palomar

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5/19/2018 Palomar.-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/palomar 1/41 PALOMAR ÍTALO CALVINO ESCRITORES ESTRANGEIROS DA ACTUALIDADE Colecção dirigida por Eduardo Prado Coelo ITALO CALVINO Palo!ar Tradução de "oão Rei# PLANETA$AGOSTINI % &erdeiro# de I'alo Cal(i)o* +,-. /c Edi'orial Teore!a* Lda* Li#0oa C Edi'ora Pla)e'a DeAgo#'i)i* S1A1* Li#0oa $ 2//+* para a pre#e)'e edição Todo# o# direi'o# re#er(ado#1 T3'ulo origi)al4 Palo!ar I#0)4 ,52$565$657$6 Dep8#i'o legal4 +792-5:/+ I!pre##ão4 Rode#a ;Ro'a'i(a# de E#'ella* S1A1< Villa'uer'a ;Na(arra< Pri)'ed i) Spai) $ I!pre##o e! E#pa)a

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  • PALOMAR TALO CALVINO

    ESCRITORES ESTRANGEIROS DA ACTUALIDADE Coleco dirigida por Eduardo Prado Coelho

    ITALO CALVINO Palomar Traduo de Joo Reis PLANETA-AGOSTINI

    Herdeiros de Italo Calvino, 1985 0c Editorial Teorema, Lda, Lisboa C Editora Planeta DeAgostini, S.A., Lisboa - 2001, para a presente edio Todos os direitos reservados. Ttulo original: Palomar Isbn: 972-747-476-4 Depsito legal: 163287/01 Impresso: Rodesa (Rotativas de Estella, S.A.) Villatuerta (Navarra) Printed in Spain - Impresso em Espanha

  • NOTA BIOBIBLIOGRFICA

    talo Calvino nasceu em 1923, em Santiago de Las Vegas (Cuba) filho de pais italianos. Dois anos depois, a famlia regressou a Itlia. Estudou em Turim, e depois em Florena. Em 44, decidiu aderir ao Partido Comunista Italiano, e entrar activamente na resistncia antifascista. Daqui se pode dizer que a primeira fase da sua obra "neo-realista". Em 47, depois de mltiplas publicaes em revistas e jornais, lana o seu primeiro livro, O Atalho dos Ninhos de Aranha. Depois de ter participado nas polmicas polticas provocadas pela invaso da Hungria pelas tropas da Unio Sovitica, afasta-se do Partido Comunista Italiano, embora mantendo sempre uma posio de esquerda. Aps uma estadia de seis meses nos Estados Unidos da Amrica, casa-se em Cuba, em 62 com Esther Judith Singer, que havia conhecido em Paris. E em Paris que se instala a partir de 1967, estabelecendo ligaes com um movimento de matemticos e escritores que se chamava OULIPO (Ouvroir de Littrature Potentielle). Em 69 publica O Castelo dos Destinos Cruzados, e em 72 lana aquele que provavelmente o seu mais belo livro, e que desde ento tem marcado o imaginrio dos arquitectos contemporneos: As Cidades Invisveis, que uma demonstrao sublime do modo como as combinaes da escrita (Calvino inventa uma sucesso de cidades possveis) produzem uma multiplicidade infinita de espaos utpicos. Em 1979, publica uma das mais apaixonantes meditaes ficcionais sobre a natureza da prpria fico: Se numa Noite de Inverno um Viajante. Este livro revela ainda a sua aproximao lingustica e sobretudo lgica dos possveis narrativos que a semitica comeava a desenvolver. no mesmo esprito que vai recuperar inmeras narrativas da tradio popular. O ltimo livro publicado em vida foi precisamente Palomar, que uma obra feita de momentos, fragmentos, deslumbramentos, interrogaes interminveis, e que leva criao de uma personagem, Palomar, que ao mesmo tempo a ingenuidade em estado puro e a paixo do pensamento ilimitado. Curiosamente, o ltimo texto do livro intitula-se Como aprender a estar morto". Mas um outro livro, j pstumo, de Calvino - produto de seis conferncias solicitadas pela Universidade de Harvard - haveria de se tornar clebre: Lio Americanas, que uma anlise subtilssima das ideias que viriam a dominar este princpio do sculo. Morre em 85, na cidade de Siena. indiscutivelmente um dos grandes escritores italianos deste sculo.

  • Palomar

    1. As frias de Palomar

    1.1 Palomar na praia

    1.1.1 Leitura de uma onda O mar est levemente encrespado e pequenas ondas vm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de p, e observa uma onda. No se pode dizer que esteja absorto na contemplao das ondas. No est absorto, porque sabe muito bem aquilo que faz: pretende observar uma onda e observa-a. No est contemplando, porque para a contemplao necessrio um temperamento adequado, um estado de esprito adequado e um conjunto de circunstncias externas adequadas: e apesar do senhor Palomar no ter qualquer questo de princpio contra a contemplao., nenhuma destas trs condies se verifica no seu caso. Finalmente, no so as "ondas" que ele pretende observar, mas uma nica onda e basta: querendo evitar as sensaes vagas, estabelece para cada um dos seus actos um objectivo limitado e bem definido. O senhor Palomar v despontar uma onda l ao longe, v-a crescer, aproximar-se, mudar de forma e de cor, enrolar-se sobre si prpria, quebrar-se, desvanecer, refluir. Chegado a este ponto, poderia convencer-se de ter levado a cabo a operao que tinha decidido efectuar e poderia ir-se embora. Mas isolar uma onda, separando-a da onda que imediatamente se lhe segue e que parece empurr-la, e que por vezes a alcana e a arrasta consigo, muito difcil; assim como separ-la da onda que a precede e que parece arrast-la atrs de si em direco costa, salvo quando depois, eventualmente, se volta contra ela, como que para a deter. Se alm disso se considerar cada vaga no sentido do comprimento, paralelamente costa, difcil estabelecer at onde a frente que avana se estende com continuidade e onde se separa e se segmenta em ondas individualizadas, distinguveis pela velocidade, forma, fora, direco. Em resumo, no se pode observar uma onda sem ter em conta os aspectos complexos que concorrem para a sua formao e aqueles outros, igualmente complexos, a que essa mesma onda d lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que uma onda sempre diferente de uma outra onda; mas tambm verdade que cada onda igual a uma outra onda, mesmo que no seja aquela que lhe imediatamente contgua ou sucessiva; em resumo, existem formas e sequncias que se repetem, ainda que irregularmente distribudas no espao e no tempo. Como aquilo que o senhor Palomar pretende fazer neste momento simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todas as suas componentes sem descurar nenhuma delas, o seu olhar deter-se- no movimento da gua que bate na costa, at poder registar aspectos ainda no recolhidos anteriormente; assim que se aperceber de que as imagens se repetem, saber que viu tudo o que queria ver e ento poder parar. Homem nervoso, vivendo num mundo frentico e congestionado, o senhor Palomar tende a reduzir as suas relaes pessoais com o mundo exterior e para se defender da neurastenia generalizada, procura, tanto quanto possvel, manter as suas sensaes sob controlo. A crista da onda que avana levanta-se num ponto determinado, mais do que nos outros, e ali que comea a franjar-se de branco. Se isso acontece a uma certa distncia da costa, a espuma tem tempo de se enrolar sobre si prpria e de desaparecer de novo, como que engolida, para no mesmo momento tornar a envolver tudo, mas desta vez despontando de baixo, como um tapete branco que trepa pela praia acima para acolher a onda que est para chegar. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, verifica-se que j no h onda, mas somente o tapete, e mesmo este desaparece rapidamente, tornando-se uma cintilao de areia molhada que se retira veloz, como se fosse empurrada pela areia enxuta e opaca que faz avanar o seu limite ondulado. Ao mesmo tempo, torna-se necessrio considerar as reentrncias da linha frontal, onde a onda se divide em duas alas, uma que tende para a costa da direita para a esquerda e outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada desse seu divergir ou convergir esta

  • extremidade em negativo, que segue o avanar das ondas mas que sempre mantida mais atrs do que elas, sujeita ao seu alternado sobrepor-se, at ser alcanada por uma outra vaga mais forte, a qual enfrenta por sua vez o mesmo problema de divergncia/convergncia, e em seguida por uma outra ainda mais forte, que desfaz o redemoinho, rebentando com ele. Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia insinua na gua algumas lnguas de areia mal delineadas, que se prolongam em bancos submersos, daqueles que as mars fazem e desfazem a cada mar. Foi uma destas baixas lnguas de areia que o senhor Palomar escolheu como ponto de observao, porque as ondas batem nela obliquamente de um lado e do outro, e ao cavalgarem a superfcie semi-Submersa encontram-se com as que chegam do outro lado. Assim, para compreender como feita uma onda, h que ter em conta estes impulsos em direces opostas, que em certa medida se contrabalanam e em certa medida se vo somando, produzindo uma rebentao generalizada de todos os impulsos e contra-impulsos no rotineiro alastrar da espuma. O senhor Palomar procura agora limitar o seu campo de observao; se ele considerar um quadrado, digamos, de dez metros de mar, pode fazer um inventrio completo de todos os movimentos de ondas que ali se repitam com variadas frequncias, num dado intervalo de tempo. A dificuldade consiste em fixar os limites desse quadrado, porque se ele considerar, por exemplo, como o lado mais distante de si a linha mais proeminente de uma onda que avana, esta linha, ao aproximar-se dele e ao elevar-se, esconde aos seus olhos tudo aquilo que est por detrs dela; e eis que o espao tomado em considerao se inverte e se reduz ao mesmo tempo. De qualquer modo, o senhor Palomar no desanima e pensa, em cada momento, que viu tudo aquilo que podia ver a partir do seu ponto de observao; mas acaba por aparecer sempre qualquer coisa que ele no tinha tomado em considerao. No fora esta sua impacincia por alcanar um resultado completo e definitivo atravs da sua operao visual, o observar das ondas seria para ele um exerccio muito repousante e poderia salv-lo da neurose, do enfarte e da lcera gstrica. E talvez pudesse ser essa a chave para dominar a complexidade do mundo, reduzindo-a ao seu mecanismo elementar. Mas cada uma das tentativas para definir este modelo tem de se haver com uma onda longa, que sobrevm numa direco perpendicular rebentao e paralela costa, fazendo deslizar uma crista contnua que mal aflora superfcie. Os saltos das ondas, que se vo emaranhando em direco costa, no perturbam o impulso uniforme dessa crista compacta, que as corta em ngulo recto e que no se sabe para onde vai nem de onde venha. Talvez seja uma brisa de levante que faz mover a superfcie do mar perpendicularmente ao impulso profundo que chega das massas de gua situadas ao largo, mas esta onda que nasce do mar, recolhe tambm, ao passar, os impulsos oblquos que nascem da gua, desvia-os e f-los tomar a sua direco, e leva-os consigo. Continua assim a crescer e a ganhar fora, at que o choque com as ondas contrrias a extingue aos poucos, fazendo-a desaparecer, ou ento a torce, fazendo-a confundir-se com uma dessas muitas dinastias de ondas oblquas, atirada costa com elas. E Fixar a ateno sobre um pormenor f-lo saltar para o primeiro plano e invadir o quadrado, como no caso de certos desenhos em que basta fechar os olhos e reabri-los para que a perspectiva tenha mudado. Agora, neste cruzamento de cristas de variada orientao, o desenho global aparece fragmentado em painis que emergem e se desvanecem. Acrescente-se ainda que o reflexo de cada uma das ondas tem ele prprio a sua fora, que contraria as ondas que se lhe seguem. E se se concentrar a ateno sobre estes impulsos para trs, parece que o verdadeiro movimento aquele que parte da costa e vai em direco ao largo. Ser que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar est a chegar o de fazer correr as ondas em sentido oposto, o de inverter o tempo, o de apreender a verdadeira substncia do mundo, para l dos hbitos Sensoriais e mentais? No, ele chega apenas at ao ponto em que se experimenta um ligeiro sentimento de vertigem, nada mais. A obstinao que impele as ondas em direco costa acaba por vencer: de facto, as ondas cresceram enormemente. Ser o vento que est a mudar? Que desgraa seria se a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente construir se baralhasse e se quebrasse e se dispersasse. S se conseguir lembrar-se do conjunto de todos os aspectos que poder iniciar a segunda fase da operao: estender este conhecimento ao universo inteiro. Bastaria no perder a pacincia, o que no tarda a acontecer. O senhor Palomar afasta-se pela praia fora, com os nervos to tensos como quando chegara, e ainda mais inseguro acerca de tudo.

  • 1.1.2 O seio nu O senhor Palomar caminha ao longo de uma praia solitria. Encontra poucos banhistas. Uma mulher jovem est estendida na areia, apanhando sol com os seios descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte marinho. Sabe que em semelhantes circunstncias, quando um desconhecido se aproxima, as mulheres, geralmente, apressam-se a cobrir-se, e isso no lhe parece bem: porque aborrecido para a banhista que apanha sol tranquilamente; porque o homem que passa sente que importuna; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; porque as convenes no inteiramente respeitadas propagam a insegurana e a incoerncia no comportamento, em vez da liberdade da franqueza. Por isso, assim que v aparecer distncia a nuvem brnzeo-rsea de um torso nu feminino, apressa-se a colocar a cabea de molde a que a trajectria do seu olhar permanea suspensa no vazio, como garante do seu respeito cvico pela fronteira invisvel que circunda as pessoas. No entanto - pensa ele continuando a caminhar e, mal o horizonte se encontra desocupado, retomando o livre movimento do globo ocular - eu, assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu prprio acabo por reforar a conveno que considera ilcita a vista do seio, ou seja, instituo uma espcie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e aquele peito, o qual, a julgar pelo reflexo que dele chegou aos confins do meu campo visual, me pareceu fresco e agradvel vista. Em suma, o meu no olhar pressupe que estou a pensar naquela nudez, que me preocupo com ela, o que no fundo ainda uma atitude indiscreta e retrgrada. Regressando do seu passeio, Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta vez mantm o olhar fixo sua frente, de modo a que este aflore com uma imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a prdiga lua cheia de pele mais clara com a aurola castanha do mamilo, o perfil da costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o cu. A est - reflecte ele satisfeito consigo prprio, prosseguindo a sua caminhada - consegui fazer com que o seio fosse completamente absorvido pela paisagem e com que o meu olhar no tivesse mais peso do que o olhar de uma gaivota ou de um badejo. Mas ser verdadeiramente justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. - Ou no ser isso rebaixar a pessoa humana ao nvel das coisas, consider-la um objecto e, o que ainda pior, considerar como um objecto aquilo que na pessoa especfico do sexo feminino? No estarei eu talvez a perpetuar o velho hbito da supremacia masculina, enquistada atravs dos tempos numa insolncia rotineira? Volta-se e regressa sobre os seus prprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que, mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avana at aflorar a pele tensa, recua, como que avaliando com um ligeiro arrepio a consistncia diferente da viso e o valor especial que ela adquire, e fica por um momento a pairar no ar, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distncia, de uma forma evasiva mas simultaneamente protectora, para depois retomar o seu curso, como se nada se tivesse passado. Creio que assim a minha posio resulta bem clara - pensa Palomar - sem qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este sobrevoar do olhar no poderia acabar por ser entendido como uma atitude de superioridade, um subestimar daquilo que um seio e daquilo que ele significa, colocando-o, de algum modo, parte, margem, ou entre parntesis? L estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em que foi mantido por sculos de pudiccia sexo-manaca e de pecado de concupiscncia... Semelhante interpretao vai contra as melhores intenes de Palomar que, apesar de pertencer a uma gerao madura, para a qual a nudez do peito feminino era associada ideia de intimidade amorosa, aplaude no entanto esta mudana nos usos e costumes, quer pelo que ela significa como reflexo de uma mentalidade mais aberta, quer porque uma tal viso lhe particularmente grata, E esse apoio desinteressado que ele gostaria de conseguir exprimir no seu olhar. Faz meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direco da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo voluptuosamente a paisagem, deter-se- sobre os seios com especial ateno, mas apressar-se- a consider-los como parte de um arrebatamento de benevolncia e de gratido pelo todo, pelo sol e pelo cu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as nuvens e as algas, pelo cosmos que gira em

  • torno daqueles cumes aureolados. Tanto deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista solitria e para desembaraar o ambiente de ilaes deslocadas. Mas assim que ele volta a aproximar-se, hei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros, como se estivesse a fugir s molestas insistncias de um stiro. O peso-morto de uma tradio de maus costumes no permite que se apreciem com a devida justia as intenes mais iluminadas, conclui amargamente o senhor Palomar.

    1.1.3 A espada do sol O reflexo aparece no mar quando o sol desce: uma mancha ofuscante estende-se a partir do horizonte at costa, feita de mirades de cintilaes ondulantes; entre uma cintilao e outra, o azul opaco do mar ensombra a sua rede. Os barcos, brancos em contraluz, tornam-se negros, perdem consistncia e encolhem, como se tivessem sido consumidos por todas aquelas salpicadelas resplandecentes. a essa hora que o senhor Palomar, homem de hbitos nocturnos, d as suas braadas crepusculares. Entra na gua, afasta-se da costa, e o reflexo do sol transforma-se numa espada cintilante, que se estende pelo mar, do horizonte at ele. O senhor Palomar nada nessa espada, ou melhor dizendo, a espada permanece sempre diante de si, retrai-se a cada uma das suas braadas e nunca se deixa alcanar. Por onde quer que estenda os braos, o mar retoma a sua opaca cor crepuscular, que se estende por detrs dele at costa. Enquanto o sol desce em direco ao ocaso, o reflexo branco e incandescente vai-se tingindo de ouro e de cobre. E, para onde quer que o senhor Palomar se desloque, sempre ele o vrtice daquele tringulo dourado; a espada segue-o, apontando-o como um ponteiro de relgio que tem' por centro o sol. " uma homenagem pessoal que o sol me faz a mim pessoalmente", sente-se tentado a pensar o senhor Palomar, ou antes, o eu egocntrico e megalmeno que nele habita. Mas o eu depressivo, ou masoquista, que coexiste com o outro no mesmo invlucro, objecta: "Todos aqueles que tm olhos podem ver este reflexo que os segue; a iluso dos sentidos e da mente mantm-nos sempre a todos prisioneiros". Intervm ento um terceiro inquilino, um eu mais imparcial: "De qualquer modo, quer dizer que eu perteno ao grupo dos sujeitos sensveis e pensantes, capazes de estabelecerem uma relao com os raios solares e de interpretarem e avaliarem as percepes e as iluses". Todos os banhistas que nadam a esta hora em direco ao poente podem ver essa tira de luz que se dirige em direco a eles, para se apagar um pouco mais alm do ponto que as suas braadas conseguem alcanar; cada um deles possui um reflexo seu, que s para si tem aquela direco, e que se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da gua mais escuro. "Ser esse o nico dado no ilusrio, comum a todos, a escurido?" pergunta a si mesmo o senhor Palomar. Mas a espada impe-se igualmente ao olhar de cada um, no existe maneira de lhe fugir. "O que temos em comum precisamente aquilo que dado a cada um como exclusivamente seu?" As pranchas de wind surf deslizam na gua, cortando com rotas oblquas o vento de terra que se levanta a esta hora. Figuras erectas seguram o aro da vela com os braos esticados como se fossem archeiros, sustendo o ar que bate com violncia no pano. Quando atravessam o reflexo, as cores da vela ficam atenuadas, no meio do ouro que as envolve, e a silhueta dos corpos opacos parece entrar na noite. " Tudo isto no acontece no mar, nem no sol - pensa o nadador Palomar - mas sim dentro da minha cabea, nos circuitos entre os olhos e o crebro. Estou a nadar na minha mente; s dentro dela que a espada de luz existe; e exactamente isso que me atrai. este o meu elemento, o nico que, de alguma forma, eu posso conhecer". Mas pensa tambm: "No a posso alcanar, est sempre ali minha frente, no pode, ao mesmo tempo, estar dentro de mim e ser alguma coisa na qual eu nado, se a vejo porque estou fora dela e ela fica fora de mim". As suas braadas tornam-se pesadas e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocnio, em vez de lhe aumentar o prazer de nadar naquele reflexo, o est a estragar, como se lhe fizesse sentir uma limitao, ou uma culpa, ou uma condenao. E at uma responsabilidade qual no pode escapar: a espada s existe porque ele est ali; se ele se fosse embora, se todos os banhistas e nadadores voltassem para a praia, ou, mesmo, se se limitassem a voltar as costas ao sol, onde iria

  • parar a espada? Num mundo que se vai desfazendo, a coisa que ele gostaria de salvar a mais frgil: aquela ponte marinha entre os seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar perdeu a vontade de nadar; sente frio. Mas continua: agora ser obrigado a permanecer na gua at que o sol desaparea. E ento pensa: "Se eu vejo e penso e nado o reflexo, porque na outra ponta est o sol que lana os seus raios. S interessa a origem daquilo que : algo que o meu olhar no pode suster seno de uma forma atenuada, como neste pr-de-sol. Tudo o resto reflectido entre os reflexos, incluindo eu prprio". Passa o fantasma de uma vela; a sombra de um homem-mastro desliza entre as escamas luminosas. (Sem o vento, esta caranguejola, este amontoado articulado de plstico, ossos e tendes humanos, escotas de nylon, no se aguentaria de p; o vento que faz dela uma embarcao aparentemente dotada de uma especfica finalidade e inteno; s o vento sabe para onde vai o surf e o surfista), pensa ele. Que alvio sentiria se pudesse anular o seu eu parcial e cheio de dvidas na certeza de um princpio do qual tudo derivasse! Um princpio nico e absoluto, onde actos e formas encontrassem a sua origem? Ou ento um certo nmero de princpios distintos, linhas de fora cuja interseco desse uma forma ao mundo, tal qual ele aparece, nico, instante a instante? "... o vento" tambm, evidente, o mar, a massa de gua que o sustm, os slidos que andam a boiar e que flutuam, como eu e como a prancha", pensa o senhor Palomar boiando de costas. O seu olhar invertido contempla agora as nuvens errantes e as colinas nebulosas dos bosques. Tambm o seu eu est deitado sobre os elementos: o fogo celeste, o ar em movimento, a gua-bero e a terra-apoio. Ser esta a natureza? Mas nada do que ele v existe na natureza; o sol pe-se, o mar no tem aquela cor, as formas so aquelas que a luz projecta na retina. Executando com os seus membros movimentos que no so naturais, Palomar flutua por entre espectros; silhuetas humanas, em posies que no so naturais, ao deslocarem os seus pesos, no aproveitam o vento, mas antes uma abstraco geomtrica de um ngulo entre o vento e a inclinao de um instrumento artificial, e assim que deslizam sobre a pele lisa do mar. A natureza no existe? O eu nadador do senhor Palomar encontra-se imerso num mundo incorpreo, interseces de campos de foras, grficos vectoriais, feixes de redes que convergem, divergem, que se refractam. Mas dentro dele permanece um ponto no qual tudo existe de uma outra forma, como um n, como um cogulo, como um entupimento: a sensao de que estamos aqui, mas poderamos no estar, num mundo que poderia no estar aqui, mas est. Uma onda intrusa perturba a lisura do mar; um gasolina surge de repente e afasta-se veloz, espalhando nafta e saltando aos chapes sobre o seu casco. A pelcula de reflexos gordurosos e de cores cambiantes da nafta vai alastrando pela gua; aquela consistncia material que falta ao esplendor do sol no pode ser posta em dvida no caso deste rasto da presena fsica do homem, que dissemina a sua esteira de restos de carburante, detritos de combusto, resduos no assimilveis, misturando e multiplicando a vida e a morte sua volta. "Este o meu habitat - pensa Palomar - e no se trata de o aceitar ou de o excluir, porque s aqui neste meio posso existir". Mas se o destino da vida na terra j estivesse escrito? Se a corrida para a morte se tornasse mais forte do que qualquer possibilidade de recuperao? A vaga vai rolando, qual cavalo solitrio, at que se abate sobre a costa; e onde parecia nada haver para alm de areia, cascalho, algas e pequenssimas conchas, a gua que se retira deixa agora ver uma faixa de praia constelada de latas, de caroos, de preservativos, de peixes mortos, de garrafas de plstico, de socas partidas, de seringas, de veios negros de massa lubrificante. O senhor Palomar, que tambm foi empurrado pela vaga provocada pelo gasolina, arrastado pela mar de escrias, sente-se repentinamente como um destroo por entre destroos, cadver arrastado sobre as praias-caixotes-de-lixo de continentes-cemitrios. Se, para alm dos olhos vidrados dos mortos, nenhum outro olho voltasse a abrir-se sobre a face do globo aquoterrestre, a espada no voltaria a brilhar. Pensando bem, uma tal situao j no nova: durante milhes de sculos, os raios do sol poisavam sobre a gua, antes de existirem olhos capazes de os recolher. O senhor Palomar nada debaixo de gua; reemerge; l est a espada! Um dia, um olho sau do mar, e a espada, que j estava l sua espera, pde por fim exibir-se em toda a elegncia da sua

  • ponta aguda e do seu cintilante esplendor. Tinham sido feitos um para o outro, o olho e a espada: e talvez no tenha sido o nascimento do olho que fez nascer a espada, mas antes o inverso, j que a espada no podia prescindir de um olho que a olhasse do seu vrtice. O senhor Palomar interroga-se sobre o que seria o mundo sem ele: o mundo ilimitado de antes do seu nascimento, e o outro, bem mais sombrio, de depois da sua morte; tenta imaginar o mundo de antes dos olhos, de antes de qualquer olho; e um mundo que amanh se tornasse cego na sequncia de uma catstrofe ou de uma lenta corroso. Que acontece (aconteceu, acontecer) nesse mundo? Um dardo de luz parte do sol, pontual, reflecte-se no mar calmo, cintila no tremor da gua, e eis que a matria se torna receptiva em relao luz, que se diferencia transformando-se em tecidos vivos, e que, num abrir e fechar de olhos, uma multido de olhos floresce, ou refloresce... Agora todas as pranchas de surf recolheram praia e at mesmo o ltimo banhista. arrepiado - um banhista chamado Palomar - sai da gua. Est convencido de que a espada existir mesmo sem ele: finalmente, enxuga-se com uma toalha turca e regressa a casa.

    1.2 Palomar no jardim 1.2.1 Os amores das tartarugas H duas tartarugas no quintal: macho e fmea. Claque! Claque! As carapaas batem uma na outra. a estao dos amores. O senhor Palomar, sem ser visto, espreita. O macho empurra a fmea de lado, ao longo do degrau do passeio. Parece que a fmea resiste, ou pelo menos ope uma imobilidade um tanto ou quanto inerte. O macho mais pequeno e activo, dir-se-ia mais jovem. Tenta mont-la vrias vezes, por detrs, mas o dorso da carapaa inclinado e ele escorrega. Parece agora ter encontrado a posio ideal. Ataca com solavancos ritmados, entremeados por pausas; a cada solavanco emite um suspiro, quase um grito. A fmea tem as patas dianteiras espalmadas no cho, o que a leva a soerguer a parte traseira. O macho raspa com as patas anteriores a carapaa da fmea, estendendo o pescoo para a frente, esticando-se de boca aberta. O problema que existe com estas carapaas que no h onde agarrar e de resto as patas no conseguem agarrar nada. Agora ela foge dele e ele persegue-a. No que seja muito rpida, nem que esteja muito decidida a fugir-lhe: para a reter, ele d-lhe pequenas dentadas numa pata, sempre a mesma. Ela no se rebela. O macho, cada vez que ela pra, tenta mont-la, mas ela d um pequeno passo em frente e ele escorrega e bate com o membro no cho. um membro bastante comprido, em forma de gancho, com o qual se diria que ele a consegue alcanar, mau grado a espessura das carapaas que os separam e a postura desajeitada. Assim, no possvel dizer quantos destes assaltos so bem sucedidos, quantos falham, quantos so apenas jogo, teatro. Vero, o quintal est despido, com excepo de uma planta de jasmim verde existente a um canto. A corte consiste em dar uma srie de voltas ao pequeno prado, com perseguies e fugas e escaramuas, no das patas mas sim das carapaas, que chocam uma com a outra com um tique-taque surdo. E por entre os caules do jasmim que a fmea procura enfiar-se; pensa - ou quer dar a entender que o faz para se esconder; mas de facto, aquela a maneira mais segura de ficar bloqueada pelo macho, imobilizada, sem possibilidade de fuga. Agora provvel que ele tenha conseguido introduzir o membro como deve ser; mas desta vez permanecem ambos muito quietos, silenciosos. Quais possam ser as sensaes de duas tartarugas que acasalam coisa que o senhor Palomar no consegue imaginar. Observa-as com uma ateno fria, como se de duas mquinas se tratasse; duas tartarugas electrnicas, programadas para acasalarem. O que ser o eros quando no lugar da pele existem placas de osso e escamas crneas? Mas mesmo aquilo a que ns chamamos eros no ser talvez um programa das nossas mquinas corpreas, mais complicado, apenas porque a memria recolhe as mensagens de cada clula cutnea, de cada molcula dos nossos tecidos, e as multiplica, combinando-as com os impulsos transmitidos pela vista e com os que so suscitados pela imaginao? A diferena reside unicamente no nmero de circuitos envolvidos no processo: dos nossos receptores partem bilies de fios, ligados ao computador dos sentimentos, dos condicionamentos, dos laos de pessoa a pessoa... O cros um programa que se desenrola nos meandros electrnicos da mente, mas a mente tambm pele: pele tocada, vista, recordada. E as

  • tartarugas, fechadas no seu estojo insensvel? A penria de estmulos Sensoriais obriga-as talvez a uma vida mental concentrada, intensa, leva-as a um conhecimento interior cristalino... Talvez o eros das tartarugas siga leis espirituais absolutas, enquanto ns estamos prisioneiros de um maquinismo que no sabemos como funciona, sujeito a entupir-se, a encravar-se, a desencadear automatismos sem controlo... Compreender-se-o melhor a si mesmas as tartarugas? Aps uma dezena de minutos de acasalamento, as duas carapaas separam-se. Ela frente, ele atrs, recomeam a girar volta do prado. Agora o macho parece mais indiferente, de vez em quando aparenta uma certa agitao, dando uma patada na carapaa da fmea, pe-se por um momento em cima dela, mas sem muita convico. Voltam para debaixo do jasmim. Ele morde-lhe ligeiramente uma pata, sempre no mesmo ponto.

    1.2.2 O assobio do melro O senhor Palomar tem sorte numa coisa: passa o Vero num stio onde cantam muitos pssaros. Enquanto se encontra estendido numa cadeira de repouso e "trabalha" (de facto, tem ainda sorte numa outra coisa: poder dizer que trabalha em lugares e posies que se diriam do mais absoluto repouso; ou melhor dizendo, tem esta cruz: sentir-se obrigado a no parar nunca de trabalhar, mesmo quando est estendido sob as rvores, numa manh de Agosto) os pssaros, invisveis entre os ramos, espalham volta dele um repertrio das mais variadas expresses sonoras, envolvem-no num espao acstico irregular, descontnuo e requebrado, mas dentro do qual se estabelece um equilbrio entre os vrios sons, nenhum dos quais se eleva acima dos outros em intensidade ou frequncia, e todos se entrelaam num enredo homogneo, que no interligado pela harmonia, mas antes pela leveza e transparncia. At ao momento em que, na hora de maior calor, a feroz multido dos insectos acaba por impor o seu domnio absoluto sobre as vibraes do ar, ocupando sistematicamente as dimenses do tempo e do espao com o martelar ensurdecedor e ininterrupto das cigarras. O canto dos pssaros ocupa um espao varivel na ateno auditiva do senhor Palomar: ora o afasta como sendo uma das componentes do silncio de fundo, ora o concentra para distinguir cada canto, agrupando-os em categorias de crescente complexidade - chilros agudos, trilos de duas notas, uma breve e uma curta, chilreios breves e vibrados, assobios, cascatas de notas que se precipitam vertiginosamente e depois param de repente, encaracoladas modulaes que se enrolam sobre si prprias, e assim de seguida at aos gorjeios. O senhor Palomar no consegue chegar a uma classificao menos genrica: no uma daquelas pessoas que ao ouvir um canto sabem reconhecer a que pssaro pertence. Vive esta sua ignorncia como se fora uma culpa. O novo saber que o gnero humano vai adquirindo no compensa o saber que se propaga apenas pela transmisso oral directa, o qual, uma vez perdido, nunca mais se pode readquirir e retransmitir: nenhum livro pode ensinar aquilo que apenas se pode aprender na influencia, se se entrega o ouvido e o olho atentos ao canto e ao voo dos pssaros e se se encontra ento algum que pontualmente lhes saiba dar um nome. Ao culto da preciso nomenclativa e classificativa, Palomar tinha preferido a demanda contnua de uma preciso insegura no definir a modulao, o cambiante, o heterogneo: ou seja, o indefinvel. Hoje faria a escolha oposta; e, seguindo o fio dos pensamentos despertados pelo canto dos pssaros, a sua vida surge-lhe como uma sucesso de ocasies falhadas. Entre todos os cantos dos pssaros, destaca-se o assobio do melro, que no se confunde com nenhum outro. Os melros chegam ao fim da tarde: so dois, por certo um casal, talvez o mesmo do ano passado, de todos os anos por esta poca. Todas as tardes, ao ouvir um assobio de chamada, em duas notas, como se fosse uma pessoa que quer assinalar a sua chegada, o senhor Palomar levanta a cabea para ver quem que o est a chamar; depois lembra-se de que a hora dos melros. No tarda a entrev-los: caminham sobre o prado, como se a sua verdadeira vocao fosse a de bpedes terrestres e se divertissem a estabelecer analogias com o homem. O assobio dos melros tem isso mesmo de especial: idntico a um assobio humano, de algum que no seja particularmente hbil a assobiar, mas a quem acontea, de quando em quando, ter um bom motivo para assobiar, e que o faa uma nica vez, sem inteno de continuar, e num tom decidido, mas modesto e afvel, de modo a granjear-lhe a benevolncia de quem o escuta. Pouco depois, o assobio repetido - pelo mesmo melro ou pelo seu cnjuge - mas sempre como se fosse a primeira vez que lhe passasse pela mente assobiar; se um dilogo, ento cada deixa

  • chega aps uma longa reflexo. Mas ser um dilogo ou ser que cada melro assobia para si prprio e no para o outro? E, em qualquer dos casos, trata-se de perguntas e respostas (ao outro ou a si prprio) ou trata-se de confirmar alguma coisa (a sua presena, a pertena espcie, ao sexo, ao territrio)? Talvez que o valor daquela nica palavra resida no facto de ser repetida por um outro bico assobiante, no facto de no ser esquecida durante o intervalo de silncio. Ou, ento, todo o dilogo consiste em dizer ao outro "eu estou aqui", e o comprimento das pausas junta frase um significado de "ainda", como que a dizer: "eu ainda estou aqui, continuo a ser eu". E se estivesse na pausa e no no assobio o significado da mensagem? Se fosse no silncio que os melros falam uns com os outros? (O assobio seria neste caso um mero sinal de pontuao, uma frmula como "terminado"). Um silncio aparentemente igual ao urro silncio poderia exprimir cem intenes diferentes; tambm um assobio, por outro lado; falar-se, calando-se ou assobiando, sempre possvel; o problema entender-se. Ou ento ningum pode entender ningum: cada melro pensa ter posto no assobio um significado fundamental para si mas que s ele prprio entende; o outro responde qualquer coisa que no tem nenhuma relao com aquilo que ele disse; um dilogo entre surdos, uma conversa sem ps nem cabea. Mas os dilogos humanos sero porventura algo de diferente? A senhora Palomar encontra-se igualmente no jardim, a regar as vernicas. Diz: - Hei-los - enunciao pleonstica (subentende-se que o marido j est a observar os melros) ou ento (se ele no os tiver visto) incompreensvel, mas que destinada, de qualquer modo, a estabelecer a sua prpria prioridade na observao dos melros (porque efectivamente foi ela a primeira a descobri-los e a assinalar os seus hbitos ao marido) e a sublinhar a infalibilidade das'suas aparies, que foram j registadas por ela inmeras vezes. - Psiu! - faz o senhor Palomar, aparentemente para impedir que a sua mulher os assuste falando em voz alta (recomendao intil, porque os melros marido e mulher esto j habituados presena dos senhores Palomar marido e mulher) mas na realidade para contestar a vantagem da mulher, demonstrando uma ateno pelos melros muito maior do que a dela. Ento a senhora Palomar diz: - Desde ontem que est novamente seca - referindo-se terra do canteiro que est a regar, comunicao em si mesma suprflua, mas que destinada a demonstrar, ao continuar a falar e a mudar de assunto, uma confiana com os melros muito maior e mais desenvolvida do que a do marido. O senhor Palomar, de qualquer modo, extrai desta troca de frases um quadro geral de tranquilidade, e fica grato mulher por esse facto, porque se ela lhe confirma que de momento no existe nada de mais grave com que se preocupar, ele pode ficar absorvido no seu trabalho (ou pseudotrabalho, ou hipertrabalho). Deixa passar um minuto e tenta por sua vez enviar uma mensagem reconfortante, para informar a mulher de que o seu trabalho (ou infratrabalho ou ultratrabalho) prossegue como de costume; com este fim, imite uma srie de sopros e resmungos: - ... correu mal... com tudo o que... do princpio... sim, com o caraas... - enunciaes que no seu conjunto transmitem tambm a mensagem "estou muito ocupado", para o caso de a ltima observao da mulher conter tambm uma velada censura do tipo: "tu tambm poderias pensar em regar o jardim de vez em quando". O pressuposto destas trocas verbais a ideia de que um perfeito entendimento entre cnjuges permite compreender-se sem estar a especificar tudo tintim-por-tintim; mas este princpio posto em prtica por cada um deles de modos muito diferentes: a senhora Palomar exprime-se com frases inteiras, mas que so frequentemente alusivas ou sibilinas, destinadas a pr prova a rapidez das associaes mentais do marido e a sintonia dos pensamentos dele com os dela (coisa que nem sempre funciona); o senhor Palomar, pelo contrrio, deixa que das brumas do seu monlogo interior emirjam vagos sons articulados, esperando que deles possa resultar, se no a evidncia de um sentido completo, pelo menos a penumbra de um estado de alma. Pelo seu lado, a senhora Palomar recusa-se a receber estes resmungos como uma conversa e para sublinhar a sua no participao diz em voz baixa: - Psiuuuu! Vais assust-los... - devolvendo ao marido o silncio que ele se tinha julgado no direito de lhe contrapor e reconfirmando a sua prpria primazia em relao ateno aos melros. Tendo marcado este ponto a seu favor, a senhora Palomar afasta-se. Os melros debicam no prado e por certo consideram o dilogo dos cnjuges Palomar como o equivalente dos seus assobios. Mais valia que nos limitssemos a assobiar, pensa ele. Abre-se aqui uma perspectiva de pensamentos muito prometedora para o senhor Palomar, o qual vive a discrepncia existente entre

  • o comportamento humano e o resto do universo como uma constante fonte de angstia. E eis que o assobio igual, do homem e do melro, lhe surge como uma ponte lanada sobre o abismo. Se o homem investisse no assobio tudo aquilo que normalmente confia palavra e se o melro modulasse no seu assobio todo o no dito da sua condio de ser natural, estaria dado o primeiro Passo para preencher a distncia entre... entre o qu e o qu? Natureza e cultura? Silncio e palavra? O senhor Palomar espera sempre que o silncio contenha alguma coisa mais do que aquilo que a linguagem pode dizer. Mas se a linguagem fosse realmente o ponto de chegada para que tende tudo aquilo que existe? Ou se tudo aquilo que existe fosse linguagem, logo desde o incio dos tempos? Nesta altura o senhor Palomar volta a ser assaltado pela angstia. Aps ter ouvido atentamente o assobio do melro, experimenta repeti-lo, o mais fielmente que consegue. Segue-se' um silncio perplexo, tal como se a sua mensagem exigisse um atento exame; a seguir ecoa um assobio igual, que o senhor Palomar no sabe se uma resposta ou a prova de que o seu assobio to diferente que os melros no so minimamente perturbados por ele e retomam o dilogo entre si como se nada fosse. Continuam a assobiar e a interrogar-se perplexos, ele e os melros.

    1.2.3 O prado infinito Em redor da casa do senhor Palomar existe um prado. No se trata de um stio onde, naturalmente, devesse haver um prado: logo, o prado um objecto artificial, composto por objectos naturais, isto , ervas. O prado tem por fim representar a natureza e esta representao faz-se substituindo a natureza prpria daquele lugar por uma natureza que em si mesma natural, mas que artificial em relao quele lugar, Em suma: custa. O prado exige despesa e fadigas sem fim: para ser semeado, regado, estrumado, desinfestado, cortado. O prado constitudo por luzema, joio e trevo. Esta a mistura, em partes iguais, que foi espalhada sobre o terreno no momento da semeadura. A luzerna, an e rastejante, cedo levou a melhor sobre as outras; o seu tapete de folhinhas redondas e macias vai alastrando, agradvel ao p e vista. Mas a espessura do prado dada pelas lanas afiadas do joio, se no forem demasiado ralas e se no se deixarem crescer demasiado sem se lhes dar uma aparadela. O trevo desponta irregularmente, aqui dois tufos, acol nada, mais alm um ror; cresce vioso at que sucumbe, porque a hlice da folha pesa demasiado sobre o caule tenro e acaba por o vergar. O corta-relva procede tonsura com uma trepidao ensurdecedora; um suave odor de feno fresco inebria o ar; a erva nivelada reencontra a sua eriada infncia, mas a mordedura das lminas revela descontinuidades, clareiras peladas, manchas amarelas. Para fazer boa figura, o prado deve ser uma extenso de terreno verde e uniforme: resultado no-natural, que naturalmente alcanam os prados desejados pela natureza. Aqui, observando ponto por ponto, descobrem-se os stios onde o repuxo de molinete do regador no chega, onde ele bate em jacto contnuo e onde acabam por ser as ervas daninhas que se aproveitam de uma rega adequada. O senhor Palomar est a arrancar as ervas daninhas, acocorado sobre o prado. Um dente-de-leo adere ao terreno com uma base de folhas dentadas densamente sobrepostas; se se puxa pelo caule, fica-se com ele na mo, enquanto as razes permanecem enterradas na terra. necessrio apoderar-se de toda a planta com um movimento ondulante da mo e desenfiar delicadamente os filamentos da terra, arrastando eventualmente torres de terra e fios definhados da erva do prado, meio sufocados pelo vizinho invasor. Depois preciso deitar o intruso num lugar onde no possa voltar a deitar razes nem espalhar sementes. Quando se comea a arrancar uma erva-daninha, imediatamente se v despontar uma outra mais alm, e uma outra, e uma outra ainda. Em poucas palavras, aquela nesga de tapete herbceo que parecia exigir apenas alguns retoques revela-se afinal uma selva sem lei. Restam apenas ervas daninhas? Pior ainda: as ervas daninhas esto de tal maneira emaranhadas nas boas que no se consegue enfiar as mos no meio para puxar. Dir-se-ia que se criou um pacto de cumplicidade entre as ervas de semeadura e as ervas selvagens, um afrouxamento das barreiras impostas pelas desigualdades de nascimento, uma tolerncia resignada em relao degradao. Algumas ervas espontneas, por si s, no tm de modo algum um aspecto malfico ou insidioso. Porque no admiti-las no nmero das que pertencem ao prado de pleno direito, integrando-as na comunidade das que foram cultivadas? este o caminho que leva a abdicar do "prado inglesa" e a contentar-se com o "prado rstico", abandonado a si prprio. "Mais tarde ou

  • mais cedo ser necessrio optar por esta deciso", pensa o senhor Palomar, mas sente que estaria a ceder numa questo de princpio. Uma chicria, uma borragem, entram repentinamente no seu campo de viso. Arranca-as. claro que arrancar uma erva daninha aqui e ali no resolve nada. Seria necessrio proceder assim - pensa ele tomar um quadrado de prado de um metro por um metro e limp-lo at no ficar a mais nfima presena que no fosse trevo, joio ou luzerna. Em seguida, passar a um outro quadrado. Ou ento no, deter-se sobre um quadrado tipo. Contar quantos fios de erva existem, de que espcies so, quanto so densos e como esto distribudos. Na base deste clculo, chegar-se- a um conhecimento estatstico do prado, estabelecido o qual... Mas contar fios de erva intil, no se chegar nunca a saber o seu nmero. Um prado no tem limites bem definidos; surge uma orla onde a erva cessa de crescer mas h ainda fios espalhados que despontam mais alm, depois aparece um tufo verde e espesso, depois uma faixa mais rala: fazem ainda parte do prado ou no? Noutro lado, o mato penetra no prado: no se pode dizer o que prado e o que moita. Mas at nos stios onde no h mais nada alm da erva, nunca se sabe em que ponto se pode parar de contar: entre plantinha e plantinha h sempre um rebento de folhinha que mal aflora a terra e que tem por raiz um pelo branco que quase no se v; um minuto antes podia-se desprez-la, mas dentro em breve teremos que a contar como s outras. Entretanto, dois outros fios de erva que ainda h pouco pareciam apenas um tanto ou quanto amarelecidos, esto agora definitivamente fanados e deveriam ser eliminados da contagem. Depois existem as fraces de fios de erva, cortados ao meio, ou rentes ao solo, ou rasgados ao longo das nervuras, as folhinhas que perderam um dos lobos... Os decimais somados no fazem um nmero inteiro, continuam a ser uma diminuta devastao herbcea, em parte ainda viva, em parte j espapaada, alimento de outras plantas, hmus... O prado um conjunto de ervas - assim se deve colocar o problema - que inclui um subconjunto de ervas espontneas, ditas daninhas; uma interseco dos dois subconjuntos constituda pelas ervas nascidas espontaneamente mas que so pertencentes s espcies cultivadas, logo, indistinguveis destas ltimas. Os dois subconjuntos, por sua vez, incluem as vrias espcies, cada uma das quais um subconjunto ou, melhor dizendo, um conjunto que inclui o subconjunto dos seus prprios elementos que pertencem igualmente ao prado e o subconjunto dos que so exteriores ao prado. Sopra o vento, voam as sementes e os plens, as relaes entre os conjuntos subvertem-se... Palomar passou j a uma nova linha de pensamentos; ser "o prado" aquilo que ns vemos ou ser que vemos uma erva, mais uma erva, mais uma erva... ? Aquilo a que chamamos "ver o prado" no mais do que um efeito dos nossos sentidos aproximativos e grosseiros; um conjunto existe apenas quando formado por elementos diferenciados. No vale a pena cont-los, o nmero no interessa; o que interessa alcanar, com uma nica olhadela, cada uma das plantinhas, individualmente, nas suas peculiaridades e diferenas. E no basta v-las: necessrio pens-las. Em vez de pensar "prado", pensar aquele caule com duas folhas de trevo, aquela folha lanceolada um tanto ou quanto amarrecada, aquele corimbo fininho... Palomar est distrado, deixou de arrancar as ervas daninhas, j no est a pensar no prado: pensa no universo. est a tentar aplicar ao universo tudo aquilo que pensou a propsito do prado. O universo como cosmos regular e ordenado ou como proliferao catica. O universo que talvez seja finito mas que inumervel, instvel nos seus confins, que se abre dentro de si a outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeiras, campos de fora, interseces de campos, conjunto de conjuntos...

    1.4 Palomar observa o cu

    1.4.1 Lua da tarde Ningum olha a lua da tarde, e exactamente naquele momento que ela teria maior necessidade do nosso interesse, dado que a sua existncia no est ainda assegurada. uma sombra esbranquiada que desponta do azul intenso de um cu carregado de luz solar; quem nos garante que conseguir, uma vez mais, tomar forma e ganhar brilho? to frgil e plida e franzina; s um dos seus lados comea agora a conquistar um contorno, claro como um arco de foice, o resto permanece ainda embebido de azul celeste. como uma hstia transparente, ou como uma pastilha semi-dissolvida; s que aqui o crculo branco no se est a dissolver, mas sim a

  • concentrar-se, agregando-se custa de manchas e sombras cinzento-azuladas, que no se percebe se pertencem superfcie lunar ou se so restos de baba do cu, que todavia impregnam o satlite, poroso como uma esponja. Nesta fase o cu, ainda qualquer coisa de muito compacto e concreto, e no podemos estar seguros se da sua superfcie tensa e ininterrupta que se vai destacando aquela forma redonda e esbranquiada, com uma consistncia pouco mais slida do que a das nuvens, ou se, pelo contrrio, se trata de uma corroso do pano de fundo, uma malha cada da cpula, uma brecha que se abre sobre o nada que se queda por detrs. A incerteza acentuada pela irregularidade da figura, que por um lado vai adquirindo relevo (onde tm maior incidncia os raios do sol declinante) e pelo outro se mantm numa espcie de penumbra. E, dado que o limite entre as duas zonas no bem definido, o efeito resultante no o de um slido visto em perspectiva, mas antes o de uma daquelas figurinhas que representam a lua nos calendrios, onde um perfil branco aparece destacado dentro de um pequeno crculo escuro. Nada haveria a objectar a tudo isto, se se tratasse de uma lua no primeiro quarto e no de uma lua cheia, ou quase. Mas exactamente sob esta ltima forma que ela se est revelando, medida que o seu contraste em relao ao cu se vai tornando mais forte e que a sua circunferncia se vai desenhando com maior clareza, ostentando apenas algumas amolgadelas no bordo de levante. . preciso dizer que o azul do cu se foi sucessivamente tingindo de roxo, de violeta (os raios do sol tornaram-se vermelhos) em seguida de cinzento e de pardo e, a cada mudana de cor, a brancura da lua recebeu um empurro para sobressair mais decidida, enquanto dentro dela a parte luminosa ganhou extenso, at acabar por cobrir todo o disco. como se as fases que a lua atravessa num ms fossem percorridas no interior desta lua cheia, nas horas que decorrem entre o seu nascimento e o seu desaparecimento, com a diferena de que a forma redonda fica mais ou menos toda ela vista. As manchas continuam no meio do crculo, alis, os seus claros-escuros tornam-se mais contrastados em relao luminosidade do resto, mas agora no h dvida de que a lua que os traz consigo, como livores ou equimoses, e j no se pode pensar que eles so transparncias sobre o pano de fundo celeste, rasges no manto de um fantasma de lua sem corpo. Alis, o que permanece agora incerto se este ganhar em evidncia e (digamo-lo) em esplendor se deve ao lento recuar do cu, que quanto mais se afasta mais mergulha na obscuridade, ou se pelo contrrio a lua que est a avanar, recolhendo a luz precedentemente dispersa sua volta e privando dela o cu, concentrando-a toda na redonda boca do seu funil. E sobretudo estas mutaes no devem fazer esquecer que o satlite, entretanto, se foi movendo no cu, prosseguindo para poente e para o alto. A lua o mais mutvel dos corpos do universo visvel e o mais regular nos seus complicados hbitos: nunca falta aos seus encontros e pode-se sempre esper-la no caminho; mas se a deixas num stio encontraria noutro e se te lembras da sua cara virada para um lado, hei-la que j mudou de pose, por pouco ou muito que seja. De qualquer forma, se a seguirmos passo a passo, no nos apercebemos de que ela nos vai imperceptivelmente fugindo. S as nuvens contribuem para criar a iluso de uma corrida ou de metamorfoses rpidas, ou melhor, para dar uma vistosa evidncia quilo que de outro modo se furtaria ao olhar. Corre a nuvem, de cinzenta que em passou a ser leitosa e brilhante, o cu atrs dela tornou-se negro, noite, as estrelas acenderam-se, a lua um grande espelho resplandecente que voa. Quem reconheceria agora nela a lua de algumas horas atrs? Agora um lago de luminosidade, que espalha raios de luz, sua volta, entornando no escuro um halo de fria prata e inundando de branca luz o caminho dos noctvagos. No restam dvidas de que aquela que agora comea uma esplndida noite de plenilnio de inverno.. Nesta altura, tendo-se assegurado de que a lua j no necessita dele, o senhor Palomar regressa a casa.

    1.4.2 O olho e os planetas O senhor Palomar, tendo sabido que este ano durante todo o ms de Abril os planetas "exteriores", visveis a olho nu (mesmo para um mope e astigmtico como ele) se encontram os trs "em oposio", logo, visveis ao mesmo tempo durante toda a noite, apressa-se a sair para o terrao. O cu est claro, devido lua cheia. Marte, apesar de estar perto do grande espelho lunar inundado de luz branca, avana imperiosamente, com o seu fulgor obstinado, com o seu amarelo concentrado e denso, diferente de todos os outros amarelos do firmamento, ao ponto de se acabar

  • por se decidir chamar-lhe vermelho e, nos momentos mais inspirados, acaba-se mesmo por o ver vermelho. Fazendo descer o olhar, prolongando em direco ao levante um arco imaginrio que deveria unir Regulus Spica (mas Spica quase no se v), distingue-se muito bem Saturno, com a sua luz branca e fria, e mais abaixo ainda, Jpiter, no momento do seu mximo esplendor, com uma luminosidade "de um amarelo vigoroso que tende para o verde. As estrelas existentes sua volta empalideceram todas, com excepo de Arcturus, que brilha com ar de desafio um pouco mais alto, na direco do oriente. Para aproveitar o melhor possvel a tripla oposio planetria, indispensvel munir-se de um telescpio. O senhor Palomar, talvez porque tem o mesmo nome que um famoso observatrio, goza de algumas amizades entre os astrnomos, e -lhe assim permitido aproximar o nariz de um telescpio de 15 cm, ou seja, um telescpio bastante pequeno para fazer uma pesquisa de tipo cientfico, mas que, comparado com os seus culos, representa j uma notvel diferena. Marte, por exemplo, visto ao telescpio, revela-se como um planeta bem mais complexo do que parece ser a olho nu: aparenta ter muitas coisas a comunicar, das quais apenas se consegue focalizar uma pequena parte, tal como num discurso gaguejado e entremeado pela tosse. Um halo escarlate emerge em redor da sua orla; pode-se procurar elimin-lo regulando um parafuso, para fazer aparecer a pequena crosta de gelo do plo inferior; h manchas que aparecem e desaparecem sobre a superfcie do planeta, como se fossem nuvens ou aberturas entre nuvens; uma delas estabiliza-se sob a forma e na posio da Austrlia e o senhor Palomar convence-se de que quanto mais distinta se v essa Austrlia mais a objectiva est focada; mas ao mesmo tempo apercebe-se de que est a perder outras sombras de coisas que lhe parecia ver ou que se sentia impelido a ver. Em suma, parece-lhe que se Marte aquele planeta sobre o qual, a partir de Schiapparelli, se disse tanta coisa, causando alternadamente iluses e desiluses, isso coincide com a dificuldade em estabelecer uma relao com ele, tal como com uma pessoa de carcter difcil. (A no ser que a dificuldade de carcter no esteja toda do lado do senhor Palomar; em vo que ele tenta reagir subjectividade procurando refgio entre corpos celestes). Bem diferente a relao que se estabelece com Saturno, o planeta que mais emoes d a quem o observa atravs de um telescpio: hei-lo nitidssimo, branqussimo, exactos os contornos da esfera e do anel; uma srie de ligeiros sulcos paralelos listra a esfera; uma circunferncia mais escura separa a borda do anel; este telescpio quase no capta outros detalhes, acentuando assim a abstraco geomtrica do objecto; a sensao de uma lonjura extrema, em vez de se atenuar, acentua-se ainda mais do que a olho nu. Que exista a girar no cu um objecto to diferente de todos os outros, uma forma que atinge o mximo da estranheza com o mximo de simplicidade e da regularidade e da harmonia, um facto que alegra a vida e o pensamento. " Se o tivessem podido ver como eu o vejo agora - pensa o senhor Palomar - os antigos teriam pensado que tinham estendido o seu olhar at ao cu das ideias de Plato, ou at ao espao imaterial dos postulados de Euclides; em vez disso, sabe-se l porque extravio, esta imagem chega at mim, a mim que temo que ela seja demasiado bela para ser verdadeira, demasiado aceite pelo meu universo imaginrio para poder pertencer ao mundo real. Mas talvez seja exactamente esta desconfiana em relao aos nossos sentimentos que nos impede de nos sentirmos vontade no universo. Talvez que a primeira regra que me devo impor seja esta: ater-me ao que vejo." Agora parece-lhe que o anel oscila ligeiramente, ou ento o planeta dentro do anel e que ambos rodam sobre si prprios: na realidade, a cabea do senhor Palomar que oscila, j que ele se v obrigado a torcer o pescoo para enfiar o olhar na ocular do telescpio; mas no lhe passa pela cabea desmentir perante si mesmo esta iluso, que coincide com a sua expectativa tal como coincide com a verdade natural. Saturno realmente assim. Depois da expedio do "Voyager 2", o senhor Palomar tem seguido tudo aquilo que se escreveu sobre os anis: que so feitos de partculas microscpicas; que so feitos de blocos de gelo separados por abismos; que as divises entre os anis so sulcos em que giram os satlites, varrendo a matria e concentrando-a aos lados, tal como ces pastores que correm volta de um rebanho para o manter compacto; seguiu a descoberta dos anis

  • entrelaados, que depois se revelaram serem crculos simples muito mais finos; e a descoberta de estrias opacas, dispostas como os raios de uma roda, mais tarde identificadas como nuvens geladas. Mas as novas descobertas no desmentem esta figura essencial, que no diferente daquela que foi vista em primeiro lugar por Gian Domenico Cassini em 1676, descobrindo a diviso existente entre os anis, a qual tomou o seu nome. Naquelas circunstncias, natural que uma pessoa diligente, como o senhor Palomar, se tenha documentado atravs de enciclopdias e manuais. Agora Saturno, objecto sempre novo, apresenta-se ao seu olhar, renovando a primeira descoberta, e faz pena pensar que Galileu, com a sua desfocada luneta, no tenha chegado a fazer dele mais do que uma ideia confusa, de corpo trplice ou de esfera com duas asas, e que quando se encontrava prestes a perceber como ele era de facto feito, lhe tivesse faltado a vista e tudo se tivesse afundado na escurido. Fixar durante demasiado tempo um corpo luminoso cansa a vista; o senhor Palomar fecha os olhos; passa a Jpiter. Na sua mole majestosa, sem ter um ar pesado, Jpiter ostenta duas faixas equatoriais, como um xaile guarnecido de bordados entrelaados, de um verde celeste. Os efeitos de gigantescas tempestades atmosfricas traduzem-se por um desenho ordenado e calmo de elaborada sobriedade. Mas a verdadeira magnificncia deste luminoso planeta, so os seus cintilantes satlites, que se encontram agora os quatro vista, ao longo de uma linha oblqua, como um ceptro resplandecente de jias. Descobertos por Galileu e por ele apelidados de Medicea sidera, "astros dos Mdcis", rebatizados pouco mais tarde com nomes ovidianos - lo, Europa, Ganimedes, Calisto por um astrnomo holands, os pequenos planetas de Jpiter parecem irradiar um ltimo fulgor do Renascimento neoplatnico, como se ignorassem que a ordem impassvel das esferas celestes se desfez, exactamente graas ao seu descobridor. Um sopro de classicismo envolve Jpiter; fixando-o no telescpio, o senhor Palomar fica espera de uma transfigurao olmpica. Mas no consegue manter ntida a imagem; tem que fechar as plpebras por um momento, deixar que a pupila encandeada reencontre a sua percepo exacta dos contornos, das cores, das sombras, mas tambm tem de permitir sua imaginao que se dispa das roupagens que no so as suas, que renuncie a exibir um saber livresco. Se justo que a imaginao venha em socorro da fraqueza da vista, ela deve ser instantnea e directa como o olhar que a acende. Qual era a primeira semelhana que lhe tinha ocorrido e que tinha posto de lado por incongruente? Tinha visto o planeta ondular com os satlites em fila, como bolhinhas de ar que se desprendem das guelras de um redondo peixe dos abismos, luminescente e listrado... Na noite seguinte, o senhor Palomar volta ao terrao, para rever os planetas a olho nu: a grande diferena que agora obrigado a ter em conta as propores entre o planeta, o resto do firmamento espalhado por todos os lados no espao escuro e ele que olha, coisa que no acontece se a relao entre o objecto separado, planeta focado pela lente, e ele sujeito, num ilusrio frente a frente. Ao mesmo tempo, recorda de cada planeta a imagem detalhada vista na noite anterior e procura inseri-la naquela minscula mancha de luz que perfura o cu. Espera assim ter-se apropriado verdadeiramente do planeta, ou pelo menos da parte de um planeta que pode entrar dentro de um olho.

    1.4.3 A contemplao das estrelas Quando est uma bela noite estrelada, o senhor Palomar diz: - Tenho que ir observar as estrelas. - Diz exactamente: - Tenho que - porque odeia os desperdcios e pensa que no justo desperdiar toda aquela quantidade de estrelas que posta sua disposio. Tambm diz "Tenho que" porque no tem muita prtica de como se observam as estrelas, e este simples acto custa-lhe sempre um certo esforo. A primeira dificuldade a de encontrar um local a partir do qual o seu olhar possa dilatar-se por toda a cpula celeste, sem obstculos e sem a invaso da luz elctrica; por exemplo, uma praia solitria numa costa muito baixa. Outra condio necessria a de levar consigo um mapa astronmico, sem o qual no saberia o que est a observar; no entanto, entre uma observao e a seguinte, esquece-se de como se faz para orientar esse mapa e por isso tem de voltar a estud-lo, antes de comear, durante uma boa meia hora. Para decifrar o mapa s escuras tem tambm que levar consigo uma lanterna de bolso.

  • Os frequentes confrontos entre o cu e o mapa obrigam-no a acender e a apagar a luzinha, e nestas passagens da luz escurido ele fica quase cego e tem de readaptar a vista inmeras vezes. Se o senhor Palomar fizesse uso de um telescpio, as coisas seriam mais complicadas sob certos aspectos e simplificadas sob outros; mas, neste momento, a experincia do cu que lhe interessa, a experincia do olho nu, como a dos antigos viajantes e a dos pastores errantes. Olho nu, para ele que mope, significa culos; e como para ler o mapa tem de tirar os culos as operaes complicam-se com este levantar e baixar dos culos sobre a fronte e comportam a espera de alguns segundos at que o seu cristalino consiga focar as estrelas verdadeiras ou as escritas. No mapa, os nomes das estrelas esto escritos a preto sobre fundo azul, e preciso encostar a lanterna acesa mesmo em cima da folha para os distinguir. Quando se levanta o olhar para o cu, vemo-lo negro, semeado de vagos clares; s a pouco e pouco as estrelas se fixam e se dispem em desenhos precisos, e quanto mais se olha, mais se vem despontar. Acrescente-se que os mapas celestes que ele necessita de consultar so dois, alis, quatro: um mapa muito sinttico do cu naquele ms, que apresenta separadamente o hemisfrio norte e o hemisfrio sul; e um outro do firmamento, muito mais detalhado, que mostra numa longa faixa as constelaes de todo o ano para a parte mdia do cu, em torno do horizonte, ao passo que as da calote que circunda a Estrela Polar esto includas num mapa circular anexo. Em resumo, o acto de localizar uma estrela implica uma comparao entre os vrios mapas e a abbada celeste, com todos os actos correlativos: o tirar e pr dos culos, o acender e apagar a lanterna, o desdobrar e voltar a dobrar o mapa grande, o perder e voltar a encontrar os pontos de referncia. Desde a ltima vez que o senhor Palomar observou as estrelas, passaram-se semanas ou mesmo meses; o cu modificou-se completamente; a Ursa Maior (estamos em Agosto) estende-se quase at ao ponto de se acocorar sobre a copa das rvores a noroeste; Arcturos cai a pico sobre o perfil da colina, arrastando consigo o papagaio de Bootes; exactamente a oeste est Vega, alta e solitria; se Vega aquela, esta que est sobre o mar Altair e aquela que est l em cima Deneb, emitindo um raio gelado a partir do znite. Esta noite o cu parece estar muito mais concorrido do que qualquer mapa; as configuraes esquemticas apresentam-se muito mais complicadas e menos definidas na realidade; cada cacho de estrelas poderia conter aquele tringulo ou aquela linha quebrada de que estamos procura; e cada vez que se volta a erguer o olhar para uma constelao, ela parece ligeiramente diferente. Para reconhecer uma constelao, a prova decisiva ver como ela responde quando a chamamos. Mais concludente do que a correspondncia das distncias e das configuraes no espao com aquelas que esto marcadas no mapa a resposta que o ponto luminoso d ao nome por que foi chamado, a sua presteza em identificar-se com aquele som, tornando-se por ele uma nica coisa. Os nomes das estrelas, para ns rfos de toda e qualquer mitologia, parecem incongruentes e arbitrrios; e, no entanto, nunca poderamos consider-los intercambiveis. Quando o nome que o senhor Palomar encontra o nome justo, ele d' imediatamente por isso, porque este transmite de imediato estrela respectiva uma necessidade e uma evidncia que antes no tinha; se, ao contrrio, um nome errado, a estrela perde-o poucos segundos depois, como se o sacudisse de cima de si, e no mais se sabe onde estava e qual era. Por mais de uma vez, o senhor Palomar decide que a Cabeleira de Berenice (constelao que muito ama) este ou aquele enxame luminoso, l para as bandas de Ophiuchus: mas no sente aquela palpitao que experimentara das outras vezes ao reconhecer, aquele objecto, to sumptuoso e ao mesmo tempo to ligeiro. S mais tarde se apercebe de que se no a encontra porque a Cabeleira de Berenice, nesta estao, no se v. O cu atravessado numa grande extenso por listas e manchas claras; a Via Lctea toma em Agosto uma consistncia mais densa e dir-se-ia que transborda do seu leito; o claro e o escuro esto to misturados que impedem o efeito de perspectiva do abismo negro, sobre cuja esvaziada distncia sobressai o relevo das estrelas; tudo fica no mesmo plano: cintilao e nuvens prateadas e trevas. Ser esta a exacta simetria dos espaos siderais, qual o senhor Palomar sentiu por tantas vezes a necessidade de se dirigir, para se afastar da Terra, lugar de complicaes suprfluas e de aproximaes confusas? Ao confrontar-se fisicamente com a presena do cu estrelado, tudo lhe parece fugir. At mesmo aquilo que se considerava mais sensvel, a pequenez do nosso mundo em relao s distncias ilimitadas, no surge de uma forma imediata. O firmamento qualquer coisa

  • que est l em cima, que se v que est l, mas de onde no se consegue extrair qualquer ideia de dimenso ou distncia. Se os corpos luminosos esto carregados de incerteza, nada mais resta do que depositar as esperanas na escurido, nas regies desrticas do cu. O que pode existir de mais estvel do que o nada? E no entanto, tambm acerca do nada no se pode estar certo a cem por cento. Palomar, onde quer que veja uma clareira no firmamento, uma brecha vazia e negra, fixa a o olhar, como que projectando-se nela; e eis que tambm ali no meio toma forma um qualquer pequeno gro mais claro, ou uma pequena mancha, ou apenas um sinalzinho; mas Palomar no chega a ficar seguro acerca de se se trata efectivamente de alguma coisa que l esteja ou se apenas lhe parece v-la. Talvez seja um lampejo desses que se vem andar roda mantendo os olhos fechados (o cu escuro como o reverso das plpebras sulcado por fosfenos; pode ser um reflexo dos seus olhos; mas poderia tambm ser uma estrela desconhecida, emergindo das profundezas mais remotas. Esta observao das estrelas transmite um conhecimento instvel e contraditrio - pensa Palomar - exactamente o contrrio do que sabiam extrair dele os antigos. Ser porque a sua relao com o cu intermitente e agitada, em vez de ser um hbito sereno? Se se obrigasse a contemplar as constelaes noite aps noite, ano aps ano, e a seguir-lhes os cursos e recursos ao longo das curvas linhas frreas da abbada obscura, talvez no fim tambm ele conquistasse a noo de um tempo contnuo e imutvel, separado pelo tempo fugaz e fragmentrio dos acontecimentos terrestres. Mas bastaria a ateno s revolues celestes para imprimir nele esta noo? Ou no seria sobretudo necessria uma revoluo interior, a qual ele apenas consegue imaginar em teoria, sem conseguir prever os efeitos que efectivamente teria sobre as suas emoes e sobre os seus ritmos mentais Do conhecimento mtico dos astros, consegue apenas captar um fatigado reflexo, um entre tantos; do conhecimento cientfico, os ecos divulgados nos jornais; daquilo que sabe, desconfia; o que ignora, mantm o seu esprito suspenso. Subjugado, inseguro, enerva-se com os mapas celestes, como se fossem horrios ferrovirios, febrilmente folheados em busca de uma correspondncia. Uma flecha resplandecente sulca repentinamente o cu. Um meteoro? nestas noites que se torna mais frequente distinguir as estrelas cadentes. Apesar disso, poderia muito bem tratar-se de um avio de carreira iluminado. O olhar do senhor Palomar mantm-se vigilante, disponvel, livre de toda e qualquer certeza. Est h meia hora na praia escura, sentado numa cadeira de repouso, contorcendo-se para o sul e para o norte, acendendo a luzinha e aproximando do seu nariz os mapas que mantm abertos sobre os joelhos; em seguida, de pescoo inclinado para trs, recomea a sua explorao a partir da Estrela Polar. Sombras silenciosas movem-se na areia; um casal de namorados separa-se da duna, um pescador nocturno, um guarda-fiscal, um barqueiro. O senhor Palomar ouve um sussurro. Olha sua volta: a poucos passos de si, formou-se uma pequena multido, vigiando os seus movimentos como se fossem as convulses de um demente.

  • 2 Palomar na cidade

    2.1 Palomar no terrao

    2.1.1 Do terrao- X! X! - O senhor Palomar corre ao terrao para afugentar os pombos que comem as folhas da gaznia, crivam de bicadas os cactos, fincam as patas na trepadeira de campainhas, depenicam as amoras, debicam folha a folha a salsa plantada no caixote que est ao p da cozinha, escavam e esgravatam nos vasos, entornando a terra e pondo a nu as razes, como se a nica finalidade dos seus voos fosse a devastao. Aqueles pombos cujo voo alegrava noutros tempos as praas, sucedeu-se uma prognie degenerada e imunda e infecta que no domstica nem selvagem, mas que est integrada nas instituies pblicas e, como tal, inextinguvel. O cu da cidade de Roma desde h muito que ficou merc da sobrepopulao deste lumpen-penudo, que torna a vida difcil a todas as outras espcies de pssaros existentes sua volta e oprime o reino do ar, outrora livre e variado, com as suas montonas e depenadas librs cinzento-chumbo. Apertada entre as hordas subterrneas de ratos e o pesado voo dos pombos, a antiga cidade deixa-se corroer por cima e por baixo, sem opor maior resistncia do que aquela que em tempos opunha s invases dos brbaros, como se reconhecesse neles no o assalto de inimigos externos, mas os impulsos mais obscuros e congnitos da sua prpria existncia interior. A cidade tem tambm uma outra alma - uma entre tantas - que vive de um acordo celebrado entre pedras velhas e vegetao sempre nova para a diviso dos favores do sol. Segundo esta boa disposio ambiental ou genius loci, o terrao da famlia Palomar, ilha secreta sobre os tectos, sonha concentrar sob o seu caramancho o luxuriar dos jardins da Babilnia. A exuberncia do terrao corresponde ao desejo de cada membro da famlia, mas ao passo que para a senhora Palomar surgiu como um facto natural a transferncia da sua habitual ateno pelas coisas tomadas individualmente', escolhidas e feitas suas por identificao interior, passando assim a compor um conjunto de mltiplas variaes, uma coleco emblemtica, esta dimenso do esprito falta aos outros membros da famlia; filha, porque a juventude no pode nem deve fixar-se sobre o aqui, mas apenas sobre o acol; ao marido, porque s demasiado tarde logrou libertar-se das impaciencias juvenis e percebeu que a nica salvao reside no aplicar-se s coisas que existem. As preocupaes do agricultor, para o qual o que conta aquela dada planta, aquele dado pedao de terreno exposto ao sol da hora tal hora tal, aquela dada doena das folhas que deve ser combatida a tempo com aquele dado tratamento, so estranhas sua mente modelada sobre princpios da indstria, ou seja, levada a decidir com base nos pressupostos legais e nos prottipos. Quando Palomar se tinha apercebido do quanto eram aproximativos e votados ao erro os critrios daquele mesmo mundo onde pensava encontrar preciso e norma universal, tinha voltado - lentamente a construir uma relao com o mundo, limitando-a observao das formas visveis; mas nessa altura ele j era aquilo que era: a sua adeso s coisas permanecia aquela adeso intermitente e fugaz das pessoas que parecem estar sempre absortas por outra coisa, mas essa outra coisa no existe. A sua contribuio para a prosperidade do terrao consiste em correr de vez em quando a espantar os pombos - X! X! - despertando em si prprio o sentimento atvico da defesa do territrio. Quando pousam no terrao pssaros diferentes dos pombos, o senhor Palomar, em vez de correr com eles, d-lhes as boas vindas, fecha os olhos aos eventuais estragos produzidos pelos seus bicos, considera-os mensageiros de divindades amigas. Mas estas aparies so raras: uma patrulha de corvos aproxima-se por vezes, pontilhando o cu de manchas negras e propagando (at a linguagem dos deuses muda com os sculos) um sentimento de vida e de alegria. s vezes um banal melro, gentil e arguto; uma vez foi um pintarroxo; e os pardais, no seu habitual papel de transeuntes annimos. As outras presenas de penugentos que se verificam sobre a cidade apenas se vem ao longe: as esquadrilhas dos migradores, no Outono, e as acrobacias dos gavies e andorinhas no Vero. De vez em quando, brancas gaivotas, remando no ar com as suas longas asas, aventuram-se por cima do mar enxuto das telhas, provavelmente perdidas, ao

  • subirem da foz a enseada do rio, talvez absorvidas num rito nupcial, e o seu grito marinho ecoa estridente, por entre os rumores citadinos. O terrao tem dois nveis: um mirante ou belvedere domina a barafunda dos tectos, sobre os quais o senhor Palomar faz correr um olhar de pssaro. Procura pensar no mundo tal como visto pelos volteis; ao contrrio dele, os pssaros tm o vazio que se abre sob eles, mas talvez nunca olhem para baixo, vem s para os lados, planando obliquamente sobre as asas, e o olhar deles, tal como o seu, onde quer que se dirija, no encontra mais do que tectos, mais altos ou mais baixos, construes mais ou menos elevadas mas to densas que no lhes permitem descer muito. Que l em baixo, encaixadas, existam ruas e praas, que o verdadeiro cho seja aquele que est ao nvel do cho, uma coisa que ele sabe com base noutras experincias: neste momento, a julgar por aquilo que v c de cima, no poderia suspeit-lo. A forma verdadeira da cidade est nestes altos e baixos de tectos, telhas velhas e novas, redondas e chatas, chamins finas ou grossas, alpendres de palha ou telheiros de lusalite ondulada, parapeitos, balaustradas, pilares, suportes que sustentam vasos, reservatrios de gua feitos de chapa, stos, clarabias de vidro, e sobre tudo isto ergue-se a floresta das antenas de televiso, direitas ou tortas, cromadas ou ferrugentas, em modelos de geraes sucessivas, variadamente ramificadas e cornudas e em armadura, mas todas magras como esqueletos e inquietantes como totens. Separados por golfos irregulares e recortados de vazio, terraos proletrios enfrentam-se uns aos outros, com cordas para pendurar roupa e tomates plantados em alguidares de zinco; terraos de luxo, com latadas de trepadeiras agarradas a armaes de madeira, mveis de jardim em ferro forjado pintado de branco, toldos de enrolar; torres de campanrios com campanrios em forma de campnula; frontes de edifcios pblicos de frente e de perfil; casas de luxo construdas em terraos e sobreterraos, andares sobreelevados abusivos e impunes; andaimes em tubo metlico de construes em curso ou interrompidas a meio; janeles com cortinados e janelinhas de casa-de-banho; paredes ocres e terra de siena; paredes cor-de-mofo de cujas fendas tufos de erva deixam pender a sua folhagem; casas de elevadores; torres com janelas geminadas e janelas trilobadas; pinculos com Nossas Senhoras; esttuas de cavalos e quadrigas; manses decadentes e tugrios, tugrios recuperados para garonnires; e cpulas que arredondam sobre o cu em todas as direces e a todas as distncias, como que a confirmar a essncia feminina, junnica, da cidade: cpulas brancas ou rosadas ou violetas, de acordo com a hora e a luz, sulcadas por nervuras, culminando em zimbrios encimados por outras cpulas mais pequenas.Nada de tudo isto pode ser visto por quem move os seus ps ou as suas rodas sobre as caladas da cidade. E inversamente, c de cima tem-se a impresso de que a verdadeira crosta terrestre esta, desigual mas compacta, mesmo se sulcada por fracturas que no se sabe quo profundas so, ravinas ou poos ou crateras, cujas orlas em perspectiva parecem estar prximas umas das outras como escamas de uma pinha, e no nos ocorre nem sequer perguntar que coisa escondem l no fundo, porque j tanta e to rica e variada a vista que se tem em superfcie, que chega e que sobra para saturar a mente de informaes e de significados. Assim, pensam os pssaros, ou pelo menos assim pensa o Senhor Palomar. "s depois de ter conhecido a superfcie das coisas - conclui - nos podemos aventurar a procurar o que est por baixo. Mas a superfcie das coisas inesgotvel".

    2.1.2 A barriga da osga O terrao, como vem acontecendo em cada Vero, volta a registar a presena da osga. Um excepcional ponto de observao permite ao senhor Palomar observ-la vista debaixo, do lado da barriga, em vez de vista de cima, como desde sempre nos habitumos a ver as osgas, os sardes e os lagartos. Na sala de estar da casa da famlia Palomar existe uma pequena janela que d para o terrao e que serve tambm de escaparate; nas prateleiras desse escaparate encontra-se alinhada uma coleco de jarras arte-nova, noite, uma lmpada de 75 watts ilumina os objectos expostos; uma planta de plumbago deixa cair do terrao os seus ramos azul-celeste sobre a vidraa exterior; todas as noites, assim que se acende a luz, a osga que vive naquela parede sob as folhas da planta passa para a vidraa, coloca-se no stio mais iluminado pela lmpada, e permanece imvel como um lagarto deitado ao sol. Igualmente atrados pela luz, os mosquitos aparecem a voar nas redondezas; quando um mosquito passa ao alcance do rptil imediatamente engolido.

  • Todas as noites o senhor Palomar e a senhora Palomar acabam por afastar os cadeires da televiso, colocando-os ao p do escaparate; sentados no interior da sala, ficam a contemplar a silhueta esbranquiada do rptil sobre o fundo escuro. A opo entre a televiso e a osga nem sempre feita sem incertezas; cada um dos espectculos fornece informaes que o outro no d: a televiso move-se pelos continentes, recolhendo impulsos luminosos que descrevem a face visvel das coisas; a osga, por sua vez, representa a concentrao imvel e os aspectos escondidos, o outro lado daquilo que aparece vista. A coisa mais extraordinria so as patas, autnticas mos, providas de dedos macios, todas feitas de polpa de dedos, as quais, uma vez premidas contra o vidro, aderem sua superfcie com minsculas ventosas: os cinco dedos alargam-se como ptalas de florzinhas num desenho infantil e, quando uma pata se move, recolhem-se como uma flor que se fecha, para voltarem depois a distender-se e a espalmar-se contra o vidro, fazendo aparecer pequenssimas estrias, semelhantes s das impresses digitais. Ao mesmo tempo delicadas e fortes, estas mos parecem conter uma inteligncia potencial, uma inteligncia tal que bastaria que elas se pudessem libertar da tarefa de ficarem ali pegadas superfcie vertical para adquirirem os dotes de mos humanas, das quais se diz que se tornaram hbeis desde que deixaram de ter de se pendurar nos ramos ou de premir o solo. Mais do que qualquer joelho, mais do que qualquer cotovelo, as patas dobradas parecem ter molas destinadas a soerguer o corpo. A cauda adere ao vidro unicamente atravs de uma faixa central, onde tm origem os anis que a circundam de um lado ao outro e que fazem dela um instrumento robusto e bem defendido`, a maior parte do tempo permanece pousada, entorpecida e indolente, parecendo no ter outro talento ou ambio que no sejam o de constituir um apoio subsidirio (nada tem a ver com a agilidade caligrfica das caudas dos lagartos); mas de vez em quando mostra ter reaces e ser bem articulada e at mesmo expressiva. As partes visveis da cabea so a garganta larga e vibrante e, aos lados, os olhos salientes e sem plpebras. A garganta a superfcie de um saco mole que se estende da ponta do queixo, dura e toda ela recoberta de escamas como a pele de um caimo, at ao ventre branco, o qual, nos stios onde se comprime contra o vidro, apresenta igualmente um sarapintado granuloso, sendo tambm provavelmente adesivo. Quando um mosquito passa perto da goela da osga, a lngua salta e engole, fulmnea e dctil e prensil, privada de forma e capaz de assumir todas as formas. De qualquer modo, Palomar nunca tem a certeza se a viu ou se no a viu; aquilo que certamente v, agora, o mosquito dentro da garganta do rptil: o ventre premido contra o vidro iluminado transparente como no raio X; pode-se seguir a sombra da presa no seu trajecto atravs das vsceras que a absorvem. Se toda a matria fosse transparente, o solo que nos sustm, o invlucro que enfaixa os nossos corpos, as coisas no apareceriam como um esvoaar de vus impalpveis, mas sim como um inferno de trituraes e ingestes. Pode ser que neste momento um deus dos infernos, situado no centro da terra, nos esteja a ver com o seu olho que atravessa o granito, espreitando-nos do lado de baixo, seguindo o cicio do viver e do morrer, as vtimas dilaceradas que se desfazem. nos ventres dos devoradores, at que por sua vez um outro ventre os engole a eles. A osga permanece imvel durante horas a fio; de vez em quando, com uma chicotada da lngua, engole uma melga ou um mosquito; e, no entanto, parece no registar sequer a presena de outros insectos, idnticos aos primeiros, que poisam ignaros a poucos milmetros da sua boca. Ser a pupila vertical dos seus olhos divergentes, colocados um em cada lado da cabea, que no os v? Ou ter ela razes de escolha e de recusa que ns desconhecemos? Ou ser que age apenas movida pelo acaso ou pelo capricho? A segmentao das patas e da cauda em anis, o sarapintado das diminutas e granulosas escamas da cabea e do ventre, do osga uma aparncia de dispositivo mecanico; uma elaboradssima mquina, estudada em todos os seus microscpicos detalhes, ao ponto de nos apetecer perguntar se uma tal perfeio no ser mal empregada, dadas as limitadas operaes que executa. Ou ser talvez esse o seu segredo: satisfeita de ser, reduz ao mnimo o fazer? Ser esta a sua lio, o oposto da moral que o senhor Palomar tinha querido fazer sua durante a juventude: tentar fazer sempre alguma coisa que estivesse um pouco mais alm dos seus prprios meios.Surge agora ao seu alcance uma perdida borboleta nocturna. No lhe ir ligar? No far caso? Ignor-la-? No, tambm a apanha. A lngua transforma-se em rede para borboletas e arrasta-a

  • para dentro da boca. Caber toda? Cuspi-la-? Rebenta? No, a borboleta est ali, na sua garganta: palpita maltratada, mas ainda ela prpria, intocada pela injria de dentes mastigadores, hei-la que supera as angstias das fauces, uma sombra que inicia a viagem, lenta e combatida, por um inchado esfago abaixo. A osga, abandonando a sua impassibilidade, arqueja, agita a garganta convulsivamente, vacila sobre as pernas e a cauda, contorce o ventre submetido a dura prova. Ter que lhe chegue para esta noite? Ir-se- ela embora? Seria este o culminar dos desejos que esperava satisfazer? Era esta a prova, dentro dos limites do possvel, com que pretendia medir-se? No; fica. Talvez tenha adormecido. Como ser o sono para quem tem olhos sem plpebras? O senhor Palomar tambm no consegue afastar-se dali. Continua a fixar a osga. No existe qualquer trgua com a qual se possa contar. Mesmo reacendendo a televiso, nada mais se faz do que alargar a contemplao dos massacres. A borboleta, frgil Eurdice, precipita-se no seu Hades. Surge agora um mosquito, est para pousar na vidraa. E a lngua da osga salta.

    2.1.3 A invaso dos estorninhos H uma coisa extraordinria para ver em Roma neste fim de Outono: o cu apinhado de pssaros. O terrao do senhor Palomar um bom ponto de observao, a partir do qual o olhar se pode estender sobre os tectos, abrangendo um amplo arco do horizonte. Sobre estes pssaros, o senhor Palomar sabe apenas aquilo que ouviu dizer sua volta: so estorninhos que se renem s centenas de milhares, provenientes do Norte, espera de partirem todos juntos para as costas de frica. De noite dormem nas rvores da cidade, e quem arrumar o carro na avenida marginal ao longo do rio Tibre ser obrigado a lav-lo de cima a baixo pela manh. Para onde vo durante o dia, que funo tenha esta prolongada paragem numa cidade na estratgia da migrao, o que signifiquem para eles estas intensas reunies ao fim da tarde, estes carroceis areos que fazem lembrar um. a grande manobra ou uma parada so coisas que o senhor Palomar ainda no conseguiu entender. As explicaes que se do so todas um pouco duvidosas, condicionadas por hipteses, oscilando entre vrias alternativas; e natural que assim seja, tratando-se de boatos que passam de boca em boca; mas fica-se com a impresso de que a prpria cincia, que deveria confirmar ou desmentir estes boatos, afinal incerta, aproximativa. Assim sendo, o senhor Palomar decidiu limitar-se a observar, a fixar nos mnimos detalhes o pouco que consegue ver, limitando-se s ideias imediatas que aquilo que v lhe vai sugerindo. Na atmosfera violeta do pr-do-sol, o senhor Palomar v despontar numa extremidade do cu uma finssima poeira, uma nuvem de asas que voam. Apercebe-se de que so milhares e milhares: a abbada celeste est invadida por elas. Aquela imensido, que at aqui lhe tinha parecido tranquila e vazia, revela-se toda ela percorrida por rapidssimas e leves presenas. Tranquilizadora viso, a passagem dos pssaros migradores, associada na nossa memria ancestral ao harmonioso suceder das estaes; e no entanto o senhor Palomar experimenta como que um sentimento de apreenso. Ser porque este cu apinhado nos lembra que o equilbrio da natureza est perdido? Ou ser porque o nosso sentimento de insegurana projecta ameaas de catstrofes sobre todas as coisas? Quando se pensa nos pssaros migradores, costume imaginar-se uma formao de voo muito ordenada e compacta, que sulca os cus numa longa fileira ou falange em ngulo agudo, quase como uma forma de pssaro composta por uma infinidade de pssaros. Esta imagem no vlida para os estorninhos, ou pelo menos no vlida para estes estorninhos outonais, nos cus de Roma: trata-se de uma multido area, que parece estar constantemente a ponto de se rarefazer e de se dispersar, como os gros de poeira em suspenso num lquido, mas que, ao contrrio, se torna cada vez mais densa, como se o caudal de partculas em suspenso continuasse a fluir de uma conduta invisvel, sem nunca chegar a saturar a soluo. A nuvem dilata-se, tornando-se negra de asas que se desenham mais ntidas no cu, sinal de que se esto a aproximar. O senhor Palomar j consegue distinguir uma perspectiva no interior do bando de pssaros, devido ao facto de avistar agora alguns volteis muito prximos, quase sobre a sua cabea, outros ao longe, outros mais longe ainda, e continua a descobri-los, cada vez mais minsculos, pontinhos que, dir-se-ia, se estendem por quilmetros e quilmetros, atribuindo s distncias entre um e outro uma medida quase igual. Mas esta iluso de regularidade enganadora, porque nada mais difcil de avaliar do que a densidade de distribuio dos volteis