos chamados a conhecer a verdade de Deus - toda ela, até a parte feia e caída.

Argumentarei nesta seção que os cristãos devem ler literatura sobre a fealdade da Queda por duas razões básicas: 1) Para bene­fício próprio, e 2) para benefício do próximo. Primeiro, ao verda­deiramente nomear na literatura a humanidade caída, os escritores ajudam-nos a ver o pecado em sua fealdade crua e, assim, aju­dam-nos a repudiar (em lugar de tentadoramente atrair) o compor­tamento caído.19 Segundo, ao nomear verdadeiramente a humani­dade caída, os grandes artistas podem nos dar insights sobre com­portamentos caídos específicos que ajudam-nos a melhor com­preender e dar testemunho20 ao nosso próximo caído.

Primeiro, discutirei os benefícios daquele que lê grande litera­tura, que nos adverte contra os efeitos da Queda. W illiam Shakespeare, o maior dramaturgo na língua inglesa, fornece exem­plo constrangedor de nomear as consequências desastrosas da Queda em sua tragédia Otelo. Shakespeare deixa claro nesta peça que o fim trágico do casamento entre Otelo e Desdêmona é base­

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ado numa mentira da serpente. Otelo, general do exército veneziano e mouro, ganhou o amor da bonita Desdêmona e casou-se com ela contra o desejo do seu poderoso pai cristão. Otelo promoveu Cás- sio em vez de lago para o cargo de lugar-te- nente. Ciumento e irado por não ter sido pro­movido, lago engendra e executa um esquema vingativo: Ele planta dúvidas na mente de Otelo relativas à fidelidade da esposa. Ao longo da primeira parte do drama, Shakespeare demons­tra a queda da palavra fazendo muitos dos seus personagens chamar (ou nomear) lago de “lago honesto” . Enquanto isso, a língua desonesta de lago enlaça o marido e a esposa e, no final, destrói o casamento. O uso que Shakespeare faz da ironia permite o leitor participar da ambiguidade da língua, causada pela mentira da serpente. A disparidade entre o que lago diz e o que ele quer dizer retrata poderosamente para o leitor o uso enganoso da língua. O leitor sente que ele foi forçado a sair do jardim do Éden, onde a palavra foi comparada com a realidade, e entrou no mundo caído onde a língua “desliza e escorre” e causa a morte. Embora a mentira nem sempre cause morte física, causa frequentemente morte psicológica, social e espiritual.

lago sugere a Otelo que Desdêmona está tendo um caso com Cássio. Tendo o lenço de Desdêmona (que havia sido dado a ela pelo marido amoroso) caído no quarto de Cássio, lago leva Otelo a acreditar na mentira sobre a infidelidade dela. As cenas entre lago e Otelo são assustadoras. O vilão sugere cuidadosamente a Otelo que sua esposa é infiel, porém faz suas insinuações em quan­tidade o suficiente para fazer Otelo pensar que ele está tentando honestamente proteger Otelo de ficar ciumento. A mistura calcu­lada de verdade e mentiras feita por lago tece uma rede de dúvidas que causa um ciúme furioso no marido confiante, o que dá fim ao casamento dele e o leva a matar a esposa, e em seguida a si mes­mo, por ter acreditado na mentira de lago.

A semelhança da serpente, lago contradisse as palavras da ver­dade e destruiu um marido e uma esposa. O retrato que Shakespeare traça do engano de lago leva o leitor a rejeitar um caráter que usa a língua para tornar ambíguo o significado da realidade. Ler lite­ratura como a de Shakespeare, que revela a crueldade deste cará­ter caído, ajuda os cristãos a identificar a fealdade da Queda e a evitar trapaças malignas. Tiago nos manda resistir ao diabo, e este fugirá de nós (Tiago 4.7). É muito mais fácil resistir à tentação de usar as mentiras da serpente, quando prestamos atenção à voz dos artistas literários que revelam a vileza da natureza humana caída.

Não só a nomeação artística do mal ajuda os cristãos a repudi­arem o mal, como acontece no caráter dos outros (por exemplo, de lago), mas também ajuda os cristãos a identificar as mesmas características caídas neles. Infelizmente, às vezes os cristãos são iludidos ao pensar que são imunes ao mal. As caracterizações ar­

Somos chamados a conhecer a verdade de Deus - toda ela, até a

parte feia e caída.

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tísticas mostram o poder e o engano do pecado. Otelo era um ho­mem bom. E le era fie l no trabalho; comandava bem o exército veneziano; era respeitado pelos homens sob seu comando; era ci­

dadão obediente à le i; era amigo excelente de lago; amava Desdêmona afetuosamente. Não obstante, ele se deixou ser preso pelo pecado e enganado para assassinar a própria esposa, a quem tão afetuosamente amava. Os cristãos pensativos, que se permitem serem confronta­dos pelos trabalhos do artista, farão uma pau­sa na leitura de tal história e pensarão Se não fosse pela graça de Deus, eu também seria

enganado, mas também percebem Eu também tenho a capacida­de do mal destrutivo. Um antídoto para não sermos iludidos pelo mal é estudarmos — sensivelmente e reflexivamente — a nature­za mortal dos personagens imaginários. Os cristãos caídos não são menos pecadores do que os não-cristãos caídos. A grande lite­ratura nos ajuda a nos conhecer e, talvez, melhor resistir às nossas tendências caídas.

A segunda razão principal por que acho que os cristãos devem ler literatura sobre a Queda tem a ver com os benefícios aos não- crentes. Embora ler literatura tenha valor intrínseco para os leito­res cristãos, os cristãos também podem tornar-se melhores teste­munhas da verdade e da graça de Deus, se tal leitura os ajudar a entender o comportamento caído dos não-crentes. Certamente que os cristãos não devem participar do pecado para entender melhor o pecador. Mas ao ler sobre um personagem caído, o cristão ganha insights que, quando compartilhados, ajudam o pecador a consi­derar seriamente os méritos da fé em Cristo.

Certa vez ensinei a uma jovem que tinha sido criada num lar cristão, onde fora abrigada do mais horroroso da humanidade ca­ída. Quando ela se casou com um homem cuja chamada ministeri­al era para uma região menos favorecida, com população pobre e densamente povoada, ela sentiu-se completamente despreparada para lidar com as profundidades da Queda que encontrou nas ruas. Ler romances que caracterizam os tipos de personalidades que ela encontrou poderia ter ajudado a preparar esta mulher para o mi­nistério na cidade.

Parte Dois: A Importância de Ler ResponsavelmentePor acreditar plenamente que ler literatura resulta nestes dois

benefícios (para nós mesmos e para os não-crentes), pedi que os alunos lessem obras da literatura sobre seres humanos caídos. A l­guns alunos objetaram: “Por que os alunos cristãos devem ser for­çados a ler a grande literatura que retrata a Queda mediante a lin­guagem de personagens corruptos?”

Respondi que para ser grande, a literatura deve retratar verda­deiramente a condição humana. Certa perspectiva cristã inclui ao

Um antídoto para não sermos iludidos pelo mal é estudarmos -

sensível e refletidamente - a natureza mortal dos personagens

imaginários.

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menos duas coisas: 1) Os seres humanos têm enorme potencial para o bem, porque são feitos à imagem de Deus e receberam a “graça comum” ; mas. 2) os seres humanos também têm potencial para o mal por causa da Queda.

Os personagens da grande literatura serão complexos. Até uma pessoa má manifestará qualidades boas; e as melhores pessoas podem exibir uma falha trágica. Os artistas literários devem ser verdadeiros à imagem de Deus e à Queda nos personagens que criam.

Muitos dos meus alunos prefeririam ler so­mente sobre “personagens bons” . Contudo, se devemos entender a verdade sobre a condição humana, será que não nos é necessário também ler sobre o verda­deiramente caído - o marido que abusa da esposa, o assassino em série, o trapaceiro que abusa da boa fé de cidadãos idosos, rou­bando suas escassas poupanças? Ao criar personagens deste tipo, o escritor deve ser verdadeiro para com as personalidades desses personagens. Um viciado em drogas, que sobrevive nas ruas du­rante muitos anos, não falará como um professor de Escola Do­m inical, que dedicou a vida para tornar viva as histórias da Bíblia. O escritor se engajaria em certa desonestidade, se retratasse tal personagem de outro jeito. O escritor também não estaria partici­pando da mentira da serpente?

Embora meus alunos sejam frequentemente ajudados por esta resposta, muitos deles ainda estão preocupados por terem que ler literatura que contém tais representações francas do comportamento caído. A resistência deles pode ser resumida na seguinte pergunta: “Será que os benefícios potenciais da leitura desse tipo de litera­tura ‘pecaminosa’ não seriam anulados pelo dano provável cau­sado à fé dos leitores?” Analisando a questão friamente, a res­posta seria “ Sim ” . Porém, creio que a solução a este dilema acha-se na leitura responsável. Na segunda parte desta seção, procurarei tratar desta preocupação válida, respondendo estas outras perguntas relacionadas: O que os cristãos responsáveis devem ler? Como os cristãos responsáveis devem ler? Quando é mais responsável não ler?

O que os Cristãos Responsáveis Devem LerPrimeiro, vamos pensar sobre nossa responsabilidade pelo que

lemos. A cosmovisão cristã exige que sejamos bons mordomos de nosso tempo. Então, devemos ler só a grande literatura. Ficção mal-escrita não é digna de nosso tempo. Dorothy Sayers, novelis- ta que eloquentemente defendeu a fé cristã, distinguiu a grande literatura do “mero entretenimento” . Definir a grande literatura não é fácil. Os escritores imaginativos e críticos no decorrer dos séculos têm lutado para explicar a grande literatura. Não pretendo examinar todas estas idéias neste capítulo, mas algumas compara­

Os personagens da grande literatura serão complexos. Até

uma pessoa má manifestará qualidades boas.

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ções entre a grande literatura e o mero entretenimento nos ajuda­rão a distinguir que tipo de literatura é merecedora do tempo e da dedicação do cristão.

A grande literatura nos ajuda a reconhecer o eterno no tempo­ral. Quando lemos Otelo, sentimos que Shakespeare está escre­vendo sobre algo maior que o drama deste homem e sua esposa. Está alcançando pela história uma realidade maior, uma reali­dade que inclu i todas as relações de amor, todos os ciúmes, to­das as traições. Sentimos que Shakespeare está alcançando o eter-

* ofiotúfy A . S<zyen&Em sua biografia de Dorothy L .

Sayers (1893-1957), David Coomes refere-se a esta mulher notável como “uma apologi sta da fé cristã em livros rigorosamente argumentados, como

The Mind o/The Maker (A Men­te do Fabricante), peças de pro­porções épicas como The Zeal o f Thy House (O Zelo da Tua Casa), e como ‘a tradutora imaginativa’ de A Divina Comédia, de Dante.[... | Ela era amável, generosa, en­tusiástica, robusta, opiniosa e autocensuradora, contraditória. [...1 O cristianismo, é justo di­zer, dominou a maior parte da

vida de Sayers” (p. 7). E la escreveu vários romances detetivescos, nos quais Lord Peter Whimsey é o herói. Sayers escreveu uma série sobre a vida de Cristo para a rádio B B C , cha­mada O Homem Nascido para ser Rei. A série tornou-se extremamente popular e eficaz, visto que coloca a v ida do Senhor num cenário humano realista.

Em Creed or Chaos (Credo ou Caos), uma compilação dc ensaios, Sayers faz um comentário sobre o linguajar das peças sobre Jesus: “Nós singularmente o diminuímos em hon­ra, diluindo sua personalidade até que não possa ofender uma mosca. Com

certeza, não é o negócio da Igreja adap­tar Cristo aos homens, mas adaptar os homens a Cristo” (p. 24). Em The Mind of the Maker (A Mente do Fabrican­te), trabalho teológico, ela acusa os ingleses seus companheiros de não te­rem feito progresso desde a Idade Média em sua habilidade de descrever a fé cristã. Como Sayers observa: “As palavras são compreendidas em um sentido completamente enganoso, de­clarações dc fatos e opiniões são mal interpretadas e torcidas com a repeti­ção, os argumentos fundados em mal- entendidos são aceitos sem exame” (p. x i). A consequência deste desmazelo é que a mente comum é submergida com uma mixórdia de mitologia ilógi­ca e improvável, exibindo-se como ver­dade cristã. Sayers propôs, num livrete intitu lado “ The Lost Tools of Learning” (As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem), um remédio edu­cacional para esta tragédia linguística: “Verso e prosa podem ser aprendidos de cor, e a memória do aluno deve armazenar histórias de todo tipo - clássica, mito, lenda, e assim por di­ante” (p. 18). E la aconselha os cris­tãos a engajar crianças e jovens em ri­gorosa educação, o que necessariamen­te inclui a leitura responsável de lite­ratura importante.

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no, onde, algum dia, serão removidos todas as traições e ciú­mes, e a grande relação matrimonial entre Cristo e sua Noiva durará por toda a eternidade.

Dorothy Sayers nos apresenta um conceito d ifíc il, mas impor­tante, da grande literatura: ela transforma o abstrato em concreto. Mais adiante, Sayers diz acreditar que o cristianismo contém um modelo divino para este conceito.21 Por exemplo, nos é d ifícil co­nhecer Deus, porque E le é espírito; de certo modo, E le é abstrato. Deus decidiu que precisamos vê-lo concreta- mente, tocá-lo, ouvi-lo. Assim , E le mandou Jesus ao mundo num corpo material. Refletin­do sobre este fato, o escritor aos Hebreus cha­mou Jesus de “a expressa imagem”22 do Pai (Hebreus 1.3). Em linguajar moderno, poderí­amos dizer que Jesus era a fotocópia do Pai.Olhando Jesus, agora sabemos que Deus é amável, amoroso e perdoador; E le também fica consternado pelo pecado. Então, Deus nos revelou sua natureza pela imagem expressa dEle (“representação exata” , versão bíblica americana da N IV ), Jesus.

Semelhantemente, na grande literatura, se um poeta nos quer explicar uma experiência humana abstrata, como “amor” , ele tam­bém usa imagens concretas. Por exemplo, Robert Burns, queren­do explicar o seu amor por uma mulher, escreve: “Meu amor é como uma rosa vermelha, vermelha” . Ao dizer que o seu amor é como uma rosa, este grande artista deu ao seu amor um corpo material. A imagem da rosa é útil, porque explica imediatamente a suavidade, a fragrância, a beleza (sim , o espinho!) do amor duma maneira que a palavra abstrata “amor” não pode.

Como subcriador, o verdadeiro artista literário nos revela a Verdade por imagens. Claro que a atividade do artista não é a cri­ação do nada que só Deus faz, porque “o artista humano está no universo e é limitado por suas condições. Ele só pode criar dentro daquela estrutura e com o material que o universo fornece” .23 Não obstante, da mesma maneira que Deus encarnou a verdade sobre Ele por sua imagem expressa, ou representação exata - Jesus - , assim, na grande literatura o artista encarna em palavras sua expe­riência, dando a ela um corpo material.

Como outra maneira de definir o que é grande literatura, Sayers explica como esta encarnação da experiência do artista pode nos ajudar à medida que lemos a grande literatura: “Na imagem da sua experiência, podemos reconhecer a imagem de alguma expe­riência nossa - algo que tinha nos acontecido, mas que nunca tí­nhamos entendido, nunca tínhamos formulado ou expressado a nós mesmos, e nunca conhecido como experiência real” .24

Por exemplo, qual de nós, degustando a literatura em A Bela e a Fera, não teve aquele momento de reconhecimento que também temos um pouco de brutalidade dentro de nós que precisa ser trans­

Na grande literatura o artista encarna em palavras sua

experiência, dando a ela um corpo material.

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formada pelo beijo amoroso de alguém? Sayers diz que este reco­nhecimento da experiência que acontece quando lemos a verda­deira literatura “é como se uma luz fosse acesa dentro de nós” :

Agora que o artista [...] o imaginou [...] para mim, posso possuí-lo, retê-lo, torná-lo meu e transformá-lo numa fonte de conhecimento e força. [...] Este reconhecimento da verdade que obtemos com o tra­balho do artista, chega-nos na qualidade de revelação de nova verda­de. [...] [Esta obra da literatura] dá um novo conhecimento sobre nós mesmos dentro do alcance do nosso entendimento. É novo, surpre­endente e, talvez, dilacerante.25

Estas revelações surpreendentes e dilacerantes são importan­tes para os cristãos que desejam entender-se a si mesmos e ao mundo de Deus. E este reconhecimento importante da realidade ocorre quando lemos a verdadeira literatura. Samuel Coleridge, poeta do século X IX , chama a revelação encamadora que ocorre na grande literatura de “translucidez do eterno pelo temporal e no temporal” .26 O grande escritor toma uma idéia eterna compreensí­vel mediante uma imagem temporal.

Uma cosmovisão cristã exige que não passemos pela vida ape­nas permitindo que os eventos nos aconteçam. Antes, temos de pensar em tais coisas (Filipenses 4.8), profundamente experimen­tando e compreendendo Deus, nós mesmos, os outros seres huma­nos - todo o mundo criado por Deus. Nas palavras de Coleridge, através da grande literatura vemos o eterno na imagem temporal e pela imagem temporal - uma atividade necessária para o cristão.

Embora seja a grande literatura o que o cristão deva ler, Sayers mostra que o leitor típico não lê frequentemente este “tipo de lite­ratura criativa e cristã” . Tipicamente, a maioria dos leitores (tal­vez até a maioria dos leitores cristãos) não quer “ se aborrecer com súbitas revelações sobre [eles mesmos]. [...] Querem entreteni­mento” .27 Concordo com Sayers que o mero entretenimento é o que os cristãos não devem ler.

Mas o que há de errado com uma dieta de mero entretenimen­to? A pseudo-literatura nos “dá o prazer das emoções que normal­mente acompanham a experiência sem termos tido a experiência” .28 Meras histórias de entretenimento são como novelas, proporcio­nado-nos algumas emoções sangrentas de assassinatos ao término de Otelo, mas sem termos experimentado a destruição agonizante de ciúme que a peça de Shakespeare exige de nós. Os thrillers da pseudo-literatura prevalecente em nossa cultura deixam de desen­volver qualidades características significativas dentro de nós, por­que o enfoque está completamente na ação, em vez de estar na construção do caráter.

Por exemplo, se A Bela e a Fera tivesse sido produzida como pseudo-literatura, a Bela teria a experiência gloriosa do beijo que transforma a Fera no Príncipe sem ter passado pela experiência

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desagradável - mas que desenvolve o caráter - de ter amado e repetidas vezes reagido à Fera em sua feiúra.

Sayers explica eloquentemente por que o “mero entretenimen­to” deve ser evitado pelo cristão:

[O mero entretenimento] não nos revela a nós mesmos: somente pro- jeta numa tela mental um quadro de nós mesmos como já nos imagi­namos ser - só que melhores e mais inteligentes. O fabricante desse tipo de entretenimento de nenhuma maneira está interpretando e re­velando sua própria experiência a ele mesmo e a nós - está ou culti­vando suas próprias fantasias, ou - ainda mais falsa e perdoavelmente- está dizendo: ‘O que é que o público gostaria de sentir? Vamos mostrar o que as pessoas desejam, de forma que possam nadar na emoção fingindo tê-la vivido’ . Este tipo de pseudo-literatura é litera­tura de ‘realizar desejos’ ou literatura de ‘fuga’ no pior sentido - é uma fuga [...] da realidade e experiência num mundo de aconteci­mentos meramente exteriores. [...] Para relaxamento ocasional é vá­lido; mas pode ser levado ao ponto em que, não somente a literatura, mas o universo inteiro de fenómenos se toma uma tela na qual ve­mos a projeção aumentada de nossos “eus” irreais, com o objetivo de sentirmos emoções igualmente irreais. Isto provoca a corrupção com­pleta da consciência que já não pode reconhecer a realidade na expe­riência. Quando as coisas chegam a esta situação, temos uma civili­zação que “vive para se divertir” - uma civilização sem firmeza, sem experiência, e fora de contato com a realidade.29

A vida é muito curta até para lermos tudo o que é digno de ser lido na grande literatura. Fazemos bem em evitar o mero entrete­nimento que nos faz perder contato com a natureza repugnante do mal e contribuir para a deterioração da consciência moral, que é o fundamento de nossa civilização. Portanto, os cristãos devem evi­tar o mero entretenimento e ler a grande literatura.

Como os Cristãos Responsáveis Devem LerSe os cristãos devem ler a grande literatura - o que inclui per­

sonagens caídos - então como os cristãos deveriam ler sobre estas pessoas imorais? O leitor cristão tem a responsabilidade de enfocar a verdade eterna (segundo é apresentada nos personagens caídos e temporais), em vez de enfocar as ações caídas dos próprios perso­nagens. Por exemplo, podemos ler com a intenção de compreen­der o horror de usar outra pessoa como objeto físico, a injustiça de alguém tomar de outro ser humano o que não lhe pertence, a me­nos que esse indivíduo esteja disposto a assumir um compromisso vitalício. Ou podemos ler e nos chafurdar nas descrições de suas ações imorais. O escritor do mero entretenimento enfatiza as ações pecadoras dos caídos, frequentemente com pouca preocupação com o crescimento do caráter ou as consequências do pecado. Por ou­tro lado, um grande artista enfoca o caráter do caído. Os leitores

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cristãos, se não prestarem atenção às alternativas, poderão errone­amente enfocar o ato em vez do caráter, mesmo quando lêem a grande literatura. Só enfocar o ato é considerar o pecado muito ligeiramente e tolerar em vez de lamentar a tragédia do que aquele pecado está fazendo à alma do personagem. Mas nossa cosmovisão cristã requer que leiamos responsavelmente e pro­curemos a “verdade eterna” no caráter do indivíduo caído. Por­tanto, os cristãos têm de escolher o que ler responsavelmente (limitando-se à grande literatura) e como ler (enfocando as ver­dades eternas que estão por trás dos atos pecadores e não enfocar os atos em si).

Quando E mais Responsável não LerUma questão final relativa à leitura da literatura que descreve

personagens caídos precisa ser tratada: Como cristãos, devemos evitar completamente ler certas grandes obras da literatura, se es­tas contêm representações de seres humanos caídos? A resposta

bíblica parece ser: “Sim” . Então, quando é mais responsável para o cristão não ler tais obras da literatura? Paulo diz que os cristãos não de­vem se sujeitar a atividades que os condenem: “Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas, se come [carne oferecida a

ídolos], está condenado, porque não come por fé; e tudo o que não é de fé é pecado” (Romanos 14.22,23). Temos de nos conhecer e evitar algumas obras da grande literatura que até podem nos ser destrutivas. Não é porque haja alguma coisa intrinsecamente má na boa literatura. Bem ao contrário. Gastei este capítulo inteiro detalhando os benefícios que podem advir da grande literatura. Mas (assim como com a carne oferecida a ídolos nos escritos de Paulo) as pessoas não devem ler uma obra da literatura se, ao fazê-lo, os leve a tropeçar.

Mesmo aqueles que, nas palavras de Paulo, não são condena­dos, mas sentem-se chamados a entender o mundo caído, devem ter cuidado com o que lêem e como lêem. Flannery 0 ’Connor, escritora cristã do século X X , faz uma advertência num contexto ligeiramente diferente que nos pode ser útil. Aconselhando como construir a fé, ela sugere que “para cada livro que você ler que seja anticristão, encarregue-se de ler um livro que apresente o ou­tro lado do retrato” .30 Claro que não estou falando de livros que sejam “anticristãos” , mas, antes, de personagens que são maus. Mas a precaução de 0 ’Connor é importante palavra de advertên­cia a todos nós para nos conhecermos a nós mesmos e sermos vigilantes sobre o que, como e quando lermos. Por quê? De forma que leiamos responsavelmente a grande literatura sobre a Queda, a fim de recolhermos benefícios poderosos para nós mesmos e para o próximo não-crente.

Temos de nos conhecer e evitar algumas obras da grande literatura que até podem nos ser destrutivas.

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A Redenção

A Im portância das R epresentações L iterárias da R edenção

Sugeri que a principal contribuição da doutrina da Criação para a nossa teoria da literatura é lembrar os leitores caídos que eles são criados à imagem de Deus. Reciprocamente, argumentei que a doutrina da Queda, segundo nos é representada na literatura, faz lembrar àqueles que agem como se estivessem aperfeiçoados à imagem de Deus, que realmente estamos caídos. Outro modo de descrever a função da Queda na literatura é di­zer que é um veículo do Espírito para ajudar a nos convencer de nosso estado caído e nos re­cordar que estamos necessitados de redenção.Uma razão adicional por que os cristãos de­vem ler a grande literatura, é que as letras re­tratam fortemente nossa necessidade e as pos­sibilidades poderosas da transformação reden­tora. Nas palavras de Michael Edwards: “Se a leitura bíblica da vida for de alguma forma ver­dadeira, a literatura será fortemente atraída para esse sentido. O Éden, a Queda, a Transformação, em qualquer forma exterior, emergirá na literatura como em todos os outros lugares” .31

Esta “Transformação” arquetípica, ou o que chamamos mais comumente de a Doutrina da Redenção ou Salvação, provavel­mente nos é a mais fam iliar como leitores cristãos. Não nos es­queçamos, porém, que a figura redentora central nesta história de salvação era um Espírito “abstrato” e divino que foi feito concreto na Palavra. Além disso, este Jesus percebeu o que levou quase dois m il anos para a psicologia humana descobrir: que as pala­vras, usadas como imagens concretas nas histórias, são meios po­derosos de ajudar as pessoas a mudar de comportamento.

Paul Watzlawick resumiu o trabalho do destacado psicólogo Milton H. Erickson e de outros psicólogos que buscam determinar meios de ajudar os pacientes a transformar suas vidas para me­lhor. Eles descobriram o poder dos elementos redentores nas ima-

gem concretas dâsààtoms. O(réa&o de éricéson mostrou que a mudança duradoura no comportamento dos seus pacientes acon­tecia mais frequentemente, não quando ele apelava para a lógica, mas para a metáfora, símbolo e imagem.32 A energia das imagens concretas não poderia ser uma das razões por que Jesus veio como a imagem expressa de Deus Pai? Imitando a Imagem, tornamo- nos mais como o Pai. Uma coisa é entender nosso estado de caí­dos; outra, é saber cooperar com o Espírito Santo para transfor­mar nosso comportamento. Esta é uma razão principal por que Jesus contava histórias.

Por exemplo, E le conhecia o poder da imagem de um pai que corre de braços abertos para um filho pródigo. Esta imagem trans­mite o amor incondicional e redentor de Deus com mais vigor do

"Se a leitura bíblica da vida for de alguma forma verdadeira, a

literatura será fortemente atraída para esse sentido."— Michael Edwards

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A fim de tornar-se o 'Deus que contava histórias', a verdadeira e divina Palavra se tornou carne.

que uma declaração preposicional, como “Deus nos ama mesmo quando nos desviamos” . Muitos de nós fomos profundamente transformados nos recessos de nosso ser pela imagem do pai ves­tindo roupas novas num filho que antes estava vestido com trapos cheirando a sujeira. E quem de nós leria sobre o grande banquete com boi cevado e desejaria voltar ao chiqueiro e comer alfarrobas?

E quando lemos as imagens daquele banquete feito pelo pai terrestre, um desejo profundo surge em nós por um Banquete ainda maior, as Bodas do Casamento do Cordeiro, quando nossa redenção será completa.

___________________ Na Nova Jerusalém comeremos comidadivina e beberemos o néctar das árvores da vida

que crescem ao longo do rio, que flu i do trono de nosso Noivo divino. A maneira redentora em que Jesus usa as palavras nesta parábola passam do temporal para o eterno, transformando-nos por estas imagens que nos ajudam a experimentar o abraço da graça de Deus. E isto o que Madeleine UEngle quis dizer na pas­sagem que escolhemos como epígrafe para este capítulo: “Jesus não era teólogo. Era Deus que contava histórias” .

Para o propósito deste capítulo, eu poderia resumir a doutrina de Redenção da seguinte maneira: A fim de tomar-se o “Deus que contava histórias” , a verdadeira e divina Palavra se tomou carne; Ele usou nossa linguagem e foi tentado, como nós, a falar a men­tira da Serpente. Jesus, a Palavra divina, viveu uma vida perfeita que só usa a palavra para o bem, sempre procurando restaurar seus seguidores à imagem original dada por Deus mediante suas pala­vras. Em última instância, a Palavra nos redimiu pela abnegação extenuante dEle na cruz e por sua ressurreição gloriosa. E le nos tomou isto possível para que nos revistamos “do novo homem, que, segundo Deus, é criado em verdadeira justiça e santidade” (Efésios 4.24).

Ao longo deste capítulo tracei paralelos entre as ações da Dei­dade e do artista literário. Não estou sugerindo, obviamente, que o artista literário tenha o mesmo poder de redenção (ou salvação) como Cristo, a Palavra. Porém, estou convencida de que como criaturas - criadas à imagem divina da Palavra e autorizada pela Palavra como nomeadora - os artistas literários podem se tomar instrumentos eficazes da redenção divina. O grande artista literá­rio encarna a Verdade em suas palavras e ajuda a ocasionar uma transformação gloriosamente redentora no leitor por um processo de composição que, em muitos casos, envolve longas e estafantes horas de atenção dedicadas às suas palavras literárias.

Uma das razões por que as representações literárias da reden­ção são tão importantes para os cristãos, é que quando os artistas literários prestam tal atenção dedicada a temas redentores, eles nos dão a esperança de que o nosso estado caído pode ser redimido. Por exemplo, muitos artistas literários voltaram a atenção à histó­

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ria de São Jorge e o Dragão: autores de contos de fada, histórias de crianças e epopéias (como as de Edmund Spenser), como tam­bém os ilustradores e artistas visuais de todo o mundo. Os ele­mentos redentores são fortes nesta história. Sem dúvida, esta re­petição da história de São Jorge auxilia a satisfazer nossa necessi­dade profunda de ouvir inúmeras vezes que o “dragão” em nós pode ser morto e que podemos ser salvos.

A repetição da esperança da redenção precisa aprofundar-se intimamente na trama de nossas vidas. Por que é importante para os cristãos lerem a grande literatura redentora? Ler tal literatura, quer a história de redenção seja manifesta ou não (e frequentemente não é), alimenta a nos­sa esperança, pois essa literatura reitera que a Queda não é a palavra final para os seres hu­manos. Estas histórias proclamam as boas no­vas de que temos possibilidades gloriosas de transformação.

A história contada no romance e no filme A Lista de Schindler também ilustra considera­velmente estes elementos redentores. A história está cheia de cru­eldades que as pessoas perpetram umas às outras. Mas dentro des­ta tragédia de tortura, abuso sexual e execuções em massa, ocorre a transformação gradual do coração de um homem que resulta na preservação de 1.200 judeus.35 O próprio Schindler não era santo. Era avaro, mulherengo, oportunista e interesseiro. Contudo, ele também tinha possibilidades (dadas por Deus) de praticar a bon­dade que gradualmente o levou a considerar a vida preciosa e dig­na.

Em uma cosmovisão cristã, as ações que reconhecem a digni­dade da vida provêm de Deus e são tornadas possíveis por sua “graça comum” , não importado o quanto a pessoa seja falha. Não é incomum que a redenção apareça de maneira estranha, e sob a, mortalha da maldade: Jesus pendurado numa cruz sob uma nu­vem que obliterava o sol é uma imagem central de nossa cosmovi­são cristã. Os seres humanos, cristãos e incrédulos, precisam ler a grande literatura para que a repetição constante destes elementos redentores, que podem transparecer pela Queda em nós, ao menos parcialmente redimam a imagem de Deus em nós.

Acabamos de examinar algumas obras da literatura que con­têm alguns elementos redentores claros. Mas por que o cristão deveria ler grandes obras da literatura, que não parecem ter qualquer qualidade redentora manifesta? Por exemplo, por que o cristão deveria ler uma tragédia que parece terminar em des­truição em vez de redenção? Ou por que o crente deveria ler uma comédia que parece não levar nada a sério, sobretudo nes­te assunto sério como a doutrina da Redenção? Tratarei destas questões e fecharei esta seção retornando a Shakespeare. A tra­gédia Romeu e Julieta e a comédia Sonho de uma Noite de Ve­

Parece que nascemos sabendo que o dragão existe. Até as crianças sentem e temem o mal no mundo

simbolizado pelo dragão.

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rão, ambas de Shakespeare, nos ajudarão a explicar como o cristão pode achar a redenção até nos lugares mais imprová­veis e, outra vez, por que a grande literatura é tão vitalmente importante para o cristão.

Embora a princípio possa não parecer óbvio, o impulso para a redenção é até forte nas histórias de tragédia. Feudos familiares, como o que Shakespeare retrata em Romeu e Julieta, são bastante comuns. Shakespeare espelha o ódio causado pela Queda eloquen­temente. Mas sua peça também caracteriza um forte impulso para a redenção:

O ódio é uma condição de nossas vontades corrompidas, de nossa queda da graça, e busca destruir o que é gracioso nos seres humanos. Nesta discussão cósmica, o amor tem de pagar o sacrifício, como fazem Romeu e Julieta com suas vidas, mas porque suas mortes são percebidas finalmente como o custo de tanto ódio, as duas famílias daqui por diante são obrigadas a concordar com a culpa coletiva de­las e decidir serem merecedoras dos sacrifícios.36

Não diferentemente da “tragédia” do drama do Evangelho, o potencial para a redenção nesta peça shakespeariana surge da morte sacrificatória.

Por muitos anos os Capuletos, a fam ília de Julieta, eram os inimigos mais figadais dos Montéquil, a fam ília de Romeu. Ironi­camente, um Capuleto e uma Montecchio se apaixonam sem per­ceber suas ligações familiares. Quando Julieta Capuleto fica sa­bendo que Romeu é um Montecchio, a queda e o poderoso amor da redenção unem-se no clamor dela:

Meu único amor brota do meu único ódio!Vi o desconhecido muito cedo, e o conhecido muito tarde!O nascimento prodigioso do amor é para mim,Que eu tenha de amar um inimigo detestado.37 Apesar do ódio mútuo das suas fam ílias, os dois jovens ino­

centes sentem o amor que, no fim , remirá ambas as fam ílias. Quan­do, desconhecido para as duas fam ílias, Romeu e Julieta implo­ram que o frade Lourenço os case, ele consente, na esperança de que este matrimónio possa em última instância ser redentor:

Eu serei o teu assistente;Para que esta aliança tão feliz prove,Tomar o rancor de tua casa em amor puro.38

Mas a união santa não cura as feridas de ódio imediatamente. Antes que se desse a cura redentora, uma catástrofe acontece. O

antigo medo de Julieta: “Meu sepulcro é como minha cama de núpci­as” ,39 realmente se toma realidade. Em uma rixa de rua entre os Montecchio e Capuletos, Romeu mata um dos parentes de Julieta e é

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banido de sua pátria. O frade Lourenço inventa um plano para reunir os jovens amantes novamente, dando a Julieta uma poção que a fará parecer morta, mas, na realidade, estará num sono profundo. Uma mensagem é enviada a Romeu para vir e encontrar a Julieta adorme­cida na tumba familiar, mas Romeu nunca recebe a explicação. Mais tarde, ele entra furtivamente na tumba, pensa que Julieta está real­mente morta e se mata. Quando Julieta desperta e vê seu amado Romeu morto ao seu lado, ela também acaba com a vida. O ódio familiar trouxe resultados trágicos a estes dois jovens amantes. Mas assim como a esperança redentora surge da morte na história cristã, assim também o amor e a reconciliação surgem da morte ao término da história shakespeariana. Ambas as famílias permanecem ao lado dos corpos mortos dos jovens amantes, enquanto o príncipe as repreende:

Capuleto! Montecchio!Vede que castigo é colocado em vosso ódio,Que o céu encontre meios de matar vossas alegrias com o amor.40

As duas fam ílias dão um aperto de mão em sinal de amizade redentora sobre os corpos sacrificados dos filhos. A reconciliação foi cara, mas eficaz. Um símbolo da união redentora destas duas fam ílias tinha acontecido durante a noite em que Romeu e Julieta ficaram juntos, antes que ele fugisse de sua cidade natal. Deveria ter havido muitas outras noites de amor para este jovem casal ide­alista, mas suas vidas foram sacrificadas. Com a morte deles, po­rém, surge o amor redentor e a reconciliação. Um leitor cristão encontra grandes artistas que comunicam tais verdades redentoras pela mais trágica das histórias.

O Bobo ou o Palhaço constrói um total dinâmico, desde a nossa de­gradação até a nossa possibilidade de redenção. Sem dúvida é em parte pelo fato de que ele desce, comicamente, em nossos medos de nós mesmos e do mundo e, comicamente, nos levanta, o que nos atrai tão poderosamente a ele. Na roupa de [Charlie] Chaplin, as calças compridas folgadas, a jaqueta bem justa e as botas enormes são con­trapostos pelo chapéu-coco, gravata-borboleta, bengala e bigode. O vagabundo também é um dândi. Um palhaço de circo quase não con­segue subir a escada, então anda para o outro lado numa corda bam­ba num show de falta de jeito e pânico, que desmente um virtuosismo emocionante. Subitamente terrificado, o Arlequim dá uma camba­lhota para trás, sem derramar uma gota dos copos de vinho.41

O palhaço simultaneamente revela nossa condição incapacita­da e oferece esperança para nosso potencial de sermos restaura­dos à nossa imagem e habilidades virtuosas originais.

Pelo caráter apalhaçado de Bottom, em Sonho de uma Noite de Verão, Shakespeare nos projeta no palco o tolo, a natureza empavonada de nossa condição caída, mas também o desejo de

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sermos novamente amados em nossa condição original. Oberon, o rei das fadas, deseja punir sua esposa, Titânia. Oberon ordena que a conivente Puck (uma fada que gosta de pregar peças nos outros) coloque nos olhos de Titânia uma poção de amor que a fará se apaixonar pela primeira criatura que ela v ir quando acor­dar. Enquanto isso, Puck acha Bottom, um tecedor cômico, e amarra nele a cabeça de um burro. Shakespeare quer que veja­mos o humor de nossa condição caída em Bottom ,42 Seu papel de bode expiatório é evidente nas palavras de Bottom, quando seu amigo Snout o vê primeiro e fica surpreso com a transforma­ção de Bottom num burro:

Snout: O Bottom, tu mudaste! O que vejo em ti?Bottom: O que vês? Tu vês uma cabeça de asno de ti mesmo, não é?43

Bottom, inconsciente da mudança em sua condição, espanta todos os seus amigos para fora do palco. Os leitores desta peça reconhecem na palhaçada à la burro de Bottom a própria e empa- vonada natureza caída deles. Não quero dizer que o pecado é en­graçado ou alegre. Mas a tolice de Bottom pode nos fazer perce­ber o quão distantes vagueamos da imagem nobre de Deus em nós. Rindo de Bottom, podemos imaginar nossos medos de nosso próprio estado caído e ressuscitarmos nossas esperanças de trans­formação.

Quando Titânia desperta, vê Bottom, e imediatamente expres­sa amor por ele, suas palavras trazem a esperança da transforma­ção da condição de burro dele. “Eu purgarei tua grosseria mortal” , diz a Bottom, “de modo que tu irás como um espírito aéreo” .44 O leitor também deseja fugir de sua “grosseria mortal” , causado pela mentira da serpente, e voar para aquele jardim divino de beleza e inocência restauradas. Depois, quando a cabeça de burro é remo­vida, Bottom desperta do que acredita ter sido um sonho:

Tive uma visão muito rara. Sonhei, além da graça do homem dizer que era sonho: homem que é senão um asno, se ele empreende expor este sonho. Pareceu-me que era eu - não há homem que possa me dizer. Pareceu-me que era eu - e pareceu-me que eu tive - , mas o homem é senão um bobo remendado, se ele for propor dizer que me parecia que eu tive. O olho do homem não ouviu, o ouvido do ho­mem não viu, a mão do homem não é capaz de provar, sua língua de conceber, nem seu coração de relatar, o que foi o meu sonho.45

Rimos do desfiguramento de Bottom, de suas sensibilidades enuviadas e da confusão de sua linguagem. Mas também ficamos aliviados ao ver sua cabeça de animal ser transformada novamen­te em ser humano. Se Bottom recuperou sua imagem de ser huma­no, talvez haja esperança de que seu linguajar confuso e suas sen­sibilidades também venham a ser redim idas.

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Shakespeare nos deu uma história hilariante que traz imagens da Queda, mas também dá a esperança da transfiguração. A histó­ria nos dá a esperança de que nossa queda também possa ser redimida, que nossa feiúra possa ser transformada em beleza, que nosso linguajar caído experimentará uma “nova língua” , que nos­sa natureza como burro possa ser transformada uma vez mais à imagem de Deus.

Os cristãos devem ler grandes comédias, porque o humor e o riso têm o potencial de descrever (e talvez até de efetuar) transfor­mações milagrosas e redentoras. Michael Edwards acredita que a comédia leva ou “dá acesso aos milagres. [...] O riso é um dos meios pelos quais parecemos [...] [ir além deste mundo], O riso é a percepção da possibilidade” .46

Edwards sugere que a história de Abraão e Sara é um exemplo de riso que “dá acesso aos milagres” . Que um homem de cem anos e uma mulher de noventa anos pudessem ter um filho sem dúvida se aproxima do reino da comédia. Quando Deus fala a Abraão que a estéril Sara será “mãe das nações” , Abraão cai sobre o seu rosto e ri do ridículo da sugestão. Deus transforma o riso de Abraão em possibilidade redentora olhando à frente no nome que dá ao filho deles: “Chamarás o seu nome Isaque [que significa riso]” (Génesis 17.19). Deus aqui usa o poder de “nomear” e trans­forma o ridículo em realidade. Algum tempo depois, quando Sara ouve o Senhor profetizar a Abraão: “Certamente tomarei a ti por este tempo da vida; e eis que Sara, tua mulher, terá um filho” (Génesis 18.10), Sara também ri do ridículo de dar à luz tendo um corpo enfraquecido.

Mas o riso depreciativo de Sara é transformado no milagre do seu riso jovial no dia do nascimento de Isaque. Naquele dia Sara disse: “Deus me tem feito riso” . E Sara percebe que o seu riso jovial será multiplicado e estendido no futuro, quando ela prediz o riso de todos nós ao percebermos o milagre do seu corpo velho poder dar à luz. Sara declara: “Todo aquele que o ouvir se rirá comigo” (Génesis 21.6). Sara tinha razão. O leitor ri, porque tais histórias de comédia nos dão acesso ao milagre do renascimento, renovação, redenção. Esta comédia produz até maior riso jovial em particular, quando o leitor percebe que a risonha Sara não só foi mãe de Isaque (o próprio “Riso” ), mas também por esse modo “mãe” de Cristo (a própria Redenção).

Então, por que uma cosmovisão cristã deveria exigir ler a grande literatura redentora - até literatura como tragédia e comédia, nas quais a redenção não está evidente? Uma tragédia é frequente­mente esquematizada numa linha descendente. A prosperidade do protagonista começa no ponto alto, mas cai em direção a uma morte final, por causa de uma falha da personagem principal. Otelo está no topo do exército veneziano e casado com sua amada, mas ao término da peça ele e a esposa jazem mortos no palco por causa do ciúm e dele. Por outro lado, uma comédia é comumente

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esquematizada numa linha ascendente. A prosperidade do prota­gonista começa no ponto baixo, mas sobe dramaticamente, muitas vezes terminando num casamento. Às vezes a subida é ajudada pela intervenção de outra personagem. Os seres humanos come­çaram no ponto mais alto possível - trazidos à existência pelo Sopro e pela Palavra de Deus num jardim idílico, como vimos em nosso estudo da doutrina da Criação. Mas, como comentamos em nossa discussão da Queda, o diagrama da história humana cai nitida­mente por causa da mentira da serpente. O género humano in­teiro foi encaminhado para a morte, mas há uma virada dramá­tica em forma de V ,47 à medida que nossa história é transformada numa comédia com a morte catastrófica de Jesus Cristo.

J. R . R . Tolkien, o famoso escritor cristão de fantasia, define

dou emocionantemente a história humana trágica numa comédia que term inará - como tradicionalmente terminam as comédias - num jubiloso casamento entre Cristo e seus seguidores. A mesma voz que falou na Criação e veio como a Palavra falará novamente. João diz: “E o que estava assentado sobre o trono disse: E is que faço novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5).

A história bíblica começa num jardim com uma árvore da vida e termina numa cidade com muitas árvores da vida. No meio está uma queda trágica, que é refletida em nossas histórias de tragédia. Mas nestas mesmas histórias estão fortes elementos redentores

res na grande literatura nos dirigem para aquela Redenção final, que terminará num casamento jubiloso quando nossa salvação e a comédia divina estarão completas. Enquanto isso, a restauração do processo redentor continua em nós através da palavra da reno­vação e capacitação do Pentecostes, a doutrina final que desejo discutir neste capítulo.

nal da Igreja: o Pentecostes. Esta é doutrina vital para nossos pro­pósitos neste capítulo, visto que esta história bíblica enfoca forte­mente a língua e é, portanto, crucial para completar nossa discus­são de uma abordagem cristã sobre ler literatura. Michael Edwards afirma: “Nesta ocasião [no Pentecostes], [...] a língua é colocada em primeiro plano como nunca antes. Pois se o Espírito vem no Pentecostes como um começo e um penhor da transformação fu­tura do mundo, seu sinal é a transformação miraculosa, muito acen- tuadamente, da fala dos apóstolos” .49 O Pentecostes, cena que con-

O diagrama de este evento como um eucatástrofe (“boa catástrofe”), a morte e auma tragédia ressurreição da Palavra que se fez em carne.48 Na cruz, Jesus mu-

O diagrai uma con

(ou comédia). As histórias trágicas e cómicas refletem a realidade maior do Éden, da Queda e da Redenção. Os elementos redento-

O Pentecostes

O diagrama da história

cristã À

A I m p o r t â n c ia d e L it e r a t u r a q u e E m p r e g a

I m a g e n s d o P en t e c o s t e s

Ao concluir este capítulo, gostaria de examinar a doutrina fi-

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O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO 3 7 9

trasta nitidamente com a cena em Babel, descreve uma “restaura­ção da língua e mais” . Os escritores participam desta restauração da língua e mais “em atos de nomeação” .50

No livro de Atos, os apóstolos (e, por extensão, a Igreja intei­ra) recebem a comissão pentecostal para irem a todo o mundo e restaurá-lo ensinando a Palavra. Junto com esta comissão, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo para nos capacitar a completar nossa meta: “Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (Atos 1.8). Não muito tempo depois, no dia de Pentecostes, Deus cum­priu sua promessa descendo na pessoa do Espírito Santo sobre os apóstolos como línguas de fogo: “De repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repar­tidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falas­sem” (Atos 2.2-4).

Naquele dia, o Espírito Santo capacitou a Igreja a renomear - ou traduzir em outras línguas - a verdade do Evangelho de Cristo. No dia de Pentecostes, o nome de Jesus Cristo foi literalmente “renomeado” nas línguas dos “partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, e Judéia, e Capadócia, e Ponto, e Ásia, e Frigia, e Panfília, Egito e partes da Líb ia , junto a Cirene, [...] e cretenses, e árabes” (Atos 2.9-11).

Este dom divino de renomear é paralelo direto do dom divino de nomear dado a Adão. Na criação, Deus identificou a humani­dade nomeando-os à sua imagem. Mas a capitulação diante da mentira da serpente levou Adão e Eva a tentarem esconder sua condição caída. A identidade que receberam de Deus ficou con­fundida. A redenção iniciou a restauração da imagem de Deus na humanidade; o Pentecostes fornece o poder para levar a mensa­gem redentora. Acredito que os artistas literários estão entre os que foram comissionados e espiritualmente capacitados para res­taurar e renomear seus leitores pelo uso inflamável da língua lite­rária que, explícita ou implicitamente, ensina o Evangelho da C ri­ação, da Queda e da Redenção. Também acredito que as imagens concretas pelas quais a Escritura comunica a história do Pentecos­tes merecem atenção especial: “um vento veemente e impetuoso” e “ línguas [...] de fogo” .

Primeiro, discutirei brevemente o significado desta imagem pentecostal. Por último, examinaremos a questão por que os cris­tãos devem ler essa grande literatura, considerando um dos mui­tos textos nos quais os artistas literários usam estas imagens de Pentecostes para criar histórias poderosas, que ajudam a renomear e nos restaurar.

Tanto a palavra hebraica quanto a grega traduzidas por “vento” também podem ser traduzidas por “ sopro” ou “ esp írito” .

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3 8 0 TWILA BROWN EDWARDS

Lingiiisticamente, esta passagem no Pentecostes se alia com o so­pro de Deus em Adão, o fôlego da vida, no nascimento da huma­nidade. No nascimento da Igreja aqui em Atos, Deus soprou uma língua restaurada nos seus apóstolos e no restante dos 120, os quais agora têm de proclamar a graça salvadora de Cristo, visto que Ele ascendeu ao Pai.

Nas cabeças desses discípulos, que esperavam no cenáculo, repousou uma “língua de fogo” . A imagem de fogo na Escritura frequentemente conota a presença de Deus. Das numerosas ima­gens, seguem dois exemplos. A chamada de Moisés para ser o libertador de Israel da escravidão egípcia veio de uma sarça ar­dente. Esta história evoca temor no leitor, à medida que a voz vin­da da sarça ardente usa língua intensificada para expressar a natu­reza de Deus que está chamando e capacitando Moisés: “EU SOU O QUE SOU” . As palavras vindas do fogo, que não consome, con­vencem Moisés a liderar uma libertação que se tomou o arquétipo de todas as libertações de opressão em nosso mundo de hoje. An­tes da experiência da sarça ardente, Moisés tinha “ se nomeado” a si mesmo de “pesado de boca e pesado de língua” (Êxodo 4.10), mas Deus diz: “Eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar” (Êxodo 4.12). Depois da experiência de fogo de Moisés, ele tirou os escravos da escravidão para serem renomeados como o povo escolhido de Deus.

Um segundo exemplo da imagem de fogo representando a pre­sença de Deus é retratado na experiência do forno de fogo ardente de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego (Daniel 3). Northrop Frye acredita que a imagem de fogo, como indicação da presença de Deus, é tão prevalecente na B íb lia que quase parece que Deus deseja que o crente viva no fogo.51 Certamente esta história apoi­aria a intuição de Frye. O forno de fogo ardente, projetado para a destruição dos três jovens hebreus (e que realmente consumia aque­les que nele eram lançados), é facilmente suportado por estes ra­pazes fié is. Eles entram no fogo acompanhados por uma figura que Nabucodonosor descreveu ser “ semelhante ao filho dos deu­ses” . Estes três hebreus vivem no fogo, mas - assim como a sarça ardente encontrada por Moisés não são consumidos por ele. Semelhantemente, na história do Pentecostes, a presença do fogo de Deus toca a língua quando seu Espírito vem habitar nos corpos humanos. E o vento, o fogo e a Palavra de Deus unem-se para indicar a mais nova invasão de Deus na história da humanidade.

Como vimos no decorrer deste capítulo, o artista literário usa, participa ou torna-se instrumento das forças chaves de cada uma das principais doutrinas bíblicas que estudamos. Tal é o caso tam­bém para o Pentecostes. Por exemplo, C . S. Lew is, um dos maio­res escritores cristãos do século X X , usa com eficácia estas ima­gens do Pentecostes para restaurar e renomear seus leitores em O Sobrinho do Mago, uma das Crónicas de Narnia. Nesta história, o leão Aslan (símbolo de Cristo) canta o mundo de Narnia à existên-

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cia numa voz “tão bonita” que os que a ouvem “mal podem suportá- la” .52 Lewis retrata convincentemente o poder criativo de Aslan pela linguagem da música. Polly, uma das crianças na história, começa a ver “a conexão entre a música [de Aslan] e as coisas que estão acontecendo. Quando uma fileira de abeto escuro brota num cume há cerca de cem metros, ela percebe que está relacionada com uma série de notas profundas e prolongadas que o Leão tinha cantado um segundo antes. E quando ele irrompe numa série rápi­da de notas menos acentuadas, ela não fica surpresa ao ver prímulas que aparecem de repente em todas as direções” .53

Depois a canção do Leão muda outra vez: “Era mais seme­lhante ao que chamaríamos de melodia, mas também era mais do que selvagem. Fazia você querer correr, saltar e subir. Fazia você querer gritar” .54 A voz de Aslan transforma gradualmente o Nada escuro e vazio num mundo fértil, onde animais felizes moem e relincham, latem e berram com vida alegre, unindo suas vozes com a voz de Aslan, numa canção feliz.

Lewis une o poder da voz de Aslan na criação ao poder da restauração da língua no Pentecostes, combinando as imagens do sopro, do fogo e do vento remanescentes do derramamento do Espírito Santo no nascimento da Igreja. O Pentecostes, o discurso dos apóstolos tem um toque milagroso que lhes dá poder que não

De acordo com Northrop Prye, um ar­quétipo é “uma imagem típica ou recorren­te, [... | um símbolo, que conecta um poema com outro e assim ajuda a unificar e integrar nossa experiência literária” (Anatomy o f Criticism: Four Essays [Anatomia da C ríti­ca: Quatro Ensaios]. Princeton: Princeton University Press, 1957, p. 99). Leland Ryken define arquétipo como “uma imagem, tipo de personagem ou tema de enredo que ocor­rem periodicamente ao longo da literatura (como também ao longo da vida). Os arqué­tipos são os blocos de construção da litera­tura e os ingredientes de nossas vidas” (Words ofLife: A Lilerary Introduction to the New Testament [Palavras de Vida: Uma In­trodução Literária ao Novo Testamento]. Grand Rapids: Baker Book House, 1987, p. 22). O arquétipo de jornada é um exemplo. Os personagens que partem numa jornada

com destino a outro país são retratados numa ampla variedade de literatura: a jornada de Odisseu saindo de Tróia para a sua casa em Itaca; a saída de Abraão de sua pátria à pro­cura da terra prometida; a peregrinação dos filhos de Israel pelo deserto em busca de um novo país; a viagem de Huckleberry Finn descendo o rio M ississip i, uma jo r­nada a uma compreensão madura de sua amizade com Jim , o americano africano, a quem seus anciões tinham maltratado; a viagem da fam ília de Joade partindo de Oklahoma para a Califórnia, procurando uma terra melhor para melhorar suas con­dições económicas; a viagem dc Jesus do céu à terra e de volta ao ccu em sua ascen­são. Talvez o arquétipo de jornada seja pre­valecente na literatura, porque compara nossa própria jornada do nascimento ao longo da vida até a morte.

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são deles para proclamar o Evangelho. De modo semelhante, Aslan sopra em alguns dos animais de Namia, dando-lhes a fala humana:

O Leão abriu a boca, mas não saiu nenhum som; ele estava soprando uma sopro longo e morno; parecia dominar todas as feras à medida que o vento balançava uma fileira de árvores. [...] Depois veio um flash rápido como fogo (mas não queimava ninguém) ou do céu ou do próprio Leão [...] e a voz mais profunda e mais selvagem que jamais tinham ouvido dizia: “Namia, Narnia, Namia, desperte. Ame. Pense. Fale. [...] Sejam feras que falem”.55

A língua animal dos narnianos é tocada pelo sopro criativo de Aslan, inflamado pelo vento da presença de Deus, que capacitou, mas não consumiu. Os animais narnianos recebem a língua huma­na, um dom muito além de sua natureza animal. O leitor também participa da Criação e do Pentecostes, ajudando a restaurar e refa­zer seu caráter. Respondendo às palavras de fogo de Aslan, o le i­tor também é encorajado a compreender mais perfeitamente, a amar, pensar, falar, ser.

Depois deste comissionamento linguístico dos animais, a Pa­lavra criativa de Aslan literalmente refaz outro personagem do romance, Cabby (outrora motorista de táxi em Londres) que passa a ser o novo rei de Namia. Depois de também chamar a existência a esposa de Cabby na Namia recentemente criada, Aslan fala as palavras de fogo que renomeiam estes dois personagens: “ ‘Meus filhos’ , disse Aslan, fixando os olhos em ambos, ‘vocês serão o

laveis apologias populares à fé cristã escrita no século X X . Muitas das idéi- as teológicas contidas em Cristianis­mo Puro e Simples Lewis também ex­pressou ficliciamentc nos sele roman­ces que compõem As Crónicas de Narnia. Outras obras importantes são A Alegoria de Amor (1936), sobre o amor romântico medieval, e as iróni­cas Cartas do Inferno (1942). Ele tam­bém escreveu fantasias de planetas cósmicos com implicações morais, por exemplo, Fora do Planeta Silencioso (1938), e crítica.

Para informações adicionais sobre Lew is, veja Apêndice 7, “C . S. Lewis” , no final deste livro.

C . S. Lewis (1898-1963) foi es­critor inglês, destacado por sua expo­sição das doutrinas cristãs. Durante muitos anos, ele foi ateu. Sua jorna­da ao cristianismo começou quando

leu P hantastes , de George MacDonald, um romance de fan­tasia que Lewis diz que “batizou sua imaginação” . Através desta experiência pessoal, Lew is veio a entender o poder redentor da literatura imaginativa. Tendo lu­tado para crer em Deus, Lewis tornou-se influente em explicaro cristianismo aos intelectuais.

! Seu livro Cristianismo Puro e Sirn-I pies é considerado uma das mais no-

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O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO 3 8 3

primeiro rei e a primeira rainha de Narnia’ A língua de fogo de Aslan transforma esse motorista de táxi em rei! Até o cavalo de Cabby, Strawberry, recebe um nome novo e se toma nova criatu­ra. Depois de perguntar ao tímido Strawberry se ele gostaria de ser um cavalo alado, Aslan fala com sua língua de fogo: ‘“ Tenha asas. Seja o pai de todos os cavalos de asas’ , rugiu Aslan numa voz que tremeu o solo. ‘Seu nome será Fledge’ .”

A transformação em Strawberry quando ele é renomeado é surpreendente: “O cavalo recuou. [...] E então [...] irrompeu dos ombros de Fledge asas que se abriram e cresceram, maiores que as das águias, maiores que as dos cisnes, maiores que as asas dos anjos nas janelas da igreja. [...] E le fez um grande movimento majestoso com as asas e saltou no ar” .56 Os leitores desta grande obra da literatura são levados a acreditar que também podem ser renomeados, perder um pouco da bmtalidade da Queda e planar mais perto daquela imagem original de Deus na Criação. A língua de Aslan foi tocada com o fogo da renomeação, levando Cabby e sua esposa a ascender ao trono e dando a Strawberry o dom da fala e asas para voar, ajudando-o a transcender sua brutalidade.

Mais uma vez, levando em conta uma doutrina bíblica, desta vez o Pentecostes, faço a pergunta: Por que os cristãos deveriam ler literatura? Porque Deus parece tocar as palavras do artista lite­rário com seu sopro criativo e língua de fogo. Com frequência o artista é inspirado (a etimologia de “ inspirado” inclui soprar vida em) a escrever palavras além do que em geral é humanamente possível. Muitas vezes o contador de histórias recebe uma “língua de fogo” , além da língua humana habitual para moldar caracteres que falam vida nova aos recessos interiores de nosso ser. A litera­tura pode nos tornar mais completamente vivos.

Conclusãoi Quando o poeta francês Saint John Perse pronunciou seu dis­

curso ao receber o Prémio Nobel de Literatura, ele falou do poder do poeta: “O poeta [...] mantém diante do espírito um espelho mais sensível às suas possibilidades espirituais [...] e evoca [...] uma visão da condição humana mais merecedora do homem conforme ele foi criado” .57 Saint John Perse tinha razão. Deus sempre colo­cou um prémio no poder da Palavra. Com Suas palavras, E le falou e os mundos vieram à existência. Sua Palavra tinha o poder de gerar o carvalho e o hipopótamo, e o sol e a lua e as estrelas. Seus profetas tiveram a Palavra do Senhor que queimava nos ossos deles quando proclamavam o castigo e a misericórdia do Senhor. Ele en­viou seu Filho, encarnado como a Palavra, para habitar entre nós.

No Pentecostes, E le nos mostrou que quis compartilhar essa Palavra poderosa conosco, quando veio como língua inflamada de fogo e pousou nos discípulos. Algum dia, E le virá outra vez e o seu nome será chamado a Palavra de Deus (Apocalipse 19.13)“. De

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sua boca sairá uma espada afiada, de dois gumes, símbolo de sua Palavra; e o pecado da Queda e a confusão de Babel para sempre serão destruídos. Enquanto isso, Ele inspira (“sopra para dentro de”) os artistas literários a continuar nos fazendo lembrar das doutrinas da Criação, da Queda, da Redenção e do Pentecostes.

Então, por que os cristãos devem ler a grande literatura? Le­mos a grande literatura sobre a Criação para permitir que o Esp íri­to restaure alguma coisa da imagem de Deus em nós. Lemos his­tórias artísticas sobre a Queda para reconhecer e entender a natu­reza do mal, no esforço de evitar a tentação em nossa vida e dar testemunho ao nosso próximo caído. Lemos a grande literatura sobre a Redenção para mergulhar nas boas-novas de que temos possibilidades gloriosas de transformação. E lemos histórias com imagens pentecostais para experimentar o poder renomeador e restaurador da língua de fogo.

Os cristãos, concluo, têm o privilégio feliz, na verdade a res­ponsabilidade, de ler e incentivar os outros a lerem a grande lite­ratura que participa da criatividade de Deus, fala a verdade sobre a Queda, que nos auxilia a entender as Boas-novas de redenção, e que nos capacita com a língua de fogo do Pentecostes da restaura­ção e renomeação espirituais. Escolhi começar este capítulo com o inspirador e primeiro versículo do Evangelho de João: “No prin­cípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” . Encerro o capítulo com uma referência a João 1.14, pois imagino que se João o tivesse coescrito, ele poderia tê-lo concluído assim: E o Verbo se fez carne na grande literatura e habitou entre nós, e vimos a Sua glória, como a glória do Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade sobre a Criação, a Queda, a Redenção e o Pentecostes.58

Revisão e Questões para Discussão

A I m p o r t â n c ia d a C r ia t iv id a d e d o A rtista L it e r á r io

1. Na criação, Deus tirou a ordem do caos. Discuta como é que uma forma bem conhecida, como o conto de fadas, pode ajudar a trazer ordem na vida de uma criança. Se você teve experiências úteis em sua vida lendo contos de fadas ou outras formas de litera­tura, descreva essas experiências que usam os conceitos desen­volvidos no capítulo.

2. Como o autor usa a palavra nomeação? Discuta a diferença entre “compartimentar” e “nomear” outra pessoa.

3. Como a “nomeação” pelo artista literário ajuda a restaurar um pouco da imagem de Deus em nós? Descreva alguma experi­ência positiva que você tenha tido de ser “nomeado” ao ler uma obra imaginativa da literatura.

A I m portância das R epresenta çõ es L iterária s da Q ued a

1. Por que o artista literário tem de contar a verdade sobre a Queda?

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O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO 3 8 5

2. Como a literatura pode nos ajudar a entender melhor o não- crente?

3. Que tipo de literatura os cristãos devem ler? Por quê? D is­cuta os exemplos.

4. Dorothy Sayers descreve alguns escritos como “mero entre­tenimento” . Explique e ilustre o que ela quer dizer.

5. Como os cristãos responsáveis devem ler? Em outras pala­vras, que critérios devem aplicar quando avaliam a literatura ima­ginativa? Discuta um exemplo específico da leitura que você fez de um romance ou historieta de maneira responsável.

A Im portância das R epresentações L iterárias da R edenção

1. Argumente como o uso de imagens literárias nos faz lembrar da Redenção. Por exemplo, explique a função da imagem do pai dando as boas-vindas ao filho pródigo na parábola que Jesus contou.

2. Explique como a tragédia shakespeariana Romeu e Julieta nos lembra que a Redenção vem pelo sacrifício. Discuta qualquer outro exemplo de obras literárias que nos lembrem que a Reden­ção vem pelo sacrifício.

A I m p o r t â n c ia d a L it er a tu r a q u e E m p r e g a I m a g en s

d o P e n t e c o s t e s

1. Explique como a língua foi afetada no Pentecostes.2. Quais são as imagens predominantes que acompanharam a

vinda do Espírito Santo no D ia de Pentecostes (Atos 2.1-4)? E x ­plique como C. S. Lew is usa estas imagens na criação de Narnia em O Sobrinho do Mago.

Projetos Sugeridos para Reflexão1. Leia a história de Flannery 0 ’Connor, “Revelation” . Esta

história pode ser achada em Flannery 0 ’Connor: The Complete Histories, publicada por Farrar, Straus & Giroux, Nova York, 1971. Depois responda as seguintes perguntas:

a) O que a senhora Turpin pensa de si mesma na primeira parte da história?

b) O que acontece com o entendimento da senhora Turpin depois que Mary Grace a golpeia com o livro no consultório médico?

c) Qual é o significado de Mary Grace “nomear” a senhora Turpin de “javali africana” ?

d) Quando a senhora Turpin tem a visão das almas “ribomban­do em direção ao céu” , por que você acha que ela está “indo para o fim da procissão” ?

e) O que significa o fato de a senhora Turpin ter sua visão quando estava ao lado do chiqueiro?

f) A visão da senhora Turpin de sua própria pecaminosidade dá a você a esperança de que ela será salva?

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3 8 6 TWILA BROWN EDWARDS

g) A história o ajudou a ver alguma atitude sua própria que precisa do perdão e cura de Cristo? Nomeie a atitude e discuta com um amigo de sua confiança maneiras de você ser curado.

2. Argumente outras obras literárias que usem imagens associ­adas com o Pentecostes: vento, fogo, língua.

a) Por exemplo, leia That Hideous Strength, de C . S. Lew is. Note a cena onde Ransom e M erlin estão conversando num cenáculo e, de repente, as janelas se abrem com o vento e um vento sopra impiedosamente no recinto. Ransom acha-se “ senta­do no próprio cerne da palavra, no forno incandescente da fala essencial. Todos os fatos foram quebrados, esparramados em ca­taratas, presos, [...] mortos e renascidos com [verdadeiro] signifi­cado” (pp. 321, 322). Esta descrição magnífica não indica que nossa língua poderia ser assim, se todas as mentiras da serpente fossem retiradas dela?

b) Leia também The Final Best, de Frederick Buechner. Obser­ve as muitas imagens do Espírito Santo usadas neste livro, à medi­da que o personagem principal, um ministro, prepara um sermão para pregar no Dia de Pentecostes.

Bibliografia Selecionada

O b r a s L it e r á r ia s P r im á r ia s

A Divina Comédia, de Dante (tradução de Ciardi).A Rainha do Reino Encantado, de Spenser.Macbeth, de Shakespeare.O Paraíso Perdido, de Milton.As Viagens de Gulliver, de Swift.David Copperfield, de Dickens.Hedda Gabler, de Ibsen.Saint Joan, de Shaw.As Histórias Completas, de Flannery 0 ’Connor.

O b r a s L it e r á r ia s S ec u n d á r ia s

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ContemporaryWritersTellWhoTheyReadandWhy. Dallas: Word, 1990.

Notas bibliográficas

1. Madeleine L ’Engle, Walking on Water: Reflections on Faith andArt (Wheaton, Illino is: Harold Shaw, 1980), p. 54.

2. Madeleine L ’Engle, A Swiftly Tilting Planet (Nova York: D ell, 1978), pp. 156, 157. Nesta história de fantasia, Charles Wallace e Gáudio, um unicórnio, estão feridos e exaustos por cau­sa de uma batalha contra as forças do mal conhecidas por Ectrói. O unicórnio sábio percebe que eles devem se restabelecer antes de travar outros combates para vencer o mal, por isso permite que Charles monte em suas costas para irem à casa dos unicórnios, onde a neve e o gelo têm propriedades curativas milagrosas. En­quanto estava nesta terra onde seres humanos nunca antes tinham estado, Charles tem a experiência inspiradora de ver um unicórnio bebê sair da casca do ovo. Os unicórnios só se alimentam de luz estrelar e do luar.

3. M ichael Edwards, Towards a Christian Poetics (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1984), p. 217. Este trabalho foi muito influente na formação de minhas visões apresentadas neste capítulo.

4. Ibid ., p. 217.5. J. R . R . Tolkien, “On Fairy-Studies” , in: The Tolkien Reader

(Nova York: Ballantine, 1966), p. 40.6. Michael Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 218.7. Walter Wangerin Jr., “Hans Christian Andersen: Shaping the

Child’s Universe” , in: Reality and the Vision, editor Philip Yancy (Dallas: Word, 1990), pp. 2-5.

8. Ibid ., p. 5.9. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 9.10. Ibid ., pp. 8, 9.11. Jean Richards, God’s Gift (Nova York: Delacourte, 1993).12. UEngle, Walking on Water, p. 46.13. Madeleine UEngle, A Wind in the Door (Nova York: D ell,

1973), p. 114.14. John Milton, “O f Education” , in: John Milton: Complete

Poems and Major Prose, editor Merritt Y. Hughes (Nova York: Odyssey, 1957), p. 664.

15. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 10.. 16. Ibid.

17. Ibid.18. T. S. Eliot, “Four Quartets” , in: T. S. Eliot: CollectedPoems

1909-1962 (Nova York: Harcourt, 1963), p. 180.19. Até a B íb lia registra o comportamento caído da humanida­

de (por exemplo, Davi e Bate-Seba, Caim e Abel, os reis maus de Israel).

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3 8 8 TWILA BROWN EDWARDS

20. Não estamos usando a expressão dar testemunho só com o significado de “evangelizar” , mas para incluir a advertência da Grande Comissão de Jesus de fazer discípulos e ensinar seus man­damentos (Mateus 28.19,20).

21 Dorothy L . Sayers, “Toward a Christian Aesthetic” , in: ChristianLetters to a Post-Christian World: A Selection ofEssays (Grand Rapids: William B . Eerdmans Publishing Company, 1969), p. 77.

22. Na língua original, esta expressão referia-se comumente à impressão ou estampa de uma moeda.

23. Ibid ., pp. 77, 78.24. Ibid ., p. 80.25. Ibid.26. Samuel Taylor Coleridge, “The Statesman’s Manual” , in:

The Norton Anthology ofEnglish Literature, 6.a edição, volume 2, editores M. H. Abrams et al. (Nova York: Norton, 1993), p. 399.

27. Sayers, Christian Letters, p. 81.28. Ibid.29. Ibid., pp. 81,82.30. Flannery 0 ’Connor, “Letters” , in: Flannery 0 ’Connor:

Collected Works (Nova York: Library of America, 1988), p. 1165.31. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 12.32. Paul Watzlawick, The Language ofChange: Elements ojTherapeutic

Communication (Nova York: Basic Books, 1978), pp. 56-69.33. Veja Bruno Bettelheim, The Uses o f Enchantment: The

Meaning andImportance ofFairy Tales (Nova York: Knopf, 1977), pp. 122, 123.

34. Veja Apocalipse 19.11,15; 20:10.35. Thomas Keneally, Schindler’s L ist (Nova York: Simon &

Schuster, 1982), p. 394.36. David Bevington, “Introduction to Romeo and Juliet” , in:

The Complete Works o f Shakespeare, 3.a edição, editor David Bevington (Nova York: Harper, 1980), p. 993.

37. W illiam Shakespeare, “Romeo and Juliet” , in: The Com­plete Works o f Shakespeare, editor Hardin Craig (Chicago: Scott, Foresman, 1961), 1.5, pp. 140-143.

38. Ibid., 2.3, pp. 90-93.39. Ibid., 1.5, p. 137.40. Ibid., 5.3. pp. 291-293.41. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 54.42. Ibid ., p. 53.43. W illiam Shakespeare, “Midsummer Night’s Dream” , in:

The Complete Works o f Shakespeare, editor Hardin Craig (Chica­go: Scott, Foresman, 1961), 3.1, pp. 117, 118, itálicos meus.

44. Ibid ., 3.1, pp. 153-164.45. Ibid., 4.1, pp. 208-217.46. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 69.47. Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature

(Nova York: Harcourt, 1982), p. 169.

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O LUGAR DA LITERATURA NO PENSAMENTO CRISTÃO 3 8 9

48. Tolkien, “On Fairy-Stories” , p. 68.49. Edwards, Towards a Christian Poetics, p. 12.50. Ibid., p. 65.51. Frye, Great Code, p. 162.52. C . S. Lew is, The Magician’s Nephew (Nova York: Collier,

1986), p. 99.53. Ibid., p. 107.54. Ibid., p. 113.55. Ibid ., p. 116, itálicos meus.56. Ibid., pp. 144-115.57. Saint John Perse, Two Addresses (Nova York: Bollingen

Foundation, 1966), p. 14.58. Este capítulo não é sobre a natureza da B íb lia como litera­

tura. Creio que é a maior literatura jamais escrita da mesma ma­neira que creio que é a Palavra inspirada de Deus. Claro que a B íb lia é escrita em formas literárias como poesia, provérbios, apocalipse etc. Desde a década de 1970, têm aparecido numero­sos livros e composições que analisam a B íb lia como literatura feita por estudiosos literários e bíblicos, sustentando ampla gama de posições teológicas. Os leitores que desejam explorar este tó­pico são convidados a começar com o trabalho de Leland Ryken, Literature o f the Bible (A Literatura da B íb lia) (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1974).

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11Os Cristãos e a Cultura da

Mídia de Entretenimento

Terrence R. Lindvall e J. Matthew Melton

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3 9 2 TERRENCE R. LINDVALL E J. MATTHEW MELTON

/uma peruca que você está usando?” , perguntou-lhe ela, apon­tando para a cabeça dele.

“Sim , e o que chama você isso, touca de chuveiro?” , con­tra-atacou ele.

Assim foi o programa. Dois ícones da cultura popular, Madonna e David Letterman, estavam se atacando na televisão tarde da noi­te. Letterman, por um lado, estava numa posição única. Como al­guém que alcançara boa colocação sendo ultrajante, ele descobriu que tinha mais do que podia lidar com a rainha do shock-and-roll. Pelo lado dela, Madonna estava fazendo o mundo da rede de tele­visão se contorcer com seus comentários insípidos nos intervalos comerciais, até que finalmente chegou o momento dela ir embora.

Quando tudo tinha misericordiosamente terminado e a Madonna se fora, Letterman emoldurou o episódio inteiro quando pilheriou: “Nossa próxima convidada é a Madre Teresa de Calcutá” . A mon­tanha de tensão dissolveu-se em riso, não da Madre Teresa, mas da enorme incongruência com o pensamento de que alguém, con­siderada santa por todos, aparecesse no mesmo programa de tele­visão que Madonna. Talvez sem querer, Letterman tenha chama­do a atenção a uma grande preocupação para os crentes contem­porâneos. O quanto é enorme a brecha entre o cristianismo e a cultura popular contemporânea, e que tipos de desafios esta bre­cha apresenta?

Como deve ser a relação entre os cristãos e a cultura popular? Que analogias e princípios bíblicos nos proporcionam perspecti­vas sobre como relacionar-se com o mar selvagem do entreteni­mento da mídia no qual estamos flutuando? Este capítulo limita- se deliberadamente à cultura popular da mídia de entretenimento. O cinema e a televisão abastecem a literatura e a produção dramá­tica da sociedade contemporânea, e por sua infiltração e volume abusivo quase abafa as vozes das outras produções da cultura po­pular. Esta geração é dominada pela mídia de entretenimento v i­sual, que merece atenção particular. Pelas histórias de como Daniel, o povo de Israel, o apóstolo Paulo e a igreja histórica lidaram com as culturas que os cercavam, tentarei originar uma compreensão de nosso predicamento contemporâneo. Fazendo assim, desejo realizar duas coisas: 1) enunciar uma posição de discernimento crítico para aqueles cuja resposta à cultura popular é ou de medo da “contaminação” ou, no outro extremo, de consumo compla­cente, e 2) recomendar uma abordagem redentora que busque trans­formar a cultura.

Antes que nos engolfemos nesta discussão, vale a pena afirmar o lugar central da nossa fé cristã. Faço eco a C . S. Lew is, quando ele assevera que “o cristão sabe desde o início que a salvação de uma única alma é mais importante do que a produção ou preserva­ção de todas as epopéias e tragédias do mundo” .1 O cristianismo confessa a centralidade da fé em Jesus Cristo. Nossa vida deve ser vivida em submissão feliz a esta pessoa, inclusive numa compre­

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OS CRISTÃOS E A CULTURA DA MÍDIA DE ENTRETENIMENTO 3 9 3

ensão de nossos direitos e responsabilidades como cristãos. Inves­tigando uma tensão entre o direito de produzir ou revisar arte e a responsabilidade de avaliá-la, especialmente no tocante a filmes, Mortimer Adler contrastou duas maneiras sugeridas pelo cristia­nismo. “Não é no espírito de Savonarola que as artes devem ser açoitadas e eliminadas, mas no espírito de Tomás de Aquino, que, no fim da vida e em êxtase religiosa, disse de sua obra Suma Teo­lógica — incontestavelmente magnífica como produção da arte humana — : ‘Parece lixo ’ .”2 Tomás de Aquino reconheceu que os objetivos gloriosos da cultura são transitórios e passarão. Em con­traste, o objeto mais santo que nos é apresentado, depois do pró­prio Deus, é o nosso próximo; pois ele foi criado à imagem de Deus e para a eternidade. Nosso prazer e contemplação da cultura têm de fielmente manter este conjunto de prioridades.

Definindo Cultura

“Cultura” , derivado do latim cultura, refere-se aos costumes e produtos sociais inventados pelos seres humanos e refletindo suas crenças e valores. Segundo é interpretada nos dias de hoje, a cul­tura é caracterizada pelas artes, hábitos e comportamentos de um grupo social. Assim as meninas vitorianas da década de 1890 eram tão constrangidas por sua cultura quanto eram as meninas materi­ais da década de 1980. Ambas seguiam a moda e a novidade que compunham a cultura popular, quer seja a “baixa” cultura das massas ou a “alta” cultura da elite.

No século X IX , Matthew Amold, poeta e crítico inglês, des­creveu a cultura como o ato normativo de “nos familiarizarmos com o melhor do que era conhecido e dito no mundo” .3 As pesso­as tendem a ver a cultura como a “cultivação” do melhor e mais esplêndido, dos ideais mais sublimes em termos de gosto e refina­mento, das coisas boas com as que se esperava estar associado: livros bons, companhia boa, roupas boas, música boa, teatro bom e coisas assim. A bondade incluía as dimensões morais e estéticas: Podia-se ser instruído nas coisas boas e simultaneamente achar prazer.

Sob o ideal da alta cultura está a cultura que a massa das pes­soas quer de fato. A cultura popular contemporânea raramente se preocupa com o que é “bom” . Tomou-se mais associado com o que é mantido em comum numa dada sociedade ou com o que venderá. A cultura que é consumida em larga escala torna-se “cul­tura popular” . O álbum Thriller, de Michael Jackson, os filmes Titanic, de James Cameron e O Parque dos Dinossauros, de Stephen Spielberg, qualificam-se — não necessariamente porque sejam intrinsecamente bons, mas porque são de grande populari­dade. Estas artes da mídia atraem às massas e não requerem alto grau de sofisticação intelectual ou refinamento cultural.4

A cultura popular que tratamos aqui é o entretenimento visual:

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3 9 4 TERRENCE R. LINDVALL E J. MATTHEW MELTON

cinema, televisão, vídeo e as novas formas da tecnocultura, como vide o games interativos. De muitas formas, esta mídia baseada em imagens mostra uma influência às vezes evidente, às vezes sutil, mas sempre poderosa no desenvolvimento de nossa cultura. Neste sentido, Neil Postman vê a questão de se a mídia visual molda ou reflete a cultura como antiquada. Na sua visão, a televi­são e o cinema tornaram-se nossa cultura.5

Se a avaliação de Postman está ligeiramente exagerada, sua avaliação da influência da mídia visual na cultura contemporânea indubitavelmente levanta questões básicas para o povo da fé. Por exemplo, será que verdadeiramente entendemos até que ponto nossa vida e cosmovisão são influenciadas pela mídia visual — particularmente pela mídia de entretenimento baseada em ima­gens? Outrossim, que respostas uma visão como a que Postman

George Lucas, diretor do film e Guerras nas Estrelas e, por conseguinte, moderno fa­bricante de mitos, declara que o cinema e a televisão suplantaram a igreja como grandes comunicadores de valores e crenças. (Veja Dale Po llack, Skywalking: The Life and Films o f George Lucas [Andando nas Estre­las: A Vida e os Filmes de George Lucas] [Nova York: Harmony Books, 1973], pp. 139-144.) Apresentando a série de PBS exi­bida cm 1994, American Cinema (Cinema Americano), John Belton comparou ir ao ci­nema com uma experiência relig iosa e extática. Até o grande Teatro Roxy de 6.200 lugares, em Nova York, foi anunciado como “a catedral do cinema". (American Cinema/ American Culture [Cinema Americano/Cul­tura Americana] [Nova York: M cGraw-Hill, 1994], pp. 3 ,4 .) “O fato é indisputável” , es­creveu William Kuhns. “As pessoas hoje v i­vem ‘pela mídia’ , ao passo que outrora v iv i­am ‘pelo livro ’ ” (The Electronic Gospel: Religion and Media [O Evangel ho Eletrôni- co: Religião e Mídia] [Nova York: Hcrder & Herder, 1969]). A possibilidade de que a mídia substitua o papel historicamente vital desempenhado pela igreja na formação dos valores de uma comunidade é desconcertante, mas compreensível. Para

muitos, o cinema se tornou uma igreja virtu­al.

Mesmo dentro de nossa casa, verificamos que as devoções familiares são suplantadas pelos deuses domésticos eletrônicos. A tele­visão pode funcionar como santuário priva­do ao deus das imagens — um deus do lar grego ou olímpico da ESPN, um Buda pes­soal da Televisão Pública ou um deus dionísio da TV a cabo. Cada um oferece sua própria visão da vida boa. E frequentemente jazemos prostrados diante de nosso deus, fi­cando até preguiçosos e indolentes.

A transformação de uma cultura oral centrada na palavra para uma cultura eletrô- nica centrada na imagem apresenta desafio especial para estudiosos e estudantes cris­tãos, sobretudo levando-se em conta o po­der hoje reconhecido das imagens. Os valo­res promovidos na cultura popular da televi­são e do cinema raramente são os da fé cris­tã. O egoismo, o hedonismo, a cobiça, a vin­gança, a luxúria, o orgulho e uma legião de outros vícios são muito bem-sucedidos em competir com o fruto do Espírito de amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e temperança (Gálatas 5.22,23). A tarefa dos cristãos é descobrir se algum destes valores bíblicos existe em ex­

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OS CRISTÃOS E A CULTURA DA MÍDIA DE ENTRETENIMENTO 3 9 5

tem da cultura extraem de nós? Cristãos pensativos procuraram formar suas respostas dentro do entendimento que tinham das Es­crituras. É para algumas destas questões bíblicas centrais que agora nos voltaremos brevemente.

A Criação e a QuedaUma compreensão do relacionamento do cristão com a cultura

pode ser fundamentada em duas doutrinas bíblicas: a Criação e a Queda. Cada uma enfatiza uma verdade particular relativa à con­dição humana que parece contradizer ou opor-se à outra. Porém, ambas são verdadeiras e devem existir numa tensão saudável e frutífera. Caso contrário, se nos alinharmos a uma das duas dou­trinas, nossas respostas à cultura diferirão consideravelmente, e se

pressões particulares da cul tura popular, para expor o falso e celebrar o bom e o verdadei­ro. Neste sentido, a recomendação de Paulo aos cristãos filipenses permanece verdadei­ra: “Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amá­vel, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai” (Filipenses 4.8). Nossa contribuição à cul­tura popular, seja como espectador (o con­sumidor) ou como artista (o produtor), deve seguir a exortação de Paulo para abranger a integridade, a virtude e a beleza em nossos pensamentos e ações, independente da ênfa­se comum demais que a cultura popular dá aos valores opostos.

Dissemos que a cultura popular contem­porânea raramente se preocupa com o que é bom. Portanto, os cristãos devem ser extre­mamente seletivos nas atividades da cultura popular nas quais escolhem participar. A in­da que a escolha entre o que é popular e o que é biblicamente apropriado não seja fá­c il, é necessária a fim de mantermos um re­lacionamento saudável com o Senhor.

Trabalhos a consultar: No seu estudo provocativo The Electronic Golden Calf: Images, Religion and the Making ofMeaning

(O Bezerro Eletrônico de Ouro: Imagens, Relig ião e a Fabricação do Significado (Cambridge, Massachusetts: Cowley, 1990), Gregor T. Goethals entra nas artes visuais populares, expondo como elas medeiam va­lores e formam o caráter. W illiam D. Romanowski analisa com perícia o papel religioso do entretenimento na vida ameri­cana em sua obra alegre Pop Culture Wars (Guerras da Cultura Popular) (Downers Grove, Illinó is: InterVarsity Press, 1996). Três artigos que exploram a idéia, promessa e ameaça dos cristãos e filmes contemporâ­neos são, respectivam ente, “ C hristian Perspective on Film ” (“Perspectiva Cristã sobre o Cinema” ), de Mark Coppenger, em Christian Imagination (Imaginação Cristã), de Lei and Ryken (Grand Rapids: Baker, 1981), pp. 285-302; “ Spectacular Transcendence: Cinematic Representation of A frican Am erican C h ris tia n ity ” (Transcendência Espetacular: Representação Cinemática do Cristianismo Americano A fri­cano), de Terry L in d va ll, The Howard Journal o f Communications, volume 7, n.°5, 1996, pp. 205-220; e “Yikes! Nightmares From H ollyw ood” (U i! Pesadelos de Hollywood), de Roy M. Anker, Christianity Today, 16 de junho de 1989, pp. 18-23.

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interpretarmos uma doutrina isoladamente da outra ou propormos uma das duas como meio exclusivo para lidar com a cultura popu­lar, seu significado pode ser torcido e abusado. Escolhi rotular estas duas respostas: criacionista e conversionista.6

Por um lado, colocamos a doutrina de Deus como Criador. As Escrituras declaram, como o faz a natureza, que Deus criou tudo e que E le criou tudo muito bom e agradável. O Credo Apostólico confessa crença em Deus Pai, Criador do céu e da terra. Estudan­do a doutrina da Criação, descobrimos de Génesis o bom funda­mento para toda a vida. O salmista declara a glória de Deus na Criação (Salmo 19), e Paulo mostra que todas as pessoas podem entender a natureza divina claramente contemplando a ordem cri­ada (Romanos 1.19,20). Rastros, pistas, sugestões, sussurros e rumores do poder e graça de Deus estão espalhados neste mundo, e os seres humanos, de acordo com Paulo, têm a visão para ver a beleza da bondade de Deus. Cada sarça, se pudéssemos vê-la como sarça ardente, é uma mensagem de Deus para nós como foi para Moisés.

A abordagem criacionista celebra a bondade em tudo. Tende a ser otimista, romântica, às vezes até ingénua, em sua abordagem à vida. Olhando pelas barras da prisão, olha as estrelas. É uma res­posta cheia de alegria e gratidão, esperança e deleite, sabendo que o próprio Deus fez este mundo e que tudo nele é bom. O criacionista recebe o mundo com regozijo, pois ele tem os olhos da fé para ver Deus que trabalha para o bem daqueles que o amam e são chamados de acordo com os seus propósitos (Romanos 8.28). Porém, o criacionista pode negligenciar o problema do pecado, do mal e da Que­da e preferir, como Forrest Gump, ver a bondade em todas as coisas.

Ao lado desta doutrina afirmante da mais excelente obra de Deus está a clara e bíblica doutrina da Queda. Aquilo que foi cri­ado bom foi “depravado” (termo de João Calvino) ou “eclipsado” (termo de Agostinho).7 As Escrituras declaram que, porque Adão e Eva comeram o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, seus

descendentes e toda a criação em si foram amaldiçoados e colocados sob o julgamento de Deus. Sendo assim, toda a criação tem de esperar e gemer por sua redenção (Romanos 3.10; 8.22). Estudando a doutrina da Queda, descobrimos a tendência de todas as coisas a apodrecer, ou se estragar, tanto a imaginação humana quanto uma salada de ovo. Assim, com

justiça somos suspeitos da corrupção e perversão do pecado hu­mano. Informado pela doutrina da Queda, o conversionista vê a necessidade de todas as coisas serem mudadas e acertadas.

Relacionada com a Criação e a Queda está a natureza dos seres humanos, criaturas feitas à imagem de Deus, mas que repudiam seu Criador. O fato da Queda requer redenção; as pessoas preci­sam ser convertidas, transform adas, fe itas de novo. O conversionista nota a observação de Paulo em Romanos, onde ele

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"A Criação e a Queda — estas duas doutrinas definem nosso

predicamento. Fomos criados bons, mas caímos".

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destaca que embora a grandeza sublime de Deus seja evidente, sua criação humana recusou dar-lhe honra ou gratidão. Eles “mu­daram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis” (Romanos 1.23). A humanidade adorou suas imagens falsas em vez do próprio Deus. E assim, todos nos tornamos escravos da perversão e depravação e necessitamos desesperadamente sermos redimidos e salvos de nosso pecado. O conversionista acredita que até os crentes vivem em um mundo corrupto e caído, com armadi­lhas e ciladas colocadas diante de nossos pés. Estamos num mun­do perigoso e devemos ser cautelosos, pois Satanás está na ronda, buscando nos devorar.

A Criação e a Queda — estas duas doutrinas definem nosso predicamento. Fomos criados bons, mas caímos. Ainda trazemos a imagem de Deus, mas esta está arruinada. Fazendo-nos como E le , o Deus que fala (ou, como Francis Schaeffer escreveu, O Deus que não está em Silêncio) nos deu uma característica importante de sua natureza: E le nos fez comunicadores. E le também nos fez, na palavra de Tolkien, subcriadores.8 E como subcriadores, nossa obra de comunicação é a cultura. A primeira cultura do ser humano (como nos diz a Escritura) foi a agricultura, a chamada para cultivar um jardim , para colocá- lo em ordem. Então, no jardim , Adão, não Deus, nomeou os animais e criou uma cultura da língua humana. E Adão e Eva receberam o “domínio” , a responsabilidade de manter a or­dem na sua cultura de jardim. Deus abençoou Adão e Eva com o mandamento cultural de reger a Criação, que E le viu como muito boa (Génesis 1.31).

Embora a Queda subvertesse os resultados completamente bons do mandamento cultural, não mudou o mandamento em si. Já no primeiro capítulo de Génesis, temos a ordem de atender a totali­dade da criação e reger como regentes no nome de Deus e para a sua glória.9 Independente da Queda, nós os seres humanos, rece­bemos esta chamada especial para sermos subcriadores da cultu­ra, nomeadores e identificadores de nossas criaturas companhei­ras. E ainda estamos investidos com o desafio de manter a ordem na terra. Mas a Queda tornou ambas as tarefas culturais infinita­mente mais difíceis. Há a confusão das línguas, por assim dizer, na prática corrente de “nomear” e o egoísmo excessivo, que foi resultado da Queda, tornou o desenvolvimento de uma cultura redimida num desafio contínuo.

As discordâncias entre a visão criacionista e a conversionista sobre a cultura popular, originam-se das atitudes acerca dos efei­tos da Queda. Ingrid Shafer caracteriza os dois grupos como os que primariamente “vêem o mundo corrompido pelo pecado ori­ginal contra os que vêem o mundo ligado pela bênção original” .10

"Embora a Queda subvertesse os resultados completamente bons do mandamento cultural, não mudou

o mandamento em si."

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A posição criacionista adota uma perspectiva do jardim do Éden, na qual a bondade e a beleza são vistas a estar no centro, ou na base, de toda a arte e cultura popular. Por outro lado, o conversionista vê um mundo corrompido em dilemas medonhos. Qualquer coisa feita pelo esforço humano não é melhor que ester­co (F ilip en ses 3 .8 ). Nossa m elhor resposta, d iriam os conversionistas, é estarmos separados do mundo para rejeitar a ele e aos seus produtos.

Os cristãos precisam reconhecer a validade de ambas as pers­pectivas. As vezes, precisamos fugir do prazer que nos é ofereci­do, como fez José (e não fez Pinóquio na Ilha do Prazer). Em outros momentos, temos de participar do que nos é apresentado e desfrutar livremente o luar da cultura popular, mas reconhecendo que não passa de luz do sol de segunda mão. No mundo do cinema de hoje, o prazer de olhar o caminho surpreendente do homem com uma virgem (como diz Provérbios 30.18,19) parece como uvas suculentas em tais comédias românticas como o filme de Frank Capra, Aconteceu Naquela Noite (1934), ou a comédia de Steve Martin, Roxanne (1987).

A justificação para os cristãos que participam da cultura popu­lar deriva dos princípios de liberdade e discernimento. Cada um de nós é convidado não só a desfrutar Deus, mas desfrutar de sua criação e criaturas. Podemos trabalhar e representar a glória de Deus, sendo livres e cautelosos. Nas seções mais finais deste capí­tulo consideraremos dois modelos para nos envolver com a cultu­ra popular. Nossa meta é encontrar um modelo equilibrado que integre as duas doutrinas da Criação e da Queda e que venham a moldar nossa alma e nossos apetites. Ao mesmo tempo, lembro- me do engano do homem mundanamente sábio de O Peregrino, de John Bunyan, que saboreou as doutrinas do mundo e deixou que moldassem sua alma tanto quanto o estômago. Portanto, vol­temos nossa atenção primeiro para a tarefa de discernir os valores culturais e o problema relacionado com o poder da cultura popu­lar em seduzir.

Discernindo os Valores CulturaisA cultura da mídia de entretenimento pode ser definida como

uma mercadoria de valor empacotada. Os cristãos que entram nos templos do entretenimento popular têm de estar cientes de qual ideologia e valores estão sendo vendidos, de qual mensagem Hollywood está tentando vender. Para sermos discriminantes des­tes produtos, primeiro temos de ser discementes. Algumas pesso­as fazem uma pergunta preliminar: se sequer devemos entrar em contato com a cultura popular. Para o cristão, todas as coisas, in­clusive interagir com a mídia de entretenimento, são lícitas, mas nem tudo é necessariamente proveitoso ou edificante (1 Coríntios 10.23; 16.12). Assim , enquanto Deus dá permissão para o espiri­

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tualmente maduro explorar e desfrutar nosso mundo, a sabedoria prescreve que exerçamos prudência e discriminação. Podemos assistir todos os filmes para a glória de Deus? Certamente que não. Muitos filmes seriam um impedimento definitivo para o nos­so desenvolvimento espiritual. Exercer nossa liberdade ofenderá algumas pessoas? Provavelmente sim. Por isso temos de buscar o bem do próximo, fazendo escolhas conscientes sobre o entreteni­mento que vemos. E temos de nos perguntar: de certa perspectiva bíblica, isto é digno do meu dinheiro e/ou tempo? Contudo, não podemos simplesmente desligar o aparelho de televisão e nos con­siderar protegidos do seu impacto. Milhões de outras pessoas não o desligaram e, quer gostem ou não, tomam-se canais dos seus valores. Além disso, alguns cristãos podem ser chamados a trabalhar na cultura de entretenimento, ou como artistas ou críticos — para produzir mídia de entreteni­mento ou para criticá-la em toda a sua beleza e feiúra. Estas são vocações divinamente sanci­onadas, chamadas de Deus para interagir com uma indústria cujas ideologias e valores fre­quentemente entram em conflito com os do cristianismo ortodo­xo. É crucial estarmos preparados, pelo ensino são e com a toda a armadura de Deus, para vivermos e batalharmos em tal negócio que desafia os princípios cristãos.

A cultura vira suas placas sinalizadoras em direção aos ideais da verdade, sabedoria e beleza. Na era medieval, dramaturgos talentosos apresentaram peças de moralidade que entretinham en­quanto instruíam, e hoje, o Book ofVirtues (O Livro das Virtudes), de W illiam Bennett, oferece uma compilação fascinante de contos antigos e novos, que enriquecem a alma humana. Na cultura con­temporânea, os vândalos arruinaram as placas sinalizadoras, che­gando até ao ponto de as colocarem para indicar o caminho erra­do. Algumas das novas sinalizações são feitas de néon; reluzem mas não iluminam: Não nos ajudam a entender qual caminho de­vemos tomar. Apontam para a atratividade física, o sucesso mate­rial e a realização individual em vez do bem eterno. Nas novelas, como Dinastia e Barrados no Baile, os espectadores ficam intri­gados pelos perigos plásticos dos ricos e bonitos. Um aspecto es­pantoso de tais espetáculos é que endeusamos os atores, muitos dos quais retratam a cobiça, o adultério, o orgulho e vários outros vícios, num culto contemporâneo à celebridade.

Todo veículo cultural popular do cinema aos vídeos de música comunicam uma crença ou valor. Todos expressam uma ideologia ou, como Richard Weaver demonstra, pregam um sermão de ti­pos.11 Algumas mensagens da mídia podem estar evidentes — mostrando os valores que claramente recomendam. Obviamente, os filmes cristãos clássicos como O Supercristão, de John Schmidt, são diretos em sua apresentação, como é uma obra-prima

"Temos de nos perguntar: de certa perspectiva bíblica, isto é

digno do meu dinheiro e/ou tempo?"

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cinemática multinivelada como A Lista de Schindler, de Steven Spielberg. São veículos de comunicação inflexivelmente explíci­tos. O Supercristão prega que a pessoa interior é muito mais im­portante a Deus do que a imagem exterior chamativa; diz que a imagem não é tudo. A Lista de Schindler retrata o horror do Holocausto judeu, mexendo com nossa consciência para que nun­ca nos esqueçamos do que a inumanidade do género humano é capaz, a crueldade, o sofrimento. Temos de nos lembrar. Depois

de assistir tais film es, a pessoa não só foi entretida, mas também desafiada a pensar na mensagem.

Outras mídias, igualmente sem intenção, comunicam indiretamente. Produtores, escri­tores e diretores comunicam frequentemente seus valores em parábolas, estimulando a re­flexão da audiência pela sutileza, ironia e ambi­

guidade. Alguns diretores tencionam que a audiência lute com o ma­terial que produzem e descubram, por si mesma os valores plantados nas histórias.

Finalmente, as mensagens culturais podem não ser intencio­nais, mas nem por isso são menos significantes. Independente se a produção é um filme de horror, comédia, drama, ou um comercial, pontos de vista ideológicos específicos estão sendo expressados com valores estéticos e morais. As audiências podem ler as atitu­des morais em alguma imagem, mesmo que a mensagem no final das contas seja absurda. Como a Duquesa disse para A lice: “Ora vamos, criança. Tudo tem uma moral, é só você encontrar” .12

Um programa aparentemente irracional, como Beavis and Butthead, recomenda certo modo de olhar a realidade. Embora seja intencionalmente uma sátira da própria audiência da M TV, os espectadores, sobretudo as crianças, ainda podem ler outras men­sagens morais, como fez o menino que botou fogo em outra crian­ça depois de assistir determinado episódio. A cultura da mídia de entretenimento recomenda certo modo de olhar o mundo e ofere­ce comportamentos específicos como modelos.13 Os cristãos que vêem a cultura da mídia de entretenimento têm de aprender a ler essas imagens e rejeitar as que são incompatíveis com os padrões cristãos e a Escritura.

A Sedução da Cultura

A cultura, como a natureza, detesta o vazio. Apressa-se em encher o vácuo do desejo humano. Nesse processo, as pessoas podem ser seduzidas pelo aparecimento da cultura popular, que são falsificações da voz de Deus. O vazio espiritual do coração (vazio que Agostinho via como inquietação até que se aquietasse em Deus) pode ser depressa, mas frivolamente enchido com a fa l­sa religião da cultura popular, envolvendo a adoração do dinheiro,

"Todo veículo cultural popular do cinema aos vídeos de música

comunicam uma crença ou valor."

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sexo, poder, objetos e fama. Nesta seção descreverei um cenário lúgubre para que não menosprezemos descuidadamente os peri­gos de nosso tema. Mas lembre-se, porquanto esta discussão trate do lado mais escuro de nosso tema, nem sequer a escuridão deve intimidar os filhos da luz. Os cristãos devem ser a luz do mundo, o que inclui o lado escuro de uma cultura de entretenimento fre­quentemente irreligiosa.

Simulacros, ou imagens virtualmente reais, podem facilmente nos seduzir. Começamos com um movimento lento e descuidado no ciberespaço, um mundo artificial e aparentemente infinito, onde os humanos viajam nas auto-estradas da informação e interagem digitalmente em vez de estarem face a face. Esta “nova” reali­dade é quase neognóstica (negando a realidade do m al), exal­tando um novo tipo de espiritualidade, uma versão eletrônica, acima do mundo comum. Seus cidadãos preferem uma imagem artificia l a uma pessoa de carne e osso, porque a imagem é mais fácil de manipular, em geral para o próprio prazer da pessoa.

No antigo Israel, os portadores primários das mensagens narrativas e ideológicas eram os profetas e sacerdotes. Uma tentação ao povo hebreu era entregar esta função vital a influên­cias pagãs. Os profetas advertiam repetidamen­te os hebreus dizendo que os ídolos pagãos eram meros paus e pedras; mesmo assim, es­ses paus e pedras eram muitas vezes sedutores. De modo análogo, as imagens dos filmes têm a capacidade de seduzir. Elas criam uma maneira de ver o mundo e moldar o espectador inconsciente no seu tipo de espectador. Como os ídolos antigos de madeira e pedra, nosso celulóide e imagens digitizadas ativam as emoções e as respostas fisiológicas que adequadamente pertencem à vida real e à verdadeira adoração.

Hoje, o vídeo e a mídia eletrônica tomaram-se portadores pri­mários da ideologia e moralidade. A mídia de entretenimento bus­ca pressionar a igreja e ser a autoridade dominante na comunica­ção de valores. Mas ainda mais significativo é que estas novas autoridades têm uma influência em nossa atenção que é mais po­deroso, penetrante e constrangedor do que o da igreja. As estátuas e vitrais nas catedrais de Notre Dame e Chartres parecem mudas e silenciosas em comparação às imagens explosivas criadas pela indústria do cinema.14

A cultura popular também é particularmente forte em seu im­pacto visual de outras maneiras. Apresentando, por exemplo, a forma feminina como imagem a ser consumida por espectadores, reduz toda mulher a uma mercadoria erótica e reconstrói o ho­mem num voyeur, ou abelhudo, que comete adultério com a ima­gem.15 A deusa Aserá (veja box Aserim neste capítulo) renasceu nas telas. Vivemos numa cultura de incredulidade, sexo, violência

"No antigo Israel, os portadores primários das mensagens narrativas

e ideológicas eram os profetas e sacerdotes".

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e morte. Vivemos num mundo de publicidade, artifício e cultos à personalidade. O fato terrivelmente perturbador é que a maioria dos espectadores conhece mais das celebridades do que dos vizinhos da casa ao lado, ou possivelmente até da própria família em que vive.

A cultura de entretenimento sempre está nos oferecendo narra­tivas que celebram a heresia pelágica, a falsa doutrina de que os

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Os aserim (plural de aserá) eram árvores ou postes, pilares, estátuas ou obeliscos na forma de árvores erigidas como objetos sexuais ou lugares al­tos para a devoção do povo antigo. Simbolizavam a fertilidade e o prin­cípio feminino nas religiões da natu­

reza. Perto de muitos alta- | res fenícios, havia um lo­

cal para a Aserá no qual se promovia culto à sexuali­dade, oferecendo aromas suaves a todos os seus ído­los. Contudo, a adoração era mais afim com a imo­ralidade obscena do que

com o temor reverente ou o louvor. Incenso era queimado e sacrifícios eram feitos nesses lugares altos na montanha. Até na cidade, Ezequiel clamou: “A cada canto do caminho edificaste o teu lugar alto, e fizeste abominável a tua formosura, e alar­gaste as pernas a todo o que passava; e multiplicaste as tuas prostituições. Também te prostituíste com os filhos do Egito, teus vizinhos de grandes membros, e multiplicaste a tua pros­tituição, para me provocares a ira” (Ezequiel 16.25,26).

O livro de Deuteronômio proibiu tal prática. “Não plantarás nenhum bosque de árvores [aserim] junto ao altar do SENHOR, teu Deus, que f i­zeres para ti. Nem levantarás estátua

[aserá], a qual o SENHOR, teu Deus, aborrece” (Deuteronômio 16.21,22). Abandonando o Senhor, o povo de Deus se curvaria a esses deuses da carnalidade. Mesmo o rei Salomão es­corregou de sua sabedoria e buscou mulheres estrangeiras (700 esposas e 300 concubinas). E le descobriu que seu coração se voltou após os deuses delas, como Astarote, a deusa da ferti­lidade dos sidônios.

Contudo, o culto pagão não era ape­nas caracterizado pela sexualidade de­senfreada em torno desses símbolos fálicos gigantes. Também era marca­do por uma obsessão à violência. Sa­crifícios humanos, inclusive de crian­ças, eram exigidos pelo deus nacional moabita, Quemos (também levantado por Salomão), e pelo deus amontoa do fogo, Moloque. E não era incomum que seus adeptos se chicoteassem num frenesi, como o fizeram os profetas pagãos de Baal na supercompetição com Elias (1 Reis 17).

Os ídolos, símbolos e imagens es­culpidas que cercavam tal adoração retratavam e induziam a imoralidade sexual e a violência. É só um tiro de pedra de tais imagens esculpidas de madeira, prata e ouro para as nossas imagens fotográficas e eletrônicas que retratam e incentivam formas contem­porâneas de luxúria erótica e agres­são.

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OS CRISTÃOS E A CULTURA DA MÍDIA DE ENTRETENIMENTO 4 0 3

seres humanos são pessoas essencialmente boas. Esta heresia an­tiga, contudo moderna, permeia a cultura popular americana do século X X . O cinema clássico hollywoodiano está fundamentado no sonho americano, em que o indivíduo (geralmente homem) pode, por graça, força muscular, sorte, bondade inerente ou mera firmeza de caráter determinar sua própria sal­vação e destino. O racionalismo ocidental, o individualismo, uma crença dogmática na bon­dade dos heróis e a autodeterminação gover­nam o padrão narrativo da maioria dos filmes de Hollywood. Os heróis (quase nunca as heroí­nas) atiram nos vilões, ganham as mulheres, des- troem o universo mau e triunfam por sua própria habilidade e garra. São senhores de sua vida e do universo imaginá­rio. O que quer que o Rambo ou Rocky deseje, ele consegue. Mas tal ideologia opõe-se à doutrina cristã de estar perdido no pecado e em necessidade desesperada da graça de Deus e uns dos outros na comunidade da igreja. Não obstante, muitos filmes e programas de televisão pregam o contrário.16

A sedução pela mídia pode ocorrer nos âmbitos teológicos, éti­cos ou até estéticos. O cinema e a televisão nos tentam com visões do mundo que são niilistas ou utópicas. Provocam-nos com histó­rias que dizem que nossas ações não têm consequência moral, que podemos escapar do salário do orgulho, da vingança, da luxúria, do roubo e de outros pecados. Ou procuram nos hipnotizar com imagens que sejam excessivamente românticas ou asquerosas.

No entanto, este poder sedutor não é mau em si, senão nos propósitos a que são usados. Os filmes também podem seduzir, encantar ou nos persuadir à bondade, coragem, caridade, esperan­ça, fidelidade, santidade e prazer. Os filmes tão diversos quanto Forrest Gump, O Rei Leão, O Homem Elefante, O Príncipe do Egito, Amistad e A Lista de Schindler estimulam a reflexão e discus­são saudáveis.17

Reconhecendo o poder da cultura popular em persuadir, afetar, influenciar — e, sim, seduzir — , que modelos nos são disponíveis e úteis quando nos engajamos na cultura popular? Baseado em nossa discussão anterior, as doutrinas bíblicas da Criação e da Queda, apresento a seguir dois modelos bíblicos que dão adver­tência clara sobre os perigos da cultura popular e diretrizes cuida­dosas para participar nela.

O Modelo Discernente de Daniel

A história do povo de Deus interagindo com a cultura popular oscilou entre o criacionista e o conversionista, as versões extre­mas das quais são o desesperadamente ingénuo e o rigidamente legalista. Há um problema em assumir só uma perspectiva. Ne­nhum modelo é por si só satisfatório. O criacionista pode ser mui­to ingénuo e não notar os efeitos da Queda em todos os seres hu­

"Hoje, o vídeo e a mídia eletrônica tornaram-se portadores

primários da ideologia e moralidade."

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manos. Todos nós estamos aquém da bondade e nenhum de nós é imune à tentação. Mas o otimismo do criacionista é um cheque e equilíbrio necessários ao pessimismo do conversionista. Ao saber que o pecado está no mundo e em nós, tendemos a reagir legalistamente e, então, nos tomamos judiciosos. Buscamos nos separar de culturas que sejam diferentes da nossa.18

A Babilónia era o centro de um império do antigo Oriente Pró­ximo que estabelecia um nível de esplendor e beleza artísticas e

arquitetônicas inigualáveis no mundo pagão. Os jardins da Babilónia eram uma das sete maravi­lhas (culturais) do mundo antigo. Os edifícios da cidade eram notáveis por sua arquitetura, e seus muros eram inconquistáveis e imponentes. O rei Nabucodonosor ostentou: “Não é esta a grande Babilónia que eu edifiquei para a casa real, com

a força do meu poder e para glória de minha magnificência?” (Daniel 4.30). A este centro poderoso e prestigioso da cultura chegaram cer­tos filhos inteligentes de Israel, para servirem de servos civis da ad­ministração real. Um deles, Daniel, superou os outros. Ele representa um modelo para explorar a questão delicada e controversa de como o povo de Deus pode se relacionar com a cultura popular.

A cultura de Babilónia, como a nossa, era opressivamente ori­entada a imagens. A estética dominante da cultura babilónica foi vista na construção de uma espetacular estátua de ouro que Nabucodonosor fez de si mesmo. Imagens esculpidas em ouro, prata, bronze, ferro, madeira, pedra e pinturas brilhantemente co­loridas poderiam ser achadas em todo canto e recanto, orientando e governando a vida do grande império. Também como a nossa, a cultura deles encontrava consolo no misticismo, com videntes, mágicos, astrólogos, conjuradores e toda sorte de adivinhadores.19 Contudo, tal “sabedoria” não pôde evitar que Nabucodonosor f i­casse louco e pastasse como um boi (Daniel 4.28-33).

A cultura da Babilónia acentuava a beleza, a excelência, a ino­vação, a vaidade e a intemperança. Facilmente poderia ter seduzi­do um jovem religioso que caísse em seu regaço de luxúria. Con­tudo, Daniel criou uma contracultura consistente, que transcen­deu a opulência babilónica. Num país de paganismo subjugante e atraente, o jovem israelita recusou firmemente a comida e os favo­res reais. Sua recusa era algo mais que o ascetismo de um purista. Era uma afirmação clara sobre coisas que realmente importavam— sua fé e herança hebraica.20

Dois princípios chaves podem ser extraídos do exemplo de Daniel. Primeiro, ele estava bem firme em sua fé. E le conhecia a lei de Deus intimamente. Depois de anos no cativeiro, Daniel e seus companheiros permaneceram solidamente fiéis à Palavra de Deus, não só quando a obediência deles significava correr contra a maré da cultura dominante, mas também quando significava que poderiam morrer por ela.

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"Todos nós estamos aquém da bondade e nenhum de nós é imune

à tentação".

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O segundo princípio, até mais digno de nota, era que Daniel viu e compreendeu a cultura babilónica com mais clareza do que a maioria iluminada dos seus contemporâneos babilónios. E le era homem que possuía “o espírito dos deuses santos” , como a rainha, esposa de Belsazar, o descreveu. Era conhecido por estar cheio de “ luz, e inteligência, e sabedoria” . Deus tinha dado a ele e a seus amigos conhecimento e inteligência em todo ramo da literatura e sabedoria; Daniel até entendia todos os tipos de visões e sonhos (Daniel 1.17). E le era a última palavra em tudo, o melhor crítico da mídia dos seus dias. Chegava a descrever e interpretar sonhos que não tinha visto, prever os futuros interesses imperiais. Como tal, Daniel permanecia como protótipo recomendável para o povo de Deus que buscava interagir com a cultura popular, um equilí­brio entre a abordagem criacionista e conversionista.

Como o criacionista, Daniel estava aberto a aprender de tudo na vida e de estudar as práticas culturais, as filosofias e os sonhos das outras pessoas, mesmo dos pagãos. No entanto, como o conversionista, Daniel avaliava criticamente a verdade e a bonda­de dos estilos de vida. Até com a disponibilidade das escolhas do rei das comidas e vinho, Daniel escolheu não se contaminar, mas por autocontrole restringiu sua dieta a legumes e água. Seu conhe­cimento do tolo, do preguiçoso e do bêbado, apresentados no L i­vro de Provérbios, provenientes de sua própria cultura, alertou-o sobre os perigos da tentação numa cultura es­trangeira. E le estava na Babilónia, mas não era da Babilónia.

D aniel testava suas visões do mundo babilónico à luz da fé que tinha. Ele aceitava a cultura babilónica pelo que era e buscava entendê-la melhor que seus próprios cidadãos a entendiam. Mas quando exigiam que Daniel adorasse o rei ou qualquer coisa que sua fé hebraica considerava inaceitável, ele rejeitava. E le recebeu de Deus o dom de discernir a cultura babilónica e de saber o que era bom e o que não era. Com certeza a vida de oração de Daniel, o estudo da Escritura e o julgamento circunspeto servem para os cristãos contemporâneos de exemplo recomendável de como interagir com a cultura popular.

O Modelo Transformacional de PauloUm problema persistente que confronta o povo de Deus tem

sido o poder hegemónico absoluto das culturas pagãs circunvizinhas. (Hegemonia pode ser entendida como a influên­cia informal, mas penetrante, da cultura sobre os valores e atitu­des de um grupo de pessoas. Assim , como Michael Medved de­monstra em seu livro Hollywood versus América (Hollywood versus Estados Unidos), a elite da mídia hollywoodiana tem o poder hegemónico sobre o que é aceito como normal em nossa socieda­

"Daniel era a última palavra em tudo, o melhor crítico da mídia dos

seus dias."

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de.) Cada vez mais, Israel comprometia sua fé e se acomodava aos deuses dos filisteus, edomitas e outros. Estas culturas eram hostis à fé e cultura hebraicas. Em vez de proibir a construção e adora­ção de imagens esculpidas, eles a incentivavam.21

O enfoque do antagonismo cultural era a adoração de Baal ou Astarote, cultos repletos de imagens visuais de rituais humilhan­

tes, inclusive mutilação e assassinato. A ado­ração popular cú ltica da deusa fem inina Astarote, como prostituta religiosa e deusa san­guinária da guerra, combinou-se com as ênfa­ses familiares ao sexo e violência que caracte­rizam grande parte da cultura popular contem­porânea. O papel do adorador era sua esponta­neidade em ser seduzido na imoralidade de­senfreada por símbolos sugestivos. O escritor

de Provérbios advertiu continuamente os jovens a não entrar no santuário sedutor da prostituta, comparando-o ao boi que vai ser sacrificado no matadouro (Provérbios 7.21,22).22

ídolos literais e rituais orgíacos parecem ser uma coisa distinta— mas muito da mesma coisa acontece simbolicamente quando uma cultura em si toma-se um ídolo, uma deidade, exigindo sua própria forma de sacrifício ritualista. Referindo-se ao problema de Israel, o apóstolo Paulo advertiu: “Não vos façais, pois, idóla­tras, como alguns deles; conforme está escrito: O povo assentou- se a comer e a beber e levantou-se para folgar. E não nos prostitu­amos, como alguns deles fizeram, e caíram num dia vinte e três m il” (1 Coríntios 10.7,8). Paulo sagazmente chamou a atenção à tendência de uma cultura pagã primeiro seduzir seus participantes e, depois, tragá-los em sua violência e cuspir os ossos. Qualquer pessoa que alguma vez já tenha feito parte do frenesi de um con­certo de rock, sabe o quanto é fácil que a batida vibrante reduza o ouvinte ao que o profeta descreveu como jumenta montês no cio (Jeremias 2.24; Ezequiel 23.20). Provérbios 6.26 usa outra metá­fora: “Por causa de uma mulher prostituta se chega a pedir um bocado de pão” .23 Todas estas considerações apontam para o que E . Michael Jones chamou de “A Culpa Secreta de Hollywood” , a tendência da mídia propagar um frenesi dionísio do sexo, violên­cia e horror.24 Os deuses da cultura popular pagã levam à destrui­ção. Como Deus advertiu os israelitas antigos: “Se servires aos seus deuses, certamente será um laço para ti” (Êxodo 23.35).

Na visita de Paulo a Listra (Atos 14), vemos como a cultura helenística dos seus dias tinha sido divinizada. A cultura em si tornou-se um deus com seu próprio seguimento de culto. Depois da cura milagrosa de um aleijado, as multidões estavam certas de que Paulo e Bamabé eram realmente os deuses gregos Hermes e Zeus. O sacerdote do templo de Zeus apressou-se em sacrificar bois e guirlandas àqueles homens que fizeram milagres divinos. As multidões interpretaram o que lhes era maravilhoso e tentaram

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"Um problema persistente que confronta o povo de Deus tem sido o poder hegemónico absoluto das

culturas pagãs circunvizinhas".

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enfiá-lo em sua cosmovisão cultural-religiosa. Paulo e Barnabé corrigiram o engano, mas só a duras penas, mostrando-nos assim outra abordagem à cultura popular. Esta abordagem chama-se re­dentora ou transformacional. Está arraigada no mandamento cul­tural de Génesis e floresce na obra do apóstolo Paulo.

A abordagem redentora reconhece a verdade de ambas as dou­trinas da Criação e da Queda. Também reconhece que assim como Cristo nos redimiu de sermos filhos das trevas para sermos filhos da luz, assim podemos ser luz em nossa cultura: “Portanto, não sejais seus companheiros. Porque, noutro tempo, éreis trevas, mas, agora, sois luz no Senhor; andai como filhos da luz (porque o fru­to do Espírito está em toda bondade, e justiça, e verdade), apro­vando o que é agradável ao Senhor. E não comuniqueis com as obras infrutíferas das trevas, mas, antes, condenai-as. Porque o que ele fazem em oculto, até dizê-lo é torpe. Mas todas essas coi­sas se manifestam, sendo condenadas pela luz, porque a luz tudo manifesta” (Efésios 5.7-13).

Os cristãos são chamados filhos da luz, mesmo quando busca­mos introduzir luz num mundo de trevas lúgubres e fomentar os resultados da luz. Paulo era adepto de achar aberturas para o Evan­gelho na cultura popular de sua época. Sua estratégia comunicati­va de ser “tudo para todos” foi posta em práti­ca no Areópago, onde uma obsessão grega, a adoração a um deus desconhecido, tomou-se oportunidade notável. Citando os poetas gre­gos e referindo-se a peças teatrais, corridas e lutas de boxe gregas, Paulo tomou a cultura ateniense como ponto de partida para introdu­zir a luz do Evangelho. Em vez de separar-se da cultura deles ou de consumi-la sem criticá-la, Paulo a explorou e encontrou meios de adaptá-la aos seus próprios propósitos. Deste modo, ele redimiu e transformou a cultura popular do seu tempo.

Às vezes, a confrontação era necessária. Paulo percebeu que o motivo de lucro subjazia muitos dos valores culturais da socieda­de pagã. Mamom (dinheiro: siclo, talento, dracma, dólar, real) era o verdadeiro deus por trás da maioria dos deuses pagãos. Quando desafiado por Paulo, Demétrio, o ourives que fazia as estatuetas de Ártemis, reuniu seus sócios com palavras que qualquer capita­lista dos dias modernos adotaria: “Aos quais, havendo-os ajunta­do com os oficiais de obras semelhantes, disse: Varões, vós bem sabeis que deste ofício temos a nossa prosperidade” (Atos 19.25). Paulo subverteu a cultura dos comerciantes de dinheiro e atacou sua fonte de lucro ao expor os valores básicos anunciados em Éfeso. Os críticos proféticos de hoje também podem causar tais revoltas entre os patrocinadores comerciais de nossa cultura popular, sobretu­do quando convencem a audiência do poder sedutor das imagens empregadas pela mídia das massas.25 Pois os americanos de fato gastam quantia irregular de dinheiro em entretenimento.

"A abordagem redentora à cultura popular floresce na obra do

apóstolo Paulo".

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A confrontação não era o único meio de lidar com a cultura popular, como Paulo demonstrou em outras situações. O Livro de Atos retrata a interação apostólica com o mundo como aberta, l i­vre e transformadora, embora ciente do perigo dos falsos mestres que entram como lobos cruéis (Atos 20.29-31). O modelo de Je­sus da comunicação encarnada — de v ir ao mundo, mas de per­manecer incontaminado por ele — capacita o povo de Deus a ex­perimentar uma liberalidade e diversidade da vida cultural sem perder o que é essencial à nossa vida e testemunho cristãos.

O povo de Deus não aceita as diferenças culturais facilmente. Foi necessário uma visão dramática para que Pedro estivesse aberto a outra cultura. Deus ordenou que Pedro rece­besse os gentios impuros no gracioso Reino de Deus sem mudar a dieta ou a maioria de suas práticas culturais (Atos 10.9-16; 11.1-18). O Concílio de Jerusalém concordou em negli­

genciar certas questões externas da cultura, como a circuncisão, e só pedir que os gentios se abstivessem “das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação” (Atos 15.29). Paulo estava preocupado que nenhum jugo cultural desne­cessário fosse posto no pescoço dos crentes.26

Como povo da fé, é-nos permitido desfrutar a cultura popular e usar suas matérias-primas para produzir obras de arte bonitas e enobrecedoras. Em outras palavras, temos a permissão de interagir com os tesouros da cultura popular e nos maravilhar com o que é bom e adorável. Podemos escolher um simples filme de entreteni­mento, como Esqueceram de Mim, e nos renovar assistindo a um menino perdido que foi achado e confortado nos confins de uma igreja na época de Natal. Também podemos utilizar a mídia para produzir produtos saudáveis neles e por eles, muito semelhante ao que Ken Wales fez quando produziu a versão televisiva do inspirador livro de Catherine Marshall, Christy.

Com a liberdade para desfrutar o ouro e a prata da sociedade pagã, a cultura visual tornou-se em si um tipo de pedra de tropeço para a Igreja. Os cristãos primitivos acharam-se pisando numa l i­nha tênue entre os perigos da idolatria e as vantagens das ima­gens. Em 725, o imperador Leão I I I de Constantinopla buscou purgar a Igreja do que ele considerava influências supersticiosas pagãs. Ele proibiu o uso de ícones e quadros religiosos no culto.27 Leão ordenou que seus súditos jurassem ódio às imagens (contu­do, os retratos imperiais foram permitidos). Sua proclamação foi vigorosamente contraposta por muitos artistas e monges, e o papa Gregório de Roma levantou-se e excomungou os iconoclastas. O uso de imagens para a igreja e pela igreja foi confirmado e celebrado.

A rejeição das imagens e ícones culturais estava fundamenta­da no dualismo dos maniqueístas (que buscavam ser mais espiri­tuais do que Deus ao condenarem o mundo visível como mau) e

"Os cristãos são chamados filhos da luz, mesmo quando buscamos

introduzir luz num mundo de trevas lúgubres".

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na cosmovisão judaica e muçulmana, as quais consideravam que a reverência a imagens era idólatra. O papa Gregório resistiu a estas opiniões negativas patrocinando um uso positivo de tais emble­mas e símbolos culturais. O Concílio de Nicéia, em 787, solucio-

Scviyim etttO' do& *7Jtcto& ea ^cãtón íci

Com frequência os lilmes são feitos a par­tir das histórias da experiência humana, his­tórias que se julgam ser universais, e do que chamaríamos de mito (Veja a Subseção Mito, no Capítulo 1). Por exemplo, o tema do f il­me de Chris Columbus, Esqueceram de Mim, oferece uma variação num mito antigo de estar perdido e ser achado. O mito não deve ser considerado com o significado de “men­tira” ou “falsidade” . O mito não é o oposto da verdade. Na arte, o mito deve ser enten­dido em seu sentido original, derivado do termo grego mythos, de “história” ou “con­to” . Para C . S. Lew is, o mito atinge profun­damente o coração da humanidade e toca um pouco da realidade transcendente que as for­mas de pensamento discursivo não podem transmitir completamente. O mito, ou a his­tória universal, de um deus que desce à terra e toma a forma humana pode, de acor­do com Lew is, ser encontrado em muitas culturas. No cristianism o, porém, esta his­tória encontra-se combinada com o fato histórico. O mito na verdade aconteceu na pessoa real e histórica de Jesus Cristo. Tais mitos antigos, como um deus piegas que morreu e voltou à vida, comparam-se va­gamente com o verdadeiro evento de nos­so crucificado e ressurreto Senhor. O fato de que essa história curiosa é repetida em várias sociedades é evidência de sua vera­cidade última, pois espera-se ver sombras e reflexos de uma luz genuína. De falo, al­guns mitos populares podem aguçar o apeti­te humano para a fé cristã, quer seja nos meios-tons messiânicos no filme ET — O

Extraterrestre, ou na esperança de amor, t ransformação e renascimento em A Bela e a Fera.

Para um tratamento mais extenso de mito, consulte as seguintes obras:

C . S. Lew is, “ Myth Become Fact” e “Christian Apologetics” , in God in the Dock: Essays on Theology and Ethics, editor Walter Hooper (Grand Rapids: William B . Eerdmans Publishing Company, 1970), pp. 89-103.

Peter L . Berger, A Rumor o f Angels: Modem Sociely and the Rediscovery o f the Supernatural (Garden C ity , Nova York: Archer Books, 1970).

Frank McConnell, Storytelling & Mylh- making (Nova York: Oxford U niversity Press, 1979).

George Gerbner, “Television: Modern Myth-maker” , Media & Values, 40-41, Ve­rão/Outono de 1987, pp. 8, 9.

W illiam F. Fore, Mythmakers: Gospel, Culture and the Media (Nova Yo rk : Friendship Press, 1990).

Geoffrey H ill, llluminating Shadows: The Mythic Power ofFilm (Boston: Shambhala, 1992).

Bernard Brandon Scott, Hollywood Dreams and Biblical Stories (M incápolis: Fortress Press, 1994).

Bruce Babington e Peter William Evans, Biblical Epics: Sacred Narrative in the Hollywood Cinema (Manchester: Manchester University Press, 1993).

Joel W. Martin e Conrad E . Ostwalt Jr., editores, Screening the Sacred: Religion, Myth and Ideology in Popular American Film (Oxford: Westview Press, 1995).

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nou a questão, decretando: “As pinturas, a cruz e os Evangelhos devem receber a saudação devida e a reverência honrada, não re­almente aquela verdadeira adoração que só pertence à natureza divina. [...] Pois a honra que é dada às imagens passa adiante ao que a imagem representa, e aquele que mostra reverência à ima­gem mostra reverência ao assunto nele representado” .28

A imagem foi justificada naquilo que honrava as realidades históricas de Deus trabalhando nos eventos humanos. Em vez de proibir as imagens, a igreja usou os ícones na adoração e ensinamento como meio vital de comunicação. Mais tarde, no sé­culo X IV , Nicolau de L ira enunciou em sua obra Praeceptorium três razões para a instituição das imagens. Primeiro, a maioria das pessoas não sabia ler palavras, mas podia ler imagens. Segundo, as pessoas se lembravam do que viam, mas se esqueciam do que ouviam. E terceiro, visto que as emoções humanas eram lentas, as imagens moveriam as pessoas à devoção. A medida que a igreja reconheceu o valor de atrair sua congregação por meios visuais, produziu ciclos de moralidade e peças de milagre. Porém, o uso de ícones fez com que algumas pessoas colocassem mais fé nas imagens em vez de Deus. Os cristãos contemporâneos que crêem na B íb lia não veneram ícones, mas põem a fé em Cristo e têm um relacionamento pessoal com Ele.

A chave para transformar a cultura popular é reconhecer, com o apóstolo Paulo, que se pode adaptar os veículos de comunicação à audiência. Para a Igreja nos séculos X X e X X I, isso significa que temos de falar a verdade pelas imagens visuais como também pela palavra falada e escrita.

Criando a Cultura de MídiaOs argumentos contra e a favor do envolvimento cristão na

cultura popular não mudaram muito durante os séculos. As ten­sões entre os criacionistas e os conversionistas apareceram cedo na história da Igreja e ainda estão conosco hoje. Um exemplo do in ício do século X X confirma isso. A resposta cristã ao ad­vento do cinema ficou dividida entre uma reação contra e um envolvimento criativo com o novo veículo. A igreja reconhe­ceu os perigos e as oportunidades da nova tecnologia (perspec­tiva que sabiamente se recomenda, à medida que o CD-ROM , a mídia interativa e formas inovadoras de tecnologia digital in­vadem nosso mundo).29

Por um lado, a igreja condenou a técnica e o conteúdo dos “quadros em movimento” . Os filmes foram vistos como “a má­quina fotográfica do diabo” , projetando o mundo, a carne e o dia­bo nas trevas e antros sujos da iniquidade. As tradições da igreja que enfatizavam a pecaminosidade humana e a necessidade de arrependimento procuraram guardar suas congregações de todas as diversões mundanas, inclusive os filmes.

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Por outro lado, já em 1898, o coronel Henry Hadley, evangelista, via os filmes como meio novo e dinâmico de anunciar as Boas- novas mediante parábolas visuais. Hadley usou film es extensiva­mente em suas cruzadas evangelísticas em Atlantic City e na Cos­ta Oeste dos Estados Unidos, atraindo milhares de pessoas para ver seus sermões ilustrados. Ele acreditava que “esses filmes vão ser os melhores mestres e os melhores pregadores na história do mundo” .30

Para os observadores atentos, o valor da cultura popular para a criatividade como também para o evangelismo não foi perdido. Escrevendo em 1922 no seu livro Photoplay Writing (Script para F ilm e baseado em Peça Teatral), o lord W illiam Wright declarou: “Quase todo elemento de enredo pode ser encontrado na Bíblia. Romance, aventura, problemas sexuais — tudo pode ser achado entre as capas do Livro dos Livros, basta você saber procurar. Shakespeare sabia disso e vários dos seus enredos são senão varia­ções de parábolas e histórias muito antigas que a Bíblia apresenta” .31

Em 1920, mais de 2.000 igrejas usavam film es, combinado entretenimento, educação e evangelismo.32 Cristãos conservado­res, como B illy Sunday, viam o potencial do novo veículo popu­lar. Sua esperança concernente à possibilidade para o bem foi com­binada com sua ousadia evangelística em misturar-se com a co­munidade de Hollywood. Em 1915, o diretor Alien Dwan dirigia um filme intitulado Jordan Is a Hard Road (O Jordão é um Cami­nho D ifíc il). Considerando que um dos seus atores devia fazer o papel de um evangelista, Dwan recordava:

Consegui um companheiro chamado Billy Sunday, que era evangelista famoso, como o Billy Graham de hoje, e usei-o como meu conselhei­ro técnico. Montamos uma enorme tenda em Hollywood, em frente ao estúdio, e a enchemos de extras — não profissionais — só pessoas das ruas. Na história, Campeau tinha de arengar-lhes sobre religião e fazer com que viessem a Deus, mas coloquei Billy Sunday no púlpi­to e ele fez um dos seus mais fervorosos sermões; eu tinha cerca de três câmeras filmando só a audiência. Não demorou muito tempo, estas pessoas começaram a sentir o sermão e logo a seguir percebia- se que elas estavam andando de joelhos pelos corredores, indo para a frente do altar a fim de serem salvas, gritando “aleluia” e ficando histéricas. Uma cena maravilhosa. Nenhum grupo de atores de um milhão de dólares poderia tê-lo feito. Podia-se ver o frenesi na face das pessoas da audiência. E depois que cortamos, ele prosseguiu com o avivamento religioso. Então coloquei Campeau no púlpito e en­quanto fazia os gestos do sermão, cortávamos o tempo todo para o povo que já tinha sido atingido pela mensagem. O efeito foi surpre­endente.33

Aqui B illy Sunday modela um entusiasmo sadio e incentivador, mostrando como um pregador que crê na Bíblia veria seu papel de anunciar As Boas-novas em todos lugares, até numa tomada de cena.

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Nos primeiros dias da indústria do cinema a Igreja estava divi­dida em relação ao valor da nova tecnologia. Alguns questiona­vam seu valor. Outras igrejas prontamente a adotaram para atrair e ministrar os que estavam fora de suas dependências. Em 1910, um ministro chamado reverendo Jump visionou as possibilidades do que Deus poderia fazer com os filmes na igreja. Em seu livrete The Religious Possibilities ofthe Motion Picture (As Possibilida­des Religiosas dos Film es), Jump argumentou que quando Jesus apresentou o significado essencial do cristianismo numa língua universal, que falasse aos homens de todas as idades e de todas as raças, E le escolheu uma história dramática. E le contou a Parábola do Bom Samaritano e depois deu um exemplo da pregação ideal, o que muitos pregadores dos dias atuais parecem ter negligencia­do completamente:

4, @niâtao& élrttenatâAo&Quando apareceu a telegrafia, urna das

primeiras tecnologias de comunicação revo­lucionárias, a mensagem profética que Samuel Morse lançou para meditação públi­ca foi: “O que loi que Deus fez?” Devería­mos fazer a mesma pergunta hoje com a ex­plosão das novas tecnologias interativas de comunicação.

Depois de décadas de pesqui­sa sobre os efeitos anti-sociais da mídia, as nações ao redor do mundo descobriram o poderoso impacto positivo do entreteni­mento pró-social durante as dé­cadas de 1980 e 1990. As nove­las de televisão foram usadas para promover a alfabetização no México, o status das mulhe­res na Índia e a inovação agrí­cola no Quénia. Vídeos de mú­

sica populares têm incentivado a abstinên­cia sexual entre adolescente na América La­tina c nas Filipinas. Filmes de arrasar quar­teirões melhoraram as práticas de saúde em Bangladesh e na índia.

O uso do entretenimento para a educa­ção também está se espalhando rapidamente

nos países ocidentais. In felizm ente, o pornógrafo eslá criando outra vez uma des­confiança das novas fronteiras da mídia, como a Internet. Em vez de permitir que os usos corruptores potenciais da tecnologia de comunicação nos façam bater em retirada por causa dos gigantes da Canaã do ciberespaço, o povo de Deus deveria estar agressivamen­te procurando saber como Ele quer usar os CD-ROMs, a realidade virtual interativa e a World Wide Web (a Rede Mundial) para o cumprimento dos seus propósitos. Será que nós, cristãos, não devemos presumir que Deus nos permitiu usar os novos processos de imagens digitais para mais do que apenas visualizar as interações de ex-presidentes com Forrest Gump ou E lv is Presley com os Amantes da Pizza?

Considerando que Deus é o ser mais cri­ativo do universo, os cristãos deveriam estar na vanguarda da criatividade que explora as novas tecnologias de comunicação como meios de propagar idéias, elaborai' mensa­gens e comunicar a verdade. A Sociedade Bíbl ica Americana está usando vídeos e CD- ROMs para ajudar os crentes a visualizar a Escritura. A Christian Broadcasling NetWork

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Note alguns dos detalhes daquele sermão-história. Não foi re­tirado da Torá, mas da experiência contemporânea. Era uma emo­cionante história de assalto. Foi franco em introduzir elementos moralmente negativos e os deixou negativos até quase ao final da história. Não seria perigoso para o estabelecimento da igreja da­queles dias fazer com que o sacerdote e o levita fossem expostos ao ridículo como hipócritas e presunçosos? E quanto aos ladrões, a história realisticamente descreveu seu crime violento e deixou- os vitoriosos em sua maldade. Eles fugiram com o saque, impeni­tentes dos seus pecados, rindo de um homem tolo o bastante para aventurar-se sozinho na notória estrada Jerusalém-Jericó. Apesar de não ser narrativa bíblica para os que a ouviram, a despeito do seu nível de emoção e de suas características realistas e moral­mente negativas, quem ousa afirm ar que a história do bom

está usando a animação para levar histórias bíblicas para milhões de espectadores de tele­visão em mais de quarenta nações. A Ark M ultimedia Publishing está ensinando o criacionismo, a organização Project Light está ensinando fonética da língua com base na B í­blia e a empresa Jubilee Tech International está ensinando a Bíblia em outros idiomas, tudo em CD-ROM interativo. Além da tecnologia de CD-ROM , temos um meio de comunicação até mais poderoso: uma rede internacional, descentralizada, integrada c digital capaz de transmitir textos, gráficos, sons e imagens ao redor globo à velocidade da luz.

O doutor Harry Sova, da Blue Ridge Interactive, Incorporated, aconselha os artistas cristãos criativos a invadirem o mundo digital:

“Agora você pode produzir seus própri­os filmes de multimídia, jogos interativos, materiais de referência etc., com um míni­mo de equipamento, despesa, pessoal e pro­vavelmente fazer tudo isso num quarto so­bre a garagem ou em sua garagem. Só é pre­ciso um punhado de pessoas para levar um projeto do estágio inicial de escrever até a distribuição. A produção não é mais defini­da pelo tamanho dos estúdios, equipamento

ou quantos almoços de negócios foram ne­cessários para fin an cia r seu últim o mcgaprojeio. Use seu talentos dados por Deus c produza um vídeo de música, um jogo orientado à fam ília, um filme épico ou uma revista colorida. Publique-os em CD-ROM, vídeo, áudio digital ou na Internet.”

Alguns estudantes cristãos serão chama­dos a ser os novos artistas criativos a fim de causar impacto em nosso mundo para Cristo pelas novas mídias. Da mesma maneira que C . S. Lewis e J. R . R . Tolkien foram pensa­dores cristãos literários que influenciaram muitas gerações com suas obras escritas, Deus quer reunir um exército de cristãos ino­vadores que fundirão a imaginação com a imagem visual para contar histórias que re­dimam nossa cultura e seus indivíduos. As novas tecnologias da mídia devem ser vistas como oportunidade para os cristãos usarem o poder do entretenimento-educação, para promover valores e crenças bíblicas e abrir janelas elelrônicas em nossa cultura popular para que a Luz entre.

— Dr. W illiam J. Brown, decano, College of Communication and the A rts, Regent University.

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samaritano causou danos ao mundo? Antes, ganhou para si reco­nhecimento na qualidade de ser a parábola central de todos os ensinamentos de Jesus.34

Esta parábola precisaria apenas de um novo título como “As Aventuras de um Ladrão de Estrada” ou “Participantes do Ataque Surpresa ao Samaritano Perdido” , para tomá-lo um filme esplên­dido. Jump acreditava que a igreja podia adotar a forma da mídia visual e comunicar de certo modo coincidente com o próprio esti­lo de Jesus. A igreja poderia colocar vinho novo em odres novos.

Os cristãos são chamados a aproveitar as oportunidades de tra­duzir a fé no vernáculo do dia, para comunicar-se com a era secu­lar pela mídia visual e desafiá-la em seu próprio terreno. No edito­ria l da edição de outono de 1993 do Journal o f Popular Filrn and Television, B ill Brown investigou o que foi chamado de “entrete­nimento pró-social” . Brown comentou o trabalho internacional­mente popular da série de desenhos animados Super-Book, da CBN, em sua influência nas crenças da audiência. Explorando a influên­cia crescente da mídia de entretenimento para tratar dos proble­mas societários e promover comportamentos éticos, ele mostrou a feitura de filmes na Regent University:

Em 1991, um filme popular e premiado chamado Turtle Races (Cor­ridas de Tartarugas) foi produzido para contar a história de um jovem corredor de longa distância que trabalha com crianças excepcionais através do programa das Olimpíadas Especiais. O filme, feito com a intenção de promover uma melhor compreensão e tratamento dos fisicamente incapacitados, foi produzido inteiramente por alunos do curso de cinema da Regent University, em Virgínia. Um ano depois, os alunos do curso de cinema da Regent University produziram Crowning Glory (Glória Coroada), outro filme vencedor de prémios que trata dos esforços de uma família em ajudar a filha a lutar as batalhas físicas e emocionais do câncer.35

O aspecto importante nestes dois trabalhos universitários foi uma forte convicção de que a mídia não é só persuasiva para o mal, mas também para o bem. Se cremos que a mídia pode mudar nossa atitude sobre salvar as florestas tropicais, ou usar o cinto de segurança ou comprar certo creme dental, ela também não pode­ria nos persuadir em relação à integridade, castidade, fidelidade a Deus e a nossas famílias e outras virtudes positivas?

A Escritura confirma a liberdade e a chamada do povo de Deus ir pelo mundo. A missionária Elizabeth Elio t escreveu que Naamã, depois de ter sido curado, perguntou a Eliseu se agora era possível ou adequado ele entrar no templo dos deuses pagãos e ajudar seu senhor na adoração pagã. As palavras de Eliseu foi simples: “Vai em paz” . O cristão é igualmente chamado para ir pelo mundo, mas não a fazer parte dele. Alguns santos, tendo cuidado e sabe­doria apropriados e com fundamentação apropriada nas Escritu­

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ras, serão chamados para ir a Hollywood e trabalhar.36 Fazendo assim, eles podem ser fabricantes de tendas culturais, os Bezalel da mídia, não só publicando abertamente propaganda religiosa, mas também elaborando histórias sutis e boas para o mercado cul­tural. Este trabalho criativo foi feito e está sendo feito por cris­tãos: David Puttnam (Carruagens de Fogo, A M issão), Matt W illiam s (Um Dia a Casa Cai), Don Hahn (A Bela e a Fera, O Rei Leão), Martha Williamson (Tocado por um Anjo), Chris Auer (Big Brother Jake), Peter Engel (Salvo pelo Congo) e ou­tros film es que ferm entaram a cultura hollywoodiana com mídia de virtude e prazer sadio.37 O desafio agora é que as futuras gera­ções de artistas cristãos apanhem a tocha e levem a luz de Deus (o Pai da luz natural como também da luz espiritual) nas trevas do século X X I.

Quando o jornalista britânico G. K . Chesterton visitou os Esta­dos Unidos em 1927, notou que os americanos ficavam aquém de serem verdadeiros camponeses como os de Oberammergau, Áus­tria, que produziram a Peça da Paixão para sua comunidade. O defeito dos americanos é que “eles não produzem sua própria co­mida espiritual no mesmo sentido que a própria comida material. Eles não criam, como algumas classes de camponeses, outros ti­pos de cultura além do tipo chamado agricultura. Sua cultura vem toda das grandes cidades; e é de onde vem todo o mal. Quase não se encontraria em Oklahoma o que se encontra em Oberammergau. O que vai para Oklahoma não é a peça teatral de camponês, mas o cinema. E a objeção ao cinema não é tanto o que vai para Oklahoma quanto o que não vem de Oklahoma” .38 Os cristãos de Oklahoma, M issouri, e do redor do mundo têm de começar a produzir cultura de entretenimento saudável, nutritiva e sustentadora. Somos cha­mados a semear nossa fé na mídia e dar frutos sãos e deliciosos.

Criticando a Cultura da MídiaTemos falado sobre utilizar as ferramentas técnicas da indús­

tria de entretenimento para produzir alternativas que valham a pena e sejam moralmente enobrecedoras. Mas resta outra questão: Que passos práticos podemos tomar para evitarmos ser contaminados quando consumirmos a cultura popular? Várias respostas vêm à" mente.

Primeiro, nossa mente deve estar fixa nas coisas que são de cima (Colossenses 3.1,2). Nossas prioridades na vida devem ser servir a Deus e ao próximo. Muitos de nós ficamos tão preocupa­dos com um vídeo de música televisionado ou um jogo de futebol do Campeonato Brasileiro, que rebatemos qualquer interrupção com grunhidos, resmungos, silêncios de pedra ou outro “Não me aborreça” . Se ficamos tão obcecados com nosso entretenimento

"A Escritura confirma a liberdade e a chamada do povo de Deus ir

pelo mundo".

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que Deus ou um dos seus servos não pode nos incomodar, vende­mos nossa vida ao amor do mundo. A mídia, mesmo a produzida por cristãos ou que contenha mensagem cristã, sempre deve ser posta de lado para as interações humanas verdadeiramente impor­tantes. Não devemos engolir refugo de entretenimento popular, somente porque não temos mais nada a fazer. Podemos assistir

g/4leyn ia, ^ó&cetutcmeetfo“Assisti a esse filme uma noite

dessas e foi terrível!” Ouço constan­temente os cristãos expressarem tais sentimentos provenientes de experi-— i ências desagradáveis com os

j meios de comunicação de massas de entretenimento. Os cristãos parecem não ter pista alguma de como encontrar o bom e exercer a consciência crítica e as habilidades de discernim ento para tirar o maior prazer possível de um filme.

-----1 Para dar crédito aos desi­ludidos, sem dúvida há muitos filmes podres por aí, mas as boas notícias são que tem havido melhores filmes saindo de Hollywood em 1994 e 1995 do que foram lançados desde o início da década de 1960. Considerando que havia só um punhado de filmes para a fam ília e para audiências maduras sadias lançados em 1990, em 1994 quarenta por cento dos filmes lança­dos eram destinados a famílias e hou­ve muitos film es, como While You Were Sleeping, Clear And Present Danger, Shadowlands e The Madness Of King George, que foram destina­dos a audiências maduras, os quais não continham cenas de sexo perver­so, pequenas ou moderadas cenas de violência e poucas palavras de baixo calão. A chave é conhecer o filme que você está a ponto de assistir, e enten­

der a gramática do filme para então ob­ter o máximo dele.

Os cristãos têm de pensar em cada filme de diversos modos: Quais são seus valores artísticos; por exemplo, como diverte a audiência? Que tipo de lingua­gem usa? Como descreve a violência e o comportamento sexual? Também, quais são seus valores morais; por exemplo, como os personagens se relacionam uns com os outros? O quão preciso o filme é ao apresentar os eventos históricos? Qual é sua cosmovisão? Qual e sua mensa­gem global? Este filme c apropriado para crianças? Adolescentes? Adultos? Como este filme se compara com filmes seme­lhantes em sua atitude para com a socie­dade, a política, figuras de autoridade e as causas e soluções aos problemas in­dividuais e sociais? Claro que para o cris­tão a mensagem de todo filme deve ser, em última instância, comparada com a mensagem da Bíblia.

A chave para esta análise e para de­senvolver habi lidades de consciência da mídia crítica é fazer as perguntas certas para obter discernimento do filme. As boas notícias são que o cinema e outros entretenimentos podem ser agradáveis e até divertidos se você tiver direção fi­dedigna na escolha do que é bom, e se desenvolveu habilidades de consciência da mídia para obter mais do filme sem ser manipulado por ele.

— Dr. Te d fíaehr, editor, Movieguide, At/anta, Geârgia.

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para o nosso prazer, mas não apenas porque está lá — para que não nos tomemos o que Jerry Kozinski chamou de “videotas” .39

Segundo, havendo posto o amor a Cristo e ao próximo no cen­tro da vida, temos de avaliar criticamente nossa cosmovisão e nosso caráter. A experiência íntima de Daniel com o Deus vivo e o estu­do do entendimento de sua fé e tradição religiosa, equipou-o a conhecer qualquer cultura estrangeira. Sabemos quais são nossas normas morais, espirituais e estéticas? Se não, somos obrigados a descobri-las. Além do mais, devemos nos dar conta e confessar as fraquezas e tentações às quais somos propensos. Como somos afe- tados por cenas que apresentam profanidade, nudez, violência ou sexo? As imagens do horroroso e do oculto realmente nos atin­gem? Temos uma fascinação descomedida pela tristeza ou sofri­mento, mesmo o sofrimento romântico? Os filmes nos tentam a desejar certos estilos de vida? Vamos examinar nossos motivos para assistir. Contra quais padrões medimos o que assistiremos? Cultura bíblica ou popular? Deus estabeleceu essas ferroadas de consciência e culpa em nosso coração por um motivo. Pela mídia, o mundo oferece as tentações da concupiscência da came, a con­cupiscência dos olhos e a soberba da vida. E eles não se chamam “tentações” por nada. Há algo perversamente fascinante e convi­dativo nos retratos de sexo, violência, heroísmo e sucesso na mídia. É tolice os cristãos se exporem ao que pode assombrar ou feri-los. Do mesmo modo, vamos reconhecer o que enobrece e nos incen­tiva. Há certas narrativas que nos ajudam a constatar a dignidade humana, nos anima, nos inspira compaixão ou nos permite ver aspectos da vida que precisamos ver (ou não ver)?

Terceiro, não podemos assistir passivamente, mascando “o chiclete para os olhos” ; antes, devemos aprender a aplicar critica­mente as categorias estéticas, éticas e teológicas para distinguir o bem do entretenimento ruim. Um filme pode ser tecnicamente bri­lhante ou um modelo de ação soberba, mas ao mesmo tempo mo­ralmente destrutivo. Por outro lado, um programa pode ser teolo­gicamente são, mas esteticamente apático e inferior. É possível que desfrutemos um filme por seu entretenimento e ainda achá-lo repreensível em sua cosmovisão. Temos de perceber que o filme ou programa que estamos a ponto de ver está implicitamente ar­gumentando a favor de algum modo particular de ver a vida. Pro­move certo modo de encarar a vingança, o perdão, a religião, os pais, o sexo oposto, talvez até o valor de uma educação universi­tária. (Neste último ponto, é pertinente perguntar como Absent- Minded Professor, aceitável para a maioria dos cristãos, difere de Animal House.) Quentin Schultze arrazoa que cada história na te­levisão e no cinema “funciona como a B íb lia para milhões de pes­soas” .40 De que maneira estes produtos da mídia de entretenimen­to formam as bases para as pessoas administrarem a vida? A men­te deve estar sempre alerta. Muitos filmes buscam subverter as atividades mentais apelando exclusivamente para as sensações, a

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"Devemos aprender a aplicar criticamente as categorias estéticas, éticas e teológicas para distinguir o

bem do entretenimento ruim".

coragem, a imaginação. Alguns filmes despertam, perturbam ou excitam, chegando a ponto de estimular espectadores irrefletidos a representar o que viram , como o espectador de Beavis and Butthead. A pessoa é o que come. Walt Whitman escreveu que houve uma criança que saiu e tudo o que via tomava-se parte dela. O que está se tomando parte de nós? Devemos estar sempre vig i­lantes, mesmo no lazer de nosso entretenimento casual.41

Não precisamos ver muito da mídia de en­tretenimento para descobrir se é ruim. Nossos padrões baseados na Escritura (não nos padrões da cultura popular), mais o testemunho do Es­pírito Santo dentro de nós, deveriam filtrar mui­tos produtos da cultura popular de nossa con­sideração, para não dizer de nossa frequência.

Aguçar nossas habilidades críticas de verexige que adquiramos uma gramática básica e um entendimento de produção. Podemos aprender a reconhecer os efeitos retóricos e emocionais que a escolha de atores e atrizes, música, iluminação, ângulos de filmagem e muitas outras técnicas de edição, causam em nossas reações a diferentes filmes ou programas de televisão. Tam­bém podemos sondar os valores explícitos e implícitos no filme. Por exemplo, qual é a visão da natureza humana e do dilema huma­no que o filme apresenta? Que posições morais ou intelectuais assu­me? Sua visão da vida é relativista, existencialmente sem sentido, determinista, romantizada? Como retrata a religião, Deus, a igreja ou o cristianismo? Contribui para a nossa percepção de vida como mais violenta ou ridícula ou sublime? Finalmente, nossa perspecti­va sobre a mídia deve ser testada continuamente dentro ou contra uma comunidade de família, amigos, igreja, professores e outros cristãos. Com certeza tal interação sincera e aberta de discussão e debate causa um maior impacto em nós do que o próprio programa.

Conclusão

No final das contas, nossa chamada como cristãos num mundo multicultural deve ser não apenas discernir criticamente e desfru­tar as culturas de outros povos e aprender deles, mas também dar nosso próprio fruto cultural. Como cristãos, estamos sob o man­damento cultural de sermos o sal e a luz deste mundo, não apenas seguidores de Cristo, mas agentes redentores em nossa sociedade. Nos prim eiros dias do cinema mudo, o estudioso bíblico presbiteriano J. Gresham Machen pregou que o cristianismo tem de permanecer ligado e permeado em todas as áreas da atividade humana. “Qualquer ramo do empenho humano [...] deve ser trazi­do em alguma relação com o Evangelho. Deve ser estudado ou para ser comprovado como falso ou para ser tornado útil ao avan­ço do Reino de Deus” .42 Temos de nos perguntar: Nossas escolhas nos levam para Deus ou para longe dEle?

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A totalidade da vida humana deve ser posta em sujeição à sa­bedoria e luz de Deus. Não devemos ingenuamente consumir fil­mes, programas de televisão ou video games', antes, temos de bus­car entender que mensagens persuasivas estas mídias transmitem e como usá-las para comunicar as verdades bíblicas.

Estes dois desafios existem para os cristãos: 1) Ser circunspe- tos sobre o que consumimos e produzimos na cultura de entreteni­mento popular e 2) servir o Pão da Vida a um mundo farto de refugo moral. A igreja pode interromper o programa de trabalho cultural do mundo produzindo artistas cristãos que entretenham uma audiência disposta a ouvir e ponderar numa parábola. Os ser­vos de Deus, como Daniel, foram capazes de interpretar os sonhos de pagãos e ter seus sonhos dramáticos bem como comunicá-los de modo constrangedor para fascinar audiências.

Para concluir, vamos considerar o colapso da Torre de Babel, que confundiu as línguas e a cultura, e outro evento bíblico: o Pentecostes, que reuniu muitas línguas e culturas na proclama­ção do Evangelho. As culturas podem encontrar seu lugar apro­priado no Reino de Deus. Embora não escapemos da cultura, não seremos conformados a ela. Redimidos e transformados, obedecemos o mandamento cultural para desfrutar o que é bom e bonito e exercer nossos dons e talentos na contribuição de tudo o que glorifica a Deus. Quando colocamos a cultura sob o senhorio de Cristo achamos liberdade para desfrutá-la e cultivá- la. Descobrimos que à medida que trabalhamos e adoramos para a glória de Deus, também podemos nos engajar em nossa cul­tura — tanto como consumidores quanto como produtores de cultura — para a glória de Deus. Com esta compreensão em mente, a Madre Teresa de Calcutá vindo depois de Madonna no programa Letterman pode, afinal, não ter sido fato tão estra­nho assim. Na verdade, a humilde, mas robusta, pequena santa de Deus bem poderia ter entrado na vida do artista como res­posta à oração.43

Revisão e Questões para Discussão1. Como Lindvall define “cultura” , “ alta cultura” , “cultura po­

pular” e “cultura popular de entretenimento visual” ? Quais são as relações entre estas noções de cultura?

2. Explique o que significam as palavras de W illiam Kuhns: “O fato é indisputável. As pessoas hoje vivem ‘pela mídia’ , ao passo que outrora viviam ‘pelo livro ’ .” Concorda com Kuhns?

3. Lindvall diz que toda mídia de entretenimento popular co­munica crenças e valores. O que significa isso? Como acontece? Dê exemplos dos programas de televisão, vídeos ou filmes.

4. “As imagens têm a capacidade de seduzir” . O que Lindvall quer dizer com este comentário? O termo seduzir é muito forte

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para o que ele quer dizer? Explique sua resposta e dê exemplos da mídia de entretenimento para ilustrar o ponto.

5. Explique as noções de Lindvall da abordagem criacionista e conversionista à mídia de entretenimento contemporânea. Estas duas abordagens são compatíveis entre si ou representam aborda­gens completamente distintas?

6 . O que L in d va ll quer dizer quando fa la do “ modelo discernente” de Daniel? Quais são os pontos fortes e fracos na tentativa de aplicar a experiência de Daniel na antiga Babilónia à nossa situação no mundo de hoje? As situações são suficiente­mente semelhantes para haver uma comparação valiosa?

7. Qual é o “modelo transformacional” que o autor descreve? Como exemplifica as doutrinas da Criação e da Queda? Descreva como o modelo transformacional funciona quando aplicado a um processo como a televisão ou a produção de filmes.

8. Em sua opinião, a comunidade cristã dominou ou até usou com competência a tecnologia de produção associada com a tele­visão e o cinema? É apropriado para a comunidade cristã agir as­sim? Nesse caso, sob que circunstâncias e para quais propósitos?

9. De uma maneira ou de outra, a maioria de nós é consumido­ra dos produtos criados e distribuídos pela mídia de entretenimento. Resuma as recomendações de Lindvall para evitarmos ser conta­minados pelo que consumimos. Como você avaliaria suas reco­mendações? Acrescente outras recomendações se as tiver.

10. Lindvall diz: “A cultura popular contemporânea raramente se preocupa com o que é ‘bom’ ,” e “Os valores promovidos na cultura popular da televisão e do cinema raramente são os da fé cristã” . Quais são as implicações para os cristãos que contemplam participar em tal cultura?

Projetos Sugeridos para Reflexão1. Se recentemente você viu um film e ou programa de televi­

são, faça uma crítica do que viu usando as recomendações de Lindvall ou algumas diretrizes suas próprias. Se usar suas diretri- zes, explique por que são úteis e adequadas para tal tarefa.

2. Pense em um film e ou programa de televisão que exemplifique os valores que nos enobrecem, acentua a dignidade humana ou enuncia de algum modo uma mensagem de esperança, compaixão, justiça ou amor. Explique como o filme ou programa de televisão enuncia sua mensagem.

3. Suponha que você seja produtor de filmes. Descreva um filme que você produzirá satisfazendo os seguintes critérios:

a) é destinado a atrair uma audiência contemporânea de idade universitária;

b) apresenta um tema cristão e assume uma cosmovisão cristã;c) lida realisticamente com o mau;d) é um filme artístico (não é um documentário).Como seu filme procurará satisfazer estes critérios?

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Notas bibliográficas1. C . S. Lew is, The Weight ofGlory (Grand Rapids: W illiam B .

Eerdmans Publishing Company, 1949), pp. 14, 15.2. Mortimer J. Adler, Art and Prudence (Nova York: Amo Press,

1979), p. 92.3. Matthew Amold, Literature and Dogma: An Essay Towards

A Better Understanding o f the Bible (Londres: The Macmillan Publishing Company, 1924), Prefácio.

4. Dois trabalhos vitais de John Fiske atestam o domínio da mídia de entretenimento na formação da cultura popular: Television Culture (Nova York: Kentledge, 1987) e Rending the Popular (Nova York: Routledge, 1989). Uma das perspectivas cristãs mais lúcidas e convincentes é a obra de Kenneth A . Myers, All God’s Children and Blue Suede Shoes: Christians and Popular Culture (Wheaton, Illino is: Crossway Books, 1989).

5. Neil Postman, Amusing Ourselves to Death (Nova York: Penguin, 1985).

6. Estou em débito com H. Richard Niebuhr, Christand Culture (Nova York: Harper Torchbooks, 1951), por minha compreensão das relações entre estas duas doutrinas da cultura.

7. John Calvin, A Compendium ofthe Institutes ofthe Christian Religion, editor Hugh T. Kerr (Filadélfia: Westminster Press, 1964), pp. 48,49, e Saint Augustine, Confessions, traduzido para o inglês por R . S. Pine-Coffin (Baltimore: Penguin Classics, 1961), p. 133.

8. J. R . R . Tolkien, “On Fairy Stories” , in: Essays Presented To Charles William, editor C . S. Lewis (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1966), p. 57.

9. A questão do mandamento cultural foi tratada na discussão ver­dadeiramente sensata e cheia de insights de Gene Edward Veith Jr., em dois trabalhos: The Gift ofArt (Downers Grove, niinóis: InterVarsity Press, 1983) e State ofthe Arts (Wheaton, Illinóis: Crossway Books, 1991). Veja também Kenneth A . Myers, All God’s Christians and Blue Suede Shoes: Christians and Popular Culture (Westchester, Ulinóis: Crossway Books, 1989), e Leland Ryken, Culture in Christian Perspective (Portland, Oregon: Multnomah Press, 1986).

10. Ingrid Shafer, “ Introduction: The Catholic Imagination in Popular F ilm and Television” , Journal o f Popular Film and Television, volume 19, Verão de 1991, pp. 50, 51.

11. Richard Weaver, Language Is Sermonic (Baton Rouge, Louisiana: Louisiana State Press, 1970), pp. 201-225.

12. Lewis Carroll, Alice’s Adventures in Wonderland (Nova York: New American Library, 1960), p. 84.

1 3 .0 fato de que até insignificantes seriados de comédias de televisão fornecem significados sociais e políticos é levantado na obra de Darrell Y . Hamamoto, Nervous Laughter: Television Situation Comedy and Liberal Democratic Ideology (Nova York: Praeger, 1989). O livro oferece análises críticas importantes de

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como as diferentes décadas das comédias televisivas pregaram versões competidoras do sonho americano.

14. Por exemplo, considere filmes como Duro de Matar e Waterworld.

15. Scott MacDonald destaca que um aspecto chave do film e hollywoodiano é a promoção do adultério. Citando artigos femi­nistas, ele demonstra que “o olhar no cinema é, para todos os pro­pósitos práticos, voltado para o género masculino: a recompensa para o espectador, geralmente, é o corpo feminino erotizado e o próprio fato de assistir aos filmes convencionais toma-se uma for­ma de adultério reprimido. Da mesma maneira que nos filmes muitos homens fazem sexo com mais de uma mulher, o homem [...] espectador vem a ‘conhecer’ as mulheres nos filmes além de quaisquer outras que conheça na vida real” (“From Zygote to Glo­bal Via Sue Friedrich’s Film s” , Journal ofFilm and Video, volume 44, Primavera/Verão de 1992, p. 31). Esta observação feita pelo crítico secular MacDonald parece muito com as palavras de Jesus em Mateus 5.27,28.

16. No seu estudo notadamente inovador The Classical Hollywood Cinema (Nova York: Columbia University Press, 1985), David Bordwell, Janet Staiger e Kristin Thompson fizeram uma exegese nas narrativas dos filmes clássicos de Hollywood para revelar a orientação que os protagonistas dão às metas como uma “reflexão de uma ideologia de individualismo e empreendimento americanos” (p. 16). As pessoas criam ou “causam” seus próprios destinos. Em contraste com tal causalidade pessoal, as histórias adotadas nos filmes soviéticos clássicos eram causadas por fato- res sociais e políticos da coletividade. Outros géneros, como film noir (tipo de filme de crime apresentando personagens malévolas cínicas, numa situação desprezível e numa atmosfera ominosa, que são carregadas por fotografia sombria e m úsica de fundo agourenta), operam num universo fatalista no qual a deslealdade, o desespero existencial e o determinismo inevitável controlam o script. O que é mais notável e animador é a tendência que alguns filmes, inclusive Forrest Gump, A Missão, Carruagens de Fogo, Babbette ’s Feast e até The Time Bandits, reconhecem a possibili­dade da causalidade divina, que Alguém fora da narrativa natural pode ser envolvido no resultado.

17. As revisões críticas positivas destes filmes e de outros po­dem ser obtidas assinando a publicação em inglês Movieguide, de Ted Baehr (c/o The Christian Film & Television Commission, P. O. Box 190010, Atlanta, GA 31119, Estados Unidos) e vários ou­tras revistas americanas de arte e cultural que fornecem base bí­blica, como Books & Culture (P. O. Box 37011, Boone, IA 50037- 2011, Estados Unidos), The Alpha-Omega Film Report (P. O. Box 25605, Colorado Springs, CO 80936, Estados Unidos), e Inklings (P. O. Box 12181, Denver, CO 80212-0181, Estados Unidos). Recomendo especialmente os valiosos irisights que o crítico

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Michael Medved apresenta no programa “Sneak Previews” , da PBS. Você deveria saber que tipo de filme vai assistir antes de se entregar às suas influências sedutoras e hipnóticas. Escolha com sabedoria que imagens vão descansar em sua imaginação.

18. A raiz etimológica da palavra fariseu éparash, que signifi­ca “partir, dividir, separar” . O fariseu é aquele que se separa da contaminação dos outros e de sua cultura. Sua “separabilidade” é revelada numa postura virtuosa aos seus próprios olhos.

19. Isto sugere que a cultura popular da Nova Era, com toda a comunicabilidade da celebridade psíquica só pode ser as religiões cúlticas da Antiga Era vestidas de acordo com a moda moderna.

20. Pelo menos sua experiência vegetariana provou ser mais saudável do que a dieta babilónica mais suntuosa.

21 .-Gene Edward Veith Jr. oferece estudos cheios de insight sobre os fundamentos bíblicos da arte em seu livro State o f the Arts (Wheaton, Illino is: Crossway Books, 1991). Deve-se ressal­tar que todas as imagens artísticas não eram proibidas aos hebreus. Eles abriram espaço para artigos religiosos visíveis no Tabernáculo e no sacerdócio, mas eram primariamente um povo da Palavra. O Tabernáculo com todo o seu esplendor simbólico foi obscurecido por uma cultura de poemas, parábolas, salmos e profecias.

22. Esta imagem foi encenada graficamente num melodrama produzido em 1987 por Adrian Lyne, no qual uma descarada per­sonagem adúltera seduziu um personagem masculino casado. E la morava justamente em cima de um matadouro, o que pressagiava a morte brutal de um tolo e o esforço em direção ao clímax de assassinar a esposa dele. O filme era um aviso vívido e perturbador a qualquer um que tenta enganar seu cônjuge. Na verdade o filme ressaltava a consequência do pecado que é a morte — como desta­ca a advertência terrível do capítulo 7 de Provérbios.

23. A relação adversativa da fé cristã com as indústrias do c i­nema e da televisão foram explicadas detalhadamente em livretes por conservadores como A . W. Tozer, em Menace ofthe Religious Movie (W isconsin Rapids, Wisconsin: Rapids Christian Press, Incorporated) e Gordon Lindsay, em Should Christian Attend the Movies? (D allas: The Voice of Healing Publishing Company, 1964). O que é fascinante é que os pós-modernistas estão ecoando as preocupações destes cristãos de uma geração anterior. De inte­resse particular são as obras de Jean Baudrillard, cujos títulos in­dicam sua visão da mídia de entretenimento: Seduction (Sedução) (Nova York: St. Martin’s Press, 1979) e The Evil Demon oflmages (O Demónio Mau das Imagens) (University of Sydney, Austrália: The Power Institute, 1988).

24. E . Michael Jones, “Hollywood’s Guilty Secret: How the Fetus Became a Monster; How Sex Became a Horror” , Culture Wars, volume 1, n.° 1, Junho de 1995, pp. 25-37.

25. Os editoriais atacaram o crítico de filme Michael Medved, depois de sua exposição dos fatos da bancarrota moral da indús­

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tria do cinema, Hollywood versus America: Popular Culture and the War on Traditional Values (Nova York: Harper Collins, 1992). E a ameaça de não ter mais lançamento no negócio bem pode ter impressionado K . L . B illingsiey a sua obra “Christian Critique of the World of Film ” , in: The Seductive Image (Westchester, Illinois: Crossway Books, 1989).

26. Os sentimentos de Paulo seriam ressoados séculos depois por Agostinho, em sua discussão sobre o “ouro egípcio” em On Christian Doctrine: “Da mesma forma que os egípcios tinham não apenas os ídolos que o povo de Israel detestava e evitava, mas também os vasos e ornamentos de ouro e prata e roupas que os israelitas levaram consigo quando fugiram secretamente, como que a dar melhor uso a essas coisas. Não fizeram isto segundo sua própria autoridade, mas sob as ordens de Deus, enquanto os egíp­cios, de má vontade, os abasteciam de coisas que eles mesmos não usavam bem. Da mesma maneira, todo o ensino dos pagãos tam­bém contém [...] disciplina liberal mais adequada aos usos da ver­dade. [...] Estes são, como se fossem, o seu ouro e prata” . Quando os cristãos se separam em espírito de sua sociedade miserável, devem levar consigo o tesouro do inimigo. Quando coisas boas ou neutras, quer seja a retórica antiga ou o cinema moderno, são “per­versa e injuriosamente abusadas na adoração de demónios” (como diz Agostinho), o cristão deve pegá-los e convertê-los em usos saudáveis.

27. Foi de onde surgiu o termo iconoclasta, que significa “aque­le que quebra imagens e esmaga ícones” .

28. John Bright, A History o f Israel (Filadélfia: Westminster Press, 1959), p. 149.

29. Trabalho criativo está sendo feito com a nova tecnologia pela Sociedade Bíblica Americana em Nova York.

30. Terry Ramsage, A Million and One Nights (Nova York: Simon & Schuster, 1926), p. 375.

31. W illiam Lord Wright, Photoplay Writing (Nova York: Falk, 1922).

32. G. W illiam Jones, Sunday Night at the Movies (Richmond, Virgínia: John Knox Press, 1967), p. 25.

33. Peter Bogdonovitch, Alien Dwan: The Last Pioneer (Nova York: Praeger, 1971).

34. Reverendo Herbert A . Jump, The Religious Possibilities of the M otion Picture (New B rita in , Connecticut: South Congregational Church, 1911).

35. W illiam J. Brown e Arvind Singhal, “Ethical Considerations of Promoting Prosocial Messages Through the Popular Media” , Journal o f Popular Film and Television, volume 21, n.° 3, Outono de 1993, pp. 92-99. In: “Using Pop Culture to Fight Teen Violence” , The Chronicle o f Higher Education, 21 de julho de 1995, p. A5, Amy Magaro Rubin argumenta que as mensagens pró-ativas posi­tivas, como as projetadas por Jay Winsten, diretor do Centro

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Harvard para Comunicação de Saúde, têm impacto poderoso na juventude.

36. Jesus pregou que Deus não tiraria Seus discípulos do mun­do, mas que eles seriam livres do mau (João 17.15). Neste senti­do, tenho de reconhecer o ousado trabalho de vanguarda de FrancisA . Schaeffer e de seu filho Franky Schaeffer por fornecer denoda­da apologética para os cristãos se envolverem nas artes. Sobretu­do veja Francis A . Schaeffer, Art and the Bible (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1979), e Franky Schaeffer, Sham Pearls for Real Swine (Brentwood, Tennesse: Wolgemuth & Hyatt, 1990). No entanto, estou em mais débito com C. S. Lewis e suas compo­sições, especialmente “Christianity and Literature” e “Christianity and Culture” , in: Christian Reflections (Grand Rapids: W illiamB . Eerdmans Publishing Company, 1967).

37. M ichael Medved, “Elites in Hollywood Rediscovering Traditional Religion” , Washington Times, Edição Semanal Nacio­nal, 1 a 7 de maio de 1995, p. 23.

38. G. K . Chesterton, “What I Saw In America” , in: G. K. Chesterton: Collected Works, 21 (São Francisco: Ignatius Press, 1990), p. 106.

39. Jerry Kozinski, Being There (Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1970).

40. Quentin Schultze, Television: Manna From Hollywood? (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1986).

41. Em sua obra Roaring Lambs: A Gentle Plan to Radically Change Your World (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1993), Bob Briner elaborou um conjunto muito sensato de passos de ação para lidar com a crítica da mídia. E le também apresenta o bacharel Frank Schroeder da Regent University como diretor in­dependente de filmes de fam ília de qualidade (Pistol Pete), que ajuda a introduzir um entretenimento sadio no mercado da mídia.

42. J. Gresham Machen, “Christianity and Culture” : in: The Banner ofTruth (Junho de 1969).

43. Gary Liddle, Professor Adjunto de Estudos Bíblicos, da Evangel University, e Michael Palmer, Professor de Filosofia, da Evangel University, deram extensa e valiosa ajuda editorial. Dayton Kingsriter, membro da mesa diretora editorial da Logion Press, fez comentários completos sobre todos os aspectos do manuscri­to, pelo que sou-lhe grato.

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12Política para

Cristãos (e Outros

Pecadores)

Dennis McNutt

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os bons velhos tempos, quando eu tinha bastante cabelo para valer a pena ir ao barbeiro, aprendi uma das normas dessa instituição singular. Fale à vontade sobre pescaria,

futebol, o tempo ou a situação económica, mas só se aventure no tópico da religião ou da política se você tiver certeza de que todos concordarão com você. Tratando desses dois assuntos, é bem fácil você dar início a uma discussão acalorada que perturbará a atmos­fera de quietude. Todos somos “peritos” nesses itens que têm a ver com alguns dos maiores temas da vida humana - o certo e o errado, o significado da vida e da morte, a justiça e a política. Também tendemos a ter opiniões fortes sobre esses temas. A re li­gião e a política não são assuntos para brincadeira casual. Quando discutimos algum desses tópicos, despertamos nossas mais pro­fundas paixões e crenças; quando os combinamos, estamos mistu­rando e sacudindo infusão explosiva.

Combinar política e teologia é exatamente o que pretendo fa­zer neste capítulo. Talvez seja verdade que só o ignorante ou o arrogante tentaria fazê-lo em público. A final de contas, até as maiores mentes podem tornar-se especialistas em um ou o outro desses grandes temas, sem falar em dominar ambos. Não obstante, me arriscarei nos dois. O ser humano será envolvido em política. E ser cristão é colocar toda a nossa vida sob as reivindicações do Evangelho, e isso inclui política. Toda vez que votamos ou ex­pressamos opinião sobre um assunto político, como o controle de armas, a oração nas escolas públicas ou se o aborto deve ou não ser legalizado, estamos operando em ambos os campos. Assim , inevitavelmente combinamos política e teologia.

Pensando em Política para CristãosInfelizmente para os estudiosos cristãos, a B íb lia não é um li­

vro didático de teologia política para o mundo moderno. E la nos oferece poucas passagens explícitas sobre o papel adequado dos governos. Romanos 13.1-6 nos fala que os governos são estabele­cidos por Deus e os cristãos devem se submeter à autoridade governante. Isso parece bastante claro, mas já no início de Atos descobrimos que Pedro e os apóstolos foram presos e encarcera­dos por pregar o Evangelho e fazer sinais e maravilhas. Então um anjo do Senhor organizou para eles uma fuga da prisão e ordenou- lhes que voltassem à arena pública e continuassem a quebrar a lei pregando o Evangelho. Quando arrastados de volta diante das au­toridades, eles declararam: “Mais importa obedecer a Deus do que, aos homens” (Atos 5.12-29). Aqui a B íb lia parece ensinar que, em algumas circunstâncias, temos de desafiar a autoridade governa­mental. O pronunciamento enigmático de Jesus, que devemos dar “a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (Mateus 22.21; Marcos 12.13-17), também não ajuda muito, exceto que diz que o governo tem a autoridade de cobrar impostos para pro-

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pósitos legítimos, quaisquer que sejam eles. A B íb lia não é clara em definir os limites desta autoridade.

Quando lemos os melhores estudiosos sobre o que a Bíblia ensina a respeito dos cristãos e da arena política, descobrimos quase tantas opi­niões quanto escritores. Alguns de nós fomos à faculdade ou seminário para estudar no “original grego” , esperando afinal descobrir a resposta.Infelizmente, esquecemos que os estudiosos bíblicos também estuda­ram os idiomas originais dos manuscritos bíblicos, e eles ainda têm muitas discordâncias. Lendo os melhores cientistas políticos, mesmo cristãos, não acharemos uma resposta simples; eles também discordam sobre a filosofia política, e não são estudiosos bíblicos treinados.

Diante desta falta de consenso, seria compreensível se jogás­semos as mãos para cima e disséssemos que o empreendimento é impossível de ser feito. Mas não se desespere! A B íb lia não exige que sejamos perfeitos em nossa compreensão, somente fiéis ao que compreendemos (Romanos 14.4,5). Os estudiosos bíblicos e os cientistas políticos cristãos concordam em muitas áreas deste assunto, e as áreas de concordância fornecem o bastante para man­ter qualquer crente ocupado procurando viver uma vida fie l, quer como cidadão, estudioso, ativista político ou funcionário público.Confiantes na certeza de que podemos concordar em muitas áreas da teologia política, não nos esqueçamos da complexidade de nosso desafio e dos muitos grandes pensadores cristãos, que têm discor­dado uns dos outros ao longo dos séculos.

R e c o n h e c e n d o N o ssa s L im ita ç õ es

À medida que reconhecemos nossas diferenças com outros cris­tãos, fazemos bem em ser tolerantes com eles, porque pode ser que estejamos errados. Temos muito a aprender com os outros membros da comunidade da fé. Tão difícil quanto possa parecer, de­vemos ser ardorosos ao procurar entender o que a Bíblia ordena, ao mesmo tempo que nos mantemos humildes diante das limitações de nossa compreensão. Sempre devemos nos lembrar de que talvez te­nhamos setores cegos em nosso julgamento, que tomam algumas das declarações do Evangelho difíceis de reconhecer.

Até com nossas opiniões atreladas à humifdade, enfrentamos tarefa espinhosa. O estado incompleto em que os ensinamentos da B íb lia sobre governo e política se encontram é complicado pela ambiguidade do muito que temos de procurar entender. Idéias como justiça, retidão, igualdade, liberdade, paz, democracia, direitos humanos, a imagem de Deus e redenção são generalidades princi­pais. Precisamos de vocábulos como estes para a nossa conversa­ção. Mas as generalidades trazem ambiguidade e incerteza, o que quase sempre leva à confusão.

P e n s a n d o e m A spe c t o s E spe c íf ic o s

Os cristãos muitas vezes concordam facilmente entre si, contanto que a discussão fique no nível da generalidade. Todos

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cremos nos princípios gerais da liberdade e justiça. Quando damos atenção séria a casos concretos, descobrimos o quanto o nosso acor­do no nível geral esconde numerosas discordâncias sobre o modo como os princípios devem ser aplicados. Por exemplo, concorda­mos que devemos amar o próximo, mas o que isso significa quan­do somos desafiados com o modo como responder aos imigrantes ilegais que foram feridos ou perderam seus bens no terremoto de Los Angeles em 1994? Devemos prestar-lhes cuidados médicos gratuitos por causa dos seus ferimentos? Devemos subsidiar a re­construção de suas casas e pagar-lhes moradia temporária, como nós, americanos, fazemos com os residentes legais? Ou devemos apenas depender de doações particulares e das igrejas para satisfa­zer-lhes as necessidades? Devemos recolhê-los como “criminosos” que estão ilegalmente nos Estados Unidos e deportá-los? Devemos tratá-los diferentemente se eles e seus filhos têm frequentado nos­sa igreja e são nossos irmãos e irmãs em Cristo? Nossa resposta deveria ser diferente se os danos causados pelo terremoto tivessem acontecido um pouco além da fronteira dos Estados Unidos, em Tijuana, México?

A idéia de igualdade apresenta dificuldades semelhantes no entendimento e na concordância. A igualdade parece uma grande idéia até que perguntemos se as mulheres devem ser convocadas para o exército, ou se devem lutar como soldados de linha de fren­te ou pilotos de jatos em combate. Os direitos dos homossexuais devem ser idênticos aos dos heterossexuais? E o esforço de asse­gurar que os negros tenham plena igualdade que os brancos? Igual­dade de oportunidade é o bastante? Permitiremos que os negros tornem-se oficiais da polícia se eles passarem nos mesmos exa­mes que os outros candidatos? Ou devemos patrocinar programas de ação afirmativos que dêem aos negros tratamento preferencial nas contratações para tomar a porcentagem de oficiais negros igual à porcentagem de cidadãos negros na população circunvizinha?

Devemos exigir que as bombeiras passem nos mesmos testes físicos que os homens? Que peso candidatos e candidatas devem conseguir carregar subindo dois andares numa escada de mão - 10, 25, 40 quilos? Se fixarmos o padrão mais alto do que poderia ser satisfeito nas reais condições de trabalho, a exigência discri­minará injustamente as mulheres?

O u v in d o o E v a n g elh o I n teir o

Mesmo quando nós, cristãos, concordamos nos aspectos espe­cíficos, também temos problemas em ouvir tudo do Evangelho. A B íb lia nos ordena amar a Deus e ao próximo (Levítico 19.20; Marcos 12.30,31). Somos ordenados a fazer ambos da mesma maneira. O quanto sabemos de cada um destes dois mandamentos é influenciado ou por sermos teologicamente conservadores ou lib e ra is . Os conservadores teológicos - evangélicos fundamentalistas, pentecostais e carismáticos - parecem levar o

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primeiro mandamento mais a sério do que o segundo. Suas bibli­otecas estão apinhadas de livros sobre como chegar mais perto de Deus e ficar mais espiritual. Eles desejam tornar-se mais seme­lhantes a Cristo e mais santos. Estudam dou- __________________trina e teologia atentamente. Lêem livros so­bre como descobrir a vontade de Deus para suas vidas e como desenvolver seus dons espiritu­ais. Mas enquanto se dedicam ao dever de amar a Deus, alguns tendem a prestar menos aten­ção aos ensinamentos bíblicos no que concerne aos pobres, estrangeiros, viúvos e oprimidos.

A B íb lia ensina que eles também, tanto quanto a fam ília que mora na casa ao lado, são nossos próximos. Os teológicos liberais são inclinados a ouvir a chamada da Bíblia para a justiça social, mas não tendem a preocupar-se demais com a devoção pessoal. A proporção que liberais e conservadores, cada um, enfatiza um lado do ensinamento da B íb lia, sofrem de uma divisão artificial em sua espiritualidade. Uma vida cristã plena tem de reconhecer que tanto nosso relacionamento com Deus quan­to nosso relacionamento com os outros, pessoal e politicamente, são partes essenciais da vida cristã.

Esta visão da vida cristã dará à nossa espiritualidade duas di­mensões. Em certo sentido restrito, espiritualidade significa forta­lecer nosso relacionamento pessoal com Deus. A Bíblia contém abundância de advertências para buscarmos a face de Deus, tanto quanto na ocasião em que certo homem disse que antes de seguir a Jesus, primeiro ele tinha de enterrar seu pai; a resposta de Jesus foi: “Segue-me e deixa aos mortos sepultar os seus mortos” (Mateus 8.21,22). Em certo sentido mais amplo, espiritualidade inclui tra­balhar nossos relacionamentos com os outros seres humanos.1

Poderíamos chamar estas duas dimensões de “espiritualidade pietista” e “espiritualidade aplicada” . A espiritualidade pietista pode fazer com que nos retiremos do mundo das atividades diárias para buscarmos a face de Deus em um lugar tranquilo. Os monges, os guerreiros de oração e os que passam horas por dia estudando a Bíblia vivem este tipo de espiritualidade. A espiritualidade aplicada envolve agir em todos os nossos relacionamentos com os outros seres humanos, de modo a mostrar que os amamos “como a nós mesmos” . Sei como me amar. Quando tenho dificuldade em respirar, luto por ar. Quando estou com sede, procuro água imediatamente. Quando preci­so de dinheiro, esforço-me para adquiri-lo. Quando sou ameaçado, tento eliminar a ameaça ou fugir dela. Quando minha liberdade é ameaçada, batalho por preservá-la. Quando estou doente, procuro um bom hospital, médicos e remédios. E is o desafio: Se a passagem da Escritura sobre amar o próximo como a mim mesmo significao que diz, então tenho de fazer o mesmo pelo próximo.

Nós, cristãos, pensamos que sabemos quem é Deus, mas quem de fato é o próximo? Só a família que mora na casa ao lado? As

Em certo sentido mais amplo, espiritualidade inclui trabalhar nossos relacionamentos com os

outros seres humanos.

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pessoas da cidade? Os membros de nossa congregação local? A denominação em geral? O Corpo inteiro de Cristo? Todos os seres humanos? Até as pessoas famintas da Somália e do Haiti? A implica­ção é que se o nosso bairro se estende pelo mundo inteiro, nossa pre­ocupação também tem de se estender pelo mundo inteiro.

Os cristãos conservadores às vezes criticam os liberais por não darem bastante atenção à devoção pessoal. Contudo, talvez este­jam muito ávidos para arrancar a trave dos olhos dos seus próxi­mos liberais. Porquanto os liberais teológicos possam ter errado por negligenciar a devoção pessoal, eles estão parcialmente cer­tos: O Evangelho é as Boas-novas aos pobres e oprimidos. Os li­berais entendem corretamente que os cidadãos cristãos têm uma responsabilidade por leis justas e um sistema social justo. Eles assumiram a direção nos Estados Unidos na luta contra a segrega­ção nas escolas públicas e pela igualdade de todos os cidadãos, qualquer que seja sua cor. Eles trabalharam por reformas que exi­giram que o governo e as empresas tratassem as pessoas - como disse Martin Luther King Jr. - de acordo com o conteúdo do cará- ter, e não pela cor da pele.

Como lembrança da preocupação de Deus pelos desfavorecidos, leia o Salmo 146. Sua poesia eloquente declara que Deus está ao lado dos oprimidos, famintos, prisioneiros, cegos e abatidos. Deus cuida dos estrangeiros, sustenta os órfãos e as viúvas. Assim o Evangelho nos exige uma espiritualidade pessoal e pública.

Steven Monsma ilustra esta dimensão pública da espiritualidade com uma história recontada do Bom Samaritano. Na sua versão, o viajante foi espancado e roubado, mas um bando de ladrões su­bornou o centurião local para olhar para o outro lado. Monsma

1 Louvai ao SENHOR! 0 minha alma, louva ao SENHOR!

2 Louvarei ao SENHOR durante a minha vida; cantarei louvores ao meu Deus enquan­to viver.

5 Não confieis em príncipes nem em fi­lhos de homens, em quem não há salvação.

4 Sai-lhes o espírito, e eles tornam para sua terra; naquele mesmo dia, perecem os seus pensamentos.

5 Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio e cuja esperança está posta no SENHOR, seu Deus,

f’ que fez os céus e a terra, o mar e tudo

quanto há neles e que guarda a verdade para sempre;

7 que faz justiça aos oprimidos; que dá pão aos famintos.

O SENHOR solta ao encarcerados;8 o SENHOR abre os olhos aos cegos; o

SENHOR levanta os abatidos; o SENHOR ama os justos;

9 o SEN HO R guarda os estrangeiros; ampara o órfão e a viúva, .mas transtorna o caminho dos ímpios.

10 O SENHOR reinará eternamente; o teu Deus, ó Sião, é de geração em geração. Louvai ao SENHOR!

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POLÍTICA PARA CRISTÃOS (E OUTROS PECADORES) 4 3 3

argumenta que ajudar a vítima é claramente um dever cristão. Mas, também argumenta que ajudar a vítima pessoalmente seria apenas tratar dos sintomas. Os ladrões continuarão espancando e rouban­do, enquanto o centurião olha para o outro lado. O roubo indivi­dual é mau, mas a corrupção do centurião é um mal maior, porque permite que roubos continuem ocorrendo sob a proteção daqueles que têm a obrigação de proteger a sociedade. Neste caso, deve­mos eliminar a causa - o sistema de centuriões “corruptos” que protegem os malfeitores.2

Como cristãos preocupados com a esfera pública, não deve­mos nos conformar só com atos individuais de decência e carida­de para com o próximo. Sob circunstâncias adequadas, os cristãos devem, por exemplo, apoiar o aumento de impostos para pagar uma nova estação de tratamento de água. Nossos impostos podem contribuir para melhorar a saúde do próximo. Mas mesmo apoian­do uma nova estação de tratamento de água, devemos estar certos de que não estamos resolvendo apenas um sintoma em vez da cau­sa da poluição.

A fonte do problema pode ser fábricas que despejam lixo tóxi­co rio acima, no rio que abastece a cidade. Ou o problema pode ser causado por indústrias que despejam substâncias químicas tó­xicas em covas abertas. O veneno dessas substâncias contamina os lençóis de água subterrâneos e espalha-se pela comunidade. Lidando com o abastecimento de água poluída, a construção de uma nova estação de tratamento de água pode ser apenas parte da solução. Aqueles que poluem podem estar impondo os custos de construir uma nova estação de tratamento de água na comunidade em geral, em vez de dar um fim seguro ao lixo que produzem.

Despejar o veneno no rio ou abrir covas corta despesas no tra­tamento do lixo e aumenta os lucros da companhia; os donos eco­nomizam dinheiro, mas os cidadãos locais têm de pagar mais im­postos e sofrer problemas de saúde. Os economistas descrevem as práticas poluidoras como “exteriorização” dos custos de produ­ção. Quer dizer, as empresas passam alguns dos custos de opera­ção aos membros das comunidades circunvizinhas. Em alguns casos, exteriorizar os custos pode resultar em nascimentos de cri­anças com severas deformidades físicas.

Quando tomamos conhecimento de que as companhias estão exteriorizando seus custos, os cristãos não podem dizer: “ Somos nós guardadores dos nossos irmãos?” No grande ajuste de con­tas final, o Senhor dificilm ente ficará satisfeito com nossa ex­plicação de que não trabalhamos para elim inar males sociais como estes, porque estávamos muito ocupados em ser espiritu­ais. Não agradaremos a Deus dizendo que durante nossos dias na Terra vivemos uma fé dicotomizada, enfatizando ou a devo­ção pessoal ou a justiça social. Ele nos exigirá que demos conta de nosso relacionamento pessoal com Ele , e como amamos o próxi­mo como a nós mesmos.

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A m a n d o p e l a P o l ít ic a

Quando amamos o próximo o bastante para defender as vítimas de um abastecimento de água poluída, descobrimos que o melhor meio de lidar com o problema é pela ação política. A maioria de nós achará desajeitado pensar em política como meio de amar o próximo. Temos mais facilidade em pensar em amor expresso por ações parti­culares. Contudo, se somos compassivos para com os inocentes pre­

judicados pela polícia corrupta ou por leis que permitem a poluição, precisaremos recorrer a ação política para mudar as políticas governantes. Pela política, ocasionamos reformas na polícia e mudamos a lei para punir os que poluem. Além disso, se o abastecimento de água da cidade está contaminado, podemos apoiar o aumento de im­

postos para pagar uma nova estação de tratamento de água.E is outro exemplo de como podemos amar pela política. Os

promotores públicos exercem grande nível de discrição no modo como executam sua autoridade em arquivar acusações criminais. Por exemplo, nos Estados Unidos eles têm o poder de resolver ou pedir a pena de morte ou uma sentença menor em determinado caso de homicídio. A história da justiça americana mostra que os negros que cometeram assassinato premeditado têm mais proba­bilidade de enfrentar uma sentença de morte do que os ofensores caucasianos que cometeram o mesmo crime. Tais injustiças deveriam ser um mau cheiro nas narinas dos cristãos como são nas de Deus.

Se amamos nossos irmãos e irmãs como a nós mesmos, deve­mos trabalhar para pôr em execução reformas legais. Nosso siste­ma democrático de governo toma isto possível. Se alguém cha­mado John Smith fosse acusado de um crime na Califórnia, o caso seria chamado O Povo da Califórnia contra John Smith. O título deste caso mostra que os cidadãos da Califórnia estão fazendo acusações criminais contra John Smith. O promotor público pro­cessa o acusado em nome dos cidadãos. Quer dizer, o promotor público age em minha defesa, visto que sou cidadão da Califórnia. Eu me uni com outros cidadãos para aplicar nossos poderes combi­nados em uma única pessoa. A medida que sou capaz de influenciar o que a polícia e os promotores públicos fazem em meu nome, sou moralmente responsável por suas ações e por suas injustiças.

Se nós, cristãos, devemos amar o próximo, temos o dever de monitorar a polícia e os tribunais que aplicam seus poderes teme­rosos no próximo. As autoridades públicas merecem nosso apoio quando protegem os inocentes e castigam os malfeitores. Quando erram - como quando, por exemplo, nos Estados Unidos, pelos mesmos crimes se dá muito mais sentenças de morte para negros do que para brancos - , temos de exigir reformas. Trabalhar por justiça no sistema legal é ato de alta espiritualidade em todos os seus sentidos, como é jejuar, orar, pagar os dízimos ou ir ao cam­po missionário, pois trata-se de uma maneira de amar o próximo.

A maioria de nós achará desajeitado pensar em política

como meio de amar o próximo.

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POLÍTICA PARA CRISTÃOS (E OUTROS PECADORES) 4 3 5

P r o c u r a n d o P r in c íp io s U n iv e r sa is

Ao desenvolvermos uma abordagem cristã sobre política te­mos de evitar definir a política muito estritamente. A política toma muitas formas; aparece em todos os tipos de organizações huma­nas, da menor à maior. Nosso pensamento sobre o poder político tem de considerar todas as formas de organização, formal e infor­mal, grande e pequena.

Por exemplo, temos de considerar como a política opera nas famílias, sociedades, empresas, clubes, igrejas, denominações, sin­dicatos, prefeituras, equipes atléticas, associações comerciais, or­ganizações sem fins lucrativos, seminários, faculdades e universi­dades cristãs, governos estudantis, partidos políticos e o sistema político internacional. Os cristãos vivem a vida em todos estes níveis de organização social. E todos estes níveis envolvem pro­cessos políticos, como explicarei mais adiante nesta discussão.

Nossos princípios têm de se aplicar a ampla variedade de culturas. Devemos ser particularmente cautelosos ao desenvolver uma teologia política a partir da estreiteza da experiência política americana. Por exemplo, os americanos brancos e de classe média podem ter uma vi­são generosa dos governos, porque o seu governo os servem bem.

Muito compreensivelmente eles acreditarão que a polícia será respeitada e as leis obedecidas. Mas muitos cristãos em outras partes do mundo vivem sob governos que são antidemocráticos, corruptos e até tirânicos. Se deixarmos isso de lado, também po­demos interpretar facilmente Romanos 13.1-6, que diz: “Quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus” , como conces­são quase ilimitada de autoridade divina aos governos. Os cris­tãos americanos de classe média também podem presumir que a resistência contra o governo é rebelião espiritual e política. Nossa teologia política tem de fazer sentido em democracias constituci­onais, sistemas políticos tribais, tiranias islâmicas radicais, um estado fascista como a Alemanha de H itler e ditaduras militares corruptas. Não deveria nos surpreender que os cristãos em Bangladesh, Uganda, Brasil ou Rússia lessem e interpretassem as Escrituras um pouquinho diferentemente do que os americanos fazem. O problema é que os cristãos tendem a aplicar princípios bíblicos de maneira culturalmente parcial.

Há alguns anos, participei de um culto numa igreja da seção negra em Pretória, Á frica do Sul, numa época em que negros e mestiços eram forçados a viver em segregação dos brancos. Meus irmãos e irmãs de cor liam diferentemente a Escritura do que eu estava inclinado a ler como americano branco e de classe média. Eles sabiam que Deus estava do lado dos pobres e oprimidos. Nessa igreja, era pouco provável haver muitas pregações sobre como ter uma vida de fé que os tomasse saudáveis e ricos; seus cânticos eram orações de libertação e seus sermões tratavam de como viver sob pressão política. Folheando suas Bíblias, eles paravam nos versículos que falavam com suas necessidades espirituais particulares.

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Os americanos tranquilos fazem o mesmo; ambos os conjuntos de crentes naturalmente saboreiam porções diferentes da Escritura. Por isso, precisaremos lutar para superar as limitações de nossa ex­periência, raça, sexo e nacionalidade, se queremos que o Evangelho tenha plena autoridade para falar aos nossos corações. Nossos prin­cípios bíblicos têm de fazer sentido em Pretória, Á frica do Sul, e Peória, Illinois, Estados Unidos, ou Rio de Janeiro, Brasil.

Se como cristãos devemos pensar construtivamente sobre polí­tica, temos de evitar os erros comuns de pensamento acerca de uma visão bíblica da política. Não entendemos com facilidade o que a B íb lia pretende em assuntos políticos, visto que não é um livro de como fazer política. Talvez passemos momentos difíceis procurando manter um equilíbrio adequado entre as exigências bíblicas de espiritualidade pessoal e pública. Todavia, vimos que Deus estabeleceu os governos para mais que proporcionar segu­rança de inimigos externos e desordem interna.

Os governos são organizações exclusivas que exercem poder autorizado na sociedade em geral. Como tal, eles podem ajudar a equilibrar a balança da justiça entre o poderoso e o impotente. Pensando nisto, podemos nos engajar em outro pensamento acer­ca do entendimento cristão de como os seres humanos interagem politicamente.

A Natureza Humana e a PolíticaNo cerne de todas as filosofias políticas estão pressuposições

sobre a natureza humana e os direitos humanos. Pressuposições diferentes sobre a natureza humana são responsáveis por muitas das discordâncias entre os liberais políticos e os conservadores políticos. Os liberais tendem a enfatizar a decência dos seres hu­manos e o seu potencial para melhorar, ao passo que os conserva­dores propendem a enfocar a tendência humana ao egoísmo e o mal. Ao estabelecermos um fundamento cristão para o pensamen­to político, temos de construir numa compreensão apropriada dos seres humanos. Para isso, precisamos responder duas perguntas centrais. A primeira é: O que é ser humano? A segunda é: Como Deus espera que os seres humanos se relacionem mutuamente?

A primeira pergunta pode ser respondida de um modo mais objetivo. Tem a ver com os fatos de como os seres humanos são feitos biológica e emocionalmente. Neste ponto, crentes e não-cren- tes encontram muito em que concordar. A segunda é uma pergunta teológica. Começa e termina com a fé cristã. Por conseguinte, os não- crentes necessariamente não concordarão conosco neste item.

U m a P e r sp e c t iv a A n t r o p o l ó g ic a

Qualquer teoria política fracassará se ignorar a realidade da natureza humana. Este foi o problema de Karl M arx: E le presu­miu que a natureza humana era produto do ambiente económico e

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social circunjacente. (Veja box sobre Karl Marx no Capítulo 1 e o Apêndice 3, ao final deste livro .) Na sua visão, o comportamento criminoso era causado pelas circunstâncias exploratórias de um sistema capitalista decadente. O comportamento criminoso pode­ria ser corrigido subvertendo o sistema capitalista exploratório e o governo corrupto que o servia. A nova sociedade socialista de Marx reformaria a natureza humana. Todos os cidadãos seriam molda­dos em “camaradas” naturalmente decentes e justos.

Uma visão nobre, mas a experiência na União Soviética pro­vou que Karl Marx estava terrivelmente errado sobre a natureza humana. O “velho homem” , sobre o qual o apóstolo Paulo nos advertiu, não foi erradicado por setenta anos de lavagem cerebral totalitária. Marx construiu sua casa na areia de pressuposições defeituosas. Temos de fazer melhor.

Podemos pensar na natureza humana como o material de cons­trução de um sistema político. Os arquitetos têm de conhecer as características dos materiais de construção, como aço, madeira e blocos de concreto. Caso contrário, seus edifícios cairão ou have­rá infiltração de água quando chover. Por analogia, quando pensa­mos em projetar um sistema político, temos de prestar atenção à natureza dos materiais de construção humanos. Quais são os ma­teriais com os quais construímos sistemas políticos?

Primeiro, nossa biologia nos toma egocêntricos. Cada um de nós vive num corpo único. Isto naturalmente nos dá uma preocu­pação primária por nosso conforto, saúde e segurança. Sinto a dor da agulha hipodérmica sendo espetada em meu braço mais do que qualquer simpatia que eu sinta se a agulha for espetada em seu braço. Os seres humanos são assim. Buscar prazer e evitar a dor nos é natural. Esta é a razão por que consideramos heróis os va­lentes ocasionais que arriscam a vida para salvar os outros - arris­car a vida é extremamente contrário aos instintos humanos.

Somos seres sociais. Com exceção do ermitão ocasional, gos­tamos de viver juntos para ter afeto mútuo, uma sensação de segu­rança e prazer. Algumas coisas fazemos melhor sozinhos, enquan­to que outras requerem o trabalho conjunto de outras pessoas. Este fato explica (em parte) por que formamos empresas e estabelece­mos governos. Uma empresa pode reunir grandes somas de capi­tal e uma variedade de talentos humanos para produzir produtos mais complexos do que os indivíduos poderiam produzir sozinhos. Os governos ajudam um grupo de humanos a fazer coisas não feitas com facilidade por indivíduos ou empresas. Gostamos de pertencer a grupos - como clubes de computadores, associações profissionais e equipes esportivas - para buscar interesses que compartilhamos com os outros.

As associações de seres humanos servem para muitos propósi­tos úteis, mas têm seus próprios perigos. Quando nos unimos com outros para criar organizações, nosso egoísmo individual torna-se egoísmo gmpal. Os seres humanos não apenas cuidam de si mes­

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Quando pensamos em projetar um sistema político, temos de prestar atenção à natureza dos

materiais de construção humanos.

mos como indivíduos, mas naturalmente cuidam do bem-estar dos grupos a que pertencem. Em sua forma construtiva, isto produz lealdade para com nossas fam ílias, faculdades, empregadores, gru­pos étnicos - até nossas igrejas locais. (Já notou o quão intensa é a competição entre as equipes esportivas de duas igrejas locais?)

No nível nacional, nossa inclinação a sentir lealdade pelos ou­tros torna-se amor por nosso país. Nas devidas proporções, o pa­triotismo ajuda a construir uma nação, mas em excesso torna-se a força obscura e má, cheia de ódio para com outras nações. Preo-

cupar-se com nosso bem-estar não é inteiramen­te nocivo. Deus nos deu esse instinto para nos ajudar a sobreviver. O problema jaz em encon­trar o equilíbrio entre “proteger nossos próprios interesses” e ter preocupação adequada pelo pró­ximo, onde quer que ele esteja.

Os humanos são seres racionais. Não vi-___________________ vemos só por instinto, mas coletamos infor-

mação, aprendemos com os outros e através de suas experiências. Isto nos permite pensar em vários cursos de ação e suas consequências. O processo de raciocínio forma o que fazemos e o que não fazemos. A qualidade de nosso pensamento depende do quanto sabemos e do quão bem processamos essa in­formação intelectualmente.

Os humanos são seres morais. Claro que o sentido no qual todos somos seres morais não significa que sempre somos bons ou que nos comportamos de forma moralmente correta. Só signi­fica que somos membros da comunidade moral, e que fazemos julgamentos sobre o comportamento de acordo com algum padrão de certo ou errado. Isto é igualmente verdade para os nómades mongóis, os moradores afluentes da cidade de Nova York, os índi­os que vivem na floresta amazônica e os membros das gangues dos bairros mais populosos e pobres de Los Angeles. Os seres humanos derivam seus códigos morais de muitas fontes diferen­tes, como a tradição, a razão ou simplesmente do que todo o mun­do está fazendo. Em algumas instâncias, também derivam do en­sino religioso. Qualquer que seja a fonte do código, os seres hu­manos sempre pensam e debatem a justiça ou a injustiça das ações. De fato, uma das primeiras atividades de uma nova organização é criar um código de comportamento para os seus membros.

Alguns anos atrás soube que alguns cristãos estavam forman­do um tipo de comunidade numa casa perto da minha. Fui até lá para conhecer os líderes e informar-me sobre o ministério deles. Um jovem me disse que era uma casa comunal. Perguntei se ti­nham alguma regra sobre como manejar todos os detalhes da ad­ministração do grupo. E le me assegurou que não precisavam de nenhuma regra; todos juntos iriam buscar ao Senhor e se favore­ceriam mutuamente compartilhando as tarefas da administração interna. Disse-lhe que fiquei surpreso com a falta de regras for­

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mais, mas lhes desejava êxito em seus esforços. Antes de ir embo­ra, perguntei se ele se importaria se ocasionalmente eu voltasse para ver como ia a experiência. Cerca de um mês depois, bati à porta da frente e fui muito bem recebido ao interior da casa. Um boletim fixado na parede de sala de estar imediatamente prendeu minha atenção. Era uma lista de regras diversas. Estabelecia que quartos estavam fora dos limites para homens e quais para mulhe­res. Um conjunto de tarefas estava esboçado para cada membro. Admito que um pouco de presunção me acometeu, porque eu ha­via predito que regras seriam necessárias. Não obstante, senti uma pontada de tristeza ao perceber a decepção dos líderes ao desco­brir a necessidade de regras.

Fazer regras ilustra nossa capacidade de argumentar sobre o certo e o errado e restringir nossos impulsos egocêntricos, de modo que desfrutemos mutuamente dos benefícios da vida social. Nos­sa capacidade de sermos egoístas e preocupados com os outros deve ser considerada apropriadamente quando projetamos organi­zações. E por isso que os cristãos devem favorecer a democracia acima das outras formas de governo. Nas palavras de Rienhold Niebuhr: “A capacidade do homem para a justiça torna a demo­cracia possível; mas a inclinação do homem para a injustiça toma a democracia necessária” .3

Os cristãos enfatizam o estado caído e a depravação do ser humano. Mas muitas vezes não entendem adequadamente que, pelo dom de Deus da graça comum, os pecadores também podem agir, decente e racionalmente para o bem comum.4 Muitos não-cristãos tendem ao erro oposto. Eles reconhecem o potencial humano para a decência e as possibilidades dos seres humanos raciocinarem para resolver os problemas sociais. Ao mesmo tempo, eles não entendem o potencial nos seres humanos para o comportamento interesseiro.

Este breve esboço das características centrais da natureza hu­mana - egocentrismo, sociabilidade, raciocínio e capacidade de avaliação moral - deveria nos dar um senso preliminar do proble­ma político. Quando os egocêntricos formam instituições sociais, os desejos individuais inevitavelmente entram em conflito com os desejos das outras pessoas ou com o interesse da comunidade como um todo. Mesmo quando tentamos agir desinteressadamente, cada um de nós pode ter informação diferente e habilidades diferentes para usar em nosso pensamento.

As diferenças em nossa informação e habilidades intelectuais também levam a desacordos. Por exemplo, qual é a melhor ma­neira de construir uma estrada para transpor um rio? Uma ponte ou um túnel? Uma ponte pode ser mais suscetível a gelo no inver­no; mas um túnel seria mais caro. Escolhas como estas envolvem discordâncias honestas e respeitáveis.

As coisas ficam mais complicadas se temos conflitos sobre valores morais profundamente enraizados. Podemos ter os mes­

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mos fatos e interpretá-los do mesmo modo, mas discordar violen­tamente sobre se algo é certo ou errado. O debate sobre o aborto ilustra este tipo de conflito. O debate não é primariamente sobre fatos; ao invés disso, trata-se de uma disputa sobre o “deve” ou o “não deve” . Aqui o conflito é sobre se as mulheres devem ter a “escolha” ou se o governo deve proteger os “direitos do nascituro” ordenando que as mulheres não devem fazer aborto.

Muitos conflitos provêm de nossa pecaminosidade, mas não todos. Mesmo os santos discordam sobre a melhor maneira de fa­zer algo ou sobre qual das várias metas competidoras devem ser alcançadas. Por exemplo, o desacordo oriundo entre contratar uma construtora ou usar trabalho voluntário para construir um anexo à igreja não tem nada a ver com pecaminosidade. Tampouco o de­bate sobre enfatizar missões nacionais ou missões estrangeiras. Tanto a missão estrangeira quanto a nacional são preocupações apropriadas, mas fazer mais de uma pode significar fazer menos da outra. Cristãos devotos honestamente discordam sobre o equi­líbrio adequado entre as duas.

Se enfatizarmos em demasia a pecaminosidade dos seres hu­manos, veremos o pecado como a fonte primária da política. M ui­tos processos políticos refletem nada mais que desacordos hones­tos sobre o melhor meio de fazer algo. Se consegui resumir corre- tamente a condição humana, não deveríamos nos surpreender em encontrar política em quase tudo na vida humana; deveríamos es­perar ver seres humanos defeituosos batalhando de maneiras de­feituosas para entrar em acordo, de modo a viverem e trabalharem juntos. Em suma, poderíamos dizer que além do fato de os seres humanos serem egocêntricos, sociais, racionais e morais, eles tam­bém são seres políticos. Inevitavelmente!

Com frequência meus alunos ficam surpresos quando excla­mo: “Graças a Deus pela política!” Depois, pergunto-lhes se acham que realmente quero dizer o que disse, ou se pensam que estou apenas tentando começar uma discussão. Realmente é o que que­ro dizer, pois sem política não podemos ser completamente huma­nos. Pelo menos estou em boa companhia; creio que foi Aristóteles que disse que a política era a maior invenção do género humano. Claro que o lado obscuro da natureza humana contamina a políti­ca. Temos de admitir e manter isso em mente quando pensarmos sobre a vida política.

U m a P er spe c t iv a T e o l ó g ic a

Uma filosofia política cristã tem de ter em seu cerne a visão de Deus dos seres humanos. Deus não acredita que os seres humanos sejam apenas animais inteligentes. Primeiro, Deus criou os seres humanos à sua imagem (Génesis 1.27; 9.6), e a B íb lia declara os direitos específicos dos seres humanos. (Veja o Apêndice 10, “Os Direitos” , no final deste livro .) Segundo, somos objetos do amor de Deus. Seu amor é tão profundo que Ele enviou seu Filho para

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morrer por nós. Estas verdades teológicas oferecem duas aborda­gens para entendermos como os seres humanos devem tratar uns aos outros.

A primeira abordagem parte da doutrina que Deus criou os se­res humanos à sua imagem. Os estudiosos concordam que isto significa que, como Deus, os seres humanos têm a capacidade de raciocinar. Somos capazes de fazer julgamen­tos morais e somos livres para escolher o certo e o errado. Considerando que estas caracterís­ticas são dons de Deus, eles são direitos que os seres humanos têm de respeitar uns aos outros.Além dos direitos que emanam de sermos fei­tos à imagem de Deus, a B íb lia também esta­belece direitos específicos. A Bíblia alista mui­tos deles, como o direito a um julgamento justo, a asilo, a não ser torturado e o direito a boas condições de trabalho.5

Uma segunda abordagem começa pelo reconhecimento dos seres humanos como objetos do amor de Deus. Deus nos ama e nos ordena que amemos uns aos outros. Isso dá aos seres humanos valor e dignidade divinos. Também cria o dever de cada um de nós respeitar a dignidade e os direitos dos outros. De acordo com Cari F. H. Henry: “A B íb lia tem uma doutrina de deveres divina­mente impostos; o que as pessoas dos tempos modernos chamam de direitos humanos são o reverso contingente desses deveres” .6 (Veja box sobre Cari F. H . Henry, no Capítulo 3.) Na visão de Henry, em vez de alistar os direitos que os indivíduos podem decla­rar contra os outros, a Bíblia anuncia deveres a serem executados.

O sumo da lei, segundo Jesus, é que amemos a Deus de todo o nosso coração e alma, e ao próximo como a nós mesmos (Mateus 22.37-40). Ordenados a amar o próximo, temos de respeitar suas necessidades como nossas. As pessoas que desejam protestar os maus tratos que recebem dos outros não estariam reivindicando um direito, mas destacando a imoralidade dos outros em não cum­prir o dever deles. Na visão de Henry, estes deveres bíblicos im­plicam direitos correspondestes.7

Se tomarmos ou a primeira ou a segunda abordagem, aca­baremos com muitas das responsabilidades para com os ou­tros. Deus criou pessoas a quem E le nos ordena que amemos, e cuja dignidade e liberdade temos de respeitar. Temos de ver todas as pessoas sob esta luz. Isto não depende do fato de se­rem iguais ou diferentes de nós, ou se são santas ou pecadoras. A Escritura não nos oferece uma lista de checagem de todos os direitos humanos específicos ou nos explica como estes devem ser protegidos em todas as circunstâncias. Não obstante, os di­reitos humanos podem ser deduzidos da idéia dos seres huma­nos divinamente criados como objetos do amor e da graça de Deus, que como seres autónomos e racionais exercem escolha moral. Negar a tais pessoas a liberdade necessária para exerce­

Deus nos ama e nos ordena que amemos uns aos outros. Isso dá aos

seres humanos valor e dignidade divinos.

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rem seus atributos divinamente dados seria destruir os precio­sos direitos concedidos diretamente pelo A ltíssim o.8

Para obter um senso da importância divina deste dom do livre- arbítrio, lembre-se de que Deus deu aos seres humanos até a liber­dade de rejeitá-lo! Conforme John Warwick Montgomery afirmou: “Jesus nunca força a entrada no coração das pessoas, e o verdadei­ro crente mal pode justificar-se fazendo o que o seu Mestre não faz” .9 Por conseguinte, no mínimo temos de dar tanto respeito pela liberdade humana quanto Deus dá.

O termo livre-arbítrio é amplamente usa­do e potencialmente enganador. Quando di­zemos de alguém: “E le agiu conforme seu livre-arbítrio” , queremos dizer que a pessoa em questão não foi coagida, fisicamente for­çada, a executar determinada ação. Por exemplo, se Hamlet agiu conforme seu li­vre-arbítrio quando tentou matar o rei enfi­ando o punhal pela cortina, queremos dizer que ninguém o forçou a fazer o movimento de enfiar o punhal. Contudo, devemos ob­servar que o “ livre-arbítrio” não significa sensatamente que a vontade não está sujeita a causas ou influências de qualquer tipo. Dizer literalmente que a vontade é livre de todas as causas ou influências é equivalente a dizer que o agente (a pessoa que age) não tem base para nenhuma de suas preferências, inclinações, desejos ou intenções. Por exem­plo, teríamos de dizer que a vontade não é li­vre, mesmo quando o pensamento racional guia as ações. Mas tal conclusão quase não faz sen­tido. Por esta razão (e por outras), muitos estu­diosos elegeram abandonar a expressão “livre- arbítrio” a favor de outro termo: autonomia.

“Autonomia” vem de duas palavras gre­gas: auto (que significa “eu” ) e nomos (que significa “le i” ). Em palavras bem literais, o autónomo é a pessoa que se rege por leis pró­prias. Quando Emanuel Kant, filósofo do século X V III, usou o termo “autónomo” , quis dizer que o indivíduo assim descrito não era governado por forças externas, mas por prin­

cípios racionais internos. Em outras palavras, agir autonomamente implica que o indiví­duo age de acordo com razões boas e não sucumbe diante de forças e influências (ame­aças, induzimentos e coisas assim) exercidas por outro indivíduo ou coisa. Mais geralmen­te o autónomo age com base nas decisões feitas voluntariamente; quer dizer, age com base nas decisões que são o resultado de co­nhecimento específico da situação e do con­trole total dos seus movimentos. Na melhor das hipóteses, o agente age por escolha deli­berada - ele considera as alternativas com cuidado e circunspeção. O autónomo é visto como tomador de decisão moral e e, em ge­ral, considerado responsável por suas ações.

Para esclarecer estas distinções, atente para dois casos. No primeiro, uma mulher é jogada ao chão e estuprada. Obviamente seus movimentos são controlados por outra pes­soa. E la não está se comportando autonoma­mente. No outro caso, significativo suborno é oferecido a uma deputada para dar seu voto de certa maneira num assunto em pauta na Câmara dos Deputados. Além disso, é lhe dito que se ela recusar concordar, todo apoio político e financeiro que ela esperaria obter na eleição que se aproxima será dado ao opo­nente dela. Os interesses são altos; a pressão para concordar é grande. Se a deputada age (vota) com base em razões próprias e não com base em influências externas, pode-se dizer que ela agiu autonomamente.

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POLÍTICA PARA CRISTÃOS (E OUTROS PECADORES) 4 4 3

Outro elemento importante da visão de Deus das pessoas é que E le não tem favoritos (Atos 10.34). Na verdade, E le escolheu o povo de Israel para ser seu servo, quando o resto do mundo lhe virou as costas. Mas quando os israelitas ficaram presumidos con­sigo mesmos por este fato, Deus os repreendeu perguntando: “Não sois vós para mim, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes?” (Amós 9.7) Ele nos ama a todos profundamente - e igualmente. Os direitos que Ele me dá e a vida correta que Ele exige de mim, Ele dá a você e exige de você identicamente. Ele não favorece americanos ou brasileiros, homens ou mulheres, negros ou brancos, saudáveis ou moribundos, heterossexuais ou homossexuais, jovens ou velhos, r i­cos ou pobres. E le oferece a mesma salvação, a mesma libertação do pecado e a mesma ajuda do Espírito Santo a todos.

A igualdade radical da B íb lia, se levada a sério, dará à nossa teologia política cristã um sabor revolucionário.10 Pense só pense no poder subversivo desta idéia, se a levarmos a sério em todas as nossas organizações políticas, grandes e pequenas, e até nas orga­nizações eclesiásticas!

Ao desenvolvermos uma abordagem bíblica sobre os direitos individuais, temos de aplicar princípios gerais para concretizar situações da vida política. Somos criados como indivíduos livres, mas feitos para viverem comuniâaàe onâe nossos direitos entram em conflito com os direitos dos outros.11 Quando isto acontece, somos forçados a escolher, e a escolha entre declarações contradi­tórias é o que é política. O desafio da teoria política é tomar a matéria bruta dos seres humanos - egocentrismo, sociabilidade, racionalidade, capacidade de julgamentos morais - e projetar um sistema político que leve tudo isso em conta, produzindo a melhor sociedade e a mais alta proteção dos direitos humanos.

O problema é que nossos materiais de construção são cheios de falhas. Todas as instituições criadas por indivíduos pecadores têm de ser inevitavelmente tocadas pelo pecado. Por exemplo, se nós como indivíduos somos contaminados pelo racismo, a políti­ca de nossas organizações e as leis de nosso governo provavel­mente serão racistas. Entender a pecaminosidade dos seres huma­nos deve nos ajudar a sermos realistas para não esperarmos per­feição de nossas instituições po líticas. Mas a decência e racionalidade dos seres humanos, os dons da graça comum que Deus deu a todas as pessoas, nos permitem esperar algo de bom uns dos outros.

A Natureza e o Problema do PoderA vida social envolve, por um lado, harmonia e cooperação e,

por outro, conflito e colisão de interesses. O modo como trabalha­mos por harmonia e resolvemos os conflitos políticos implica em política. No centro da política está o poder. Antes de examinarmos a natureza da política, vamos considerar algumas das características do poder e como o seu exercício levanta questões sérias aos cristãos.

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Sabemos muito bem que o poder pode ser exploratório e

agressivo. Vamos também reconhecer sua virtude.

Os cristãos hesitam em admitir que usam o poder, mas todas as relações humanas envolvem questões de poder. Os cristãos po­dem se sentir mais à vontade falando sobre virtude e justiça, mas mesmo que evitemos discutir sobre o poder, não podemos fugir dele. Nem devemos, porque o poder é usado para o mal ou para o bem. O poder é a capacidade de causar ou influenciar outros a comportarem-se como você deseja. Esta definição é muito sim­ples, mas bastará por ora. Precisamos de poder defensivo para nos proteger daqueles que nos fariam m al. Usamos o poder interveniente até para proteger alguém do prejuízo ou da injusti­ça. Necessitamos de poder económico para cuidar de nossas famí­lias e nos preparar para a velhice. As nações têm necessidade de poder militar para se protegerem de agressores. Todos nadamos num mar de poder. Não chamar poder por seu verdadeiro nome e não reco­nhecer sua importância nas relações humanas é estar cego à realidade do poder usado contra nós e como o usamos nos outros.

Afortunadamente, a maioria das manifestações de poder na vida social toma outras formas que não a força. Opera mais por influ­ência do que por coerção. Por exemplo, o poder económico é vis­to na capacidade de contratar ou despedir alguém, comprar mer­cadorias ou contratar serviços. O poder opera pela autoridade for­mal de um cargo de uma organização. Se as decisões requerem a aprovação de certo indivíduo - como a de um gerente empresarial para a aquisição de um novo computador para a companhia - , este tem poder oficial. Se uma pessoa é respeitada por sua sabedoria e estatura na comunidade, esta pessoa tem poder social. Estas for­mas de poder são diferentes de força, no sentido de que não domi­nam diretamente a vontade dos outros mediante o controle físico. Mas levantam muitas das mesmas questões morais que são levan­tadas pela força. Por exemplo, um empregador despedir uma mu­lher por esta ter recusado os avanços sexuais dele tem o mesmo efeito financeiro que usar uma arma para levar a bolsa dela.

Sabemos muito bem que o poder pode ser exploratório e agres­sivo. Vamos também reconhecer sua virtude. O poder serve a pro­pósitos decentes e nos ajuda a viver com dignidade. Por exemplo, se temos poder económico, podemos alugar um apartamento, com­

prar um casacão, comida, um carro, pagar o tratamento dentário dos filhos ou os custos de instrução numa universidade. A medida que os pobres estão impossibilitados de fazer estas coisas, sofrem de falta de poder. Se a pobreza é bastante severa, não apenas sofrerão dimi­nuição de poder, mas também perda de digni- dade pessoal. Assim temos de ter compaixão dos

pobres que carecem de poder, porque eles não podem se proteger ou cuidar de suas necessidades legítimas.

Ainda que o poder tenha muitas faces, a que reconhecemos mais prontamente é a força. O ladrão ameaça à força quando mete

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um revólver nas costelas da vítima e lhe exige o dinheiro. Mesmo os governos mais decentes têm de usar de força. Os policiais por­tam revólveres e algemas. Os juizes são fortalecidos pelos delega­dos. As prisões são símbolos de força legal na forma de armas, guardas, fechaduras e barras de aço.

A questão fundamental é como justificar o uso da força, a po­derosa subjugação do livre-arbítrio da pessoa. Se os seres huma­nos têm direito à liberdade, então o uso da força para restringir o exercício desse direito só pode ser justificado por um princípio mais alto. Os governos têm o direito de usar a força para proporci­onar o princípio mais alto de dar segurança pública e o bem-estar geral. Enquanto a maioria das pessoas aceita que o governo use de força para executar as leis, sabemos que os governos muitas vezes usam o poder para o mal. Tal foi o caso na União Soviética duran­te a era de Stálin e na Alemanha sob o governo de Hitler. Os pais usam de força para controlar os filhos. Justificamos isto explican­do que os pais sabem mais que os filhos o que é bom para eles. A final de contas, crianças de dois anos de idade devem ser retira­das da rua, mesmo que esperneiem e gritem.

Há um fato notável sobre a força pública, quer seja usada por um policial ou por um ladrão: Ao menos estamos inequivocamen­te conscientes da força quando é usada contra nós. O mesmo não pode ser dito dos usos indiretos da força, como a ocultação de informações ou a discrim inação de mulheres e m inorias na contratação. Nestes casos, o uso da força é sutil e desonesto. A vítima não pode saber facilmente ou provar que o poder foi usado de forma não-ética.

Por exemplo, você não compra meus produtos porque não pre­cisa deles ou porque sou coreano? Muitos estudiosos argumentam que um “teto de vidro” bloqueia as mulheres de serem promovi­das aos cargos mais altos nas empresas americanas. A existência desse “bloqueio” prova que as mulheres enfrentam discriminação nas promoções? Há menos mulheres nas salas de jantar dos exe­cutivos, porque elas carecem do mesmo treinamento que os ho­mens ou porque faltam mais ao trabalho para cuidar dos filhos? Ou é simplesmente porque são mulheres? A discriminação contra as mulheres no processo de promoção é d ifícil de provar. Isso fa­cilita escapar impunemente.

O controle da informação é outro tipo de poder não-coercivo que frequentemente opera às ocultas. A medida que nos ocupa­mos de nossas atividades diárias, tomamos numerosas decisões sobre revelar e esconder informação. O segredo nos dá poder, e se guardamos informação dos outros que podem querer saber o que sabemos, ganhamos poder sobre suas vidas ou aumentamos o nosso poder para nos defender. Se a informação é sobre nossos planos particulares ou saúde pessoal, podemos desejar mantê-la em se­gredo, oculto de olhos curiosos. Se a informação tem a ver com o orçamento da igreja, e se podemos mantê-la em segredo, ganha­

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mos poder e os outros perdem. Se informação é poder, então a informação secreta é quase poder absoluto. Enquanto rejeitamos o uso da força bruta nas relações humanas normais, outras formas de poder, como o segredo, também podem violar o livre-arbítrio. Mas a menos que primeiro estejamos treinados para identificar estas outras formas de poder em operação, não seremos capazes de desafiá-las ou julgar sua moralidade.

A questão moral surge de como o poder afeta o livre-arbítrio humano. A força bruta procura subjugar a vontade da pessoa. Por outro lado, o poder baseado no respeito tem de ser ganho. Aqueles que seguem alguém por respeito fazem-no livremente. Por esta razão, a força bruta é moralmente mais problemática do que o poder que vem pelo respeito. O poder que opera pela mentira, propaganda ou segredo pode ser justificado em algumas circuns­tâncias extremas, mas isto tem seus próprios perigos morais; o poder nestas formas é selecionado, porque permite que os possui­dores controlem os outros manipulando a informação que lhes está disponível. O mentiroso dá a outra pessoa informação falsa sob o disfarce da verdade, esperando contaminar seus processos de ra­ciocínio e, assim, controlar seu comportamento.

O propagandista mistura a infusão da bruxa contendo verda­des, omissões conscientes, meias verdades e falsidades, esperan­do moldar o comportamento da audiência, de certo modo não pos­sível com a verdade plena e não adulterada. O manipulador de segredos retém informação de outras pessoas, negando-lhes as­sim informação que é dependente dos seus processos de pensa­mento racional. O possuidor do segredo pode desse modo contro­lar o comportamento daqueles que não foram informados. Mas tais práticas têm muito em comum com a força bruta. Se você deseja subjugar o livre-arbítrio dos outros, como diz a declaração previdente: “Ponha uma arma na cabeça dele e ele fará o que você quiser” . Manipular a informação disponível a outras pessoas é outra técnica para vencer o livre-arbítrio delas e também levanta muitas das mesmas questões éticas, como as ações coercivas. Portanto, a vontade dos indivíduos pode ser subjugada diretamente, manipu­lada pelo engano ou defraudação, ou mantendo-os na ignorância.

O uso do poder suscita questões além da moralidade de con­trolar os outros. O poder influencia o possuidor como também o súdito. Dá ao que exerce poder uma sensação de importância. As pessoas com poder são tratadas com deferência pelos outros, seus aniversários são comemorados por seus subordinados, seus car­gos são os mais altos, e há lugares reservados no estacionamento perto da entrada do escritório em que trabalham. A sedução pelo poder é tão fascinante que poucos de nós somos imunes a ela. O dita­do: “Sua cabeça ficou grande demais para o chapéu” , reconhece que o nosso eu pode se inchar com a falsa sensação do quanto somos importantes. Todos não conhecemos pessoas que foram vencidas por sua própria importância depois de receberem uma promoção?

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O poder dos ricos pode nos iludir a uma autoconfiança não- bíblica (Provérbios 30.9). Até o poder espiritual pode nos enganar com uma visão exaltada de nós mesmos. Paulo deu reprimenda severa a alguns membros da igreja em Corinto, que haviam se tomado arrogantes porque pensavam que tinham poder (1 Coríntios 4.18-20). O problema não é novo para os cristãos. Precisamos de poder para operar como líderes, mas o mesmo poder que batalha­mos para possuir pode nos possuir.12

Qualquer forma que tome, a questão dos usos morais de poder é central para a filosofia política. Precisamos de poder para criar organizações e governos eficientes. O desafio é manter o poder virtuoso.

A N a t u r e z a d a P o l í t i c a

A essência da política é a luta por poder e influência. Todos os gmpos e instituições sociais precisam de métodos para tomar de­cisões para seus membros. A política nos ajuda a fazer isso. A palavra grega da qual política é derivada é polis, que significa “cidade” . Política no sentido clássico envolve a arte de fazer uma cidade funcionar bem. Também ajuda a administrar nossas orga­nizações e governos. Quando nosso sistema político é saudável, mantemos a ordem, provemos a segurança e obtemos a capacida­de de fazer coisas como comunidade que não poderíamos fazer bem individualmente. Votamos as leis, fazemos a polícia impô- las, arrecadamos impostos para estradas, sistemas de esgoto, es­colas públicas e apoio nas pesquisas de câncer. Em nossas organi­zações particulares, um sistema político sadio nos ajuda a adotar orçamentos, avaliar pessoal, estabelecer e cumprir políticas e re­gras e escolher líderes. No melhor dos casos, a política melhora a vida de um grupo ou comunidade. A política toma uma variedade de formas, como eleições, debates, subornos, contribuições de campanha, revoltas ou telefonemas para legisladores.

Como vê, alistei maneiras nobres e ignóbeis de influenciar as de­cisões de um sistema político. Algumas delas são formais, como as eleições, ao passo que outras são informais, como telefonar para ve­readores, deputados e senadores e pressioná-los a votar a nosso modo.

Note que estou usando “política” num sen­tido lato. Em muitos livros didáticos, o termo política refere-se aos processos usados nas decisões oficiais para uma sociedade inteira.Mas uso o termo para cobrir todos os proces­sos que permitem tomar decisões para qual­quer grupo ou instituição. Neste sentido, po­demos falar corretamente de política da igreja, política do escritório, política do seminário, faculdade ou univer­sidade cristã, e até a política de uma fam ília. Ampliar o termo para além da política governativa permite-nos examinar as operações de poder dentro do grupo. O significado mais amplo nos ajuda a

Mas uso o termo política para cobrir todos os processos que permitem tomar decisões para qualquer grupo ou instituição.

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As organizações eclesiásticas têm propósitos diferentes que os

dos governos, mas muitas das mesmas características.

observar a luta por poder dentro de uma organização, e fazer per­guntas sobre o que isto faz aos direitos de cada membro.

O uso do poder levanta questões éticas em todas as nossas re­lações e organizações. Acho útil analisar como o poder opera des­de as unidades menores da vida social, como a fam ília, até à esta­bilidade mundial da política internacional. O Novo Testamento discute as lutas políticas entre ambas as unidades maiores e meno­res da organização social. Conta-nos das discordâncias entre Pedro__________________ e Paulo, entre as facções da igreja coríntia

como também da luta dos revolucionários ju ­deus contra a Roma imperial.

O problema da política é que na luta por poder temos vencedores e perdedores. Os ven­cedores ganham poder e o usam para controlar os perdedores. Se uma nova lei diz que não se pode jogar chiclete na calçada e você a apóia, você a obedecerá sem ter de ser ameaçado por

força coerciva. Considerando que você concorda de boa vontade, nenhuma grande questão moral está perto de se levantar. Mas quan­do os possuidores do poder o usam nos seus súditos de maneira a se intrometerem na liberdade que Deus deu a estes, a ética do po­der torna-se questão crucial.

Muitas pessoas insistem: “Não se pode legislar a moralidade!” Mesmo sendo verdade que a legislação não muda os corações, pode obviamente coagir as pessoas a se comportarem de modo desejado. Ou, se necessário, as leis podem mandá-las para a pri­são. Assim , a política levanta as mesmas questões que as do uso do poder: Que valores mais sublimes podem justificar a violação dos direitos da liberdade? Quando os direitos entram em conflito, como decidiremos qual é o mais importante? A santidade da vida justifica tomar a liberdade de um assassino. Trata-se de reclamo fácil. Mas qual é o castigo adequado para alguém que coloca o som ruidosamente alto depois da meia-noite e mantém os v iz i­nhos acordados? Ou que direito tem um governo estatal de forçar uma anciã a sair de casa para que uma nova auto-estrada seja construída? Em cada um destes casos, o poder é exercido por um processo político a obrigar um cálculo moral.

O direito à vida é mais precioso do que o direito de um assas­sino à liberdade? O valor de uma noite sossegada num bairro residencial é mais alto do que o direito de alguém desfrutar de música alta no meio da noite? A necessidade da comunidade ter uma malha rodoviária eficiente tem maior valor do que o direito de uma anciã desfrutar de sua propriedade particular? Cada uma destas perguntas envolve julgamentos sobre o valor relativo dos direitos conflitantes. Tais perguntas são respondidas comumente por processos políticos.

As grandes questões da vida pública americana na década de 1990 ilustram fazer escolhas morais, como estas por procedimen­

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tos políticos. Os lenhadores do Oregon argumentam que o direito que têm ao trabalho é mais alto do que os direitos daqueles que desejam preservar florestas centenárias. O direito dos pobres à saúde entra em conflito com a liberdade de médicos e hospitais cobrarem honorários de acordo com o mercado.

A política de ratificação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (N A FTA ) envolveu uma luta sobre os direi­tos dos trabalhadores e empresários americanos. Alguns sindi­catos desejaram proteção para não terem de competir com os trabalhadores de salários baixos do M éxico. Muitas empresas quiseram o direito de buscar custos industriais mais baixos para os seus produtos. O N AFTA também envolveu um desacordo entre os trabalhadores americanos e os trabalhadores m exica­nos. Em algumas das indústrias de baixos salários, como as de montagem de componentes eletrônicos, os trabalhadores ame­ricanos temeram que perderiam seus trabalhos para os m exica­nos. Além disso, a questão do N AFTA implicou num conflito entre o que era bom para a economia americana como um todo e para algumas indústrias em particular.

Teoricamente, com a remoção das barreiras comerciais entre os Estados Unidos e o México, o NAFTA melhoraria o padrão de vida de ambos os países. Porém, mesmo que ambas as economias melhorem à medida que o NAFTA entre em efeito, alguns traba­lhadores perderão seus empregos, enquanto que outros encontra­rão novas oportunidades de empregos abertas para eles. Neste caso complexo, vemos que os processos políticos foram usados para decidir questões de grande importância para trabalhadores e em­presas, e para a economia americana como um todo.

As questões no debate do N AFTA envolveram um cálculo moral de grande importância e complexidade. E houve vencedores e perdedores. Mas esta é a essência da política. Na luta por poder, os vencedores impõem suas políticas e opiniões aos perdedores. Esperamos isto da política dos governos, mas devemos estar igual­mente cônscios de que o poder e a política operam de maneira sim ilar nas instituições da Igreja.

A Igreja como PolíticaA política do N AFTA como também de outras questões da vida

nacional americana é mais d ifícil de compreender do que a políti­ca de uma instituição mais simples, como uma igreja. Embora as organizações eclesiásticas tenham propósitos diferentes que os dos governos, podemos observar muitas características do sistema político maior. As igrejas não exercem força coerciva,13 mas im­põem penalidades, como excluir membros e remover as credenci­ais ministeriais. Elas tomam decisões, como por exemplo, quem será o pastor e quem será aceito como membro. Nas igrejas, pode­mos observar facções, regras, tomadas de decisão (como adotar

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um orçamento) e formulação de política (como decidir quais pro­gramas serão mantidos ou descontinuados). Administrar uma igreja envolve necessariamente algum tipo de política, quer seja autori­tária, democrática, representativa ou uma mistura disso.

Uma igreja é uma organização política desde o dia em que é constituída. Reunida pela nossa necessidade de companheirismo e adoração, montamos instintivamente uma estrutura de poder e ado- tamos procedimentos para a tomada de decisões na congregação. Em alguns casos, isto será feito sob a autoridade de uma denominação, em outros, produzirá uma congregação autónoma independente.

Infelizmente para muitos de nós, o termo política da igreja traz conotações negativas. Usamos o termo quando não gostamos das decisões tomadas em nossa igreja. Se entendêssemos a necessi­dade, realmente a inevitabilidade da política dentro da igreja, talvez não recuássemos em observá-la. Poderíamos então discutir o assunto livremente e comemorar a boa política da igreja tanto quanto lamen­tamos a má política da igreja.

Quando meu antigo pastor deixou a igreja para assumir um cargo denominacional, a igreja continuou funcionando e quase não perdeu o compasso. E le deixou nossa igreja autónoma bem orga­nizada, com uma constituição sadia, um pessoal bem treinado, e respeitados líderes laicos. Nossa maquinaria política da igreja es­tava em boa ordem de funcionamento, então tratamos da questão de escolher um novo pastor. A mudança pastoral pode ser profun­damente turbulenta para a congregação se não houver uma atmos­fera de confiança mútua e alguns procedimentos aceitos para a seleção do novo pastor. Neste caso, o comité de procura pastoral executou seu trabalho numa forma que ganhou o respeito da congre­gação e nos ajudou a escolher um novo pastor, de certo modo quase rotineiro. Era política da igreja no melhor dos casos. Aqueles que originalmente estabeleceram os procedimentos e todos os que os fizeram funcionar de modo tão perfeito, abençoaram a igreja toman­do uma decisão política numa maneira que inspirou confiança.

Nossas congregações locais parecem muito como microgovernos. Têm constituições, estatutos e procedimentos par­lamentares para moldar o processo administrativo. E embora não

17 E , se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano.

18 Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o

testemunhas, toda palavra seja confirmada. que desligardes na terra será desligado no céu.

15 Ora, se leu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o entre li e ele só; se te ouvir, ga­nhaste a teu irmão.

10 .Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois. para que, pela boca de duas ou três

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tenham exércitos, contratam advogados para proteger seus direi­tos contra estranhos. Se seguirmos corretamente Mateus 18.15- 18, a igreja também terá funções judiciais para solucionar disputas. Por exemplo, se um irmão peca contra nós, devemos ir a ele primeira­mente em particular e discutir o assunto. Se isto não soluciona o as­sunto, temos de discutir a controvérsia com ele na presença de teste­munhas. Se o conflito continua sem solução, devemos dizê-lo a toda a igreja. E se ele recusa ouvir até a igreja, visto que a igreja não tem cadeia, ele deve ser excluído e tratado como incrédulo.

Paulo repreendeu os cristãos em Corinto por não aceitarem a autoridade judicial da igreja acerca das disputas entre os crentes. Tudo indica que eles tinham levado suas disputas para fora da igreja, a fim de serem julgadas por “infiéis” . E le os envergonhou, lembrando-os que se a igreja posteriormente julgará os anjos, ela deve aprender a julgar os conflitos muito menos importantes da vida terrena (1 Coríntios 6.1-6). A mensagem de Paulo aqui era que a igreja vivesse como modelo diante do mundo. Neste caso, devemos prestar mais atenção ao modo como operam os sistemas políticos da organização de nossa igreja. John Stott resume o ponto:

Temos de levar mais a sério o intento de Cristo de que a comunidade cristã devia ser exemplo para outras comunidades. [...] Estou pen­sando particularmente na vida da igreja local, a qual é designada a ser prova do governo de Deus. A Igreja deve ser a comunidade no mundo na qual a dignidade e a igualdade humanas são invariavel­mente reconhecidas, e a responsabilidade das pessoas umas pelas outras é aceita; na qual os direitos dos outros são buscados e nunca violados, enquanto que os nossos são muitas vezes renunciados; na qual não há parcialidade, favoritismo ou discriminação; na qual os pobres e os fracos são defendidos, e os seres humanos são livres para serem humanos como Deus os fez e os designou a ser.14

Portanto, não devemos hesitar em pensar em política da igreja. As organizações da igreja são inevitavelmente políticas. Além do mais, se somos dignos de julgar os anjos, temos de primeiro apren­der a administrar os assuntos mundanos da vida terrena. Quando tivermos aprendido a atender bem a política de nossas organiza­ções cristãs - igrejas lo ca is, denom inações, associações evangelísticas e seminários, faculdades e universidades cristãs - talvez então possamos aspirar servir a nossa nação participando na política fora das paredes da igreja.

Governo, o Servo de Deus

Para a maioria de nós a palavra política refere-se às atividades que têm a ver com o governo. Traz à mente eleições, campanhas, vetos, obstrucionistas e cambalachos feitos a portas fechadas em ambientes enfumaçados. Um pouco antes defini política como a

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luta por poder para moldar as decisões de uma organização. Esta definição ajusta-se aqui, porque de certo modo os governos são mesmo grandes organizações. Mas são mais que apenas grandes organizações. Os governos têm algumas características e propósi­tos que os distinguem das organizações privadas, como o Rotary Club local, as Lojas K-M art, a Prim eira Igreja Metodista, o Sin­dicato dos Caminhoneiros ou a Associação Médica Americana. A diferença principal é que o governo é a újiica instituição que exercita poder e autoridade sobre uma sociedade inteira. Esta qualidade singular permite que os governos atendam três neces­sidades: 1) Prover segurança nacional contra estrangeiros; 2) pro­ver a ordem interna e a resolução pacífica de conflitos entre seus cidadãos; e 3) prover um mecanismo para empresas cooperativas aos seus cidadãos.

Alguns filósofos políticos, como Thomas Hobbes, argumenta­ram que o propósito supremo do governo é fornecer segurança para seus cidadãos contra os ataques de inimigos estrangeiros. Se os cidadãos tentassem se defender individualmente contra um ata­cante bem organizado, viveriam uma vida terrivelmente insegura - ou curta. Assim , para proteger seus cidadãos, os governos recru­tam forças militares por tributação e conscrição. Os cidadãos acei­tam os fardos de pagar impostos e prestar serviço militar, porque têm em alta estima a vida e a liberdade.

Mesmo quando não há ^meaça de invasores, os conflitos inter­nos devem ser solucionados. O egoísmo dos seres humanos con­duz a conflitos que levam a violência. Se meu vizinho começasse a construir um muro trinta centímetros dentro do meu lado da di­visa, imediatamente eu pediria que ele recuasse. Se ele não visse as çoisas assim e não houvesse um governo para nos ajudar a re­solver a questão, eu poderia perder uma faixa de terreno que por

Thom as Hobbes (1588- 1679) foi filósofo inglês e um dos maiores teoristas políticos do século X V II. Com a pre­coce idade de quatorze anos, ele entrou para a Universida­de de Oxford, formando-se em 1608 com grau de bacha­rel. Em O Leviatã (1651), seu

maior trabalho, ele apresenta a teo­ria de contrato social da ju stiça .

Desde a época em que foi publicado ganhou reconhecimento como pode­roso tratado político. Hoje é consi­derado uma das mais importantes contribuições para a filosofia moral e a teoria política. Para mais infor­mações sobre Hobbes e sua teoria de contrato social da ju stiça , veja o Apêndice 8, “Thomas Hobbes e a Teoria de Contrato de Justiça” , no fi­nal deste livro .

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direito é minha, e uma injustiça seria praticada. Ou, eu poderia agarrar um taco de beisebol - as pessoas nos ouvem melhorar quan­do temos um taco de beisebol na mão! Meu vizinho se retiraria por um momento e voltaria à discussão - com uma arma em punho.

Você entendeu a idéia. Precisamos de governo para nos ajudar a solucionar disputas entre os cidadãos. Se meu vizinho e eu não conseguimos solucionar nossa disputa pacificamente, precisamos recorrer a nosso governo. Um governo eficaz forneceria leis cla­ras e justas que regeriam sobre bens imóveis, tribunais para deci­dir as disputas e policiais para obrigar que as decisões dos tribu­nais sejam cumpridas.

Além de decidir disputas entre vizinhos, os governos nos pro­tegem contra os caloteiros e assassinos. Uma sociedade ordeira precisa de um sistema de leis e de execução formal. Sem o gover­no, todos viveríamos num estado de anarquia e ninguém estaria seguro. Mesmo um gigante, que é um gênio mau, não viveria com segurança sob anarquia. Como nós, ele tem de comer e dormir. Comer o toma vulnerável a envenenamentos, enquanto que dor­mir o toma vulnerável a ser atacado por alguém mais fraco e até mais idiota que ele.

Como a suprema autoridade c iv il na sociedade, os governos têm um monopólio sobre o direito de usar a força (com limitadas exceções para a autodefesa). Se um suspeito não se submete paci­ficamente a policiais que .vão prendê-lo, estes estão autorizados a usar de força física para colocá-lo sob controle. Em documentários de televisão sobre o trabalho da polícia, vemos os suspeitos serem

wO inglês John Locke (1632-1704)

foi filósofo e o arquiteto de um ponto dc vista filosófico que tornou-se co­nhecido como empirismo britânico. A tradição religiosa de sua família era puritana. O próprio Locke permane­ceu por toda a vida cristão e defensor dos ideais cristãos.

Os dois trabalhos mais importan­tes de Locke, Ensaio sobre o Enten­dimento Humano e Dois Tratados sobre Governo, foram ambos impres­sos em 1690. Eles logo o estabelece­ram como importante filó so fo e teorista político. Sua descrição de cheques e balanços no governo for­

neceu modelo para os criadores da Constituição dos Estados Uni­dos, e os americanos coloniais prestaram atenção aos seus argu­mentos dc que a revolução em de­terminadas circunstâncias não é apenas um direito, mas uma obri­gação. Seus argumentos em favor de ampla liberdade religiosa for­maram parte de uma longa discus­são política na Europa e nos Estados Unidos.

Para discussão adicional sobre suas teorias políticas, veja o Apêndice 9, “John Locke e a Teoria dos Direitos Naturais” , no final deste livro.

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lançados ao chão, golpeados com bastões e algemados. Mesmo que ver esta cena possa virar o estômago de muitos cidadãos, ela ilustra o poder que a polícia está autorizada a usar para colocar os criminosos suspeitos sob controle e impedir que os cidadãos cau­sem danos uns aos outros.

Se meu vizinho e eu não podemos resolver nossa disputa sobre a localização de um muro, nenhum de nós tem o direito legal ou bíblico de usar um taco de beisebol ou atirar para solucionar a disputa. Romanos 13.1-6 assevera claramente que Deus quer que os seres humanos submetam-se aos governos. Deus declara que as autoridades políticas são seus ministros, que manejam a espada contra os malfeitores e que estão autorizados a coletar impostos para a manutenção do governo.

Estas duas funções do governo - prover segurança externa e interna - são melhor apreciadas por seu valor social. A terceira função do governo é igualmente valiosa. Os governos nos permi­tem fazer coisas juntos que, do contrário, não poderíamos fazer bem. Algumas necessidades são societárias, e só o governo pode atendê-las. Por exemplo, considere o problema de regular a segu­rança das viagens aéreas e o uso das frequências de rádio. A segu­rança dos aviões depende de estradas invisíveis traçadas no céu pela Agência Federal de Aviação. As transmissões de rádio e de televisão interfeririam entre si se a Comissão Federal de Comuni­cações não regulamentasse suas frequências de transmissão. Pre­venir a expansão de epidemias e pestes agrícolas e fornecer estra­das, sistemas de esgoto e aniquilamento de mosquitos são outras funções que os governos podem cumprir melhor que as institui­ções com um âmbito mais restrito de autoridade.

A Autoridade do GovernoAo pôr em execução suas grandes responsabilidades, o gover­

no necessariamente exercerá grande poder. O problema é que o uso que o governo faz do poder pode ir além de sua autoridade dada por Deus. Se Deus designou o governo como “ministro de Deus e vingador para castigar o que faz o mal” (Romanos 13.4), devemos estar inclinados a nos submeter a ele. Mas a história nos dá muitos exemplos de governos que se excederam em sua con­cessão divina de autoridade. Em nossa discussão anterior, vimos que os governos têm um direito no uso legal da força. Num pri­meiro pensamento, este não é problema para os cristãos, porque a passagem em Romanos 13 declara que os governantes têm o di­reito de usar a espada para levar a cabo seus deveres formais. O problema surge em saber onde fixar a linha entre o uso formal e o uso impróprio de poder govemativo. Em algum ponto, os gover­nos cruzam a linha e saem de debaixo do manto da autoridade dada por Deus. Além desta linha, os funcionários do governo são tiranos, usurpadores do mandamento divino.

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Só este século nos fomece exemplos horrendos. Na década de 1930, Joseph Stálin autorizou a morte de milhões de oponentes políticos e buscou uma política de fome em massa na Ucrânia, mediante a manipulação do abastecimento de alimentos. Na déca­da de 1940, Adolf Hitler autorizou a matança de milhões de civis em guerras agressivas contra os vizinhos da Alemanha, e tentou exterminar da Alemanha todos os judeus, os ciganos, os mental­mente retardados e outros. Na década de 1970, o regime de Pol Pot no Camboja matou quase a metade da população do país. O seu regime era tão bestial, que ele ordenou que os soldados matas­sem os oponentes políticos com cacetes, martelos e pedras para economizar balas. Estes regimes ganharam o ódio - sim, esta é a palavra certa, pois temos de odiar o mal - das pessoas civilizadas ao redor do mundo. Tais governantes não têm a bênção divina.

Para pôr a questão em termos simples, o quão imperfeito um governo tem de ser antes que os cristãos recusem sua autoridade? A resposta é bastante simples. Deus parece dar o benefício da dú­vida aos governos. E le sabe que os seres humanos imperfeitos criarão governos imperfeitos. Mesmo assim, procurando o bem- estar dos seus cidadãos, eles executam o propósito de Deus na terra. Mas por qual padrão Deus julga os governos? Deus julga os governos por quanto eles estão à altura de um valor fundamental - a justiça. (Veja Apêndice 11, “A Justiça” , no final deste livro.)

Para muitos americanos conservadores, o propósito doméstico central do governo é prover ordem. Quando os demonstradores tornaram-se incontroláveis durante a luta pelos direitos civis na década de 1960, os conservadores clamaram por lei e ordem. Os liberais responderam com uma chamada à lei e à justiça. Ambos

1 Toda alma esteja sujeita às auto­ridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as autoridades que há foram ordena­das por Deus.

2 Por isso, quem resiste à autori­dade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mes­mos a condenação.

5 Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer

a autoridade? Faze o bem e terás lou­vor dela.

4 Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; por­que é ministro de Deus e vingador para castigar o que faz o mal.

5 Portanto, é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo cas­tigo, mas também pela consciência.

6 Por esta razão também pagais tri­buto, porque são ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo.

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4 5 6 DENNIS McNUTT

O Tratado sobre a Lei, de Tomás de Aquino, é Podemos aclarar o que Tomás de Aquino quer extraído de uma obra mais longa intitulada Suma dizer por lei verdadeira, se examinarmos breve- Tèológica. Como o restante da Suma Teológica, o mente o que estava acontecendo na Alemanha Tratado sobre a Lei é dividido em capítulos curtos durante a Segunda Guerra Mundial. Quando Hitler chamados questões. Cada questão é uma investi- subiu ao poder, declarou que. qualquer decreto ou gação distinta que mais adiante é subdividida em ordem que ele emitisse automaticamente se tor-

[ artigos. Em cada artigo, Tomás de Aquino declara naria lei na Alemanha; subsequentemente ele sua visão sobre as várias questões que ele coloca, emitiu ordens que deram in ício à guerra e e tenta responder as objeções principais a ela. secretamente ordenou a matança sistemática dos

O Tratado sobre a Lei começa com uma dis- judeus. Estas ordens contradiziam a Constitui- cussão na Questão 90 da Suma Teológica que tra- ção alemã, eram incompatíveis entre si e viola- ta das qualidades que todas as leis devem ter. To- vam direitos judiciais básicos estabelecidos por más de Aquino argumenta primeiramente que to- outras leis. Assim , na proporção que os decre-

i das as leis devem ser determinadas pela razão. Quer tos de Hitler eram incompatíveis, eram também dizer, as leis não podem ser insensatamente arbi- irracionais: não tinham sua fonte na razão, mas trarias. As leis são feitas para alcançar um fim, e eram tão-somente a expressão de sua vontade ar-

j só usando a razão podemos determinar como al- bitrária. Por conseguinte, está claro que, primeiro, cançar esses fins. Assim, a razão tem dc entrar na estes decretos não eram racionais. Segundo, os el aboração de todas as leis. decretos de Hitter manifestamente não objetivavam

Segundo, Tomás de Aquino sustenta que todas o bem da sociedade inteira: eram designados a : as leis devem ser projetadas para alcançar o bem satisfazer «eus desejos pessoais e os de seus com- i da sociedade inteira. Fazemos leis para assegurar pan/ieiros nazistas. Terceiro, estes decretos não

nossa felicidade, mas só podemos fazer isso se a foram feitos por alguém preocupado com o bem í sociedade como um todo passar a funcionar bem. da sociedade inteira: foram feitos por um homem

E evidente então que se devemos alcançar a felici- dedicado apenas aos interesses de um grupo pe- dade, temos de projetar nossas leis de forma a be- queno.

i neficiar toda a sociedade. Terceiro, Tomás de E quarto, estes decretos não foram promulga- Aquino assevera que só o povo como um todo - dos publicamente: eram tão inumanos que muitos ou alguém que esteja preocupado com o bem da deles tiveram de ser ordenados e executados em sociedade inteira - tem o direito de fazer leis. As segredo. Os decretos de Hitler não tinham nenhu- leis devem ser projetadas para obter o bem de toda ma das características das quais Tomás de Aquino

I a sociedade, portanto devem ser feitas por alguém queria dizer por lei verdadeira. Quando os líderes | que tenha este bem em mente. Mas só o povo como alemães foram levados aos tribunais depois do

um todo 011 um representante agindo em seu be- armistício e julgados como criminosos de guerra, i nefício se lembrará do bem de toda a sociedade, não puderam provar que seguindo as ordens de

Quarto, Tomás de Aquino conclui que as leis Hitler estavam somente obedecendo a lei. Tomás devem ser promulgadas, [...) devem ser tornadas de Aquino diria que eles contradiziam tão clara-

i conhecidas para o público que têm de obedecê- mente nossas noções básicas de lei, que não pode- las. Caso contrário, não terão influência em nos- riam ser contados como lei. sas ações. Assim, conclui Tomás de Aquino, uma Este exccrto apareceu primeiramente em Ethi.cs regra só pode ser contada como verdadeira lei se Theory and Practice (Teoria e Prática da Ética), 1) for racional, 2) designada para o bem da socie- editores Manuel Velásquez e Cynthia dade inteira, 3) for feita pelo povo como um todo Rostankowski (Englewood C liffs, Nova Jersey: ou alguém preocupado com o seu bem, e 4) for Prentice-Hall, Incorporated, 1983), pp. 34-36. promulgada publicamente e não em segredo. Reimpresso com permissão da Prentice-Hall.

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em parte estavam certos e em parte estavam errados. Os conserva­dores sentiam o valor de uma sociedade em ordem, mas preocu­pavam-se inadequadamente com as injustiças raciais que salienta- vam-se a olhos vistos. Os liberais sentiam a necessidade de justi­ça, mas às vezes esqueciam que a justiça requer uma sociedade em ordem. Se combinarmos o melhor dos dois slogans, obtere­mos “le i, ordem e justiça” . Esta combinação captura o significado da palavra veterotestamentária shalom}5 Quan­do o shalom prevalece, as pessoas vivem em relacionamentos harmoniosos numa ordem social pacífica e justa.

Justiça significa que as pessoas são trata­das com dignidade e recebem a máxima liber­dade consistente com os direitos dos outros.São-lhes permitida a liberdade de consciência,

Ao pôr em execução suas grandes responsabilidades, o

governo necessariamente exercerá grande poder.

a liberdade de mudar de residência, a liberdade de ganhar a vida e a liberdade de mudar de profissão. Justiça quer dizer que as pesso­as são julgadas de acordo com os seus méritos, não pelo sexo, capacidades físicas ou cor da pele. As necessidades básicas da­queles que não podem prover a subsistência para si, como os ór­fãos, os inválidos e os anciãos, são satisfeitas. Sob a justiça, as pessoas são responsáveis para prover a subsistência para si e suas fam ílias; não podem viver como parasitas de outros cidadãos pro­dutivos. •

Quando a justiça prevalece, embora nem todas as pessoas te­nham poderes iguais, cada uma terá bastante poder e independên­cia para procurar viver uma vida de liberdade e dignidade. Ques­tões sobre a justiça surgem em qualquer circunstância na qual as pessoas têm poderes desiguais. Há muitas possibilidades a alistar aqui, mas entre elas incluem-se relações como as entre locadores e locatários, adultos e crianças, ricos e pobres, polícia e cidadãos e maiorias e minorias raciais.

Cari F. H. Henry deu um exemplo do mundo do trabalho. Ele condenou a linha de montagem que “rebaixa os homens em má­quinas e lhes rouba do destino como filhos de Deus” .16 Um ambi­ente de trabalho que transforma os humanos em robôs ou os ex­põe ao perigo deve ser condenado como injusto.

Uma sociedade justa e ordeira é a meta dos governos e a justi­ficação bíblica para a sua existência. Os cristãos devem aceitar a obrigação de continuamente pressionar os governos à justiça. Nas democracias, significa que temos o direito constitucional e o de­ver bíblico de participar na arena pública. Visto que a natureza da democracia é que temos de ganhar o consentimento dos governa­dos, temos de aprender a apelar para a razão, egoísmo e senso de justiça de nossos oponentes.

Temos de aprender os aspectos internos e externos da política, mas precisaremos desenvolver educações políticas. Nós, cristãos, somos propensos à arrogância moral, porque acreditamos que pos-

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suímos a verdade absoluta. Então temos a tendência a acreditar que todo aquele que discorda de nós só propaga o erro, ou até pior, a heresia. Richard J. Mouw argumenta que na arena pública do debate político os cristãos devem praticar a “civilidade convicta” . Temos de falar a verdade bíblica a um mundo caído, mas façamo-lo num estilo que respeite os argumentos e direitos legítimos dos outros discorda­rem de nós.17 A civilidade exige que respeitemos os direitos dos ou­tros, mesmo o direito de viver no pecado, contanto que isso não viole os direitos alheios. Ele sustenta que em algum ponto temos de ir além da civilidade, embora “nunca estejamos justificados em nos engajar numa cruzada sem limites contra os nossos oponentes” .18

Pelo fato de, em última instância, os cristãos responderem a uma autoridade superior, vivemos em tensão com a autoridade dos governos. Sempre temos de julgá-la pela razão bíblica de sua existência, pois nossa lealdade nunca pode ser absoluta. Glenn

ccAand *7ftoccod <z ( CvitidadeRich Mouw é filósofo cristão,

ético e atual presidente do Fuller Theologica! Seminary. Na obra Uncommon Decency: Christian CAviUly In an Uncivil World (De­cência Incomum: A C ivilidade C ristã num Mundo In c iv il) (IntcrVarsity Press, 1992), ele pro­

cura desenvolver uma base teológica para o pluralismo político e a civilidade no discur­so público com pessoas cujas posições polí­ticas achamos censuráveis.

O que é civilidade? A descrição de Mouw faz parecer que civilidade é um tipo de vir­tude pública, um hábito bom, uma disposi­ção para se comportar em relação aos outros com certa medida de reserva e consideração. Ele a explica assim:

Civilidade é polidez pública. Significa que exibimos tato, moderação, refinamento e boas maneiras para com pessoas que são diferentes de nós. Entretanto, não é o bastante fazermos uma demonstração externa de polidez. Ser civil também tem um lado “interno” [p. 12].

Para Mouw, a civilidade acha-se no cen­tro da boa cidadania, a arte de trabalhar para

o bem de todos de maneira a reconhecer, to­lerai' e até avaliar a diversidade da opinião política. Não somos naturalmente bons c i­dadãos. A cidadania é uma disposição ad­quirida, algo que aprendemos pela prática.

Para sermos bons cidadãos, lemos de apren­der a ir além dos relacionamentos que são exclusivamente baseados na familiaridade e intimidade. Temos de aprender a nos com­portar entre estranhas, a tratai- as pessoas com cortesia não porque as conhecemos, mas porque as vemos como seres humanos como nós [p. 14].

Mas a civilidade não enfraquecerá nos­sas crenças, não debilitará nossa resolução, fazendo-a parecer que não assumimos uma posição firme em qualquer assunto? Mouw acha que não.

Admito que tentar tornar os crentes mais gen­tis e mais “tolerantes” golpeará alguns cris­tãos como atitude teimosa. K quanto aos de­votos e apaixonados que fazem piquetes em clínicas de aborto e organizam boicotes con­tra programas de televisão ofensivos? Eles podem se preocupar que tornando-se civis venha a significar um enfraquecimento da fé. Estou convencido de que isto não é necessa-

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Tinder arrazoa que a obediência é o nosso dever normal, mas a obediência incondicional seria idolatria.19 Assim , temos de honrar a recusa heróica de Corrie ten Boom de obedecer as autoridades nazistas, quando escondeu judeus marcados para o extermínio. E la sabia quando um governo devia ser desafiado.

A Política das NaçõesA política em sua complexidade máxima ocorre na arena inter­

nacional. Aqui também encontramos o poder do tipo mais temero­so, o poder que levanta as questões mais sérias para a vida moral. Todos os elementos do poder já discutidos podem ser observados na política internacional, mas neste nível o poder opera além das fronteiras internacionais, e tem o potencial de levar a uma guerra nuclear que destrói a civilização humana.

riamente assim. Desenvolver uma civilidade convicta pode nos ajudar a sermos cristãos mais maduros. Cultivar a civilidade pode for­talecer as crenças cristas ainda mais [p. 18].

Cultivar a civilidade não significa, de acordo com Mouw, que temos dc abandonar nossos princípios ou pontos de vista. Bem ao contrário, o cristão cultiva a civilidade justamente com base em princípios e num ponto dc vista reflexivo.

Nenhuma tentativa de ser civil será biblica­mente adequada se não dá importância à rea­lidade do mal. Civilidade não pode signifi­car relativismo. Todas as crenças e valores não estão numa paridade moral. Quando mostramos generosidade e reverenciamos as pessoas com quem discordamos sobre assun- tos importantes, não pode ser porque não nos importamos com as questões últimas da ver­dade e da bondade [p. 143],

Cultivar a civilidade também não signi­fica que temos de abandonar os esforços de influenciarmos a sociedade pelo processo legislativo. Há limites para a nossa capaci­dade de efetuar mudanças de coração e mente mediante a legislação.

Sou cauteloso dos esforços em estabelecer leis cujo propósito primário é forçar os não- cristãos a se conformarem a normas sexuais cristãs. Enquanto faça sentido construir “cer­cas” legislativas em torno de certas práticas de exploração sexual, as leis designadas a fazer os não-cristâos se conform arem relu­ta n te m e n te a n o rm as c r is tã s n ão são satisfatórias. As Escrituras cham am os se­res humanos a oferecerem a Deus sua obe­diência livre. Quando escolhem não fazer assim , tem os de respeitar suas escolhas m esm o que na nossa opinião sejam esco­lhas lamentáveis fp. 90).

O sistema americano de governo é uma democracia representativa. Isto significa, em parte, que não é uma teocracia. Conse- qiientemente, “não temos direito automá­tico de afastar as pessoas de pecar” (p. 91). Ao mesmo tempo, temos a responsabili­dade de abordar as pessoas como o pró­prio Cristo teria feito: “Tratando as outras pessoas com a gentileza e a reverência de Jesus, requer que sejamos profundamente sensíveis à dor e ruína de uma criação que ainda não foi completamente liberta de sua maldição” (p. 155).

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Estas características da política internacional criam um pro­blema para a nossa compreensão. A pura complexidade dos as- suntos internacionais instiga-nos a sim plificar os assuntos para tomar o entendimento possível. A simplificação nos apresenta perigos quando tentamos pensar de maneira cristã na política in­ternacional. Com frequência vemos a política internacional como um assunto das relações entre governos. Foçalizando os governos como os atores no palco internacional, facilita esquecer que os governos não são objetos abstratos - são associações de seres hu­manos. Mais ainda, são organizações de pessoas a quem Deus criou e fez à sua imagem.

Entender plenamente que estamos lidando com pessoas e não meramente com governos, leva-nos a abordar a política internaci­onal diferentemente daqueles que não começam com uma cosmo- visão cristã. Um enfoque nos seres humanos pode nos ajudar a ver a política mundial mais como Deus a vê. Se nossa análise só se concentra nos governos, podemos esquecer que não somos ape­nas brasileiros defendendo nossos interesses contra os de outras nações. Talvez não vejamos que nossos governos exercem poder que, em última instância, atinge a vida de outras pessoas a quem Deus ama e nos ordenou que amássemos. Quer dizer, eles também são o próximo que devemos amar como a nós mesmos. Enviar missionários ao exterior ilystra nossa preocupação pelo bem-estar espiritual desses indivíduos, mas não podemos parar aí. Quando amamos suas almas, também temos de mostrar preocupação por seus corpos, como fazemos com o nosso. Se têm fome, temos de trabalhar para ajudá-los a térem o que comer; se vivem sob opres­são, devemos ajudá-los a sair dela. Claro que aqui, mais uma vez, provavelmente concordaremos com estas metas, contanto que nossa discussão permaneça seguramente no nível das generalidades. Mas como resolveremos a fome do Terceiro Mundo? Como promove­remos os direitos humanos na República Popular da China? E aqui que a complexidade começa e os desacordos iniciam.

Para uma ilustração das complexidades das relações internaci­onais, examinemos este últim o problema um pouco mais detalhadamente. Durante décadas, os responsáveis pela política americana têm debatido como melhor lidar com a República Po­pular da China. Nos últimos anos, a China tem permitido cada vez mais liberdade económica, incluindo mais relações comerciais com nações ocidentais. Em 1989, quando os tanques esmagaram os protestos democráticos na praça Tienanmen(ou Praça da Paz Celestial), os líderes americanos ficaram enfurecidos. Algumas vozes imediatamente se levantaram pedindo severas sanções con­tra a China. Muitos políticos sugeriram aumentar as tarifas das importações chinesas aos Estados Unidos. Outros questionaram que este procedimento ou levaria o governo chinês a moderar sua política ou, antes, o instigaria a agir até com mais dureza com os reformadores. Alguns líderes, inclusive o então presidente George

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Bush, raciocinaram que a melhor maneira de promover a liberda­de na China seria pela ampliação de contatos com o Ocidente, e não por sua redução. Ele acreditava que isto consequentemente geraria pressões internas que conduziriam a reformas. Enquanto isso, os dissidentes políticos ficariam apodrecendo nas prisões e a liberdade continuaria sendo esmagada.

Para complicar ainda mais a questão, em 1994, o presidente B ill Clinton estava contan­do com a China como aliada para pressionar a Coréia do Norte a deixar de desenvolver ar­mas nucleares. A China era importante neste caso, por ser vizinha poderosa da Coréia do Norte e porque mantinha poder de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Pressionar a China muito duramente sobre os direitos civis poderia resultar em per­der um aliado importante contra a Coréia do Norte.

Temos de reconhecer a complexidade dos assuntos mundiais e também entender como a estrutura do poder internacional molda a política internacional. Por um longo processo histórico, os po­vos de várias nações se ordenaram em unidades políticas que exer­cem poder último - soberania última - sobre as pessoas que v i­vem dentro de suas fronteiras. A política internacional envolve relações entre governos que afirmam e vigorosamente defendem sua soberania. Os governos resistem dar poder sobre assuntos de sua nação a qualquer organização internacional, como as Nações Unidas. Por conseguinte, nada se compara a um governo mundial que pode forçar a resolução pacífica de disputas entre dois esta­dos. Não existe nenhuma força policial internacional que prenda um estado soberano, arraste-o a um tribunal internacional e, se condenado, leve-o à força a uma prisão internacional.

Assim , se um estado deseja construir um muro no terreno do vizinho - ou seja, tomar alguma parte do seu território - nenhum país pode forçar o outro ao tribunal. Ilustrações da ine­ficácia das organizações internacionais em solucionar confli­tos entre estados soberanos são prontamente encontradas nas notícias diárias. Em 1995, o Canadá e a Espanha engajaram-se numa querela sobre os direitos de pesca numa porção do oceano Atlântico, perto de Newfoundland. A questão fez o Canadá patru­lhar a área com navios de guerra para obrigar o cumprimento de suas reivindicações. A Espanha desistiu em face da ameaça da força do Canadá. As guerras entre croatas, bósnios e sérvios no território do estado desintegrado da Iugoslávia continuaram, ape­sar dos melhores esforços da comunidade internacional em evitá- las. As Nações Unidas acharam-se impossibilitadas de formar uma aliança unificada dos estados membros dispostos a usar força letal para dar um fim ao conflito.

O problema é que os estados soberanos estão pouco propensos a dar suficiente poder a qualquer organização internacional para

Temos de entender como a estrutura do poder internacional molda a política internacional.

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decidir questões relativas ao seu interesse nacional individual, salvo em assuntos secundários. Além disso, as organizações internacio­nais (como a Corte Internacional de Justiça ou as Nações Unidas) carecem de suficiente poder de execução para coagir as nações, exceto as mais fracas. O resultado final é que quando os conflitos surgem, as nações são fortemente tentadas a seguir o antigo padrão: Uma nação agarra um taco de beisebol, outra pega em armas e o conflito vai se desenvolvendo em estágios sucessivos até a guerra.

A primeira vista, cada país defendendo seus próprios interes­ses parece anarquia. Os grandes poderes intimidam poderes mais fracos ou os invadem. Os estados fazem o que querem dentro de

suas fronteiras. Cada estado determina para si quais são seus interesses, decide sozinho como usar o poder, e julga-se por código moral pró­prio. Chamar de anarquia o sistema internaci­onal pode exagerar o assunto. Mesmo sem um governo mundial para obrigar o cumprimento das leis internacionais e estabelecer a ordem, muitas nações se dão razoavelmente bem en­

tre si. Os governos têm interesses mútuos, por isso negociam tra­tados que estabelecem privilégios e obrigações das partes.

Alguns tratados estabeleceram regras que regem o comércio internacional e os direitos (|os viajantes internacionais. Até sem uma autoridade superior para obrigar o cumprimento dos trata­dos, a maioria das nações cumpre suas obrigações do tratado. Fa­zem assim porque cada parte do tratado se beneficia; se as cir­cunstâncias fossem outras, os tratados, em primeiro lugar, não te­riam sido criados. As nações também desejam honrar os tratados, porque ter a reputação de cumprir suas obrigações ajuda uma na­ção na negociação de tratados futuros.

Os cristãos não deveriam ter problema em apoiar um tratado internacional que beneficiasse todas as partes, mesmo se tal trata­do fosse baseado no egoísmo das nações que o assinaram. A coin­cidência feliz da sobreposição de interesses entre as nações per­mite-lhes que trabalhem juntas, cada qual para o próprio bem. Concordando com os tratados, elas estão agindo de maneira muito sim ilar a vizinhos que cuidam das casas dos outros, enquanto estes estão em férias. O problema surge quando as nações so­beranas têm exército ou poder económico desigual. Por causa da qualidade anárquica da política internacional, quando os inte­resses das nações entram em conflito, cada nação usará o poder de modo interesseiro.

Uma escola da política internacional, denominada realista, diz que este é o melhor que podemos esperar da política internacional. As nações inevitavelmente sentem a própria dor e prazer melhor que o vizinho. (Lembra da agulha hipodérmica?) E julgam suas ações por códigos morais diferentes. O cristão tem de considerar isto repulsivo, porque soa como “o poder toma as coisas certas” .

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A política internacional envolve relações entre governos que

afirmam e vigorosamente defendem sua soberania.

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No final das contas, o poder nas relações internacionais deter­mina quem viverá, quem morrerá, quem controlará a terra com seus recursos naturais e quem não. Um mapa-múndi mostra a or­dem existente dos estados soberanos, cada qual com suas frontei­ras. Deus não traçou estas fronteiras; os seres humanos o fizeram. Todas são produtos das relações de poder e o poder as mantém no lugar. Também determi­nam nossa lealdade.

Uma fronteira internacional passa entre San Diego e Tijuana, separando os Estados Unidos do México. Tive a sorte de ter nascido no lado norte da linha, portanto, sou cidadão dos Esta­dos Unidos. Compartilho naturalmente uma afinidade com outros americanos, mesmo os que moram em Boston, a mais de quatro mil e oitocentos quiló­metros a leste. Não me sinto muito preocupado com os habitantes de Tijuana, embora vivam a cerca de cento e sessenta quilómetros ao sul. O fato de minha lealdade aos outros americanos surgir na­turalmente reflete mais minha natureza pecadora do que desejo admitir. Contudo, os mexicanos foram criados pelo mesmo Pai divino. E alguns mexicanos são cristãos devotos, portanto somos irmãos e irmãs na fé. Porém, meu patriotismo americano entra no modo de aceitar isto. Sou inclinado a pensar neles como mexica­nos mais do que como irmãos e irmãs.

Focar nosso pensamento sobre política internacional nas pes­soas, e não nos estados, permite-nos observar os indivíduos que compõem os estados. Esta atitude nos ajuda a vê-los como seres humanos, como irmãos e irmãs, e como objetos do amor de Deus. Poderíamos até sonhar com a possibilidade de abolir as fronteiras nacionais, de modo que os cidadãos de todo o mundo trabalhas­sem pelo bem comum. Dada a natureza humana, a erradicação das fronteiras nacionais não é algo prático; portanto, é provável que a ordem existente continuará até a vinda do Senhor.

O problema da política internacional é como fazer os governos agirem civilizadamente em relação a outros governos. Parece que são menos capazes de agirem assim que os indivíduos. Os gover­nos combinam o egoísmo de milhões de cidadãos num interesse grupai. Pelo governo nos vemos como parte de uma comunidade maior. Em medida saudável, identificar-se com os outros mem­bros de nossa nação manifesta-se como patriotismo - um senti­mento de aceitação e orgulho do país. Infelizmente, patriotismo em excesso pode ser repugnante, tornando-se adoração idólatra da nação e ódio a outras nações.

Reinhold Niebuhr explicou como isto sucede. Ele sustenta que indivíduos e grupos operam segundo dinâmicas diferentes. Pelo fato de os indivíduos sentirem simpatia pelos outros, pomos de lado nossos interesses para ajudar o próximo. Nossa capacidade de raciocinar nos permite desenvolver um senso de justiça. Entre­

A maioria das nações cumpre suas obrigações do tratado. Fazem assim porque cada parte do tratado

se beneficia.

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tanto, estas características de generosidade e justiça ficam entorpecidas quando os indivíduos combinam-se em grupos. E comum os grupos exibirem mais egoísmo que os membros do grupo agindo como indivíduos; os grupos têm menos capacidade de pre­ocuparem-se com as necessidades dos outros; são mais propensos a atos irracionais e mais capazes de fazer o mal que os indivíduos que compõem o grupo.20 Como indivíduos, aprendemos a nos des­culpar e até pedir perdão, mas quanto maior o grupo, mais d ifícil

isto fica. Para nações inteiras, é quase impos­sível.

Como cristãos americanos, não estamos imunes aos excessos de patriotismo. Desde a infância somos condicionados a ver o mundo por olhos patrióticos. Desejamos naturalmen­te que os Estados Unidos estejam em seguran­

ça e sejam bem-sucedidos. Aprendemos sobre assuntos internaci­onais pela ótica da mídia e de funcionários do govemo americano. Estas fontes raramente interpretam o mundo por princípios bíbli­cos, como o parentesco divino de todos os seres humanos ou o amor a nossos vizinhos internacionais como a nós mesmos. Idéias como estas não são aceitas prontamente no mercado americano de idéias. Mas, como cristãos, ao menos podemos aprender a per­guntar se a política de nosso govemo serve a um interesse nacio­nal legítimo. Podemos aprender a considerar se a política ameri­cana intromete-se no direito dos outros governos para prover a sub­sistência dos seus cidadãos - o próximo que devemos amar como a nós mesmos - e ajudá-lo a viyer com Uberdade e dignidade.

Criados por Deus, que ama todos os seres humanos igualmen­te, os cidadãos de outras nações têm direitos humanos que deri­vam da mesma fonte divina que a nossa. Aprendendo a examinar os assuntos mundiais nesta perspectiva, pode ser apenas um pe­queno passo de fidelidade em direção ao nosso dever de amar os outros como a nós mesmos.

ConclusãoNeste capítulo, mencionei apenas alguns aspectos da questão

de uma filosofia política cristã. Muito foi ignorado ou tratado não convenientemente. Mas se aprendemos algumas idéias para nos ajudar a enfrentar o desafio de vivermos como cristãos num mun­do universalmente político, teremos aproveitado muito bem nos­so tempo.

Todas as relações humanas envolvem operações de poder e influência. O poder permite a pessoa controlar, manipular ou in­fluenciar o comportamento de outra. Precisamos do poder que se manifesta em muitas formas para gerir as associações humanas, desde famílias a igrejas, a governos nacionais. Infelizmente, o poder necessário à vida humana pode ser usado tanto para o mal como

Como cristãos americanos, não estamos imunes aos excessos de

patriotismo.

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para o bem. A natureza dual do poder levanta questões básicas aos cristãos, pois Deus nos fez à sua imagem e nos ama cada um pro­fundamente. Quando o poder degrada o valor ou viola a dignidade das criaturas de Deus, temos de protestar ou ser contados como cúmplices.

Todos vivemos em redes de relações de poder. Assim , não te­mos escolha senão nos envolver nas questões morais da política. Reinhold Niebuhr resume este ponto muito bem: “A política será, até o fim da história, uma área onde a consciência e o poder se encontram, onde os fatores éticos e coercivos da vida humana se interpenetrarão e trabalharão seus compromissos tentadores e in­quietos” .21 Se estou certo em dizer que todos vivemos em relações de poder, e se Niebuhr está certo em dizer que a consciência e o poder se encontram na política, temos nossa tarefa claramente di­ante de nós: Temos de aceitar o fardo de civilizar o poder com uma consciência cristã esclarecida.

Até o fim da história, dê boas-vindas à política! Amém!

Revisão e Questões para Discussão1. O que na natureza dos seres humanos torna a política inevi­

tável e essencial à vida humana?2. Se cremos que os seres humanos são objetos do amor de Deus

e portadores de sua imagem, como isso influencia o modo como o poder deve ser exercido numa organização a qual você atualmente faça parte? Avalie algumas práticas específicas que você observa em sua igreja, clube, seminário ou universidade para ver se condizem com uma visão bíblica dos seres humanos e o uso do poder.

3. McNutt assevera que a política ocorre em todas as organiza­ções, grandes e pequenas. Escolha uma organização pequena com a qual você esteja familiarizado, e analise-a como entidade políti­ca. Seria bom examinar sua fam ília, o govemo estudantil, uma equipe esportiva ou um clube em termos de como o poder opera ali, como as decisões são tomadas e quem ganha e quem perde.

4. O poder toma muitas formas. Para testar sua compreensão desta declaração, comente as diferenças e semelhanças entre po­der coercivo e poder não-coercivo. O quanto são similares e dis­tintos? Como o uso do segredo ou do engano levanta muitas das mesmas questões éticas que as do uso da força bmta?

5. Se podemos “amar pela política” , é possível que uma carrei­ra na política seja considerada uma chamada cristã? Se respondeu afirmativamente, explique algumas das possíveis armadilhas de tal carreira.

6. Comente a seguinte declaração: “Se queremos ter uma filo ­sofia política sadia, temos de ter uma visão apropriada da pecaminosidade humana e da graça comum” .

7. Considere esta situação hipotética: Você leva um grupo de cristãos a uma ilha tropical nunca antes povoada, onde há abun­

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4 6 6 DENNIS McNUTT

dância de comida, água e abrigo. Lá vocês estabelecem uma coló­nia. Sua colónia praticaria política? Explique.

8. Quando discutim os po lítica internacional, é comum enfocarmos em estados (nações), nosso país e países estrangeiros. Como este enfoque em estados/países resulta num grau de ceguei­ra à realidade do poder na política internacional?

9. A B íb lia nos ordena amar Deus e o próximo como a nós mesmos. Você ama ambos igualmente? Se sua resposta for não, por que não? Não deveria?

Bibliografia Selecionada

L eit u r a s C l á s s ic a s S o b r e T e o r ia P o l ít ic a

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Notas bibliográficas

1. Glenn Tinder, The Political Meaning o f Christianity (São Francisco: HarperCollins Publishers, 1989), pp. 197, 198.

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POLÍTICA PARA CRISTÃOS (E OUTROS PECADORES) 4 6 7

2. Pursuing Justice in a Sinful World (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1984), pp. 9-11.

3. The Children ofLight and the Children o f Darkness (Lon­dres: Nisbet, 1945), p. vi.

4. Para uma boa discussão sobre como os evangélicos têm re­agido à visão do secularismo por demais otimista da natureza hu­mana, veja Steven Monsma, The Unravelirig o f America (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1974), pp. 36-38.

5 John W arwick Montgomery, Human Rights and Human Dignity (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1986), pp. 167-169. Embora a B íb lia não fale sobre os direitos individuais da mesmíssima maneira como o fazem os estudiosos modernos, ela claramente anuncia leis nas quais o indivíduo pode confiar como se tivessem sido explicadas em detalhes como o direito legal. Os exemplos a seguir ilustram este ponto: o direito a um julgamento justo diante de juizes imparciais (1 Timóteo 5.21; Deuteronômio 16.18,19; 17.6); o direito a um salário justo pelo trabalho e o pa­gamento ser feito cada dia antes do pôr do sol (Lucas 10.7; Deuteronômio 24.14,15); o direito do homicida acidental ter asilo do vingador do sangue (Números 35.11,35; Deuteronômio 4.42); o direito da divorciada receber carta de divórcio do marido (Deuteronôm io 24 .1 -3 ); o d ireito a uma boa reputação (Deuteronômio 13— 19); o direito de ser livre de agressão sexual (Deuteronômio 22.25-27); os direitos das viúvas (Deuteronômio25.5,6); o direito a ser protegido contra pesos injustos nas transa­ções comerciais (Deuteronômio 25.13-15).

6. Cari F. H. Henry, “The Judeo-Christian Heritage and Human Rights” , in: Religious Beliefs and the Moral Foundation o f Western Democracy, editor Cari H. Esbeck (Colúmbia, Missouri: University of M issouri, 1986), pp. 27-40.

7. Ibid., p. 30.8. Montgomery assume esta abordagem; veja pp. 206-217. Veja

também Lewis Smedes, Mere Morality (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1983), pp. 34-37, 219, 223, 235. Para um exemplo de um teólogo moral católico romano, veja Bemard Hãring, The Law o f Christ (Paramus, Nova Jersey: The Newman Press, 1966), volume 1, pp. 99-103, 120, 121, e volume3, pp. 148,149. Veja também sua obra Free andFaithful in Christ: Moral Theology fo r Clergy and Laity (Nova York: Crossroad Publishing Company, 1981), volume 3, p. 360.

9. Human Rights and Human D ignity (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1986), p. 171.

10. Glenn Tinder, The Political Meaning o f Christianity (São Francisco: HarperCollins Publishers, 1989), pp. 165-180.

11. Claro que qualquer entendimento pleno do conflito huma­no tem de levar em conta a alienação histórica da humanidade do seu Criador (Génesis 3).

12. Para discussões sobre como o poder pode possuir os cris­

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tãos, veja Anthony Campolo, The Power Delusion (Wheaton, Illino is: Victor Books, 1986); Jacques E llu l, Money and Power (Downers Grove, Illin o is: InterVarsity Press, 1984); e Cheryl Forbes, The Religion o f Power (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1983).

13. Infelizmente há exceções. Durante a Inquisição Espanhola (século X V d .C .), a Igreja Católica Romana torturou e executou a quem considerava herege. Nos julgamentos das bruxas de Salém, na Nova Inglaterra colonial (1690), os oficiais eclesiásticos quei­maram mulheres na fogueira por acreditarem que elas eram bru­xas. Hoje, ocasionalmente, os membros da congregação ou as au­toridades civis excluem o indivíduo que perturba as reuniões da igreja e que se recusa a ficar quieto ou deixar o santuário.

14. John R . W. Stott, Decisive Issues Facing Christians Today, 2.a edição (Tarrytown, Nova York: Fleming H. Revell, 1990), p. 161.

15. A palavra shalom inclui as idéias de paz, inteireza, bem- estar, prosperidade, impassibilidade, integridade.

16. Cari F. H . Henry, Aspects o f Christian Social Ethics (Grand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1964), pp. 57, 58.

17. Richard J. Mouw, Uncommon Decency: Christian Civility in an Uncivil World (Downers Grove, Illinóis: InterVarsity Press, 1992).

18.1bid.,p. 132.19. The Political Meaning o f Christianity (São Francisco:

HarperCollins Publishers, 1989), pp. 205-211.20. Reinhold Neibuhr, Moral Man and Immoral Society (Nova

York: Charles Scribner’s Suns, 1932 e 1960), pp. x v iii, xiv.21. Ibid ., p. 4.

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Apêndices

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Apêndice 1 Reflexões sobre os Significados da Verdade

Michael D. Palmer

“Que é a verdade?” , perguntou Pôncio Pilatos. Infelizmente, ele parecia estar perguntando retoricamente, pão se importando em esperar por uma resposta. Assim , resta-nos buscar uma res­posta para nós - Qual é a resposta a esta pergunta aparentemente simples? E por que deveria você, como cristão, preocupar-se com essa resposta?

Dar uma resposta como fruto de reflexão a estas perguntas re­quer que separemos os diferentes sentidos da palavra. “Verdade” é usada de modos diferentes. Sabemos, é claro, que Jesus declarou ser a verdade: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (João14.6). Além disso, quando orou pelo bem dos seus seguidores, Ele não apenas identificou a verdade com Ele mesmo, mas também com as Escrituras: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (João 17.17). Mas a palavra verdade também tem outros usos. Quan­do dizemos: “Ele é um amigo de verdade” , queremos dizer que a pessoa em questão é realmente um amigo e não alguém que finge ser amigo. “E la foi verdadeira [fiel] às suas palavras” significa que ela manteve a palavra. Também dizemos que as declarações são verdadeiras: “O que você diz é verdade”', “Nunca ouvi palavras mais condizentes com a verdade” ; “Jura dizer a verdade, somente a ver­dade, nada mais que a verdade?”; “A caracterização que M elville fez de Ismael é verdadeira [fiel] à natureza humana” significa que o personagem Ismael do romance Moby Dick foi representado segun­do o comportamento no qual as pessoas desse tipo geralmente se comportam dadas as circunstâncias descritas.

Para os nossos propósitos, os vários usos e sentidos da palavra “verdade” classificam-se em quatro categorias principais:

1. A verdade conforme se refere a um Panorama do Pensamen­to cristão.

2. A verdade conforme se refere à vida interior ou caráter de um ser humano individual.

3. A verdade conforme se refere às proposições (declarações ou julgamentos).

4. A verdade conforme se refere aos textos literários e obras de arte.

Quando tivermos esclarecido estes usos notáveis da “verda­de” , estaremos numa posição melhor para explicar por que o tópi­co da verdade nos é importante e por que nos interessa.

Esboço de uma Cosmovisão CristãO pronunciamento de Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a

vida” (João 14.6) não é meramente uma expressão qualquer entre

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muitas. Para o cristão, representa a proclamação fundamental. Em palavras bastante simples, significa que Jesus permanece como a figura em tomo da qual a vida da pessoa é alicerçada. Seus propósi­tos dão sentido e coerência à vida dedicada ao seu serviço. Compro­meter-se com a verdade neste nível envolve comprometer-se com uma visão global da realidade que atinge todos os aspectos da vida. Este compromisso envolve mais que consentimento intelectual a uma teoria; envolve iniciar sem reservas um modo de vida. Ao lon­go deste livro, os autores chamaram este tipo de visão abrangente da realidade (e o modo de vida baseado nela) de cosmovisão.

Como cosmovisão, o Cristianismo tem implicações quanto a quem nós, como seres humanos, somos, o que devemos fazer, como podemos fazê-lo e o que podemos esperar alcançar. O Salmo 8 identifica o lugar da humanidade numa cosmovisão cristã: “Que é o homem mortal para que te lembres dele? [...] Pouco menor o fizeste do que os anjos e de glória e de honra o coroaste” . Esta passagem apresenta a humanidade como criação de Deus, que tem propósitos distintos para ela. Além disso, se todo o mundo foi cri­ado assim, então os propósitos de Deus definem o que cada um de nós deve ser e fazer. Claro que há outras características associadas com o consentimento e a ação da pessoa na declaração de Jesus ser a verdade - o que aqui estou chamando de cosmovisão cristã. Considerando que comentei os seis principais elementos de uma cosmovisão cristã no Capítulo 1, lim itar-me-ei agora a uma re­visão breve deles com um olhar atento para discernir como eles nos ajudam a entender a declaração de Jesus ser a verdade.

Uma cosmovisão cristã, como outras cosmovisões, expressa uma ideologia. Uma ideologia, como observado no Capítulo 1, enuncia as crenças centrais daqueles que mantêm certa cosmovi­são. E muito comum isto suceder nas proposições filosóficas, de­clarações de credo ou outras fórmulas autorizadas. As crenças cen­trais do Cristianismo são encontradas em suas doutrinas centrais que fornecem 1) uma visão geral sobre a natureza do universo - Deus é o nosso Criador e de tudo o que há; 2) uma descrição da natureza essencial do ser humano individual - somos feitos à ima­gem de Deus;1 3) uma diagnose do que está errado com a humani­dade - por nossas escolhas estamos alienados de Deus; e 4) uma prescrição para o problema - podemos ser reconciliados com Deus por Jesus Cristo.2

Para muitos, as verdades do Cristianismo foram-lhes apresen­tadas pela primeira vez não pelas profundas complexidades das declarações doutrinais, mas pelas narrativas encontradas na B í­blia. O elemento narrativo da cosmovisão cristã, assim como o de outras cosmovisões, expressa suas crenças centrais pelo exemplo, imagem, história, símbolo, parábola, metáfora, arquétipo e outros dispositivos literários e artísticos.

Aceitar uma cosmovisão cristã significa adotar e cumprir cer­tas normas. De fato, como foi destacado no Capítulo 8, também

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significa tomar-se pessoa cujo caráter foi moldado de certa ma­neira importante. No Novo Testamento, Paulo descreve a norma última para a formação do caráter: “conformar-se à imagem de Cristo” - com o que parece querer dizer assimilar e vivenciar to­dos os traços de caráter exemplificados em Jesus.

Desde o tempo da fundação da Igreja no século I, os cristãos têm observado certos atos cerimoniais. Claro que cumprir atos cerimoniais - rituais, como são chamados - não é exclusivo do Cristianismo. (A maioria das principais cosmovisões promove al­guma forma de expressão cerimonial para integrar seus padrões de crença no trama da vida interior e caráter dos adeptos.) O que é exclusivo ao Cristianismo são os rituais específicos que ele obser­va. Em particular, os rituais do batismo nas águas e da Ceia do Senhor vinculam o crente a certas crenças profundas e centrais à fé cristã: o nascimento a uma nova vida (batismo) e a ressurreição de Jesus (ceia). O ritual da Ceia do Senhor nos recorda as declara­ções notáveis - e surpreendentes - de que na vida, morte e ressur­reição da pessoa singular de Jesus, Deus interferiu na história para perdoar a humanidade e restabelecer o relacionamento interrom­pido com Ele . Esta declaração encontra-se no coração da procla­mação da cosmovisão de Jesus, de que E le é o caminho, a verdade e a vida.

As cosmovisões dirigem-se mais que à mente; falam também ao lado afetivo da natureza humana. Isto significa que evocam ou encorajam certas experiências. Uma cosmovisão cristã nutre so­bretudo um encontro com Deus. O alcance de tal experiência (como encontrada na B íb lia e nos registros da Igreja) é bastante amplo - do animado ao conquistado, do temeroso ao jovia l. O que os par­ticipantes destas experiências frequentemente dão testemunho é o grau ao qual suas experiências fortalecem suas crenças. Isto não quer dizer que as experiências tornam verdadeiras suas crenças centrais (tornando-as, por assim dizer, mais verdadeiras que an­tes). Elas as investem de poder e crença.

A Igreja é a instituição social primária do Cristianismo. Den­tro de sua estrutura, doutrinas e normas são trabalhadas e esclarecidas; narrativas são contadas, recontadas e protegidas; r i­tuais são ordenados; experiências com Deus são incentivadas e nutridas. Histórica e atualmente, fazer parte da Igreja significa comprometer-se com uma comunidade de pessoas que admitem que a centralidade da pessoa de Jesus e suas declarações são ver­dadeiras.

Em suma, aceitar como verdadeiras as declarações de Jesus envolve muito mais que aceitar uma proposição simples ou mes­mo um conjunto de declarações sobre a condição humana. Envol­ve pensar em termos de uma visão abrangente da realidade e par­ticipar inteiramente num modo de vida baseado nessa visão da realidade. Em resumo, aceitar as declarações de Jesus significa

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adotar e agir de acordo com uma cosmovisão que incorpora ele­mentos ideológicos, narrativos e normativos bem como rituais, experiências e compromissos sociais.

A Verdade na Vida InteriorConforme comentamos anteriormente, a língua portuguesa

mostra um segundo uso do termo verdade, como quando falamos de alguém ser verdadeiro amigo ou ser verdadeiro [fiel] à sua pa­lavra. Nestes exemplos, a palavra se refere a certos traços do cará­ter das pessoas em questão. O verdadeiro amigo éfiel; aquele que é fiel à sua palavra é íntegro.

O escritor de Génesis entendeu este tipo de verdade. Quando José, a serviço de Faraó, reconheceu seus irmãos que tinham ido ao Egito para comprar pão, ele os testou. Sua intenção era ver se eles tinham mudado o que eram quando conspiraram para o ven­der à escravidão e depois mentiram a Jacó, o pai deles. José os acusou de serem espiões. Em resposta, explicaram sua formação fam iliar e insistiram: “Somos homens de retidão” . Pressionando- os ainda mais, José exigiu que o irmão mais novo lhe fosse trazi­do, de forma que as palavras deles fossem provadas, se havia ver­dade neles (Génesis 42.16), Obviamente, José estava interessado em algo mais que mera justiça. Ele queria testar as palavras deles para ver se havia verdade nos irmãos. Palavras faladas representa­ram uma avenida para determinar o que era crucialmente impor­tante: o caráter daqueles que as falaram.

A verdade na vida interior não é um fenómeno nem estático nem simples; o caráter virtuoso surge pouco a pouco, com o pas­sar do tempo e com base nas pequenas escolhas feitas na vida diária. Eventualmente cresce numa realidade complexa chamada eu maduro. Mas muitas vezes sua origem pode ser trilhada a uma ocasião que exige que o indivíduo reflita honestamente em sua própria condição.

Neste aspecto, a honestidade acerca de si mesmo é a fase in ici­al e mais básica da formação de uma pessoa madura que exibe a verdade interior. Toda a formação subsequente da vida interior em direção à maturidade e força de caráter começa com uma avalia­ção sincera que o indivíduo faz de si mesmo.

O coletor de impostos mencionado por Lucas reconheceu este ponto. E por isso que ele saiu do templo “justificado” e os fariseus não. Enquanto que os fariseus proclamavam sua justiça própria e ostentavam que não eram como os outros (caloteiros, injustos, adúlteros ou coletores de impostos), o publicano reconheceu sua condição desesperada. Em palavras simples e eloquentes, Lucas nos conta: “O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!” (Lucas 18.13).

O caso do coletor de impostos ressalta uma relação peculiar,

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quase paradoxal, entre a verdade conforme se refere à vida interi­or da pessoa e a verdade conforme se refere a Jesus. Ninguém que pelo menos não exiba uma medida de verdade no eu interior, pode admitir de qualquer modo fundamental que Jesus é a verdade. Isto significa que reconhecer a verdadeira identidade de Jesus envolve exercer uma honestidade básica conosco mesmos. Em outras pa­lavras, a menos que reconheçamos nosso próprio status como pe­cadores, não podemos reconhecer a verdade sobre a redenção de Cristo. Sem termos o tipo de sinceridade ou verdade interior exi­bida pelo coletor de impostos, Jesus nunca pode ser a verdade para qualquer um de nós. Ele sempre permanecerá somente como uma figura distante que fala palavras ininteligíveis. Assim , para que Jesus seja a verdade, cada pessoa tem de receber e cultivar a verdade nos mais íntimos recessos da vida. Mas isto não pode ser feito como mera resolução da vontade. Requer graça.

Estranhamente, a graça é ao mesmo tempo mais fácil e mais d ifícil que habitualmente a vemos.3 É mais fácil, porque, embora desejamos pagar ou fazer algo por ela, é grátis. É mais d ifícil, porque regularmente nos é oferecida nas formas que estamos me­nos preparados para recebê-la. Desejamos receber a graça por ca­nais familiares e confortáveis. Mas Jesus oferece a graça de ma­neira que nos força a chegar a um acordo com a verdade - tanto em nós mesmos quanto nEle - e, às vezes, seus métodos parecem estranhos, até ofensivos. Ele oferece a graça a um judeu pelas mãos ajudadoras de um samaritano, a uma mulher cananéia mediante palavras sobre dar a comida dos filhos a um cachorro, a Pedro por meio de um sonho sobre comer coisas tradicionalmente chamadas “impuras” , a Paulo por intermédio de uma luz ofuscante.

Jesus, a verdade, concede a graça por meio de palavras e ações. Por essa graça, somos dotados de suficiente honestidade, de sufi­ciente verdade interior, a reconhecer a verdade da cosmovisão baseada em sua vida. Este padrão surge claramente na história da mulher samaritana junto ao poço de Jacó, de quem João fala no capítulo quatro do seu Evangelho. Quando Jesus a confronta com os fatos da vida dela, E le está, em essência, falando palavras de graça ao apresentar-lhe a oportunidade de chegar a um acordo com ela. Numa série de mudanças, a mulher enfrenta com determina­ção a realidade escura de sua vida passada e a depravação de sua condição presente. Fazendo assim, ela ouve Jesus com atenção crescente até que, finalmente, ela pode entender dos próprios lábi­os de Jesus que E le é o Messias, o ungido.

Interpretamos mal as histórias do coletor de impostos e da mulher samaritana, se as considerarmos que implicam que a ver­dade desponta luminosamente de uma vez por todas na vida inte­rior. O aparecimento da verdade interior, como a prática da verda­deira adoração, intensifica-se e amadurece à medida que nos en­tregamos completamente a ela. Na esfera moral, a busca da verda­de interior leva, pouco a pouco, à transformação de nossos dese­

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jos e afetos em direção à virtude moral e ao refinamento de nossa habilidade de fazer escolhas boas, o que é chamado de virtude intelectual. No reino espiritual, a busca da verdade interior conduz gradualmente a um aprofundamento e purificação de nossa fé.

A Verdade PreposicionalNa vida cotidiana como também nos campos técnicos da in­

vestigação, como a física, química, matemática e lógica, a verda­de é comumente considerada propriedade de nossos pensamentos ou as proposições (às vezes chamadas declarações ou julgamen­tos) que expressam nossos pensamentos. Para entender este modo de pensamento sobre a verdade, tenho de fazer distinção entre ver­dade efato.

Um fato é um estado de coisas, quer dizer, um objeto, uma condição, uma circunstância ou um evento. A realidade é compos­ta de incontáveis estados de coisas. A seca que tanto castigou o Meio-Oeste dos Estados Unidos durante o verão de 1988, é um estado de coisas e, como tal, um fato. Um satélite atualmente orbita a terra arrastando uma corda de aço de vários quilómetros de com­primento. (Desprendeu-se da nave espacial em 1996.) O satélite, com sua corda, é um estado de coisas e, como tal, um fato. Se o pára-lamas direito do seu carro está amassado, isso também é um estado de coisas. A árvore que cresce no jardim , a substância quí­mica no béquer do laboratório, o livro sobre a escrivaninha, a ca­reca do professor - todos estes são estados de coisas e, como tais, todos são fatos.

Os estados de coisas e, consequentemente, os fatos, existem mesmo que ninguém jamais os relate ou descreva, e existem inde­pendentemente de nossa linguagem e pensamento. Além disso, não são nem verdadeiros ou falsos; simplesmente existem. Mas claro que podemos e os descrevemos, particularmente em declarações.

Eu disse que a verdade é uma propriedade das declarações que fazemos (ou os pensamentos expressados por elas). Quan­do uma declaração (ou um pensamento) tem esta propriedade? Uma declaração é verdade quando descreve um fato (um esta­do de coisas que existe); ou no caso de uma declaração sobre o passado, quando descreve um estado de coisas que aconteceu; ou no caso do futuro, algo que acontecerá. Assim , se “Há uma pasta na escrivaninha” descreve um estado de coisas atual, en­tão a declaração é verdadeira. Por contraste, uma declaração falsa descreve um estado de coisas que não existe (ou não exis­tiu ou não existirá).4

Podemos obter apreciação mais rica desta definição da verda­de, se a colocarmos no contexto de dois conceitos relacionados: a crença e o conhecimento.

Uma crença (ou opinião) é uma atitude ou estado de espírito em que a pessoa aceita, consente ou expressa convicção sobre a verdade ou a realidade de algo. Expressamos nossas crenças em

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declarações. Por exemplo:“Há vida inteligente no espaço cósmico.”“A lua é feita de queijo verde.”“Dante já viveu.”“B ill Clinton foi presidente antes de John F. Kennedy.”“Água é H20 .”

Apesar de todas estas declarações expressarem crenças, é evi­dente que só algumas são verdadeiras. Uma característica impor­tante das crenças é que, diferente dos fatos, são verdadeiras ou falsas. Isto não significa que sempre sabemos se nossas crenças são verdadeiras ou falsas. (Ninguém ainda sabe com certeza se há vida inteligente no espaço cósmico.) Não obstante, independente de nossa capacidade de demonstrar o seu valor da verdade, todas as crenças são ou verdadeiras ou falsas.

Antes de definir conhecimento, tenho de interromper para es­clarecer e reforçar uma distinção crucial entre fatos e crenças. Fatos são estados de coisas que existem. O líquido que está no béquer é um fato; é um estado de coisas que existe. Este fato não é nem verdadeiro nem falso; simplesmente existe. Agora uma estudante de química chega e expressa sua crença sobre a natureza desse líquido. “Este líquido é água” , diz ela, apontado para o conteúdo do béquer. Diferente do fato (o líquido que está no béquer), que não é nem verdadeiro nem falso, mas simplesmente existe, a crença da estudante de química (expressada na declaração “Este líquido é água”) tem de ser verdadeira ou falsa. Se, sob exame mais detido, o líquido é mesmo água, sua crença será verdadeira. Se mostra-se ser outra substância, sua crença será falsa. Com esta distinção em mente entre fatos e crenças, volto ao tópico do conhecimento.

O conhecimento está relacionado com a crença, mas de modo importante difere dela. Está relacionado com a crença à medida que saber algo requer acreditar. Se você declara saber que seu computador está no quarto, você acredita nisso. Não é palpite. Você tem crença positiva. Seus amigos o achariam um tanto estra­nho se você dissesse: “Sei que meu computador está no quarto, mas não acredito” . Claro que às vezes parecemos dissociar a cren­ça do conhecimento, por exemplo: “Sei que o presidente foi as­sassinado, mas não acredito” . Mas trata-se de expressão retórica. Na verdade acreditamos; caso contrário, não estaríamos choca­dos. Intelectualmente acreditamos, mas emocionalmente estamos incrédulos.

Empregando a linguagem formal que os lógicos preferem usar, podemos expressar a relação entre conhecimento e crença da se­guinte maneira: Se p representa um proposição, então afirmar que você sabe p envolve acreditar que p é assim. Mais sucintamente: “Saber p ” implica em “acreditar em p ”.

É óbvio que somente acreditar em algo não é a única exigência para dizer que o sabemos. Podemos e acreditamos em todos os

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tipos de coisas: que há vida no espaço cósmico, que estamos com excelente saúde, que determinado time vencerá o campeonato ou­tra vez, como venceu nos seus dias de glória. Mas acreditar em tais coisas não significa que sabemos serem as coisas assim. Em suma, o conhecimento implica em crença, mas a crença não im­plica em conhecimento.

O conhecimento também requer prova ou justificação. Quan­do você diz: “Sei que meu computador está no quarto” , você quer dizer não apenas que acredita no que diz, mas que tem prova dis­so. Em geral, “ sei p ” implica que “tenho prova ou justificação de p". Suponha que alguém declare que saiba que o sul da Califórnia será abalado por um terremoto semana que vem. Provavelmente, você perguntaria: “Como você sabe?” Se a pessoa respondesse: “Porque acredito nisso” , você não levaria a sério a declaração.

A crença só expressa assentimento ou indica uma atitude de convicção sobre algo; não fornece justificação. Só a prova pode fazer isso. Um sinónimo de “prova” ou “justificação” é garantia. A pessoa que afirma saber que o sul da Califórnia será abalado por um terremoto semana que vem, está implicando que tem pro­va ou justificação do que acredita. Em outras palavras, ele está implicando que sua crença está garantida.

E certo, então, falar de conhecimento como crença garantida? Não. Suponha que o sul da Califórnia não seja abalado por um terremoto semana que vem. Obviamente a pessoa não sabia, mas isto não significa que sda crença não estava garantida. Só sugere que o conhecimento implica mais que crença garantida. Também implica em verdade. Para você saber que seu computador está no quarto, tem de realmente estar lá. Você pode acreditar nisso e sua crença pode estar garantida. Mas para sabê-lo, você precisa de mais outra coisa: da verdade. Assim , você pode dizer que sabe p somente se p for realmente verdadeiro.

Estou agora em posição para definir conhecimento. Conheci­mento é a crença garantida e verdadeira. Para entender o conhe­cimento, temos de entender não só a verdade, temos de entender a garantia também.

Quando uma crença é garantida? Quando tenho a justificação de uma crença? A resposta depende do tipo de declaração em ques­tão. Considere as seguintes declarações.

1. Esta rosa é vermelha.2. Curitiba é a capital do Estado do Paraná.3. Um solteiro é um homem não-casado.4. Nenhum círculo é quadrado.5. A soma dos ângulos interiores de um triângulo é igual a dois

ângulos retos.6. A soma dos quadrados dos lados de um triângulo reto é igual

ao quadrado da hipotenusa.7. X não é não-x.8. X ou é y ou é não-y.

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Cada uma destas declarações está garantida em circunstâncias satisfatórias. Estaríamos pisando em terreno firme se acreditásse­mos nelas. Por quê?

As declarações 1 e 2 estão garantidas olhando os fatos. Se a rosa em questão é, de fato, vermelha, então a declaração 1 está garantida. Se Curitiba é, de fato, a capital do Estado do Paraná, então a declaração 2 está garantida. Este tipo de garantia - que olha os fatos para fornecer prova ou justificação - é chamado de garantia empírica. As disciplinas científicas è os tribunais desen­volveram técnicas elaboradas para fornecer garantias empíricas a algumas de suas afirmações importantes. Contudo, de modo me­nos técnico, os cidadãos comuns também buscam justificação empírica para as declarações que os outros propõem. Por exem­plo, o balconista da loja que pede o recibo quando você devolve uma mercadoria, está pedindo evidência empírica de que você re­almente pagou o que agora está devolvendo.

Mas quanto às declarações 3 e 4? Sua garantia não pode ser estabelecida da mesma maneira. A garantia acha-se no significado de suas condições. A proposição 3 é verdade, porque o significado de “não-casado” está incluso no significado de “ solteiro” . Seme­lhantemente, na proposição 4, o significado de “círculo” exclui o significado de “quadrado” , e a declaração afirma esta exclusão. As declarações 3 e 4 exemplificam garantia semântica: A garan­tia delas pode ser determinada analisando o significado dos ter­mos usados e as relações destes termos um com o outro.

A garantia das declarações 5 e 6 encontra-se em serem teoremas que podemos deduzir dos postulados e definições da geometria euclidiana. A garantia destas e outras declarações semelhantes é fornecida pelos sistemas a que pertencem. Em outras palavras, sua garantia deriva-se da interdependência lógica de todas as pro­posições num sistema dedutivo. As proposições relacionadas des­te modo diz-se estar em garantia sistémica.

As declarações 7 e 8 sempre estão garantidas, porque negá-las trava todo o pensamento racional. Se não estão garantidas, o pen­samento em si não pode ser racional, não pode ser inteligente. Dito de outra maneira, a negação delas é autocontraditória. A pro­posição 7 está de acordo com o princípio da identidade: a é a (decla­ração que expressa a relação que qualquer coisa tem consigo mes­ma). Tudo o que dizemos pressupõe que a é a . Se você fala de uma pessoa específica, João, ou de uma estrela distante, você pres­supõe que João é João e que a estrela é uma estrela. -Se João não fosse João e a estrela não fosse uma estrela, do que você estaria falando? A declaração 8 concorda com o princípio da meia exclu­são: tudo ou é a ou é não-a. Assim , algo ou é João ou não é João; ou é uma estrela ou não é uma estrela. Logicamente, não pode haver meio termo. Diz-se que as declarações 7 e 8 têm garantia lógica; quer dizer, apelam para as leis da lógica que consideramos necessariamente verdadeiras.5

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REFLEXÕES SOBRE OS SIGNIFICADOS DA VERDADE 4 7 9

Os principais pontos desenvolvidos até aqui nesta discussão sobre a verdade no que se relaciona a proposições, podem ser re­sumidos assim:

1. Um fato é um estado de coisas, quer dizer, um objeto, uma condição, uma circunstância ou um evento que existe.

2. A verdade não é algo que está sozinha; é uma propriedade de nossas declarações (ou dos pensamentes que expressamos em declarações).

3. Uma declaração verdadeira descreve um estado de coisas; uma declaração que descreve com precisão e adequação um esta­do de coisas tem a verdade da propriedade.

4. Uma crença é uma atitude ou estado de espírito em que a pessoa aceita, consente ou expressa convicção sobre a verdade ou a realidade de algo.

5. O conhecimento é crença garantida e verdadeira.6. Garantia é outro nome para prova ou justificação.7. A garantia depende da declaração em questão ser empírica,

semântica ou lógica.

A discussão sobre a verdade conforme se refere a proposições está sujeita a levantar questões acerca de dois outros tópicos que dizem respeito ao cristão: a sabedoria e a fé.

Da mesma maneira que o conhecimento não é igual a crença, assim também a sabedoria não é igual a conhecimento. Salomão não foi chamado o homem mais sábio porque sabia mais que os outros. Era sábio, porque tinha a habilidade (dada por Deus) de fazer julgamentos coerentes sobre assuntos práticos e morais. De fato, o exemplo de sua vida nos ajuda a definir sabedoria. Sabedo­ria é um tipo de insight ou capacidade de aplicar o conhecimento que a pessoa tem para fins bons, de modo prudente e circunspeto. Nesta ligação, as palavras do escritor de Provérbios ressoam como os toques de um sino: “Sabedoria é a coisa principal; adquire, pois, a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o conhecimen­to” (Provérbios 4.7). Importante quanto seja a aquisição de co­nhecimento comum ou técnico, tornar-se sábio tem prioridade mais alta na vida daquele que aspira viver bem.

Como a sabedoria, a fé não é igual a conhecimento. Também não é uma técnica para adquirir conhecimento, nem a fonte de conhecimento. Isto significa que nem impede nem representa um substituto para a busca racional da verdade nas artes e nas ciênci­as. Nem a entrada na vida de fé isenta os cristãos das exigências comuns de fazer sentido em suas declarações da verdade. Em pa­lavras bastante simples, a fé é um modo em que os seres humanos se disponibilizam, sem reservas, à verdade revelada que é o pró­prio Deus. Arthur Holmes coloca o assunto sucintamente: “Fé é antes uma identidade e resposta convicta à auto-revelação de Deus” .6 Sob este aspecto, a fé fornece o contexto onde ocorre a

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investigação de todos os tipos de verdade. Parafraseando as eter­nas palavras de Agostinho: Não procuramos entender para ter fé; nos aventuramos na fé para entender.

A Verdade na Literatura e na ArteQuando começamos a considerar a questão da verdade na lite­

ratura e nas belas-artes, sem detença encontramos dois fatos apa­rentemente incongruentes. Para começar, ifs obras da literatura e das belas-artes necessariamente não descrevem com precisão a realidade - pelo menos não de certo modo a satisfazer as exigên­cias de exatidão e garantia que um cientista ou lógico requer. Sem dúvida, as obras da literatura e das belas-artes mostram enorme poder em formar a cosmovisão de praticamente todas as pessoas e de todas as culturas. Fazem-no por meio do vasto alcance da mídia e dos seus elementos: imagens, símbolos, mitos, lendas, representa­ções dramáticas, esculturas, pinturas. Todos estes dispositivos têm uma qualidade inventada, ou “composta” , acerca deles: Mesmo os que são designados a representar ou descrever objetos ou eventos reais além de si mesmos permanecem reconstruções desses objetos ou eventos reais. Não são idênticos às realidades deles mesmos.

A Missa em Si Menor, de Bach, que tão vigorosamente evoca a crucificação e a ressurreição, apresenta ao ouvinte sons nunca an­tes ocorridas na natureza. Além dos dispositivos artísticos que não são idênticos aos eventos* pessoas ou coisas reais, no melhor dos casos podem distorcê-los e deturpá-los. Olhando as estátuas es­culpidas representando profetas, reis e rainhas bíblicos que com­põem o Portal Real da catedral gótica medieval em Chartres, Fran­ça, não é o mesmo que olhar as pessoas reais.7 Embora semelhantes à realidade e neste sentido “realistas” , as figuras são entendidas a funcionarem como colunas. A escultura Moisés, de Michelangelo, é enorme e retrata Moisés com chifres. Assim como geralmente sucede na literatura e nas belas-artes, nem a música de Bach, nem as figuras esculpidas na catedral de Chartres, nem a escultura Moisés, de Michelangelo, representam a realidade com precisão científica ou lógica. Neste sentido, fracassam no teste da verdade proposicional.

Ao mesmo tempo (e aqui vemos o outro lado do paradoxo), ainda que as obras da literatura e das belas-artes sejam reconstru­ções imaginárias de coisas, pessoas e eventos reais, e embora de certo modo distorçam e deturpem coisas, pessoas e eventos reais, indivíduos pensativos reconhecem que em suas formas mais su­blimes e mais sutis essas obras transmitem verdades que falam com algumas das mais importantes questões levantadas pelos se­res humanos. Com referência à Missa em Si Menor, de Bach, Frank Gaebelein diz: “Bach coloca na música as profundas verdades da paixão e vitória de Cristo sobre a morte” .8 Assim , a aparente in­congruência é que mesmo que as grandes obras da literatura e das belas-artes distorçam e deturpem coisas, pessoas e eventos reais, são todavia bem-sucedidas em transmitir a verdade.

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REFLEXÕES SOBRE OS SIGNIFICADOS DA VERDADE 4 8 1

Com um toque de hipérbole, Pablo Picasso enunciou esta in­congruência assim: “A arte uma mentira que nos faz perceber a verdade” .9 Como é possível? Como os dispositivos literários e ar­tísticos, as construções imaginárias que “distorcem” a realidade, transmitem a verdade e aumentam nossa consciência dela?

Esta pergunta não tem resposta simples. Para começar, há mui­tos géneros da literatura (por exemplo, romance, história, poema) e vários tipos de belas-artes (por exemplo, pintura, música, dra­ma). Os dispositivos artísticos diferirão um pouco em tipo e uso de um género ou um tipo a outro. Além disso, a literatura e a arte exibem vários tipos e níveis de verdade. Há uma variedade de maneiras nas quais um texto literário ou uma obra de arte pode ser verdadeiro ou falso. A seguir, lim itarei a discussão a alguns exem­plos da literatura, deixando ao leitor a aplicação dos princípios a outros empenhos artísticos. Comentaremos a verdade sob dois tí­tulos: a verdade avaliadora e a verdade implícita.

A V er d a d e A v a l ia d o r a

As obras literárias nos tentam dizer a verdade a respeito das coisas que são de importância básica e vital na experiência huma­na, se não para todo o tempo, pelo menos para certas épocas. Elas revelam as preocupações, esperanças e medos humanos - em suma, revelam os valores humanos. Se desejamos aprender o que as pes­soas de certa cultura estimam ou detestam, aspiram ou temem, podemos consultar suas histórias e literatura.

Este fenómeno destaca uma das razões para ler bastante, tanto transcultural quanto historicamente. A complexidade e urgências prá­ticas que compõem o fluxo cotidiano dos eventos obscurecem os pa­drões essenciais e os temas da vida. As obras literárias procuram concentrar nossa atenção nas características cruciais: dor e alegria, amor e ódio, obrigação moral, o relacionamento da humanidade com Deus. Raramente fornecem informação nova, ou se o fazem, esta não é sua função principal. Ao invés disso, trazem para o centro de nosso campo de visão idéias, princípios e temas, a verdade dos quais já pode nos ser conhecida, mas que ficou aglomerada na periferia da visão pelas muitas atividades rotineiras da existência do dia-a-dia.

Grande parte da suposta distorção na literatura mencionada há pouco, deriva da necessidade do escritor despojar detalhes irrelevantes e triviais e acentuar outros, a fim de revelar o conteú­do essencial da experiência humana. Por meio desta seletividade, um escritor pode chegar ao nível da verdade avaliadora. Sob este aspecto, uma escritora competente nunca pode ficar somente no nível da “exatidão” em sua descrição da natureza e realidade hu­manas. E la tem de usar o destaque, a seletividade, a omissão ou a justaposição - cada qual um tipo de “distorção” - , se ela quer expor a nu as verdades que são merecedoras de nossa atenção.

A Divina Comédia, de Dante, contém muitas imagens curio­sas: bosques escuros, feras selvagens, cavernas estranhamente

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congeladas e um poeta morto que leva Dante a uma excursão pelo inferno. No profundo do inferno, encontra-se um monstro grotes­co congelado até a cintura, futilmente agitando suas asas enor­mes. Sob certo aspecto, estas imagens distorcem e deturpam a re­alidade, visto que somente a distância corresponde aos objetos reais ou então a nada. Não obstante, as imagens têm sucesso em evocar outras realidades, como pecado, ambição, inferno, razão humana e principalmente Satanás pecador. Além disso, de manei­ra vívida chamam nossa atenção para as decisões importantes que inevitavelmente nos confrontam a todos.

Como certo estudioso observou: “Os detalhes imaginativos de uma obra de arte são uma lente ou janela pela qual olhamos a vida” .10 O propósito da lente é aumentar uma característica pe­quena, mas extraordinária, da natureza humana.

Uma escritora pode ser observadora astuta da condição huma­na, independente de sua cosmovisão, compromissos filosóficos ou persuasão religiosa. Podemos julgar sua perspectiva filosófica como corruptora ou errada, mas se ela tem sucesso em capturar com precisão os contornos cruciais da experiência humana ou da realidade externa, temos de admitir que seus escritos transmitem a verdade avaliadora. Joseph Conrad provavelmente não era cren­te. Todavia seu livro Heart ofDarkness (Coração Negro), que tem como cenário o coração da África (outrora chamada o Continente Negro), representa um estudo repleto de insights sobre o verdadeiro coração negro, o coração dos homens dirigidos por desejos aquisiti­vos.

Como sabemos se um escritor descrevendo valores humanos transmitiu a verdade? E evidente que não nos preocupamos pri­mariamente com a factual informação não-humana que a obra l i­terária costumeiramente contém. O mérito de uma obra literária muitas vezes não depende da verdade de um sistema astronómico, como a astronomia ptolemaica empregada por John Milton. Nem depende da verdade da geografia, como em Lilipute e as outras falsidades geográficas em As Viagens de Gulliver, de Jonathan Sw ift. Nem mesmo depende da veracidade do escritor em deline­ar os fatos históricos. Um drama histórico pode reorganizar even­tos históricos ou fatos, como no caso de Henrique IV, de Shakespeare, e ainda ser julgado grande obra da literatura. Mas quer seja astronómica, geográfica ou historicamente inexata, a grande obra da literatura ainda tem de transmitir outras verdades mais importantes. Como saber se uma obra cumpre esta tarefa?

Julgando o mérito de uma obra literária, autoridades do passa­do e do presente têm sustentado que uma obra literária deve satis­fazer um critério de autenticidade ou fidelidade à natureza huma­na. O primeiro a declarar explicitamente este critério foi o filóso­fo grego Aristóteles, que observou que um escritor tem a respon­sabilidade de dizer “o tipo de coisa que certo tipo de pessoa faria ou diria, quer provavelmente, quer necessariamente [em determi­

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REFLEXÕES SOBRE OS SIGNIFICADOS DA VERDADE 4 8 3

nadas circunstâncias]” .11 Podemos parafrasear Aristóteles decla­rando o teste de autenticidade ou “verdade à natureza humana” do seguinte modo: A pessoa que está descrita no romance ou drama, iria agir, pensar, sentir ou ser motivada da maneira como o escri­tor descreve dadas as circunstâncias apresentadas?12

Aplicar este teste da “verdade à natureza humana” é muitas vezes d ifíc il. O leitor pode não ter conhecimento suficiente da natureza humana para aplicá-lo, ou o 'escritor pode fornecer muito poucas pistas. Mas se o leitor está convencido de que o ca- ráter em questão não se comportaria do modo como o escritor descreve, o leitor avaliará a caracterização negativamente. No mí­nimo, ele condenará a caracterização concernente à ação em ques­tão como improvável. Claro que uma avaliação negativa da auten­ticidade de uma caracterização afetará, por sua vez, a visão que o leitor tem da obra como fonte da verdade.

A V e r d a d e I m plíc ita

As obras literárias e dramáticas contêm muitas proposições explicitamente declaradas. A discussão anterior da verdade preposicional deixa claro que toda proposição é verdadeira ou fal­sa. Considerando que as obras literárias contêm muitas proposi­ções, também podem conter a verdade neste sentido óbvio, se al­gumas de suas proposições forem verdadeiras. Por exemplo, o romance histórico de James Michener, The Source (A Fonte), con­têm muitas proposições verdadeiras sobre a Palestina.

No entanto, as proposições mais interessantes e significantes da literatura estão implicitamente em vez de explicitamente de­claradas. Por exemplo, a cosmo visão global de uma obra literária está normalmente implícita e deve ser deduzida de uma leitura cuidadosa do texto. As obras A Divina Comédia, de Dante, e Ori the Nature o f Things (Sobre a Natureza das Coisas), de Lucrécio, são ambas poemas. Não anunciam suas respectivas cosmo visões aberta e diretamente. Não obstante, o que dizem em forma poética implica em proposições sobre uma cosmovisão. Só a leitura minuciosa de cada uma revela que a obra de Dante é uma cosmovisão cristã e a de Lucrécio, uma cosmovisão naturalista (mecanicista).

A verdade emerge implicitamente de várias outras formas nas obras literárias. Duas destas formas são bastante comuns e mere­cem atenção especial: a metáfora e o arquétipo. Uma metáfora é uma figura de linguagem na qual uma palavra ou frase, que lite­ralmente denota um tipo de objeto ou idéia, é usada em lugar de outra para implicar ou sugerir uma semelhança ou analogia entre elas. Pensamos em metáforas marcando a convergência de dois níveis de significado, um nível direto ou literal e um nível indireto ou implícito. Se disséssemos “o braço de Deus realiza milagres” , o significado literal de “braço” seria membro físico. Mas a expres­são também implica um significado espiritual. “O braço de Deus” significa o poder de Deus. O significado literal da expressão torna

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a declaração na qual aparece falsa e sem sentido: Deus não tem um braço físico. Mas o significado implícito toma a declaração verdadeira e significante. Deus tem poder e o seu poder é um des­tacado ponto de atenção para o crente.

Um arquétipo é um padrão de apresentação e experiência que ocorre periodicamente. (Veja o box “Definições de ‘Arquétipo’” , no Capítulo 10.) Herman M elville começa o romance Moby Dick com estas palavras:

Pode me chamar de Ismael. Alguns anos atrás - não importa quanto tempo precisamente - , tendo pouco ou nenhum dinheiro em meu saco de dinheiro e nada de particular a me interessar na praia, pensei em sair velejando por aí e ver a porção aquática do mundo.13

O fato de M elville ter escolhido o nome Ismael não é aciden­tal. E le espera que o leitor lembre o relato em Génesis de Ismael, filho de Abraão e Agar. Depois do nascimento de Isaque e sob a insistência de Sara, Abraão despede Agar e Ismael do acampa­mento. O leitor é informado de que ela e o menino foram-se, “an­dando errante[s] no deserto” (Génesis 21.14). Ismael, na narrativa de Génesis, tornou-se arquétipo de um vagabundo, e o deserto tomou-se arquétipo de um lugar estrangeiro no qual não se pode morar e criar um verdadeiro lar para si. Portanto, o Ismael de M elville é um exemplo do Ism ael da narrativa em Génesis; o mar no qual o Ismael de M elville se aventura é um exemplo do deserto a que Agar e Ismael são enviados a vagar. O leitor que vê o uso de arquétipos estará imediatamente consciente da verdade implícita que M elville deseja transmitir: o Ismael de Moby Dick é uma figura deslocada, que se aventura a vagar numa realidade desolada e amorfa.

Uma medida da grandeza de uma obra da literatura é sua capa­cidade de evocar conexões com eventos significativos ou textos importantes por meio do uso da metáfora e arquétipo.

Resumo e Observações FinaisNossa discussão atravessou quatro significados importantes da

“verdade” : conforme se refere a uma cosmovisão cristã, confor­me se refere à vida interior, conforme se refere às proposições e conforme se refere às artes (especificamente, a literatura). Uma questão ainda não comentada é a que perguntei no início: Por que você deveria se preocupar com os vários significados da verdade? Há diversas boas razões, algumas delas filosóficas, outras práti­cas. Consideraremos só duas razões práticas.

Primeiro, os assuntos que têm a ver com a natureza da verdade relacionam-se com nossas crenças. Quando percebemos que nos­sas interações sociais e auto-imagem são afetadas por nossas cren­ças e suposições de trabalho, logo os assuntos da verdade tornam- se mais que abstrações filosóficas. Na ciência, moralidade, arte e política, mantemos crenças que influenciam como interagimos e

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respondemos ao mundo e como vivemos nossas vidas. Se não te­mos diretrizes ou princípios para determinar de que modo estas crenças são verdadeiras, ou se de fato não são absolutamente ver­dadeiras, podemos nos sentir inseguros de nós mesmos. Mas se sabemos determinar o valor da verdade de nossas crenças, então caso não sejam sadias, podemos abandoná-las. Se nossas crenças são sadias, então é mais provável que nos sintamos seguros e con­fiantes agindo de acordo com elas.

A segunda razão tem a ver com o mandamento bíblico de “maneja[r] bem a palavra da verdade” (2 Timóteo 2.15). A pessoa que conhece pouco ou nada sobre os vários tipos da verdade, é provável que se engaje em exegese capenga, às vezes totalmente inexata, das Escrituras. Todos os quatro principais tipos da verda­de discutidos aqui aparecem na B íb lia. A B íb lia enuncia uma cos­movisão cristã, da qual os teólogos derivam, entre outras coisas, as doutrinas da Criação, da Queda, da Redenção e da Consuma­ção. Sua mensagem questiona os seres humanos e os chama à ver­dade interior. Também contém muitas verdades preposicionais. Contudo, temos de exercer grande cuidado neste ponto para co­mentar a natureza literária da Bíblia.

Paulo nos fala que as Escrituras são úteis para estabelecer a sã doutrina. Mas a Bíblia não é o que alguns cristãos parecem presumir: um tratado teológico. A maioria dos textos da Bíblia consiste em nar­rativas, poemas, visões e cartas. As palavras mais conhecidas de Je­sus não são proposições teológicas, mas parábolas cujos personagens principais provavelmente não correspondem com qualquer pessoa his­tórica real. Além disso, o. próprio Jesus é virtualmente inacessível nas Escrituras à parte das metáforas usadas para apresentá-lo: Cordeiro de Deus, Pão da Vida, Servo, Noivo, Luz do Mundo, a verdadeira Luz, a Porta, a Videira verdadeira, o Rei. E Paulo não reconhece uma relação arquetípica entre Adão e Cristo (Romanos 5.14)?

Temos aqui no uso da metáfora e do arquétipo (e muitos outros dispositivos literários também) maneiras não proposicionais das Escrituras revelarem a verdade. Elas classificam-se principalmen­te no quarto tipo da verdade, a verdade literária. O leitor das Es­crituras que não leva em conta as várias formas que os textos bí­blicos podem apresentar a verdade, está perigosamente perto de não cumprir o mandamento de manejar bem a palavra da verdade. Assim , é manifesto que o estudante da B íb lia tem a responsabili­dade de prestar atenção cuidadosa nos significados da verdade.

Notas bibliográficas1. Para um tratamento mais completo desta visão da natureza

humana, veja o Capítulo 5 escrito por B illie Davis: “Uma Pers­pectiva sobre a Natureza Humana” .

2. O uso que faço dos termos relato geral do universo, relato da natureza humana, diagnose eprescrição, é de acordo com Leslie Stevenson, “R ival Theories” , capítulo 1, in: Seven Theories o f HumanNature, 2.a edição (Oxford: Oxford University Press, 1987).

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Estas características de uma ideologia correspondem toscamente a quatro doutrinas tradicionais da Igreja: a Criação, a Queda, a Re­denção e a Consumação. A doutrina da Criação corresponde à carac­terística de uma cosmovisão cristã que diz que todas as coisas no universo foram criadas por Deus. A mesma doutrina reaparece na discussão da natureza humana: Deus criou a humanidade à sua ima­gem. A doutrina da Queda aparece na característica de uma cosmovi­são cristã que oferece uma diagnose da condição humana. A doutrina da Redenção corresponde à característica de uma cosmovisão cristã. Finalmente, a doutrina da Consumação pode ser vista nas noções de que o universo tem uma certa direção (os eventos naturais e históri­cos não são meramente fortuitos), e que sua direção é com vistas à culminação final ou fim (grego, telos).

3. Robert Funk, Language, Hermeneutic, and Word o f God (Nova York: Harper & Row Publishers, 1965).

4. Minha definição da verdade corresponde de perto à defini­ção dada por John Hospers, in: “Knowledge” , capítulo 1, in : An Introduction to Philological Analysis (Englewood C liffs, Nova Jersey: Prentice-Hall, 1988). A discussão de conhecimento e ga­rantia que se segue também deve-se muito a Manuel Velásquez e Vincent Barry, in: “Truth” , capítulo 6, in: Philosophy, 3.a edição (Belmont, Califórnia: Wadsworth Publishing Company, 1988), Capítulo 6, pp. 265ss.

5. Para informação adicional sobre os princípios da identidade e meia exclusão, veja Irving M . Copi e Cari Cohen, Introduction to Logic, 10.a edição (Upper Saddle River, Nova Jersey: Prentice- H all, 1998), pp. 389-391. •

6. Arthur F. Holmes, The Idea o f a Christian College, edição revista (Girand Rapids: W illiam B . Eerdmans Publishing Company, 1975 [revista em 1987]), p. 18.

7. M alcolm M iller, Chartres Cathedral (Londres: Pitkin Pictorials Lim ited, 1985), pp. 25, 26.

8. FrankE . Gaebelein, The Christian, theArts, and Truth, edi­tor Dr. Bruce Lockerbie (Portland, Oregon: Multnomah Press, 1985), p. 93.

9. Pablo Picasso, TheArts, Maio de 1923, volume 3, pp. 315-326.10. Leland Ryken, “The Creative Arts” , in: The Making o f a

Christian Mind, editor Arthur Holmes (Downers Grove, Illino is: InterVarsity Press, 1985), pp. 105-131. Veja especialmente a p. 127.

11. A ristotle , The Poetics, in : Aristotle XXIII, The Loeb Classical Library (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1923), Capítulo 9, pp. 145-154.

12. John Hospers, “Problem s of A esthetics” , in : The Encyclopedia o f Philosophy, volume 1, editor Paul Edwards (Nova York: Macmillan Publishing Company e The Free Press, 1967), pp. 35-56. Veja especialmente a p. 49.

13. Herman M elville, Moby Dick, editor Harrison Hayford e Hershel Parker (Nova York: W. W. Norton & Company, 1967), p. 12.

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Apêndice 2 Jean-Paul Sartre

Michael D. Palmer

O francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi filósofo, dramatur­go e novelista. Nasceu em Paris, onde foi criado e educado até 1929. Depois desta data, ensinou filosofia em várias escolas de Paris e outros lugares. De 1933 a 1935 trabalhou como estudante de pesquisa em universidades de Berlim e Freiburgo. A partir de 1936, publicou estudos filosóficos e romances, sendo os mais no­táveis A Náusea (1938) e O Muro (1939). Em 1939, com a erup­ção da Segunda Guerra Mundial, Sartre foi convocado pelo exér­cito francês. Em 1940, foi capturado pelos alemães, mas eventual­mente foi solto e retomou a Paris, onde voltou a ensinar filosofia até 1944. Durante os anos da guerra, completou sua obra filosófi­ca mais importante O Ser e o Nada (1943). Em parte por causa do seu envolvimento com a resistência francesa e em parte por causa do seu brilho filosófico, depois da guerra Sartre emergiu como figura dominante no movimento existencialista francês. Durante os anos imediatos depois da guerra, ele escreveu vários romances e peças teatrais que lhe deram fama mundial.

Os temas dominantes dos primeiros e maduros (embora não seus últimos) escritos filosóficos de Sartre são a liberdade e ação do ser humano individual. Em O Ser e o Nada, Sartre distingue entre o ser das coisas (“o ser em si mesmo”) e o ser da consciência (“o ser para si mesmo”). Só a consciência, não as coisas, tem a capacidade de se engajar no ato de “esconder o nada” , com o que Sartre quer dizer negar as circunstâncias atuais e as alternativas imaginativas da pessoa.

Esta capacidade de negar (rejeitar ou negar limites e lim ita­ções) jaz no centro da noção de Sartre da consciência humana, e reflete o seu modo de descrever a liberdade humana. A liberdade, afirma Sartre, é absoluta - pelo menos no sentido de ser capaz de imaginar ou intentar o que quer que seja. (Sempre sou livre para planejar, imaginar ou intentar revoltar-me contra minhas circuns­tâncias atuais a favor de qualquer outra coisa; nem sempre me dou bem em causar o que planejo, imagino ou intento.)

As limitações reais da liberdade humana vêm das característi­cas específicas das circunstâncias em que a consciência se encon­tra, sua denominada facticidade. A facticidade inclui coisas como fatos pessoais (por exemplo, sexo, raça, limitações físicas), fatos sociais (por exemplo, formação fam iliar, filiação religiosa ou po­lítica) e circunstâncias físicas (por exemplo, geografia, o clima).

No ponto em que a liberdade do indivíduo e a facticidade do indivíduo se confrontam mutuamente, surge a questão central da existência humana: “Quem sou eu?” De acordo com Sartre, qual­quer tentativa de quebrar a tensão dinâmica entre a liberdade do

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indivíduo e a facticidade do indivíduo representa um ato de “má fé” . Em outras palavras, liberar a tensão e resolver a questão “Quem sou eu?” somente com base nos fatos específicos que com­põem a vida do indivíduo ou somente com base na liberdade do indivíduo imaginar alternativas, é agir em má fé. A alternativa para viver em “má fé” é viver “autenticamente” - admitir a liberdade do indivíduo e a facticidade do indivíduo.

Além da tentação sucumbir à má fé, a principal ameaça à auto- identidade do indivíduo são as outras pessoas. Sartre acredita que as relações humanas são conflitantes. Isto é verdade, julga ele, não apenas nos casos óbvios como nas relações de ódio, mas tam­bém sutilmente nas relações de amor e de amizade. A representa­ção mais dramática de Sartre desta interpretação das relações hu­manas aparece em sua peça Portas Fechadas, na qual três pessoas encontram-se no inferno. Depois de um extenso período de interação, um dos três personagens conclui: “O inferno são - as outras pessoas” .

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Apêndice 3 Karl Marx

Michael D. Palmer

O alemão Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo social e re­volucionário alemão que viveu e escreveu na plenitude da Revolu­ção Industrial. E le e Friedrich Engels (1820-1895) são considera­dos os fundadores do moderno socialismo e do comunismo. Marx era filho de advogado. Sua educação incluiu o estudo da lei e filo­sofia. Em 1844, ele conheceu Engels em Paris, onde os dois co­meçaram uma colaboração vitalícia. Com Engels, ele escreveu o Manifesto Comunista (1848) e outras obras que quebraram com a tradição de teoristas como John Locke, que apelava aos direitos naturais para justificar a reforma social.

Marx invocou o que acreditava ser as leis da história que ine­vitavelmente levariam a classe operária ao triunfo. Marx foi exi­lado da Europa Continental depois das revoluções de 1848. Esta­beleceu-se em Londres, onde ganhou dinheiro como correspon­dente para o New York Tribune. Contudo, continuou dependente da ajuda financeira de Engels enquanto trabalhava em sua obra monu­mental O Capital (3 volumes, 1867-1894), na qual apresentou crítica cortante ao capitalismo e desenvolveu teoria económica própria.

Marx viu diretamente os efeitos exploratórios que a industria­lização causava nas classes operárias na Inglaterra e Europa Con­tinental. Em O Capital - usando relatórios governamentais, arti­gos de jornal e outras fôrmas de documentação - , ele escreveu extensamente sobre o sofrimento que os trabalhadores experimen­tavam nas várias indústrias: horas de trabalho exploratório, doen­ças pulmonares e mortes prematuras causadas pelas situações anti- higiênicas das fábricas, trabalho infantil, condições de trabalho excessivamente apinhadas de costureiras nos estabelecimentos escravizantes.

Tão ruins quanto eram as condições para a classe operária, Marx acreditava que eram meros sintomas de um problema mais funda­mental relativo à natureza do próprio capitalismo. Na sua análise, o capitalismo só oferece duas fontes de renda: a venda do próprio trabalho e a propriedade do que ele identificou como “meios de produção” (fáb ricas, m aquinaria, terra, m atérias-prim as e tecnologia). Claro que os trabalhadores, sendo pobres, não possu­em os meios de produção. Pelo fato de não poderem produzir nada sem o acesso aos meios de produção, eles têm de vender o traba­lho por salários àqueles que possuem os meios de produção. Po­rém, Marx julgava que os proprietários, em vez de pagarem aos trabalhadores o valor pleno do trabalho que faziam, pagam-lhes apenas o suficiente para eles sobreviverem. O que sobra - a dife­rença entre o valor pleno do trabalho dos trabalhadores e o que realmente recebem - os proprietários guardam como lucro.

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Os trabalhadores sentem-se compelidos a obedecer este arran­jo , porque os proprietários têm pleno controle dos meios de pro­dução e, assim, pleno controle dos empregos disponíveis. Marx acreditava que, como resultado deste arranjo, os proprietários ficarão cada vez mais ricos e os trabalhadores cada vez mais pobres.

Na visão de M arx, o sistema capitalista m ilita contra os me­lhores interesses dos trabalhadores, impedindo-os de desenvolver sua plena capacidade produtiva e de satisfazèr essas necessidades que os definem como seres humanos. Especificamente, Marx sus­tentou que o capitalismo gera quatro formas de “alienação” ou modos nos quais os seres humanos são separados do que é essen­cialmente deles.

Primeiro, o sistema capitalista aliena o trabalhador do que ele fez com as próprias mãos. Isto acontece, Marx pensava, quando o produto de produção (digamos, roupa cara) é vendido a outros (membros da classe alta) que o usam para propósitos antagónicos aos interesses do trabalhador (um evento social, como um baile, que reforça as diferenças de classe). Com respeito a este primeiro tipo de alienação, diz Marx:

O trabalhador é relacionado ao produto do seu trabalho como a um objeto estranho. [...] A alienação do trabalhador ao seu produto sig­nifica não só que o seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa, mas que existe fo ra dele, independentemente, como algo estranho a ele, e que se toma um poder em si mesmo para o confron­tar. Significa que a vida que ele conferiu ao objeto o confronta como algo hostil e estranho. [...]É verdade que o trabalho produz para os ricos coisas maravilhosas - mas para o trabalhador produz privação. Produz palácios - mas para o trabalhador, casebres. Produz beleza - mas para o trabalhador, de­formidade. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança de volta uma seção de trabalhadores a um tipo bárbaro de trabalho e transfor­ma os outros trabalhadores em máquinas. Produz inteligência - mas para o trabalhador, estupidez, cretinismo [pp. 108, 110],

O capitalismo também aliena o trabalhador das características mais essenciais do seu trabalho. E le é compelido a vender seu trabalho a fim de alimentar a fam ília e permanecer vivo. Mas seu trabalho não guarda nenhuma recompensa intrínseca para ele e é essencialmente insatisfatório. Humilha, em vez de reforçar sua dignidade humana.

O que, então, constitui a alienação do trabalho?

Primeiro, o fato de que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser essencial; que em seu trabalho ele não se afirma, mas se nega, não se sente contente, mas infeliz, não desen­volve livremente sua energia física e mental, mas mortifica o corpo e arruina a mente. [...] Sua característica estranha emerge claramente

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MICHAEL D. PALMER 4 9 1

no fato de que, visto que não existe compulsão física ou outra, o trabalho é evitado como a peste. [...] [O trabalho do trabalhador] não é dele mesmo, mas de outra pessoa, não pertence a ele, e nisso ele pertence, não a ele, mas a outra pessoa [pp. 110, 111].

A terceira maneira que o capitalismo aliena os trabalhadores é instilando neles ilusões sobre as suas reais necessidades humanas. O capitalismo leva os trabalhadores a “renunciar” o que verdadei­ramente está no melhor interesse deles a favor de uma falsa ima­gem do que é importante. Ganhar dinheiro - o capital - parece ser o objeto último do desejo. Nas palavras de Marx:

O sacrifício, a renúncia da vida e de todas as necessidades humanas é a principal tese [do capitalismo]. Quanto menos você come, bebe e compra livros; quanto menos você vai ao teatro, ao salão de baile, à taberna; quanto menos você pensa, ama, teoriza, canta, pinta, esgri­ma, etc., mais você economiza - o mais toma-se o seu tesouro que nem traças nem poeira devoram - o seu capital. Quanto menos você é, menos você expressa sua própria vida; quanto maior é a sua vida alienada, mais você tem, maior é o depósito do seu ser alienado [p. 150].

Finalmente, o capitalismo aliena as pessoas umas das outras. Coloca um trabalhador contra o outro num corre-corre competiti­vo por oportunidades de*emprego, e separa as sociedades em clas­ses sociais desiguais e hostis, o que Marx chama de burguesia (os donos de propriedade de classe média) e o proletariado (os operá­rios das classes mais baiyas).

Se o produto do trabalho é estranho para mim, se me confronta como poder estranho, então, a quem pertence? [...]A um ser diferente de mim.Quem é este ser?Os deuses? [...]O ser estranho, a quem pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo serviço o trabalho é feito e em benefício de quem é fornecido o produto do trabalho, só pode ser o próprio homem.Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, se o confronta como um poder estranho, então só pode ser porque pertence a algum outro homem que não o trabalhador. Se a atividade do trabalhador lhe é um tormento, para outro deve ser o prazer e a alegria da vida. Nem os deuses, nem a natureza, mas só o homem pode exercer este poder estranho sobre o homem [p. 115].

A ssim , de acordo com M arx, uma economia capitalista desregulada inevitavelmente gera disparidades de riqueza e po­der. Com certeza, produz liberdade e riqueza para os que possuem fábricas, terras, matérias-primas e tecnologia. Contudo, ao mes­mo tempo domina a classe operária de trabalhadores e os aliena

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do que produzem, do seu trabalho, de suas necessidades humanas e dos outros seres humanos.

M arx apresenta a solução em sua m ais fam osa obra programática, o Manifesto Comunista, na qual exige uma revolu­ção. O governo, conforme a visão dele, não pode resolver as ini- qiiidades e injustiças da sociedade, porque ela é projetada a man­ter o status quo. Protege os interesses daqueles que já estão inves­tidos com o sistema económico atual. O que torna-se necessário - Marx argumentou - é uma revolução na qual a classe operária tome o controle dos meios de produção, a denominada substrutura económica da sociedade. Só então os arranjos mais óbvios da so­ciedade - a denominada substrutura social: a estrutura das clas­ses, o governo, as ideologias populares - serão devidamente trata­dos de uma vez por todas.

A análise de Marx do capitalismo desenfreado comprovou ser mais precisa e cortante do que a solução proposta. Virtualmente to­das as economias capitalistas do mundo inteiro hoje estabeleceram algumas formas de regulamento para mitigar o tipo de abusos identi­ficados por Marx. Por outro lado, as experiências sociais do comunis­mo durante o século X X fracassaram em grande parte. A Europa Orien­tal e a antiga União Soviética dão testemunho desse fracasso.

— As seleções de Marx citadas aqui acham-se em Karl Marx, The Economic & Philosopljic Manuscripts of!844 (Os Manuscri­tos Econômico-Filosóficos de 1844), editado com uma introdu­ção de D irk J. Struik e traduzido para o inglês por Martin M illigan (Nova York: International Publishers, 1964, 1973).

L eit u r a s A d ic io n a is S o b r e K a r l M a r x

H EILB R O N ER , Robert. Marxism: For and Against. Nova York: W. W. Norton & Company, Incorporated, 1980.

M A N D EL, Ernest. An Introduction to Marxist Economic Theory. Nova York: Pathfinder Press, 1970.

M cLELLA N , David. Karl Marx: His Life and Thought. Nova York: Harper & Row Publishers, 1973.

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Apêndice 4A Música e o Espaço de Execução

Johnathan David Horton

Durante uma visita à ilha tropical de Barbados, alguns amigos e eu encontramos uma igreja anglicana construída no século X V II. Era um edifício pequeno, mas encantador, com paredes altas brancas, ja­nelas de vidro colorido e um campanário impressionante. O interior da igrej a, com seu teto alto e vigas de madeira bonitas, era tão impres­sionante quanto o exterior. A medida que nos aproximávamos do san­tuário, um doce som de música saiu flutuando para nos saudar.

O coral estava no meio de um ensaio. Tendo todo o cuidado para não perturbar o ensaio, ficamos na parte de trás do templo descansando na sombra refrescante e ouvindo a melodia harmoni­osa. O hino era conhecido, mas o andamento era muito mais lento do que eu teria esperado. Enquanto estávamos lá ouvindo o coral, ocorreu-me subitamente como a música pulsava com vida. O som reverberava pelo ambiente e cada canto e recanto ecoava com o som do coral e do órgão. A música era bela e empolgante!

Depois de alguns momentos, meus pensamentos voltaram-se para a congregação americana rural que eu tinha visitado alguns domingos antes. Eles haviam cantado aquele mesmo hino, mas com um andamento muito mais rápido. O contraste era surpreen­dente! Imediatamente a pergunta me veio à mente: Como aquela congregação americana rural teria reagido ao hino cantado com este andamento e neste estilo?

Primeiro de tudo, aquela igreja rural era bastante diferente em termos de construção - tinha um teto baixo, bancos acolchoados, cortina nas janelas e um chão acarpetado. Acusticamente os dois santuários eram muito diferentes. Uma segunda pergunta asso­mou-me à mente: Como esta congregação anglicana teria reagido ao hino no andamento e estilo da congregação americana rural? Depois de alguns momentos, uma pergunta muito mais séria me ocorreu: O ambiente acústico afeta a música quando ela é execu­tada em diferentes ambientes?

Em primeiro lugar, como a música é afetada pelo ambiente? As matérias-primas da música são o som e o silêncio. O som é criado por 1) um veículo vibratório, 2) uma fonte de energia e 3) um meio de transmissão. Todo instrumento musical tem de incluir estes três componentes. Por exemplo, o som da voz humana é pro­duzido quando as cordas vocais, o veículo vibratório, são postas a vibrar pela respiração, a fonte de energia, a qual por sua vez é ativada pela musculatura do sistema respiratório. As vibrações das cordas vocais criam ondas de som que são levadas pelo ar, o meio de transmissão, para o ouvido, que então transforma essas ondas de som em impulsos nervosos para o cérebro, criando o que co­nhecemos como som.

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A acústica é a ciência do som, incluindo a produção, a trans­missão e os efeitos do som, como também o fenómeno da audi­ção. O estudo da acústica nos proporciona muita informação útil, sobretudo relativa à música. Assim que o som é produzido, é afe- tado pelo ambiente no qual é produzido.

Por exemplo, examinemos o som de um violino. O arco é des­lizado nas cordas, criando vibrações que são fisicamente transmi­tidas ao corpo do violino. O corpo do violino é posto em vibração, que cria ondas de som no ar circunvizinho. Se o som do violino alcançasse nossos ouvidos numa única linha direta, a ciência da acústica sempre seria muito simples. Porém, as ondas de som irra­diam do corpo do violino num padrão de quase 360 graus.

Não apenas ouvimos o som do violino diretamente, também ouvimos o som do violino refletido de muitas superfícies diferen­tes e vindo de muitas direções diferentes. O número das reflexões, a força das reflexões, a duração do tempo entre o som in icial e as primeiras e resultantes reflexões, e a duração do tempo para um som se extinguir - todos estes e muitos outros fatores chocam-se diretamente em nossa percepção do som. Se parece complicado, lembre-se de que estamos falando de um único som de um único instrumento. Agora imagine a complexidade de uma série de sons de um grande número de instrumentos diferentes. As possibilida­des pasmam a mente.

Voltemos à igreja rural por um momento. O som não reverbe­rava pela igreja. A falta de reverberação era produto das caracte­rísticas absorventes de som encontradas no tapete, bancos acol­choados, cortinas, teto baixo, ladrilho acústico e até nas pessoas. Este ambiente acústico “ secò” requer um sistema de alto-falantes para ampliar o som da música. De fato, o sistema de alto-falantes tinha um processador eletrônico que dava reverberação artificial.

Nesta pequena igreja, o andamento lento para o hino cantado pelo coral anglicano não teria um som imponente, teria um som um tanto morto. Os músicos não poderiam depender da reverbera­ção do ambiente para preencher o espaço da música; de algum outro modo, eles tinham de dar vida à música. Acrescentaram ba­teria, baixo elétrico, violão, piano com notas musicais de “enchi­mento” e palmas. O acompanhamento e o andamento trabalharam juntos para preencher o espaço musical do som.

Invertamos a idéia. Como o andamento e o estilo apresenta­dos na congregação rural se ajustariam aqui neste mesmo cená­rio reverberante? Pensei no andamento rápido, nas muitas notas improvisadas do pianista - de repente parecia engraçado. A mú­sica não teria soado viva e empolgante como tinha sido naquela manhã de domingo algumas semanas antes. Pelo contrário, soa­ria desnorteante e confusa, à medida que o som reverberado le­varia as notas a amontoarem-se sobre as outras até que fosse tão impossível distingui-las quanto cortar o nó górdio. Se a música terminasse ao meio-dia, a reverberação não teria parado antes do pôr-do-sol.

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A MÚSICA E O ESPAÇO DE EXECUÇÃO 4 9 5

Para que não percamos o ponto, ambas as apresentações do hino tinham sido apropriadas para as circunstâncias. Ambas eram responsivas ao ambiente acústico específico de sua apresentação. Contudo, nenhuma das apresentações teria funcionado com muita eficiência num ambiente acústico inóspito.

A música não é nem escrita nem executada num vazio. Muitas coisas influenciam a criação musical - a cultura do compositor, a cultura dos ouvintes, a idade e a formaçao musical da audiência, para nomear algumas. A idéia do espaço musical raramente é con­siderada de forma consciente, mas é fator significante na criação da música. Uma das chaves para as diferenças nos estilos musi­cais oferecidos pela cultura é a impressionante variedade de espa­ços arquitetônicos usados para as execuções musicais.

O compositor ou o arranjador cria a música para adequar-se ao lugar de execução. O compositor que está ligado à cultura entende o tipo de lugar onde a música será executada. Se o arranjador está escrevendo música para uma banda que vai marchar, é essencial entender a natureza acústica do estádio de futebol. Se o composi­tor vai escrever uma coletânea a cappella para o coral da igreja, ele tem de saber algo sobre a natureza acústica do santuário típico da igreja onde a música será executada.

Alguns compositores exploraram conscientemente as caracte­rísticas dos lugares acústicos onde a música seria executada. Giovanni Gabrieli (1557-1612) é um desses compositores. A Ca­tedral de São Marcos, em Veneza, Itália, onde ele trabalhou como organista e maestro de coral, tinha várias características arquitetônicas incomuns. Havia dois órgãos, um em cada lado da igreja, como também várias galerias elevadas ao longo dela onde os vocalistas e instrumentistas cantavam e tocavam.1 Gabrieli es­creveu quantidade significativa de música para dois, três ou mais corais. E le misturava livremente vozes e instrumentos da mesma maneira que misturava livremente estruturas volumosas de corais com pontos de imitação polifônica, quer dizer, cada voz seguindo e imitando a precedente. O impacto dos sons vindo de direções diferentes acrescentava à performance uma dimensão de drama que era nova e emocionante.2

A música tem de se ajustar ao instrumento, ou instrumentos, que a executam. Considere a música do banjo. Sem levar em con­sideração a acústica do ambiente, o banjo sozinho não sustentará uma nota por mais que um breve momento. Para tomar a música do banjo interessante, é necessário dedilhar uma outra nota antes que a primeira se extinga. É por isso que o banjo produz um fluxo quase constante de notas.

Os compositores de música em nossa geração têm procurado mudar as regras básicas da acústica musical. Com o advento de sistemas de alto-falantes de alta tecnologia e possuindo sofistica­dos aparelhos de efeitos eletrônicos, os músicos podem criar a impressão de qualquer ambiente acústico que desejarem. O perito

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em acústica começa projetando um ambiente que cause pouca ou nenhuma reverberação, ou eco, a fim de remover as limitações de um campo de reverberação natural. Alterando eletronicamente as ondas de som, o engenheiro pode criar o efeito de qualquer ambi­ente acústico, desde uma sala pequena a um estádio colossal. Tal manipulação eletrônica abre a porta, pelo menos teoricamente, a um mundo muito mais vasto de possibilidades musicais.

Notas bibliográficas1. Marie K . Stolba, The Development o f Western Music: A

History (Madison, Wisconsin: Brown & Benchmark Publishers, 1992), pp. 236, 237.

2. Charles R . Hoffer, The Understanding o f Music, 5.a edição (Belmont, Califórnia: Wadsworth Publishing Company, 1965), p. 149.

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Johnathan David Horton

Não existe essa coisa de estilo sacro ou estilo secular.—' Francis A . Schaeffer

Toda melodia pertence ao Senhor, exceto a da escarradeira.— Otis McCoy

Sempre amei a música. Muitas de minhas primeiras recorda­ções de infância giram em torno da música. Lembro-me de uma jovem senhora de cabelos pretos esvoaçantes que passou a fre­quentar a igreja que meu pai pastoreava em Charlotte, Carolina do Norte. Embora eu só tivesse cinco anos, foi amor à primeira vista. E la foi a primeira soprano treinada que ouvi. Que voz! Quando cantou “Down From His Glory” , apaixonei-me pela música tam­bém. Que melodia gloriosa! Parecia o veículo perfeito para ex­pressar o que eu sentia no coração.

Também me lembro de como me senti a primeira vez que ouvi E lv is Presley cantar aquela mesma melodia com a letra “ It ’s Now or Never” (É Agora ou Nunca). Eu era adolescente e a música fazia parte do rock and roll que se ouvia na época, mas pensei: Que audácia a desse sujeito profanando um hino evangélico ma­ravilhoso! Imagine meu pesar quando, alguns anos depois, desco­bri que o hino que tanto amei não teve seu início como hino sacro. Foi baseado na melodia da música popular italiana “O Sole Mio” .

A melodia é um clássico. Foi a música predileta em todo o mundo durante muito, muito tempo. A atração de sua beleza é inegável. Mas o que esta melodia realmente expressa? Seria o su­blime e exaltado amor de “O Sole Mio” , ou o amor terreno e sen­sual de “ It ’s Now or Never” , ou a devoção espiritual de “Down From His Glory” , ou é completamente outra coisa?

O estilo musical como contexto para a adoração. Alguns acre­ditam que a capacidade da música de igreja comunicar o Evange­lho não está limitada ao texto da música. Eles julgam que “a mú­sica de igreja proclama o Evangelho pela própria música em si” . Então, argumentam eles, os estilos associados à música secular são totalmente impróprios para uso na adoração. Para levar o ar­gumento mais adiante: “A adoção e adaptação da música secular não cumpre o propósito global da música de igreja, porque é inca­paz de fazê-lo” .1

No entanto, sabemos de uma variedade de fontes que a história da música de igreja está repleta de exemplos de empréstimos da música secular.2 Por exemplo, considere “os elementos seculares nos corais medievais, ou o uso que Martinho Lutero fez da música

Apêndice 5A Música e o Estilo de Adoração

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popular como base para muitos dos seus hinos da Reforma, ou o uso feito pelos irmãos Wesley da música obviamente derivada da Beggar’s Opera (Ópera do Mendigo)” .3 Se a música em si trans­mite significado, como podemos ser responsáveis pelo emprésti­mo em ambas as direções?4

O debate sobre qual estilo musical é apropriado para a adora­ção tem grassado desde os dias de Martinho Lutero e o Concílio de Trento5 até o presente. Poucos assuntos 'geram opiniões mais dogmáticas baseadas em tão poucos traços de evidência. Todo o mundo parece saber o que é música espiritual. Não é de admirar que a música espiritual é quase sempre “a música que eu gosto” .

A B íb lia não trata o assunto do estilo musical de modo direto. Na era do Antigo Testamento e na era do Novo Testamento, não percebemos nenhuma distinção in fa lível entre os estilos musi­cais da música sagrada e secular. Ao que saibamos, nem o ju ­deu antigo nem o cristão prim itivo criaram um estilo musical novo. Considerando que a B íb lia parece ser um tanto quanto indiferente no assunto do estilo m usical, por que os músicos, líderes eclesiásticos e teólogos ficam tão aflitos com a questão do estilo musical na adoração?

Com isso não quero dizer que os adoradores individuais são indiferentes ao estilo musical! Cada um de nós temos nossas pre­ferências individuais por estilos musicais na adoração. É frequen­te que tais opiniões sejam*fortemente mantidas! As congregações individuais têm preferências também. Os estilos de adoração e os estilos musicais muitas vezes definem uma congregação mais ha­bilmente do que a filiação 4enominacional.

A música cristã contemporânea. David W ilkerson, Jimmy Swaggert, Bob Larson e outros têm condenado o uso da música rock na igreja. Eles acham que a forma em si foi tão contaminada que não se ajusta para o uso do Mestre. Mas outros julgam que todas as formas são boas se forem santificadas pela Palavra de Deus e pela oração (veja 1 Timóteo 4.1-7). “Só porque uma forma foi abusada e associada a influências subcristãs e anticristãs não significa que a forma é inválida.”6

Francis Schaeffer deixa o ponto ainda mais claro - não deve­mos confundir mensagem com estilo. Não existe essa coisa de estilo sacro ou estilo secular. Quanto mais se tenta fazer tal distin­ção, mais confuso fica” .7 Nenhum estilo musical deveria ser total­mente excluído da adoração com base em suas associações, por­que nem todos nós fazemos as mesmas associações com determi­nado estilo musical.

A integridade da música de adoração. Alguns insistem que nossa oferta musical deve ser da mais altíssima qualidade possí­vel ou é indigna de ser oferecida ao Senhor. A primeira vista, tal visão parece correta, mas um exame mais profundo revela falha gritante. No Antigo Testamento, o adorador é ordenado a oferecer do seu rebanho uma oferta queimada de um animal macho, sem

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A MÚSICA E O ESTILO DE ADORAÇÃO 4 9 9

defeito (Levítico 1.1-17). Para os que não podiam dispor de tal oferta, providenciou-se um substituto. É digno de nota que quan­do Maria e José trouxeram o menino Jesus para a cerimónia de sua consagração, ofereceram o substituto: um par de rolas ou dois pombinhos (Lucas 2.24). Deus estava procurando o melhor que o adorador tinha, não o melhor de todo o Israel. Quanto à música, exige-se que o adorador contemporâneo ofereça o melhor que ele tenha, contanto que seja a música que venha do coração e não a música tomada por empréstimo de alguma autoridade externa.

O custo elevado é outra qualificação para a nossa oferta de adoração musical. Quando o anjo do Senhor parou com a destrui­ção de Israel na eira de Araúna, o rei Davi construiu um altar ao Senhor e quis sacrificar. Araúna ofereceu a Davi a terra, os bois e tudo o mais que fosse preciso para sacrificar. Mas o rei Davi não o aceitou. E le disse: “Não, porém por certo preço to comprarei, por­que não oferecerei ao SENHOR, meu Deus, holocaustos que me não custem nada” (2 Samuel 24.24). O verdadeiro sacrifício é caro. Custa nosso tempo; custa nosso esforço. Muitas vezes custará muito mais do que podemos descrever aqui.

Archibald T. Davidson, um dos mais influentes escritores so­bre música de igreja protestante do começo do século X X , tinha o ponto de vista de que a música de igreja deveria ser bastante dis­tinta da música de nossas vidas cotidianas. “O poder e a integrida­de da música de igreja devem ser julgados pelo grau do seu dis­tanciamento do mundo” .8 E le via o canto gregoriano como veícu­lo ideal para a adoração. E le encarava a música do mundo cotidi- ano como inóspita à ador.ação.

Este ponto de vista é diametralmente oposto ao pensamento evangélico corrente que nã<? busca um dualismo, mas uma integri­dade - uma unidade - de vida. Os adoradores contemporâneos estão buscando ligações entre a vida cotidiana e o reino do eterno. Eles querem unir-se ao salm ista no cântico: “Louvarei ao SENHOR em todo o tempo; o seu louvor estará continuamente na minha boca” (Salmos 34.1). Buscam música e adoração que integrem suas vidas - a adoração que seja reflexo honesto de quem são e de quem podem ser em Cristo!

A complexidade incompreensível da personalidade de Deus sugere que é apropriado mais de uma abordagem de estilo de mú­sica e adoração. Consideremos só dois aspectos de sua identidade. Primeiro, E le é JEO VÁ Shamah, o Deus que está perto. Segundo, Ele é El Shaddai, o Deus Todo-Poderoso. Como JEO VÁ Shamah, Ele é o Deus que é imanente. E le nos convida a irmos à sala do trono levando nossas petições, a fim de encontrarmos graça para nosso tempo de necessidade (Hebreus 4.16). Como E l Shaddai, Ele é onipotente (Génesis 17.1). Ele é o Rei do universo - o justo Juiz que merece e exige nossa adoração.

Nossa música deve refletir estas duas características de Deus. Talvez nenhum estilo de música possa satisfazer esta exigência.

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Sua imanência sugere cânticos no estilo fam iliar de nossas vidas cotidianas. Os corinhos simples e diretos expressam a devoção de uma maneira pessoal e direta, que não é consciente de si mesma e é totalmente apropriada para a adoração íntima diante do trono de Deus. Ao passo que a linguagem exaltada dos hinos nos dá uma sensação de sua onipotência. Se devemos adorar a Deus com en­tendimento, precisamos de música que ajude a transmitir sua ple­na personalidade.

Em outras culturas ou com pessoas de formações diferentes, os exemplos musicais podem ser bastante diferentes do que pode­ríamos ter citado acima. Deus quer que toda geração, toda cultura, toda raça e toda língua cantem cânticos que brotem do coração. Se nossa música deve ter integridade, ela tem de ser uma reflexão honesta de quem somos. Isto é verdade em relação ao indivíduo, e é verdade em relação à congregação local específica. Um líder eficaz pode e vai ensinar música nova e transmitir o amor daquela música às pessoas até que se tome delas.

Deus não usou um cortador de biscoito para criar o mundo. Pelo fato de Deus ser infinitamente criativo, Ele criou um mundo de tremenda variedade. Então, E le está interessado num só estilo de música? Considere que tremenda variedade de música é asso­mada ao trono de Deus todos os dias, à medida que o seu povo canta louvores ao redor do mundo! O que faz as pessoas pensarem que o seu estilo favorito de música é a única escolha de Deus para a verdadeira adoração?

Cante um novo cântico ao Senhor. Cada novo movimento de avivamento, cada novo movimento do Espírito Santo, é acompa­nhado por uma nova hinologia.9 Algo sobre a unção fresca do Es­pírito parece produzir um novo cântico. Cada novo avivamento em cada geração produz um novo estilo musical também. E iróni­co que as pessoas que foram instrumentos no nascimento da nova hinologia do avivamento anterior são as mesmas que são as mais resistentes ao novo cântico do novo avivamento. Mas tão certo quanto um novo movimento de Deus dá lugar a uma nova hinologia, da mesma forma os novos cânticos exigem os odres novos de um musical novo! Enquanto a igreja estiver aqui na ter­ra, é provável que este ciclo continue.

Anne Ortlund retrata um quadro muito claro do problema, quan­do descreve como teria sido o Dia de Pentecostes se muitos de nós estivéssemos presentes quando ouviu-se um vento veemente e impetuoso e viu-se as línguas repartidas de fogo. ‘“ Otimo! É maravi­lhoso!’ , gritaram. ‘Rápido! Fechem as janelas! Vamos prender este vento para sempre!’” Muitos anos depois, eles ainda estão sentados no mesmo lugar e lembrando-se do dia em que Deus apareceu e mandou conservar tudo exatamente como estava.10

Deus é o contemporâneo eterno. Enquanto E le é o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, E le também é o Deus do presente. E le se descreve como “EU SOU O QUE SOU” (Êxodo 3.14). O

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A MÚSICA E O ESTILO DE ADORAÇÃO 5 0 1

Espírito de Deus se move para onde deseja e o mesmo acontece com seu cântico. Como os filhos de Israel no deserto, quando a nuvem da presença de Deus se movia, temos uma escolha: Pode­mos nos mover com Deus ou ficar para trás!

Notas bibliográficas1. Calvin Johansson, Discipling Music Ministry: Twenty-first

Century Directions (Peabody, M assacliusetts: Hendrickson Publishers, 1992), p. v i.

2. E rik Routley, Twentieth Century Church Music (Carol Stream, Illino is: Agape, 1964), p. 154.

3. Johansson, Discipling, p. 20.4. David B . Pass, Music in the Church: A Theology o f Church

Music (Nashville: Broadman Press, 1989), p. 44.5. O Concílio de Trento foi um concílio eclesiástico convoca­

do pela Igreja Católica Romana, e ocorreu de 1543 a 1563, como resposta à Reforma protestante liderada por Martinho Lutero. En­tre outras coisas, o concílio estabeleceu novas regras para o uso da música na adoração.

6. Pass, Music, p. 44.7. Francis Schaeffer, Art & the Bible (Downers Grove, Illino is:

InterVarsity Press, 1973), p. 51.8. Archibald T. Davidson, Protestant Church Music in America

(Boston: E . C . Schirmey Music Company, 1933), p. 12.9. Para uma discussão extensa da história da música de adora­

ção, veja Donald P. Hustad, Jubilate II: Church Music in Worship andRenewal (Carol Stream, Illino is: Hope Publishing Company, 1981,1993), eRobertE. Webber, Worship Old and New: A Biblical and Practical Introduction, edição revista (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1994).

10. Anne Ortlund, Up With Worship (Glendale, Califórnia: Regai Books, 1975), p. 7.

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Apêndice 6 G. K. Chesterton no Poder dos Contos de Fada

Twila Brown Edwards

G. K . Chesterton, importante escritor cristão do início do sé­culo X X , acreditava que os contos de fada o tinham preparado para crer no Cristianismo. “Minha primeira ç última filosofia, na qual creio com certeza ininterrupta, aprendi no berço. [...] As coi­sas em que mais cri então, as coisas que mais creio agora, são as coisas chamadas contos de fada” (p. 49).

Chesterton declarou também que os contos de fada lhe deram um senso de maravilha. As crianças pequenas naturalmente têm um profundo senso de maravilha: “Uma criança de três anos fica emocionada quando lhe contam que Tommy abriu a porta” (p. 54). Os contos de fada continuam a alimentar essa maravilha: “Uma criança de sete anos fica emocionada quando lhe contam que Tommy abriu a porta e viu um dragão” (p. 54). Porém, os adultos logo perdem esse senso de maravilha. Mas Chesterton sustentava que os contos de fada podem ajudar a restabelecer aos adultos esta qualidade importante, não só sobre dragões, mas também concernente às qualidades da natureza: Ele declarou: “ [Os contos de fada] dizem que as maçãs estavam douradas só para relembrar o momento esquecido quaqdo achamos que estavam verdes” (p. 54). Se, pela história, os adultos entram no reino das fadas e vêem uma árvore encantada, quando voltam ao nosso mundo, todas as árvores reterão um pouco desse encanto. Assim , os adultos que lêem contos de fada serão muito mais aptos a ser bons dominadores da natureza, cuidando da terra como designado no mandamento da Criação.

Chesterton também acreditava que os contos de fada nos dão algo que ele chamava de “Doutrina Condicional da Alegria” . No seu caso, o conto de fada o preparou para crer no Cristianismo. “Na ética relativa aos duendes, toda a virtude gira em torno de um ‘se’ . O aviso da declaração da fada sempre é: ‘Você pode morar num palácio de ouro e safira, se não disser a palavra ‘vaca’ . [...] A visão sempre depende de um veto. Todas as coisas perplexas e colossais concedidas dependem de uma coisa pequena que está retida. Todas as coisas selvagens e tumultuantes que são soltas, dependem de uma coisa que é proibida” (p. 55). Chesterton insistia que a con­dição não precisava ser algo que a pessoa entendesse completa­mente. “O verdadeiro cidadão do reino das fadas está obedecendo algo que ele absolutamente não entende. No conto de fadas, uma felicidade incompreensível acha-se numa condição incompreen­sível. Uma caixa é aberta e todos os males saem voando. Uma pala­vra é esquecida e as cidades perecem. Uma lâmpada é acesa e o amor foge. Uma flor é arrancada e vidas humanas são perdidas. Uma maçã é comida e a esperança de Deus se vai” (p. 56).

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G. K. CHESTERTON NO PODER DOS CONTOS DE FADA 5 0 3

Chesterton não achava que estas condições fossem injustas. “Cinderela recebeu uma carruagem do País das Maravilhas e um cocheiro da terra do nunca, mas recebeu uma ordem. [...] Se Cinderela dissesse: ‘Por que razão tenho de sair do baile à meia- noite?’ , a fada madrinha responderia: ‘Por que razão você pode ficar lá até à meia-noite?’ ” (pp. 56,57). Em vez de reclamar de ter de ir para casa à meia-noite, Cinderela fica maravilhada por con­seguir ir ao baile. Na visão de Chesterton! os contos de fada aju­dam os seres humanos a entender e aceitar que vivemos num mundo de condicionalidade. Se obedecemos as ordens, experimentamos alegria; se as desobedecemos, sofremos as consequências.

Os contos de fada também ajudaram Chesterton a crer que há um Deus pessoal. Pelo fato de os contos de fada conterem tantos atos de maravilha, ele começou a crer que havia Alguém por trás desses atos. Os contos de fada o ajudaram a crer que “este nosso mundo tem algum propósito; e se há um propósito, há uma pes­soa. Eu sempre tinha sentido a vida primeiramente como história: e se há uma história, há um contador de histórias” (p. 61). Chesterton relembrou: “Eu deixei os contos de fada no berço e desde então não achei outro livro tão sensato” (p. 58). Depois de adultos, ele e C . S. Lew is começaram a ler contos de fada e nos recomendaram que nunca deixemos os contos de fada no berço, mas que continuemos a lê-los todos ao longo de nossa vida, para nosso benefício eterno. *

— Citações extraídas de Gilbert K . Chesterton, “The Ethics of Elfland” (A Ética da Terra dos Duendes), in: Orthodoxy (Ortodo­xia) (Garden City, Nova York, 1959), pp. 46-65.

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Apêndice 7 C. S. Lewis

Twila Brown Edwards

Clive Staples Lewis (1898-1963) foi por muitos anos ateu. Sua jornada de volta ao Cristianismo começou quando leu Phantastes, de George MacDonald, um romance de fantasia que Lewis disse que “batizou [minha] imaginação” . Através desta experiência pes­soal, Lewis veio a entender o poder redentor da literatura imagi­nativa. Tendo lutado para crer em Deus, Lewis tornou-se influente em explicar o Cristianismo aos intelectuais. Lendo bastante e a li­mentando estudiosamente seus talentos, inclusive suas habilida­des de escritor, Lewis desenvolveu a destreza incomum de incor­porar idéias teológicas complexas em suas obras de não-ficção como também em seus romances. Seu livro Cristianismo Puro e Simples é considerado uma das maiores apologias da fé cristã es­crita no século X X . Muitas das idéias teológicas contidas em Cris­tianismo Puro e Simples Lewis também incorporou criativa e fic- ticiamente nos sete romances que compõem A í Crónicas de Namia.

Estes sete romances, que já foram amplamente traduzidos, in­clusive no Brasil, têm-se tornado livros prediletos de crianças e adultos de países do mundo inteiro. Por estes e outros romances, o próprio Lewis “batizou” a imaginação de milhares de leitores.

Lewis tinha grande atração por mitos, sobretudo as formas he­róicas e românticas de mito. Ele também gostava de poesia. Um de seus amigos conta que acrsair em passeios a pé com Lew is, ele subitamente irrompia citando longos trechos de poesia que recen­temente tinha descoberto e memorizado. O lado romântico da per­sonalidade de Lew is era equilibrado por uma habilidade incomum na lógica. Uma das ironias de Deus é que a habilidade lógica de Lewis foi grandemente aumentada por um dos seus professores ateus, W. T. Kirkpatrick, pessoa a quem Lewis julgava ter chega­do mais perto de ser “uma entidade puramente lógica” do que qual­quer outra pessoa que já tinha conhecido. Qualquer leitor de Lewis reconhecerá seu excelente uso da lógica para apresentar incisiva­mente assuntos relevantes à fé cristã.

Quando sua mãe ficou doente com câncer, o Lewis de dez anos de idade orou fervorosamente para que ela fosse curada. A morte de sua mãe contribuiu para sua jornada ao ateísmo. Depois, como ho­mem de cinquenta e oito anos e, na época, já cristão, a fé de Lewis foi outra vez severamente testada quando sua esposa, Joy Davidman Lewis, ficou doente com câncer. O livro A Grief Observed (Uma Dor Observada) é uma confissão honesta de sua luta para continuar crendo num Deus benevolente depois que a segunda mulher impor­tante de sua vida sucumbiu ao câncer. O romance Till We Have Faces (Até que Tenhamos Faces) também discute perceptivamente nossas lutas com a incredulidade e a crença.

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C. S. Lewis morreu em 22 de novembro de 1963. Sua convic­ção no poder das histórias para o cristão de hoje e de amanhã pode ser vista no texto encontrado ao término de A Última Batalha. Todas as crianças na história morreram e foram para a terra de Aslan - a representação imaginativa de Lewis do céu: “E para nós, este é o fim de todas as histórias e podemos dizer verdadeira­mente que viveram felizes para sempre. Mas para eles foi só o começo da verdadeira história. Toda a vida delas neste mundo e todas as suas aventuras em Narnia tinham sido só a capa e a pági­na de rosto: agora afinal estavam começando o Capítulo Um da Grande História, a qual ninguém na terra leu; a qual dura para sempre; na qual todo capítulo é melhor do que o anterior” (p. 184).

L ew is F a l a S o b r e a L it e r a t u r a I m aginativ a

“Qual é a vantagem de [...] ocupar nossos corações com histó­rias que nunca aconteceram e entrar vicariamente em sentimentos que deveríamos procurar evitar sentir em nossa própria pele? [...] Buscamos uma amplificação do nosso ser. Queremos ser mais que nós mesmos. [...] Queremos ver com os olhos dos outros, imagi­nar com as imaginações dos outros, sentir com os corações dos outros, como também com o nosso. [...] Exigimos janelas. A lite­ratura como os Logotipos é uma série de janelas, até portas. Uma das coisas que sentimos depois de lermos uma grande obra é ‘Eu saí’ . Ou, de outro ponto de vista, ‘Eu entrei’ : perfurei a concha de outra mônada e v i como é por dentro. [...] O impulso é sair do ego, corrigir seu provincialismo e curar sua solidão. No amor, na virtu­de, na busca do conhecimento e na recepção das artes, estamos fazendo isto. Obviamente este processo pode ser descrito ou como amplificação ou como aniquilação temporária do ego. Mas trata-se de paradoxo antigo; ‘qualquer que perder a sua vida, a salvará’ . [ ...] Aqueles que foram verdadeiros leitores por toda a vida raramente percebem por completo a enorme extensão de nosso ser, o qual devemos aos escritores. Percebe­mos isto melhor quando falamos com um amigo não literato. E le pode ser cheio de bondade e ter bom senso, mas habita num mundo minúsculo. Nele, seríamos sufocados. O homem que está satisfeito em ser somente ele mesmo e, portanto, me­nos que um eu, está em prisão. Meus olhos não são o bastante para mim; verei pelos dos outros. [ ...] A experiência literária sara a ferida, sem minar o privilégio, da individualidade. [...] Lendo a grande literatura torno-me m il homens e ainda conti­nuo eu mesmo. Como o céu noturno no poema grego, vejo com miríades de olhos, mas ainda sou eu quem vê. Aqui, como na adoração, no amor, na ação moral e no conhecimento, eu me transcendo; e nunca sou mais eu mesmo do que quando leio.”

— C . S . Lew is, An Experiment in Criticism (Um Experimento na Crítica), pp. 137-141, itálicos meus.

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Apêndice 8 Thomas Hobbes e a Teoria de Contrato

de Justiça

Michael D. Palmer

Thomas Hobbes foi filósofo inglês e um dos maiores teoristas políticos do século X V II. Nasceu na Inglaterra em 1588. Com a idade de quatorze anos entrou para a Universidade de Oxford e formou-se em 1608 com grau de bacharel. Morreu em 1679.

O maior trabalho de Hobbes intitula-se O Leviatã (1651). Nele Hobbes apresenta a teoria de contrato social da moralidade. Fa­lando do estilo de Hobbes, certo estudioso, H. W. Schneider, ob­servou, que “reflete a luz nos olhos alegres de uma sagacidade, e é o anseio morto de um filósofo” . Desde a época em que foi publi­cado, O Leviatã ganhou reconhecimento como poderoso tratado político. Nas gerações subsequentes, a obra veio a assumir seu lugar entre as importantes contribuições permanentes para a filo ­sofia moral e a teoria política.

O nome leviatã refere-se a algo enorme e formidável, como um grande animal marinho mítico. Hobbes usou o nome para alu­dir ao estado político. Especificamente, ele queria dizer um esta­do totalitário que tem absoluto poder e controle político. O corpo político soberano, ou a comunidade, de acordo com Hobbes, é um “animal artificial” - um leviatã ou “deus mortal” - formado pelos acordos (“pactos”) que os seres humanos fazem uns com os ou­tros pelos interesses da segúrança, justiça e paz.

Hobbes asseverou que os seres humanos, impulsionados por desejos de “ lucro” , “ segurança” e “reputação” , experimentariam conflito ininterrupto entre si se não houvesse uma força política capaz de impor o cumprimento dos acordos civis e das leis mo­rais. Sem um regime político poderoso, nossa situação seria um virtual “estado natural” , com o que ele quer dizer “uma Guerra de todo homem contra todo homem” . Em um dos seus dizeres mais célebres, Hobbes declarou que nesta condição nossas vidas seri­am “solitárias, pobres, sórdidas, brutas e pequenas” .

O medo da morte violenta é o principal motivo que leva as pessoas a criar um estado, fazendo um contrato para entregar seus direitos naturais e submeter-se à autoridade absoluta de um “so­berano” . Por “ soberano” Hobbes tinha em mente uma possante força ou governo mantenedor das leis. Assim , de acordo com Hobbes, um governo é formado quando as pessoas no estado na­tural concordam “em conferir todo o poder e força a um homem, ou a uma assembléia de homens” que “agirá [...] naquelas coisas que concernem à paz comum e segurança” .

Embora o poder do soberano, na teoria de Hobbes, deriva ori­ginalmente das pessoas - desafiando a doutrina do direito divino dos reis - , Hobbes afirmou que o poder do soberano é absoluto e

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não sujeito à revisão, quer por súditos, quer por poderes eclesiás­ticos. O conceito dcr+íobbcs do Contrato Social levou a investiga­ções por outros teoristas políticos, notadamente John Locke, Benedict Spinoza e Jean Jacques Rousseau, que formularam teo­rias próprias bastante distintivas do contrato social.

No trecho que se segue, Hobbes apresenta sua narrativa de como uma comunidade vem à existência.

D a s C a u s a s , G e r a ç ã o e D ef in iç ã o d e u m a C o m u n id a d e

A causa final, o fim ou o desígnio dos homens que naturalmen­te amam a liberdade e o domínio sobre os outros, na introdução da restrição sobre si mesmos, na qual os vemos viver em comunida­des, é a previsão da própria preservação deles e, assim, de uma vida mais fe liz - quer dizer, de saírem da miserável condição de guerra que é necessariamente consequente [...] às paixões naturais dos homens, quando não há nenhum poder visível para os manter em temor e uni-los por medo da punição na realização das suas convenções, e da observação das leis naturais [anteriormente] estabelecidas [...].

A única maneira de instituir tal poder comum que possa defendê-los da invasão de estrangeiros e de danos causados uns aos outros e, assim, assegurá-los em tal situação pela própria in­dústria deles e pelos frutos da terra com os quais eles se alimen­tem e vivam contentemente, é conferir todo o poder e força a um homem, ou a uma assembléia de homens, que reduza todas as von­tades, pela pluralidade de.vozes, a uma vontade; o que equivale a dizer: designar um homem ou assembléia de homens a represen­tar a pessoa deles, e que todos o admitirem e reconhecerem ser o autor do que quer que ele, que representa a pessoa deles, agirá ou fará que seja feito naquelas coisas concernentes à paz comum e segurança, e, a esse respeito, submeter a vontade de cada um deles à sua vontade, e os julgamentos deles ao seu julgamento. Isto é mais que consentimento ou acordo; é uma verdadeira unidade de todos eles em uma mesma pessoa, feita por convenção de todo homem com todo homem, de tal maneira como se todo homem dissesse a todo homem: Eu autorizo e renuncio a este homem, ou a esta assembléiá de homens, meu direito de me governar sob esta condição, que você da mesma maneira renuncie seu direito a ele e autorize todas as suas ações. Isto feito, a multidão tão unida a uma pessoa é chamada uma comunidade, em latim civitas.

Esta é a geração daquele grande leviatã (ou, antes, para falar mais reverentemente, daquele deus mortal) ao qual devemos, sob o Deus imortal, nossa paz e defesa. Por esta autoridade, dada a ele por todo homem particular na comunidade, ele tem o uso de tanto poder e força que lhe foi conferido, que, por terror disso, ele é capaz de nnir as vontades de todos eles à paz em casa e ajuda mútua contra as inimigos deles. E nele consiste a essência da co­munidade que. para defini-la, é uma pessoa, de cujos atos uma

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5 0 8 APÊNDICE

grande multidão, por convenção mútua uns com os outros, fez-se cada um o autor, com o fim de que ele possa usar a força e riqueza deles de todo modo como ele pensará como meio para a paz e defesa comum deles. E aquele que representa esta pessoa é cha­mado soberano, e diz-se ter poder soberano', e todos os demais são seus súditos.

— Thomas Hobbes, Leviathan, Parts One and Two (O Leviatã, Partes Um e Dois), com introdução de Herbert W. Schneider (Indianápolis: Bobbs-Merrill Company, 1958), pp. 139, 142, 143.

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Apêndice 9John Locke e a Teoria dos Direitos Naturais

Michael D. Palmer

O inglês John Locke (1632-1704) foi filósofo e o criador de um ponto de vista filosófico que veio a ser conhecido como empirismo britânico. Nasceu na região ocidental da Inglaterra. Sua fam ília era de classe média, seu pai era dono de uma pequena propriedade e advogado. A tradição religiosa da fam ília era puri­tana; o próprio Locke permaneceu por toda a vida cristão e defen­sor dos ideais cristãos. Bem cedo na vida, o pai de Locke foi sua influência educacional primária. Mais tarde, em 1652, depois de passar seis anos na Westminster School, ele entrou na Christ Church, Oxford, onde começou uma associação com aquela uni­versidade que durou uns trinta anos.

Os dois trabalhos mais importantes de Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano e Dois Tratados sobre Governo, foram ambos impressos em 1690. Eles logo o estabeleceram como im­portante filósofo e teorista político. No Ensaio, ele censurou cer­tos racionalistas, como o filósofo francês René Descartes (1596- 1650), que promovia a visão de que a mente contém idéias mesmo antes do nascimento (comumente chamada “idéias inatas” ).

Ao invés disso, Lock*e fomentou argumentos de que a mente, no nascimento, carece completamente de conteúdo. É uma virtual “ lousa em branco” ou “pedaço de papel em branco” . Tudo o que passamos a saber é inscrito na forma de experiência. No Ensaio, Locke também fez distinção entre dois tipos de qualidades exis­tentes nas coisas que encontramos: qualidades primárias (por exemplo, extensão, solidez, número) e qualidades secundárias (por exemplo, cor, cheiro, som). As qualidades primárias afetam me­canicamente os órgãos do sentido e fornecem idéias que refletem fielmente a realidade. São o que ciência preocupa-se em desco­brir. As qualidades secundárias, de acordo com Locke, são produ­zidas pela interação entre os objetos no mundo e os órgãos do sentido. Depois os empiristas, como David Hume (1711-1778) e George Berkeley (1685-1753), basearam em grande parte suas te­orias filosóficas de conhecimento na teoria de Locke.

Na teoria política Locke foi igualmente influente. Por exemplo, sua descrição de cheques e balanços no governo forneceu modelo para os criadores da Constituição dos Estados Unidos; sua formula­ção da doutrina de que a revolução em algumas circunstâncias não somente é um direito, mas uma obrigação, não passou despercebida pelos americanos coloniais; e seus argumentos a favor de ampla li­berdade religiosa formaram parte de uma longa discussão política na Europa e nos Estados Unidos desde que ele os escreveu.

Além disso, muitas das teorias liberais sociais, económicas e éticas do século X V III estavam arraigadas na teoria de contrato

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social de Locke. De fato, certa autoridade, Thomas Peardon, afir­ma que Locke é “provavelmente o pensador mais representativo em toda a tradição política anglo-americana” . E le defende esta análise não com o pretexto de que Locke fosse particularmente original em sua teoria política, mas pela razão de ter dado expres­são tão clara e racional a crenças que eram o produto de séculos de experiência política.

Locke assumiu seu ponto de divergência ao rejeitar as visões de Thomas Hobbes sobre várias questões, em particular a visão de Hobbes da natureza humana. D iz Peardon: “Locke via o homem como camarada totalmente decente, muito longe das criaturas briguentas, competitivas e egoístas encontradas em Hobbes” .

Contrário à avaliação de Hobbes, Locke sustentava que o esta­do da natureza (a condição dos seres humanos anterior ou à parte da sociedade c iv il organizada e as coibições governamentais) era relativamente feliz e caracterizada pela razão e tolerância. No es­tado da natureza, todos os seres humanos eram iguais e livres para buscar “vida, saúde, liberdade e possessões” .

Locke é geralmente tido como aquele que desenvolveu a idéia de que os seres humanos desfrutam de dois “direitos naturais” : o direito natural à liberdade e o direito natural à propriedade priva­da. No estado da natureza, cada pessoa seria o político igual a todas as outras pessoas. Além disso, no estado da natureza cada pessoa não experimentaria tienhuma coibição exceto a “ lei da na­tureza” , os princípios estabelecidos por Deus e disponíveis aos seres humanos através da razão dada por Deus. No estado da natu­reza todo o mundo seria livre para fazer como lhe aprouvesse, salvo se suas ações entrassem em conflito com certos princípios morais básicos dados por Deus. Nas palavras de Locke:

Para entendermos o direito do poder político e derivá-lo de sua ori­gem, temos de considerar em que estado todos os homens estão natu­ralmente, o qual é um estado de liberdade perfeita para ordenar suas ações e dispor de suas possessões e das pessoas como eles julgam adequado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir para sair ou depender da vontade de qualquer outro homem.Um estado também de igualdade, no qual todo o poder e a jurisdição são recíprocos, ninguém tendo mais do que os outros, [...] sem su­bordinação ou sujeição [aos outros]. [...]Mas [...] o estado da natureza tem uma lei da natureza para govemá- la que obriga todo o mundo: e a razão, que é essa lei, ensina todo o género humano, que irá senão consultá-la, pois sendo todos iguais e independentes, ninguém deve causar danos aos outros em sua vida, saúde, liberdade ou possessões (pp. 4, 5).

Na visão de Locke, a lei da natureza “ensina” cada pessoa que ela tem um direito à liberdade. Portanto, “ninguém pode ser tirado deste estado [natural] e sujeito ao poder político de outro sem o

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seu consentimento” . Além disso, a lei da natureza nos ensina que cada pessoa tem direitos de propriedade sobre o próprio corpo, o próprio trabalho e os produtos do trabalho. Ele acreditava que estes direitos eram naturais, com o que queria dizer que não são criados nem pelo governo nem são alcançados por concessão do governo.

Todo homem tem uma propriedade em sua própria pessoa: Sobre isto ninguém tem direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e o trabalho de suas mãos, pode-se dizer, são corretamente dele. Então, tudo o que ele retira do estado que a natureza lhe proveu e deixou nele, ele misturou com seu trabalho e o uniu a algo que é dele próprio e, assim, toma sua propriedade. [...] Sendo este trabalho propriedade inquestionável do trabalhador, ninguém senão ele tem o direito ao que esse [trabalho] outrora o uniu. Pelo menos onde há bastante, ele pode deixar como bem comum para os outros (p. 17).

Apesar do fato de que todo o mundo desfruta de liberdade ab­soluta no estado da natureza, tal condição também está repleta de riscos devido à ameaça constante de perigo imposta pelos outros.

Reconhecendo sua posição insegura, os indivíduos se organi­zam num corpo político e criam um governo cujo propósito pri­mário é proporcionar a medida da proteção dos seus direitos natu­rais que faltava no estado da natureza. Considerando que o gover­no é criado em primeiro lugar para proteger os direitos naturais à liberdade e propriedade, “o poder da sociedade ou legislatura cons­tituído por eles nunca pode se esperar que se estenda mais” do que é necessário para proteger esses direitos. Em suma, o governo não tem nenhuma autoridade para interferir com a propriedade natural de quaisquer direitos naturais do cidadão, exceto quando for ne­cessário para proteger a liberdade ou propriedade do cidadão do abuso por outros.

<:>■

— As seleções citadas aqui foram extraídas de John Locke, The Second Treatise o f Government (O Segundo Tratado sobre Governo), editado por Thomas R Peardon (Indianápolis: Bobbs- M errill Company, 1952). Para excelente fonte de recursos sobre Locke, veja Richard I. Aaron, John Locke, 3.a edição (Oxford University Press, 1971), pp. 309-311.

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Apêndice 10Os Direitos

Michael D. Palmer

O conceito de “direito” aparece em muitos dos argumentos e reivindicações invocados nas discussões morais e políticas. Por exemplo, os proprietários de terra reiyindicam o direito de usar sua propriedade como desejam. Os ecologistas argumen­tam em favor do direito ao ar puro e à água potável. As mulhe­res sustentam o direito de receberem “ salário igual por traba­lho igual” . Os defensores da liberdade de imprensa proclamam o “direito do povo saber” . No âmbito político, certos documen­tos legais empregam a idéia de direito. As primeiras dez emen­das à Constituição dos Estados Unidos, comumente chamadas “Carta de D ireitos” , estipulam certos deveres do governo fede­ral não interferir nas atividades dos seus cidadãos. A Declara­ção de Independência dos Estados Unidos proclama que “to­dos os homens [...] são dotados por seu Criador de certos direi­tos inalienáveis [ ...] entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade” .

O conceito de direitos aparece até no cenário internacional. Em 20 de dezembro de 1948, as Nações Unidas adotaram uma “Declaração Universal dos Direitos Humanos” contendo uns trin­ta artigos. No primeiro artigo se lê: “Todos os seres humanos nas­cem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência, e devem agir uns com os outros em espírito de fraternidade” . Entre os direitos identificados no restante do docu­mento estão os direitos à vida, à liberdade e à segurança do indiví­duo; direitos à liberdade da escravização e tortura; o direito à pro- teção igual sob a le i; o direito de ser considerado inocente nos procedimentos legais até prova de ser culpado; o direito à liberda­de de ir e v ir; o direito de possuir propriedade; e os direitos à livre expressão e crença e culto religiosos. Evidentemente o conceito de direito e o correlativo conceito de dever estão no centro de muitos dos nossos discursos públicos.

O que significa ter um direito? Em geral, quando falamos de ter um direito não estamos nos referindo a um privilégio, mas, antes, a uma autorização a algo. Temos esta autorização, este di­reito, sob duas circunstâncias gerais: 1) sendo autorizados a agir de certo modo e 2) sendo autorizados a fazer os outros agirem para conosco de certo modo. Algumas autorizações vêm de um sistema legal: Somos permitidos ou autorizados a fazer algo, ou podemos esperar que os outros se comportem de certo modo em relação a nós devido a providências legais específicas. Em tais casos, a autorização é chamada direito legal ou direito civil. Por exemplo, a constituição americana garante a todos os cidadãos o direito à “ liberdade de ajuntamento” . Por contraste, a constituição

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da República Popular da China não proporciona aos seus cida­dãos nenhum direito legal semelhante.

Uma investigação superficial confirmaria que as Constituições de diferentes países ao redor do mundo diferem amplamente nos tipos de proteções e garantias que proporcionam aos seus cida­dãos. E claro que as proteções e garantias proporcionadas pela Constituição de determinado país, não se aplicam habitualmente às pessoas que residem em outros países sob outras Constituições. Em suma, os direitos legais ou civis são limitados à jurisdição em particular dentro da qual o sistema legal está em vigor.

Nem todas as autorizações derivam de arranjos legais especí­ficos. Algumas vêm de um sistema de padrões morais não relaci­onados a qualquer sistema legal em particular. Os direitos à “l i­berdade de consciência” e “liberdade de expressão” , por exemplo, não estão garantidos pela Constituição de muitos países. Não obstante, muitos acreditam que estes são direitos que todos os se­res humanos possuem. Direitos como estes são chamados direitos morais ou direitos humanos. Estão baseados em princípios morais que ou autoriza as pessoas a fazer algo ou identifica certas coisas que os outros têm de fazer para elas. Considerando que os direitos legais são restritos a jurisdições legais em particular (como os li­mites de uma cidade ou nação), os direitos morais aplicam-se igual­mente a todos, em todos os lugares, a toda hora. Além disso, as pessoas têm direitos morats simplesmente por serem humanas. Isto significa que a posição social, herança étnica, raça, sexo e outras contingências da vida não afetam que direitos morais uma pessoa tenha. Por exemplo, se os seres humanos têm o direito moral a não serem escravizados, então este é um direito que todas as pessoas têm independente de nacionalidade, posição social, herança étni­ca, raça ou sexo. Em resumo, os direitos morais, diferente dos direitos legais, são universais.

Os direitos - quer sejam morais (humanos) quer sejam legais (civis) - são dispositivos poderosos. Seu propósito é duplo: per­m itir o indivíduo buscar certos interesses ou atividades e proteger essas buscas. Quando usamos a palavra “direito” geralmente te­mos em mente uma ou outra de três coisas. Às vezes, queremos dizer meramente ausência de proibições contra fazer algo. Uso a palavra neste sentido sempre que reivindico ter o direito de fazer o que quer que a lei ou a moralidade não me proíbe positivamente de fazer.

Obviamente, a autorização e as funções protetoras são míni­mas em tais casos. Outras vezes, usamos o termo “direito” para identificar certas prerrogativas que estão juntas com as responsa- bilidades da tarefa que a pessoa faz. Usamos a palavra “direito” deste modo quando falamos de uma pessoa que é autorizada ou capacitada a fazer algo que assegura os interesses dos outros. Por exemplo, um advogado adquire as prerrogativas legais para agir no interesse do seu cliente. O terceiro uso do termo “direito” é

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para identificar ou o modo como impomos proibições ou exigênci­as aos outros, ou o modo como autorizamos os indivíduos a buscar seus próprios interesses. Quando usamos a palavra desta maneira estamos procurando identificar atividades ou interesses que o indiví­duo é autorizado a buscar normalmente, ou que deve permanecer li­vre para buscar, ou que deve ser protegido ou ajudado a buscar.

Por exemplo, como a Constituição dos Estados Unidos garan­te o direito à liberdade de expressão, espera-se que os tribunais ou os funcionários que impõem o cumprimento das leis (ou ambos) interfiram sempre que um cidadão sofre uma infração daquele di­reito cometido por outros na sociedade.

O direitos têm as seguintes três características importantes que definem suas funções capacitadoras e protetoras.

Primeiro, os direitos estão estreitamente ligados com os deve­res. O quão estreitamente os dois estão ligados pode ser visto no fato de que muitas vezes definimos os direitos de uma pessoa em termos dos deveres que impomos aos outros. Por exemplo, meu direito de expressar convicções políticas pode ser, e frequente­mente é, definido em termos dos deveres morais e legais que os outros não têm em interferir em minha expressão verbal dessas convicções. (O direito neste caso é chamado direito negativo, e o dever correspondente é chamado dever da não interferência.) Outrossim, o direito à água potável pode ser definido em termos do dever que o governo (ouialgum outro agente da sociedade) tem de assegurar um abastecimento de água potável aos seus cidadãos. (O direito neste caso é chamado direito positivo, e o dever corres­pondente é chamado dever de desempenho positivo.) Os deveres, então, são geralmente o reverso dos direitos: como os dois lados de uma moeda, sempre que temos um, teremos o outro.

Segundo, os direitos proporcionam aos indivíduos liberdade e igualdade na busca dos seus interesses. Isto significa três coisas: 1) Primeiramente, os direitos identificam atividades ou interesses que as pessoas devem ser deixadas livres (ou ser ajudadas) para buscar quando fazem as escolhas. Por exemplo, meu direito de expressar minhas convicções políticas implica que devo ser dei­xado livre para expressá-las se e quando as escolho. 2) Mas tam­bém, para desfrutar a liberdade e igualdade na busca dos interes­ses do indivíduo significa que a busca desses interesses ou ativi­dades não deve ser subordinada aos interesses dos outros, com exceção das razões mais constrangedoras.

Assim , minha decisão de expressar minhas convicções políti­cas não depende de permissão para fazê-lo. 3) Finalmente, ter um direito implica que, em geral, não posso ser forçado a deixar de me expressar com o pretexto de que a sociedade ganhará mais benefícios se eu ficar calado. Assim , a expressão de minhas con­vicções políticas (quando protegida por um direito) não pode ser impedida ou cessada, mesmo que os outros não desejem me ouvir ou mesmo que pensem que ganharão algo me calando. Em geral,

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reconhecer o direito de uma pessoa implica uma área na qual aquela pessoa não está sujeita aos desejos ou interesses dos outros. Em suma, um direito define uma área dentro da qual cada pessoa está tão livre e igual quanto a todas as outras pessoas.

Terceiro, os direitos fornecem dados racionais para justificar as ações da pessoa e para invocar a proteção ou ajuda dos outros. Por exemplo, se quero que alguém pare de me interferir, eu pode­ria esboçar algumas linhas de argumentação.

Primeiro, porque tenho o direito de me engajar nesta atividade (digamos, expressar minhas convicções políticas), minha ação está justificada. Segundo, porque tenho o direito de me engajar nesta atividade, ninguém está justificado a me interferir. Por outro lado, se preciso da proteção ou ajuda dos outros (talvez eu seja fraco e não possa me defender contra meus oponentes), eu poderia usar semelhante linha de raciocínio. O fato de eu ter o direito à livre expressão justifica os outros me protegerem ou me ajudarem. Outrossim, o fato de eu ter um direito impõe o dever nos outros (nem sempre está claro quem) de me protegerem ou me ajudarem.

L e i t u r a s A d ic io n a is S o b r e o T ó p ic o d o s D i r e i t o s

D O N N E L L Y , J a c k . U n iv e r sa l H u m a n R ig h t s in T h e o r y &

P r a c t ic e . I t h a c a , N o v a Y o r k : C o r n e l l U n i v e r s i t y

P r e s s , 1 9 8 9 .

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Apêndice 11A Justiça

Michael D. Palmer

As disputas no discurso público estão muitas vezes entrelaçadas com referências a “justiça” ou a “imparcialidade” . Isto acontece, por exemplo, quando um indivíduo alega que'a outra parte, diga­mos outro cidadão ou o governo, tomou uma decisão “injusta” que o afetou adversamente. (Talvez o governo reavaliou os valo­res da propriedade, e a pessoa insatisfeita sente que a conta do imposto é muito alta comparada com o que os vizinhos estão pa­gando.) Ou acontece quando uma pessoa acusa outra de não com­partilhar ou participar de modo “justo” . (Talvez, num grupo de trabalhadores, um deles acha que está recebendo muito trabalho em comparação aos outros.)

As vezes invocamos a palavra justiça com referência a um pro­cesso: Alguém reclama ter sido tratado “injustamente” ou “ impar­cialmente” no desdobramento de um processo ou na aplicação de uma lei. (O acusado no julgamento reclama que não recebeu um julgam ento “justo” e, por isso , a “ju stiça ” não fo i fe ita .) Comumente, estes tipos de disputas exigem que façamos avalia­ções comparativas, visto que sem comparações não temos meios de determinar como o reclamante deveria ter sido tratado. De fato, justiça e imparcialidade são, em sua essência, conceitos compara­tivos. Requerem que façamos comparações em várias áreas gerais da interação humana: quande estamos resolvendo como distribuir benefícios e deveres entre os membros de um grupo, quando estamos administrando normas ou leis, quando estamos decidin­do as condições sob as quais as pessoas devem cooperar ou com­petir entre si, quando estamos determinando como compensar as pessoas por danos que sofreram e quando estamos fixando a pena apropriada a malfeitores.

Quanto aos termos em si, “justiça” e “ imparcialidade” são si­nónimos virtuais: com frequência os usamos intercambiavelmente. Sempre que não os usamos intercambiavelmente, tendemos a pre­ferir “justiça” como o termo mais apropriado para assuntos graves ou situações formais.

As questões sobre justiça normalmente entram em quatro cate­gorias principais: a justiça distributiva, a justiça compensatória, a justiça processual e a justiça punitiva.

A justiça distributiva enfoca a distribuição justa de benefícios e deveres entre os membros de um grupo. O grupo pode ser uma fam ília, uma comunidade ou uma sociedade inteira. Independente do tamanho do grupo, assuntos de justiça distributiva emergem quando membros diferentes fazem reivindicações conflitantes so­bre os recursos do grupo e nem todas as reivindicações são ou podem ser satisfeitas. As instâncias mais proeminentes são quan­

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do os benefícios-chaves do grupo estão com baixa provisão - co­mida, casa, cuidados médicos, renda ou empregos - em compara­ção com o número de pessoas que querem estes benefícios.

Situação semelhante surge quando deveres - como tarefas la­boriosas ou perigosas, moradia inferior ou risco de saúde - são distribuídos de maneira desigual entre os membros do grupo. Se todos pudessem satisfazer seu desejo por bens, ou se todos assu­missem um nível apropriado dos deveres'necessários do grupo, conflitos entre os membros do grupo não surgiriam, e a justiça distributiva seria desnecessária. Mas claro que conflitos de todo tipo surgem, e um princípio de justiça distributiva é realmente necessário para solucionar as reivindicações contraditórias.

O que é esse princípio? Em palavras bastante simples, o prin­cípio da justiça distributiva requer que os iguais sejam tratados igualmente, e que os não iguais sejam tratados não igualmente. Mais especificamente, requer que as pessoas semelhantes sob to­dos os aspectos relevantes ao assunto sob consideração devam receber benefícios e deveres semelhantes. Este princípio aplica-se mesmo quando as pessoas em questão são desiguais ou diferentes em certos aspectos irrelevantes.

Por exemplo, suponha que dois estudantes, John e July, fize­ram uma dissertação. Se as dissertações são de qualidade igual, ambos os estudantes deveriam receber a mesma nota, porque no contexto académico o teôr da escrita - não a força física ou a boa aparência - deve ser o fator determinante em dar notas a disserta­ções. Por outro lado, o princípio da justiça distributiva também requer que as pessoas que são dessemelhantes em algum aspecto relevante ao assunto sejam tratadas diferentemente - pelo menos devem ser tratadas diferentemente na proporção de suas dessemelhanças. No caso de John e July, suas dissertações devem ser avaliadas diferentemente na proporção da diferença na quali­dade das dissertações.

Como comentário final ao princípio da justiça distributiva, devemos notar que grande parte do debate sobre o princípio foi enfocado em definir o que toma uma pessoa igual à outra (ou dife­rente). As linhas principais do debate centralizaram-se nos fatores como habilidade, necessidade e esforço.

A justiça compensatória diz respeito ao modo justo de reem­bolsar ou compensar as pessoas pelo que elas perdem quando são prejudicadas ou feridas pelos outros. Em palavras bastante sim­ples, uma compensação justa é a que, em algum sentido, é propor­cional à perda sofrida pela pessoa que é compensada. Busca for­necer restituição para a parte ferida. Por exemplo, se o seu carro colidisse com o meu carro estacionado quando você estivesse sa­indo da vaga de estacionamento, então você deveria pagar o con­serto do meu cario. O pagamento deveria ser proporcional ao cus­to para consertar o dano. Se a conta do conserto é de m il reais (você estava com muita pressa), então seria injusto esperar que

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você pague m il e duzentos reais, e injusto esperar que eu me con­forme com oitocentos.

Certas dificuldades relativas à aplicação do princípio da justi­ça compensatória são bem conhecidas. Alguns tipos de perda ou dano são difíceis ou impossíveis de medir - como o dano ao bom nome da pessoa, quando a pessoa é caluniada. As vezes, a restau­ração total não é possível - como a perda da visão, audição, um membro ou a vida.

A justiça processual concerne à aplicação justa do método de resolver disputas ou queixas. A justiça processual é o princípio do processo devido. Quer dizer, a justiça processual enfatiza a impor­tância de um processo e a aplicação das regras do processo. Os casos mais notáveis da justiça processual são encontrados em nosso sistema legal. No sistema legal americano, por exemplo, a Corte Suprema tem uma regra que diz que as pessoas acusadas de crime devem, na ocasião em que são acusadas, ser informadas dos seus direitos conforme a lei. Quando um policial informa a um suspeito os seus direitos legais, o policial está obedecendo uma decisão baseada no princípio da justiça processual. Muitos aspectos de um julgamen­to criminal também baseiam-se no princípio da justiça processual. Quando um ju iz exclui uma declaração de testemunho sob o pretexto de que é “boato” , está implicitamente apelando ao princípio da justi­ça processual. Claro que ninguém pode garantir que toda aplicação das regras será desprovida de*predisposição; não se pode esperar que o princípio da justiça processual satisfaça tal critério alto. Em geral, a justiça processual só requer que o processo da aplicação das regras e a decisão dos casos seja tão justa quanto as condições permitam e consistentes de um caso para o outro ou de uma pessoa para a outra. Neste sentido, a justiça processual, como as outras formas de justiça, é essencialmente comparativa em natureza.

A justiça punitiva tem relação com a imposição justa de castigos e punições naqueles que cometem o dano. Um castigo ou punição “jus­ta” é aquele que, em algum sentido, é merecido pela pessoa que co­mete o dano. Quais são as condições sob as quais um transgressor merece ser castigado ou punido? Para começar, a pessoa deve ser diretamente ligada àquela que cometeu a transgressão. Se o vaso de crista l favorito de minha mãe fo i quebrado, então eu sou causativamente ligado ao vaso quebrado se eu o empurrei da mesa.

Mas dois outros fatores determinarão se mereço ser considera­do culpado por ter quebrado o vaso: controle e conhecimento. Geralmente, se tenho pleno controle de minhas ações e se sei o que estou fazendo, devo ser considerado completamente respon­sável por minhas ações. Se não tenho controle de minhas ações (digamos, alguém tropeçou em mim no exato momento em que eu estava estendendo a mão para pegar o vaso), então, falando de modo geral, eu não seria culpado.

Ou se sou ignorante de fatos específicos pertinentes à situação (digamos, eu não sabia que o chão perto da mesa estava molhado

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e escorregadio), então em geral eu não deveria ser considerado culpado por ter quebrado o vaso. Claro que negligência e ignorân­cia fingida podem ser fatores que, na verdade, aumentam meu ní­vel de responsabilidade. Como com outras formas de justiça, as comparações são importantes. Assim , uma vez que os fatos de um caso foram determinados e o nível de responsabilidade determinado, o tipo e a magnitude do castigo ou punição devem ser administrados de certa maneira consistente com outros casos semelhantes.

Todas as quatro categorias de justiça são encontradas nas Es­crituras. No Antigo Testamento, os dízimos eram em parte usados para atender as necessidades dos levitas e dos pobres - uma forma de justiça distributiva. No Novo Testamento, o Livro de Atos (Ca­pítulo 6) relata que, à medida que a igreja crescia em Jerusalém, uma reclamação surgiu entre os judeus helenistas contra os judeus nativos: Os judeus helenistas disseram que as suas viúvas esta­vam sendo negligenciadas no ministério diário da comida.

Consequentemente uma solução foi alcançada para assegurar que todas fossem tratadas com justiça no ministério da comida - novamente, uma forma de justiça distributiva. Um bom tanto da lei do Antigo Testamento explica o modo no qual as transações de terra deveriam ser feitas. Sob a lei levítica, a terra não podia ser vendida permanentemente; era considerada herança fam iliar irrevogável. Depois de um período de tempo, o primeiro dono podia comprá-la de volta. Mas para ser justo com o dono atual da terra, que poderia ter o prejuízo de perder parte do seu investimento, o preço da venda devia ser proporcional ao número de anos que o dono atual manteve o título de propriedade da terra (Levítico 25.13-17).

Obviamente, o princípio da justiça compensatória subjaz na argu­mentação deste assunto. Tanto o Antigo quanto o Novo Testamentos esboçam estratégias para garantir a justiça processual. Talvez o exem­plo mais proeminente aparece em Mateus 18.15-18, onde procedi­mentos são estabelecidos para ser expressados a alguém que pecou. Finalmente, o princípio da justiça punitiva (castigo merecido) apre­senta-se nos famosos casos, por exemplo, da destruição de Sodoma e Gomorra (Génesis 18) e da morte de Ananias e Safira (Atos 5).

L e i t u r a s A d ic io n a is S o b r e o T ó p ic o d a J u s t i ç a

FEIN B ER G , J o e l . S o c ia l P h il o so p h y . E n g le w o o d

C l i f f s , N o v a J e r s e y ; P r e n t i c e - H a l l , 1973.RAW LS, John. A Theory o f Justice. Cambridge, Massachusetts:

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