palestra goethe na rússia

11
GOETHE NA LITERATURA RUSSA LARISSA POLUBOJARINOVA UNIVERSIDADE ESTATAL DE SÃO PETERSBURGO O tema é tão extraordinariamente amplo quanto complexo e multifacetado. As três edições mais importantes da obra de Goethe em língua russa a de Nikolai Gerbel (10 volumes, 1878-1880), a de Anatoli Lunacharski (13 volumes, 1932-1948) e a de Alexander Anikst (10 volumes, 1975-1982) traziam os principais textos poéticos, autobiográficos e ensaísticos de Goethe em boas traduções, até mesmo muito boas em sua maior parte, sendo algumas cuidadosamente comentadas. Como elas atestaram, com cerca de 50 anos de intervalo entre si, a recepção russa de Goethe do respectivo período, essas traduções influenciaram a recepção posterior. Sem levar em conta os poemas “Canção noturna do viajante(Wanderers Nachtlied) e Rosinha do silvado(Heideröslein) sempre muito explorados pelos tradutores os três títulos goethianos mais populares na Rússia desde o fim do século XVIII e, por isso, os que tiveram recepção mais intensa foram Os sofrimentos do jovem Werther, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e Fausto I. A primeira tradução do Werther, de Fiódor Galchenkov, surge em 1781, seis anos após a publicação do romance na Alemanha. A tradução era linguisticamente irregular, e de precisão duvidosa. Galchenkov, por exemplo, teve dificuldades com as passagens referentes a Ossian, na segunda parte do Werther, e simplesmente as deixou de fora da versão final russa. Uma edição muito mais precisa e estilisticamente mais bem elaborada é a de Ivan Vinogradov, publicada em 1798. No entanto, os maiores nomes na recepção russa do Werther não precisaram da mediação de nenhuma tradução, pois leram o romance no original. Dentre eles, o iluminista e publicista russo Nikolai Novikov (1744-1818), que em seu Léxico do gênero dramático, publicado em 1787, referiu-se a Goethe como um “excelente autor alemãoque havia escrito um livro primoroso”: Os sofrimentos do jovem Werther. Dentre eles também o escritor Alexander Radiščev (1749-1802) que, quase um perfeito contemporâneo do poeta (nasceu apenas três dias depois de Goethe, em 31 de agosto de 1749, mas sob a proteção de uma estrela bem menos afortunada, pois faleceu deprimido aos 53 anos, após uma

Upload: rocca179

Post on 05-Dec-2015

224 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Relações de Goethe com a Rússia.

TRANSCRIPT

Page 1: Palestra Goethe Na Rússia

GOETHE NA LITERATURA RUSSA

LARISSA POLUBOJARINOVA

UNIVERSIDADE ESTATAL DE SÃO PETERSBURGO

O tema é tão extraordinariamente amplo quanto complexo e multifacetado. As três edições

mais importantes da obra de Goethe em língua russa – a de Nikolai Gerbel (10 volumes,

1878-1880), a de Anatoli Lunacharski (13 volumes, 1932-1948) e a de Alexander Anikst

(10 volumes, 1975-1982) – traziam os principais textos poéticos, autobiográficos e

ensaísticos de Goethe em boas traduções, até mesmo muito boas em sua maior parte, sendo

algumas cuidadosamente comentadas. Como elas atestaram, com cerca de 50 anos de

intervalo entre si, a recepção russa de Goethe do respectivo período, essas traduções

influenciaram a recepção posterior.

Sem levar em conta os poemas “Canção noturna do viajante” (Wanderers Nachtlied) e

“Rosinha do silvado” (Heideröslein) – sempre muito explorados pelos tradutores – os três

títulos goethianos mais populares na Rússia desde o fim do século XVIII – e, por isso, os

que tiveram recepção mais intensa – foram Os sofrimentos do jovem Werther, Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister e Fausto I.

A primeira tradução do Werther, de Fiódor Galchenkov, surge em 1781, seis anos após a

publicação do romance na Alemanha. A tradução era linguisticamente irregular, e de

precisão duvidosa. Galchenkov, por exemplo, teve dificuldades com as passagens

referentes a Ossian, na segunda parte do Werther, e simplesmente as deixou de fora da

versão final russa. Uma edição muito mais precisa e estilisticamente mais bem elaborada é

a de Ivan Vinogradov, publicada em 1798.

No entanto, os maiores nomes na recepção russa do Werther não precisaram da mediação

de nenhuma tradução, pois leram o romance no original. Dentre eles, o iluminista e

publicista russo Nikolai Novikov (1744-1818), que em seu Léxico do gênero dramático,

publicado em 1787, referiu-se a Goethe como um “excelente autor alemão” que havia

escrito “um livro primoroso”: Os sofrimentos do jovem Werther. Dentre eles também o

escritor Alexander Radiščev (1749-1802) que, quase um perfeito contemporâneo do poeta

(nasceu apenas três dias depois de Goethe, em 31 de agosto de 1749, mas sob a proteção de

uma estrela bem menos afortunada, pois faleceu deprimido aos 53 anos, após uma

Page 2: Palestra Goethe Na Rússia

fracassada carreira como reformador social), também estudara na Universidade de Leipzig

praticamente no mesmo período que o poeta. (Não existe, contudo, nenhum testemunho de

que ambos tenham se conhecido em Leipzig.) Em sua obra mais célebre, A viagem de São

Petersburgo a Moscou (1790), Radiščev diz, a respeito uma tocante situação por ele

descrita, que lhe advieram lágrimas que seriam tão ternas quanto as “lágrimas do coração”

de Werther.

Recebido ativamente também por “massas mais amplas”, o livro desencadeou na Rússia,

assim como em toda a Europa na primeira década depois de sua publicação, a chamada

“síndrome de Werther”. Michail Suschkov, um admirador de Werther de 17 anos, suicidou-

se em 1799. Entre os papéis do jovem versado em literatura, foi descoberto um texto

narrativo composto em forma epistolar com o título Um Werther russo, tratando-se de uma

interessante versão do romance goethiano, publicada postumamente em 1802.

Nas primeiras décadas do século XIX, um autêntico culto a Goethe surgiu entre os

românticos russos, como Dimitri Venevitinov (1805-1827) e Vladimir Odojevski (1803-

1869), os chamados Ljubomudry (“amantes da sabedoria”), que se agrupavam em torno da

revista Moskovsky Vestnik. Obras de Goethe foram traduzidas pelos Ljubomudry,

publicadas em sua revista, discutidas em suas reuniões. Em 12 de maio de 1829, três

membros da associação Ljubomudry visitaram Goethe em Weimar, recebendo do príncipe

da poesia alemã uma espécie de benção para suas próximas atividades de divulgação na

Rússia. Nas obras de Vladimir Odojevskij, o líder Ljubomudry engajado poeticamente,

manifestam-se alguns motivos fáusticos. O trabalho de Alexander Púchkin (1799-1837)

com as obras de Goethe também foi, em parte, consequência de suas relações de amizade

com os Ljubomudry.

Era notório que, diferentemente dos “amantes da sabedoria”, Púchkin não sabia muito bem

alemão. O conteúdo do Fausto I, por exemplo, ele apreendeu a partir da narração detalhada

de Madame de Staël em seu livro, publicado em 1813, De l’Allemagne e, em seguida,

compôs sua própria Cena do Fausto (1825).

Não só em relação a esse breve texto de Púchkin, que representa “algo entre uma imitação,

uma paródia e uma variação livre” (Sergei Averintsev) do texto goethiano, mas também em

relação ao seu trabalho com o Werther e com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister,

não se questiona tanto quais seriam os “traços” goethianos concretos presentes em sua obra

Page 3: Palestra Goethe Na Rússia

– principalmente os últimos são pesquisados muito minuciosamente1 – mas sim, e

principalmente, a maneira pela qual se constrói uma comparação tipológica entre duas

grandezas notáveis e entre dois representantes excepcionais das respectivas literaturas

nacionais, que vão além das fronteiras, e também além de testemunhos concretos de

“atuações e influências” – no contexto da “grande época”, como Mikhail Bakhtin os

caracterizaria. Deve-se ao comparativista e teórico da literatura Sergei Averintsev2 a

tentativa muito bem sucedida de uma tal tipologia. Em um ensaio de 1999, ano do grande

Jubileu de Goethe, e que na Rússia foi também um grande ano de Púchkin, ele procurou

elaborar um certo tertium comparationis entre ambos os autores. No que tange a uma

característica comum a Goethe e Púchkin, Averintsev compreendeu a qualidade “clássica”

de suas respectivas obras como uma “tensão entre a estática da tradição e a dinâmica do

novo”, “entre ancien régime e capitalismo”, assim como entre a retórica tradicional e a

modernidade de seus estilos, que devem estar em equilíbrio. A adoção desse paradigma

“clássico” comum a ambos os autores abriu a perspectiva de paralelos surpreendentes e, por

vezes, desconcertantes, por exemplo:

1. Um interesse quase profético que ambos os autores manifestam em relação ao

fenômeno do “americanismo” (a temática da cidade secular). Ver, em Goethe, sua

“Xênia mansa” de 1827; em Púchkin, “Os Estados Unidos”, isto é, suas explanações

sobre a América na discussão a respeito do conhecido livro sobre a longa

convivência de John Tanner com os índios Shawnee.

2. Ambos ainda estão vinculados à tradição do Iluminismo europeu e, por isso,

manifestam-se muito positivamente sobre a beleza formal e a regularidade dos

poemas de Voltaire: Goethe, nas conversas com Eckermann (16 de dezembro de

1828 e três de janeiro de 1830) e Púchkin em um ensaio sobre Voltaire de 1836.

3. Púchkin volta-se para o motivo do Islã em suas Imitações do Corão, de 1824, com

total independência em relação a Goethe que, por sua vez, tematizou motivos

semelhantes, cinco anos antes, no Divã ocidental-oriental. No tratamento dos

motivos, contudo, há coincidências evidentes.

1 Ver V. Rozov: Goethe e Púchkin. Kiev, 1908; V. Zhirmunskij: Goethe na literatura russa. Leningrado,

1936, segunda edição, Leningrado 1982; R. J. Danilevskij: Púchkin e Goethe – Um estudo comparativo.

St. Petersburgo, 1999 (Todas as obras em russo).

2 S. Averintsev: “Goethe e Púchkin: 1749 – 1799”. In Novyjmir, 1999 (Nº 6).

Page 4: Palestra Goethe Na Rússia

É importante ainda destacar um interesse, que podemos considerar moderno, de ambos os

autores, pela dinâmica da peregrinação e pela temática da viagem. Goethe, no Divã

ocidental-oriental: “Deixem-me passar, montado em minha sela! // Fiquem em suas

cabanas, em suas tendas! // E cavalgo alegre, para longe, // sobre minha cabeça, apenas as

estrelas”. Puschkin, no poema “Cigano”: “E voei para uma terra distante // Acompanhado

da alegre sombra da liberdade”. Segundo Averintsev, o princípio do paradigma clássico

permanece, já que tanto Goethe quanto Púchkin tinham noção do “pluralismo” moderno

(também entendido como pluralismo estilístico), mas o trataram no âmbito de suas poéticas

de modo “distanciado”, sem aceitá-lo diretamente.

Já no momento seguinte da história irá começar um nova era, na Alemanha com Heine, na

Rússia com Nekrassov, e a possibilidade de exercer a modalidade literária clássica,

“unitária, desaparecerá para sempre”.3 O progressista século XIX também fez arrefecer o

entusiasmo russo por Goethe. Victor Zhirmunski destaca, com razão, em sua obra basilar

Goethe na Literatura russa a irrelevância de Goethe para a produção literária da segunda

metade do século XIX4. No entanto, se examinamos com atenção, deparamo-nos com

reminiscências surpreendentes de Goethe, por exemplo, em Leon Tolstói, cujo romance

Guerra e Paz pode ser lido, por um lado, como uma contrafação de Hermann e Doroteia e,

por outro lado, do Fausto5. Também em obras de Fiódor Dostoiévski, especialmente nos

romances Os Demônios, Um adolescente, Irmãos Karamazov e na narrativa A Dócil

sobressai a influência de Goethe6, apesar da conhecida observação de Bakhtin a respeito da

“oposição” crassa entre as poéticas de ambos os autores, assim como das “categorias

fundamentais de suas percepções artísticas”, que Bakhtin caracterizou como um “devir”

(Goethe) e uma “coexistência” (Dostoiévski).

Goethe voltou depois à atualidade como figura olímpica e veneranda, símbolo da

cultura europeia para a literatura russa de finais do século XIX e das primeiras décadas

do século XX. Os simbolistas Vladimir Solovjev, Andrei Biéli, Wjacheslav Ivanov, os

líricos Boris Pasternak e Marina Tsvetaeva, os acmeístas Ossip Mandelstam e Michail 3 Ibid.

4 V. Zhirmunski, p. 29.

5 Ver V. Kantor: “Uma tentação da não-história. ‘O melhor” ou Tolstói contra Goethe. In Voprosy

literatury, 2000 (Nº 4).

6 Tomas Masarick já chamava atenção para isso em1898. Ver também a dissertação de Maria Ped’ko

Recepção da obra de Goethe em F. M. Dostoiévski. St. Petersburgo, 2006.

Page 5: Palestra Goethe Na Rússia

Kuzmin, em sua maioria versados na literatura alemã, produziram não só traduções

goethianas altamente sensíveis, mas também ensaios inteligentes sobre Goethe e

biografias originais (seja mencionado, por exemplo, o texto de Mandelstam feito para

uma leitura radiofônica, “A juventude de Goethe”, 1934), além de retratos poéticos do

poeta alemão.

Assim, Goethe surge em pessoa no poema de Marina Tsvetaeva intitulado “À

Alemanha” (1914):

Onde se põe um novo Fausto

Com zelo em andamento, volteia

Seu bastonete o conselheiro Goethe

Nas aleias de uma outra aldeia.

No ciclo lírico de Kuzmin Os dedos dos dias (1925) compara-se Goethe a Júpiter, que

repentinamente faz uma visita imaginária ao poeta e lhe aperta a mão. Notável em

ambos os exemplos, em Tsvetaeva e Kuzmin, é o uso todo respeitoso do título do

clássico alemão: “o conselheiro Goethe”.

Um contraste evidente em relação a essas imagens sólidas e respeitáveis, feitas com

substancial conhecimento da biografia e obra de Goethe, surge com sua figuração na

poesia russa pós-moderna.

Um exemplo marcante encontra-se no mais conhecido texto da literatura marginal russa

dos anos de 1970: A viagem a Petuschki, de Wenedikt Jerofejew (1938-1990), escrito

em 1969 e publicado pela primeira vez em 1977, em Paris, e considerado pelo eslavista

Heinrich Pfandl como “um dos mais decisivos livros russos do século XX”.

Para o protagonista – que possui nome semelhante ao do autor e com ele partilha muitos

traços biográficos – álcool e embriaguez, como uma espécie de “emigração interior”,

transformam-se em meio da libertação espiritual da realidade soviética sombria e

opressora para uma metafísica e religião próprias. O herói, de cuja perspectiva se narra,

empreende uma viagem de final de semana, partindo com o trem de Moscou, onde

trabalha com a instalação de cabos telefônicos, até ao vilarejo de Petuschki, onde

moram sua namorada e filho ilegítimo. Wenedikt, com uma forte ressaca por causa da

noite anterior, carrega consigo no trem uma maleta com vodca. O núcleo do romance

(do “poema”, na verdade, conforme o subtítulo) reside numa discussão sobre alcoolismo

Page 6: Palestra Goethe Na Rússia

conduzida, no trem, entre o herói e seu companheiro de viagem, que logo se torna seu

companheiro de copo.

O discurso profundo – fortalecido por vários exemplos da história da cultura russa – de

um dos participantes da discussão, apelidado “o de bigode”, diz: “Todos os homens de

valor da Rússia, todos os homens que foram importantes para a Rússia, bebiam como

gambás. Só os superficiais não bebiam”. O palestrante, no entanto, tem de estacar em

face de seu oponente, que entra em cena apelidado de “dezembrista” e apresenta como

contra-argumento o fato de que o “conselheiro Johann Wolfgang von Goethe”

supostamente “nunca bebeu uma única gota” .

O diálogo continua assim:

– Nunca? Nadica de nada? […] Não pode ser!

– Claro que pode. Ele podia segurar a bebida e não tomar uma única gota...

– Esquisito… E se Friedrich Schiller lhe oferecesse algo? Uma taça de champanhe?

– Também não. Ele seguraria a taça sem beber. Ele diria: não bebo uma gota.

A fim de não deixar “o de bigode” totalmente desolado – pois ele está bastante

desiludido com o colapso de seu “maravilhoso sistema” – o compassivo Wenedikt

propõe um meio-termo. Em sua opinião, Goethe teria bebido, mas de um modo próprio

e sublime. Seu monólogo goethiano é excepcional e merece ser citado quase

inteiramente:

Vocês sabem por que ele não bebeu? O que o levou a não beber? Todas as pessoas

íntegras beberam, mas ele não. Por quê? […] Vocês acham que ele não teria gostado de

tomar umas e outras? Ah, e como! Mas para não encharcar a si mesmo, resolveu fazer

beber todos os seus personagens. Tomem o Fausto, por exemplo: quem lá não entorna?

Todos entornam! Fausto entorna e fica além disso cada vez mais jovem; Siebel entorna

e vai pra cima de Fausto; Mefisto também outra coisa não faz que entornar – entorna,

oferta aos estudantes e canta a canção do rei e da pulga. Vocês irão perguntar por que o

conselheiro Goethe considerou tudo por necessário. E aí só lhes posso dar uma resposta:

Por que ele fez Werther meter uma bala através da cabeça? Porque ele próprio – e há

provas disso – estava à beira do suicídio. Para não sujar a si deixou que Werther o

fizesse em seu lugar. Vocês entendem? Ele permanece vivo, mas é como se houvesse

Page 7: Palestra Goethe Na Rússia

cometido suicídio. E assim ele se satisfez, totalmente. Mas isso é pior que o suicídio. É

covardia e egoísmo e acima de tudo sordidez criativa…

E, da mesma maneira que atirou em si próprio, seu conselheiro também se embebedou.

Mefisto se embebeda e ele se alegra, o filho da mãe. Fausto se embebeda e ele fica de

pileque, o velhaco. Havia um assim, tal de Kolia, que trabalhava comigo: ele mesmo

não bebe nada, tem medo de perder a estribeira e não poder largar mais dos goles

semanas e meses a fio, mas nos bota nada menos que bêbados. Serve a todos, solta uns

guinchos e se compraz, o patife, o sem-vergonha… Assim também o insigne Johann

Wolfgang von Goethe. Schiller serve, e ele recusa – uma ova! Era um alcoólatra, seu

conselheiro Johann Wolfgang von Goethe – um biriteiro! Tinha as mãos trêmulas…

“Pois então…”, o dezembrista e o de bigode brilhavam felizes os olhos em minha

direção. O belo sistema estava restaurado e com ele a boa disposição.

A imagem de Goethe feita por Jerofejew resulta arbitrária, destrutiva e enviesada.

Aparentemente, não se procura a fidelidade biográfica ou a exatidão na reconstituição

do conteúdo das obras. Jerofejew, que estudou filologia e, segundo conhecidos e amigos

mais ou menos confiáveis, era um leitor voraz, sabia certamente que Goethe – cujo Divã

ocidental-oriental contém o célebre dito “Se um bebeu, // Sabe o que é certo” – no dia a

dia não era nenhum abstêmio. Em Eckermann, por exemplo, há passagens o bastante

que atestam que o “patriarca weimariano” apreciava vez e outra uma taça de “bom

vinho”. Jerofejew conhecia bem o livro de Eckermann.

Na reconstituição do conteúdo, os erros dão na vista: por exemplo, no texto de Goethe,

Siebel não “vai pra cima” de Fausto, mas de Mefistófeles; Mefistófeles não bebe antes

de cantar; a imagem do “Fausto que entorna e fica cada vez mais jovem” não tem

origem na tragédia de Goethe, mas sim na ópera de Charles Gounod – mas não devem

ser atribuídos ao mero desconhecimento do conteúdo de Fausto. Em 1985, o autor

arriscou-se ainda a redigir uma peça com o título Uma noite de Valpúrgis. Nela,

evidencia-se um conhecimento considerável de Goethe, inclusive relações intertextuais

sutis com as peças Torquato Tasso e Ifigênia em Táuride.

Ao refletir sobre a especificidade da figuração de Goethe na Viagem a Petuschki,

verifica-se que se trata de um esboço cheio de contradições, discordante. Por um lado,

confere-se a Goethe um lugar bastante privilegiado com sua inclusão na lista dos

“homens de valor da Rússia” e dos “homens que foram importantes para a Rússia”. Por

outro, tanto a figura de Goethe como sua obra são ridicularizadas, reduzidas a um único

Page 8: Palestra Goethe Na Rússia

aspecto (“Goethe bebia?”). Daí também a oscilação nas designações relativas a Goethe:

ora abordado com seu título de “conselheiro Johann Wolfgang von Goethe”, ora objeto

de insultos.

O fragmento goethiano de Jerofejew poderia, a meu ver, ser interpretado como um

testemunho exato e triste do isolamento da realidade soviética representada com relação

ao contexto cultural europeu. Pelos caminhos da cultura, não se pode mais travar

“verdadeiro” contato com a personalidade de Goethe; ela só pode ser abordada ou como

emblema esvaziado, transformado em etiqueta feita para o uso diário, ou quando

“besuntada” da mesma lama em que se chafurda.

Pode-se falar de uma imagem goethiana também em relação a dois poemas de Dimitri

Alexandrovich Prigov (1940-2007), ambos escritos entre 1975 e 1989. Prigov,

conhecido nos anos 70 e 80 como um dos artistas (poeta, pintor, escultor e instalador)

mais provocantes do “Conceitualismo”, ou “Sots-Arte”, movimento de atuação

clandestina, foi promovido nos anos 90, particularmente depois de receber o Prêmio

Púchkin, em 1993, a “super-star” da poesia russa.

Com sua estratégia artística, definida como “paródia irônica do realismo socialista”,

Prigov tinha como especial finalidade a construção de uma imagem própria que

proviesse do cruzamento entre o discurso do poder e o discurso das massas. Com sua

persona estilística – a do “grande poeta soviético e russo Dimitri Alexandrovich

Prigov” – quer o poeta produzir, “analogamente ao culto da personalidade de Stalin, um

simulacro do culto da própria personalidade” e, com isso, subtrair-se, de alguma

maneira, ao poder de Stalin.

Imitando a onipotência e a onipresença do mito stalinista, Prigov esforça-se por fazer

uma descrição “total”, irônica e zombeteira da realidade soviética e pós-soviética e daí

decorre sua produtividade quase famigerada (derivam de sua pena mais de 35 mil

textos). O verso prigoviano possui em geral um traçado algo acanhado, mas sua

perspicácia intelectual e seu virtuosismo estilístico mal podem escapar a um leitor

sensível.

O primeiro dos poemas a citar é dedicado ao tema “Goethe e nós”:

Page 9: Palestra Goethe Na Rússia

E mesmo que alguém, suponhamos Goethe

Tivesse um dia desembarcado entre nós,

Ele não teria podido, mesmo que

Quisesse, nos compreender

Com suas palavras quase inúteis

Ele teria parecido

Um tanto brejeiro ou mesmo

O comparsa de alguém

Pois simplesmente não há palavras

No segundo poema Prigov compara, no êxtase da autotematização, sua própria pessoa

com a de Goethe:

Sábio eu sou como um Goethe

Até o temor de mim mesmo,

Pois teme-se a sabedoria

Apenas quem é honrado e sério.

Pois ela começa, a sabedoria,

Calma, suave e inocente,

Termina, porém, minguando

Lá onde não se pode provar nada.

Em ambos os textos, Goethe é evidentemente tematizado como portador de uma

verdade anônima abstrata. Essa instância da razão, a verdade cartesiana, ocidental, a

qual se apoia no Logos, pode se dar na Rússia, conforme Prigov, apenas de modo

sofrível.

A essência da declaração vem à luz, como é frequentemente o caso em Prigov, no

último verso (chamada por um crítico literário de “verso de Prigov”). No primeiro

poema joga-se, por exemplo, com o evidente duplo sentido, também em alemão, da

expressão “não há (para isso) palavras”. Ao atualizar o primeiro sentido, Prigov, melhor

dizendo, sua máscara estilística, abandona-se à fórmula-clichê da suposta

“incompreensibilidade” da Rússia: esta seria tão insondável, impenetrável, que nela o

meio da razão “pura” ocidental teria de fracassar. (Não deve ser desconsiderada aqui a

relação intertextual com a conhecida sentença de Fiodor Tiutchev “Não se pode

Page 10: Palestra Goethe Na Rússia

compreender a Rússia por meio da razão”.) O segundo sentido (o qual deixa

transparecer a voz “autêntica” do autor), “estar mudo de indignação”, lança uma luz

inteiramente diferente à mal-afamada e autocomplacente irracionalidade russa: esta é

agora vista criticamente.

A investigação mais recente constata nos autores russos das últimas duas décadas uma

concentração sobretudo “em si mesmo”, na história e na literatura nacional. Ante esse

pano de fundo o conflito de Jerofejew e Prigov com Goethe surge, no entanto, como

característico. Goethe é, aliás, um dos poucos nomes de escritores ocidentais que

aparecem em ambos os autores.

Resta o fato, a não desconsiderar, de que Goethe “em si mesmo” interessa muito pouco

tanto a Prigov como a Jerofejew. Não se teme, apesar disso, fazer um uso “aplicado” do

clássico alemão, no qual este representa simbolicamente seja uma instância abstrata

prestigiosa, como a dos “homens importantes válidos para a Russia” (Jerofejew), seja a

“sabedoria ocidental”. Ou pode-se ainda fazer um uso do clássico alemão em que este

sirva aos objetivos práticos da autojustificação (“Goethe também teria bebido”) ou da

construção da própria imagem (“Sábio eu sou como um Goethe”).

Para indicar apenas uma causa desse afastamento de Goethe atípico para a Rússia do

século XIX e do início do século XX, lembre-se a especificidade da “utilização”

proletária, comum na época de Stalin, do patrimônio cultural internacional. Prestou-se

paradoxalmente um mau serviço a Goethe e a Schiller quando estes foram designados

de “progressistas”. O mecanismo de integração dos autores ocidentais “progressistas”

no conceito stalinista de cultura, que teve por consequência a completa

despersonalização dos autores, está descrito da seguinte forma no livro Ainda Stalin, de

Boris Groys:

“No que diz respeito aos autores ‘progressistas’, aplicaram-lhes a sua revelia um caráter

padronizado; não se trata aqui de uma narrativa histórica real, mas de um tipo de

hagiografia, interessada na produção de uma figura hierática, desindividualizada. Dessa

forma, a descrição hagiográfica, digamos, de Goethe não se distingue absolutamente da

de Sholokhov ou Omar Khayyam – todos amavam o povo, sofreram com as intrigas das

forças reacionárias, trabalharam para um futuro luminoso, produziram arte

verdadeiramente realista etc.”.

Page 11: Palestra Goethe Na Rússia

É licito presumir que a aversão estrondosa a Goethe ou ao que ele significa, a qual se

manifesta no uso negligente de seu nome em Jerofejew e Prigov, talvez tivesse sua

razão de ser numa associação, antes subconsciente que consciente, de Goethe com a

figura de Stalin. Com isso Goethe é claramente percebido como uma contrafação da

imagem-clichê de Stalin – a de “um homem de Estado, cientista e filósofo” –, imagem

que, na União Soviética do culto à personalidade (de 1930 ao começo dos anos 50), foi

ativamente propagada, midiaticamente multiplicada e consumida em larga escala.

A especificidade da recepção de Goethe entre os autores pós-modernos russos,

demonstrada a partir de alguns estudos, deve ser entendida não obstante como um

indício seguro da validade mundial do fenômeno “Goethe”. Para Jerofejew e Prigov,

Goethe segue sendo uma instância que, ao ser acerbamente atacada e condenada,

permite-lhes questionar os pressupostos de sua própria cultura.