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N13 JULHO 2018|ISSN: 2304-0688

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CONSELHO DE REDACO

Director: Incio Valentim (ISPSN) Angola

Secretria de Redao: Ftima Sousa Rodrigues (ISPSN) Angola

Editor: ISPSN Instituto Superior Politcnico Sol Nascente

Arranjos Tcnicos: Ivan dos Reis Andrade (ISPSN) Angola

Hermnia Capita (ISPSN) Angola

CONSELHO CIENTFICO

Adelino Sanjombe (ISPSN) Angola

Adriano Catiavala (ISPSN) Angola

Agemir Bavaresco (PUCRS) Brasil

Antnio Gmez Ramos (UC3M) Espanha

Antnio Matos Ferreira (CHER-UCP) Portugal

Antnio Mendes Sambalundo (UJES) Angola

Antnio Paquissi (ISCED-ISPSN) Angola

Beatriz Cecilia Lpez Bossi (UCM) Espanha

David Boio (ISPSN) Angola

Diane Lamoureux (LAVAL) Canada

Dulce Inakulo de Sousa (ISPSN) Angola

Eduardo Vera Cruz (UL) Portugal

Fabrcio Pontini (PUCRS) Angola

Feliciana A. Salica Hossi (ISPSN) Angola

Flix Duque (UAM) Espanha

Fernando Ramprez (UCM) Espanha

mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]

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Hlder Chipindo (UJES/ISPCala) Angola

Hugo Bento de Sousa (Mdico) Portugal

Incio Valentim (ISPSN-CFCUL) Angola

Irene Inakulo Moiss (ISCED-ISPSN) Angola

Ivone Moreira (IEP - UCP) Portugal

Jos Pedro Serra (FLUL) Portugal

Jos Saragoa (Universidade de vora) Portugal

Jos Zeferino (ISPSN) Angola

Lucas Nhamba (UJES) Angola

Manuel Simo (UAN) Angola

Marcelino Chipa (IFTS-ISPSN) Angola

Miguel Morgado (IEP - UCP) Portugal

Olga Maria Pombo Martins (UL - CFCUL) Portugal

Pedro Cassiano (ISPSN) Angola

Renata Karina Reis (USP) Brasil

Simo Esperana (UJES) Angola

Tadeu Weber (PUCRS) Brasil

Tarcsio Memria Eculica (ISPSN) Angola

CONSELHO DE ASSESSORES

Manuel Martins (ISPSNG) Angola

Antnio Miranda (Politlogo) Cabo Verde

Pablo Gmez Manzano (U.Valparaso-UC3M) Chile

Jorge Manuel Bentez (UNA-UAM) Paraguai

Lola Blasco Mena (UC3M) Espanha

Miguel ngel Corts Rodriguz (Salamanca) Espanha

Nuno Melin (UL. CFCUL) Portugal

Pamela Colombo (CSIC) Espanha

Raimundo Tavares (Advogado) Cabo Verde

Vicente Muoz-Reja (UAM) Espanha

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EDITORIAL

AS LEIS DA PERIFERIA E A CIDADE FILOSFICA

Nos ltimos tempos temos vivido um surto gritante de insegurana na cidade. A preocupao

com a questo da segurana ultrapassou aquela de encontrar um emprego, alis, razo mais

do que suficiente, porque s os vivos podem trabalhar, s aqueles que esto em boas

condies fsicas podem trabalhar. A periferia criou novas leis e na base destas leis que todo

o mundo vive: a lei do medo, a lei do estar-sem-estar, enfim, a lei do aprisionamento na

liberdade. Parece que a periferia tomou conta da cidade, porque provavelmente poucas

vezes ela foi escutada sem o entardecer do verniz. O infractor visto como perifrico e como

delinquente e esquecemos que a prpria cidade pode ser perifrica a partir do momento que

no responde s expectativas da cidade. Nenhum cidado espera do poltico (salvo aquele

que tremendamente ingnuo) a honestidade, a integridade ou honradez, porque tambm

ele sabe que no tem todas estas qualidades, alis, no tem e parece que no lhes

preocupam tanto, desde que os seus problemas sejam resolvidos. E, isso que ele espera do

poltico. Espera que este resolva os seus problemas e a insegurana um destes problemas

que ele espera que o poltico resolva. A no resoluo do problema tambm conduz cidade

na linguagem perifrica, naquilo que no o centro, no est no centro e no faz o centro,

no to importante quanto o centro. Nunca nos perguntamos se os verdadeiros

delinquentes so aquelas pessoas que violam as leis da cidade de modo explcito, porque

invadem as nossas casas, porque apropriam-se dos nossos bens dentro e fora de casa.

Provavelmente no sejam os verdadeiros delinquentes. Porque os piores delinquentes podem

ser aqueles que no tm a conscincia trgica, no tm conscincia infeliz, como diz Spinoza.

Dormem, mas dormem porque no pensam nos outros, porque no se revem nos outros e

porque criaram uma legitimidade prpria para a sua forma de violncia e nisto se parecem

com os proponentes da violncia perifrica. De modo que, s o genealogista pode salvar a

cidade das suas duas violncias: a violncia daqueles que esto estampados como violentos e

a violncia daqueles que dormem apesar de serem tremendamente violentos. O genealogista

o filsofo, diz o Nietzsche de Foucault e de Deleuze, mas no aquele filsofo que aceita que

todo o mundo olhe para ele como aquele que reflecte nas coisas ou que medita nas coisas,

como se as outras reas do saber no reflectissem, no meditassem. O genealogista aquele

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que traz um comeo, que cria um comeo e que reinventa um comeo a partir da dor e da

cura. A cidade deve ser filosfica no para fazer aquilo que j foi feito, aquilo que j foi criado.

O genealogista no pode aceitar os conceitos que servem apenas para o limpar e fazer

brilhar numa falsa luminosidade. O genealogista deve dar a cidade o entendimento do

entristecimento. O genealogista enquanto educador no traz apenas a reflexo e a

contemplao, traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos

outros aquilo que eles no querem ouvir, vem para dizer aquilo que mais ningum diria. por

isso que a resposta filosfica deve ser dura contrariamente s outras reas do saber, porque

uma resposta que consiste no entristecimento. A filosofia como educao encara um

entristecimento, mas um entristecimento alegre porque conduz libertao. Ela oferece-nos

a possibilidade de perguntarmo-nos, o que somos, o que fazemos e se a nossa resposta for

honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade. O genealogista

um incomodador, s pode incomodar e s deve incomodar para a libertao, tem que

proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro. Ter vergonha do que se

pensa saber.

Por ltimo, dizer que esta 13 edio contm alguns artigos publicados na revista OPINIO

FILOSFICA da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS), traz as mais

variadas reflexes no mbito acadmico-cientfico.

A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa, a sua

complexidade e a sua relao com a unidade africana. Tenta encontrar os princpios e os

fundamentos metafsicos que podem sustentar a possibilidade da unio.

O Dr. Nlando Faustino reactualiza ao histrico pensador das independncias ( sua maneira)

Frantz Fanon. Atravs da obra Os condenados da terra de Fanon, faz uma leitura

desconstrutivista da colonizao vista como uma oportunidade para a civilizao. Recusa com

Fanon, a ideia de que a colonizao igual a civilizao e paganismo igual a selvageria e

defende precisamente a ideia da despersonalizao imanente do processo colonializador.

Por sua vez, Incio Valentim lana a interrogao sobre a educao e o processo educativo

liberal em frica. Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado.

Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiss Inculo pensam a educao desde a perspectiva no

universitria a partir do cunho da lei. Procuram compreender e destacar a negatividade de

uma interveno excessiva dos elementos no autorizados no processo educativo.

Incio Valentim

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NDICE

EDITORIAL ...................................................................................................................................... 4

ARTIGOS ........................................................................................................................................ 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFSICA DA UNIDADE AFRICANA ........................................................... 8

FLAVIANO LOURENO KAMBALU

HISTRIA

A COLONIZAO, UMA REFERNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZAO DE FRICA: UMA PROVOCAO FILOSFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON ............................................................... 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

O QUE APRENDER E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCAO LIBERAL EM FRICA? .................... 44

INCIO VALENTIM

EDUCAO

CARACTERIZAO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NO UNIVERSITRIO ANGOLANO. DESAFIOS E PERSPECTIVAS ..................................................................................................................... 62

ABEL JOS DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISS

NORMAS DE PUBLICAO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENO KAMBALU a

Resumo

A vocao unidade uma caracterstica natural da pessoa humana porquanto esta

essencialmente livre, relacional e dialogante. A frica um complexo e heterogneo mosaico

de povos, lnguas, raas, culturas, etnias e religies, cujo fundamento metafsico de origem

representa uma unidade indivisvel na realidade histrica. O fundamento metafsico de origem

importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos mais forte do

que o que os separa. Nisto, o dilogo necessrio para superar os preconceitos e

desentendimentos histricos, as divises, intolerncias e fundamentalismos que infelizmente

se vo intensificando na actualidade. O dilogo, conducente unidade, no obriga, mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado. Enfim, trata-se de um

dilogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legtima diversidade promove o respeito, a

concrdia e a colaborao.

Palavras-chave: Pessoa humana, frica, Fundamento Metafsico, Fundamento Metafsico e

Dilogo.

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free, relational

and dialoguing. Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples, languages, races,

cultures, ethnic groups and religions, whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality. The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them. In this,

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements, the divisions,

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time. The

a Doutor em Filosofia. Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila,

Benguela Angola

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dialog, leading to the unit, doesnt oblige, but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State. At last, it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect, harmony and collaboration.

Keywords: The Human Person, Africa, Metaphysical foundation, Metaphysical foundation

and Dialogue.

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizao difcil subtrair-se ao dever ou

necessidade de prestar conta de si mesmos. Neste clima cultural tambm a unidade africana

chamada a justificar-se, ou seja, a justificar o seu direito de continuar a ser. primeira vista

poderia parecer que a sua justificao no seja hoje um problema, visto que cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expresso unio africana. Mas urge reflectir nesta unidade

luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado.

Aprendemos com Nicola Abbagnano que nada do que humano estranho filosofia []

alis esta o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razes e o fundamento

do seu ser.1 Esta a filosofia na sua adeso existncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relao aos problemas do homem. No de um homem que vive no rano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta nsias e insuficincias, alegrias e

esperanas, tristezas e angstias.2 Portanto, todas as coisas so susceptveis de reflexo

filosfica, inclusive a prpria unidade africana exige filosofar.

De facto, filosofar examinar a realidade, e isso, de um modo ou de outro, todos fazemos

constantemente. Ao se tentar resolver os problemas globais, sociais ou pessoais, impossvel

se abster da racionalidade. Entretanto h uma gama de situaes onde a razo no pode

avanar por falta, ou excesso de dados, o que impossibilita decises objectivas. Entra em cena

ento a parte subjectiva humana, mais especificamente a Intuio, como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade.

S que, actualmente, a filosofia passa por uma perda de identidade. Existe uma verdadeira

inflao do termo filosofia e, como toda a inflao, sintoma de queda de valores, de crise

difusa e profunda. Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difceis, prprias do

hiperurnio e no o homem que, no aceitando passivamente as informaes fornecidas pela

experincia imediata, desenvolve uma postura de questionamento prprio sobre a realidade,

interroga-se a si mesmo e metodolgica e ordenadamente procura as razes e o fundamento

1 N. ABBAGNANO, Storia della filosofia I, UTET, Torino 1963, p. XVII.

2 Cf. CONCLIO VATICANO II, Gaudium et Spes, n. 1.

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do seu ser, buscando, como faziam os gregos, um instrumento fundamental e o nico

racionalmente possvel, para a soluo dos problemas da vida.

A confuso com relao filosofia, e a desinformao geral, que permeia mesmo o meio

acadmico, chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimricas no sentido de se

eliminar a Filosofia. Entretanto, cincia alguma pode se ocupar da macro realidade. O

empirismo no pode ser aplicado civilizao humana, mente, ao total. Quem estabelece a

comunicao entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia. Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexo sobre a unidade africana, que aqui fazemos

partindo da metafsica do termo pessoa.

Tal reflexo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vo

desafiando a unidade do continente africano. H uma verdade, hoje admitida por quase todos

e at pelos mais preconceituosos arquelogos, de que a humanidade e a civilizao

desenvolveram-se na noite dos tempos no bero deste continente gigantesco chamado frica3.

Temos conscincia de que a frica um imenso continente com situaes muito diversas; um

complexo e heterogneo mosaico de povos, lnguas, raas, culturas, etnias e religies, mesmo

dentro das mesmas fronteiras polticas. Embora esta imensido nos aconselhe a no fazer

generalizaes na avaliao dos problemas no nos impede de buscar e propor solues aos

problemas inerentes falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa.

1. Breve excursus histrico-filosfico do conceito de pessoa

1.1 A densidade semntico-etimolgica do termo pessoa

A densidade semntica do termo pessoa formou-se no tempo graas ao contributo cultural de

muitos files de reflexo. O conceito de pessoa tem, pois, um percurso rico, quanto complexo.

De recordar que na antiguidade greco-romana no se encontra bem claro o conceito de pessoa.

Todavia, seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias.

Etimologicamente, e segundo algumas pesquisas atentas, os primeiros indcios do termo

pessoa encontram-se no mbito da cultura etrusca. De facto, o termo phersu, utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria mscara4 passou a significar o indivduo

3 Cf. Carlos SERRANO Maurcio WALDMAN, Memria dfrica. A temtica africana em sala de aula,

Cortez Editora, So Paulo 20082, p. 75. Cf. Tambm, Luigi TRANFO, Africa. La transizione. Tra sfruttamento e

indifferenza, E.M.I., Bologna 1995, p. 269; Pedro F. MIGUEL, frica. Uma viso global, Viverein, Roma 2013,

p. 11. 4 Cf. Maurice NDONCELLE, Prosopon et persona dans lantiquit classique. Essai de bilan linguistique, in

Revue des sciences religieuses XXII (1948) 277-299; A. MILANO, Persona in teologia, Dehoniane, Napoli

1984, pp. 16-71.

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mascarado, a personagem que o actor representa no drama, ou seja, o indivduo humano,

moral e social5.

Nesta senda do indivduo mascarado, Edith Stein observa que visto que nas comdias e nas

tragdias se representavam personagens famosos, o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade, por isso, alguns definem a pessoa como uma

hipstase marcada por uma qualificada conexo com a sua dignidade 6.

No encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Bocio, que liga pessoa ao

verbo personare, aludindo amplificao da voz de quem fala por detrs da mscara. Assim,

pessoa , segundo Bocio, decta est volvatur sonus 7. Tambm no correcto afirmar que

pessoa seja a contraco de per se una, como quereria a proposta de Alano di Lilla8.

1.2 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ccero e Sneca, a evoluo do conceito de pessoa deu passos importantes sem,

contudo, chegar definio hodierna.

Do segundo sculo em diante, o conceito de pessoa entra no uso corrente, na onda do esforo

de clarificao exigida pelas controvrsias teolgicas sobre o dogma trinitrio. Porm, foi

com Bocio que o conceito de pessoa adquire o actual contedo terico. E isto no contexto da

clarificao conceitual sobre as questes teorticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade.

Segundo Bocio persona est rationalis naturae individua substantia (pessoa substncia

individual de natureza racional) 9. Bocio elabora esta definio, servindo-se do patrimnio

filosfico grego e latino. De facto, ele sistematiza os conceitos latinos de persona, natura e

substantia, estabelecendo uma equivalncia com os vocbulos gregos , ,

que na oscilao terminolgica do tempo eram usados de maneira equvoca e

confusa.

Com Bocio, a natura toma definitivamente o lugar de , entendida como essncia, e

substantia passa a traduzir o grego 10

. So poucos os filsofos que, no medievo, no

5 Cf. Maurice NDONCELLE, Prosopon et persona dans lantiquit classique. Essai de bilan linguistique, op.

cit., pp. 298-299. 6 Edith STEIN, Essere finito e essere eterno. Per una elevavazione al senso dellessere, Citt Nuova, Roma

1988, p. 380. 7 S. BOEZIO, Liber de duabus naturis, III; PL 64, 1344.

8 Cf. Enrico BERTI, Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico, in AA.VV., Persona e

personalismo. Aspetti filosofici e teologici, Fondazione Lanza, Padova 1992, p. 43. 9 S. BOEZIO, Liber de duabus naturis, III; PL 64, 1343.

10 Cf. Claudio MICAELLI, Natura e Persona nel Contra Eutychen et Nestorium di Boezio: Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici, in Luca OBERTELLO (a cura di), Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definio de Bocio satisfatria, porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir, precisando-lhe o significado.

Esta definio, pessoa substncia individual de natureza racional que, durante o medievo,

faz cultura e caracteriza a tradio teolgica latina, surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos, os quais sustentavam que, em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

unio permanente e moral; e contra os monofisistas que sustentavam a existncia em Cristo de

uma s natureza, a divina11

.

Na definio de Bocio, o termo pessoa tem um sentido mais especfico e refere-se estrutura

fundamental e metafsica do indivduo, ou seja, substncia individual dotada de uma

natureza racional. Quer dizer, nem todos os seres naturais so pessoas, mas apenas aqueles

substanciais.

Por isso, a pessoa substncia individual. individual porque tem caractersticas que a

distinguem dos outros indivduos da mesma espcie; caractersticas que no so definveis

nem comunicveis aos outros. substncia porque existente em si, por si e em nenhum

outro. Dizer substncia individual significa, portanto, dizer que a pessoa no tem necessidade,

para existir, de aderir a um outro ser, e contm no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade, que divide com nenhum outro12

.

A pessoa igualmente de natureza racional. O seu conhecer no impresso na matria, nem

limitado por essa. Dizer natureza racional significa, por isso, que a pessoa no s exerce as

actividades conexas natureza, mas tem a capacidade de desenvolv-las, capacidade possuda

por natureza, ou seja com o nascimento13

. A pessoa , pois, o gau mais elevado de ser

substancial, porque essa consciente do seu ser substncia individual.

Toda a pessoa , portanto, antes de mais um indivduo. Mas ao mesmo tempo, muito mais que

indivduo, porque no uma personagem, mas uma substncia individual, que possui em si

uma certa dignidade em razo da sua racionalidade. Por isso, no basta afirmar que a pessoa

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott. 1980), Herder, Roma 1981, p. 336. 11

Fruto destas disputas a obra de Bocio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium,

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestrio. De recordar, porm, que desde

os primeiros sculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importncia com Tertuliano, os Padres

Capadcios, S. Agostinho e S. Joo Damasceno nos interrogativos teorticos que emergiam da Revelao e nas

controvrsias teolgicas acerca do dogma trinitrio. Tais controvrsias se concluram com a frmula das trs

pessoas ou hipstases na nica substncia, ou natureza divina. Os Padres da Igreja, separando de maneira

definitiva o conceito de da referencia personagem

trgica ou cmica, deram flego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambm na reflexo filosfica (cf. Gregorio DI NISSA, La grande catechesi, CItt Nuova,

Roma 1982, p. 51; Gregorio NAZIANZENO, I cinque discorsi teologici, CItt Nuova, Roma 1986, p. 175).

12 Cf. San Tommaso DAQUINO, Questiones disputatae, De potentia, q. 9, a. 2; ID., Summa Theologiae, I, q.

29, a. 13

Cf. E. BERTI, Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico, op. cit., p. 48.

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algo de individual e nem mesmo que uma substncia ou uma natureza, para defini-la do

ponto de vista metafsico.

Visto que a individualidade acidente, isto , pertence quilo que existe como perfeio e

caracterstica de um sujeito, e enquanto a substncia e a natureza indicam o que prprio da

espcie, ocorre a substncia individual de uma natureza racional, para que exista pessoa.

Ocorre, portanto, que se refira a uma substncia individualizada de um ser racional, para que

exista pessoa do ponto de vista metafsico. Somente um ser racional pode corresponder

dignidade de pessoa, porque pessoa , enfim, um ser em si, que no pode ser substitudo por

um outro e que capaz de operaes prprias e racionais.

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da frmula de Bocio, So

Toms elabora a sua definio de pessoa como subsistens in rationali natura 14

.

Com a frmula subsistens in rationali natura, So Toms evidencia no s o aspecto comum

pressuposto universalmente aceite da pessoa assim como expresso pela substncia

individual da definio de Bocio, mas evidencia sobretudo aquele individual, isto , o

existente considerado na acepo mais prpria, ou seja o seu ser nico e irrepetvel. De facto,

na definio de Bocio a substncia individual, parece ser concebida como individualidade. A

individualidade, porm, determinao da coisa e no ainda do quem; uma conotao

natural da pessoa e no da mesma pessoa.

So Toms condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito h no universo; e por isso afirma: persona significat id quod est

perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura 15

.

Pessoa a natureza racional que existe num indivduo concreto. Por isso, somente aquilo que

subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa. E o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade pessoa, ou seja, quia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

persona 16

.

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana no a abstracta razo como parece

indicar a natureza racional da definio de Bocio mas a racionalidade possuda por um

subsistente, ou seja, de um ser concreto. E este em virtude de um actus essendi prprio, que

confere actualidade substncia e s suas determinaes. Tudo isto que a pessoa sabe, quer e

faz, brota do prprio acto em virtude do qual aquilo que .

14

Cf. S. Tommaso DAQUINO, Summa Theologiae, I, q. 29, a. 3. c. 15

Ibidem. 16

Ibidem.

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Da elaborao de So Toms compreende-se essencialmente o carcter racional da pessoa;

racional enquanto capaz de ser consciente do prprio ser17

. A pessoa todo o indivduo de

natureza racional, livre, atravessado por tradies e culturas, responsvel, relacional,

inteligente, volitivo, dialogante e por isso, fundamento de unidade entre indivduos e povos.

2. Do conceito da pessoa construo da unidade africana

Antes da conquista das independncias os colonos procuravam inflamar as diferenas

fechando as colnias em si mesmas, num clima de reserva ciumenta, de distncia e quase de

desconfiana. Com as independncias os encontros entre pases antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaborao. E com a criao da

Organizao da Unidade Africana (OUA), que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros, de rgo de dilogo e de troca de experincias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos, o esforo para a unidade se exprimiu de modo mais visvel.

Contudo, a vocao unidade uma caracterstica natural da pessoa humana porquanto esta

essencialmente livre, relacional e dialogante. E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espcies de seres. Todos os homens tm as mesmas tendncias e

exigncias fundamentais quanto ao anlito da unidade. Todo o homem chamado comunho

e est aberto comunicao e ao dilogo.

O homem capaz, pois, de intercmbio, de dar-se aos outros e deles receber, porque a sua

natureza o abre comunho, comunicao e unidade. A sua natureza relacional e

dialogante no apenas uma necessidade mas sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egosmo e aberto aos conflitos. De facto, o homem

aquilo que pela sua inconfundvel individualidade, mas tambm pelo seu ser aberto ao

outro e s realidades extrnsecas, por causa da sua sociabilidade. A sociabilidade , pois, uma

expresso da sua humanidade, e a unidade, uma sua actuao.

Por isso, a unidade africana pressupe a unio consciente entre africanos, e o comum e

orgnico esforo, para conseguir o bem humano integral. A unidade africana, na base da

descoberta da comum humanidade, articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos, e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional confuso com o termo intelectual. Na verdade intelecto e razo diferem. O

intelectual um conhecimento simples e imediato, enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf. S. Tommaso DAQUINO, Summa Theologiae, I, q. 59, a. 1).

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povos do continente para alcanar o bem comum18

.

Enfim, a unidade encontra a sua raiz na essncia metafsica da pessoa humana e exprime, por

conseguinte a estrutura ontolgica dos africanos e diz respeito prpria possibilidade da sua

realizao. Por isso, as divises e os conflitos lupescos no fazem parte da normalidade

africana.

Portanto, apesar de frica ser um imenso continente com situaes muito diversas; um

complexo e heterogneo mosaico de povos, lnguas, raas, culturas, etnias e religies, mesmo

dentro das mesmas fronteiras polticas, o continente africano explica-se como unidade na

diversidade. E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos garantida

metafisicamente pela origem, pelo facto mesmo de sermos africanos do Cabo ao Cairo, de

Dar es-Salaam a Dakar mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas.

O fundamento metafsico de origem representa uma unidade indivisvel na realidade histrica,

uma fora inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos, a incomunicabilidade geogrfica, a hipocrisia,

as tenses e os desejos separatistas, e conduzir a um compromisso claro entre os africanos,

respeitando as suas diversidades e os seus interesses recprocos; empenhando num projecto

comum para uma frica mais humana e mais social, em que reinem sempre o respeito mtuo,

o reconhecimento e a proteco dos direitos humanos fundamentais e se faa valer o lado

melhor dos africanos, os valores basilares da paz, da justia, da liberdade, da tolerncia, da

participao e da solidariedade. Este fundamento metafsico de origem importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos mais forte do que o que os

separa.

Contudo, a unidade africana deve ser construda e aprofundada de forma dinmica e

incessante, porque os pressupostos da unio, representados pelos factores geogrficos; pela

multiplicidade das tradies regionais, nacionais, culturais e religiosas; pelos interesses

econmicos, trocas econmicas pacficas e seguras; pela herana e tradies socioculturais

africanas mais autnticas, em si no bastam para criar a unio poltica. necessrio voltarmos

metafsica da unidade e reelaborar juntos a histria da frica que alm das muito boas

experincias de unidade ainda caracterizada, nalguns casos, por desentendimentos, lutas

fratricidas entre etnias e at por conflitos blicos.

Com razo, Kwame Nkrumah, apelava, na sua obra A frica deve unir-se, unidade, no

tanto para indicar a necessidade ou condio de estar unidos, mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf. L. F. KAMBALU, A democracia personalista. Os fundamentos onto-antropolgicos da poltica luz de

Pietro Pavan, Paulinas, Lisboa 2012, pp. 51-64.

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porque os pressupostos geogrficos e econmicos, por si s, no bastam para criar a unio.

Ocorrem instituies vinculativas bem como vontade e conscincia de pertena, a um mesmo

continente chamado frica. A conscincia deve preceder formao poltica da unidade

africana que no se poder alcanar de forma duradoira sem valores comuns. Outrossim,

ocorre recordar que a unidade em si um bem somente quando ordenada, quando responde

razo objectiva da verdade, da justia e do bem. O mesmo dizer que a unidade um bem

que vale tanto quanto respeita o que h de valor nas partes que a compem.

A unidade perde valor quando se realiza de modo macio, esmagador, absoluto, destruidor e

totalitrio abolindo o espao que permite o dilogo, destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem, tomam decises comuns e operam colaborando. Por isso, sem liberdade nem

dilogo a unidade africana seria impossvel porque a frica no seria mais o espao onde cada

indivduo aos outros as prprias capacidades em vista do bem comum, segundo princpios de

igualdade substancial. Neste sentido a frica seria um conjunto de indivduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laos entre si. Cada um veria o outro no como um

semelhante, com quem chamado a relacionar-se e tomar iniciativas, mas um inimigo de

quem se defender.

Enfim, para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poltica que envolva todas as pessoas e foras a todos os nveis na busca do bem comum, ou

seja, na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem s exigncias

intrnsecas e imutveis da natureza humana. Trata-se, pois, de condies econmicas,

jurdicas, morais e religiosas que tornam possvel e favorecem o conseguimento pleno e fcil

do desenvolvimento integral das pessoas.

As exigncias histricas e os significados de unidade so sempre mutveis. Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se, a nvel ontolgico e histrico, ou seja,

consoante a efectiva existncia daquele princpio originrio em cada homem e povo ou

consoante o plano social, poltico, religioso e cultural em que se actua a unidade. De facto,

no poucas vezes, os prprios acontecimentos histricos e as prprias diferenas exigem que

se redefinam os instrumentos polticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaes entre povos e Estados, que vo alm do que no passado no foi possvel.

Tais diferenas podem provir de uma profunda oposio e de uma divergncia quanto ao fim.

As diferenas podem provir tambm de uma dupla viso de um mesmo objectivo. Seja qual

for a origem das diferenas a atitude sadia compreender as realidades e promover o dilogo

e ver como as prprias diferenas permitem situar melhor o objecto.

Por isso, mister que nos diversos mbitos, questes e temas sobre os quais incumbe o risco

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da diviso, os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma s voz, cultivando e

empenhando-se intensa, livre e conscientemente ao dilogo.

O dilogo fundamental para a vida poltica sobretudo quando exerce a funo da busca da

verdade e do bem. No caso da frica o dilogo torna-se uma exigncia insubstituvel para

superar as divises, intolerncias e fundamentalismos que, infelizmente se vo intensificando

na actualidade. O dilogo igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histricos, culturais, raciais, sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade, a justia e a paz, no s por causa do pluralismo tnico, cultural, racial, social e

religioso do continente, mas sobretudo por causa do seu pluralismo poltico, pois, atravs do

dilogo cada indivduo ou povo enriquece o prprio ponto de vista e converge para as noes

de verdade e de bem humano e se empenha a potenci-las corresponsavelmente para a

unidade.

O dilogo tambm essencial para a unidade poltica, social e econmica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos, pois, tal como os povos tambm

os Estados tm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si prprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente. Por isso, o isolamento seria um impedimento

insupervel para a unidade e a realizao do prprio continente africano.

Tal dilogo deve basear-se em valores, princpios e normas aceites, e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito; pela promoo da justia, da paz e da liberdade para o

continente africano; pela experincia da verdade e pela busca constante de compreenso dos

fundamentos que tm plasmado a Unio Africana.

O dilogo no se processa sem dificuldades e alcanvel atravs da discusso e

argumentao; reconhecvel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e possvel a diversos nveis: no plano da experincia quotidiana

para as questes sociais, comunitrias, familiares, ticas e ecolgicas; no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento recproco; no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertena a um todo continental; no plano poltico para questes que

dizem respeito segurana econmica, cultural e jurdica; no plano militar para questes que

dizem respeito garantia da segurana e integridade territorial bem como erradicao de

conflitos em frica.

Trata-se de um dilogo gradual e sempre pronto a recomear. Um dilogo que no obriga, mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado; trata-se de um

dilogo que no apenas instrumental nem nasce de tcticas ou de interesses, mas um dilogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legtima diversidade promove o respeito, a

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concrdia e a colaborao.

Enfim, trata-se de uma actividade que apresenta motivaes, exigncias e dignidade prpria e

implica um mtuo esforo de compreenso por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem, alm dos laos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns, as razes ideais em que cada um deles se inspira para realiz-los.

Outrossim, tal dilogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente benficos, como o

aumento da maturidade dos africanos numa penetrao mais autntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a frica se move a resoluo dos problemas, a

superao dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naes bem como pela segurana e bem-estar do continente africano.

Tudo isso levanta muitos e difceis problemas de ordem econmica, social e poltica. Porm,

est de facto que diante das diferenas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente, s a conscincia da comum humanidade e o dilogo franco, lcido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de tolerncia e aceitao mtuas para a realizao de uma

convivncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana, da mobilidade interna, da integrao scio-econmica do continente e do

florescimento de um mercado interno. Isto far tambm com que os africanos no sejam

meros fornecedores de matrias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros, mas produtores e consumidores de produtos do seu prprio continente.

Um dilogo no inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade, mas um dilogo

franco na base da conscincia de pessoas humanas e do respeito recproco. De facto, sem

dilogo franco no h progresso porquanto o progresso liberdade, e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres.

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HISTRIA A COLONIZAO, UMA REFERNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZAO DE FRICA: UMA PROVOCAO FILOSFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir, a partir das teses de Frantz Fanon, sobretudo

aquelas formuladas nos Condenados da Terra, a ideia de uma suposta misso civilizadora

subjacente na inteno colonizadora consubstanciada na equao colonizao igual a

civilizao e paganismo igual a selvageria. Partindo de uma indagao da validade criticvel

da equao em epgrafe, cruzou os factos s doutrinas que versam sobre o fenmeno da

colonizao de frica, e chegou a depreender, com uma certa objectividade, de que a

colonizao em frica, tal ficou visto por Fanon, foi mais um movimento de

despersonalizao e de coisificao dos africanos em geral e, dos negros, em particular do que

um projecto de humanizao e de emancipao dos indgenas de frica negra. Ficou, portanto

evidente, ao longo deste trabalho, de que a colonizao foi uma violncia que extraiu a sua

originalidade na substantivao do colonizado. Uma violncia que, no s, presidiu ao arranjo

do mundo colonial, como tambm, ritmou e alimentou a destruio antropolgica e ontolgica

do negro-africano, incluindo todas as suas formas sociais; arrasou completamente os seus

sistemas de referncias econmicas, os seus modos essendi et operandi e decretou a crise

scio-cultural dos povos negros de frica.

Palavras-chaves: colonizao, civilizao, violncia, despersonalizao, descolonizao,

emancipao.

Abstract

The present study sought to deconstruct, from the theses of Frantz Fanon, especially those

formulated in "The Wretched of the Earth, the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation "colonization equal to

civilization and paganism equal to savagery. Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de vora; Mestre em Cincias da Educao pela mesma

Universidade; Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catlica de

Angola.

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the phenomenon of colonisation of Africa, this was seen by Fanon, was more a movement of

depersonalization of Africans in general, and the negroes, in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa. Therefore became evident

throughout this work, that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized.

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world, as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African, including all

its social forms; wiped out completely their systems of economic references, their modes

"essendi et operandi" and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa.

Key words: colonization, civilization, violence, depersonalization, decolonisation,

emancipation.

Introduo

A reflexo em torno dos desafios da descolonizao em frica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poltico sobre o estado da nao de muitos Estados africanos,

passados que so, aproximadamente, seis dcadas desde que muitos deles se tornaram

independentes. Esta actualidade pode, todavia, no parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizao. De facto, pode parecer anacrnico e mesmo sintomtico falar da

colonizao para tentar justificar, a qualquer preo, o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoltica, na actualidade, de muitos Estados africanos independentes. Bom ou malgrado,

essa sensao de anacronismo que sugere uma espcie de pok, em torno do fenmeno

colonial, perde a sua legitimidade na medida em que a pertinncia do discurso sobre a

descolonizao de frica torna, ipsis verbi, procedente o discurso sobre a colonizao. Ou

seja, toda a fala em torno da descolonizao sugere, de uma ou de outra forma, uma incurso

sobre a colonizao. Vamos, ao longo deste trabalho, procurar descortinar o conceito de

colonizao na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir nossa cogitao sobre a descolonizao. Para o efeito,

propomos a seguinte estrutura: 1. Em busca do justo significado do conceito de colonizao a

partir da analtica de Fanon; 2. Indagando sobre a validade criticvel da equao colonizao

igual a civilizao; 3. Do entendimento terico dos conceitos em anlise a uma possvel

deduo da sua correlao; 4. Da anlise de algumas doutrinas e factos a uma possvel

verificao da equao de partida; 5. A colonizao como projecto de modernizao de

frica: clarividncia ou equvoco? 6. Desconstruindo o mito de uma civilizao humanista,

erguida na recusa do humano enquanto diferente; 7. A compartimentao maniquesta do

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mundo colonial uma anttese pretenso de uma suposta misso emancipadora dos

africanos subjacente na inteno colonizadora.

1. Em busca do justo significado do conceito de colonizao a partir da sua analtica

em Fanon

No possvel falar da descolonizao em Fanon, sem falar da colonizao, enquanto

referncia inofuscvel e movimento historicizante que confere corpo e sentido, matria e

forma a qualquer anlise crtica do projecto de descolonizao de frica. Esta , de resto, a

lgica que suporta o argumento de Fanon, que passamos a transcrever:

a descolonizao [] um processo histrico [], no pode ser

compreendida, no encontra a sua inteligibilidade, no se torna transparente

para si mesma, seno na exacta medida em que se faz discernvel o

movimento historicizante que lhe d forma e contedo a opresso colonial.

(Fanon, 1968, p. 26 ou Fanon, 2002, p. 452).

Desde esta perspectiva, a anlise sobre a colonizao ganha uma particular relevncia, na

medida em que se nos apresenta, no s, como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliao sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleolgico da luta

dos africanos, rumo sua efectiva emancipao e reintegrao no universalismo humano,

mas, tambm, como pretexto para (re) pensar o caminho de superao das novas formas de

colonizao que grassam ainda frica e que, em si, constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizao efectiva do continente africano. Importa, desde j, sublinhar que esta

reflexo de tipo histrico no encontra o seu real significado na descrio dos factos que ela

encerra, nem na narrao histrica que a constitui. O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizao vislumbrado pelos africanos, passados que so cinquenta e sete anos, aps a

morte de Fanon.

Tem-se, com efeito, e no poucas vezes, associado a colonizao de frica a um projecto

civilizador ou modernizador que ter sido frustrado ou interrompido por uma espcie de

ambio irracional dos africanos, admitindo-se, deste modo, a hiptese segundo a qual a

colonizao ter sido um projecto interrompido de civilizao (modernizao) da frica e

dos africanos. De recordar que o discurso sobre o colonialismo de Aim Csaire resulta,

precisamente, da necessidade de dissertar sobre uma possvel analogia entre a colonizao e

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a civilizao. Provocao ou no, mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binmio colonizao-civilizao pelo Franco-Senegals Alioune Diop, fundador e

Director da Revista Prsence Africaine em Paris, 1950, insinua a existncia de tendncias

que aproximavam a colonizao civilizao. Esta provocao, tal como nos parece ser, no

deixa de ser, no plano metodolgico, um bom ponto de partida para uma discusso mais

objectiva e crtica da concepo fanoniana do colonialismo, porquanto nos permite lanar a

discusso levantando uma srie de perguntas, tais como: 1. possvel sustentar, por via de

argumentao, uma provvel analogia entre os dois conceitos em anlise, a saber: colonizao

e civilizao? 2. Ter havido, realmente, um plano colonial de civilizar ou modernizar a

frica em proveito dos africanos? 3. Era sensato legitimar a opresso colonial a partir dos

progressos alcanados nas colnias de frica durante a administrao colonial? Dito de outro

modo Ser que os nveis de desenvolvimento conseguidos em vrios domnios: social,

administrativo, tecnolgico e poltico, sob o regime colonial, conferiam, efectivamente, a

merecida dignidade a frica e aos africanos? 4. Ter a frica, realmente, recusado o

desenvolvimento, como diria Axel Kabu, ao engajar-se na luta pela descolonizao? 5. E hoje,

em plena era ps-colonial, podero os africanos afirmar, com realismo, franqueza e

frontalidade, que os ideais que nortearam o projecto da descolonizao foram alcanados? 6.

Ter alguma razo de ser o postulado, segundo o qual, o projecto de descolonizao ter sido

abortado, na sua menor idade, admitindo-se, deste modo, um possvel equvoco entre os

lderes e os intelectuais africanos que tero confundido as independncias (enquanto meio)

com a descolonizao (enquanto fim da longa marcha, usando a expresso de Ren Dumont,

rumo a um continente mais humano, mais livre, mais autnomo, mais justo, e mais prspero)?

Ao longo desta reflexo, tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas, tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon.

2. Indagando sobre a validade criticvel da equao colonizao igual civilizao

Qual ter sido o verdadeiro retrato do colonialismo: um processo de civilizao dos

chamados indgenas ou um movimento de despersonalizao e de coisificao dos povos

africanos? evidente que, para Fanon, esta questo nem sequer merece ser colocada. De

facto, o jovem martinicano bastante incisivo e objectivo na sua anlise. Para ele, a

colonizao , antes de mais, uma violncia, conceito que, de resto, d ttulo ao I captulo

do Les Damns de la Terre (Fanon, 1968, p.23 ou 2002, p.448). Na sua ptica, a violncia foi,

precisamente, o elemento estratgico e estruturante da lgica colonial. Trata-se de uma

violncia que extrai sua originalidade na substantificao do colonizado que a prpria

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situao colonial segrega e alimenta. Alis, o encontro entre o colonizador e o colonizado, diz

Fanon, teve sempre o retrato de violncia e nunca foi expresso de uma vontade civilizadora

ou humanizadora. Pode se ler em Fanon que a colonizao a categorizao de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violncia e sua coabitao ou melhor,

a explorao do colonizado pelo colono foi levada a cabo com

grande reforo de baionetas e canhes [] A violncia [] presidiu

ao arranjo do mundo colonial, [] ritmou incansavelmente a

destruio das formas sociais indgenas, [] arrasou completamente

os sistemas de referncias da economia, os modos da aparncia e do

vesturio do colonizado (Fanon, 1968, pp. 26 e 30).

possvel aproximar, em boa verdade, uma situao de uma clara alienao antropolgica,

fazendo f descrio de Fanon, a um projecto de civilizao, sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradio? De notar que este mesmo entendimento de Fanon

corroborado pelo seu antigo mestre, Aim Csaire, que parafraseamos nos seguintes termos: a

colonizao, enquanto violncia, no sentido mais bruto da palavra, uma autntica anttese da

civilizao, ela, por natureza, desciviliza, simultaneamente, o colonizador e o colonizado. A

colonizao legitima o ilegtimo e normaliza o anormal: pode-se matar, vontade, na

Indochina, torturar em Madagscar, prender na frica negra, seviciar nas Antilhas (cfr.

Csaire, 1978, pp. 7 e 14). No preciso muita hermenutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violncia constitui o modus operandi prprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaas conseguem disfarar. A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizao da civilizao. E para deixar tudo a nu, Sartre faz a seguinte inconfidncia:

nossos soldados no ultramar rechaam o universalismo metropolitano,

aplicam ao gnero humano o numerus clausus; uma vez que ningum pode

sem crime espoliar seu semelhante, escraviz-lo ou mat-lo, eles do por

assente que o colonizado no o semelhante do homem. Nossa tropa de

choque recebeu a misso de transformar essa certeza abstrata em realidade: a

ordem rebaixar os habitantes do territrio anexado ao nvel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradies, para substituir a lngua deles

pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa (Sartre, Les

Damns, 1961, p 9)

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Esta violncia que parte do plano simblico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indgenas feitos estrangeiros na sua prpria terra, como foi o caso do

cdigo civil imposto aos argelinos, visando regular o direito propriedade e herana com a

nica finalidade de desterrar os autctones, tirando-lhes o que de mais precioso tinha a sua

prpria terra. De realar que o referido cdigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-mdia francesa e a sociedade tribal, como estratgia de expropriao de terras

aos autctones, atravs de polticas especulativas. (cfr. Sartre, 1967, p.39).

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os modus essendi et operandi do colonialismo

configuravam, em certa medida, aquilo que Sartre chamou de imoralidade narcisista da

ambio ocidental da qual emerge o impulso que modifica, inevitavelmente, qualquer

indivduo que adere dinmica colonial, dando-lhe boa conscincia e boas razes de ver no

outro (no branco) um simples animal. Esta constatao sartriana valida, sem qualquer

sombra de dvida, a convico de Csaire para quem o colonialismo brutalidade,

intimidao, crueldade, sadismo, choque, violao, roubo, desprezo, culturas obrigatrias,

desconfiana, massas aviltadas, ausncia de contacto humano, relaes de dominao e de

submisso que transformam o negro colonizado em criado, ajudante, comitre e instrumento de

produo (cfr. Csaire, 1978, p.25). A partir destes pressupostos torna-se, de facto, foroso

concluir que no existe, tal como defende Fanon, qualquer sustentabilidade, quer

argumentacional, quer factual para a validao da equao colonizao igual civilizao,

pois os factos atestam que colonizao o oposto de civilizao. Mas uma dmarche

etimolgica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano terico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem.

3. Do entendimento terico dos conceitos em anlise a uma possvel deduo da sua correlao

Para fundamentar, com maior objectividade, o alcance da deduo decorrente da narrativa de

Fanon em relao a conjecturada correlao entre os dois conceitos em anlise, pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos, no sentido de os tornar mais

inteligveis para, da, depreender o seu justo significado e, consequentemente, confirmar ou

infirmar a suposta correlao entre ambas. Convm, no entanto, sublinhar que o carcter

polissmico dos conceitos em epgrafe no nos permite ignorar o facto de que no to fcil,

quer do ponto de vista conceitual, quer do ponto de vista factual, traar a linha de

convergncia ou de divergncia entre eles, pois o prprio carcter multidisciplinar que o

conceito de civilizao envolve, hoje, confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogneo, linear e conclusivo. Acresce-se a este dado o facto de

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que, nos dias que correm, o conceito de civilizao reivindicado como objeto de estudo da

antropologia, da cincia, da cultura, do direito, da histria, da filosofia poltica, da sociologia

poltica, da religio, etc., proporcionando-lhe um enquadramento epistmico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semntica. No entanto, um recuo estratgico e

metodolgico ao sculo das luzes, onde o significado do termo civilizao emergiu da

prpria raiz etimolgica do conceito civilis, civis cujo entendimento remetia aco

de tornar civil ou urbano, pode permitir uma espcie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possvel analogia conceitual destes dois termos.

A Enciclopdia Luso Brasileira da Cultura no foge muito desta percepo quando define a

colonizao como um fenmeno sociopoltico baseado na dependncia de um grupo humano

ou de um territrio a um outro que exerce nele influncias demogrficas, econmicas,

culturais, sociais ou polticas. Entendimento luz do qual alguns tericos, nos sculos XIX e

XX, basearam a sua definio de colonizao como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza, por conta prpria, um territrio habitado por povos de cultura

inferior, estendendo a sua soberania, desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas,

segundo o princpio da civilizao. Observa-se, aqui, a misso civilizadora subjacente ao

conceito da colonizao, enquanto fenmeno sociopoltico, cuja meta levar as colnias ao

desenvolvimento cultural, social, econmico e cientfico, ou seja, modernizao do territrio

ocupado. Este , de resto, o significado que decorre do entendimento filolgico do conceito de

colonizao cuja estrutura originria se funda em torno de dois pressupostos basilares,

nomeadamente: o cultivo da terra, isto , o desenvolvimento econmico, e o cultivo dos

homens, ou seja, a promoo sociocultural e econmica das populaes consideradas na

posio receptiva (cfr. Enciclopdia Luso Brasileira da Cultura, n5, p.996ss).

De salientar que o conceito de civilizao emergiu, e muito provavelmente, antes de qualquer

outro pas, no contexto sociocultural francs e fazia referncia, essencialmente, a trs

dimenses que vale a pena enumerar: a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitria; a segunda fazia aluso ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo; a ltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem, isto , o homem moderno distinguido pela cincia e pela tcnica, sobre o brbaro

(cfr. Enciclopdia LB da Cultura, n5). Neste contexto terico-conceitual, civilizar era, de

facto, sinnimo de trabalhar na integrao dos indgenas na comunidade metropolitana, na

modernizao da vida do campo, isto , levando as condies da cidade ao campo (energia

elctrica, gua potvel, educao escolar, assistncia mdica e medicamentosa) e na polio

do brbaro pela chamada cultura, cientfica e tecnolgica.

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Este parece ser o entendimento mais vivel para o exame a que nos propusemos, da

correlao destes dois vocbulos. O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade epistmica no Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea, editorial

Verbo, acresce, ainda mais, o nosso interesse por esta perspectiva (cfr. 2001, p.833). Segundo

o Dicionrio, ora referenciado, a civilizao a aco ou o resultado de transmitir

conhecimentos, comportamentos e tcnicas consideradas desejveis numa sociedade moderna.

Por conseguinte, civilizar dar caractersticas prprias de sociedades tcnicas, cientfica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas; ou, ainda, dar hbitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejveis numa sociedade desenvolvida. Conclui-se, pois, que,

do ponto de vista conceitual ou definicional, existem razes para fundamentar a presumvel

correlao entre os conceitos de colonizao e civilizao. Mas a no homogeneidade de

compreenso na interpretao e aplicao destes conceitos, partida, polissmicos e

multidisciplinares, e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descries fanonianas,

obrigam-nos a dar um passo a mais, espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo.

4. Da anlise de algumas doutrinas e factos uma possvel verificao da equao de

partida

Se possvel aferir, do ponto de vista definicional, uma certa correlao analgica entre os

conceitos que fundam a nossa equao de partida, tal como ficou patenteado no ponto

anterior, do ponto de vista doutrinal e factual, esta correlao carece de uma anlise

minuciosa que permita apurar se a propenso civilizadora inerente ao conceito de colonizao,

pelo menos no plano terico-conceitual, conseguiu vincar como aspecto norteador da aco

colonial, ou ter, por alguma razo, ficado ofuscada durante o processo colonial. Impe-se-

nos, a este nvel, retomar o ponto de vista de Fanon, para quem a colonizao , antes de

mais, uma violncia que se consubstancia na animalizao e na aniquilao dos (negros)

colonizados. Para sustentar o seu argumento, Fanon comea por relembrar a atitude do colono

que, em vrias circunstncias, fez recurso a uma linguagem zoolgica, usando expresses

como: [] hordas, fedor, bulcio [] e quando os quisesse descrever com mais exatido

[] recorria constantemente ao bestirio para designar os negros (Fanon, 1968, p. 31 ou

2002, p. 456). Esta animalizao do colonizado , para Fanon, a expresso mais eloquente de

uma violncia absoluta que desenraza o aviltado de sua humanidade. E para reforar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista, o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar, da melhor maneira possvel, a real

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dimenso semntica subjacente nos conceitos de indgena e selvagem que, em si, j no

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

frica, entre outros:

demografia galopante, massas histricas, rostos de onde fugiu qualquer trao

de humanidade, corpos obesos que no se assemelham mais a nada, corte sem

cabea nem cauda, crianas que do a impresso de no pertencerem a

ningum, preguia estendida ao sol, ritmo vegetal (Fanon, 1968, p. 32 ou

Fanon, 2002, p.457)

A validade histrica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento: sensato

falar de um projecto de civilizao de animais sem converter a prpria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal? Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizao cuja racionalidade o epicentro da sua aco, muitos preferiram

considerar as afirmaes de Fanon de irresponsveis e repletas de inverdades, qualificando o

prprio Fanon de agitador e instigador da violncia, ante a sua incisiva caracterizao do

sistema colonial. Dentre outros, podemos citar Alain Finkierkraut, cujo pensamento, mais do

que uma anttese s teses de Fanon, uma tentativa de demonstrao da derrota do projecto da

descolonizao; Pirre Bourdieu, de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon, paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010, p. 109),

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus, Simone de

Beauvoir, Germaine Tillion, Jasques Amrouche e outros que, como Fanon e Sartre, tiveram a

ousadia de denunciar, cada um sua maneira, a violncia inerente ao sistema colonial,

forjando novas noes de identidade poltica que continuam a influenciar o debate poltico na

actualidade.

No seu marxismo encontra Bourdieu, Burawoy procura mostrar que, apesar da enorme

distncia que separa o quadro terico-reflexivo de Bourdieu e Fanon, nomeadamente o

marxismo terceiro-mundista, de um lado, e a teoria da modernizao, de outro lado, o

pensamento destes dois autores apresenta inmeras similitudes, sobretudo, entre o Fanon do

Le Damns de la terre, de 1961, e o Bourdieu de Sociologie de lAlgerie, de 1958. Embora

no seja objecto deste debate, julgamos oportuno e procedente mencionar, a ttulo de

exemplo, algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violncia como uma das

caractersticas intrnsecas natureza prpria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas pginas 26 e 30 do Le Damns de la terre, de Fanon

(cfr. 1968), ao afirmar:

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o sistema colonial, enquanto tal, no poder ser destrudo seno atravs de

um questionamento radical. Todas as mutaes so submetidas lei de tudo

ou nada. Este facto est na conscincia, pelo menos, de forma confusa, quer

entre os membros da sociedade dominante, quer entre os membros da

sociedade dominada [] Mas preciso admitir que o primeiro e nico

questionamento radical do sistema aquele que o prprio sistema engendrou,

isto , a revoluo contra os princpios que o fundaram [] A situao

colonial criou o desprezvel e ao mesmo tempo o desprezo; mas criou,

tambm, a revolta contra o desprezo. Assim, cresce, cada vez mais, a tenso

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu, 1958, pp. 28 e 129).

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu, numa clara aproximao da

colonizao violncia. De facto, a violncia simblica e real depreendida em muitos

cenrios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial.

Vrios so os etnlogos e idelogos que, nas entrelinhas do seu pensamento, conferem uma

certa razo a um tal pressuposto. Alfred de Vigny, por exemplo, faz jus a esta violncia

simblica ao afirmar, sem rodeios, que o mundo no europeu um mundo animal, mundo dos

brbaros, mundo da morte e, consequentemente, uma ameaa ao mundo europeu. Partindo

deste postulado, deduz-se que, para De Vigny, a colonizao era um processo compulsivo de

civilizao, isto , uma opo para a vida e, tal como diz se se prefere a vida morte, tem de

se preferir a civilizao barbaridade, que no apenas um reino animal e de morte, mas,

tambm, uma ameaa civilizao. Em virtude disto, conclui De Vigny, nenhum povo tem o

direito de permanecer brbaro ao lado das naes civilizadas. Depreende-se daqui que a

nica lgica vlida a disjuntiva, to be or not to be, como diria Shakespeare, that is the

question (cfr. De Vigny, 2003, p.87).

Esta apreciao lacnica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que, como De

Vigny, tambm considera a colonizao como uma obra civilizadora, uma espcie de direito e

dever das sociedades evoludas. Folliet baseia o seu argumento nas caractersticas

heterogneas das sociedades, isto , nos desnveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras, quer nos planos econmico, administrativo, cultural, social e poltico, quer nos

planos cientfico e tecnolgico. Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizao

seria, possivelmente, o processo de supresso destes desnveis sociais, com o auxlio das

sociedades mais desenvolvidas. Pelo que a manuteno destes desnveis, como forma

hegemnica de controlo ou de manuteno de superioridade, foge do mbito da colonizao

para desembocar no campo de aco do colonialismo (cfr. Folliet, 1932, p. 75). caso para

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dizer que o entendimento terico de Folliet apresenta uma diferena ntida entre a colonizao

que seria, para o autor, o sinnimo de civilizao e o colonialismo que pode ser visto como

processo de explorao e subjugao das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas.

Mas preciso dizer que, se do ponto de vista conceitual, Folliet deu um tamanho salto

qualitativo, propiciador de uma possvel coabitao pacfica entre o colono e o colonizador,

aludindo misso civilizadora da colonizao, do ponto de vista prtico, o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades; sobretudo, quando o prprio autor considera a colonizao

como forma mais vivel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territrios subdesenvolvidos e valoriz-los para o bem-comum da humanidade, sem definir as

regras, nem as modalidades ou os vnculos contractuais para tal. Com efeito, Folliet considera

um dado assente que as naes economicamente mais evoludas tm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagens (Folliet, 1932, pp. 101 e 268). E

para no camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violncia, Folliet

defende a necessidade da manuteno das desigualdades entre o colonizador e o colonizado,

numa clara opo pelo colonialismo em detrimento da colonizao, contrariando a sua prpria

doutrina, com o seguinte posicionamento:

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores, de modo que o sujeito

colonizado no passe, numa vontade de vingana, a esquecer a sua

heteronomia absoluta; , portanto, til e necessrio que as mais vastas

propriedades, as mais ricas indstrias, os mais frutuosos comrcios pertenam

aos representantes da raa superior (Folliet, 1932, p.228).

Uma possvel deduo leva-nos, por um lado, a aferir a inadequao da equao de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analticos da questo em

estudo e a considerar, por outro lado, a emergncia da categoria de dominao como outro

elemento caracterstico da estratgia colonial na relao colonizado/colonizador. Este

princpio que , em si mesmo, o elemento estruturante da tenso e, ao mesmo tempo,

provocador da dialctica do senhor e do escravo, permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a frica em proveito dos

africanos.

5. A colonizao como projecto de modernizao de frica: clarividncia ou equvoco?

possvel compatibilizar o instinto de dominao com a vontade de promover ou de

emancipar? Guillaume Surna, num movimento contrrio ao nosso itinerrio, apresenta um

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discurso capaz de relanar a discusso. No seu artigo intitulado Psycanalyse et

anticolonialisme, Surna lamenta o desperdcio de uma oportunidade que teria resultado num

possvel encontro inter-civilizacional frutfero, e que, no entanto, ter sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial. Os textos surenianos insinuam que, do ponto de

vista prtico, a civilizao europeia nunca teve qualquer plano de promover, nem de

reconhecer as outras civilizaes como parceiras importantes para um crescimento conjunto.

A sua ambio foi sempre de conhecer para dominar e subjugar, como ficou explicitado nesta

passagem:

este encontro de civilizaes to diferentes poderia ter sido o momento de um

intercmbio fecundo e de um enriquecimento mtuo, como lamentou o

antroplogo francs Claude Levi-Strauss. Mas para a metafsica europeia,

desde a Grcia antiga, o saber foi sempre o equivalente de maitriser, isto ,

de dominar. As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partculas latinas e gregas. Os locais geogrficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridculos por

falta de qualquer relao com os espritos que os habitavam outrora (Surna,

1943, p. 4).

Diga-se, pois, de passagem, que foi assim na Grcia antiga, foi assim at ao sculo XX, e

nada justifica que no continue assim nos dias que ho-de vir. Mas a questo : qual o destino

que o instinto dominador das naes pode proporcionar espcie humana? Convm recordar

que, num passado mais recente da histria da Europa, a colonizao assumiu o carcter de

dominao dos povos e dos seus recursos naturais. Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenognese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e no para os civilizar. De facto, desde o incio do sculo XVII, com as grandes

navegaes e os descobrimentos das amricas, o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e, com ele, emergiu tambm a chamada

colonizao de explorao e de povoamento. A primeira forma de colonizao foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as colnias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metrpole. A segunda acontecia de maneira

espontnea, mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econmica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem a acorria.

Muitos estudos mostram que, no continente africano, este tipo de colonizao foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas arveis ou de pastagem dos autctones, bem como

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da supresso dos eventuais direitos que detinham1. Embora referindo-se a um contexto muito

mais pretrito ao de Fanon, Csaire, Sartre e outros, Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominao e de explorao como elementos catalisadores do interesse europeu em frica,

ajudando, assim, na desconstruo da hiptese de um possvel plano colonial para o

desenvolvimento de frica e dos africanos. De facto, Iva Cabral afirma que a experincia

ultramarina se resumia na conquista das praas do Norte de frica e na fixao de guarnies

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territrios tropicais de

frica, no pelo desejo de levar a civilizao s terras longnquas de frica, mas por causa

dos inmeros privilgios econmicos e sociais que tinham, os quais incluam, em alguns

casos, a sociedade escravocrata de produo no Atlntico (cfr. 2015, p.25).

Este suporte histrico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforo na posio de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anlise sobre as categorias de dominao e explorao como sustentculos da aco

colonizadora, quando, num tom autocrtico, apontando o dedo aos seus irmos europeus,

pinta, sem complexo nem contemplaes, o verdadeiro retrato da Europa colonial, permitindo

a apreenso da razo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opresso contra os

autctones em territrios colonizados, sobretudo em frica, nestes termos:

sabeis muito bem que somos exploradores. Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e, posteriormente, do petrleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metrpoles. Com excelentes resultados: palcios,

catedrais, capitais industriais [] A Europa, empanturrada de riquezas,

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes; entre ns

lucramos com a explorao colonial (Fanon, 1968: p. 17).

Se tomamos a srio as diversas constataes dos autores supra mencionados, torna-se

insustentvel a hiptese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da frica, num contexto de explorao no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo, isto , uma explorao no s de recursos naturais dos territrios colonizados, mas

tambm do seu prprio capital humano. Num tal contexto, aproximar a colonizao da

civilizao admitir, partida, uma ambiguidade semntica na compreenso destes dois

conceitos. Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade, Csaire diz que a colonizao no

deve ser confundida com uma empresa filantrpica, nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignorncia, da doena, da tirania e, at mesmo, da propagao de Deus e, muito

1 Cfr. https://pt.wikipedia.og/wiki/colonizao. Enciclopdia livre, 15/02/2017

https://pt.wikipedia.og/wiki/colonizao

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menos, com uma poltica de extenso dos direitos do povo colonizado, como pretendeu o

pedantismo cristo, que concebeu o referido equvoco, ao enunciar uma equao tica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa: cristianismo igual a civilizao e

paganismo igual a selvajaria, tornando-se, assim, responsvel pelas consequncias

abominveis decorrentes dos actos coloniais, cujas vtimas seriam os ndios, os amarelos e os

negros (cfr. Csaire, 1978, pp.14-15).

Pode se depreender dos textos de Csaire que a colonizao a manifestao, sem precedente,

da ganncia do aventureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do pesquisador de ouro

e do mercado, do apetite e da fora, tendo por detrs a sombra malfica projetada de uma

forma de civilizao que, a dado momento da sua histria, se viu obrigada, internamente, a

alargar escala mundial a concorrncia das suas economias. Se no, como se pode perceber

que a Frana, em particular, e a Europa, em geral, conseguissem, progressivamente, tal como

alude Dino Constantini, transformar os princpios democrticos e humanistas, to-reclamados

naquela circunscrio do globo, em instrumentos de justificao de dominao, com regulares

violaes, nas colnias, dando lugar a uma degenerao sem precedente de uma suposta

misso civilizadora da Europa em frica (cfr. Constatini, 2008, pp. 33 e 53)? Para pr a nu

o paradoxo de uma civilizao dita humanista, mas, na prtica, contestadora da prpria

humanidade no diferente, Constatini evoca o cdigo civil de 1791, que coloca as colnias

fora do direito comum, institucionalizando uma ciso social, juridicamente fundamentada,

entre as populaes brancas e negras, legitimando, ao mesmo tempo, a violncia, primeiro, no

plano simblico e, posteriormente no plano concreto, numa clara declarao de recusa de

reconhecimento e de integrao dos negros na vida da metrpole. preciso dizer que esta

fragmentao social, legitimada pelo cdigo civil supra citado, serviu de base para a

consagrao de uma nova compreenso do conceito da humanidade que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania, reservando-os apenas aos europeus.

o paradoxo, no caso da Frana, de uma Repblica que nunca deixou de contestar contra a

violncia de que tinha sido vtima em 1871, cegamente transformada numa autntica mquina

de violncia contra outros humanos, sem qualquer fundamento legtimo (cfr. Constatini, 2008,

p. 286). a contradio de uma civilizao ocidental defensora de direitos humanos, mas que

no hesita de reduzir os outros humanos categoria de sub-humanos; a estratgia de um

imaginrio ideolgico que, no plano psicolgico, confere legitimidade a todas as barbries dos

colonizadores sobre os colonizados; a ironia de uma civilizao cuja linha de demarcao

com a barbaridade no explcita. Nem mesmo a dignidade humana, universal e abstracta,

apregoada pelos moralistas desta civilizao, como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos, em especial, pela religio crist, mais consagrada ao servio do imperialismo do

que de Deus, na ptica de Csaire, conseguiu dissimular a violncia contra o colonizado.

6. Desmistificando o mito de uma civilizao humanista erguida na recusa do

diferente

Parece ter ficado evidente que a colonizao se identificou mais com uma dinmica de

explorao dos povos colonizados do que com um projecto de integrao dos indgenas na

metrpole. Iva Cabral ajuda-nos, mais uma vez, a perceber como a lgica do lucro presidiu a

todas as estratgias e legislaes coloniais. Numa perspectiva simplesmente histrica, a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substncia a este trabalho. Com efeito, Iva

Cabral afirma que as decises polticas do regime colonial criavam condies para que os

filhos da mdia e baixa nobreza portuguesa, neste particular, mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territrio recm-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias, da advindas, poderiam trazer (cfr. Cabral, 2015, p.27).

lgico conjecturar que, num tal jogo de lucro fcil, que no podia no contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos, como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros, a preocupao pela integrao dos africanos no clube dos

evoludos e emancipados seria uma espcie de atentado ao esprito de negcio. Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do outro o diferente, feito uma ameaa para o ns ideologicamente construdo e

consagrado como o nico paradigma possvel de humanidade na seguinte declarao:

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram, no sculo de Colombo, em reconhecer seus semelhantes, homens

degradados que povoavam o novo mundo [] Era impossvel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o antema escrito, no digo somente na

sua alma, mas, at na forma exterior do seu corpo (De Maistre, Joseph, Apud.

Csaire, 1978, p. 33).

Esta declarao deixa transparecer uma inferncia lgica quase irrefutvel de que o referido

antema dos indgenas s no se consumou ao extermnio, na perspectiva do colono, por

razes de ndole puramente utilitarista, como se depreende nesta passagem do j citado autor

nesta transcrio de Csaire:

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sob o ponto de vista de seleco, consideraria deplorvel o desenvolvimento

numrico [] dos elementos amarelos e negros, que seriam de eliminao

difcil. Se, todavia, a sociedade futura se organizar numa base dualista, com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raa inferior confiada

mais grosseira mo-de-obra, possvel que este ltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros. Neste caso, alis, no seria um embarao, mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre, Joseph, Apud. Csaire,

1978, p. 33).

Fica desvendado, nestes dizeres do De Maistre, o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial, consubstanciado na ideia e na pretenso de uma raa superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contgio. o drama de uma Europa

feita refm pelo seu prprio mito de pureza civilizacional uniracial; um mito enganoso,

pretensioso e pernicioso que pe em causa a aspirao de uma poltica enquanto exigncia de

construo de uma comunidade humana na qual a conscincia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condio sine qua non da

prosperidade e da sobrevivncia da prpria espcie humana. Lamentavelmente, este

entendimento da poltica como espao intermedirio onde se joga a liberdade e interaco dos

humanos, enquanto seres iguais e autnomos , constantemente, posto em causa, como diz

Martha Nussbaum, pelos apologistas deste mito que, em todas as sociedades, alimentam uma

falsa convico de pureza etnocntrica ou classecntrica, geradora de violncia contra os

excludos (cfr. Nussbaum, 2010, p. 48), comprometendo a possibilidade de fazer da poltica o

lugar por excelncia da profundidade humana.

Para compreender as mais profundas motivaes que levam os indivduos a um tal instinto

nihilista, Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi, que examina a possvel

conexo existente entre os domnios psicolgico e poltico. Com efeito, Gandhi conclura que

os desejos gananciosos, o instinto de agresso e a ansiedade narcisista so empecilhos para a

edificao de uma verdadeira civilizao humana. Pelo que a luta poltica pela construo de

uma civilizao humana, assente nos pilares da liberdade, empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro, a ganncia e o instinto de agresso narcisista

intrnsecos em cada indivduo (cfr. Nussbaum, 2010, pp. 48-50). E se partimos da hiptese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multides ao dio, ao genocdio e

instrumentalizao dos outros, tidos como da raa inferior ou sub-humana, ocorre mais em

contextos de pouca capacidade crtica ou de uma intelectualidade materialista ou

ventrloque, usando a expresso de Fabien Eboussi Boulaga, isto , de uma intelectualidade

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corrupta, desprovida de princpios ticos e humanistas, foroso concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizao dos africanos, no teria condies

efectivas de o fazer ante a sua ganncia e arrogncia eurocentristas, encorajadas por uma

jactncia ostensiva feito veneno, instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificao se d com o asselvajamento dos africanos, em geral, e dos negros, em

particular.

, precisamente, este instinto egosta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo. Para ele, o colonialismo uma necessidade