palhaÇos e palhaÇas enquanto deuses …§ão thiago... · cristiane miryam drumond de brito pelo...

150
THIAGO ARAUJO PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES IRREVERENTES EM ZONAS DE VULNERABILIDADE SOCIAL E EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS Belo Horizonte Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional / UFMG 2017

Upload: trinhxuyen

Post on 10-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

THIAGO ARAUJO

PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES IRREVERENTES EM

ZONAS DE VULNERABILIDADE SOCIAL E EM DEFESA DOS DIREITOS

HUMANOS

Belo Horizonte

Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional / UFMG

2017

Page 2: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

THIAGO ARAUJO

PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES IRREVERENTES EM

ZONAS DE VULNERABILIDADE SOCIAL E EM DEFESA DOS DIREITOS

HUMANOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação Interdisciplinar em Estudos de Lazer

da Escola de Educação Fisica, Fisioterapia e

Terapia Ocupacional, Universidade Federal de

Minas Gerais como requisito para obtenção do

grau de Mestre em Lazer.

Orientadora: Dra. Cristinae Miryam Drumond de

Brito

Belo Horizonte

Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional / UFMG

2017

Page 3: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

3

A658p

2017

Araujo, Thiago

Palhaços e Palhaças enquanto deuses irreverentes em zonas de vulnerabilidade

social e em defesa dos direitos humanos. [manuscrito] / Thiago Araujo – 2017.

144 f., enc.:il.

Orientadora: Cristiane Miryam Drumond de Brito

Mestrado (dissertação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de

Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional.

Bibliografia: f. 01-150

1. Lazer – Aspectos sociais – Teses. 2. Recreação – Teses. 3. Interação Social –

Teses. I. Brito, Cristiane Miryam Drumond de. II. Universidade Federal de Minas

Gerais. Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional. III. Título.

CDU: 379.8

Ficha catalográfica elaborada pela equipe de bibliotecários da Biblioteca da Escola de Educação Física,

Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais.

Page 4: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

4

À Anderson Dias (in memorian).

Aos mestres e Companheiros de ofício, inspiradores

desta pesquisa.

Page 5: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

5

AGRADECIMENTOS

Reitero, em primeiro lugar, meu agradecimento à orientadora Prof. Dra

Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela

oportunidade de inserção no campo de estudos do lazer.

Agradeço todos os dias a presença de minhas avós, de minha mãe, minhas

tias pelos ensinamentos que ultrapassam a razão e principalmente minhas

filhas, Tainá e Letícia pelo apoio incondicional a minha carreira como artista.

Agradeço ao meu pai, aos meus irmãos e aos meus avôs, os quais

contribuíram ao longo de minha trajetória, muito maior que a acadêmica, me

preparando para o mundo.

À Mabel Araujo Andrade e José Otávio Penido Fonseca pelo consulta brilhante.

Às conselheiras e mentoras Prof. Dra.Lea Perez, por ter me apresentado a

Antropologia da Dádiva e da Festa e a Patafísica, que mudou meu olhar sobre

a Ciência, à Prof. Dra Rita Gusmão, por me receber no Núcleo Leca de

Palhaçaria da Escola de Artes Cênicas e por me permitir vivenciar a prática

pedagógica cênica corporal.

A Ana Carolina Abreu, minha irmã de batismo Hotxuá e companheira de

trabalho, pois estamos imersos no mesmo campo de estudos e fomos

batizados juntos na tribo Krahô, foi quem me apresentou também a idéia do

Cômico Ritual.

Ao Mestre Ismael Apracthi Krahô Hotxuá e a família Krahô, por terem me aceito

como afilhado, honra e gratidão indescritíveis.

Page 6: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

6

Ao mestre Zé Regino, que me apresentou a técnica cômica como ferramenta e

ao professor Luiz Otavio que me recebeu no estúdio Fissões da Escola de

Artes Cênicas que me trouxe a clareza da noção de ação fisica.

Aos saudosos mestres Tião Vieira, Jacó do Nascimento, João das Neves, Irene

Ziviane, Angel Viana, Tortel Poltrona, Paco Pacolmo, Sandra Cordeiro,

Adelvane Neia, Ana Luisa Cardoso, Grazi Sena.

Aos companheiros de trabalho, que me arrisco ao citar, sob pena de esquecer-

me de algum, como Cícero Silva, Cristiano Pena, Rodolfo Goulart meu atual

parceiro de dupla, Vicente Junior, Vinicius Carvalho, Gibran Muller, Thiago de

Souza, Diego Gamarra, Natalia Carvalho, Luba Oliveira, Lud Benquerer, Liz,

Flaviane Angélica, Daniel Bevilacqua, Sabrina Valente, Jennifer Jacomini, Ilma

Silvério, Jairice Batista, Marilene Rodrigues,e finalmente Anderson Dias (in

memorian).

Muito obrigado aos professores Edson Carpinteiro Resende, Jeaneth Xavier de

Araujo Dias e José Alfredo Oliveira Debortolli pela nobre leitura do trabalho na

banca de avaliação final.

No âmbito institucional foi fundamental a bolsa de estudos da CAPES.

Enfim, a todos que de alguma forma se fizeram presentes nessa realização,

muito obrigado!

Page 7: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

7

Palhaços e Palhaças ao redor do mundo, uni-vos!

Page 8: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

8

RESUMO

Este trabalho se constitui num exercício de análise da presença de palhaços e

palhaças em zonas de vulnerabilidade social e na defesa pelos direitos

humanos. Traçamos em primeiro lugar, uma trajetória histórica e antropológica

do palhaço, na qual são identificados o Cômico Ritual e a Arte da Palhaçaria

como jogo e linguagem, que dialogam com a antropologia da Dádiva e com o

Grotesco. Por meio de pesquisa bibliográfica sobre intervenções de palhaços e

palhaças em zonas de vulnerabilidade, demonstramos diversas aplicações dos

Jogos de Palhaço, bem como a ambigüidade que o oficio carrega, ora

assumindo funções regidas por valores hegemônicos, ora por valores contra

hegemônicos, através de sua presença em projetos sociais, políticos e

humanitários. Nesse sentido, as tensões identificadas na arte da palhaçaria em

zonas vulneráveis dialogam com o campo do lazer, por compreender que o

Palhaço e a Palhaça atuam tanto como força política de transformação,

estimulando as pessoas a se tornarem politicamente ativas, quanto como

atenuadores de conflitos. Contempla-se, também, como elemento empírico as

narrativas de experiências do autor como Palhaço.

Palavras-chave: Palhaço. Zona de vulnerabilidade. Riso. Recepção. Lazer.

Page 9: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

9

ABSTRACT

This is an exercise in analyzing the presence of the clown in areas of social

vulnerability, which first traces an anthropological historical trajectory of the

clown, in which are identified the Sacred Clown, the language of the Gift and

the Grotesque, as well as narratives author's experiences as Clown. Through

bibliographic research on clown interventions in vulnerable areas, it illustrates

several applications of the clown game, as well as hegemonic and anti-

hegemonic aspects of its presence in social, political and humanitarian projects.

The tensions identified in the art of clowning in vulnerable zones dialogue with

the field of leisure. The Clown acts as both a political force of transformation,

encouraging people to become politically active, or as attenuators of conflict.

Key-words: Clown. Zone of vulnerability. Laughter. Reception. Leisure

Page 10: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01– a,b, c – Máscaras da Idade da Pedra .Estas máscaras foram feitas pelos primeiros humanos que abandonaram a vida nômade na Idade da Pedra, a mais de 9.000 anos. .................................................................................................................23 Figura 2 - Comédia de Arquétipos da Roma Antiga Atelanas. Séc. II a.C.....................................................................................................................27 Figura 3 - Pã ensina Dafnis a tocar flauta Cópia de mármore, Romana. Reprodução de um original grego dos séculos III a.C. ......................................................................................................................... 28 Figura 4 – Coliseu de Roma, fundos da Casa Dourada de Nero e afrescos “grotescos” em seu interior. ..............................................................................................................31 Figura 5 - Legado Científico de Theodor Koch-Grunberg...........................................................................................................35 Figura 6 - Os Makuxi, Netos de Makunaimî.........................................................................................................35 Figura 7 - O Louco (o arcano sem número).............................................................................................................36 Figura 8 - a, b, c, d, e, f, g, h,i, j, k, l – Cômicos Rituais................................................................................................................38 Figura 9 - Entrada triunfal em Jerusalém. .......................................................................................................................... 52 Figura 10 - Grafite de Alexamenos II D.C., muralhas de Paladino “ ao menos adorou a seu Deus”.................................................................................................................54 Figura 11 - Dupla Patati Patata................................................................................................................70 Figura 12 - Bufão Leo Bassi................................................................................................................ 72 Figura 13 - Palhaços do CIRCA em Gleaneagles, Escócia..............................................................................................................77

Page 11: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

11

Figura 14 - Palhaços nos portões do Centro de Detenção da Imigração em Mexicali/Calexico...............................................................................................83 Figura 15 - Mímico nas ruas de, Bogotá/Colômbia...............................................................................................85 Figura 16 - Buena Vista Social Clown, Bogotá/Colômbia. .............................................................................................86 Figura 17 - Wilmar Guzman, Tim Cunningham, Carlos Andres Niño, Lucho Guzman, e Professor Teddy Loveperformance na Escola Jaime Salazar Robledo em Tokio, El Choco...........................................................................89 Figura 18 - Antanas Monckus, o prefeito palhaço Bogotá/Colômbia...............................................................................................90 Figura 19 - Oficina sócio educativa Ayeklauwn, Murcia, Espanha. ..........................................................................................................93 Figura 20 - Experiências com o Jogo de Palhaços em Santiago de Cuba, ................................................................................................................95 Figura 21 - Palhaço Matraca nas Ruas..................................................................................................................96 Figura 22 - Membro do grupo Palhaços sem Fronteiras apresenta para sobreviventes do tufão Haivan, Tacloban nas Filipinas. ...........................................................................................................97 Figura 23 - Experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família................................................................................................................99 Figura 24 - Thiago e Anderson Dias atuando em uma Escola pública pela Companhia Circense de Teatro e Bonecos.........................................................................................................114 . Figura 25 - Projeto Roda Mundo, apresentação do Espetáculo Manual de Sobrevivência na grande cidade..............................................................................................................120 Figura 26 - Projeto Roda Mundo – Apresentação no Festival de Samba Coburgh/Alemanha..........................................................................................121 Figura 27 - Ateliê Riso In Formação – Personagem Xexeu, o feio. Encontro Internacional de Palhaços, Mariana/MG...................................................................................................122

Page 12: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

12

Figura 28 - Cartaz do 2º Encontro de Palhaços de Mariana/MG, detalhe à esquerda: caricatura do personagem desenvolvido no Ateliê Riso In Formação........................................................................................................123 Figura 29 - Intervenção de rua do Coletivo de Palhaços – 2ª Semana Interplanetária de Palhaços, Belo Horizonte.........................................................................................................124 Figura 30 - Intervenções Quase Espetaculares, Belo Horizonte, Morro do Papagaio.........................................................................................................126 Figura 31 - Circo Miudinho, Diamantina/MG................................................................................................127 Figura 32 - Oficina de Bufão Ritual com Andres Del Bosque, Cataguases/MG. .............................................................................................131 Figura 33 - “[...]apenas de calção, apresentei algumas imagens corporais para as crianças que se divertiam com meu trejeito[...]”......................................................................................................133 Figura 34 - Batizado com participação de toda aldeia, Aldeia Manoel Alves, Itacaja, Tocantins.........................................................................................................134 Figura 35 - Hotxuá Rosinha, que cortou meu cabelo, ............................................................................................................136 Figura 36 - Thiago no Festival da Batata Hotxuá, terceiro em pé, da direita para a esquerda..........................................................................................................137

Page 13: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

13

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................14

2 DE ONDE VEM E PARA ONDE VÃO OS PALHAÇOS......................17

2.1 Heranças da palhaçaria: definições e usos do termo

2.2 Grotesco como cânone

2.3 Cômicos- rituais

2.4 Interdição do riso na liturgia cristã

2.5 Antropologia da dádiva aplicada a arte da palhaçaria

2.6 Jogo e linguagem de palhaços

2.7 Poder e hegemonia na arte da palhaçaria em zonas de

vulnerabilidade social

3 ATUAÇÃO HUMANITÁRIA.................................................................72

3.1 Método do levantamento bibliográfica

3.2 Breve descrição dos casos analisados nos artigos

3.3 Papel social do palhaço

3.4 Emoção, humor e riso

3.5 Lazer e palhaçaria

4 MINHA EXPERIÊNCIA COMO PALHAÇO EM ZONAS DE

VULNERABILIDADE SOCIAL DURANTE 10 ANOS …................................111

4.1 História de vida

4.2 Retrato da atuação em favelas de Belo Horizonte

4.3 Meu batizado como afilhado Hotxuá

4.4 O Ritual da Batata

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS …............................................................138

6 REFERENCIAS …...............................................................................142

Page 14: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

14

1 INTRODUÇÃO

Buscou-se nesta pesquisa compreender a importância do palhaço e da

palhaça na atualidade, os sentidos de sua presença e seu protagonismo em

zonas socialmente vulneráveis. Ao refletir sobre as distintas aplicações do jogo

de palhaços nesses lugares, foi necessário buscar definições e usos da arte da

palhaçaria ao longo da história da humanidade por meio de evidências e

marcos arqueológicos; constituir a delimitação da vulnerabilidade social para,

em seguida, identificar elementos hegemônicos e contra hegemônicos na

presença do palhaço e palhaça em zonas de vulnerabilidade social e em

defesa dos direitos humanos.

Nesse sentido, fez-se necessário buscar referências na trajetória dos

sentidos e papéis de palhaço ao longo da história da humanidade, sem perder

de vista que esta abordagem, no âmbito da sistematização acadêmica, está em

construção e tem tantas limitações quanto riquezas a serem extraídas. Alguns

marcos históricos e arqueológicos traduzem transições semânticas e de

sentidos dos papeis de palhaço que podem guiar nosso olhar para

compreender a complexidade e a heterogenia que caracterizam o jogo e a

linguagem do palhaço. Esses marcos históricos suscitam interpretações

distintas sobre formas de uso e manipulação ideológica e política antigas, que

dão sentido histórico ao jogo de palhaço, pois o palhaço sofre transformações

ao longo do tempo e como qualquer arte, está inserido em contextos e

sistemas ideológicos.

A princípio, o palhaço poderia ser considerado um ser livre e desatrelado

de quaisquer sistemas hegemônicos, mas acreditamos que historicamente sua

atuação e seus jogos também foram utilizados de forma indutiva e ainda o são,

justamente para atender esses sistemas hegemônicos, conforme será ilustrado

por marcos históricos pontuados nesta pesquisa, até a atualidade. Diante

dessa ambivalência criada pelo palhaço, ora atendendo a inculcação

hegemônica (ALVES, 2010), ora desconstruindo-a, pergunta-se: em qual

dessas duas dimensões os palhaços em zonas socialmente vulneráveis se

encontram?

Page 15: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

15

Ao buscar respostas para essa questão, a investigação sobre o riso e o

grotesco se fez necessária. Nesse caso, a leitura dialética sobre o riso e o

papel do grotesco no desenvolvimento da cultura popular teve como referência

os estudos de Bakhtin, no contexto da produção literária de François Rabelais

na Idade Média, revelando aspectos do corpo grotesco e as imagens

distorcidas e exageradas presentes na cultura popular da época através do

estudo dos símbolos abordados na literatura do autor.

Se o humor e o riso estimulam capacidades interpretativas e

comparativas de associação de informações, sua potência em estimular e gerar

pensamento crítico permite-nos operar experiências simultâneas de diversão e

divergência, na medida que revela através do absurdo, do exagero, o que se

esconde por trás da seriedade e da visão unívoca da realidade. Nesse sentido,

tem-se a impressão de que os palhaços em zonas vulneráveis trabalham

menos com uma mensagem dirigida e defensora da ideologia dominante e

buscam mais a potência interpretativa do espectador, no intuito de jogar com a

recepção do público. Essa percepção é fruto da minha vivência como palhaço

atuante nas ruas e em zonas de vulnerabilidade social. Dessa atuação surgiu

a necessidade de pesquisar o que se tem produzido academicamente sobre a

presença de palhaços e palhaças em zonas periféricas e vulneráveis na

atualidade.

Como toda pesquisa revela algo do percurso pessoal de cada

pesquisador, essa não é diferente. A partir dessa vivência pessoal com todas

as marcas que ela me deixou, construí essa pesquisa com a seguinte trajetória.

No primeiro capítulo busquei caracterizar o palhaço e a palhaça desde

seu legado histórico de práticas cômicas rituais, bem como pela distinção de

definições, usos do termo desde a antiguidade até o circo moderno. Articulei

também relações do palhaço com o grotesco, o bufão e as máscaras rituais

irreverentes nas tribos ameríndias e na antiguidade. Outro aspecto abordado é

o fenômeno de interdição do riso na liturgia católica, ilustrado pela supressão

do Risu Paschalis no calendário cristão, impedindo o riso em seus rituais. Fiz

ainda, neste capitulo, uma reflexão sobre a teoria da dádiva, necessária para

compreender o fenômeno de interação, comunicação e “troca simbólica”

Page 16: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

16

presentes no jogo de palhaços, principalmente na triangulação visual: palhaço-

ação/objeto-público, diante da evidência do ato de reciprocidade que se põem

em curso no jogo da palhaçaria e de como essa reciprocidade faz parte de uma

condição de socialização elementar humana, fundante de valores e noções da

“economia simbólica”.

Num outro tópico abordei as características que definem a arte da

palhaçaria enquanto jogo, ou seja, como este manancial também se torna

linguagem, na qual a própria ação transporta a informação em função de um

processo relacional estabelecido. A proposição desse capítulo foi trazer

compreensões de elementos que se articulam na arte da palhaçaria, para

fundamentar análises inerentes a pesquisa, quer dizer: a análise da função

sociopolítica do palhaço e da palhaça em zonas de vulnerabilidade social,

diante das relações hegemônicas e contra hegemônicas existentes neste

contexto. Dessa forma, compreender o palhaço historicamente visou identificar

características predominantes nas ações dos diversos palhaços e palhaças ao

longo de sua existência e correlacionar com atuações recentes do século XX e

XXI, principalmente em zonas de vulnerabilidade social e na defesa dos direitos

humanos.

No capítulo II o levantamento bibliográfico empreendido nos levou à

caracterização de distintas atuações de caráter humanitário de palhaços e

palhaças, extensivas ao ativismo social em defesa dos direitos humanos,

devido a sua relação com as zonas de vulnerabilidade social. As zonas de

vulnerabilidade social tem relações geopolíticas e territoriais com indivíduos

diretamente afetados por problemáticas diversas. Buscamos refletir também

neste capítulo alguns tangenciamentos entre a arte da palhaçaria e o lazer.

Minha atuação como palhaço narrada no último capítulo, marcou e

afetou o percurso dessa investigação, pois como palhaço carrego desde o

início a vivência em favelas e periferias, na medida em que sou um morador de

subúrbio e desde muito cedo compreendi como a ambiguidade do riso,

provocativa e ao mesmo tempo reprodutora de valores hegemônicos toma os

sentidos e como influenciam as pessoas.

Page 17: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

17

Os palhaços e as palhaças podem revelar “verdades” subentendidas por

meio de criações, expressões e improvisos com duplo sentido, sugeridas pelas

metáforas cômicas, bem como podem confirmar e reforçar valores de

segregação e preconceito. Podem distinguir entre certo e errado, o belo e feio,

o puro e o impuro, induzindo uma interpretação do que é engraçado e aceitável

como diversão associada a poderes hegemônicos. De outra forma, esta visão

dialética entre o ato de divergir e divertir nos leva a perceber elementos

semelhantes nas práticas de diversão presentes no entretenimento comercial,

reprodutor de valores e inculcações hegemônicas e nas práticas e atos de

resistência ou denúncia social, como o estimulo alternado ao protagonismo e a

espectância.

Diante desta percepção construída ao longo de minha trajetória de

atuação, optei também por oferecer um capítulo da minha própria história de

vida e uma narrativa etnográfica do meu batizado em uma aldeia Krahô como

Cômico Ritual. Com intuito de contribuir para a compreensão da arte da

palhaçaria nesta pesquisa, agrego minha própria experiência, por meio de uma

análise de minha trajetória como palhaço. Está narrativa servirá para

estabelecer um diálogo com a empiria encontrada nos artigos selecionados no

levantamento bibliográfico. Narrar minha própria história fará parte de uma auto

pesquisa, na medida que ao relembrá-la, vou entrecruzando matizes do objeto

pesquisado.

2 DE ONDE VEM E PARA ONDE VÃO OS PALHAÇOS

2.1 Heranças da palhaçaria: atuação, definições e usos do termo

As referências do riso, da bufonaria e da religiosidade, se organizam

historicamente de maneira arquitetural, seja através da cronologia, ou por meio

das suas notáveis persistências, até os dias atuais, nas relações entre arte e

convívio social. O Palhaço é herdeiro do Bufão e das máscaras cômicas da

Commedia Dell'' arte, dos Saltimbancos e Menestréis de rua, num contexto de

Page 18: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

18

desenvolvimento mercantil das artes cênicas, o que marca sua distinção dos

usos rituais das práticas grotescas dos povos antigos e tribais.

Palhaços são os principais e mais recorrentes personagens dos circos

do Brasil; figura central nos espetáculos dos pequenos e médios circos,

responsáveis pela irreverência e insolência (BOLOGNESI, 2003). Além de sua

presença em circos, também são encontrados em campanhas publicitárias,

festas particulares, campanhas educativas, ações de mobilização social, zonas

de conflito, hospitais entre outras possibilidades. Temos ainda a notável

efervescência da Palhaça, como definição de gênero, diante das recentes

conquistas da mulher Palhaça, aliada a uma luta histórica sangrenta contra a

repressão da mulher para determinados ofícios e ocupações.

O palhaço brasileiro tem características e funções que o europeu

desconhecia, evidenciadas em sua presença teatral no melodrama brasileiro.

Esse aspecto é marcante, pois possui entradas e reprises, repertórios cômicos

baseados na capacidade de interpretação e improvisação dos artistas. Os

palhaços passaram a integrar o melodrama e a comicidade na cena dramática

brasileira (BOLOGNESI, 2003; REIS, 2013). Basicamente a atuação de

palhaços no picadeiro tem os gestos mais exagerados que no teatro

(FERRACINI, 2001; BOLOGNESI, 2003)

Tradicionalmente, os palhaços de circos no Brasil, nos remetem as

características dos palhaços europeus Augusto e Branco. No Brasil são

chamados também de cabaretier para o palhaço Branco que veste roupas

pomposas, brilhantes, herdadas do Arlequin da Commedia dell‟arte. Com

atitudes elegantes busca o riso com luxo e está sempre pronto a ludibriar o

parceiro em cena, no Brasil também é denominado “escada” ou “crom”. As

características do Tony ou Tony-excêntrico, outra denominação de palhaço no

Brasil, se aproxima do palhaço Augusto, o eterno perdedor ingênuo, de boa fé

e sempre vulnerável ao domínio do Branco. Várias referências nos dizem da

origem do termo “Branco e Augusto”, que definem uma dupla e uma

modalidade de atuação do palhaço no circo, sua característica mais marcante é

a dramaturgia antagônica repleta de nuances e rompimentos gerados pelas

Page 19: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

19

disputas e mascaramentos que a dupla se propõe. A grande novidade da

existência de uma dupla antagônica, além de sintetizar o conflito humano, diz

respeito às forças históricas (revolução industrial, expansão das metrópoles e

das categorias de trabalhadores urbanos) que propiciaram a popularização e a

valorização de um personagem rude, desajeitado, caipira, vagabundo, estúpido

e ridículo (BOLOGNESI, 2003; REIS, 2013).

Outra herança do palhaço vem do circo de cavalos do militar Philip

Astley no século XVIII. Em uma escola de equitação, Philip Astley, além do

ensino dos exercícios militares, ensinava também proezas de homens sobre os

cavalos. Assumiram assim, imitações cômicas com cavalos, propiciando um

certo relaxamento pelo riso e transformando o lugar em casa de espetáculos.

No entanto, todo essa apresentação ainda era realizada para membros da

corte, da aristocracia e das instâncias sociais ligadas aos quartéis. Outras

camadas sociais não tinham acesso aos espetáculos equestres. Os circos de

cavalos incorporaram com o tempo outro artistas que se apresentavam nas

ruas e feiras de Londres e Paris, quando finalmente se integraram os

acrobatas, malabaristas, pirofagistas, dançarinos de corda etc., com esquetes,

mimodramas e hipodramas, preparados sob adornos teatrais (BOLOGNESI,

2009).

Somado ainda, na caracterização do Palhaço como conhecemos no

circo moderno, as influências da pantomima inglesa e da comédia Dell” arte

são notáveis. O termo clown (cloud, caipira) na pantomima inglesa define o

cômico principal, com funções de serviçal e que participa geralmente de cenas

curtas de profunda excentricidade e tolice, posteriormente o termo prevalece

nos ambientes ligados ao circo. Uma antiga reminiscência se dá na sua

aparição no teatro de moralidades inglês, caracterizado pela gratuidade e

improvisação de suas intervenções (BOURGY, 1999 APUD BOLOGNESI

2003).

O teatro cômico inglês se aperfeiçoou em tendências de personagens

específicos, assim como o italiano, que traz o termo Palhaço (payaso, feito de

palha, envolvido na palha), ambas sofrem influências a partir da pantomima e

Page 20: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

20

da Comedia Dell arte. Depois se reencontraram e proporcionaram as

características pelas quais o palhaço circense ficou conhecido.

O hipodrama é uma ilustração oferecida por Bolognesi (2003) para o

surgimento do clown e sua presença entrecortada nos números de acrobacia e

risco. Dois grupos originalmente se destacavam: o grupo “de cena “e os

“excêntricos” cavaleiros ou acrobatas. Grimaldi (1778 – 1837) e Ducrow (1793

– 1842) são referências quando se trata de combinar pericias e facécias

teatrais cômicas.

A partir do século XIX os interlúdios cômicos se tornam parte essencial

nos espetáculos de circo. Como resultado da necessidade de inovação nos

espetáculos e da sobrevivência dos artistas saltimbancos, desenvolveram

como inovação a metalinguagem circense de imitação e hipérboles dos

números de risco. No século XIX, os espetáculos circenses

[...] estão também sintonizados com as preocupações burguesas,

tanto na história (com desdobramentos na política, na sociedade e

na moral), como também na exposição de um sujeito em conflito

com a natureza. Duas obras merecem registro: uma primeira, de

matriz literária, com a criação do hipodrama Mazeppa, inspirado

em poesia de Lord Byron; outra, de natureza histórica, a Batalha

da Alma (BOLOGNESI, 2009,p.5).

O espetáculo circense nasce, tendo como ator principal o cavalo. Há a

“[...] exaltação das proezas militares, em um formato cênico que previa o

treinamento dos cavalos para mostrar sua “emoção” e seu “caráter‟”

(BOLOGNESI, 2009, p 11).

Outra referência interessante que merece ser citada é relativa à

conquista da palavra pelos palhaços franceses, já que a palavra na cena

dialogada era uma concessão do Estado. O ano de 1864 é especialmente

importante, pois Napoleão III revoga esta lei e um horizonte novo se descortina

para os palhaços da época. A partir daí se expande um leque de possibilidades

para a atuação cômica no circo, o que permite afirmar que o palhaço como tal é

uma criação do circo moderno (AUGUET, 1974 APUD BOLOGNESI, 2003),

Page 21: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

21

não sem considerar uma gama de menestréis e charlatões populares de ruas e

feiras.

A influência da arte cênica de rua se faz presente. De um lado os

excêntricos, acrobatas, malabaristas e equilibristas, abusando de habilidades

arriscadas; de outro, os shaksperieanos, falantes, dramáticos, que

influenciaram a formação da dupla Branco e Augusto, consolidados na imagem

da dupla Foottit e Chocolat (1910), que permitiram a recorrência de diversos

elementos cênicos e técnicas cômicas corporais. Utilizavam roupas

extravagantes, rompendo com o cotidiano convencional pela vestimenta,

excêntricos, utilizavam paletós customizados, ou sapatos avantajados,

maquiagens de cores vermelha, preta e branca, narizes de bola ou

simplesmente rubros, em um estado alterado de graça em busca da

cumplicidade do espectador.

Outra figura que precisamos conhecer para compreender a

caracterização do Palhaço se refere ao Bufão, que assim como o Palhaço é um

personagem-tipo que através de uma marca própria, joga com o grotesco das

contradições, dos tabus e interdições sociais, por apresentar o exagero e a

deformidade e provocar o riso pela metáfora, ironia ou pela paródia (BORDIN,

2011). Não podemos deixar de citar os Bobos de corte como derivação dos

personagens bufônicos, bem como os anões e os gigantes, inseridos no

realismo grotesco medieval, investigados por Mikhail Bakhtin (1996, 2010) a

partir do contexto da obra de François Rabelais, escritor que retrata a cultura

popular da Idade Média.

Os Bufões e os Bobos, nesse contexto, faziam parte do universo

medieval e representam a subversão das regras rígidas impostas no

feudalismo. Durante as festas, essa subversão era permitida pelo riso e pelas

paródias nas cerimônias católicas. Os Bufões e Bobos de Corte eram os únicos

que para divertimento do povo podiam falar tudo do rei, zombar a igreja;

exerciam um papel político através das inversões hierárquicas e subversão das

regras. Para Bakhtin, (2010), os Bufões e Bobos de Corte estão na fronteira

entre a vida e a arte, provocando um riso ambivalente que nega e afirma

códigos culturais. Nas festas religiosas, mesmo na atualidade, essa dualidade

Page 22: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

22

se remete às festas de São João, de Folia de Reis, do Bumba meu Boi, nas

quais a comicidade está presente, para além das relações hierárquicas.

Essa dualidade, tão bem caracterizada pelo maniqueísmo do bem e do

mal, do sagrado e do profano, do puro e do impuro, expressa por um gesto,

pode revelar os problemas sociais, políticos e econômicos de sua época. Hoje

o Bufão diz respeito a uma “máscara grotesca utilizada pelo ator popular”.

(Lopes, 2005 apud BORDIN, 2011).

O Bufão nos possibilita divertir e divergir. Propõe um exercício de

comparação e antagonismo que denuncia, por uma enunciação jocosa,

carregada de atributos de irreverência e insolência, a hipocrisia da seriedade

das instituições e suas verdades, distende, portanto, as disposições políticas e

sociais, mostrando suas deformidades (ICLE e LULKIN, 2013). Outrossim, nos

convida a suspender os sentidos pré-concebidos ordinários e a compartilhar os

sentidos engendrados extra cotidianamente pelo corpo bufônico e seus jogos.

Nesse contexto, de reconhecimento do legado cultural, das máscaras e

personagens tipo irreverentes, revelam-se evidências da existência de um

cânone cômico, o olhar sagrado sobre o palhaço e a palhaça assume seu

espaço como fato contemporâneo latente, enquanto atividade bufonesca,

grotesca por essência, raiz que nos permite pensar a palhaçaria a partir da

sacralização de sua figura, desde os primórdios da cena cômica, com os

Cômicos Rituais.

O Cômico Ritual na etnocenologia e na antropologia nos remete aos

arquétipos dos Deuses mais remotos, de personalidades míticas irreverentes,

inspiradores de máscaras e personagens rituais, com traços e características

presentes nos palhaços e palhaças de hoje.

Page 23: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

23

Figura 01– a,b,c – Máscaras da Idade da Pedra .Estas máscaras foram feitas pelos primeiros humanos que abandonaram a vida nômade na Idade da Pedra, a mais de 9.000 anos.

…............... Fonte: The Israel Museum in Jerusalem.

Diante da existência exígua de literatura e espaços dedicados à estudos

aprofundados da arte da palhaçaria, o percurso histórico e antropológico do

surgimento do Palhaço e dos significados do seu papel se constitui numa

pesquisa basilar para fundamentação do nosso trabalho de analise, como um

desafio necessário ao nosso percurso de detecção do biopoder hegemônico e

contra hegemônico, presente no jogo de palhaços.

Historicamente os ritos cômicos com suas personalidades histriônicas

são consideradas uma arte menor em detrimento da tragédia. Na obra Arte

Poética (335 A.C.)1, Aristóteles não nos diz muito sobre a comédia, acusando

poucas informações sobre sua origem, no entanto, oferece uma descrição

pormenorizada da tragédia e apresenta uma defesa bastante afirmativa de tal

modalidade teatral.

Aristóteles considera a tragédia e a comédia assim como a epopeia,

como artes da imitação, mas indica valores morais e estéticos mais “nobres” e

“admiráveis” na tragédia. Se de um lado tem-se como característica básica a

dramatização ao revés da declamação lírica, por outro lado, quando se trata de

1

Destrée, Pierre. Organon, Revista de Letras da UFRGS.v. 24, n. 49 (2010)

Page 24: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

24

desenvolvimento artístico, revela-se um investimento menor na comédia, na

viabilização da presença do coro na comédia, como produção artística paga na

época. Diz da comédia no capítulo V:

A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, mas não de todos os vícios; 1.Ela só imita aquela parte do ignominioso que é o ridículo. O ridículo reside num defeito ou numa tara que não apresenta caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento. (Aristóteles, 335 A.C, p.1449a37-49b1)

Nesse sentido, Umberto Eco (1980) em seu romance O nome da Rosa,

narra uma intriga baseada no sumiço do segundo volume da obra “Poética” de

Aristóteles que tem como tema a comédia. Esse volume perdido em algum

momento da Antiguidade ou no começo da Idade Média nunca foi encontrado.

Não há vestígios, apenas uma menção da existência desse volume realizada

pelo próprio Aristóteles no seu texto “Retórica” (DESTREE, 2010).

Nota-se diante de tantos elementos controversos que existe uma

interpretação distorcida, ao longo de séculos de estudos, na qual Aristóteles

não valorizava a comédia, no entanto, contrariamente, no capítulo IX,

Aristóteles discorre de maneira afirmativa sobre o valor da comédia na época.

Aristóteles afirma categoricamente que a comédia é universal e que porta

conteúdo filosófico compreensível ao povo.

Dessa forma, não é que ele simplesmente considere a comédia como

inferior a tragédia, mas que a comédia, na época, era considerada como

inferior, pois os poetas cômicos também seriam inferiores ou vulgares,

estigmatizados pela índole do artista, pelo conteúdo e modalidade de sua obra.

BOAL (1991,) defende a existência, na obra de Aristóteles, de elementos

coercitivos e dissimulados que separam a Poética e a Política e que são

responsáveis pela dominação psicológica, através da “eliminação de más

tendências” e intimidação do espectador, intitulado por ele como “sistema

coercitivo poético político aristotélico” (BOAL, 1991, p.18)

Essa interpretação de Boal (1991) pode colocar mais “lenha na

fogueira”, nos levando ao limite da interpretação (ECO, 2016) sobre a relação

Page 25: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

25

entre Poética, Comédia e Política e sobre como o palhaço está envolvido nesta

rede complexa.

Acreditamos que esta distorção de desvalorização da comédia em

detrimento da tragédia, reflete-se nas escassas pesquisas a respeito do

palhaço como herdeiro direto desta arte cômica nos dias de hoje.

2.2. Grotesco como cânone

A noção de grotesco é importante para entendermos os diversos papeis

e sentidos da palhaçaria. O grotesco expressa a união do sublime e do

escatológico. As relações entre o grotesco e o sublime passam pela ficção e

consequentemente pela intencionalidade da imaginação, que complementa as

aberrações e coincidências naturais com a distorção promovida pela atividade

da imaginação humana. O processo da imaginação, embora cheio de fantasia,

traz resultados completamente concretos, com substância, vigor e

profundidade (BORGES, 2002).

Assim a cultura popular se caracterizara por um ambiente de criações

metafóricas e histórias fantásticas, exageros e fusões impensáveis, que

retratará a presença do grotesco na cultura através da literatura e do teatro,

pista para compreender melhor a herança do corpo e de imagens grotescas

que rondam a palhaçaria, como nos revela Bakthin (1996) em “Cultura Popular

na Idade Média no contexto do escritor Françoise Rabelais”.

Para compreendermos o quão complexa é a trajetória do palhaço

devemos retornar à sua reminiscência grotesca no seio da cultura grega, matriz

colonizadora global nos últimos 5 mil anos.

O grotesco é uma expressão artística máxima que revela a força e a

pujança do império helênico na antiguidade clássica. O termo é usado,

inicialmente, para designar um tipo de arte ornamental, constituída de afrescos

com fusões e distorções hiperbólicas e fantásticas de plantas, humanos e

animais, que geram uma influência estética marcante que vai consolidar as

Page 26: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

26

bases da colonização romana, a partir do maniqueísmo entre bem e mal, belo e

feio, puro e impuro (MINOIS, 2003).

A palavra grottesca ganha definições mais amplas à medida que teóricos

e filósofos detectam, na literatura, aspectos ligados àquelas representações

plásticas (HUGO,2002). Não voltaremos aos primeiros contadores de histórias

da Idade da Pedra (DARIO FO, 1969), reminiscentes dos primeiros atores

humanos, vamos apenas a partir da Grécia.

Figura 02: Comédia de Arquétipos da Roma Antiga Atelanas. Século II a.C.

Fonte: https://licenciaturateatroiffluminense.wordpress.com/2016/05/24/teatro-romano/

Das Atellanas gregas (II a. C), personagens de farsas teatrais que

retiravam seus diálogos de relações sociais convencionais da época, utilizavam

máscaras estereotípicas e grotescas como as mostradas acima. A cultura

Page 27: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

27

teatral grotesca grega passa também pelas Bacantes, personagens femininas

grotescas presentes no culto popular a Dionísio, símbolo da derrisão e da

desordem nos ditirambos e rituais saturnais (BULFINCH, 2002). Nos dias que

eram dedicados às cerimônias, à Dionísio, no calendário grego, as Bacantes,

também chamadas de Coribantes, saíam aos bandos, junto a um Corifeu

(líder), cantando e dançando.

Outras personagens grotescas fundantes podem ser melhor descritas a

partir da mitologia grega de outros deuses menores (BULNFICH, 2002).

Nesse caso, Os Sátiros são passagem obrigatória para se conhecer um

pouco das imagens grotescas gregas. São divindades menores que

acompanhavam Baco ou Dionísio, com formas físicas idênticas às de Pã que,

certamente, inspiraram Os Sátiros romanos, com orelhas mais bicudas,

trazendo também nas mãos, geralmente, uma flauta ou uma taça e um tirso

(pequeno bastão, enfeitado com um ramo de hera ou videira).

Pã (Faunus ou Luperco, em latim, conhecido também como Priapo)2 é

uma divindade caracterizada por um homem barbudo, de cabelos

desarrumados, um falo descomunal, com cascos de bode e tendo um par de

chifres (BULNFICH, 2002).

2

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3

Page 28: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

28

Figura 03: Pã ensina Dafnis a tocar flauta. Cópia de mármore, Romana. Reprodução

de um original grego dos séculos III a.C.

Fonte: Collezione Farnese, Museu Arqueológico de Nápoles imagem grega (sem

data).

Nascido de Penélope (filha do rei Dríope) e de Hermes que a seduziu

tomando a forma de um bode, Pã não só acompanhava o séquito de Dionísio,

como adorava correr nu por entre vales e montes, caçando ou acompanhando

a dança das ninfas dos bosques e das montanhas (BULFINCH, 2002).

Veremos, portanto, a subversão da força do grotesco na Grécia antiga,

da força da magia, da adoração de deuses associados a fenômenos naturais,

deuses de cornos, tendo seus cultos suprimidos com o advento da colonização

monoteística.

Como nos retrata Coulanges (2006) em “Cidade Antiga”, o politeísmo

romano tem herança de deuses que representam fenômenos da natureza

associados a um culto aos parentes mortos, nos quais consideravam também

deuses os seus parentes, sendo seus sepulcros intransferíveis e invioláveis,

relacionando propriedade, religião e justiça.

Page 29: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

29

No século 300 d.c., destaca-se a conversão de Roma ao cristianismo,

que faz uma apropriação da cultura grega inicialmente, ocultando ou

distorcendo elementos e em seguida de outros povos colonizados em favor de

uma negociação cultural que irá reconstruir o poderio romano sobre as nações

colonizadas e, sobretudo, sobre os plebeus (COULANGE, 2006).

Essa negociação é ligada a uma visão de mundo que busca encontrar

elementos que se comuniquem entre culturas para introduzir a ideologia de

combate ao mal comum nas religiões antigas e suas estruturas de poder

(COULANGE, 2006). Em última instância, nos remete a supressão das crenças

anteriores como o animismo, o totemismo e a fertilidade da natureza.

O grotesco grego é transportado para a cultura romana como algo

atrativo, mas inferior (Hugo, 2002). As influências gregas ulteriores utilizavam-

se da imagem da violência de forma relativa, pois nem sempre o violento

representa o mal, assim o grotesco nos revela a relatividade do mal, a

complementaridade dos sentidos invertidos (MINOIS, 2003).

A conversão politeísmo/monoteísmo é o retrato de uma tortuosa e

violenta negociação cultural na formação do ocidente global, nos influenciando

até o momento presente. O grotesco passa a guardar elementos que só

poderiam ser acessados por cultos e práticas iniciáticas ou como clichê literário

e teatral. O grotesco decai de uma posição de cânone mítico para superstição

herética ou face cômica da cultura popular (BAKTHIN, 1996). Como

desdobramento, sofistica-se o maniqueísmo entre o bem e o mal, desenvolvido

plenamente a partir do aparato religioso institucional criado pelo império

romano, a Igreja Católica3, que consegue localizar e negociar os elementos

3

A invenção da Igreja Católica Apostólica Romana – Recentemente Joseph Atwill publicou o livro O

Messias de César, onde coloca dois livros, A Guerra Judaica, de Flávio Josefo, escrito no século I, e o Novo

Testamento, lado a lado. A sequência de eventos e locais do ministério de Jesus são praticamente as mesmas da

sequência de eventos e locais da campanha militar do imperador romano Tito Flávio, descrito por Josefo em seu

manuscrito do século I. “Acredito que a religião é inventada pelos tiranos e classes dominantes que a usam como uma

ferramenta de controle da mente. É muito claro para mim que os romanos criaram o cristianismo como uma religião

de Estado, uma estrutura de autoridade do topo para baixo. Os escravos não poderiam se rebelar contra o sistema

porque eles acreditavam que Deus era representado pela figura do Pontifex Maximus, o Papa estava no topo. Porém,

os escravos se rebelaram porque eles sabiam que era Cesar quem estava no poder. Essa é a razão pela qual Cesar

sempre tentou se tornar um Deus vivo. A cultura do império existiu por centenas de anos e sempre tentou dar a

impressão de que Cesar era Deus. Isso aconteceu porque eles sabiam que as pessoas não se rebelariam contra Deus.

Page 30: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

30

sociais como sagrados ou profanos, puro ou impuros, como forma de eleger

inimigos demoníacos comuns.

Não obstante, os romanos ao longo da formação de sua fé cristã

apagaram as origens orientais da sua civilização, traduzidas no grotesco,

mesmo utilizando-se de seus deuses grotescos e demorando ainda alguns

séculos para consolidarem esta discriminação contra a influência grega

(BULNFICH, 2002, COULANGE, 2006). Como evidência, vejamos o caso da

descoberta no subsolo do Coliseu. O Coliseu de Roma foi construído sobre o

lago da casa de Nero, sendo os fundos da Domus Áurea, seu palácio

residencial. O Coliseu foi uma construção requisitada pelo imperador Nero

após o grande incêndio que consumiu boa parte da cidade em 64 d.C. (o qual

se atribui a ele). Na antiga Domus Áurea, espaços subterrâneos reabertos

depois de quase 2 mil e quinhentos anos, foram descobertas fantasiosas

pinturas: imagens, figuras, estátuas compostas de pessoas ou deidades,

metade gente e metade animal ou metade figura mítica, o que evidencia que

Nero também se inspirou nessa referência estilista greco-oriental4.

No final, eles não conseguiram fazer as pessoas acreditarem que Cesar era deus e esta é a razão pela qual os romanos

decidiram inventar o cristianismo.”, extraído de entrevista virtual

http://noticias.terra.com.br/ciencia/pesquisa/historiador-jesus-nao-existiu-e-cristianismo-tem-sido-uma-

catastrofe,6b39f4113ccc1410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html

4

Fonte: http://www.archaeology.org/issues/187-1509/features/3562-golden-house-of-an-emperor. Acesso em: 22 mar.2017.

Page 31: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

31

Figura 04: a,b,c – Coliseu de Roma, fundos da Casa Dourada de Nero e afrescos

“grotescos” em seu interior.

Fonte: https://www.tempointegralblog.com/coliseu/

Page 32: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

32

Tais imagens evidenciam a herança oriental da cultura pré-cristã e a

capacidade do império romano de se apropriar das imagens e mitos gregos, no

entanto com outra acepção (transição dos deuses gregos para o panteísmo

romano e em seguida para o monoteísmo). Essa utilização foi em prol de uma

colonização que negociou o significado dos mitos e imagens, que santifica

personalidades escolhidas da cultura colonizada “em troca” da extirpação da

cultura colonizada em si, confirmando a concepção de Augé (1998), de que a

colonização começa com a ressignificação de símbolos.

Outra referência posterior de personagens-tipo romanos foram os

“Mimos” e os “Zannis”, que ao invés de se utilizarem apenas de máscaras, se

utilizavam de máscaras e de expressão corporal, referências greco-romanas

das manifestações teatrais populares, burlescas e satíricas, que por

característica própria traziam a violência e a precariedade humana estampada

em seus trejeitos (FO, 2011).

Assim, a resistência e a subversão, características tão presentes na

cultura popular também são demonizadas, enquanto prática sensorial humana

produzidas de modo marginal, mais notadas ainda, em contextos onde havia a

resistência e a sabotagem do sentido hegemônico, como feiras, festas, bares,

inspiradas e regidas pelo senso crítico ou pelo senso de humor (BAKTHIN,

1996).Os elementos divinos aceitos no Panteão romano são frutos de

negociação e supressão de sentidos multiculturais dos povos colonizados,

dentro de ritos sagrados oficiais.

O império busca sempre gerar uma expansão da sua perspectiva

hegemônica, reforçando a condição do colonizado, mesmo que sofra

alterações e adaptações em seus sistemas de crenças. A busca pela eficiência

dominadora se traduz na associação entre religião, Estado e divertimento,

apontando-nos uma trajetória de colonização a partir de uma metáfora cosmo-

política que se transfere a uma manifestação pública inscrita nos seus

instrumentos. A igreja, o poder e o teatro justificam o status quo e o

establishment vigente por um Estado poderoso.

Page 33: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

33

Outro fenômeno de apropriação cultural e similar ao do Panteão é o do

próprio Circo Romano, visto ser um investimento do Estado em uma prática

inspirada e compilada de diversas outras práticas anteriores de outros povos

colonizados, por terem como elo comum a adoração explícita da morte

(BOLOGNESI, 2003). Assim, o grotesco também foi utilizado a serviço da força

estatal romana, se reafirmando, a todo momento, na religião e no divertimento.

Em se tratando da relação do grotesco com Palhaço, podemos dizer

que sendo uma personagem-tipo, arquetípica e grotesca, remonta a mitos de

origem e mitos escatológicos. Quando falamos de arquétipo5 não podemos

deixar de ressaltar que a obra de Jung (1976) pode ser muito instrutiva para

compreendermos como, antropologicamente, os arquétipos são espectros

míticos de figuras fantásticas. Esses se constituem culturalmente por acúmulos

arqueológicos e históricos a partir de procedimentos performativos6 cotidianos,

para se somarem numa figura-chave mítica que, posteriormente, gera

desdobramentos em diversos campos do inconsciente. Ver o palhaço como

arquétipo remonta a influências que ultrapassam a noção de imaginação e

realidade, justamente por serem tão antigas e variadas e por engendrarem

profundamente a cultura humana.

O Palhaço é herdeiro da dualidade humana, retratada em seu corpo

grotesco. Atua sobre a desconstrução de valores e comportamentos sociais

hegemônicos (BAKTHIN,1996). O Palhaço, mesmo como um perfomer que

gera riso, em sua ambivalência também representa a face obscura da vida,

como essência do escárnio, representado pela condição humana de assumir

personalidades ridículas e idiotas, comportamentos reconhecidos e

estereotipados, inspirando a catarse pela piedade e pelo temor, valores

5

JUNG (1976) usou o termo para se referir a estruturas inatas que servem de matriz para a expressão e para o desenvolvimento da psique.

6

Significado de Performativo: adjetivo - ‘Diz-se de um enunciado que se dá ao mesmo tempo em que a ação por ele apresentada, na qual palavra e ato coincidem: Benzo-te com esse ramo de arruda”. in https://www.dicio.com.br/performativo/ acessado 25 de abril de 2017.

Page 34: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

34

intrínsecos ao moralismo social, visitados na repulsa e atração daquilo que está

sendo apresentado (MINOIS, 2003).

2.3 Cômicos- rituais

O extremo-norte do Brasil, região do Estado de Roraima, foi uma das

últimas regiões a sofrer a ocupação do Estado Brasileiro, tendo, desta forma,

preservado muitas das tradições culturais das populações originárias. Os povos

indígenas de Roraima, em especial as etnias (Macuxi, Ingarikó, Taurepang,

Yekuana e Wapixana) presentes na região circunvizinha ao Monte Roraima,

apresentam um riquíssimo repertório narrativo de tradição oral, centrado na

passagem de Macunaíma e de seus irmãos no mundo dos homens.

De acordo com estas tradições, estes heróis culturais são filhos do

próprio Sol - Wei na língua Macuxi e viveram em um tempo muito antigo,

quando nosso mundo ainda não tinha a forma que tem hoje; sendo eles os

responsáveis por dar forma ao mundo que conhecemos, criando espécies de

plantas, de animais e interferindo na geografia (KOCH-GRUNBERG, 1917).

Esta tradição oral está intimamente ligada ao Monte Roraima, o “toco de

Wazaká”, a árvore de todos os frutos que foi cortada por Macunaíma e seus

irmãos (que podem aparecer com os nomes Anikê, Insikiran, Jiguê, Manape –

dependendo da etnia que narra a história).

Este ato aparentemente irresponsável – cortar uma árvore que dava no

mesmo pé todas as frutas comestíveis – foi decisivo na composição da

paisagem da região (florestas e rios) e na cultura alimentar humana. A partir de

então recebeu suas roças de banana, de maniva -mandioca, e de todos os

demais alimentos que ainda hoje existem.

Estes mitos, registrados no início do século XX pelo etnógrafo alemão

Koch-Grunberg(1917), inspiraram Mário de Andrade (1928) a escrever

Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, texto que mais tarde deu origem a

filme homônimo de Antônio Pereira dos Santos (1969).

Page 35: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

35

Figura 05: Legado Científico de Theodor Koch-Grunberg

Fonte: Coleção Etnográfica da Universidade de Marburg, Inventarmummer/Numero de

inventário: KG.H.III.191d. Créditos Universidade de Marburg.

Figura 06: Os Makuxi, Netos de Makunaimî

Fonte: Divulgação documentário “A Vitória dos Netos de Makunaimî”.

Page 36: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

36

Estes mitos, difundidos também em inglês e espanhol (a região

compreende a tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana), registram a

linguagem cênica – performática - dos povos indígenas da região. Através da

performance de Pajés, Tuxáuas, Xamãs, e outros Narradores indígenas. Estes

contos são apresentados, carregados de gestos, sons e movimentos. São

apresentados, através de cantos, de poéticas xamânicas, diálogos cerimoniais,

danças circulares e de transe, uma etnocênica que envolve elementos da

natureza, do universo mágico, do trágico e do cômico.

Da mesma forma, temos o mito-vivo dos Irmãos Insikiran que se insere

universalmente na figura arquetípica dos Deuses irreverentes que

desempenham uma dramaturgia caótica-cômico-cósmica – cerimonial - em

diversas culturas humanas.

Outros mitos oferecem similitudes que nos fazem vê-los como jogadores

grotescos, conhecidos também como Trickster. Por exemplo, na figura

emblemática do Tarô é o Louco, aquele que quebra as regras dos deuses ou

da natureza, que comete atos aparentemente maldosos ou equivocados, mas

que normalmente têm efeitos positivos. Frequentemente a quebra das regras

toma a forma de um "truque", daí o termo, "trickster", que significa "pregador de

peças"(QUEIROZ, 1991).

Figura 07:O Louco (o arcano sem número).

Fonte: Tarô Medieval Cabalistico

Page 37: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

37

O Trickster (QUEIROZ, 1991) pode ser astuto ou tolo, ou ambos.

Frequentemente são engraçados e cômicos, mesmo quando considerados

sagrados. O Trickster simboliza a quebra da norma social e o que a princípio

parece um comportamento negativo, num segundo momento se revela como

afirmativo. O estudo étnico da potencialidade cômica destes personagens

míticos nos revelam atributos presentes na prática cômica que vão além da

ideia inocente de “fazer rir”.

Abreu (2015) cita outras referências de palhaços sagrados presentes na

obra de Del Bosque7 com referências de Cômicos Rituais de diversas culturas.

Busca também a obra de Mazzoleni (MAZZOLENI, 1979 APUD ABREU, 2015)

o qual fundamenta a funcionalidade ritual do riso, presente nos rituais sagrados

como parte de um comportamento cultural.

O riso nos rituais tem uma correspondência social e cultural para além

dos instintos, pois as expressões emotivas não estão descoladas da cultura,

fazem parte de um sistema de códigos que nega ou permite o riso de acordo

com sua intencionalidade.

Nas diversas culturas as divindades burlescas são identificadas e

retratadas, como baixos ou semideuses que abusam da institucionalidade

canônica8 e dos princípios cosmogônicos9: Mercúrio, na mitologia romana, Loki

na mitologia nórdica, Hermes na mitologia grega, Shiva, na mitologia indiana,

Exu, na mitologia afrobrasileira, Makunaima, na mitologia indígena sul

americana, Hotxuá, na mitologia Krahô, Hanyoka, na mitologia indígena norte

7

Diretor teatral, Professor, Bufão Ritual, pesquisador da diversidade cômica de diversas etnias

sul americanas , o qual tem um manuscrito denominado Palhaço na Academia que será citado adiante.

8

O cânone é um conjunto de modelos e regras estabelecidos que corroboram uma visão de

mundo, seja no campo das artes ou da religião.

9

Cosmogonia é a especulação sobre a origem e formação do mundo, base do sistema de crenças de um povo. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cosmogonia

Page 38: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

38

americana, Koyón, na mitologia do povo Mapuche, do Chile, Curcuche, no

Peru, Kusillo, do povo Aymará na Bolivia.

Figura 08: a, b, c, d, e, f, g, h,i, j, k, l – Cômicos Rituais.

Loki, divindade Nórdica

Fonte: Mitologia Viking

Hermes

Fonte: Mitologia Grega

Page 39: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

39

Shiva

Fonte: Mitologia Indiana

Exu

Fonte: Mitologia Candomblé

Page 40: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

40

Exu

Fonte: Mitologia Umbandista

Macunaima

Page 41: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

41

Fonte: O Nascimento de Macunaima – Carybé

Hotxua, o filme

Fonte: vídeo documentário de Leticia Sabatela e Gringo Cardia.

Xamã Henyoka

Fonte: Ritual Sioux

Koyón, antes del Guillatún

Page 42: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

42

Foto: Leonora Vicuña. Culinco Rinconada, Araucania, Chile.

Hopi kachina of Laqán, the squirrel spirit

.Fonte: Museum of the American Indian, Heye Foundation, New York.

Page 43: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

43

Curcuches

Foto: San Andres de Tupicha ,Peru. Luis Huayhuas

El kusillo con la careta de lana caracterizada por la gran nariz.

Foto: Credito Ivar Méndez.

Page 44: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

44

Estas são algumas ilustrações e citações de referências que nos ajudam

a compreender o papel do malandro mítico, o Trickster, o bufão ritual ou como

temos chamado, o palhaço sagrado (ABREU, 2015). Este é o caso dos irmãos

Macunaíma, tidos como Tricksters, deuses brincalhões que por ingenuidade ou

maldade aparente, configuraram o mundo conhecido.

Identificar o lugar do Cômico Ritual e sua reminiscência nos leva aos

estudos de mitologia e religião comparada de Campbel (1999)que defende a

ideia de uma jornada do herói, como um tema recorrente na mitologia dos

povos, onde um sujeito divino, que ele chama de herói, personagem divino

com características antropomórficas, possuem vícios e virtudes e possuem

hábitos ou modo de vida traduzidas através de expressões do corpo grotesco e

escatológico (BAKTHIN 1996, DEL BOSQUE 2008) , como se fossem super

poderes e que se destacam por sua jornada.

As jornadas são representadas por histórias que misturam vida social,

fortunas, virtudes, vícios, desafios sobre si e sobre o destino. Tratam se da

trajetória de vida destes deuses heróis, as quais são interpretadas como

metáforas de diversas dimensões sociais e psíquicas da vida humana. Através

da trajetória, do personagem em si (ARISTÓTELES APUD DESTREE), gera-se

uma identidade consciente de superação individual ou de temor e repulsa

sobre algum aspecto considerado assustador e social da trajetória de

transformação da sociedade, deslocamentos de poderes e valores, mudanças

sociais e identitárias que se expressam nas interpretações dos mitos

(CAMPBELL 1999, BAKTHIN 1996).

Os heróis são as personalidades divinas que encenam a mesma história.

Conhecemos profundamente suas trajetórias, do começo ao fim. São jornadas

cíclicas, conhecidas como monomitos (CAMPBELL 1999), com as quais

aprendemos sobre diversos campos do conhecimento, conhecendo e

vivenciando seus rituais como as próprias etapas de passagem ou eventos na

jornada dos heróis divinos, seguindo comparativamente padrões comuns, como

Osíris, Dionísio, Adônis, Átis e Mitra, Osíris, Buda e Jesus Cristo. O que esses

mitos representam de alguma forma é a apropriação de um fato real (feito ou

protagonismo de uma personalidade em uma data e local), seguido do reconto,

Page 45: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

45

da releitura, miticamente destorcida e transformada, recebendo atributos já

presentes, como valores e crenças humanas, guardando em segundo plano

interpretativo a metáfora simbólica de transformações no seio da cultura dos

povos (CAMPBELL 1999).

Campbell(1999) identifica uma cadeia de acontecimentos que seguem uma

linha recorrente nos mitos das diversas culturas, que ele identifica como os

doze estágios da jornada do herói:

1. Mundo Comum- O mundo normal do herói antes da história

começar.

2. O Chamado da Aventura - Um problema se apresenta ao herói:

um desafio ou aventura.

3. Reticência do Herói ou Recusa do Chamado - O herói recusa ou

demora a aceitar o desafio ou aventura, geralmente porque tem medo.

4. Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural - O herói encontra

um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua

aventura.

5. Cruzamento do Primeiro Portal - O herói abandona o mundo

comum para entrar no mundo especial ou mágico.

6. Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia - O herói

enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que

aprende as regras do mundo especial.

7. Aproximação - O herói tem êxitos durante as provações

8. Provação difícil ou traumática - A maior crise da aventura, de vida

ou morte.

9. Recompensa - O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao seu

medo e agora ganha uma recompensa (o elixir).

10. O Caminho de Volta - O herói deve voltar para o mundo comum.

11. Ressurreição do Herói - Outro teste no qual o herói enfrenta a

morte, e deve usar tudo que foi aprendido.

Page 46: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

46

12. Regresso com o Elixir - O herói volta para casa com o "elixir", e o

usa para ajudar todos no mundo comum.

Estes comportamentos míticos estão presentes, transversalmente, em

distintos campos da vida humana, influenciam a ética e o modo de vida. São

como matrizes que se multiplicam para pensamentos e práticas diversas em

todos os tempos e que muitas vezes não revelam explicitamente suas raízes e

muitas vezes nem a reconhecem como tal. Essas noções sobre presença das

trajetórias míticas nos levam à possibilidade de rever os conceitos e visões de

mundo que nos encerram no simulacro da cultura. Os mitos, portanto, são

instrumentos utilizados para completar a ideia de herói mítico humano e

expandir a percepção cultural ou podem ser motivo de conversão e devoção,

diante do arrebatamento de quem seja o herói, nesse caso, Jesus.

A ideia de Cômico Ritual dialoga com esse lugar do herói divino, que

assume ou demonstra de modo explícito suas características extra-humanas

(escatológicas) e sub-humanas (grotescas) e que ao mesmo tempo permitem

fazer dialogar a metáfora poética com os valores sociais. Cito como exemplo, o

elemento de esfacelamento físico do corpo do herói e a transformação em algo

divino e grandioso, metáfora que diz respeito a origem dos valores, das

comunidades ou famílias (órgãos) que compunham o corpo do herói

(DELEUZE, 2008, CAMPBELL 1999, BAKTHIN 1996) e revelam os confrontos

e as barreiras, expressões da tensão gerada pela disputa pelo poder.

O Cômico Ritual é um ator mítico que, através do acionamento ritual da

máscara e das mimesis revela a contraposição de valores dentro dos cânones

cosmológicos, nos lembrando o tempo todo que os deuses também erram,

também tem vícios e podem ser perversos, omissos ou negligentes, vingativos

e apaixonados. Os Cômicos Rituais assumem, portanto, o lugar limite entre a

adoração e a derrisão do deus adorado (BAKTHIN, 1996). Nesse caso, os

deuses irreverentes trazem este movimento pendular de adorar e odiar a Deus,

de aceitar e negar, expressos nas maldições, juramentos, imprecações, tão

características da cultura popular medieval (BAKTHIN, 1996). Os Cômicos

Rituais vão revelar igualmente a tirania e a opressão sobre a humanidade, dos

Page 47: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

47

próprios deuses adorados, pois traduzem justamente esta contradição que

engendra o mundo, do poder de um sobre muitos.

O Cômico Ritual não é um Palhaço, apesar de identificarmos

características de Cômicos Rituais em Palhaços, nem tampouco Bufão, apesar

de também revelar um corpo grotesco.

A presença dos deuses irreverentes é celebrada através das máscaras

rituais, seus corpos possuem características e capacidades mágicas. As

máscaras são fruto da transferência simbólica dos deuses irreverentes, assim

como os personagens são fruto da transferência de máscaras (AZEVEDO,

2010).

Os Cômicos rituais operam esta contrafação cultural, aparecem nos rituais

desestabilizando a ordem, mas participam diretamente da coesão social, rígido

modelo do que contradizem.

O Bufão Ritual e o Cômico Ritual estão imersos na mesma influência

histriônica e escarnecedora, imbuídos de atributos míticos, ao promover a

desconstrução das referências acionadas, permitem a renovação da ordem em

sua trajetória ambivalente (BAKTHIN 1996, DEL BOSQUE 2008).

A relação de adoração e repulsa para com o Cômico Ritual estabelece

esse lugar de referência ambígua de adoração e medo, de alegria e temor

(MINOIS, 2003).

Cada período histórico guarda a presença de Cômicos Rituais e Bufões

Rituais que expressam e caracterizam a relação biopolítica de sua época com

o riso, o lugar do riso indica por sua vez a relação com o corpo, valores sociais,

comportamento, mito, entre outros (MINOIS 2003, DELL BOSQUE, 2008).

O riso é uma prática libertadora, mesmo que muitas vezes apropriado e

usado para oprimir e cercear (BAKTHIN, 1996, MINOIS 2003). Possui

expoentes nos campos estéticos visuais, literário e corporal. No campo corporal

esta influência está basicamente na exageração e metamorfose do corpo

grotesco, orientado pelas noções de alto e baixo corporal (BAKTHIN, 1996), de

pureza e impureza, tendo como referência o corpo do Bufão Ritual (DELL

Page 48: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

48

BOSQUE, 2008), que se sacrifica em honra a derrisão. Não que este corpo

necessite de evidenciar sua existência, mas que seja posteriormente narrado,

recontado, reconstituído pela fé ou pilhéria, aumentado, exagerado, fantasiado,

de modo que esse corpo grotesco ultrapasse a referência do corpo humano,

mesmo que guarde semelhanças (BAKTHIN, 1996).

Estudar o Cômico Ritual é importante por nos trazer uma referência de um

modo de construir a sociedade e explicar o mundo de forma criativa. Portanto,

o palhaço sagrado diz da própria existência humana.

Falar sobre comicidade ritual, encontrada em diversos grupos étnicos é estabelecer zonas de contato entre diversos modos de existir, de "atuar", de vivenciar a comicidade e problematizar os diferentes valores intrínsecos a prática cômica em diferentes culturas, ampliando assim, nossos modelos estéticos e éticos (Abreu, 2015 p.37)

Pude viver a experiência do Cômico Ritual e incorporar uma experiência

ética de êxtase10, quando fui batizado na aldeia Manoel Alves na reserva Krahô

no norte do Estado do Tocantins.

É certo que as tribos estão repletas de personagens cômicos sagrados.

Os Krahô, por exemplo, têm personagens sagrados cômicos como irerekateré,

(gavião), hekiikti (gavião preto), tutkapregré (pomba vermelha). Em outras

tribos, ABREU (2015) cita nos Kaiapó, ao longo do rio Xingu as máscaras

cômicas sagradas dos KoKoi (Macaco prego), Kabut (macaco guariba) e Pàt

(Tamanduá bandeira).

Nos Suyá, Mato Grosso, os velhos e velhas são considerados como uma

classe de cômicos iniciados, os chamados Wikény, já entre os Apinaié, também

chamados Timbiras, Tocantins, um dos partidos cerimoniais Ipôgnotxóine, são

conhecidos como mentirosos, imprevisíveis e cômicos. Nos Kaxinawa, no

Amazonas, também, possuem uma figura mítica, caracterizada por forte apetite

10

Aproxima-se de uma desconstrução de valores a partir de rituais e práticas que provocam

reações de catarse e êxtase, sem o uso de drogas ou agentes químicos externos, a partir da imersão na

vivência cósmico-poética.

Page 49: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

49

sexual e os Krahô Canela denomina Mekhen, a “cabeça seca”, de baixo

prestígio social, opondo-se aos “cabeças úmidas” de alto prestígio.

Estas citações mostram a existência da figura ou personagem cômico

numa posição de destaque, apresentam a referência cômica como elemento

canônico e, portanto, sagrado, trazendo-nos referência de outro lugar social do

riso.

2.4. Interdição do riso na liturgia cristã

Vejamos referências da interdição do riso na religião cristã. As festas de

carnaval e os espetáculos cômicos e os rituais relacionados com eles tinham

um lugar importante na vida do homem medieval. “Além dos carnavais

propriamente ditos, com seus longos e complexos concursos e procissões,

havia a”festa dos tolos(stultorum) e a "festa do burro", havia um "riso da

Páscoa" especial (risus paschalis), consagrado pela tradição (BAKTHIN,

1996), anteriores a contenção do riso pela eliminação do Riso Paschallis11.

A Idade Média oferece uma orientação social através de valores

culturais subordinados a finalidades éticas e religiosas, tendo como modelo um

ideal de vida teocêntrico, mas mesmo assim a cultura religiosa cristã do

sagrado e das vidas de santos era justaposta a cultura profana popular

carnavalesca das sátiras com grande liberdade verbal (BAKHTIN, 1996).

A tradição satírica medieval tem as suas raízes em tradições satíricas

anteriores da tradição clássica, nos ritos das celebrações das forças da

natureza, trazendo à praça pública a revelação da animosidade privada,

convertendo-se numa poética literária e cênica de intervenção pública e/ou

política, tendo como evidência o fato das cantigas de escárnio e maldizer

11

Trata-se de um fragmento do rito católico da Páscoa que foi suprimido pelo Papa Clemente X. A teóloga Maria Caterina Jacobelli, estudou este fato em sua obra chamada "O Riso Pascal e o Fundamento Teológico do Prazer Sexual" (Il risus paschalis e il fondamento teologico del piacere sessuale) publicada na Brescia, Itália, em 2004.Nesta obra, Maria Jacobelli afirma que “para ressaltar a explosão de alegria da Páscoa em contraposição à tristeza da Quaresma, o sacerdote na missa da manhã de Páscoa devia suscitar o riso no povo. E fazia-a por todos os meios, mas sobretudo recorrendo ao imaginário sexual. Contava piadas picantes, usava expressões eróticas e encenava gestos obscenos, dramatizando relações sexuais. E o povo ria que ria”. in: http://leonardoboff.com/site/vista/2004/out15.htm

Page 50: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

50

medievais se deverem ao grotesco carnavalesco (LOPES, 1994, TAVANI, 1998

apud NUNES, 2004).

Além disso, quase todas as festas da igreja tinham seu aspecto de

historieta lúdica, que também era tradicionalmente reconhecida. As festas

paroquiais, geralmente marcadas por feiras e variadas diversões ao ar livre,

contavam com a participação de gigantes, anões monstros e animais

treinados12.

A sátira e o riso na cultura medieval correspondem a tradições populares

profanas muito antigas que coexistem com o sagrado da religião cristã e as

vidas de santos (NUNES, 2004).

Uma atmosfera de carnaval reinava nos dias em que os Mistérios eram

apresentados. As supressões destas festas do calendário católico medieval,

portanto guardam uma relação direta com a interdição do riso em seus rituais,

uma vez que os autores e estudiosos da literatura e do teatro cômico popular

também são clérigos (BAKTHIN, 1996).

Negar a relação do Jesus histórico com o riso (MINOIS 2003), como

elemento chave na ordem social e religiosa revela, portanto, uma intenção de

interdição do riso na cultura popular, na medida em que, as práticas cômicas

andam juntas com as sérias, pois o riso também tem papel social nos rituais

considerados sagrados, sendo uma linha ritualística tão formal e oficial quanto

a séria, pois o riso também ocupa um lugar de rito (MAZZOLENI, 1979 APUD

ABREU, 2015). A imagem do Cômico Ritual persiste em encenações e

narrativas de um herói às avessas, revelando momentos pitorescos de sua

jornada.

A negação da relação de Jesus com o riso, consequentemente, faz parte

de uma dinâmica de esterilização e apropriação de sua imagem, pelo mesmo

império que o crucificou e pelo mesmo povo que o adorou (REICH, 1982).

A religião católica, séria por excelência, exclui com seu monoteísmo sisudo

o riso do mundo divino. Minois (2003) avalia que na maior parte do velho

12

In: http://contingenciesblog.blogspot.com.br/2010/02/festa-stultorum.html

Page 51: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

51

testamento as referências de riso estão ligadas ao escárnio e a zombaria,

formas recorrentes de rebaixamento e desqualificação do outro pelo riso.

Apesar do mito de que Jesus nunca riu ter se popularizado por volta do século

IV, os evangelhos, os atos, as epístolas não revelam imagens afirmativas do

riso, contudo, não é possível imaginar um Messias bondoso e generoso sem

senso de humor. A ausência de literalidade cômica na maior parte da Bíblia

todavia não impede o reconhecimento de passagens passíveis de humor.

De acordo com Del Bosque (2008) a supressão do riso canônico é

indício de uma verdade mais gritante que a Igreja Católica esconde, sobre a

própria relação de Jesus com o riso (MINOIS, 2003), já que não se tem notícia

na bíblia de Jesus rindo. DEL BOSQUE (2008) num ato de desconstrução

desse mito de sisudez do Messias evoca a obra de Dario Fo (1969),

denominada Mistério Bufo, uma obra teatral documental, para justificar sua

teoria na qual Jesus teria sido um Bufão Ritual. Primeiramente Dario Fo

delimita o significado de Mistério Bufo13. Se Mistério é o termo que indica

representação sacra medieval, Mistério Bufo designa espetáculo grotesco: “o

diário falado e dramatizado do povo” (DARIO FO, 1969).

Mistério Bufo é o termo popular que designa representações teatrais

grotescas, modos de expressão, comunicação e manifestação dos primeiros

séculos da Idade Média, uma forma completa de comunicação do povo. O

Mistério Bufo transgride e subverte a ordem canônica cristã de forma cômica e

grotesca, é uma metáfora da negação do Mistério Sagrado e dá indícios de que

Jesus pode ter sido um Cômico Ritual.

Para Dell Bosque (2008) não há coincidência na imagem de Jesus

entrando em Jerusalém montado num asno para libertar o povo e de

Dionísio/Baco, descendo ao inferno para resgatar a Primavera. Enxergar um

deus dentro do outro é uma habilidade humana recorrente, que traduz a

13

Homenagem a obra homônima de Maiakoviski, mas que traduz o mergulho de Dario Fo em

estudos culturais religiosos e esotéricos antigos como forma de fundamentar a teoria teatral

apresentada em seu livro Manual Mínimo do Ator.

Page 52: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

52

negociação simbólica de nossos Bufões rituais convertidos em santos e

messias oficiais.

Na obra de Bakthin (1996), as referências da tradicional “festa do asno”

ou “festa do tolo” trazem similaridades com a marca da crucificação e

ressurreição de Jesus. Outros elementos sugerem a figura do palhaço

entronado e destronado, sua entrada como realeza, satirizando a autoridade e

que será coroado, sendo a coroa real feita de espinhos, no qual seus inimigos

o entronam como uma caricatura real, erguido em seu “trono madeiro” com a

inscrição INRI ou Iesus Nazarenus Rex Ioderum, ouJesus de Nazaré, Rei dos

Judeus.

Jesus é como um juglar (jogador itinerante), um Cômico Ritual que

converte água em vinho, conta histórias, conversa com árvores em chamas,

enfim, verdadeiramente um “louco por Deus” (DELL BOSQUE, 2008).

Figura 09: Entrada triunfal em Jerusalém.

Fonte: Afresco de Giotto na Capela Scrovegni, em Pádua, na Itália.

Page 53: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

53

Dizei à Filha de Sião: eis que o teu rei vem a ti, manso e

montado em um jumento, em um jumentinho filho de jumenta

(Mt 21, 5; Zc 9, 9) ... “numerosa multidão estendia suas vestes

pelo caminho, enquanto outros cortavam ramos de árvores e

os espalhavam pelo caminho” (Mt 21, 6) ... “Hosana ao Filho de

Davi! ” (Mt 21, 9), gritam uns, “Seja crucificado” (Mt 27, 22),

gritam outros.

Jesus teria sido um Cômico Ritual com seu mito e sua imagem sagrada

negociadas, como ícone do Império Romano, herdeiro do mito de Dionísio por

recorrências e similaridades, como o fato de serem contadores de histórias,

anunciadores de uma nova era e deuses vivos sacrificados. O Mistério Bufo

desconstrói o maniqueísmo religioso do Bem contra o Mal que vela o cânone

cósmico cômico14. Verifica-se nas próprias imagens reproduzidas,

marginalmente, referências desta bufonaria sagrada de inversao de sentido, a

partir da figura humana crucificada, capaz de transformar sua interpretação de

simbolos de opressão.

14

A expressão cômica tem papel fundamental no ordenamento sagrado do caos cósmico, os Deuses Irreverentes, como mitos, nos trazem esta referência.

Page 54: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

54

Figura 10 - Grafite de Alexamenos II D.C., muralhas de Paladino “

Fonte: Museu Antiquario do Paladino

A inscrição feita em grego antigo diz: “Αλεξαμενος ϲεβετε θεον”, “Alexamenos adora

(seu) deus “.

“Essa “escultura” foi encontrada em uma pedra em um recinto na

Colina Palatina (…) Ele mostra um opinião a respeito de Jesus e

de seus adoradores posteriores em Roma, que não era muito

positivo” (in: Jesus among friends and enemies, HURTADO, 2011

pág. 10)

As culturas vivas são receptivas às influências externas. Num certo

sentido, toda cultura é um processo de apropriação e introjeção de valores.

Augé(1999) cita como ilustração a disputa de significados míticos dos sonhos

entre os xamãs originários da cultura Pumé e os colonizadores que traziam um

novo significado para as suas imagens oníricas.

Page 55: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

55

De acordo com Augé (1998) os analistas da modernidade opuseram dois

tipos de mitos: os de origem, que situam num passado longínquo a gênese dos

grupos humanos e das cosmologias, nas quais os mitos de origem se

desenvolveram, e os mitos escatológicos que fazem do futuro e da morte o

princípio de sentido. Assim as práticas religiosas dos dominados situam-se

bem no entre-dois-mitos que acabamos de evocar com o caso Pumé: entre um

passado truncado e um futuro obscuro (AUGÉ, 1998).

Segundo Augé (1998), a situação de entre-dois-mitos, em geral, estimula

a produção e a fusão de imagens e abre caminho para a imaginação. Cita para

tal ilustração as experiências de xamãs africanos e representantes de religiões

sul-americanas, observando as potencialidades criativas e de adaptação

destes para sobreviver às imposições do mundo imagético europeu.

Mas, segundo o autor, esse conflito acaba recaindo numa mistura de

valores, de crenças e de perspectivas que destrói, necessariamente, a base

antiga dos mestres e xamãs e seus mitos, da qual sobram resquícios, indícios

e sonhos.

O mesmo ocorre quando surgem os relatos da modernidade. "O

discurso moderno pretende ocupar o lugar do imaginário coletivo, reconstruir

uma memória a partir de um acontecimento fundador para abrir a imaginação

ao futuro” (AUGE, 1998). Esse acontecimento fundador pode ser, para uns,

algo como a Revolução Francesa e, para outros, as guerras de independência.

Corroborando ainda com a ideia de apropriação e significação de

imagens, no que tange apropriação e hibridismo cultural, Geertz (2008) traz a

leitura de interpretações do dinamismo das culturas e das transformações

culturais como característica da investigação antropológica. Tais referências

nos fazem pensar em como o dinamismo cultural de misturas e ressignificação

propiciou a herança sagrada do palhaço na contemporaneidade, oue consuma

a trajetória do palhaço, no rastro da transferência das máscaras demoníacas

para máscaras carnavalescas e para máscaras da comedia Dell „Arte e

finalmente deixando traços no jogo de palhaço.

O Cômico Ritual trabalha no âmbito da alteridade, das diferenças e das

inversões de sentidos e valores e os estudos de Geertz (2008) auxiliam no

Page 56: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

56

sentido de avançar na atualização destes mitos sagrados, tão próximos e

paradoxalmente tão distantes do mundo contemporâneo, tendo como exemplo

a figura mítica de Jesus como um Cômico Ritual.

Assim, mesmo em situações de conversão, algo do religioso (ou mítico)

sobrevive. Entretanto, o ideal de modernidade, anuncia, ao contrário a todo

momento e em toda parte, a morte dos mitos quando se tornam elementos de

ficção. (AUGÉ,1998).

Abordar essa questão pressupõe, porém, uma dupla reflexão sobre a

imagem: De um lado, o desenvolvimento do suporte da imagem material, à

qual os humanos estão ainda mais expostos e sensíveis hoje que na época

antiga e que mudou de natureza a partir do momento em que se tornou móvel

e virtual. De outro a transformação da própria imagem gerada como elemento

de ficção, sobre a qual podemos nos perguntar se mudou de natureza ou de

estatuto, a partir do momento em que não mais parece constituir um gênero

particular, mas fundir-se a realidade (AUGÉ, 1998) a ponto de confundir-se

com ela.

Assim, vemos nos totens, nos mitos e nas imagens antigas resquícios de

uma construção tensa e confusa, gerando um fenômeno imagético, operada

pela apropriação e reprodução das tradições e jogos populares.

As reproduções dos personagens-tipo na contemporaneidade funcionam

como mascotes, símbolos antropomorfos à semelhança de deuses gregos ex-

machina do futuro, criados para projetar e transmitir a aspiração de algo ao

espectador, que em última instância são os próprios fiéis e adoradores

iniciados.

Os Deuses ex-machina são agentes externos que tomam corpo na

forma de personagens, artefatos ou evento inesperado e entram em cena no

teatro grego quando o protagonista não tem mais poder sobre seu futuro, o que

deixa o espectador conectado ainda mais com a experiência mágica de bem-

aventurança do herói (CAMPBELL, 1990).

Na contemporaneidade as promessas dos mitos são ex-machinadas,

transmitidos através de suportes móveis como televisões, internet entre outros,

por neo-mitificações que teleguiam os espectadores em um claro sentido de

Page 57: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

57

dominação hegemônica. Repensar o palhaço em zonas de vulnerabilidade

também é discutir em que campo o mesmo trabalha, se como ex-machina ou

como Cômico Ritual.

2.5. Antropologia da dádiva aplicada à arte da palhaçaria

O estudo da Dádiva ou Dom15 comporta ampla diversidade de atos e

fenômenos sociais e se baseia em formas e razões de troca nas sociedades

arcaicas, nas quais se acredita que um contrato tácito de alianças e trocas,

entre os indivíduos e os grupos é constituído, visando a manutenção daquela

cultura (MAUSS, 2003)16. Mauss (2003) estuda culturas polinésias e

melanésias e identifica o ritual Potlatch, como expressão da economia da

dádiva.

A riqueza do doador só pode ser comprovada com sua doação ou

destruição de bens e valores, de outra forma, recusar uma dádiva é se

reconhecer incapaz de retribuir, impotente diante da relação em que se está

envolvido.

Como Dádivas, são compreendidos objetos e ações presentes na

cultura. Oferendas, cerimônias, serviços, esmolas, visitas, o consumo e a

destruição de bens valiosos - dos quais se pode dispor, seja ofertando-os, seja

destruindo-os, como base para a formação de alianças e geração de respeito.

A Dádiva é um elemento existente desde a origem humana, estudos

comprovam sua existência por meio de trocas simbólicas realizadas em rituais

15

Marcel Mauss em seu Ensaio sobre a Dádiva de 1925, edição de 2003, nos oferece um estudo

de caráter etnográfico, antropológico e sociológico sobre a reciprocidade como base da economia

simbólica e origem antropológica do contrato, sendo que tal conjunto de trocas ocorrem entre indivíduos

de um grupo e entre diferentes grupos e correspondem as primeiras formas de economia e da

solidariedade social que une os grupos humanos.

16

Mauss, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. in: Mauss, M. Sociologia e Antropologia. SP, Cosac Naif, 2003.

Page 58: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

58

tribais antigos, como trocas de amuletos, cajados e outros objetos que

assumem importante papel no sistema social (MAUS,2003).

Permeados sempre por significados simbólicos diversos, os contratos

são feitos com base na oferta, pois dispor de um objeto ou realizar uma ação

significa fazer um pacto e todo pacto gera um estado de tensão. Trata-se de

uma adesão e de uma comunhão que vai muito além da aceitação do presente

em si. Aliás, o termo presente pode ser sugestivo para indicar três elementos

fundantes da relação social humana, quais sejam, o tempo verbal, a ação de se

fazer presente e o objeto ofertado, como expressão da força simbólica desta

relação de troca recíproca. O presente tem significados que vão além da sua

própria existência, pois é fonte de energia e acionamento para relações.

A teoria da Dádiva traz o conceito do Mana, ou a alma mágica

transferida às coisas materiais e imateriais existentes no cosmo e na terra. O

presente tem esse lugar da magia e das relações simbólicas, como forma de

manutenção das relações e da coesão social.

A economia da dádiva é uma forma de organização sócio cultural, no

qual não se assina um contrato explicitamente:

Não se está falando em termos legais: estamos falando de

homens e grupos de homens, porque são eles, é a sociedade,

são os sentimentos humanos (...) que se transformam em ação.

(MAUSS, 1974, pg.47)

Vemos a aplicação científica da Dádiva não só nos rituais sociais

religiosos tribais, como no campo da linguística, da semiologia, da etnologia, da

análise de sociedades complexas, das análises sociológicas das relações

urbanas, na própria filosofia da ciência (MAUS, 2003) e porque não, na arte da

palhaçaria.

A Dádiva faz-nos sentir preso ou ligado a uma relação e ultrapassa o

interesse material objetivo. Faz parte da construção de valores e pode ser

expressa em relações de diversão, proteção e afeto geradas por troca

simbólica que impulsiona o recebedor a retribuir sem ser necessariamente

cobrado (GOTBOUT, 1999).

Page 59: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

59

Trata-se de uma complexa economia simbólica que articula valores e

artefatos, e carrega em tais elementos significações que definem valores e

reciprocidade: dar, receber e retribuir são seus pilares. Dessa forma, três

dimensões da troca são evidenciadas, indicando o estágio em que o fenômeno

se encontra: a primeira doação, que dá início ao ciclo, em seguida a recepção

e a retribuição, como uma segunda doação, com papel definidor na

continuação da próxima troca.

Quando um grupo de palhaços se propõe a realizar atos cênicos,

podemos observar está Dádiva em processo e fazer esta associação entre

Economia da Dádiva e a arte da palhaçaria. Pode-se conferir a estética

relacional de palhaços e palhaças o lugar de gerador de campos e vínculos de

reciprocidade, tanto em uma dimensão endógena, quer dizer entre os palhaços

e palhaças que preparam e conduzem a cena, na disponibilidade de serem co-

criadores, quanto em uma dimensão exógena, no jogo de co-criação com o

público e do público entre si. Quando o palhaço atua em lugares de passagem

como em logradouros e espaços aberto o seu jogo é se doar como uma

Dádiva, convidando o espectador a parar para assisti-lo e jogar com ele.

O ato de parar para assistir e participar, desdobra-se em espelhamentos

e envolvimentos emocionais, nos quais iniciam-se um sistema de trocas de

olhares e risadas entre espectadores que se unem numa unidade comum.

Mesmo que fugaz e efêmero, o momento se configura como um acordo tácito

em que o espectador compreende o motivo pelo qual o ator preparou aquela

ação, para tocá-lo principalmente, mas também para criar experiências

sensoriais e consolidar uma cumplicidade em comungarem imagens sugeridas

pela cena.

Nestes espaços, a Dádiva definida por um frágil acordo entre palhaços

e espectadores é mais fugidia quanto mais numerosos são os fatores

dispersivos do espaço aberto, que desobrigam a plateia a permanecer no local.

O que se propõem nesta associação entre Teoria da Dádiva e o Jogo de

Palhaço é questionar o modo como o Jogo de Palhaço se apropria ou se

encaixa na noção de estética relacional (FRIQUES, 2013). Nesta relação,

pergunta-se: o palhaço reforça a sociabilidade capitalista hegemônica ou

Page 60: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

60

propõe uma troca simbólica capaz de potencializar construções contra

hegemônicas?

Um elemento chave na observação desta Dádiva em processo no Jogo

de Palhaço refere-se à ação de triangulação, que consiste na comunicação

visual, onde o palhaço a cada ação ou sentido expresso olha para o público e

para o objeto ou parceiro de cena, o que traz o espectador para esse lugar de

compartilhamento e convívio continuado (DUBATTI, 2003).

Podemos dizer que este é um fenômeno de “‟ abdução poética

(DUBATTI, 2003 and PEIRCE, 1977)17, no qual o espectador é convidado a

participar da cena, sem necessariamente deslocar seu corpo, através da

corrente visual que integra palhaço e espectador. O palhaço comunica um

problema e busca soluções, muitas vezes risíveis, geralmente absurdas,

amparado sempre na reação do espectador, percebida principalmente pelo

olhar.

Rompe então, o que chamamos no teatro de “quarta parede”, elemento

que isola ator e público, herdado do ator burguês iluminista que negligencia em

seu ato cênico a presença do público. Nesse sentido, a ativação do espectador

dá existência a “obra” do Palhaço, que só existe se o público aceita esta oferta

cênica (DUBATTI, 2003).

Esta troca recíproca não se trata necessariamente de um acordo ou

consenso pleno, pois o tempo todo o palhaço apresenta a possibilidade de

surpreender e até de constranger o espectador.

Esse aspecto gera um estranhamento, pois a troca nunca se exime do

risco, sempre presente no jogo de palhaço, que nunca é integralmente

confiável, pois ora perde suas fronteiras entre ele e o público e ora as reforça, e

assim constrói uma economia simbólica inerente às relações humanas e que

17

A abdução simplesmente sugere algo, é uma operação lógica que apresenta uma ideia nova, diferente da indução, apenas determina um valor ou da dedução que desenvolve as consequências necessárias de uma hipótese (PEIRCE, 1977, PP.220). Na abdução poética o espectador é tomado pelo acontecimento, pode entrar e sair do acontecimento, pode obter condição de simultaneidade, reforça a força da poiesis, sua liminaridade entre ator e espectador e as qualidades transcendentais do ato (DUBATTI, 2003).

Page 61: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

61

ocasionalmente podem estar imbuídas de consensos com a hegemonia

dominante ou serem contra hegemônicas.

Assim, a leitura dos aspectos hegemônicos e contra hegemônicos da

presença do palhaço na contemporaneidade se tornam essenciais para

compreender que tipo de dádiva está sendo proposta (GOTBOUT,

1999),(ALVES, 2010) se é uma dádiva que submete o espectador a conteúdos

e mensagens dirigidas, associadas ao sistema estabelecido ou uma dádiva que

busca romper com essas mensagens e cria outros códigos, que permitem aos

espectadores questionarem o sistema vigente, através de sua participação

ativa, na qual é valorizada sua experiência criativa e interpretativa (PAIVA e

SOUZA,2015).

Esta economia simbólica é gerada num jogo complexo de intenções,

interações e afeto. O Jogo de Palhaço guarda dimensões gradativas do

protagonismo que envolve espectador, ora como jogador ativo, ora como

espectador que contempla. Ambos os lugares colocam o espectador como

agente da ação cênica do Jogo de Palhaço, capazes de se tornarem partícipes

através do alcance do limite da interpretação (ECO,2016) das imagens

cenicamente produzidas.

A inversão, as reações alógicas ou ilógicas de sentidos provocados no

espectador fazem instaurar um campo de estranhamento, de suspeição do que

poderá acontecer na ação seguinte. A escolha do rumo da cena ocorre por

uma hiperbolizacão, uma tradução explicitamente alterada da realidade

enquanto verdade. Posto isso, pergunta-se, o que ou como esse fenômeno de

alteração imaginativa do campo de sentido das ações afeta os próprios

agentes-espectadores?

Arrisco a dizer que os espectadores como agentes oferecem sua

corrente visual, seu ruído e sua interpretação autoral ao Palhaço que opera o

tempo-ritmo de suas reações (DONELLAN,2007) e improvisos de acordo com

sua impressão da atenção e envolvimento do agente espectador. O agente

espectador alimenta expectativas, oferece retorno afetivo ao Palhaço que por

sua vez intensifica o tempo-ritmo de suas reações e improvisos, entabulando

um diálogo mnemônico, mimético.

Page 62: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

62

O palhaço apropria também do “não envolvimento corporal do

espectador” para consecução da cena, gerando sentidos inversos que podem

causar risos ou não, mas a reflexão está sempre posta no jogo. Mas para isso,

o palhaço tem que estar jogando com elementos culturais aos quais os

espectadores pertencem. No jogo cênico metafórico e ativo do palhaço os

conhecimentos prévios dos espectadores são considerados (OLIVEIRA, 2008).

Soma-se a isso, a necessidade de haver uma ambientação física do

espectador que o permite focar e participar da cena.

Na apreensão da cena o espectador se compara, se espelha, interpreta,

se envolve, ri, se comove, chora, bate palmas, vaia, grita, assume papel ativo

na projeção da ação ou cena. Isso coloca o espectador como parte envolvida

que aceita e responde o jogo que o palhaço propõe (OLIVEIRA, 2008). Este

envolvimento é coletivo e faz parte de uma qualidade humana em assumir um

foco comum e tal experiência é estimulada por contágio ou afetação, gerando

algum tipo de transferência coletiva. A interação e o envolvimento com o jogo

da cena o faz permanecer como espectador que alimenta e é atraído pela

cena.

O jogador palhaço por sua vez aciona um estado psicofísico (OLIVEIRA,

2008) de atenção e relaxamento, em um estado próprio de atenção, como

compara Andrés Del Bosque (2008), como um cão que cuida de um osso, que

o carrega, lambe, cava, protege, tudo isso apenas em busca do tutano que está

em seu interior. Deste lugar, parte para uma ação de comunicação imediata,

ator-objeto-ator, sendo que o segundo ator pode ser a dupla ou o espectador.

Lança-se num ato de buscar o retorno da corrente visual do parceiro ou

do público rompendo o simulacro da ação física do corpo, projeta sua ação

corporal, como um hiato que permite que o tempo-ritmo gere nuances no corpo

do palhaço percebidas e acompanhadas pelo espectador (OLIVEIRA, 2008;

DONELLAN, 2007).

Uma tessitura de envolvimento com as ações do palhaço se forma com

o espectador a partir de atos conscientes do jogador-palhaço. Quanto mais ele

domina essa tessitura mais se tornam sutis e amplificadas suas nuances e

reações. Quanto menores são os movimentos mais a atenção do espectador

Page 63: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

63

que o acompanha aumenta inversamente proporcional a atenção até a

explosão emotiva (OLIVEIRA,2008).

Escolhi uma passagem de quando estive no Estúdio de ações físicas

Fissões18, para ilustrar um elemento importante: “escuta”. Em uma das

sessões falamos muito sobre “escuta”, como uma capacidade de observação,

elemento fundamental na formação do palhaço. Isso me remeteu a outros

cursos livres ou momentos em que refleti sobre “escuta” no teatro. Utilizando a

“escuta” vieram me aspectos relativos na relação com o público, afim de obter

melhor precisão do tempo-ritmo da ação potencializando a geração de

nuances, capazes de aproveitar o que o público ou o parceiro de jogo propõe.

Para o palhaço é necessário apreender a aproveitar elementos do

público, como uma reação, uma imagem, uma face, roupas, pessoas que

estejam na plateia, a partir do desenvolvimento de uma capacidade de escuta e

reação rápida (DONELLLAN, 2007). “Escuta” nesse sentido, tem outro lugar,

não somente de sentido sensorial, mas como termo didático para traduzir o

elemento da ação física que propõe esse envolvimento, esse estado de

atenção difusa, o qual envolve todos os sentidos para o Jogo de Palhaços.

O Jogo de Palhaço exige mais uma disponibilidade em desvendar junto

com o palhaço, códigos universais e simples que são sugeridos como: repetir

palavras, falas ou gestos, contemplar elementos cotidianos, estranhar o óbvio

ou absurdo, expressar o assombro, denunciar ou velar uma surpresa, entre

outros do que o domínio de capacidades interpretativas prévias.

Enfim, este estado que se assoma no ato cênico em espaços abertos

permite-nos constatar uma dádiva de caráter sensorial, estético e comunicativo,

sendo compartilhada, dinamizada como encontro que possibilita a demarcação

deste ato performático. O Palhaço não define sozinho a trajetória e o

desenvolvimento do Jogo, pois precisa da recepção e da reação do espectador

como elemento de co-autoria.

18

O estúdio é um núcleo de pesquisa da Escola de Belas Artes, Departamento de Artes Cênicas da

UFMG e é coordenado pelo professor Luiz Otavio, onde participei em 2012 de um projeto de

desenvolvimento de metodologia didático para formação de atores.

Page 64: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

64

2.6. Jogo e linguagem de palhaços

A noção de jogo, usada para falar de uma modalidade de atuação

cênica, busca conferir um lugar de acesso irrestrito a quem se interesse em

abrir mão de elementos característicos, como efeitos cômicos, improvisação,

trejeitos ou desenvolver atividades inspiradas na arte da palhaçaria. No

entanto, devido ao fato do oficio de palhaço ser uma profissão que exige

estudo e acúmulo de experiências, a distinção dos jogadores leigos e do

palhaço impede qualquer dúvida quanto a ocupação de quem atua, sobretudo,

se for um palhaço que estuda e tem experiência e por isso se assume palhaço

ou se é um interessado, diletante, que abre mão de técnicas do oficio de

palhaços como atividade complementar para animação de grupos, terapias

complementares ou outras atividades de lazer ou socialização.

De um lado, dentro desta noção de jogo, o Palhaço alcança seu lugar ao

invés de ser confundido com algum jogador que tenha outro compromisso com

o Jogo de Palhaço que não necessariamente fazê-lo como oficio

(BRAGA,2013). Por outro lado, a noção de jogo aplicada ao palhaço está

intrinsecamente ligada à produção de sentido e, portanto, ao desenvolvimento

da linguagem que é algo gerado, transmitido, interpretado e respondido ou

afetado, num campo definido entre emissor e receptor.

O jogo de acordo com Huizinga (apud TANCREDE, 2014) traduz

essencialmente o ordenamento de ações e pensamentos através das regras,

acordadas entre os participantes, num regime de alternância, de idas e vindas.

Joga-se à medida que se atua e esse é o ponto de conexão da caracterização

do conceito de jogo com a delimitação da arte do palhaço enquanto jogo.

O jogo delimita a substancialidade da realidade instante, não existem

jogadores fora do jogo, assim como há um limite espacial e temporal que indica

o campo de atuação dos jogadores.

No entanto, o fato do jogo pressupor a geração de uma ordem, isso não

indica que o mesmo seja rigorosamente estático, pois a instantaneidade das

respostas e recepções faz com que cada momento seja precedido por uma

Page 65: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

65

expectativa do que acontecerá no próximo momento. O jogo é o vir a ser, o ir e

vir da relação e tem como suporte à linguagem que direciona a produção de

sentido e a recepção dialógica, uma função da vida que permite que distintas

formas de integração, socialização e autodeterminação coletiva ou individual se

revelem (MIRTES, 2016).

A noção de jogo oferecida por Hiuzinga (apud TANCREDE, 2014)

contribui com uma leitura da aplicação das técnicas do palhaço fora do oficio

em si, ou seja, a fluidez e a fragilidade, a instantaneidade, a seriedade e a

previsibilidade com que as técnicas e as regras são atendidas.

Em Jogos e Homens, Callois(1967), oferece uma visão mais ampla de

jogo, enfatizando impulsos lúdicos que influenciam a formação da sociedade ao

apresentar a caracterização de uma tipologia da presença da ludicidade nos

diversos tipos de jogos e em diversas dimensões da vida humana para além da

prática lúdica em si (CALLOIS 1967 apud LARA e PIMENTEL, 2006), infiltradas

e contaminadas pelos valores e comportamentos sociais, a partir de quatro

impulsos primários: agon (competição), ilinx (a busca de vertigem), mimicry

(simulacro) e alea (sorte),sendo do nosso interesse a categoria mimicry, como

relativa ao simulacro – gosto pela personalidade alheia.

Tais categorias são observadas numa contra posição entre influências

psicológicas e entre o que já foi absorvido como valor pelo sistema e o que

oferece relativa autonomia ao mesmo. Como exemplos contemporâneos,

temos o carnaval, o teatro, o cine e o culto aos artistas, além das influências

institucionais, mescladas ao sistema de competência comercial, caracterizadas

pelos uniformes, pelos cerimoniais e pelos ofícios de representações. No

entanto, o próprio autor afirma que, princípios que por hora pareçam universais,

marcam as clivagens e os tipos de sociedades regidas por presenças mais

fortes de princípios de mimicry e ilinx, máscara e possessão, em sociedades

intituladas sociedades da confusão em detrimento das sociedades ordenadas

(CALLOIS, 1967), e regidas por poragon e alea, com códigos e hierarquias

mais desenvolvidas (CALLOIS1967 apud LARA E PIMENTEL, 2006). Tratando-

se das sociedades da confusão, uma mistura de pantomima e êxtase, que

antecede a cultura da civilização, transporta por via da delegação a realização

Page 66: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

66

pessoal pelo triunfo de outrem, como aspecto da presença distorcida do

mimicry e da alea, numa alusão clara à origem ao culto dos campeões e dos

heróis.

Diante das combinações destes impulsos, a tipologia apresentada não

representa inflexibilidade de seu sistema de análise, mas amplia as influências

dos impulsos primários de ludicidade em relação a outras dimensões da

cultura.

Essas distinções entre sociedades ordenadas e da confusão não

encerram tendências uma vez que mostram as tensões entre uma

racionalidade instrumental e uma racionalidade catártica, sem juízo ou

classificação de ordem ou valor, mas de interação complementar e necessária

(LARA E PIMENTEL, 2006).

O palhaço traduz, portanto, uma expressão desta mistura entre mimicry

e alea, mas também abre mão dos outros impulsos para construir seu jogo.

Tratando-se da relação do jogo com a produção de sentido e

consequentemente com o desenvolvimento da linguagem, aplicadas à técnica

de palhaços, abrimos mão de noção de linguagem em Heidegger (apud

MEIRELLES, 2007) para corroborar com a idéia de técnicas de atuação cênica

de palhaços enquadradas numa espécie linguagem-jogo.

Tratando da linguagem e da produção de sentidos, através da obra Ser

e tempo de Heidegger (apud MEIRELLES, 2007), essa pode ser compreendida

como uma trama de significados que formam o mundo, ou a capacidade de

recepção do que chamamos mundo, o tangível e o intangível dentro de um

universo de possibilidades cognoscíveis. Como desafio temos a rede complexa

que se descortina, na teoria heideggeriana de confirmação existencial do ser,

do estado de consciência máxima humana (SCHNEIDER, 2011).

Assim, estaremos, sempre, na busca de compreensão prévia do que

vivemos, trazendo as noções de origem e conformação do ser, do existir, para

o universo do compreensível, do perceptível, sendo assim, só existimos naquilo

que compreendemos ou percebemos.

No entanto, essa existência se dá em correspondência ou diálogo com

outro ser que abre a porta da ação ou que dá a referência necessária para o

Page 67: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

67

fazer, substância última do existir. A interpretação é um fenômeno de

apropriação, de atualização do percebido, em direção a compreensão concreta

da realidade. A linguagem é a própria base da interpretação da realidade e o

próprio veículo da ação humana como ser. Se de um lado o homem se deixa

tomar pelos acontecimentos, por outro articula esses acontecimentos nos

discursos produzidos em sua existência diária. No primeiro caso, quando se

abandona aos acontecimentos produz o “falatório” (HEIDEGGER,1925 apud

SCHNEIDER, 2011) que traduz a categoria de compreensão superficial, pois é

baseado em um discurso de pré concepção da existência dos objetos que nos

cercam, no qual não perguntamos o que são e de onde vem os objetos. No

segundo, quando articula os acontecimentos, na qual terá maior possibilidade

de desenvolver uma dimensão poética e autêntica da linguagem, na qual o ser

e as coisas determinam a origem dos significados e que traduz o modo como

somos tomados pelo acontecimento, onde tudo passa a ser.

Estas dimensões, em verdade, são fundidas. O falatório inautêntico

(HEIDEGGER,1925 apud SCHNEIDER, 2011), é a propagação reproduzida e

distorcida do original, e nos leva a tratar dos objetos como já conhecidos e até

mesmo partindo de um conhecimento pretenso do ser de si mesmo. Mas ainda

assim ele tem origem num acontecimento, num momento onde a percepção

humana alcançou uma forma genuína de ver o mundo e conferir outros

significados aos objetos e consequentemente extrair outras percepções do ser

e do mundo. Alcançar a percepção “poética”, abstrata, nos permite jogar sem

culpa e sem mácula. Nesse sentido é possível, em contra ponto, buscar na

imersão do falatório, o autêntico (HEIDEGGER, 1925 apud MEIRELLES, 2007).

A referência do jogo como delimitação espacial e temporal de atuação,

de alvos ou metas, amparadas num suporte contextual, traduz a época ou

valores da sociedade. Este jogo de linguagem nos conduz a um oficio que

personifica as práticas culturais mais elementares em termos de vínculos e

relações afetivas com outros e com coisas, assim é um campo fértil para

vivências em experiências originárias da linguagem.

O palhaço traduz e se inspira nos arquétipos de relações sociais,

arraigados nas pessoas que o reconhecem em sua atuação. Isso faz com que

Page 68: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

68

as pessoas reconheçam essa recorrência, de alguma forma, por já trazerem

referências do que se trata, como: comportamentos chistosos, entonação de

piadas, correspondências afetivas em forma de troca de palavrões, facécias,

injúrias elogiosas, hipérboles, metáforas, inversões (BAKTHIN, 1996), enfim,

formas de expressão do chiste gerador do jogo.

O jogo de palhaço pode ser definido como práticas lúdicas corporais,

com alvo ou meta e reações, de cunho cognitivo, ou seja, de alguma forma

perceptível, praticado sozinho ou em duplas trios, grupos e/ou com o público.

A manipulação do sentido, relação com objetos, máscaras de reações,

provocações e outras tantas, são técnicas que dão efeito de revelação de

sentidos ocultos e contraditórios, desmascaramento, metaforização, ironização,

aceleração etc. - habilidades adquiridas na dedicação do ofício, mas

fundamentadas pela intenção de troca entre jogador palhaço (que captura da

cultura suas imagens e motivações) e espectador (que reconhece esta

associação e retribui com sua presença pelo riso) (OLIVEIRA, 2008;

BOLOGNESI,2003).

O palhaço engendra a invenção cômica humana no corpo, em

detrimento de outros suportes em que a linguagem cômica é expressa. Fazer

com que os outros riam dele faz parte da inventividade cômica de seu corpo

(OLIVEIRA, 2008). Sempre ouvi como recomendação, “menos é mais” no jogo

de palhaço e demorei alguns fracassos para entender que o palhaço opera

uma teia temporal na qual atuar com o público exige um estado de presença e

uma consciência de jogo. Nessa presença devemos abrir mão ou não de

acionamentos e reações que operam induções visuais e sensoriais nas quais o

público é imerso gradativamente no referencial expresso do corpo do palhaço,

como unidade simbólica. Essa imersão é frágil por ser de uma tessitura tão

complexa e repleta de variantes, que leva ao vínculo imagético nas evoluções

da partitura corporal do palhaço.

Podemos identificar elementos pulverizados da invenção corporal

cômica do jogo de palhaço em outras dimensões da linguagem e da sociedade,

pois os discursos cômicos, assim como a retórica, estão inseridos na cultura de

forma arraigada e quase canônica. O palhaço demonstra como a comicidade

Page 69: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

69

está intensamente disseminada na cultura, mesmo que o fundo ético e moral,

muitas vezes, reproduza ou nos leve a reproduzir valores de opressão social.

Podemos imaginar duas faixas de invenções cômicas, uma baseada em

reações elementares do palhaço, que canalizam o riso a cada ação,

independente do conhecimento prévio que se tenha da cena ou da peça; outra

que depende da dramaturgia em si, está muito mais ligada ao domínio de uma

estrutura narrativa que se desenrola, que acumula informações mais

encadeadas e menos imediatas. Remetem o espectador a contextualização de

elementos da cultura e domínio de conhecimento prévio.

Assim a “oração do menos é mais” expressa a habilidade que pode ser

alcançada no jogo de palhaço e ao mesmo tempo a mutabilidade e a

diversidade que o fenômeno cômico alcança na cultura. Os palhaços se

inspiram sobremaneira em situações rotineiras, em fenômenos sociais, como

produto da própria fusão da comicidade dentro da cultura.

A consciência de um protagonista que executa e abre mão passo a

passo de evoluções e composições levam a audiência ao riso ou a estupefação

e definem características co-autorais do Jogo de Palhaço. São trabalhadas de

forma aparentemente inesperadas e improvisadas e imbuídas de uma intenção

de atração dos olhares do público. O jogo do palhaço e sua dádiva são

elementos complexos. No entanto, nos propomos por meio de uma revisão

descortinar como esses elementos se moldam nas de zonas de vulnerabilidade

e conflito.

2.7. Poder e hegemonia na arte da palhaçaria em zonas de vulnerabilidade

social

Um exemplo de utilidade hegemônica19 é a dupla contemporânea Patati

Patata (PAIVA e SOUSA, 2015), a qual oferece pela televisão uma marca de

apelo ao consumo. Essa estratégia está inserida na cultura de massas, são as

19

Alves(2010) busca referência em Gramsci (1978) para definir a dominação do comportamento social, que submetem sociedades e agrupamentos a outros hábitos aculturados, desterritorializados e híbridos em sua construção, que consolidam por sua vez as bases de fenômenos como a colonização, o fascismo, o nazismo, o imperialismo e o neo pentecostalismo através de marcas e valores inculcados.

Page 70: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

70

vedetes ou olimpianos modernos que propõe um modelo ideal de vida (MORIN,

2011 apud PAIVA e SOUSA, 2015).

Figura 11 : Dupla Patati Patata

, Fonte: Jornal AgoraRN, 2016.

Transmite a ideia de um lazer infantil direcionado ao consumo através

dos fenômenos de identificação e projeção que suscitam aspiração e

veneração das crianças (PAIVA e SOUSA, 2015). A dupla Patati Patata são

palhaços que carregam uma visualidade fisionômica plástica, como bonecos.

Esse tipo de aparição, [...] além de reforçar a cumplicidade do

público enseja uma correspondência entre a figura corporal e a

figura moral (PAIVA e SOUSA, 2015, p. 6).

Sobre o conceito de hegemonia, Gramsci (1978, apud ALVES, 2010)

indica que a submissão de um grupo social a outro, leva este a adotar a

concepção de mundo do outro, mesmo em contradição com sua atividade

prática, numa imposição mecânica desprovida de coerência e criticidade,

desagregada e funcional, propondo um contraste entre pensar e agir sob a

referência de dois mundos. Gramsci (1978a, p. 15) conclui, portanto, que “não

se pode destacar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a

Page 71: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

71

escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos

políticos” (apud ALVES, 2010). Assim sendo, os palhaços supracitados se

tornam interlocutores morais de apelo ao consumo por meio de seus gestos e

palavras, desse modo transmitem valores atrelados ao poder do capital.

O palhaço também pode ser contra hegemônico como demonstra Leo

Bassi com seu bufão que trabalha com transformações sociais e traz em seus

espetáculos ícones da sociedade e os desconstrói gestualmente,

corporalmente em seus jogos. A partir de personalidades como deputados,

pastores, padres e produtos de consumo e estilos de vida, ele cria imagens e

cenas entre a atividade artística e o ativismo social.

Um exemplo emblemático de seu trabalho como bufão contra

hegemônico é a criação da “Religião Patólica” na qual dedica-se a celebrar

casamentos e missas substituindo a adoração a Deus pelo louvor aos banais

patinhos de borracha amarelos para decorar banheiras (GUIMARÃES, 2015).

Uma missa bufônica que profana, rompe com valores morais da igreja e dá

autoridade de papa ao bufão, adorador de objetos de consumo, plastificados,

nos remetendo a uma crítica da banalização da religião em uma sociedade

consumista.

Page 72: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

72

Figura 12: Bufão Leo Bassi

Fonte: Espanha, Credito Leo Bassi, 2017.

Mundialmente conhecido por suas performances teatrais extravagantes

e inúmeras ações provocativas, Leo Bassi é descendente de uma longa

linhagem de comediantes excêntricos e palhaços de circo, vindos da Itália,

França, Inglaterra, Áustria e Polônia. Por 170 anos, a família agiu sem

interrupção. Em 2012 ele abriu uma capela em Madrid, El Paticano; Fundada

em honra de palhaços, bufões e livres-pensadores, é dedicado a "Deus" Pato

de borracha como um símbolo de simpatia e inocência, virtudes essenciais

para o pensamento científico, filosófico e pilares básicos de amor e senso de

humor. No Paticano missas e casamentos são celebrados. Além disso continua

o seu trabalho de cursos de ensino sobre a essência de ser um palhaço e da

relação deste com as habilidades de comunicação em muitas áreas além de

Page 73: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

73

sua paixão pela história social e política da Europa, que o levou a dar várias

palestras sobre este assunto20.

3 LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO

3.1 Método de levantamento bibliográfico

Esse capítulo foi baseado em uma revisão bibliográfica realizada nas

seguintes bases de dados: Scopus, Scielo, Medline e também no Google

acadêmico(Scholar). Utilizou os seguintes descritores em português, espanhol

e inglês: palhaço e vulnerabilidade; payaso y vulnerabilidad; clown and

vulnerability.

Critérios de inclusão

a) Artigos publicados em português, inglês e/ou espanhol;

b) Artigos publicados no período de 2010 a 2017;

c) Artigos que trazem a atuação do palhaço em zonas de vulnerabilidade

social: favelas, zonas de guerra ou conflito armado, ruas e espaços públicos

abandonados pelo governo ou ocupados informalmente, abrigos, zonas rurais

com acesso limitado a serviços básicos, subúrbios como cidades dormitório,

moradias improvisadas em ocupações informais organizadas ou em ocupações

informais aleatórias.

d) Artigos que representam um panorama de atuação em zonas de

vulnerabilidade social ou em nome dos direitos humanos fundamentais.

e) Mesmo que inseridos em programas de saúde, estejam circulando por

logradouros públicos periféricos.

20

Tradução In: http://nuevaweb.leobassi.com/biografia

Page 74: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

74

Critérios de exclusão

a) Artigos de revisão bibliográfica;

b) Artigos de palhaços em hospitais, que falem especificamente da atuação em

hospitais.

Seleção de artigos

A seleção dos artigos para análise foi realizada de forma consensual

entre os pesquisadores: orientador e orientando. Primeiramente todos os títulos

e as palavras-chave foram lidos e foram excluídos os artigos que não tivessem

no título, no resumo e/ou nas palavras chaves relação com o tema da revisão.

Cabe notar que um dos repositórios de pesquisa utilizados foi o Google

Scholar, que não é propriamente uma base indexadora científica, mas que

ofereceu diversas referências de artigos científicos. Os artigos selecionados

foram lidos na íntegra e excluídos os que não atenderam aos critérios de

inclusão propostos. A revisão foi realizada com 9 artigos, conforme o percurso

descrito:

Após a leitura na íntegra de 17 artigos, 5 em português, 7 em inglês e 5 em

espanhol, foram selecionados 9 para serem analisados dos quais foram

sistematizados os seguintes temas:

O papel social do palhaço em zonas de vulnerabilidade

Emoção, humor e Riso

Lazer e palhaçaria

Page 75: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

75

O levantamento bibliográfico contemplou artigos que discutem temas

conceituais a partir de referências empíricas de aplicações distintas da

linguagem do palhaço no campo da vulnerabilidade social e conflito. Não

incluiu-se, todavia, artigos que narrassem as aplicações dentro do hospital por

entender que as zonas de vulnerabilidade se distinguem pela sua condição

geopolítica, mesmo que diversos hospitais estejam inseridos em zonas de

vulnerabilidade.

Compreendeu-se que haviam diversos lugares de atuação

preponderantes para compreensão do papel social do palhaço inseridos num

Page 76: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

76

contexto de função e intervenção social nas zonas vulneráveis socialmente o

que nos levou a expandir o olhar sobre os vieses da presença dos palhaços e

palhaças na luta pelos direitos humanos, seja nas práticas sócio terapêuticas

nas localidades fisicamente atingidas, seja nas práticas de protesto e ativismo

a favor dos direitos humanos em si, nas zonas de impunidade e que não

devem ser analisadas separadamente, sob pena de perder o panorama sobre

esta diversidade de campos de aplicação da atuação de palhaços e palhaças

pelos direitos humanos e como se articula ao nomos de poder da zona de

vulnerabilidade social.

3.2 Breve descrição dos casos analisados nos artigos

O artigo Sensuous Solidarities: Emotion, Politics and Performance in the

Clandestine Insurgent Rebel Clown Army (Solidariedades sensuais: Emoção,

Política e Performance Exercito Clandestino Insurgente de Palhaços Rebeldes)

trata da atuação do CIRCA (grupo fundado em 2003 para responder à visita de

George Bush ao Reino Unido), durante os protestos contra o G8 na ocasião de

uma reunião realizada em Gleneagles, na Escócia em 2005, para ser mais

exato, de 6 a 8 de julho de 2005.

O G8 reuniu EUA, Canadá, Japão, Grã-Bretanha, Alemanha, França,

Itália e Rússia, numa agenda de rotina anual na qual, altos funcionários de

governo discutem questões como a gestão macroeconômica da economia

global, o terrorismo e controle de armas, etc. Nessa ocasião foram para frente

do G8 um exército de 160 Palhaços Rebeldes formados por 15 diferentes

grupos de clowns rebeldes de diferentes lugares, todos do CIRCA. A

solidariedade sensual ou sensível foi nutrida por uma variedade de maneiras,

como o treinamento rebelde do clown organizado com uma oficina de 02 dias.

A ênfase na crítica ao movimento antiterrorista, trouxe o emblema "Guerra

contra o Erro", o que tornou a mensagem mais eficaz, permitindo que as

pessoas rissem, dissipando um pouco o medo do forte "segurança" nas

manifestações do G8. O CIRCA denunciou a falsa promessa de que os líderes

Page 77: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

77

do G8 realmente iriam resolver os problemas associados ao neoliberalismo e à

guerra.

Permitiram que a plateia se vestisse como um exército de palhaços.

Constituíram uma série de co-performances e ressonâncias complexas,

contraditórias e emotivas com a polícia, com outros manifestantes e com o

público, denominado espetáculos éticos.

Figura 13: Palhaços do CIRCA em Gleaneagles, Escócia.

Fonte: Créditos CIRCA 2005.

O riso se move através da multidão. Começa com um rosto ou, em vez

disso, uma miríade da face de palhaço de um exército desviante, e prossegue

através de uma série de práticas somáticas - manobras, jogos, mimetismo -

que perturbam o "espírito" do evento.

Rir... abre o corpo e a mente ... pode transformar a humilhação

em humor e uma situação de terror em um revelador de

Page 78: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

78

verdade. É uma forma de solidariedade sensual (KLEPTO 2004

apud ROUDLEGE, 2011)

Essa atuação foi capaz de gerar solidariedades sensíveis21 através de

movimentos corporais e técnicas visuais. Realizaram intervenções

perturbadoras e emotivas a fim de tocar a opinião pública. O objetivo do CIRCA

ao aplicar a linguagem do Palhaço é desenvolver uma metodologia que

fortaleça a vida emocional interna dos ativistas. As emoções são sentimentos

pessoais que ocorrem em encontros relacionais com seres humanos e não

humanos. Fazem parte de processos sociais e políticos através dos quais as

subjetividades das pessoas são reproduzidas e realizadas. Politicamente as

emoções estão intimamente ligadas às relações de poder e também às

relações de afinidade, como um meio de iniciar a ação. As pessoas se tornam

politicamente ativas porque sentem algo profundamente - como a injustiça ou a

destruição ecológica. Essa emoção desencadeia mudanças nas pessoas que

se motivam a envolverem na política. É a capacidade das pessoas de

transformar seus sentimentos sobre o mundo em ações que os inspiram a

participar de ações políticas (CHATTERTON, FULLER E ROUTLEDGE 2008;

ROUTLEDGE 2010 Apud ROUTLEGE, 2011).

Por isso, as emoções são reativas (direcionadas para fora e para

eventos externos) e recíprocas (em relação aos sentimentos das pessoas uns

com os outros). As emoções compartilhadas no ativismo criam identidades

coletivas compartilhadas e são mobilizadas estrategicamente (por exemplo,

para gerar motivação, compromisso e participação sustentada). Os ativistas

criam modelos emocionais compartilhados para encontrar causa comum e

gerar narrativas e solidariedades comuns (ASKINS 2009; BOSCO 2006, 2007;

ETTLINGER 2004; ETTLINGER E BOSCO 2004; GOODWIN, JASPER E

POLLETTA 2001; JASPER 1998; JURIS 2008; MANSBRIDGE E MORRIS

2001, TAYLOR E RUPP 2002 apud ROUTLEGE, 2011). Os ativistas do CIRCA

21

O trabalho emocional dos palhaços rebeldes é relacional, excedendo o indivíduo, criando ressonância emocional, solidariedade sensual portanto, entre palhaços rebeldes, entre eles e outros ativistas, e entre eles, o público e a polícia.

Page 79: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

79

frequentemente se expressam em protestos (públicos) que podem ser

entendidos como performances rituais, criando imagens que ampliam emoções

como raiva e transformam-nas em solidariedade coletiva (ROUTLEGE, 2011).

A performance das emoções torna-se cada vez mais importante na

prática da política. De fato, as emoções sempre foram um elemento importante

da prática da atuação política através da canalização do medo, da raiva, da

agressão, etc. (GIROUX 2007; MEGORAN 2005; Ó TUATHAIL 2003;

OSLENDER 2007; PAIN 2009; PAIN AND SMITH 2008 THRIFT 2004 APUD

ROUTLEGE, 2011).

A mídia contemporânea apresenta o “mundo real” como um drama, um

espetáculo encenado (DEBORD, 1983 apud ROUTLEGE, 2011). A

manipulação de imagens de mídia constitui a continuação da política por outros

meios. Sob tais circunstâncias, políticos e ativistas populares "agem" para a

televisão, na esperança de elevar suas ações em eventos públicos. Na

verdade, à medida que os movimentos sociais se envolvem cada vez mais com

a mídia, eles se tornam uma forma de mídia (MELUCCI, 1989 apud

ROUTLEGE, 2011). O reconhecimento da importância das imagens na

manipulação da política significa que as performances ativistas -

particularmente as formas culturais de ativismo - tornam-se locais importantes

de intervenção política. O CIRCA busca a atenção da mídia em seu ativismo

cultural.

O ativismo cultural envolve arte, performances, ativismo e política

combinados em inúmeras maneiras de desafiar formas dominantes de ver e

construir o mundo e apresenta visões alternativas do mundo. Trata-se, em

parte, de abordar os impactos sociais, psicológicos e emocionais de questões

como a guerra, a injustiça, a crise ambiental e as explorações associadas ao

capitalismo. Esse ativismo combate o "bloqueio cultural", ou seja, um repertório

de ações e práticas sintonizadas com a cultura consumista e as imagens

mediadas em massa (ROUTLEGE, 2011). Além disso, é uma técnica efetiva

para a ação direta, numa solução ao problema que acomete ativistas em geral,

de perda do trabalho interno de transformação pessoal, além de possibilitar a

pratica da política nas ruas (KLEPTO apud ROUTLEDGE, 2011).

Page 80: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

80

O ativismo cultural do CIRCA coloca desafios em forma de intervenções

sobre consumo. Os pontos de consumo incluem cadeias de lojas,

supermercados, utilizando de táticas como: incentivo para que os

consumidores boicotem as compras, campanhas anti-mercado etc. Outro

campo de atuação desse ativismo é potencializar e projetar possíveis cenários

futuros sobre como viver e atualizar perspectivas e alternativas de vida. O foco

na ética (e não somente no caráter político) de tais performances é importante.

Como Laura Pulido (2003, apud ROUTLEGE, 2011) argumentou, existem três

benefícios em cultivar o diálogo sobre ética no ativismo político. Primeiro, as

relações de honestidade, verdade e reconhecimento interpessoal que podem

ser nutridas. Em segundo lugar, uma linguagem moral que pode ser construída.

Em terceiro lugar, contribui para que se tornem seres humanos mais

conscientes. A consciência política se distingue pela atuação nas estruturas,

práticas e relações sociais, no poder social e global; a autoconsciência refere-

se ao autoconhecimento, incluindo a compreensão de suas motivações,

desejos, emoções e relacionamentos com o mundo. Os atributos performativos

dos espetáculos éticos do CIRCA envolvem o reconhecimento interpessoal,

uma linguagem "moral" e uma posição política colocada de forma performativa,

gerando solidariedades sensuais e ressonância emocional.

As principais características dos espetáculos éticos22propostos pelo

CIRCA são: seu caráter autônomo, em ações auto organizados criativamente;

sua dimensão participativa, pois as pessoas (incluindo o público) participam

ativamente na criação e realização do espetáculo; jogo desenvolvimento

transformador com humor e sátira, audiência ativa, participação e imaginação.

Os Espetáculos éticos geram intimidade entre palhaços e público, que também

vestem de palhaços e estabelecem narrativas que relativizam e discutem as

22

Utilizam-se do poder emotivo e transformador do Jogo de Palhaços, por exemplo,

humor, sátira, mímica, jogo de palavras, surpresa, aspirações coletivas, para comunicar

mensagens de oposição ao G8, contribuindo com a dinâmica emocional dos protestos. O papel

do ativismo cultural presente no Jogo de Palhaço aqui é a apropriação de imagens da cultura

popular nos espetáculos-protestos.

Page 81: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

81

relações sociais hierárquicas na sociedade. Além disso, são abertos todo o

tempo às modificações e adaptações em situações específicas. Estão sempre

em movimento e envolvem a transformação com de suas performances, tanto

no nível da forma quanto do conteúdo e do significado, de modo dinâmico e

transparente, criando espetáculos claramente fantásticos e absurdos para levar

as pessoas a refletirem (ROUTLEGE, 2011).

Com os espetáculos éticos, o grupo CIRCA tem o objetivo de

desenvolver uma forma de ativismo político que reúne as práticas de palhaços

a outras formas de teatro físico. Em uma ação direta não-violenta assumem a

responsabilidade emocional e política como um ato de auto constituição

(ROUTLEGE, 2011). Ativistas (ou, neste caso, palhaços rebeldes) participaram

ativamente da criação e do espetáculo ético do CIRCA para protestar contra o

G8.

As performances dos ativistas em protestos são emocionalmente

potentes, principalmente porque, sob condições de perigo e incerteza, são

capazes de introduzir o elemento de jogo. Nutrir a dimensão emocional do

ativismo fornece as ferramentas para "jogar de forma criativa e encarnar

honestidade e abertura" (KLEPTO 2004 apud ROUTLEDGE, 2011). O CIRCA

incorporou uma política emotiva que foi deliberadamente perturbadora e

desafiou as lógicas do evento político gerenciado pelo G8 em Gleneagles.

Essa articulação de registros emocionais era uma atividade construída: a

eficácia do CIRCA dependia da produção de uma política emotiva em lugares

específicos. As várias práticas de clowns rebeldes eram constitutivas de

diferentes relações com o espaço (por exemplo, através dos usos do espaço

em manobras de palhaços rebeldes) que permitiam a articulação da "lógica do

palhaço rebelde" - uma lógica associativa, baseada em sinais visuais e ordens

emocionais. Isso serviu como crítica aos discursos dominantes do G8 e um

desafio ao policiamento do espaço de protesto. Ao abrir o espetáculo político

da reunião do G8 para debate e participação, a CIRCA praticou "solidariedades

sensuais". As políticas emotivas são indicativos do caráter performativo e

subjetivo do conteúdo das performances públicas (ROUTLEDGE, 2011).

Page 82: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

82

Além disso, CIRCA mobilizou um desejo popular rebelde ao atuar

sobre um poderoso repertório emocional que foi transmitido para além do corpo

do palhaço rebelde. A originalidade e potência do Clown Rebelde no CIRCA fez

com que após os protestos do G8 a emissora de TV britânica Channel Four,

num ato explicito de banalização e distorção apresentasse uma série de

programas chamados sugestivamente de “Iraque: o circo sangrento”. Os

anúncios televisivos para esta série retrataram combatentes militares sitiados

em uma zona de guerra urbana com máscara de palhaço, sob fogo, alguns

sendo atingidos por balas e caindo ao chão (ROUTLEGE, 2011).

O artigo The clown at the gates of the camp: Sovereignty, resistance and

the figure of the fool (O palhaço nos portões do campo: Soberania, resistência

e a figura do tolo), narra a presença de palhaços do CIRCA num acampamento

em zona de fronteira entre México e EUA em novembro de 2007 em Mexicali /

Calexico, nos portões de um centro de detenção de Imigração e Alfândega

(ICE).

Um grupo de palhaços, membros do Clandestino Insurgente Rebel

Clown Army (CIRCA), com seus rostos pintados e vestindo narizes vermelhos,

chapéus e trajes, enfrentam os guardas de detenção na cerca e dançam para

as câmeras e para os policiais ao longo da cerca de arame. Com os seus

rostos pintados contemplam o outro lado e perguntam aos guardas: "Quantas

chaves você tem?" Eles chamam os guardas do campo. 'Por que você precisa

de tantas chaves? Você quer ser solto? (AMOORE e HALL, 2013).

Page 83: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

83

Figura 14: Palhaços nos portões do Centro de Detenção da Imigração em

Mexicali/Calexico

Fonte: Créditos CIRCA 2007.

A presença de palhaços numa manifestação como essa, invoca uma

história rica e provocativa em que a tolice do palhaço critica os conceitos de

poder, pois o palhaço se posiciona na linha que diferencia o “dentro e fora”. Os

guardas do campo foram atraídos para as estranhas e cômicas palhaçadas dos

palhaços, que abordam absurdamente os guardas (AMOORE e HALL, 2013).

O acampamento ou ações na fronteira mesmo numa zona marginal, não

perdem a capacidade de resistência, pelo contrário, a incompletude, as

incertezas e indeterminação são as condições para a realização de

reivindicações.

Visto através dos olhos do palhaço, o acampamento não é um espaço

político nu, mas é animado, habitável e repleto de vida e convívio. No entanto,

segundo Agamben (apud AMOORE e HALL,2013), o acampamento é o espaço

biopolítico mais absoluto, onde o poder atua sobre e através das vidas nas

quais seus estados de direito foram suspensos, desprovidas de valor em lei.

Vidas nas quais a suspensão do valor político é associada a anulação da

norma jurídica, pois ali podem ser combatidos. Na esfera soberana é

permitido matar sem cometer homicídio e sem comemorar um sacrifício

(AMOORE e HALL, 2013).

Page 84: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

84

O artigo Carnivalesque Economies: Clowning and the Neoliberal

Impasse (Economias carnavalescos: Palhaços e o Impasse Neoliberal) oferece

uma análise de intervenções de mímicos em Bogotá/Colômbia em 2015, dentro

da iniciativa Cultura e Cidadania do Prefeito Antanas Mockus, de performances

Buena Vista Social Clown, em 2012 e de uma apresentação para crianças num

campo de refugiados dentro da Colômbia.

Esta análise foi oferecida na ocasião de uma iteração23 performativa de

um trabalho apresentado em uma Conferência de Performance, um colóquio

acadêmico sobre Performance e Dominação na Universidade Edge Hill em 23

de março de 2013 oferecida por Barnaby King como palhaço Teddy, o próprio

autor disfarçado. Sua dinâmica está basicamente ligada a leitura de um roteiro

e a exibição de vídeos no telão, provocando uma confusão proposital,

distorcendo em sua performance o que deveria ser lido.

Oferece-nos, portanto, descrições de performances de palhaço que ele

testemunhou na Colômbia, que ele utiliza, de modo cômico, como evidência

para fundamentar seu argumento sobre neoliberalismo e palhaçadas: mimos

dirigindo o trânsito nas ruas de Bogotá; Buenavista's Social Clown‟s com suas

performances de cidadania e uma mostra de palhaços oprimidos pela multidão

de crianças. No caso dos mimos no trânsito, afirma como os palhaços podem

realizar a coação social de modo divertido, pois o projeto com mímicos mostrou

a eficácia, como esperavam as autoridades, fazendo o trabalho da polícia,

demonstrada pelas estatísticas que indicaram uma queda dramática nas

infrações e acidentes (KING, 2014).

Nesse sentido a coerção social funcionou pela natureza disciplinar dos

resultados proporcionados. Desde a iniciativa do prefeito Mockus de oferecer

palhaços mímicos no transito, Bogotá tem experimentado um " Boom de

palhaços ", não apenas pela proliferação da presença da palhaçada em

diferentes meios, mas também porque vem sendo empregado como um meio

indireto de coerção social.

23

Sequência de repetições, acumulo, termo de origem matemática, no campo da arte trata-se de uma instalação, performance ou intervenção visual. Fonte: http://www.ime.usp.br/~pf/algoritmos

Page 85: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

85

Figura 15: Mímico nas ruas, Bogotá/Colômbia.

Fonte: Créditos Daniel Civantos 2011.

No caso analisado do Buena Vista Social Clown, foram financiados num

projeto intitulado “O Limite Desconhecido entre Público e Privado", pela

Defensoría del Espacio Público de Bogotá para educar as pessoas sobre

espaço público, e foi realizado em todo Bogotá pelo grupo Buena vista Social

Clown (KING, 2014).

Judith Segura, diretora do grupo afirma que "geraram aprendizado sobre

o espaço público, mas também uma crítica do comportamento impróprio na

cidade: uma crítica através da brincadeira. Buenavista nos ensina a observar e

respeitar a linha entre o público e o privado, implica que esta linha existe e

representa a própria soberania das leis sobre o território. Longe de arriscar a

ordem do código, nos ensinam a ser bons cidadãos (KING, 2014).

Page 86: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

86

Figura 16: Buena Vista Social Clown Bogotá/Colômbia.

Fonte: Acervo Buenavista 2011.

Em 2012 Lucho Guzman e outros palhaços do Circo Ciudad se juntaram

com a parte americana do grupo Palhaços Sem Fronteiras para realizar uma

excursão pelo distrito de Risaralda, onde pretendiam se apresentar, num

contexto de imigração interna em que 48.000 refugiados foram forçados a se

deslocar devido à violência no departamento de El Choco (RCN Noticias

Pereira) (KING, 2014).

Um desses palhaços é reconhecidamente Teddy. Ao perceber que está

na tela, euforicamente ele joga o roteiro de lado e se prepara para história:

Então lá estávamos nós na frente de cinco centenas de

crianças de um bairro chamado Tokio, que é uma espécie

de colônia guetizada construída para abrigar moradores

deslocados refugiados de El Choco. O show tinha uma

narrativa anticolonial. Eu joguei como clown autoritário,

opressivo, sempre dizendo aos outros palhaços o que

fazer. Mas cada vez que eu tentava organizá-los para fazer

algo, acabava descontrolado num caos, comigo gritando

ESO NO. Como sempre acontece, as crianças começavam

a repetir ESO NO de volta para mim em um momento de

mimetismo rebelde: ESO NO, ESO NO, ESO NO. Bem,

essa performance foi exatamente como as outras, mas

Page 87: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

87

quando nós estávamos construindo o desenlace final, onde

quatro Palhaços compunham com seus corpos um monstro

gigante voraz, que iria consumir o malvado palhaço

autoritário algo começou a acontecer. A primeira fila

começou de modo ininterrupto e devagar a ir avançando

no chão. Foi um momento de Indiana Jones, como se as

paredes estivessem fechando em nós. Tentamos

restabelecer os nossos limites e esse ato se tornou um tipo

de luta territorial. Então eles vieram sobre nós de novo

como um maremoto, inevitáveis, várias centenas de

crianças tomando conta do nosso espaço. Nós éramos

como nadadores desamparados, lançados à deriva em um

oceano de cabeças, braços, em meio a chapéus, narizes,

mascaras, adereços, telefones, qualquer coisa.

Abandonamos a tentativa de continuar com o espetáculo e

aceitamos esse novo final [...] isso me pareceu

estranhamente certo. Essas crianças devem ser capazes

de ocupar seu próprio espaço, de qualquer maneira me

pareceu que é o que elas querem. Por que eles deveriam

respeitar os limites que nós estabelecemos para eles, nós

que nem somos daqui, que viemos de longe? Enquanto

nos arrumávamos para sair, um menino perguntou: você é

o palhaço que veio aqui? [...] Eu sou o palhaço que veio

para cá, para sua casa, porque eu sou Neo-palhaço,

porque pessoas a milhas de distância daqui acharam que

seria uma boa ideia e decidiram pagar para eu vir aqui e

oferecer "alívio" ao seu sofrimento. Será que vamos

conseguir fazê-lo? Será que vamos tocar o seu

sofrimento? Será que fiz algo mudar? E o menino continua

repetindo a pergunta: você é o palhaço que veio aqui? Por

que você continua dizendo isso? Você está dizendo por

que nada tem mudado? Mas por termos atravessado essa

linha, vocês inverteram as relações de poder em nossos

objetivos quase-humanitárias, de trazer palhaçadas de fora

para ajudá-los. Vejo que a transformação do final do nosso

Page 88: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

88

show expressa o seu direito de ocupar seu próprio espaço,

para romper as fronteiras que tínhamos colocado ao seu

redor. A reciprocidade da performance foi uma metáfora

para o que palhaçadas deve fazer: transformar a si mesmo

e colocar em risco a ordem do código. Você leu Judith

Butler certo? [Como o menino]: Você é o palhaço que veio

aqui. [Como Teddy]: Pare de dizer isso! Mas por que, quais

são as estruturas de poder que sustentam a minha

presença aqui? O que significa para mim estar aqui? Essa

foi só mais uma iniciativa de parceria social, outro exemplo

de Neoclowniberalismo? E logo eu vou ser o palhaço que

não estará mais aqui. Eu estarei lá. Eu sou o palhaço que

vai embora. [...] E agora uma multidão de crianças está

cantando: "Clown. Clown. Clown "Então eles me

atingem[...].

[...]. Não é de surpreender que palhaços tenham

sucumbido à tentação das iniciativas de parceria social via

canais de financiamento para corporações e estados,

inerentes ao amortecimento do capitalismo global, prontos

a reinscrever fronteiras e divisões sociais, disfarçadas sob

os discursos de liberalização e democracia. Estou

condenado a tornar-me um Neo-palhaço. Não há como

escapar de todo neoclowniberalmonstro? Isto é sobre

palhaços. Onde está o final feliz? O Neo-clown é um

operador secreto, às vezes se escondendo atrás de

discursos de caridade e mudança social, reproduzem a

retórica caracteristicamente neoliberal de agências

humanitárias internacionais como Medecins Sans

Frontieres (Médicos sem Fronteiras). Com seu slogan,

"nenhuma criança sem um sorriso", constrói o humor como

um tipo de ajuda humanitária que pode trazer alívio aos

fracos e pobres. Maurya Wickstrom critica o humanitarismo

como estabelecendo uma "divisão que separa aqueles que

vão fazer o bem daqueles que são alegados como

Page 89: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

89

beneficiários daquele esforço ", reestabelecendo assim as

relações de poder colonial (KING, 2014, p. 485,486).

Figura 17: Wilmar Guzman, Tim Cunningham, Carlos Andres Niño, Lucho Guzman, e

Professor Teddy Love, performance na Escola Jaime Salazar Robledo em Tokio, El

Choco.

Fonte: Créditos Molly Jaeger 2011.

TEDDY contrapõe falsamente chocado: Quem teria pensado isso?

Palhaços Sem Fronteiras também são da ordem Neoclowniberal? Outro

esconderijo pode ser o "circo social", atualmente em voga na América Latina,

muitas vezes dependendo do investimento estrangeiro. Como exemplo a Circo

Ciudad em Bogotá, fundada em 2001 com financiamento da UE numa retórica

romântica sobre jovens desfavorecidos de um dos bairros mais pobres de

Bogotá, superando dificuldades para se tornar artistas de circo. Mas Circo

Ciudad foi sujeito a pressões políticas enormes usadas como joguete do

governo e das agências locais, enquanto os jovens, que haviam sido treinados

como artistas de circo não como líderes ou administradores, eram impotentes

diante do enfretamento que se necessitava (KING, 2014).

Conclui numa última cena, em que gera uma distorção com a imagem do

prefeito Mockus, confundindo-se com ele, pergunta: “quem era o palhaço que

estava lá afinal de contas? Vocês pensaram que eu era o criador do

neoclownliberalismo [...]palhaços não são muito críticos. Na verdade, eles são

muito hegemônicos. Eu não poderia escapar da rede neoliberal, mesmo

enquanto eu tentava ser diferente. Eu não poderia apoiar reprodução da

Page 90: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

90

imagem do poder que eu lutava para subverter. Não é esse o dilema que todos

nós palhaços enfrentamos? (KING, 2014).

Como Mockus narra:

Alguns anos mais tarde eu concorri para presidente e eu

estava indo muito bem nas pesquisas, mas então eu comecei a

ficar estranhamente incoerente em entrevistas e debates e a

perder a linha de pensamento. E isso se tornou motivo de

chacota. Em 10 de abril 2010, eu anunciei que eu tinha a

doença de Parkinson. [...] Como Teddy:

Talvez fosse loucura pensar que um palhaço pudesse se tornar

presidente. Eu demonstrei os limites que o palhaço nunca pode

atravessar. Mas também demonstrei que palhaços são

capazes de tentar romper estes limites e devem ser

reconhecidos por isso (KING, 2014, p 488).

Dirigindo-se à imagem do ex prefeito na tela ele diz:

Mockus! Você é o palhaço que veio aqui e eu também sou o

Palhaço que veio aqui. [...] “pode haver alguns outros palhaços

esperando para dizer algo para vocês, então eu vou sair e dar

espaço para eles. Obrigado!” (KING, 2014 p488).

Figura 18: Antanas Monckus, o prefeito palhaço, Bogotá/Colômbia.

Fonte: Créditos Telegraph 2010.

Page 91: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

91

Até aqui podemos ver exemplos de palhaços em zonas vulneráveis,

alguns com foco contrahegemônico e outros com ações que levam a um

caráter hegemônico, atenuadores do capitalismo.

No artigo, Cómo reivindicar derechos humanos a través del arte del

clown: La función social en el payaso(Como reivindicar direitos humanos

através da arte de palhaço: a função social no palhaço). O objetivo é refletir

sobre como a arte da palhaçaria reivindica os direitos humanos. Assim,

diversas experiências de palhaço reivindicando direitos humanos são

identificadas narradas por Clemente (2015). A arte da palhaçaria tem o

potencial de criar laços com pessoas em condições vulneráveis.

Palhaços a cada dia estão mais presentes na vida diária e indo além do

trabalho artístico, mas com experiências socioeducacionais. Dentre esses o

Clandestine Insurgent rebeldes do Exército Clown (CIRCA). Atuam com

liberdade para enfrentar tabus e as verdades da sua cultura, Critica os

princípios fundamentais de sua sociedade, e têm o espírito militante e ativista.

Usam o potencial do palhaço como instrumento de crítica social. Para propor

novas formas de ação e manifestação política e cívica, buscam trazer com

objetividade a reflexão sempre com prática não-violenta, com humor e

criatividade, difundem mensagens político-social de uma maneira bem própria

que leva a reflexões. As palhaçadas rebeldes é um novo método de

desobediência civil, de participação social que tenta quebrar as hierarquias, a

guerra e o militarismo. A arte da palhaçaria pode ser uma forma de reivindicar

Direitos Humanos (CLEMENTE, 2015).

Há também um grupo denominada Palhaços Sem Fronteiras que é uma

organização sem fins lucrativos de caráter humanitária e realiza projetos para

as crianças mais desfavorecidas através do palhaço. Desenvolvem ações de

caráter humanitário na Siria, Kosovo, Bulgária, Palestina, Argélia, El Salvador,

Namíbia entre outras. Os Palhaços sem Fronteiras levam a arte da palhaçaria

como ajuda humanitária em áreas afetadas por desastres naturais, conflitos,

entre outras. Realizam campanhas de sensibilização, para angariarem fundos

de apoio psicossocial, bem como para darem visibilidade e sensibilizar

situações atrozes (CLEMENTE, 2015).

Page 92: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

92

Há também o grupo „A Bola Roja‟, que começou como projeto de

palhaços de hospital em 2005 com o Patch Adams e outros palhaços com o

Projeto Belém, na selva peruana, atuam como palhaços comunitários, é

considerado um palhaço útil, associam as ações governamentais e de ONG‟s

(CLEMENTE, 2015).

Outras organizações levantadas na mesma categoria de atuação são a

organização Henyoka Clown e Associação Ayeklauwn, considerados Palhaços

Socioeducativos. Assim, o palhaço trabalha com a comunidade e processos

criativos, estimulando e transmitindo valores e emoções para melhorar a

aquisição de capacidades pessoais e coletivas. Atua na dimensão pessoal

potencializando a capacidade da pessoa adquirir valores de honestidade,

aceitação, há uma transmissão de valores humanos, assim aumenta a

capacidade de participação na vida social e com ampliação de

relacionamentos. Questiona hierarquias, leis e reforça a capacidade de

escolha, portanto é um grupo com foco no trabalho sócio-educativo do palhaço.

Na maioria dos casos analisados os palhaços operam dimensões da

vida em sociedade, assumindo função ritual, função de cura e função social.

Além de, na função social compreender uma função socioeducativa. Clemente

propõem três categorias (A) artística / clown cênica, (B) clown terapêutico e (C)

Palhaço social, que por sua vez se subdivide entre humanitário, rebelde,

comunitário e socio educativo e onde a relação com direitos humanos se faz

mais presente, estendendo seu papel além do artístico, ao social e ao

educacional (CLEMENTE, 2015).

Devemos distinguirentre o trabalho social do palhaço, como o efeito ou

trabalho de ação na sociedade; e palhaço como um agente social, como a

pessoa responsável por fornecer certos serviços para a sociedade. E nesta

linha na prestação de serviços. Palhaços no trabalho de defesa dos direitos

humanos pode vir a ser excelenteestratégias para sensibilizar e aumentar a

conscientização sobre a vulnerabilidadepresente em diferentes situações

(CLEMENTE, 2015).

Page 93: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

93

Figura 19: Oficina sócio educativa Ayeklauwn, Murcia, Espanha

Fonte: Créditos Ayeklauwn, 2017.

No artigo El Clown juntos por la Salud. Exposicion de experiências (O

palhaço juntos pela saúde. Exposição de experiências) é um estudo quase

experimental no qual objetiva conhecer experiências de intervenções de

promoção da saúde com a aplicação da técnica de palhaço em diferentes

comunidades realizadas durante os anos 2006 a 2008 em Santiago de Cuba.

O jogo de Palhaços nesse caso foi aplicado no desenvolvimento de várias

atividades comunitárias e datas comemorativas na qual a unidade de alocação

de intervenção não foi o indivíduo, mas toda a comunidade ou grupo de

indivíduos, de modo que o universo aplicado foram todas as pessoas que

visitaram os stands de promoção e prevenção da saúde nas diferentes partes

da cidade, como Parque Céspedes, Instituto de Ciências Médicas de Santiago

de Cuba, da cidade, como a Plaza de Marte, entre outros parques e praças da

cidade, onde se destaca também o Parque Trocha, local da intervenção dia 01

de dezembro sobre HIV-AIDS. Os palhaços estiveram presentes no 01 de

dezembro, Dia Mundial da SIDA, 01 de junho, Dia Mundial da Criança,

atividades estudantis e conferências científicas, Fóruns Comunitários e Feira

do Livro Universitário (FUL) (ESPINO e TAPIA, 2011). O público foi atingido

Page 94: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

94

pela informação em suas diferentes condições sócio econômicas e mobilizaram

sentimentos e tomaram consciência dos problemas de saúde através do riso e

do jogo. Verificou-se a atuação do palhaço neste contexto e o público teve

percepções distintas: houve pessoas que narraram sobre vantagens e

desvantagens na aplicação da linguagem do Palhaço em atividades de

prevenção e promoção da saúde. Como vantagens há o fato de ser um ponto

de encontro de palhaços exibindo suas artes; há a presença do público; há o

fato da linguagem do palhaço ser ilimitada e isso gerar criações fora de

padrões sociais comuns, o que gera reflexões sobre o status quo social;

também há o fato de que os palhaços não têm limites para as possíveis formas

de aprender e ensinar a população em um processo de interação; pois o

palhaço atua com presença e provoca reações capazes de transpor barreiras

afetivas e isso gera ensinamentos. Atua sem limitações de gênero específico,

assim interage com ambos os sexos (masculino e feminino) e com outras

opções sexuais (homens que fazem sexo com homens, mulheres que fazem

sexo com outras mulheres, etc.). Os palhaços não se limitam a cenas e

interagem com quaisquer públicos indiferentes de idade, da opção sexual, do

número de pessoas; têm a capacidade de jogar com a sensibilidade das

pessoas, de manipular sentimentos. As pessoas nesta interação afloram sua

criança interior; e potencializam o sorriso de crianças em tratamento além de

gerar suporte para as mães no processo da doença do filho (ESPINO e TAPIA,

2011).

Como desvantagens da presença de palhaços nas intervenções

realizadas em Santiago, o público cita o fato do mesmo, em suas ações, ter a

possibilidade de gerar desrespeito; ser conhecido como aquele que sempre

quer ser o centro das atenções; o seu linguajar e sua ambivalência às vezes

incomodam. Os palhaços, de acordo com pessoas presentes na atividade, não

são adequados; muitos veem o palhaço como engraçado e quando veem que o

palhaço não é necessariamente engraçado se decepcionam. Consideram a

maquiagem e a roupa não apropriadas para a situação; muitas pessoas não

querem interagir com o palhaço; o palhaço tem uma desafio maior com o

adolescente; é um ator marcante, por isso deve ser muito cauteloso em como

Page 95: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

95

atuar; muitas vezes as crianças menores de 2 anos vão temê-lo; está sujeito a

ondas de agressividade do público, dependendo da educação das pessoas que

estão presentes (ESPINO e TAPIA, 2011).

Figura 20: Experiências com o Jogo de Palhaços em Santiago de Cuba.

Fonte: Crédito ESPINO e TAPIA.

No artigo Inovação nas práticas de promoção da saúde por meio da arte

da palhaçaria as dialogias do riso são registradas em vídeo-documentários de

experiências de campo. O Palhaço e Sociólogo Matraca mostram uma de suas

primeiras experiências de pesquisa participante por meio da arte da palhaçaria

como forma de promover saúde na rua.

Palhaço Matraca, em diálogos sobre temas de saúde e vida, vai ao

encontro direto da população de rua e registra em dois vídeos-documentários:

“Matraca e o povo invisível” e “Na Pista”, apresentando sua ação de

atendimento e abordagem a pessoa em situação de rua e a Profissionais do

sexo.

Na pesquisa participante, o pesquisador se coloca como sujeito do grupo

investigado, busca a participação da comunidade na análise de sua própria

realidade. Neste espírito de fraternidade, o palhaço Matraca adota a arte da

palhaçaria como ferramenta para investigação participante, aqui compreendida

Page 96: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

96

como uma tecnologia pedagógica e social pró-ativa na Promoção da Saúde

com Alegria.

Matraca, ainda, afirma a relação dialógica entre os movimentos sociais

em torno das políticas públicas, o que se torna essencial para o exercício da

cidadania, do controle da atuação do Estado, das políticas em

desenvolvimento, dos direitos civis e sociais como prática da gestão

participativa.

Figura 21: Palhaço Matraca nas Ruas.

Fonte: Créditos Lucia Helena Ramos 2008.

No artigo, Palhaços sem Fronteiras: o circo a serviço da sociedade,

Bortolotto relatou sua participação na missão humanitária destinada ao Sri

Lanka, organizada por Palhaços Sem Fronteiras e coordenada por Médicos

Sem Fronteiras, com objetivo de atenuar os efeitos das catástrofes dos mares.

Foram duas missões de aproximadamente 20 dias de duração cada uma,

contando com a participação de 12 artistas.

Desde sua criação, os Palhaços Sem Fronteiras realizaram missões

humanitárias em diversos países e regiões como, por exemplo: México, Guiné

Page 97: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

97

Equatorial, Guatemala, Palestina, Croácia, Afeganistão, Brasil, Colômbia,

Marrocos, Costa Rica, Saara Ocidental, entre outras regiões.

O autor atesta na prática como a arte do palhaço, em zonas de

catástrofe natural, gera efeitos positivos na recuperação da saúde biológica e

social do lugar.

Figura 22: Membro do grupo Palhaços sem Fronteiras apresenta para sobreviventes

do tufão Haivan, Tacloban nas Filipinas.

Fonte: Créditos notícias UOL, 2013.

Em O humor e o riso na promoção de saúde: uma experiência de

inserção do palhaço na estratégia de saúde da família, os autores narram a

aplicação do palhaço na Promoção da saúde em visita a domicílios na periferia

durante 8 meses, através da prática de abordagem de palhaços em moradias

familiares em zonas de vulnerabilidade, indicados pelo programa saúde da

família em Belo Horizonte.

A universidade, por meio de projeto de extensão, propôs inserir o

palhaço na Estratégia de Saúde da Família - ESF. Essa inserção da arte do

Page 98: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

98

palhaço nos domicílios foi um instrumento libertador, educador, criativo e

cultural.

A equipe se prepara, desenvolve sua capacidade de atuar em parceria

com os palhaços e as palhaças e agregam interessados, como também

constroem um relatório de resultados, sistematizado em termos quantitativos e

qualitativos. A descrição dos fenômenos de recepção e expectância em si,

mostra a realidade das famílias visitadas, com o tempo de duração da visita

dos médicos-palhaços de 15 minutos por domicilio. O potencial da abordagem

do palhaço inicia já na recepção de membros da casa no encontro com os

palhaços e a relação se inicia com o acolhimento do palhaço com os membros

da casa e vice-versa. Nestes 15 minutos os médicos palhaços fazem o que tem

que ser feito e o mote é por meio da interação e dos elementos constituídos no

ambiente, assim com o olhar em 360 graus os palhaços acolhem, brincam,

relaxam, resgatam memórias afetivas, arrumam a casa, trazem leveza nas

rotinas, improvisam, cuidam da dor humana entre outros (BRITO et all, 2016).

O palhaço, em sua liberdade desperta a confiança e expande formas de

abordar os problemas, transformando o espectador, no caso as famílias em

coautores de experiências sensoriais e estéticas na relação de interação.

Neste contexto territorial de saúde da família provocam reflexões sobre

problemas cotidianos, constroem vínculos fortes e livres com as famílias e

potencializam o cuidado humanizado. Os palhaços junto com as famílias

potencializam modos singulares de solução de problemas do dia a dia e

agenciam novas construções subjetivas para cada família lidar com situações

cotidianas (BRITO et all, 2016).

Podemos concluir que o palhaço em zonas de vulnerabilidade tem

muitas possibilidades de atuação e exercem diferentes papéis, podendo gerar

reais transformações no cotidiano das pessoas em situações vulneráveis e/ou

anestesiar suas condições.

Page 99: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

99

Figura 23: Experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família.

Fonte: Créditos Cristiane Drumond de Brito.

3.3 Papel social do palhaço

Buscou-se identificar e analisar o papel social do palhaço em territórios

vulneráveis: espaços de segregação material e simbólica, de abandono e

violação de direitos humanos como: favelas, zonas de guerra, de conflitos

armado, ruas, espaços públicos abandonados pelo governo ou ocupados

informalmente; abrigos, zonas rurais com acesso limitado a serviços básicos,

subúrbios como cidades dormitório, moradias improvisadas em ocupações

informais organizadas ou em ocupações informais aleatórias.

É inegável o potencial do riso e do palhaço como catalisadores do

processo de recuperação física e psicológica das pessoas envolvidas nos

conflitos e nas zonas vulneráveis socialmente (BORTOLETO, 2005). No

entanto há uma reflexão a ser feita acerca do caráter das zonas de

vulnerabilidade social, na medida em que a compreendemos como uma

extensão de impunidade do poder constituído e também como uma

transferência dos nomos de poder a cada lugar social assumido pelo sujeito,

quando o oprimido se torna o opressor (FREIRE, 1996).

Page 100: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

100

Caracterizar a zona de vulnerabilidade social no Brasil se torna uma

questão de expandir e relativizar a delimitação da zona de vulnerabilidade

social que se estende para além de territórios físicos onde os índices de

violência ou baixo IDH (índice de Desenvolvimento Humano) são identificados,

pois no Brasil, os espaços domiciliares em geral também podem ser vistos

como zonas de vulnerabilidade da criança por exemplo. As estatísticas que

localizam o alto índice de violência doméstica24, evidenciam como a violência

está naturalizada entre os jovens em situação de vulnerabilidade sócio

econômica, a partir de seus lares, o que torna notável o fato dos pais serem os

maiores perpetradores da violência contra crianças e apontam que a zona de

vulnerabilidade social da criança brasileira tem limite tênue, pois o estigma e a

invisibilidade social como elemento característico dos casos e trajetórias de

exclusão social ultrapassam e perpassam as dimensões sócio econômicas,

não sendo especifico dos cidadãos em situação de rua ou dos miseráveis,

espaço além da difícil definição de negligência(fator de estigma e invisibilidade)

enquanto ato violento, pois envolve aspectos culturais, sociais e econômicos de

cada família ou grupo social. A negligência é a forma mais frequente de maus-

tratos contra crianças e adolescentes ( NUNES E SALES, 2013).

Nesse lugar o palhaço também tem seu papel de catalisador humano,

pois torna-se uma estratégia para potencializar fluxos relacionais entre pessoas

da família em suas inumeráveis possibilidades de interação, inclusive no plano

simbólico, abrindo um amplo espaço de realização da liberdade (BRITO et all

2016).

Há lugares no globo terrestre onde a violação de direitos atravessa

dimensões da realidade, tanto política, quanto social, quanto econômica,

psíquica, cultural, ambiental, que se entrecruzam e se constituem em uma

superposição de violações de direitos, em diversas culturas humanas. Assim,

24

Pesquisa O que dizem as crianças. Visão Mundial e Instituto Igarapé. A pesquisa foi feita entre setembro de 2015 e março de 2016 e ouviu 1.404 crianças e adolescentes entre 8 e 17 anos que participam de projetos da Visão Mundial em 12 cidades: as capitais Fortaleza, Recife e Maceió, e as regiões periféricas de Manacapuru (AM); Governador Dix-sept Rosado e Mossoró (RN); Catolé do Rocha (PB); Canapi e Inhapi (AL); Itinga (MG); e Nova Iguaçu (RJ).

Page 101: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

101

pode-se dizer que a vulnerabilidade social é multidimensional e as pessoas

estão expostas a um estado de susceptibilidade em constante situações de

tensão e risco, tanto ambientais quanto sociais e expostos, sobretudo, à

ausência de capacidade para se proteger ou se adaptar (ADGER, 2006).

A vulnerabilidade social carrega em si componentes de violência

próprios, os quais operam sobre redes complexas da vida humana. Há uma

condição de desvantagem, de opressão, de abandono, que coloca o ser

humano em condições aviltantes. Apesar da retórica democrática participativa,

verifica-se que existem grupos marginalizados com recursos materiais e sociais

limitados (mulheres, crianças, idosos economicamente pobres, pequenos

agricultores, imigrantes, sobretudo pessoas que vivem em países em guerra,

em ambientes com riscos geopolítico etc.) excluídos da tomada de decisão

(PELLING, 1998).

As zonas vulneráveis e de conflito sofrem disputas de poder e

dominação (ALVES,2010). Mesmo vivendo sob controle governamental, ainda

assim sofrem com embargo político e ao mesmo tempo abandono. Zonas de

vulnerabilidade ou conflito social é extensão de uma zona de impunidade, onde

o poder constituído não alcança a proteção humana, seja porque está alhures

de seu poder ou porque a impunidade esteja em si. A impunidade é um

fenômeno imbricado e complexo que envolve recursos e estratégias complexas

e de grande espectro (LOPES, 1994). A impunidade está profundamente

relacionada à soberania, ao nomos de poder (AMOORE et all, 2013).

Poderíamos chamar esses territórios de zonas de iniquidade do poder

soberano.

Neste contexto, o palhaço e o governante operam a soberania por

vieses distintos. Sendo a soberania uma prática de manipulação de poder

(ALVES, 2010) extraordinariamente ágil e adaptativa, pois mistura símbolos e

aspirações, cada vez mais influentes nos mundos afetivo e sensorial

(AMOORE et all, 2013). Em se tratando de soberania, o palhaço é o exemplo

por excelência da resistência, sempre presente dentro do exercício do poder,

pois não se vira para enfrentar um locus de poder como se pudesse contrariá-

Page 102: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

102

lo ou derrubá-lo, ao contrário, habita dentro da corte não sendo ao mesmo

tempo de sua estirpe.

A figura do palhaço força os limites da soberania, pois não diferencia o

seguro do perigoso, o legal do ilegal e dificulta assim, a divisão entre o interior

e o exterior, o privado e o público, valores nos quais repousa a vida política

soberana (ALVES, 2010).

O palhaço está impune e não pode ser julgado, nem mesmo a lei da

censura25 pode detê-lo. Apresenta potência em revelar o absurdo e a hipocrisia

do poder soberano, por se apresentar como se fosse alguém muito importante,

mesmo sendo apenas um tolo. É um advogado da vida, que reúne nele um

lembrete do excesso, daquele que sempre escapa do estado convencional, por

exibir uma vitalidade que não é inteiramente governada (AMOORE ET ALL,

2013).

As ações do palhaço são simultaneamente louvadas e deploradas pelos

poderes soberanos (AMOORE et all, 2013). Estar fora da lei, ser um fora da lei,

não ter lugar, esse status paradoxal coloca o palhaço em curiosa proximidade

com o rei (AMOORE et all, 2013). A relação arquetípica entre rei e bobo da

corte traduz explicitamente o lugar do humor na cultura, uma chacota que pode

custar a moral de um governante, pois ridiculariza e denuncia o absurdo das

decisões soberanas.

Um palhaço, por definição, ameaça à ordem pública e, aparentemente,

não tem lugar no paradigma hegemônico de justiça, deixando claro que a

normose26domina os interesses políticos, em franca omissão ao direito humano

nas zonas de vulnerabilidade (BRITO et all, 2016, MATRACA e JORGE, 2011),

25

Artigo Institucional Número 5 http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620

26

Normose: Ato de justificar a manutenção de um comportamento não saudável por ser normal.

Page 103: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

103

3.4 Emoção, humor e riso

A arte da palhaçaria tem uma dimensão transformadora acionada pela

sátira e pelo humor. Tornam as mensagens políticas mais palatáveis para o

público e incentivam a participação ativa do público. As piadas são ativas e

socialmente engajadas. Tem a capacidade de estimular as pessoas a

reflexões, a associações imaginativas e inteligentes sobre as suas próprias

condições de vida. Trabalha com o imaginário sendo capaz de revelar

segredos, reabrir desejos e clarear a própria realidade humana (KING, 2014,

BRITO et al., 2016). Freud em seu livro chiste e inconsciente oferece uma

teoria cerebral sobre a sedução da piada, como ela pode economizar energia

do cérebro, “subornar” o espectador com o seu rendimento de prazer, que

escapa pela contemplação e pelo riso, tomando sua atenção e sentidos de

modo rápido (KING, 2014).

Toda a arte, assim como o jogo de palhaços em particular, permite a

criação de laços de reconhecimento e interesse mútuo entre seres humanos. O

palhaço tem a capacidade de comunicar valores e despertar sentimentos

(CLEMENTE, 2015, ESPINO e TAPIA, 2011, BRITO et al., 2016, MATRACA e

JORGE, 2011). Emoções são compartilhadas entre palhaço e público e entre

os próprios espectadores gerando parâmetros identitários compartilhados. O

palhaço provoca o riso ou a tensão reflexiva, capaz de extrair o que há de

humano em nós e momentaneamente podemos anestesiar nossas diferenças

culturais, políticas, de sentimento entre outras (AMOORE e HALL, 2013). O

palhaço com seus jogos é capaz de criar distancias necessárias e assim

consegue no jogo realizar associações de ideias. O riso nestas situações exige

uma anestesia momentânea do coração e é direcionado à inteligência (BRITO

et al., 2016).

A arte da palhaçaria comunica e inclui os indivíduos num parâmetro

comum aos que compartilham os sentidos vividos. Levam aos espectadores

uma referência unificadora por oferecer intenções e contexto. Então podemos

dizer, que o palhaço atua no campo da complexidade, pois ao mesmo tempo

Page 104: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

104

tem a potência de unir os espectadores e os distingue em sua capacidade

particular de fruição, suas subjetividades e modos de ser.

O riso ajuda a contrapor ideias, mas também opera parâmetros

coletivos, assume a forma de "interferência cultural" (KING, 2014), ou seja, um

repertório de ações e práticas são sintonizadas com a cultura, sejam práticas

hegemônicas ou contra hegemônicas.

A arte da Palhaçaria é uma das formas mais antigas de performances

ao vivo na qual o palhaço transforma uma situação de cabeça para baixo para

revelar o seu absurdo. A arte da palhaçaria é associada aos rituais

inversionistas carnavalescos de libertação temporária da verdade à da ordem

estabelecida (BAKHTIN 1984, apud ROUTLEDGE, 2011). Em expressões

desafiadoras à normalidade, o palhaço liberta os outros das restrições sociais,

reconstruindo a ordem das coisas (ROUTLEDGE, 2011).

O palhaço como criatura do caos, afronta o senso de dignidade, assume

expressão de zombaria sobre o senso de ordem, por isso o clown está sempre

sendo perseguido pelo policial, numa metáfora de descontrole da ordem

(ROUTLEDGE, 2011). As performances utilizam risos e absurdos como forma

de subverter o esperado, de introduzir o ridículo, burlar e gerar caos, onde

normalmente existe convenção de costumes e contenção social.

Os palhaços e as palhaças em sua performance encarnam as

contradições da vida e confundem categorias impostas pelo sistema,

consequentemente minam a autoridade ao enfatizar o ridículo (KLEPTO, 2004

apud (ROUTLEDGE, 2011). Como tal, o clown representa um desafio aos

processos biopolíticos de governabilidade, contra a geração de

comportamentos normalizadores e condutas adequadas para as pessoas

(FOUCAULT 1979a, 1979b apud ROUTLEDGE, 2011).

Quando o palhaço atua, pode unir ideias disparatadas com humor e

emoção e criar algo novo, um terceiro elemento inesperado. O palhaço é um

"disjuntor humilde e cômico de regras", frequentemente considerado

"importante e sagrado". Cria um mundo invertido e virado às avessas.

Conduzido por uma alegria imprópria, desobediente e grotesca, o palhaço

Page 105: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

105

enquanto tolo torna-se rei e a ordem normal das coisas é revertida (AMOORE e

HALL, 2013).

A potência da atuação do palhaço revela um jogo de ressonância

emocional (ROUTLEDGE, 2012) que contagia os grupos e nos remete ao

carnaval, a "vitória do riso sobre o medo”, no qual permitem-se certas formas

de poder social onde o riso governa, os homens se tornam mulheres e as

mulheres se tornam homens, o sagrado é zombado; abandona-se

momentaneamente o lugar de ordem e hierarquia. Entendido como uma forma

de resistência e crítica, o “carnavalês” é ligado à subversão e à formação de

opinião política alternativa, à noção de resistência como rebelião e à produção

de "outro mundo”. O riso mina os discursos de racionalidade e de coerência

subjacentes à políticas e aos processos econômicos (AMOORE e HALL, 2013).

O abandono caótico de si no carnaval está bem ligado à história do

palhaço. Incorpora a licença e o privilégio do carnavalesco, com os quais ele

tradicionalmente foi associado. O tolo pode criar um espaço de respiração

imaginativo e falar a verdade de modo impune, expondo ridiculamente a

sociedade de costumes. A loucura do palhaço torna-se "uma máscara para o

sábio e uma armadura para o crítico", bem como uma técnica para revelar a

"loucura dos sábios"(AMOORE e HALL, 2013).

Entretanto, o que não é expressivamente contestado significa que

continua a materializar uma tensão política (AMOORE e HALL, 2013). Tanto a

resistência quanto o instituído, mediados pela emoção, humor e o riso

provocados pelo palhaço, já estão em fusão, afinal, nos tornamos um pouco

aquilo do que escarnecemos. Somos liberados não só da censura externa

como interna.

Na performance do palhaço a linguagem não verbal tem um potencial de

interagir de forma precisa com os sentimentos das pessoas. A Dialogia do

Riso é um recurso utilizado para potencializar um estado caótico no qual o

conflito sirva, antes de tudo, para desconstruir a ideia hegemônica (MATRACA

e JORGE, 2011). A Dialogia do Riso é baseada na prática da educação

popular em saúde desenvolvida com alegria; se funda na escuta e na aceitação

como aspecto primordial, ou seja, olhar nos olhos de igual para igual, o que

Page 106: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

106

sugere um olhar sobre o riso como prática humana transformadora, de

aceitação e acolhimento (MATRACA e JORGE, 2009).

O riso nos convida ao risco de operar outras lógicas de cuidado e

atenção com o outro e por isso trazem saberes que transformam a arte do

palhaço em um trabalho vivo em ato, que produz saúde (BRITO et all, 2016). O

riso está ligado ao conhecimento e à saúde, rir alguns minutos por dia previne

o desenvolvimento de doenças cerebrais vasculares. Mas o trauma e o stress

da vida quotidiana nos fazem esquecer de apreciar a vida através do riso

(ESPINO e TAPIA, 2011). Assim podemos contrapor a ideia de saúde como

simples ausência de doença ou um completo bem-estar, noção utilizada pela

OMS desde 1946, que sofre transformações em 1986, na Carta de Ottawa, a

saúde passa a ser entendida como um recurso para a vida e não como um

objetivo de viver (MATRACA e JORGE, 2011). Mesmo que as ações de saúde

no Brasil sejam de acesso universal enquanto política pública, práticas de

prevenção e terapêuticas complementares, em zonas de vulnerabilidade social,

esbarram em barreiras tais como desvio de verba, restrições de recursos e

outras violações de direitos humanos como abandono, alienação familiar, e

dificuldades de acesso e atendimento a serviços públicos gratuitos.

A definição de Lefèvre 2004 (apud MATRACA e JORGE, 2011) se

adequa mais, de acordo com Matraca (2011) às práticas de Promoção da

Saúde, compreendendo-a como uma ferramenta para a percepção ampliada,

integrada, complexa e intersetorial da saúde e da vida, articulando ambiente,

educação, recursos humanos, estilo e qualidade de vida (MATRACA e JORGE,

2011). Restando recordar ainda a noção de saúde como direito social

fundamental, garantido pela constituição brasileira de 1988, Art. 196:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante

políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às

ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, mesmo

que a realidade não esteja expressa nas ações públicas.

Page 107: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

107

Este direito, muitas vezes não é garantido e seu primeiro sintoma se dá

pela diminuição da capacidade de rir. Espino e Tapia (2011) nos diz que um

dos primeiros sintomas percebidos pelas mães no adoecimento de crianças

são as mesmas pararem de rir. Cientificamente está provado que o riso libera

uma grande quantidade de hormônios e enzimas que tornam o metabolismo

mais fácil, modifica atitudes através de desinibição, através da experiência,

jogos e motivação. Exerce papel fundamental na aprendizagem em saúde e na

relação do indivíduo com o seu meio social (ESPINO e TAPIA, 2011).

O humor opera a conexão entre emoção e riso, estimula zonas de

desejo incertas e combate práticas corporais instituídas, engessadas

(GUATARI, 1996, apud CLEMENTE,2015). O humor em zonas de

vulnerabilidade poderá levar as pessoas a realizarem associações imaginativas

em situações de dramas humanos, distanciando-se deles e abrem

potencialmente um caminho para estabelecer conexões de ideias, de

percepções e sentidos do próprio drama (BRITO et al., 2016).

Mensagens transmitidas emocionalmente e sensualmente são mais

eficazes do que quando são transmitidas racionalmente, porque podem romper

comportamentos habituais, criar sentimentos libertadores (KING, 2014),

desmascarar e revolver ideias e posições cristalizadas, mais do que isso expor

de forma improvisada e criativa a potência do Jogo de Palhaço em transformar

a vida.

3.5 Lazer e palhaçaria

O palhaço e a palhaça contemporâneos guardam referência da

comicidade sagrada quando apresentam características de escárnio e exagero,

presentes na figura de deuses irreverentes pois nos remetem aos tricksters,

cômicos rituais, que operam transfigurações e inversões de sentidos.

Na trajetória do trabalho, o Cômico Ritual imerso no grotesco como

cânone, trabalha a trajetória de bem-aventurança mítica do herói (CAMPBEL,

1988 apud MOYERS et all, 1988), e traz identidade com o indivíduo que aceita

o jogo de palhaço. Nesta inter-relação o jogo caótico cósmico acontece e pode

Page 108: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

108

haver espaços para o protagonismo criativo das pessoas participantes por meio

da desconstrução de lugares estáticos e estagnados, impostos pelo programa

de colonização e aculturação humana.

O Cômico Ritual dialoga com referenciais do lazer, na medida que

também é uma prática ligada à necessidade humana (GOMES, 2011) pela sua

potência de fruição lúdica e imersão metafórica em práticas culturais. Assim

sendo, o lazer é uma necessidade humana e o Cômico Ritual também faz parte

dessa necessidade, pois participa do emaranhado de sentidos e significados

humanos. Há uma vivência arquetípica do mito sagrado, através de sua

máscara cênica. A prática do palhaço em zonas de vulnerabilidade traz à tona

necessidades humanas, tece novas subjetividades e gera redes de

significados, símbolos e significações assim como a prática do lazer.

O lazer integra o campo das práticas humanas e pode ser visto

como um emaranhado de sentidos e significados

dialeticamente partilhados nas construções subjetivas e

objetivas dos sujeitos, em diferentes contextos de práticas

culturais, sociais e educativas. O lazer participa da complexa

trama histórico-social que caracteriza a vida em sociedade e

representa um dos fios tecidos, culturalmente, na rede humana

de significados, símbolos e significações (GOMES, 2011).

GOMES (2011), amplia a concepção de lazer e o coloca como

expressão potencial da diversidade cultural, de acordo com as experiências

humanas em seus contextos locais, em processos dialógicos com os contextos

globais. O fenômeno do lazer é permeado de tensões entre questões culturais

locais e valores impostos pela hegemonia da sociedade global. Neste mesmo

espectro de tensão estão os palhaços e palhaças em zonas de vulnerabilidade.

O palhaço tem a potencialidade de operar chistes e estabelecer um tipo

de comunicação que vai muito além do prescrito socialmente, do status quo,

em um fenômeno de afetação e reciprocidade mútua entre palhaço e

espectador e entre espectadores. Denota a imersão mítica proposta pelo

Cômico Ritual, através da dinâmica de trocas afetivas e miméticas.

Page 109: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

109

A evidenciação do Cômico Ritual remonta a culturas tão antigas quanto

formas distintas de sua aparição e atuação. Nos trazem também a noção de

artistas completos e exímios e nos mostra sua complexidade ritualística em

populações tribais, sem perder a importância sacro profana nas cidades

(CLEMENTE, 2015), dando forma ao Trickster, Bufão, Tolo, Zanni, Arlequin,

Pulchinela e finalmente aos palhaços e palhaças.

Os palhaços estão cada vez mais presentes na vida diária, são um

arquétipo popular visto em circos, festas infantis, hambúrgueres e outros

anúncios corporativos, e nas ruas públicas, o que significa ser usado para além

de acrobata, palhaço, músico, malabarista, etc. Muitos palhaços de circo

começaram como artistas de outras especialidades e à medida que

envelheceram e não foram capazes de realizá-las acabaram como palhaços.

Na atualidade a palhaçada mudou, está mais especializada na parte cômica e

possui a delimitação do campo de atuação feminino, dessa forma podemos

dizer que não existem mais dois palhaços multidisciplinares como

antigamente27.

O palhaço e a palhaça atuais não tem as mesmas características que o

palhaço tradicional, mas podemos observar seu legado, quando percebemos a

mistura entre o palhaço e o bobo (BOLOGNESI, 2003). O palhaço hoje, não

precisa ser especificamente ingênuo, por exemplo, pode ser inteligente e até

mesmo ser um pouco azedo, de alguma forma. O ator pode se apresentar

como diferentes tipos de palhaços variando de personalidades, mas, no

entanto, haverá uma que vai predominar, na mais próximo do que o ator é.

Nesta perspectiva, os palhaços são obras do próprio ator e dizem de si mesmo

(ESPINO e TAPIA, 2011). Essa ideia de ter um jogo em uma linguagem

corporal que opera a afetação catártica dos expectantes, denuncia o lugar de

entrega e por isso de fragilidade em que se coloca o sujeito quando joga com

ou como um palhaço.

27

A dupla Branco e Augusto faz parte de uma dramaturgia circense que sintetiza a relação de poder entre quem manda e quem obedece, o senhor e o servo, por uma dinâmica de inversão o Branco subjulga o Augusto, mas sai sempre em desvantagem ( BOLOGNESI, 2010).

Page 110: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

110

A partir do momento que é pedido ou condicionado ao palhaço que sua

atuação faça referência ou expresse objetividade relativa a algum conteúdo de

interesse público, o jogo de palhaço sofre cerceamento por parte de uma visão

instrumentalizadora (KING, 2014), assim atua no campo do poder hegemônico

com mensagens direcionadas. O lazer também muitas vezes tem o foco do

consumo e do lucro, demonstra assim que também há relações de poder tanto

no jogo do palhaço quanto no lazer.

Na dissertação podemos observar referenciais do palhaço hegemônico

como à dupla Patati Patata(PAIVA e SOUSA, 2015) por apresentar uma

intenção comercial explicita. Vislumbramos, todavia, a partir de uma

tipologização de palhaços atuantes em causas humanitárias (CLEMENTE,

2015) e das críticas sobre humor como ação humanitária (KING, 2014), que os

palhaços e palhaças podem estar agindo por formas de inculcação hegemônica

em zonas de vulnerabilidade, através da ideia de ação humanitária. Tanto o

palhaço explicitamente comercial, quanto o atuante em zonas vulneráveis com

causas humanitárias podem responder ao poder hegemônico.

O palhaço é frequentemente objeto de diversão, entretenimento ou

mercantilização, por trás desta indução hegemônica se esconde uma figura

subversiva que confunde categorias impostas pelo sistema (CLEMENTE,

2015). Ao invés de oferecer uma posição definida previamente, o palhaço faz

invocações, no momento presente, de camadas temporais e performativas das

quais o espectador, também se torna parte (KING, 2014). Seria o clown que

oferece humor como ação humanitária um neo clown ou um clown neoliberal?

Levar o humor não seria uma ação intransigente ou que faz parte de um regime

cultural de atrelamento do palhaço ao poder, através do lazer?

Afinal, palhaços podem realizar a coação social de modo divertido

(KING, 2014). A partir da pactuação pacífica neoliberal dos anos 90, de

valorização de parcerias sociais e de complexificação dos serviços de

assistência, após o duro ajustamento estrutural da década de 90, um

amolecimento ocorreu no neoliberalismo, o qual, Maurya Wickstrom (apud

KING 2014) chama de "iniciativas de parceria social”, em que o governo solicita

o apoio dos cidadãos (e dos palhaços) na aplicação de políticas que são

Page 111: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

111

supostamente de caráter social e benefício comum. King (2014) chama isso de

neoclowniberalismo.

O palhaço é um ser estranho, ambíguo, inocente e provocador, que

produz um estranho confronto lúdico, distorce a ordem social e desafia as

pessoas a experimentarem sua verdadeira posição. Nesse sentido, até que

ponto o jogo de palhaços pode suportar a ideia de ser instrumento de

inculcação de mensagens dirigidas, ainda mais em zonas de vulnerabilidade,

onde direitos e garantias humanas básicas estão sob risco?

O lazer também pode ter essa dualidade em zonas vulneráveis, de

amortecer conflitos, de gerar modos de vida com mensagens dirigidas. O lazer

visto como tempo livre por exemplo, poderá servir a um momento de

construções contra hegemônicas ou serve apenas para repor energias que

deverão ser direcionadas ao trabalho e ao lucro. O lazer como um fenômeno

moderno da civilização urbano-industrial, nos remete a uma produção

conceitual alicerçada em um pensamento eurocêntrico. Trazem a ilusão de que

o conhecimento e conceitos sobre o lazer é des-incorporado e des-localizado,

portanto supostamente universal (GOMES, 2011). Sendo universal no sentido

supracitado, serão perpetuadas as redes invisíveis de dominação que geram

colonialidade do poder e saber (GOMES e ELIZALDE, 2014), portanto, tanto o

palhaço quanto o lazer não são libertadores por si.

Como a arte da palhaçaria, o lazer também pode humanizar o ser

humano, apontar para uma construção de resiliência no cotidiano vulnerável e

de risco. O lazer inserido nas políticas públicas de assistência social e saúde

utiliza, por exemplo, de jogos de palhaços em praças públicas na

contemporaneidade. O que está em questão é o modo como se quer formatar e

adaptar o palhaço, impedindo - o muitas vezes de estabelecer sua narrativa

pelo conflito e pela tensão, pela contraposição antagônica e grotesca. Esta

instrumentalidade aponta a intenção funcional com que se busca a imagem e o

jogo de palhaços, sem permitir que o “mundo de cabeça para baixo” do palhaço

de fato se instale.

Page 112: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

112

4 MINHA EXPERIÊNCIA COMO PALHAÇO EM ZONAS DE

VULNERABILIDADE SOCIAL DURANTE 10 ANOS

4.1 História de vida

Minha experiência, neste âmbito, durante todos esses anos demonstra

como desenvolvi um olhar sobre o aspecto ideológico da arte da palhaçaria, na

medida que o efeito cômico está presente na cultura de forma geral e possui

funções e usos distintos, de acordo com as intenções que o revelam. Assim,

compreender os papeis e os valores da presença do palhaço ou palhaça vão

além de uma leitura teórica, pois são fruto, também, de uma sensibilidade

vivida e experimentada ao longo de diversas experiências como palhaço, as

quais proporcionaram a compreensão deste lugar, por cada situação

vivenciada.

Inicialmente a entrada no universo da palhaçaria ocorreu por um

acidente de percurso. Se de um lado eu queria ser ator, do outro queria algo

que me colocasse imediatamente em cena. Mesmo que minha falta de preparo

me cegasse a habilidade de atuação, eu queria ser o protagonista máximo da

minha experiência.

Não se tratava de uma adesão consciente ou ética, mas uma adesão

oportuna, na medida que naquele momento, de maneira simplista, compreendi

que eu poderia vestir roupas coloridas e ser um recreador em festa infantis e

ainda sair com uns trocados.

Nunca fui convidado novamente para animar as mesmas festas, tinha

sempre que recomeçar meu marketing. Esse palhaço que eu fui, animador de

festas, era patético como o Patati Patata, mas não conseguia me constituir

como uma marca e tornar-me apto ao consumo e também não era polêmico e

nem grotesco, muito distante do bufão de Leo Bassi.

Page 113: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

113

Alimentava, em mim, o sonho de ser artista e com tantas frustrações em

festas infantis, comecei a perceber que o meu jeito de ser palhaço não

dialogava com esse público de festas de classe média e alta. Eu, como

palhaço, não obedecia a protocolos, não homenageava o aniversariante e não

tinha nenhum aspecto cerimonial que tais meios sociais exigem, comecei a

pensar, então, que eu era um palhaço marginal.

Começou a nascer à consciência de um palhaço periférico que não

conseguia adentrar nas relações sociais de pessoas que sonhavam em

pertencer às classes hegemônicas e tinham apreço pelo prescrito socialmente,

num contexto de embotamento e alienação social pautados no consumo e na

auto realização, através do isolamento dos sujeitos, numa experiência de

distorção explicita das práticas coletivas. Neste desalento, ao frequentar vilas e

favelas para me divertir e encontrar amigos encontrei o primeiro palhaço o qual

me influenciou a atuar em praças e bairros da cidade e me instigou a estudar a

bufonaria. Anderson Dias (in memorian). Realizei assim, minhas primeiras

intervenções na rua, minhas primeiras gags, por volta de 1997, tudo ainda de

uma forma muito confusa, num corpo adolescente que operava mais pela

intuição do que pela noção do que estava em jogo, numa conquista diária,

diante da necessidade de ser direto e de atrair o público e das próprias

barreiras que a imaturidade e a ansiedade de ser o foco dos olhos do público

ensejam. Neste sentido houve o trabalho de desacelerar o tempo do corpo,

sem deixar contudo que um vazio despropositado se estabelecesse,

oferecerendo propósitos claros e sobretudo tendo uma atenção difusa que

permitisse ao atuante se aproveitar de reações e elementos trazidos pelos

espectadores.

Figura 24: Thiago e Anderson Dias atuando em Escola pública pela Companhia de

Circense de Teatro e Bonecos,São Luis do Maranhão.

Fonte: Credito Sandra Cordeiro, Companhia de Circense de Teatro e Bonecos, 1999.

Page 114: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

114

Nestas vivências comecei a observar outras relações com o público,

distante das “festinhas infantis”. Alcançar o distanciamento, tanto durante a

cena, para buscar enxergar além e oferecer algo inusitado ao público, quanto

para reconhecer o valor e o entendimento dado a presença do palhaço que se

constitui num exercício de esvaziamento de expectativas, de dilatação e

apuração do olhar e da escuta do público, de percepção do modo como estão

acompanhando de fato a trajetória das ações, se tem há um acumulo prévio

para compreender como o jogo se dá, se estão de fato disponíveis ou se estão

presentes como espectadores por outros motivos que não compartilhar com a

cena oferecida. Este distanciamento permitiu-me relativizar o olhar a partir da

busca de outros ângulos de observação. Assim pude perceber que uma

adesão intensa permite que as trocas sejam intensas e verdadeiras e que haja

interlocução. Descobri que o palhaço não tinha necessariamente que animar o

público, mas antes se envolver e perceber como a reação do público

influenciaria sua próxima ação de palhaço. Um jogo provocativo de ambos os

lados, uma relação dialógica na qual a cena se constrói nesta interação. Nestas

primeiras vivências, nascem também os primeiros questionamentos sobre a

diversidade de palhaços possíveis.

Não há uma única maneira de fazer palhaço, pois são diversos

palhaços, todos de alguma forma imersos em crenças e valores culturais

distintos. Mirei assim o palhaço como possível agente libertador do ato

expressivo de um sujeito. Neste trabalho de palhaço descobri o potencial em

libertar a si mesmo e a outros em comunhão (FREIRE, 1996). Descobri que o

palhaço é capaz de permitir uma liberação de expressões e modos de ser

deslocados dos habituais, dos prescritos socialmente, pois as pessoas têm a

sua própria forma de protagonizar e contestar valores.

Estive com alguns mestres, participei de cursos, observei amigos, assisti

filmes, citar todas as experiências seria descabido, lembrar dos filmes e amigos

com quem convivi nem saberia por onde começar. Coloco então, em destaque,

algumas experiências marcantes, que contribuíram com a impressão deste

trabalho de atuação cômica que realizo hoje.

Page 115: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

115

Num panorama rápido, por toda essa trajetória, poderia dizer que

comecei como ator e palhaço em 2000, atuando como brincante e ativista

cultural. Fui facilitador do Laboratório Brasil Bufão em 2002 e 2003, participei

em 2004 do elenco do espetáculo “Intervenções Quase Espetaculares” no

Teatro Terceira Margem e também colaborei na criação dos projetos “Roda de

Palhaços”, “Roda Mundo” e “Agenda Terceira Margem”; criei e atuei na

montagem de “O nascimento de Pindaíba ou o Palhaço Pindaíba vem, vem,

vem...”.

Em 2007, pelo intercâmbio Línea Transversale (rede de teatrantes de

diversos países com sede na Itália), Projeto Roda Mundo, apresentei com o

espetáculo “Manual de sobrevivência na grande cidade”, de minha autoria e

atuação nos Festivais Internacionais Marsciano (Úmbria/Itália), L‟aquila

(Abruzzo/Italia), XV Sessão do Teatro Eurasiano (Régio Calábria/Itália), no

Teatraus Mithe (Berlim/Alemanha), no 16º Festival de Samba

(Coburg/Alemanha), no Summer Festival (Ilha de Malta).

Estive com artistas e mestres nacionais e estrangeiros como: Richard

Riguetti (Off-Sina/RJ), Licko Turle (Instituto Tá na Rua/RJ), Norberto Presta

(Itália), Márcio Libar (Mundo ao Contrário/RJ), Adelvane Néia

(Humatriz/Campinas), Zé Regino (Celeiro das Antas/DF), Tortel Poltrona (Circ

Cric/Espanha), Eugênio Barba (Odin Teatret/Dinamarca), Julia Varley (Odin

Teatret/Dinamarca), Claudio Lacamera (Teatro Proskenion/Itália), Angel Viana

(Universidade Angel Vianna de Dança/RJ), Paco Pacolmo e Toni Pocotauto

(Pacolmo Teatro/Espanha), Alexander Del Peruggia dentre outros.

Fui articulador da Rede de Teatro de Rua de Minas Gerais – onde atuei

como interlocutor entre essa e a Funarte/MG, na realização do Projeto Funarte

em Cena, Teatro de Rua/2009. De 2008 a 2009 participei na criação, atuação e

produção do espetáculo “Família Cabeça de Vento em “Cadê o Zezim da

Pipoca” que circulou pelo Programa Casa do Brincar e outras localidades, com

mais de 50 apresentações.

Em 2010 fiz a mobilização da expedição Paraopeba e participei da

Caravana Tuxaua do Espinhaço até a Foz do Rio São Francisco com Rodas de

Teatro de Rua, estive nos dois primeiros Encontros Internacionais de Palhaços

Page 116: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

116

de Mariana. Em 2011 estive no Festival Circo Em Cena, em Córdoba

Argentina, com Espetáculo Manual de Sobrevivência e Oficina de Jogos de

Palhaço. Em 2012 ingressei na Fundação Municipal de Cultura de Belo

Horizonte, no Depto de Centros Culturais como Coordenador e estive como

palhaço em mobilizações dos Centros Culturais e no Programa Brincando na

Vila. Sai em 2014 e ingressei no grupo Circo Miudinho onde atualmente

participo do espetáculo “Circo da Roça” que já está em seu terceiro ano de

circulação e pelo segundo ano no Projeto Circo do Espinhaço com a Cia

Picadeiro Ambulante de Pedro Leopoldo/MG.

Sou colaborador do Coletivo de Palhaços – que há mais de 7 anos

promove em Belo Horizonte a Semana Interplanetária de Palhaços e o Projeto

Quaquaraquaqua de ocupação de praças; também sou colaborador, desde

2015 do Núcleo Leca de Estudos da Palhaçaria da Escola de Belas Artes da

UFMG.

A partir das primeiras intervenções em festas e na rua, em 1998, as

primeiras observações auto-críticas também foram sendo construídas, pois

hoje percebo, que assumia no início um lugar seguro, como palhaço e me

apropriava de mensagem clichê unívoca, repetitiva.

O altruísmo e a pretensa utilidade pública de uma mensagem temática

podiam levar a minha presença às escolas e festas, provocando um efeito de

doutrinação estéril na cabeça das crianças. Como eu não sabia fazer muita

coisa e já falava com certa eloquência, eu falava, falava, falava, até me

chutarem. As crianças são assim, tem uma escuta inicial para verificar do que

se trata, depois, não se sentindo atraídas, ou abandonam ou assumem outro

jogo justaposto, infernizar o palhaço.

Em seguida estive com Sandra Cordeiro, de São Luiz do Maranhão. Eu

a conheci quando realizava um estágio no Giramundo com Álvaro Apocalipse

em 1999. Sandra me convidou para ensaiar um roteiro, eu aceitei,

ensaiávamos no teatro de arena da faculdade de Biblioteconomia da UFMG em

2000, um texto non sense, absurdo. Sandra já era naquela época uma palhaça

experiente e me conduziu de uma forma pedagógica, genuína e cuidadosa.

Page 117: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

117

Um momento que me marcou profundamente, foi quando algumas

semanas depois, ela me chamou para executarmos nossa experiência no bar

do FIT (Festival Internacional de Teatro), mas o modo como ela convidou, me

dando oportunidade de recusar, permitiu que eu negasse fazer, devido a

novidade que a coisa toda era para mim. Mas, depois quando a vi sozinha,

atuando e intervindo, bateu aquele arrependimento, nunca mais teria aquela

oportunidade, outras viriam, mas não aquela. É como quando uma pessoa

entediada sai de casa se diverte e constata que foi melhor, no meu caso era o

contrário, preferi a segurança, não assumi o protagonismo e perdi a

oportunidade.

Esta vivência inaugurou uma nova fase, um pouquinho mais cuidadosa

na minha compreensão de atuação, com uma pessoa como Sandra ao meu

lado. Eu não poderia sair fazendo qualquer coisa, mas ao mesmo tempo

aquela era a melhor performance, a mais trabalhada, da qual eu tinha

participado até o momento. De qualquer forma, depois disso não conseguimos

levar a cabo o tal roteiro como produção, mesmo depois quando fui em

residência artística por duas vezes a São Luiz do Maranhão, em 2000 e 2001.

Em São Luiz me integrei ao agrupamento de Sandra, Cia Circense de

Teatro e Bonecos, no Beco dos Catraeiros, Cidade Velha, com parceiros e

mestres incríveis, Ire Junior, Gilson Cesar, Claudenio, Raquel, Indinho, enfim,

um convívio intenso com diversos artistas que faziam a cena da cidade velha

naquela época. Estive com Sandra em experiências marcantes, afinal era a

primeira vez que saía de casa para tão longe, como em algumas

apresentações de um espetáculo que tinha circulado pelas escolas. Também

animei uma festa, a que se diga, com uma dor de barriga e febre tremendas.

Estive também em festas populares como visitante, no Baile de Natal do Pela

Porco, no Centro Grande de Axixá, na Festa do Divino em Alcântara, na Casa

de Farinha Quilombola, também em Alcântara, em Itamatatiua.

De alguma forma estar em São Luiz na Cia coroava uma etapa de

ampliação do horizonte, de estabelecimento de perspectivas e, sobretudo de

imersão na ética do protagonismo da cultura popular maranhense. Qual seja,

atuam como é possível, mas não deixam de fazê-lo, sobrevivem, sobretudo,

Page 118: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

118

com os folguedos, para os folguedos, pelos folguedos. Ali, de alguma forma,

comecei a compreender melhor o papel dos mestres, não apenas como hábeis

e didáticos, mas, como versáteis, capazes de realizar funções ordinárias pela

sobrevivência sem perder a motivação do folguedo.

Em retorno a Belo Horizonte, trouxe o nome de Palhaço Nuninuni ou

Horácio Epitácio de Pinto Paula Nunes. Integrei-me com outros camaradas e

exercitamos um trabalho em quinteto que chamamos Circolorê, Vicente Junior,

Gibran Muller, Vinicius Carvalho, e Thiago Chapéu, na ordem Palhaços Siribila,

Chouriço, Feitiço e Cabeleira, nessa experiência eu já exercício uma rotina de

disciplina corporal, porém, ainda, muito descomprometido.

Realizamos algumas ações, que geraram inclusive imagens, referencias

mais sólidas de publicação, de produção artística, algo como uma iniciação ao

pensamento da “mídia do palhaço”. Juntos assumimos um contrato de

mobilização social em vilas de Belo Horizonte pelo Programa Casa do Brincar

da Prefeitura em 2001 e 2002, nos territórios do BH Cidadania e Vila Viva,

programas de qualidade de vida e melhoramento urbano de vilas e favelas da

cidade, onde atendiam-se crianças de 0 a 07 anos. Circulamos com o cortejo

Borboleta da Favela, com bonecos e canções autorais, por mais de 20

unidades em vilas e favelas da cidade.

Outro mestre marcante foi Jacó Nascimento, do Teatro Olho da Rua,

sem deixar de reconhecer obviamente a influência de sua companheira de

trabalho e vida, Carlandreia Ribeiro, uma palhaça que também me mostrou a

luta pela conquista do espaço feminino na atuação cômica, entretanto, de fato,

convivi mais com Jacó. Com ele, eu participei dos primeiros contratos em

eventos empresariais em 2003. Explorávamos técnicas de pantomima e

manipulação de bonecos, noções das quais me apropriei e se tornaram melhor

compreendidas por mim, de mímica corporal dramática, equilíbrio precário,

intenção, triangulação, transferência de peso.

Sua expressão pessoal era contaminada pelo jogo, as interferências

pessoais hiperbólicas e grotescas me introduziam e encerravam as sessões

tão esperadas com o mestre. Nos ensaios dirigidos pude ter alguém me

Page 119: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

119

orientando exclusivamente, que me corrigisse, que olhasse para meus

movimentos (Sandra, ao revés, me dirigia em cena), focado no meu corpo.

Mesmo que não tenha conseguido me inserir, de fato, na Cia, uma

nostalgia profunda me preenche quando me recordo daquele tempo. Jacó

guardava algo do cinema mudo, com pantomimas em silêncio, com narração

em off, para facilitar o entendimento (mas isso era apenas nas ações

comerciais, para contemplar o cliente...) com suas roupas pretas e brancas e

sobretudo, com um tempo-ritmo impecável...ali comecei a ter noção do corpo,

de como o tempo-ritmo influencia as nuances e a atração do espectador pela

atuação cômica.

Se Jacó não atuava como palhaço o tempo todo, pois tínhamos outros

trabalhos, nos quais nos era exigida a criação de personagens e a criação e

manipulação de bonecos, ele sempre nos transferia essa referência, de brincar

e exercitar continuamente o tempo cômico.

Em seguida, em 2004, estive com Cristiano Pena e Cicero Silva, onde

montamos o espetáculo Intervenções quase espetaculares que me

proporcionaram experiências profissionais do palhaço que eu queria ser, que

eu entendia como minha marca, ali surgiu o palhaço Pindaíba, que exerço até

hoje.

Me ajudaram a ver e a experimentar como era possível, de forma

simples, conduzir a cena por minha conta. Isso difere do que fazia com a

direção do Jacó, pois Cristiano e Cicero potencializaram a minha capacidade

de conduzir, isso foi uma etapa de mergulho no meu universo de palhaço.

Não me esqueço de uma mala com uma meia como rabo, que o

Cristiano me custou a fazer ver que era um cachorro, um tipo de bloqueio que

eu tive que assumir ao não conseguir brincar com a mala de modo verossímil,

como se fosse um cachorro. Aquilo era uma lição cognitiva que me introduzia a

ativação da imaginação na atuação cênica, me conduzia ao ponto de mutação

da mimese corporal28.

28

Mimeses Corpórea é um termo utilizado pelo Lume Teatro de Campinas para indicar um método de buscar referências e matrizes corporais em imitações pré expressivas de pessoas, objetos,

Page 120: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

120

Outras lições me foram introduzidas por Cristiano com as quais acionava

a construção da cena de atuação cômica, como a formação da roda, de

conseguir manter um equilíbrio e uma composição em roda, para atender todo

público, um olhar de 360 graus a cada triangulação29, a capacidade de

dilatação do corpo e de atração pelo olhar, a cada ação corporal.

Uma outra marca desse período foi criado o espetáculo, Manual de

Sobrevivência na Grande Cidade, em 2006, de minha autoria. Este espetáculo

circulou pela cidade numa estrutura de cena que me exigia formar a arena de

espectadores em espaços alternativos diversos, de favelas a condomínios,

escolas, praças, parques e que inclusive esteve no projeto Roda Mundo (2007),

em circulação pela Europa.

Figura 25: Projeto Roda Mundo, Espetáculo Manual de Sobrevivência na grande

cidade.

Fonte: Theatral Mhite, Berlim, Créditos Uv, 2007.

Figura 26: Projeto Roda Mundo – Apresentação no Festival de Samba,

Coburgh/Alemanha.

imagens (FERRACINI, 2003).

29

A triangulação é a comunicação visual ator-objeto-público e também diz respeito ao encadeamento das ações físicas, onde o palhaço 1 - demonstra a intenção, 2 – reage corporalmente e 3 – surpreende o público com uma inversão ou exageração.

Page 121: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

121

Fonte: Créditos Nivea Karan, 2007.

Dentre várias oficinas e cursos que participei cito também as oficinas

realizadas por Marcio Libar, em 2008, a oficina do Messie Loyal, a qual ele

atualmente transformou em montagem teatral, a partir das experiências

acumuladas nestas oficinas. Na primeira oficina ele é o dono do circo e nós

somos paspalhos disputando uma vaga. Libar constrói esta dramaturgia

enquanto conduz jogos de sensibilização e imersão. Foi muito importante para

mim, num momento crucial de minha vida, quando me separei, tendo já duas

filhas. Libar me apelidou de homem de Java, e depois de bebê de Java, pois eu

não parava de chorar. Vesti-me com uma roupa de homem das cavernas com

um cesto de flor e recitei As Meninas de Cecília Meireles.

A segunda experiência com Libar foi no Ateliê Riso (In) formação30, em

2010, no Encontro internacional de Mariana/MG, onde eu novamente me

desdobrei por dentro e por fora, numa figura sombria, um mendigo mambembe,

30

https://marciolibar.wordpress.com/atelie-do-riso/ ; http://tribunadapalhacaria.blogspot.com.br/2010/04/aventuras-e-trapalhadas-de-uma-trupe.html

Page 122: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

122

lunático, que abandona tudo pelo teatro e no final se torna apenas um mendigo

com saudade do teatro e da família, carregado de nostalgia. Nessa

experiência, exercitei uma técnica de atuação com a “quarta parede”31 mais

acentuada.

Figura 27: Ateliê Riso In Formação – Personagem Xexeu, o feio, Encontro

Internacional de Palhaços, Marina/MG.

Fonte: créditos Naty Torres, Circovolante.

Figura 28: Cartaz do 2º Encontro de Palhaços de Mariana/MG, detalhe a esquerda de

caricatura do personagem desenvolvido no Ateliê Riso In Formação.

31

"Então, caso façais uma composição, ou caso representeis, pensai no espectador apenas como se este não existisse. Imaginai, na borda do teatro, uma enorme parede que vos separe da plateia; representai como se a cortina não se levantasse" (DIDEROT, 1772 apud BORIE, 2004)

Page 123: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

123

Fonte: créditos Circovolante.

Na primeira apresentação eu não consegui seguir a orientação e

busquei o público; foi duro perceber e assumir minha inflexão, mas felizmente

na segunda, eu consegui fazer. Não consegui seguir com aquela figura, mas

me ensinou muito sobre grotesco e sobre transpor coisas da vida para a arte.

Percebi nestas vivências com Libar, como ele apreende e organiza seu

conhecimento de diversas fontes, para oferecer uma ideia do que seja a nobre

arte do palhaço ou o mundo ao contrário do palhaço. Realmente uma conquista

genuína, de outra forma eu o vejo também como um mestre que consegue

transformar sua palhaçaria e gerar campo de atuação em diversos tipos de

ambiente, para além da cena, num jogo que invade faculdades, hospitais,

programas de TV, empresas, entre outros.

Figura 29: Intervenção de rua Coletivo de Palhaços – 2ª Semana Interplanetária de

Palhaços, Belo Horizonte.

Page 124: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

124

Fonte: Créditos Coletivo de Palhaços, 2007.

4.2 Retratos da atuação em favelas de Belo Horizonte

Algumas passagens marcantes traduzem essa trajetória, numa breve

mirada sobre a experiência como Palhaço nas vilas e favelas de Belo

Horizonte.

Nas intervenções em vilas e favelas a precariedade aparente das

moradias (não se iluda, a arquitetura da favela é um fenômeno concreto e

estético), revela a dureza da paisagem, da construção em desconstrução e da

umidade dos esgotamentos. O contraste é tanto pela visualidade da obra ou

performance em questão, quanto pela acessibilidade da arte, pela viabilização

da recepção e fruição do espectador num complexo arquitetônico aglomerado,

apertado, improvisado e “miúdo”.

Subíamos morros de vilas e favelas, andando ruas estreitas e vielas,

inicialmente transmitindo a intenção de um cortejo de músicos, que andam

pelos lugares tocando, mas que de repente param, começam a conversar entre

si e com quem os assiste, buscando reagir sempre a algum objeto ou ideia

expressa.

Page 125: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

125

Vamos subindo a rua e observando quem está presente, alguns homens

na porta do bar e/ou diante do balcão; crianças brincando nas escadas de

concreto com degraus de tamanhos diversos, adolescentes um pouco mais pra

cima na esquina, o “avião da boca” numa moto, do outro lado da rua um salão

de beleza, repleto de mulheres de idades variadas, cuidando das unhas e

experimentando penteados e tratamentos. Duas senhoras conversam em pé no

portão; um senhor sobe com duas sacolas pesadas.

Desinteressadamente, ou como se não soubesse que estamos como

palhaços, fazemos perguntas aos transeuntes, até que todos tenham nos visto.

Neste momento, cumprimentamos a todos ao mesmo tempo e informamos que

vamos inaugurar “teatros públicos” na comunidade e/ou estamos a procura de

uma pessoa (geralmente um idoso), e/ou estamos a procura de um novo

membro pra trupe e assim instala-se um primeiro vinculo.

Após constatarem que os palhaços estão presentes, continuamos o

cortejo ou fazemos números, mas antes disso escolhemos um lugar para

inaugurar o teatro onde nos preparamos e nos adaptamos ao local escolhido

com as malas, instrumentos e objetos.

Naquela época me sentia mais inseguro pelo desconhecimento das

pessoas da vila, suas rotinas e hábitos. Assim, desenvolvemos e

aperfeiçoamos a capacidade para perceber a condição em que estaríamos

atuando, observar se alguma coisa estranha, um tipo de tensão está em curso,

se tem pessoas muito alteradas no meio, se os “funcionários da boca”, os

“aviões”, estão tranquilos, enfim, dependendo do nível de tensão é melhor não

fazer nada.

Uma situação que vivenciei, a princípio tensa para os palhaços, foi na

urbanização da Pedreira Padre Lopes, quando houve a morte de um homem

no local um pouco antes de nossa chegada. A princípio ficamos constrangidos,

mas uma senhora falou: “morrer aqui é comum, mas ter palhaços é raro”.

Havia um explicito desejo dessa senhora de presenciar nossa atuação,

assim não resistimos, ou melhor, em resistência a tanta violência, fizemos a

intervenção, junto as crianças e famílias. No final, neste contexto, foi

Page 126: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

126

necessário um diálogo com todos os presentes, no qual constatamos a

sensação de alívio que as intervenções geraram.

Essas experiências fizeram com que apreendêssemos estratégias, tanto

de identificação prévia de pessoas chaves, como de realizarmos uma visita

prévia pelo roteiro de ruas e vielas a ser seguido, o que gera uma certa

segurança por conhecer o lugar e algumas pessoas. Sentir-se parte do lugar,

valorizar as pessoas, faz com que seja possível estimular o público a fazerem

parte da cena, tornando a interação muito mais intensa.

Figura 30: Intervenções Quase Espetaculares, Belo Horizonte, Morro do Papagaio

Fonte: Créditos Agrupamento Terceira Margem 2006.

Figura 31: Circo Miudinho, Diamantina/MG .

Page 127: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

127

Fonte: Acervo Circo Miudinho 2015.

4.3 Meu batizado como afilhado Hotxuá

Fui batizado como afilhado Hotxuá, que representa o mensageiro da

batata e da abóbora na mitologia Krahô. O Hotxuá é aquele que viu as batatas

e abóboras maduras prontas para serem comidas e vieram dançando para

aldeia ensinar ao Hotxuá sua brincadeira.

A iniciação como afilhado Hotxuá é o ápice das afecções e das imersão

na visão kaotica cósmico cômica, onde reconheço o legado das máscaras

sagradas irreverentes na arte da palhaçaria ( AZEVEDO,1985), além de

experimentar e reconhecer teoricamente as transferências européias

medievais, pois trata-se de uma imersão numa cultura viva, que tem o Cômico

Ritual como uma categoria social total, que por sua vez engendra valores em

vários campos da rotina social e cultural da tribo, numa acepção clara e

explicita da cosmogonia Krahô ( ABREU, 2015).

Esta experiência me remete a um lugar de introjeição profunda do

discurso mítico, na medida que a argumentação retórica oferecida pelo Hotxuá

perpassa a cultura de modo profundo e complexo, por não operar dicotomias

epistêmicas de certo e errado ou de objetividade e subjetividade (GALINARI,

2014). Mestre Ismael quando conta sua história confunde-nos na

argumentação em relação ao que vem como sua experiência pessoal e ao que

vem pelo mito do Hotxuá em si. Em qualquer momento ele narrará sua

Page 128: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

128

experiência sem descolá-la do mito, numa expressão clara de não atuação

cênica, mas de imersão profunda no universo mítico. Como ele já está

convencido de ser Hotxuá ele não precisa apelar para uma argumentação

retórica em defesa de sua existência (GALINARI, 2014), pois está totalmente

influenciado pelo mito e já não pode distingui-lo ou separa-lo de sua vivência

social.

Nesse sentido não há uma prova objetiva da existência do Hotxuá, pois

ele contamina a realidade a ponto de sua presença ser inquestionável. O que

parece um paradoxo vai de encontro a uma leitura lógica proposital da

realidade. De fato, não importa para o Hotxuá se sua existência é aceitável e

verossímil, na medida que ele é a tradução de uma conexão não exprimível,

não classificável, entre o kaos e o cósmico, através do cômico. O Hotxuá

ameaça a ordem pública momentaneamente (BACKTHIN, 1996) para em

seguida permitir que a comunidade seja reconduzida às suas práticas

rotineiras. Ameaça aparentemente a ordem social das coisas e em seguida

restabelece as relações afetadas por sua presença caótica.

A experiência de ser batizado nasceu do meu encontro com o senhor

Ismael, quando estive no Festival de Diversidade Cômica, realizado em

Cataguases em 2013, onde pude conhecer Ismael Ahpracti, sua esposa Maria

Rosa e João Lucas, seu filho.

Eles são nativos da Aldeia Manoel Alves da Reserva Krahô, localizada

no Estado do Tocantins no município de Itacajá.

Após uma saída coletiva de palhaças e palhaços no festival, vimos uma

demonstração de seu Ismael na roda que se formou no centro de Cataguases.

Participei ativamente no cortejo ocupando os espaços e abordando

pessoas, brincando pela avenida. Eu e seu Ismael tivemos alguma interação

durante o cortejo em meio a vários artistas e simpatizantes pela avenida, em

cortejo musical, abordando as pessoas na porta das lojas e edifícios, que

terminou na praça onde organizamo-nos em roda, para assistirmos as cenas

que seriam realizadas.

Ismael, elegantemente, entrou na roda formada por palhaços e palhaças

de diversas vertentes, bufões, humanistas e cênicos, no mesmo momento que

Page 129: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

129

um cachorro e realizou umas mimeses tão simples com o cachorro que todos

notaram, ele não estava imitando o cachorro propriamente falando, mas era

como se ele tivesse se transformado num cachorro, sem ser exatamente um

cachorro, o cachorro dele mesmo (DELLBOSQUE, 2008). Abreu (2015) narra

um jogo coletivo que o senhor Ismael propôs em seguida na roda:

Na sequência, a brincadeira se repetiu várias vezes, na

primeira cena improvisada, Ahpracti veio à frente, seguido

de Demian que imitava os movimentos de Ahpracti,

exagerando-os. Ahpracti andou calmamente, colocou uma

das mãos para trás, depois as duas, mudou o ritmo do

caminhar, andou com as pernas levemente dobradas,

subindo e descendo o tronco do corpo, até que olhou para

trás, “cutucou” Demian e lhe mostrou uma palhaça,

chamada Bolonhesa (Roberta Rodrigues) que estava na

plateia. Mostrou, através do seu próprio corpo, as formas

avantajadas do corpo da palhaça, em seguida a chamou

para a brincadeira. Bolonhesa, agora a última da fila os

imitava, exagerando o movimento de Demian um pouco

mais, ambos parodiavam Ahpracti, mas num crescente. O

hotxuá começou a andar leve, na ponta dos pés, devagar, à

espreita, como quando estamos nos preparando para

assustar alguém, até que de repente olhou para trás,

Demian, imediatamente olhou para trás, Bolonhesa também

olhou para trás. Inevitavelmente, Demian abaixou o olhar na

direção da bunda de Bolonhesa, que ao perceber que o seu

“traseiro” estava sendo observado, prontamente levantou

suas saias e, orgulhosa, revelou ao público que ali, havia um

enorme coração pregado em sua anágua, todos riram.

Ahpracti começou então a parodiar um velho, como o vi

fazendo na aldeia, depois sentou no chão e começou a se

arrastar, todos riram porque viram que Ahpracti havia feito

tal movimento de forma maliciosa para colocar Bolonhesa

em apuros. Foi engraçadíssimo ver a palhaça com

dificuldade, se desequilibrando, caindo de bunda no chão,

depois se levantando desastrosamente, causando mais

Page 130: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

130

risos. Continuando a brincadeira, Ahprachti olhou para o

palhaço Jerubeba na plateia, comunicou-se com ele com

seu corpo que dizia que Bolonhesa era sua mulher, que ela

era grande, linda, “carnuda”, por fim, chamou Bolonhesa e a

abraçou, Demian também partiu por abraçar a palhaça e

assim a improvisação terminou, com os três andando juntos,

abraçados e apertando e fazendo “cosquinhas” uns nos

outros. (ABREU, 2015, p129)

No dia seguinte assistimos a uma palestra com seu Ismael, na qual ele,

seu filho João Lucas e a esposa Dona Maria Rosa falaram de sua cultura e

suas experiências de contato, Senhor Ismael narrou um pouco da trajetória de

viagem por lugares do Brasil, junto a sua mulher Maria Rosa e João Lucas, em

que vinham acompanhando a exibição do filme Hotxuá, dirigido por Letícia

Sabatela, falaram também das conquistas da tribo e de como estavam felizes

pelo reconhecimento do Hotxuá, o palhaço sagrado, do qual seu Ismael era o

mais velho guardião iniciado de sua aldeia.

Ao final da exibição do vídeo e deste debate, fiquei até o final e pude

cumprimentar a família Krahô:Senhor Ismael me convidou a ser um ipantuw-

afilhado Krahô, disse que era um convite pessoal, havia convidado também

Ana Carolina a pesquisadora palhaça colaboradora responsável pelo evento

local,

Nesta ocasião também estive na oficina de bufões com Andres Dell

Bosque na qual o Mestre Bufo passou uma serie de referências e realizou

práticas corporais, dentre elas as danças circulares com canto Sufi, a banda de

bufões e a caracterização de alguns jogos de entrada e escárnio.

Figura 32: Oficina de Bufão Ritual com Andres Del Bosque, Cataguases/MG.

Page 131: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

131

Fonte: Créditos Ana C. Abreu 2013.

O Bufão ritual traz esse personagem tipo como reminiscente de uma

irreverência cruel, escarnecedora, propondo expressões grotescas e ao mesmo

tempo de um cunho crítico político comportamental. O debate final também foi

marcante, com o instrutor de palhaços Rodrigo Robleno, Andres del Bosque o

bufão ritual e o mestre Hotxuá, Ismael.

Percebi a riqueza daquele encontro, falamos, em linhas gerais desse

lugar de preciosidade, de legado cultural que o palhaço como mito e

personagem havia deixado nas culturas, da ética do palhaço como técnica de

ofício autônoma das intenções e usos propostos pelos protagonistas.

Este festival significou para mim o fortalecimento e reconhecimento do

valor da tradição e da cultura do palhaço. Os festivais de palhaço são um lugar

importantíssimo onde são oferecidos oficinas e espetáculos, propiciando uma

imersão na técnica, nos valores e nos casos contados de soluções e situações

Page 132: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

132

inusitadas. Como não existem muitas escolas de palhaços, estes encontros

são essenciais para trocas e aprimoramentos.

Assim eu e Ana Carolina aguardamos a confirmação do Senhor Ismael,

para o Ritual da Batata, Perti ou Yótyõpi, sob tradução literal, tronco ou tora da

batata-doce, no qual seriamos batizados.

Parti para Palmas 28 de abril. Dormi uma noite num hotel em Palmas,

capital do Tocantins, visitei a Praça dos Poderes, constatei a opulência da

capital, com rodovias e praças enormes, uma zona planejada e preparada para

a capital do futuro, mantendo no entorno, comunidades faveladas e

embargadas.

No dia seguinte, encontrei com Ana Carolina e juntos compramos

algumas ferramentas e cortes de tecido para levar como presentes e em

seguida tomar o ônibus,onde já conheci seu Getúlio, outro mestre da Aldeia

Krahô Manoel Alves.

Chegamos na cidade de Itacajá em 30 de abril de 2014, encontramos

Senhor Ismael que nos recebeu amavelmente, compramos mantimentos e

fomos para a Kri - aldeia. Lá fomos apresentados a sua extensa família, que

agora se tornaria nossa também, pois Ahpracti(Ismael) e Amxôkwyj (Maria

Rosa) passavam a ser nossos inxu - pai e inxe – mãe, nos apresentaram suas

filhas adultas, adolescentes e netas; haviam outros filhos que moram em outras

aldeias como João Lucas que mora na aldeia de Mangueiras. Não saberia dizer

ao certo quantos filhos, no total, o casal possui.

No outro dia, pela manhã, apenas de calção, apresentei algumas

imagens corporais para as crianças que se divertiam com meu trejeito. Ao

mesmo tempo a aldeia estava às voltas com a corrida de tora que seria

realizada na ocasião do Festival da Batata.

Fomos apresentados aos mais velhos da tribo e ao pahí chefe indígena,

aos prefeitos (assim os definem) dos dois partidos, wacmejê - verão, partido de

Pit, o Sol, chamado de Papam (nosso Deus) e catàmjê inverno, partido da lua,

eles o chamam de “o” Lua (masculino) e ainda de Pidruré, Pidru, Pidluré e

Pedro, porque os Krahôs também o identificam com o Pedro Malasartes e São

Pedro, com base nas histórias que eles ouviram dos sertanejos. O sistema de

Page 133: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

133

partidos é o modo como socialmente organizam-se, sendo que eu me tornaria

membro do Inverno. Pude participar com a família de brincadeiras e

palhaçadas que senhor Ismael fazia no ambiente da família e na aldeia, o que

demonstrava sua influência sobre toda tribo.

Figura 33: “[...]apenas de calção, apresentei algumas imagens corporais para as

crianças que se divertiam com meu trejeito[...]”.

Fonte: Créditos Ana C.Abreu 2014.

A aldeia temuma kà - praça central circular de areia, sem energia

elétrica, pois tem acesso à energia elétrica apenas na escola por

propositalmente não colocarem nas casas. Temos, portanto, a praça como

referência central e a krinkapé - rua larga de areia no entorno que dá o

contorno a aldeia; atrás das casas algumas plantações e muito lixo.

Fui levado por eles ao local onde haviam cortado um pé de Jequitibá

pois dez dias antes já estavam acontecendo os preparativos para a festa, como

o corte e a preparação das toras para corrida.Cortaram a machado, arrancaram

a casca e deixaram apenas uma tora gigante, com cavidades laterais, com

mais de 120 kilos.

Page 134: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

134

Nas conversas me contaram casos de abundância e fertilidade, falaram

dos planos da Associação, falaram das repercussões do filme de Letícia

Sabatela, que de acordo com eles não foi editado no local, como teria sido

combinado. Perguntaram-me de um modo bem solene, nesse mesmo local, em

uma das nossas incursões masculinas, sobre a origem do plástico e se era

possível transformá-lo em missanga. Eu buscava me integrar a eles de forma

espontânea, já que são muito brincalhões e estão sempre buscando motivos de

diversão.

Ismael me deu três nomes para escolher e escolhi Iôuwt, ocasião na

qual também tomei conhecimento que meu ketj - padrinho seria Paulo, seu

genro. Cada nome segue uma linhagem e lhe confere características comuns,

com uma técnica especifica para cada personagem sagrado.

Figura 34: Batizado com participação de toda aldeia, Aldeia Manoel Alves, Itacaja,

Tocantins.

Fonte: Créditos Ana C. Abreu 2014

Como ações preparatórias do Ritual da Batata os jovens também

passaram de casa em casa “roubando” comida numa brincadeira tradicional,

que consiste em reunir comida das casas para dividi-las entre eles, íamos

cantando pela rua e roubávamos as cozinhas, claro que com consentimento

das famílias, que sempre deixavam algo, principalmente o prato típico

paparuto, de mandioca e carne embrulhada em folha de bananeira, mas

também corriam atrás dos ladrões e até batiam.

Page 135: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

135

No dia seguinte tivemos que levar a tora; mais de cem jovens correndo

descalços pela trilha e em seguida a corrida de fato, na qual praticaram um

revezamento na rua do entorno da aldeia, que se tornou uma arena de corrida,

passando a tora entre cada corredor. Eu mesmo segurei a tora uma única vez

na trilha, pois era bastante pesada; depois as mulheres fizeram também uma

corrida com bastões de madeira, com uma grande torcida animada assistindo

as corridas por todo o circuito, na porta das casas e choupanas.

Participamos também das madrugadas de cânticos que duravam por

toda a noite, com um padré- cantador convidado, são grandes conhecedores

do ritual Yótyõpi, tendo as mulheres como coro, numa formação em meia lua

na frente dele. Cantavam por toda noite suas canções ancestrais.

No dia do batizado fui pintado pela inxemãe com urucum e jenipapo; o

corpo todo coberto de urucum, menos a cabeça, com traços horizontais de

jenipapo, característica do partido de inverno, meu partido. Fui preparado por

um amigo, jovem Hotxuá de outra aldeia, Mangueiras, com o mesmo nome

com o qual seria batizado, Iowt, com uma hókheikhiek, diadema que tem na

parte correspondente à testa, duas pontas em forma de V e o iõkrétxe no

pescoço, cujo pendente, também de palha, cai pelo dorso.

Na hora do batizado eu e Ana Carolina fomos agraciados por todos com

presentes como bolsas e colares; meu ketj padrinho Paulo me deu um

chocalho, ouvimos o Pahí, chefe da aldeia sobre a relação que se contraia

como afilhado no batizado, da liberdade de visitar a tribo, de haver uma troca

mutua entre padrinhos e afilhados, uma forma de fortalecer a tribo e levar algo

da tribo para o mundo. Em seguida Senhor Ismael contou um pouco sobre a

linhagem Hotxuá e assim iniciaram o preparativo do batizado, onde a Hotxuá

Rosinha cortou meus cabelos.

Fui levado, nas costas pela pahí Raquel, até o rio, onde me banharam e

assim fui batizado, como afilhado Hoxtuá, uma demonstração de reciprocidade

da tribo com o afilhado, uma forma de acolhimento do estrangeiro.

Page 136: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

136

Figura 35: Hotxuá Rosinha, que cortou meu cabelo

Fonte: Créditos Ana C. Abreu 2014.

4.4 O Ritual da Batata

No dia do ritual da Batata, 6 de maio, já tínhamos sido batizados, me

preparei com as vestimentas de palha. Senhor Ismael introduziu o ritual com

um cortejo nas casas dos prefeitos dos partidos, para homenagear os mortos.

Ao mesmo tempo que o Hotxuá traz mensagem de alegria e cultura, fertilidade

e abundância, também demonstra uma profunda reverência aos ancestrais.

No dia do Ritual da Batata o prefeito do município de Itacajá32 felizmente,

entregou um boi para dividir entre as famílias, o dono do matadouro o matou e

nos trouxe imediatamente para cortarmos e dividirmos para os dois partidos,

para o banquete do festival. Os partidos “verão” e “inverno” tinham modos

próprios de dividir a carne, que era picada e separada pelos homens mais

velhos.

32

A reserva Krahô é tutelada pela Prefeitura de Itacajá, que recebe e gere os recursos recebidos devido a inexistência de uma pessoa jurídica da Reserva Krahô, previsto na regulamentação para a transferência de recursos.

Page 137: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

137

Enquanto as mulheres e jovens esperavam, o partido adversário roubou

a cabeça do meu partido e nós acabamos deixando. Ajudamos nosso inxu

Senhor Ismael a recolher os pedaços distribuídos ou caídos perto do local onde

o boi era picado. Carne abundante distribuída para as famílias, dando mais

alegria ao festival.

No dia seguinte, finalmente realizamos as encenações, mas antes nos

preparamos para a cena. Essa preparação aconteceu atrás da casa do Senhor

Ismael.

Ele apresentou uma maquiagem convencional, que eu a princípio

estranhei, falou em ensaio, eu estranhei mais ainda, pois percebi a influência

dos festivais pelos quais ele havia passado. Conversamos sobre isso e falei

que isso não era totalmente necessário, pois o ritual já era uma mistura de

ensaio e apresentação e que, afinal, nosso compromisso era para toda a vida.

Figura 36: Thiago no Festival da Batata Hotxuá, terceiro em pé, da direita para a

esquerda.

Fonte:Créditos Ana C. Abreu 2014.

Page 138: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

138

Saímos em uma horda, várias gerações de Hotxuás, paramentados para

o meio da praça, acompanhando o mestre. Abreu (2015, p.82) descreve essa

minha vivência, como afilhado, no encerramento do ritual, em sua dissertação:

Nesta mesma entrada, na segunda volta que deram ao redor

da fogueira, Ahpracti no ritmo do maracá começou a girar para

um lado e para o outro até cair no chão de pernas para o ar,

seguidos por todos os hotxuás, num efeito dominó. A trupe

tinha, então, um efeito especial. Thiago (cupen33), que também

participava deste momento, havia levado bexigas de soprar

para a aldeia. No intervalo entre a primeira e a segunda

entrada, Ahpracti pediu a que ele enchesse uma bola para

cada hotxuá, e que cada um a escondesse em seu corpo,

assim fizeram. Contudo, segundo Thiago, Ahpracti não disse

mais nada, apenas ele sabia o porquê das bolas naquele

momento, ele tinha se programado para cair e sabia que todos

o imitariam. Assim, naquele efeito dominó, a cada queda era

um estouro de bola, e a cada estouro uma enxurrada de risos.

Thiago acabou ficando por último, alguns hotxuás já estavam

inclusive de pé, quando ele caiu e se ouviu o barulho do

estouro, todos reagiram juntos, sem combinar, caindo no chão

novamente. Os que ainda estavam no chão levantaram as

pernas na sequência, Ahpracti se recompôs e jogou um

papelão por cima de Thiago, que permaneceu no chão, cada

hotxuá e hotxuaré34 se levantou e fez o mesmo, jogando sobre

ele tudo o que tinha nas mãos, garrafas pet, sacola, papelão e,

por fim, se despediram. Todos riram e Thiago, aos poucos, se

levantou em meio ao monte de coisas, pegou tudo que havia

em cima dele e saiu imitando o andar de Ahprachti, o público

se divertiu muito. (Abreu,2015 p.82)

33

Cupen é o termo que define não indígena na cultura Krahô 34

Hotxuaré é o aprendiz de Hotxuá.

Page 139: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

139

Abreu (2015) assinala que o riso nos afasta ou aproxima da natureza,

quando confirmamos ou negamos valores sociais. Assinala ainda uma

diferença entre o papel do riso nos mitos, nas culturas tradicionais e

contemporâneas, pois se na primeira compartilha-se a necessidade de

reificação do mito35, sob pena de perda do horizonte cultural, na sociedade

moderna, contemporânea os diversos mitos convivem e se misturam e não

oferecem o mesmo apelo sagrado para o riso cômico.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa nos levou à reflexões sobre as distintas aplicações do

jogo de palhaços em espaços e contextos vulneráveis, o que ampliou

sobremaneira a compreensão do modo como a indução hegemônica e contra

hegemônica está incutida no jogo de palhaço. Esta compreensão foi sendo

lapidada no decorrer da investigação, desde quando nos propusemos uma

trajetória que se inicia com a leitura histórico arqueológica, em estreita ligação

com a antropologia do palhaço, em um caminho sinuoso em direção a

compreensão das peculiaridades que caracterizam a atuação do palhaço

contemporâneo em zonas de vulnerabilidade.

Essa pesquisa é aberta e pretende estar em constante diálogo com

diversas áreas do conhecimento, com movimentos populares grotescos,

cômicos, ancestrais, esotéricos, com tendências da estética relacional

contemporânea, entre outros, além de estabelecer tensões e agenciamentos

com o campo do lazer. Por esse motivo não cabe a finalização, apenas

algumas considerações.

Percebemos que há uma indução no direcionamento do uso do jogo de

palhaço. A crítica sobre os usos do jogo de palhaços não diz apenas das

inovações do modo do palhaço de falar pelo poder, mas de falar sobre o poder,

estando muitas vezes capturado por instituições ou ideologias que podem ter o

35

Reificação do mito quer dizer tornar concreto algo abstrato, simbolizar através de práticas

rituais. Reviver uma memória mítica através de representações ritualísticas.

Page 140: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

140

papel de enquadrar e coagir o cidadão (KING, 2014).O nomos de poder do

conteúdo hegemônico aponta o lugar que a estética grotesca tomou na

contemporaneidade, menos que uma tática de resistência pelo gesto e mais

por um uso saturado, a “zumbificação dos tolos”, como parte da “estilística do

poder". Estão prontos a manipular e forjar a própria crítica sobre seu poder

soberano, contido na economia política, preso numa relação ambivalente com

o dinheiro, dentro de uma lógica capitalista global (KING, 2014) de usar a

imagem do palhaço como apelo hegemônico universal, como se afirmassem

“se o palhaço está conosco, está tudo bem”.

Mais do que nunca o palhaço se coloca nessa posição ambivalente, que

ora pode ser associado com marcas, objetivos definidos e ora está ligado ao

grotesco e a surpresa. Palhaços podem ser errantes e problemáticos,

temíveis e inocentes, sábios e estúpidos, artistas e dissidentes, curandeiros,

bodes expiatórios e subversivos. Provocam tensões, mesmo inseridos em

programações com objetivos e resultados prescritos, provocando incerteza no

quanto sua imagem irá remeter ao conteúdo hegemônico indicado ao revés da

reciprocidade e a afetação com os espectadores, que se faz presente.

A zona limite do palhaço, como um sujeito que não é nem "aqui nem lá",

mas "entre e entre" (TURNER, 1969, APUD AMOORE eHALL, 2013), conferiu-

lhe um caráter transgressivo e ambivalente. O palhaço é um "humilde e cômico,

disjuntor de regras”, frequentemente considerado "importante e

sagrado"(GROTTANELLI APUD CLEMENTE 2015). O significado do palhaço

ou do tolo para o estudo da resistência residiu tradicionalmente na relação da

cultura e da história com o caos, a inversão e o desgoverno (AMOORE e HALL,

2013).

Ao longo da história este anti-herói precisou inventar soluções para sua

sobrevivência. “O Palhaço vai onde o povo está, de cidade em cidade, de reino

em reino, de vila em vila, estando disponível ao encontro e aprendizado da

cultura de cada grupo que entra em contato. Adere rapidamente aos costumes

locais, ao idioma e aos principais traços folclóricos e culturais para poder

apresentar o espetáculo que, geralmente, denuncia as diferenças e

desigualdades do local visitado (MATRACA e JORGE,2011). Além disso, o

Page 141: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

141

palhaço é um ser tão invisível quanto os cidadãos em situação de rua ou

estigmatizados como profissionais do sexo e usuários de álcool e drogas,

tornando-se uma figura chave para facilitar o exercício da cidadania

(MATRACA e JORGE,2011), pois desperta a confiança recíproca e expande as

formas de abordagem de problemas comuns a zonas de vulnerabilidade

(BRITO et all, 2016).

Clemente (2015) oferece uma tipologia baseada na diversidade de

campos de atuação de palhaços e a desenvolve focada na categoria dos

palhaços sociais e em sua luta por direitos humanos, contudo não aponta a

linha tênue entre o hegemônico e contra hegemônico no jogo de palhaço em

zonas de vulnerabilidade social.

Há autores que vêem no palhaço uma relação funcional e

instrumentalizadora que transforma o que seria uma prática de fruição e por

isso estimula o protagonismo e a autonomia, numa experiência de recepção de

mensagens dirigidas tendo o palhaço como garoto propaganda ou mascote

(PAIVA e SOUSA, 2015; KING, 2014). Esta intenção funcional pode não ser

explicita, pois, a intenção defendida de uma atuação em zonas de

vulnerabilidade social geralmente é de minimização do trauma e suporte

emocional, no entanto a origem e a forma como a atuação do palhaço naquela

localidade foram viabilizadas dirão o que de fato está por trás (KING, 2014) da

sua presença.

A noção de hegemônico e contra hegemônico permite compreender a

prática do palhaço como um sintoma ou sinais das relações e tensionamentos

entre lazer, saúde e poder, que a presença do palhaço suscita. Há um

componente expresso do biopoder (Foucault 1979 apud KING, 2014e

AMOORE e HALL, 2013) nas relações que envolvem palhaços, pois tocam

zonas incertas de desejo (GUATARRI, 1996 apud CLEMENTE, 2015), acionam

o potencial pensante em zonas de conflito. Em ambiente de protesto, o palhaço

ocupa o protagonismo de oposição e luta por objetivos tais como o fim da

impunidade e das zonas de vulnerabilidade,

Santos (2012) traça um panorama da presença do palhaço na sociedade

capitalista e conclui que em alguma medida a necessidade da sobrevivência

Page 142: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

142

faz com que se submetam a conteúdos hegemônicos e programações verbais,

perdendo em certa medida seu potencial subversivo. Mantém sobretudo no seu

ato um resíduo grotesco, o rastro desta resistência, mas perde poder de

provocação, se comparado com a época na qual o ato grotesco era temido e

venerado, em adaptação a necessidade de sobrevivência e a dinâmica do

capitalismo. De acordo com Santos (2012) existem interesses da burguesia,

que enfraquecem o poder político do palhaço de forma complexa e

multidimensional. Santos (2012) reconhece que a arte muitas vezes é um ponto

de resistência diante da indústria cultural e orienta, diante das contradições do

mercado, a luta pelo reconhecimento do público e a aproximação do

espectador para fortalecimento desta luta.

O palhaço e a palhaça em zonas de conflitos e vulnerabilidade social

precisa compreender a origem da iniciativa que viabilizou sua presença ao

local, se é uma compensação compulsória, se é uma campanha pública ou

privada, se são doadores voluntários ou doadores por incentivo fiscal ou por

publicidade e assim diminuir as incertezas quanto a receptividade negativa da

comunidade em questão.

O palhaço ou a palhaça podem ser hegemônicos e contra hegemônicos

a partir da ideologia que os leva a campo, se defendem o sistema ou o

contrapõe. O fato do palhaço trabalhar em zonas vulneráveis não quer dizer

que ele é sempre contra hegemônico, podemos ver ao longo dessa pesquisa

que há palhaços humanitários financiados ou não , que visam atuar em zonas

de guerra e fronteira para atenuar o sofrimento das pessoas e de cunho sócio

terapêutico, mas ao mesmo tempo existem outros, que visam questionar as

condições desumanas em que as pessoas vivem e as convidam a romperem

tais condições, fazendo-as se sentirem como cidadãos de direito capazes de

ir à luta.

Page 143: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

143

6 REFERÊNCIAS

ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. São Paulo: Lua Nova, 2010. ABREU, Ana Carolina. Hotxuá à luz da etnocenologia: a prática cômica Krahô. Dissertação, 2015, em https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/17916 AMOORE, Louise; HALL, Alexandra The clown at the gates of the camp: Sovereignty, resistance and the figure of the fool. Security Dialogue. Sage Journals. V. 44, n. 2, 2013. ADGER, Neil W. Vulnerability Global Environmental Change.Volume 16, Issue 3, August 2006, Pages 268–281, 2006. ABREU, Martha e SOIHET, Rachel. Cultura popular, um conceito e várias histórias In: Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. ANDRADE, Mário. Macunaíma, Rio de Janeiro,Editora Nova Fronteira, 2a edição 2013. AUGE, Marc. Guerra dos Sonhos. São Paulo: Editora Papirus, 1998. AZEVEDO, Sílvia Maria. Diabo e cultura popular. Trans/Forml/Ação, São Paulo n. 8, p.61 -70, 1985, Revista Saúde coletiva in: http://www.scielo.br/pdf/trans/v8/v8a06.pdf. ALBERTINI, Verena. O Riso e o Risível, na História do Pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora e Fundação Getúlio Vargas, 1999. BÄNDE. Strecker und SCHRÖDER, Stuttgart. De Roraima ao Orinoco. Resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos 1911-1913, Stuttgart, 1928 BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Edunb e Hucitec, 1996.BARBA, Eugênio. SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. São Paulo: Hucitec e UNICAMP, 1995. BERGSON, Henri. O Riso - Ensaio sobre a significação do Cômico, São Paulo: Martins Fonseca, 2001.

Page 144: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

144

BRITO, Cristiane Miryam Drumond de; SILVEIRA, Regiane da; MENDONÇA, Daniele Busatto; JOAQUIM, Regina Helena Vitale Torkomian. O humor e o riso na promoção de saúde: uma experiência de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família. Revista Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n.2, p.553-562, 2016.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1991. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009ª BRAGA, Bya. Étienne Decroux e a artesania de ator: caminhadas para a soberania. Belo Horizonte: UFMF, 2013. 516p. BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. M. Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: editora UNESP, 2003. ______. Philip Astley e o circo moderno: romantismo, guerras e nacionalismo. O Percevejo (online), v. 1, n. 1, Rio de Janeiro, 2009. BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da mitologia (A Idade da Fábula). H i s t ó r i a s d e d e u s e s e h e r ó i s. Tradução David Jardim Júnior. 26. ed. Rio de janeiro, Ediouro, 2012 edição Português. BORTOLETO,Marco Antonio Coelho. Palhaços sem fronteiras: O circo a serviço da sociedade. PerCursos: Revista do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED), v. 6, n. 2, 2005. BORGES, Bento Itamar. O (mau) gosto e o grotesco. Mars Gradivus. Revista do Laboratorio de Psicanalise e Aprendizagem, ano 01, n. 01, 2002. Universidade Federal de Uberlandia.

BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética teatral: textos de Platão a Bertolt Brecht. Tradução de Helena Barbas. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem - Palhaços do Brasil e do Mundo. Rio de Janeiro: Família Bastos, 2005. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Com Bill Moyers. Tradução Carlos Felipe Moises. São Paulo: Palas Athena, 1990. CARVALHO-BARRETO, André de. Bioecologia do desenvolvimento humano: Tornando os seres humanos mais humanos. Boletim Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, v. 33, n. 84, 2013. Resenha de livro: Bronfrenbrenner .

Page 145: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

145

CAMPBELL, Joseph. O herói das mil faces. Cultrix/Pensamento. São Paulo,1999. CERA, Flávia Letícia Biff. Arte-Vida-Corpo-Mundo, segundo Hélio Oiticica. Tese. (doutordo). Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC Centro de Comunicação e Expressão – CCE Programa de Pós-graduação em Literatura, 2012. CLEMENTE,Fran Ros Cómo reivindicar derechos humanos a través del arte del clown: La función social en el payaso. Universidad Autónoma de Barcelona. RES, Revista de Educación Social número 20, 2015.

COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A Cidade Antiga. Tradução Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Editora eBookLibris, 2008. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo: Escuta, 1998. DUBATTI, Jorge. El convívio teatral: Teoria e práctica del Teatro Comparado. Buenos Aires: Atuel, 2003. DEBORTOLI, José Alfredo. Múltiplas Linguagens. In: CARVALHO, Alysson (Org.). Desenvolvimento e Aprendizagem. Belo Horizonte: Editora UFMG Proex, 2002. p.73-88. DONNELLAN, DECLAN. El actor y la diana. 5 a edição,Editora Fundamentos, Curitiba, 2007. DEL BOSQUE, Andrés. El payaso sagrado en la academia III. Manuscrito inédito. Espanha, 2008. DEL BOSQUE. El payaso en la academia. [11 de dezembro, 2009] Espanha: Primer Acto/ Cuardernos de Investigación Teatral. Entrevista concedida a Laura Corcuera e José Henríquez. ECO, Umberto. Os limites da Interpretação. Editora Perspectiva S.A., São Paulo 2016. ECO, Umberto. O nome da Rosa. Editora O Globo, Rio de Janeiro,1980. ESPINO, Zaida Lao; TAPIA, Pablo Javier Arellano. El Clown juntos por la Salud. Exposicion de experiências. – foroisss2010.sld.cu. 2011. EUGEN DIEDERICHS, Jena. Contos Indígenas da América do Sul. 1920. FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Editora da Unicamp e FAPESP, Campinas, 2003.

Page 146: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

146

FERRACINI, Renato. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. FRIQUES, Manoel Silvestre. Troca e relação na estética relacional. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação E-compós, Brasília, v.16, n.3, set./dez. 2013. FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. Prêmio Nobel de Literatura.Editora Senac, São Paulo, 1997. FOLLE, Alexandra; NASCIMENTO, Juarez Vieira do; MARINHO, Alcyane FREITAS, Nanci de. A commedia dell‟arte: máscaras, duplicidade e o riso diabólico de arlequim. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares(TECAP). v. 5, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessáiros a Prática Educativa,Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro 1996. GALINARI, Melliandro Mendes. Alfa, São Paulo, v. 58, n. 2, 2014. GOUTBOUT, Jaques;Caillé, Alain . O Espirito da Dádiva. Trad. de Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999. 272p. GOMES, Christianne L. Verbete Lazer – Concepções. In: GOMES, Christianne L. (Org.). Dicionário Crítico do Lazer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004. p.119-126. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. GEERTZ,Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1998. GUIMARAES, Julia. Crítica das missas patólicas do bufão Leo Bassi. Disponível em: http://www.horizontedacena.com/tag/madri-leo-bassi-patolicismo-dispositivo-bufao-ateismo-performatividade/. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens, 1980. 4. Ed. Editora Perspectiva, São Paulo. 2000. ICLE, Gilberto, LULKIN, Sérgio Andres. Didática buffa: uma crítica à interpretação numa performance da profanação. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 2, p. 116-128, Jan./Abr. 2013. JUNG, C. Gustav. Arquétipos e o inconsciente coletivo. Petropolis: Editora Vozes, 1976.

Page 147: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

147

KING, Barnaby. Carnivalesque Economies: Clowning and the Neoliberal Impasse. Kritika Kultura. NO. 21/22, 2013 Departamento de Inglês da Universidade Ateneo de Manila, Filipinas.

LARA, Larissa Michelle e PIMENTEL, Giuliano Gomes de Assis. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 2, 2006. Resenha do livro de Roger Callois. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico,1989, 24. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editores, 2008. LECOQ, Jacques. (Org.). Le Théâtre du geste. Tradução de Roberto Mallet. Paris: Bordas,1987. LIBAR, Marcio. A Nobre Arte do Palhaço. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2007. LOPES, José Reinaldo de Lima. Justiça e poder Judiciário ou a virtude confronta a instituição, revista USP, São Paulo, n. LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia.Capítulo I – III – IV In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 1 – 36. LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia.Capítulo IV In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p. 335-344. MEIRELLES, Laura. A questão da Linguagem em Ser e Tempo. Revista Ética e Filosofia Política, v. 10, n. 2, Universidade Federal de Juiz e Fora/MG, 2007. MATRACA, Marcus Vinicius Campos; JORGE, Tania C. de Araújo. Inovação nas práticas de promoção da saúde por meio da arte da palhaçaria: a dialogia do riso registrada em vídeo-documentários nas experiências de campo. RUA revista do Laboratório de Estudos Urbanos do Nudecri/Unicamp, v. 17, n. 2, 2011.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre o Dom. In: Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo, Editora Cosac Naif, 2003. NUNES, Naiade. A linguagem e a mulher na sátira medieval. A linguagem e a mulher na sátira medieval. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL O RISO NA CULTURA MEDIEVAL, Funchal, 2003. - "O riso na cultura medieval: actas do Colóquio Internacional". Lisboa: Universidade Aberta, cop. 2004. NUNES, Antonio Jakeulmo; SALES, Magda Coeli Vitorino. Violência contra crianças no cenário brasileiro. Ciência & Saúde Coletiva, volume 21numero 3, 2013.

Page 148: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

148

OLIVEIRA, José Regino. Dramaturgia da atuação cômica: o desempenho do ator na construção do riso. Dissertação de mestrado, Instituto de Artes Universidade Federal de Brasília. Brasília/DF 2008. PAIVA, Maria Soberana de Karlla; SOUSA, Christine Araújo. Sorrir, Brincar e Consumir: Reflexões Acerca das Estratégias Utilizadas pela Marca Patati Patatá para Estimular o Consumo Infantil. In: INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação e Congresso de ciências da comunicação na região nordeste, 17 – Natal - RN – 2 a 4/07/2015. Anais.Universidade do Estado do Rio Grande do Norte –UERN. PEIRCE, Charles Sanders. Semiotica. Perspectiva, São Paulo, 1995. PELLING, Mark. Participation, social capital and vulnerability to urban flooding Guyana. Journal of International Development. Special Issue: The 1997 Annual Conference of the Development Studies Association. v. 10, n. 4, p. 469–486, June 1998 PIMENTA, Gregório Hernández. Entre arte e lazer: deslocando sentidos e experiências através da performance”. Belo Horizonte: PPGEL, EFFTO, UFMG, 2013. QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo soc. v.3, n.1-2 São Paulo Jan./Dec. 1991. https://dx.doi.org/10.1590/ts.v3i1/2.84821. REIS, Demian Moreira. Caçadores de risos: o maravilhoso mundo da palhaçaria, EDUFBA, Bahia, 2014. ROUTLEDGE, Paul. Sensuous Solidarities: Emotion, Politics and Performance in the Clandestine Insurgent Rebel Clown Army. Antipode, v. 44, n. 2, 2011. SANTOS. Clayton Márcio. O jogo do palhaço: a estética do Grupo Trampulim, Belo Horizonte: PPGEL, EFFTO UFMG, 2012.

TANCREDE, Onira de Ávila Pinheiro. Johan Huizinga: jogo cultural e performances culturais, um diálogo.Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Goiás Escola de Música e Artes Cênicas, Mestrado interdisciplinar em Performances Culturais, 2014. SCHNEIDER, Paulo Rudi. Heidegger e a linguagem em “Ser e tempo”, Problemata, Internationa Journal of Philosophy, v. 2, n. 2, 2011. TYLOR, Edward B. Cultura primitiva. Traducción de Marcial Suárez. Editorial Ayuso.1871

Page 149: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

149

WUO, Ana Elvira. Clown e linguagem. Blog, Campinas, abril 2009. Disponível em: https://clownelinguagem.blogspot.com/2009/04/clown-e-triangulacao.html. URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. Ponto Urbe Revista do Nucleo de Antropologia Urbana da USP, n. 11, 2012. Vídeos youtube

Palhaços e sua graça no Arte do Artista: Entrevista de Aderbal Freire Filho com

Kadu Garcia, Sávio Moll e Márcio Libar, três palhaços profissionais.

https://www.youtube.com/watch?v=80DBhaHQPsk

Canal Tv Brasil , Duração 26:27, postado em 04/02/2016

Acessado em março/2017

Palestra do palhaço e ator Marcio Libar na UCAM Ipanema

https://www.youtube.com/watch?v=C26Ob6EsCSQ&t=1361s

Canal Gabriel Borges, Duração 1:05:03, postado em 05/04/2015

Acessado em março/2017

Onde está a graça: Márcio Libar at TEDxVilaMadaSalon

https://www.youtube.com/watch?v=Rtx3-dNbDyI&t=626s

Canal TEDx Talks , Duração 16:06, postado em 09/09/2013

Acessado em março/2017

Palhaço: Do riso a dor: Daniela Biancardi at TEDxLaçadorSalon

https://www.youtube.com/watch?v=WTNKomg6kwQ

Canal TEDx Talks , Duração 16:58, postado em 15/10/2012

Acessado em março/2017

O olhar do SIM - Lições do palhaço e do improviso | Márcio Ballas |

TEDxFortaleza

https://www.youtube.com/watch?v=hjhD0lhCGHk

Canal TEDx Talks , Duração 17:05 , postado em 21/09/2016

Acessado em março/2017

Fanfarrone e as percepções da realidade: Flávio Falcone at

TEDxValedoAnhangabau

https://www.youtube.com/watch?v=q7sXABAq5SY&t=783s

Canal TEDx Talks , Duração 18:46, postado em 09/06/2014

Acessado em março/2017

Page 150: PALHAÇOS E PALHAÇAS ENQUANTO DEUSES …§ão thiago... · Cristiane Miryam Drumond de Brito pelo trabalho de orientação e pela oportunidade de inserção no campo de estudos do

150

Leo bassi: entrevista crisis

https://www.youtube.com/watch?v=hbzGfUeAPXQ

Canal mundoconmisojos , Duração 12:08 , postado em 27/02/2011

Acessado em março/2017

Entrevista por Thiago Araujo com Leila Mirtes

Realizada em 2016 em sua casa. Acervo pessoal.

Sites e blogs

http://contingenciesblog.blogspot.com.br/2010/02/festa-stultorum.html

Por J , postado em 22/02/2010

Acessado em março/2017

http://nuevaweb.leobassi.com/

Por Leo Bassi

Acessado em março/2017

http://www.circomiudinho.com.br

Por Circo Miudinho

Acessado em março/2017