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As Interfaces de Dogville1
Ândrea Cristina Sulzbach2
Resumo
Esse trabalho analisa o conceito de cinema realista na linguagem cinematográfica do
filme Dogville (2003), obra do cineasta dinamarquês Lars von Trier que nessa produção
rompe com diversas regras do seu manifesto Dogma 95. Os suportes de seu processo
criativo são estudados dentro das diferentes interfaces que o constitui. Percebe-se a
influência das Artes Cênicas, o que origina um cenário não naturalista e convencional
ao cinema hegemônico. No entanto em relação à partitura da interpretação e preparo de
ator o cineasta se apóia em preceitos opostos, o antagônico presente em grande parte de
sua filmografia caracteriza seu estilo visual e gera uma mídia reflexiva.
Palavras-chave: cinema; teatro; comunicação.
Introdução
A primeira imagem em movimento pôde ser vista pela primeira vez em 1888 nos
Estados Unidos através do cinescópio, aparelho desenvolvido por Thomas Alva Edison,
essa invenção consistia em uma pequena caixa com uma lente, o espectador inseria uma
moeda e observava, isoladamente, as imagens. O cinematógrafo, patenteado pelos
Irmãos franceses Lumière, seguia um processo diferenciado, projetava a imagem em
uma tela, muitas vezes essa tela era um simples lençol ou mesmo uma parede. Devido a
essa diferença, em que o segundo aparelho se assemelha muito a forma de se exibir
filmes atualmente, se legitimou como a primeira exibição cinematográfica oficial a data
de 28 de dezembro de 1895, momento em que é fixada a inauguração do cinema com a
mostra, proporcionada pelos Irmãos Lumiére, de vários filmes de curta duração e a cave
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¹ Trabalho apresentado à disciplina Teorias da Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. 1º. Semestre de 2013. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Linha
de Estudos de Cinema e Audiovisual. E-mail:[email protected]
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O cinema sofre um desenvolvimento gradativo desde sua primeira exibição pública,
ampliação proporcionada por diferentes estilos visuais adquiridos por cineastas e
também decorridas de novas tecnologias que surgiram principalmente no que se
refere a câmeras cinematográficas e lentes. O mais recente degrau nessa escala de
evolução é a câmera digital, a qual interfere diretamente na linguagem
cinematográfica indiferente ao estilo visual do diretor.
Ao ser premiado com a Palma de Ouro por seu filme Dançando no Escuro, o qual se
tornou objeto de estudo ao utilizar em uma cena cerca de 100 câmeras digitais, o
cineasta Lars Von Trier proporcionou um novo espaço no universo cinematográfico
aos filmes que aderiram as recentes tecnologias. O facilitador desse processo, além do
cineasta já possuir certo prestígio ganho com seus trabalhos anteriores como o filme
Europa o qual recebeu duas premiações em Cannes no ano de 1991, se deve ao fato
de Trier ser autor de um manifesto, o Dogma 95, que obteve ampla divulgação na
mídia. O referido movimento se baseia em dez regras que definem os seus seguidores
como monges cineastas, os quais utilizam técnicas não convencionais na realização
de seus filmes, entre eles a utilização da câmera digital. A pesquisa em questão
pretende contribuir na ampliação bibliográfica através da análise fílmica da obra de
um cineasta de grande destaque que se ocupa da presente tecnologia vigente. O
cinema digital invade vertiginosamente o cenário cinematográfico e constrói
gradativamente novas teorias, por isso se faz necessário observar constantemente suas
interfaces. Optou-se por verificar quais instrumentos Trier aplicou ao desenvolver em
Dogville uma linguagem realista mesmo não seguindo os preceitos convencionais de
cenografia e quais meios lhe serviram de suporte para alcançar esse propósito.
O Manifesto e sua ruptura.
Em 1919 Dziga Vertov cineasta nascido em Bialystok (região que pertencia à Polônia e
depois a Rússia) cria o grupo de documentaristas-kinocs, o qual é regido por um
manifesto intitulado Conselho dos Três que entre outras considerações alega que os
filmes de aventura norte-americanos, apesar de contribuir com a evolução da linguagem
cinematográfica é desordenado e de modo algum fundamentado sobre o estudo preciso
do movimento. (XAVIER, 1977, p. 248). Em 1995 na Dinamarca, Lars von Trier e
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Thomas Vinterberg criam também um manifesto o Dogma 95, seus preceitos encontram
similaridade, e provavelmente influência, ao de Vertov principalmente no que concerne
certo repudio a linguagem narrativa clássica do então cinema hegemônico norte-
americano. Outra conexão encontrada nos dois manifestos seria o abandono das pesadas
câmeras 35 mm, no caso de Dogma a substituição acontece através da câmera digital
instrumento que anuncia uma nova forma de se fazer cinema. Apoiado em 10
mandamentos os intitulados monges cineastas configuram formas contrárias as
consagradas até então no meio cinematográfico, a transgressão nutre o que poderia ser
quase uma antropofagia e em forma de guerrilha conquista um espaço respeitável dentro
da sétima arte. Através de recursos tecnológicos recentes e criatividade, Trier consegue
proporcionar um acréscimo na evolução da linguagem cinematográfica. Sua carreira
basicamente se inicia com uma trilogia, após concluir o curso de cinema produz o
longa-metragem Elemento do crime (1984) um roteiro policial de sua autoria. “Passada
na Europa, cheia de simbolismos, e retratada por imagens que criam um clima de frieza
e estranhamento do começo ao fim da história. Seus enquadramentos, luzes e efeitos
especiais eram milimetricamente sobrepostos a fim de obter o que o diretor desejava”.
(MOURO, 2007, p. 04) Com esse filme Trier conquista o Prêmio Técnico no Festival
de Cannes, seguindo sua trilogia em 1987 Trier lança o filme Epidemia com um roteiro
metalinguístico inicia a introdução da câmera de mão e enquadramentos mais livres. No
ano de 1991 fecha a tríade com Europa, ambientado na Alemanha Pós Segunda Guerra
Mundial o filme lhe proporciona uma nova premiação no Festival de Cannes de 1991
em duas categorias: Grande Prêmio do Júri e Prêmio de Melhor Contribuição Artística.
Quatro anos mais tarde Trier funda o movimento Dogma 95 e em 1998 os conceitos de
seu manifesto são desenvolvidos em Os Idiotas que serve como um certificado de
autenticidade dogmática, além de fazer parte de sua segunda trilogia intitulada Coração
de Ouro composta pelo filme Ondas do destino de 1996 e Dançando no Escuro de
2000. E por fim a trilogia da Terra das Oportunidades inaugurada por Dogville (2003) e
Mandarley (2005), Wasington que estava previsto para 2007 nunca foi filmado, ao
menos até agora, em seu lugar surge Anticristo (2009) um filme que mais uma vez não
segue o convencional, a maioria das críticas são negativas ou em alguns momentos
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equivocadas ao ponto de afirmar que Trier estava perturbado e seu filme não passava
de um pretenso gênero de terror mal feito. Lima discorda da crítica e afirma:
Anticristo não é um filme de terror mal realizado simplesmente porque não é um
filme de terror. Trier se vale de elementos do terror para criar um filme
metafísico. A natureza do mal e sua relação com o feminino é o que interessa a
Trier e não pregar sustos e chocar. Em segundo plano, temos uma das mais
veementes sátiras às nossas modernas técnicas terapêuticas e à propalada
segurança e racionalidade do macho. Trier nos diz que não há sublimação
possível para o luto e o remorso, eleva a culpa a uma dimensão metafísica e,
neste patamar, não há terapia ou psicanálise que possa ajudar. Resta à
protagonista uma descida aos infernos, um retorno ao arquétipo da mulher-bruxa,
que, como filha de Satã, não precisa mais temer sua casa, isto é, a Natureza (por
isso, a personagem feminina, a certa altura, diz: “A Natureza é a igreja de Satã”).
(LIMA, 2010, p. 01.)
Além da provocação característica do diretor a questão da hipnose também é
retomada em Anticristo, além das divisões em capítulos que inicia com o prólogo. “O
prólogo não é desarticulado do restante do filme nem é um exercício esteticista estéril.
Ele é uma síntese precisa do filme, articula praticamente todos os símbolos da narrativa
e já mostra o entrelaçamento entre sexo, culpa e religião.” (LIMA, 2010, p.01).
Melancolia (2011) segue o cinema característico de Trier o qual não se pretende entreter
e sim suscitar uma reflexão, o filme narra a história de Justine (Kirsten Dunst), uma
jovem noiva que demonstra certo descontentamento em concretizar o ato do
matrimônio. Paralelo a isso existe a aproximação do gigantesco planeta Melancolia que
ameaça colidir com a Terra.
E para finalizar, seu último lançamento o longametragem Ninfomaniac (2013)
conta a história de Joe (Charlotte Gainsbourg), uma ninfomaníaca auto-diagnosticada,
que narra sua jornada erótica, desde jovem até os 50 anos.
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A Arquitetura Teatral de Dogville.
O cinema bebe na fonte do teatro desde seus primórdios, inclusive um de seus
fundadores Georges Méliès pertencia ao teatro e até mesmo alimentou o cinema com
suas experiências adquiridas nas Artes Cênicas. “Eisenstein foi um estudioso da arte
oriental e à encenação teatral Kabuki, de relativa influência em seu trabalho.”
(XAVIER, 2005, P.137).
Em Dogville Trier recebe também influências dessa linguagem, as Artes Cênicas lhe
empresta em um primeiro momento uma diferenciada concepção de cenário, pois segue
os princípios da opacidade, termo que Xavier aplica ao descrever elementos do cinema
que não seguem a narrativa clássica, os dispositivos interpelam o espectador,
possibilitando distanciamento ao revelar a própria presença dos sujeitos, sabe-se que a
casa do personagem do filme Ton Edison (Paul Betany) não é naturalista, mas existe
dentro do espaço-tempo do filme um ambiente destinado a esse objeto que aos olhos do
espectador passa a significar uma residência, esse recurso cenográfico escolhido por
Lars Von Trier segue os preceitos do teórico teatral alemão Bertolt Brecht, em que o
espectador é convidado a verificar a condição em que se encontra, quebra-se a sensação
de ilusão. Personagens contracenam com objetos imaginários, um exemplo se dá no
momento em que acontece a simulação do abrir de portas, os atores desenvolvem uma
marcação cênica de tal forma que torne o objeto quase físico, Trier acrescenta a isso a
sonorização, ouve-se o ranger e bater de portas. Mesmo que o objeto não se encontre
presente, através da encenação desenvolvida e trilha sonora, cria-se autenticidade e com
isso o espectador entra no jogo da encenação. “Através do teatro simbólico a palavra
escrita, embora não figurativa tem o mesmo poder de evocação de uma tela pintada.”
(ROUBINE, 1998, p.36)
Recurso que Trier aplica no cenário de Dogville ao informar o espectador de que
em determinado local há um cachorro, ou seja, opta representá-lo em forma de grafia,
algo comum no teatro mas pouco usual no cinema. O historiador de arte alemão
Panofsky descreve a apropriação simbólica no cinema.
O cinema organiza coisas e pessoas materiais, não é uma mídia neutra, em uma
composição que recebeu um estilo e pode até mesmo se tornar fantástica ou
excessivamente simbólica não tanto por uma interpretação do espírito de artista
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quanto pela manipulação efetiva de objetos físicos e de maquinário de registro.
(Panofsky, apud Aumont, 2004, p.118)
Em Dogville alguns objetos do cenário são imaginados e manipulados, o
maquinário de registro a câmera digital, presa ao corpo de Trier que conduz
secretamente seus enquadramentos, os atores não sabem com certeza qual plano está
sendo utilizado, a representação segue aberta como em um palco, onde em alguns
momentos pode estar sendo captado apenas a expressão facial ou o corpo inteiro do
ator.
Lars Von Trier durante as filmagens de Dogville explica ao ator Paul Betany, que representa o
personagem Tomas Edison, como deve proceder ao contracenar com os objetos imaginários.
Em relação aos figurinos nota-se uma preocupação por seguir com precisão a
indumentária da época, os opostos conflitando constantemente, o figurinista segue a
linha realista e o cenógrafo percorre o caminho simbólico.
A respeito da encenação dos atores Trier opta por uma linguagem naturalista
apoiada no método do teórico teatral russo Constantin Stanislavski.
Stanislavski, com efeito, nunca deixará de insistir, contradizendo Diderot, em que
o verdadeiro paradoxo do comediante não reside na simulação de emoções, e que
permanece sendo ele mesmo, enquanto faz da vida do personagem a sua própria
vida [...] é inerente á evolução que Stanislavski impõe à arte de representar: onde
vai parar o status do texto, quando a intervenção do ator se torna assunto de
imaginação, quando a atuação dramática se torna uma criação? (ROUBINE,
1998, p. 51-52)
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Esse processo de criação é aplicado no preparo dos atores do filme, o status do
texto/roteiro cede espaço para a intervenção do ator, Trier oferece aos seus atores a
oportunidade de improvisarem em cima de suas falas, em cima de sua obra, já que é
também o roteirista, essa cena pode ser vista em Dogville Confession.1
O Confessionário
O documentário Dogville Confession, posto que não possa ser chamado apenas de
making off, discorre sobre diversos momentos da produção do filme Dogville, em seu
início vemos um Lars Von Trier caminhando por entre pinheiros e narrando a incerteza
que um diretor sempre carrega durante todas as etapas que acarreta a realização de um
longa metragem, e essa seria a primeira confissão que de forma dogmática acontecerá
diversas vezes no documentário. Um pouco mais a frente, o cineasta explica ao ator
como ele deve abrir a porta imaginaria, ou seja, qual método deve seguir ao contracenar
com objetos não presentes na cena e nesse momento de direção de ator Trier repete
inúmeras vezes o termo gesto simbólico, adjacência muito aplicada no teatro chinês, o
qual é largamente sobreposto em grande parte de seu processo criativo.
Os atores chineses diferem de seus colegas ocidentais naquilo que é
“obviamente reproduzido por um narrador”, que o ator não é exigido a
“transformar-se completamente em sua personagem”, nem “entrar num estado
completo de transe”. A opinião de Brecht2 é que esta forma de atuação é “mais
saudável”. Atuar tem a importância central enquanto tais coisas como cenário,
luz e tudo o mais na qual o teatro ocidental depende para criar a ilusão da vida
cotidiana, torna-se insignificante ou irrelevante em muitas representações
clássicas não há cenário, uma mesa e duas cadeiras são suficientes para
desenvolver as necessidades de qualquer ambiente [...] A Ópera de Pequim exibe
aquilo que Brecht chama o efeito de estranhamento, utilizando-o habilmente. Ele
destaca que o palco do teatro chinês “não tem uma quarta parede”, o que o
distinguia da tradição teatral européia da época, que buscava a ilusão da vida
cotidiana. (ZUOLIN, 1982, p. 96-110)
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1 Documentário realizado concomitantemente com o filme Dogville. Direção de Sami Saif .
2 É importante que se destaque que Brecht assistiu a Ópera de Pequim em Moscou, em 1935, junto com o diretor
teatral Tairov e o cineasta Eisenstein entre outras personalidades do meio artístico soviético.
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As influências da arte oriental na obra de Brecht e consequentemente em Trier
são visíveis, mas se em questão de cenário Dogville se apropria do efeito de
estranhamento, já no que se refere à direção de ator o cineasta dinamarquês opta por
seguir o caminho oposto, o conflito se repete, se para contracenar com o cenário os
atores seguem preceitos do gesto simbólico no que concerne à construção do
personagem o caminho seguido é outro. O elenco não olha para a lente, se comportam
como se houvesse uma quarta parede, o limite entre objeto filmado e câmera se mantém
isolado. Elevando a um nível extremo na busca pela veracidade do personagem, Trier
obriga os atores a ficarem confinados 07 semanas no set de filmagem, um barracão na
Suécia com muita neve a sua volta e nada mais, em um processo que se apóia na
construção através da improvisação dos atores, a câmera está todo o tempo a serviço do
diretor. Uma câmera que invade e revela as minúcias de seus personagens, o close-up
constante aproxima o que o cenário distancia. A verdade interpretativa de Stanislavski
que identifica público e figura dramática, trabalhado paralelamente a elementos
simbólicos de cenografia são suportes a serviço de um diretor que pretende ultrapassar a
estética cinematográfica dominante, como ele mesmo afirma. “Detesto essa ideologia da
eficácia, tão americana”. (Trier apud Allain, 2004, p.E1).
O termo inglês confession que na tradução livre significa confissão, se deve a
uma sala isolada presente no barracão, set de filmagem do filme, destinada a elenco e
equipe falarem para uma câmera como se estivessem em um confessionário e declarar
seus pecados/ angústias, muitas delas geradas em decorrência do processo exaustivo
devido ao longo período expostos ao confinamento e a obrigação de manter
constantemente a incorporação do personagem. Os atores permaneceram a maioria do
tempo com os figurinos, um verdadeiro mergulho na criação do papel, os conceitos do
teórico Stanislavski levados ao extremo o que pode ser percebido ao decorrer das
confissões registradas no documentário, elas alternam do entusiasmado ou curioso para
narrações angustiantes e nervosas, gradativamente o elenco vai revelando a exaustão
extenuante a que chegaram, a ponto de alguns chamarem o diretor de insano e
prometerem nunca mais trabalhar com ele. Visto que a continuação de Dogville se dá
com o filme Manderlay, o qual teve o papel da personagem Grace rejeitada por Nicole
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Kidman e a mesma foi substituída por Bryce Dallas atriz norte-americana, percebe-se
que as confissões, em sua maioria, eram verdadeiras.
Nicole Kidman em Dogville Confession na sala do confessionário.
Realismo Simbólico uma Transgressão.
Ismail Xavier em seu livro O discurso cinematográfico no capítulo sobre a Decupagem
clássica afirma que o cineasta russo Pudovkin desenvolveu um cinema realista apoiado
na montagem, a interpretação de atores seguia o método naturalista desenvolvido por
Stanislavski, o que possibilitava um cinema com ramificações psicológicas, em que
expõe uma representação da consciência a partir das observações obtidas do mundo que
o cerca. Xavier afirma que Pudovkin desenvolve o discurso da consciência através da
posição da câmera; distância e ângulos geram um estilo característico. “A Arte será
realista mais pelo significado produzido do que pela naturalidade de seus meios”
(XAVIER, 1977). Se o significado produzido é mais importante do que a naturalidade
em si Dogville (2003) pode ser considerado um cinema realista, apesar de seguir uma
linha de Vanguarda. Xavier comenta sobre as artes inaugurais e seu impacto na estética
e em seu meio, que inicialmente por não saber como defini-la a rotula erroneamente.
Em suma, falar das propostas da vanguarda significa falar de uma estética que, a
rigor, somente é anti-realista porque é vista por olhos enquadrados na perspectiva
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constituída na Renascença ou porque, no plano narrativo, julgada com os
critérios de uma narração linear cronológica, dominada pela lógica do senso
comum. Afinal, todo e qualquer realismo é sempre uma questão de ponto de
vista, e envolve a mobilização de uma ideologia cuja perspectiva diante do real
legitima ou condena certo método de construção artística. (XAVIER, 2005, P.
100)
O espaço diegético de Dogville comunica através de limites imaginários ou desenhados,
explora conceitos não usuais ou convencionais a mídia a que se propõe, de forma a
provocar, seu criador inova através do deslocamento de suportes que resulta em uma
mistura de linguagens: o cênico teatral com o cinematográfico. Sem esquecer-se de seu
principal instrumento a câmera digital que comanda de forma também inusitada o
processo criativo que dispensa o cinema narrativo clássico, desfoca, perambula e
estremece, se estende ao longo da cena quase como um personagem, um voyeur.
Cenário do filme Dogville onde as paredes são demarcadas no chão por um traçado.
Ainda sobre a realidade Pudovkin defende que “A arte e forma não se encontram a
priori como dados inerentes a realidade, mas são métodos humanos de aproximação a
ela”( XAVIER, 1977, p. 44). Essa realidade que parte de um ponto objetivo sofre a
intervenção humana que resulta em um olhar subjetivo. Essa intercessão não precisa
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estar apoiada em conceitos totalmente naturalistas para resultar em algo que convence, a
priori acredita-se naquela encenação como algo real.
Visto sobre outro ângulo no livro As Principais Teorias do Cinema Andrew explica a
teoria de Bazin sobre esse assunto.
[...] a afirmação de Bazin sobre o realismo do cinema se baseia, não em uma
noção física da realidade, mas em uma noção psicológica. Vemos o cinema como
vemos a realidade, não por causa do modo como se parece (pode parecer irreal),
mas porque foi registrada mecanicamente. [...] Num sentido psicológico, o
realismo tem a ver, não com a acuidade da reprodução, mas com a crença do
espectador na origem da reprodução. (ANDREW, 202, P.118)
Em alguns momentos Bazin conceitua o cinema como um desenho da realidade, um
axioma que não pode ser provado, mas colocado por ele como auto-evidente.
“Em suma, a arte representativa pode distorcer o percepto, não pode destruí-lo, nem
abandoná-lo”. (AUMONT,2004,p 214) E Trier distorce propositalmente o percepto sem
o extinguir, ao contrário lhe proporciona um destaque, o que seria uma mera porta passa
a receber uma atenção maior, através de um estranhamento se torna objeto de estudo de
análise e até críticas, mas nunca uma simples porta. O latido do cachorro junto ao
desenho do animal riscado no chão suscita uma imagem que vai além do objeto e
retorna como real, mesmo que apenas um real imaginado.
Considerações Finais
O cinema surgiu em um primeiro momento sem pretensão, a arte de
entretenimento da época, principalmente o teatro, não percebeu de imediato a dimensão
de sua reprodutibilidade, o alcance de público que um filme pode obter atualmente e
seus diferentes suportes, inimagináveis aos expectadores presentes em sua primeira
exibição. A linguagem evoluiu substancialmente: gêneros; enquadramentos; ângulos;
movimentos de câmera; efeitos especiais levaram essa última arte a patamares antes
nunca concebidos. O que se percebeu nessa pesquisa é a constância que invade o
cinema, quase como um organismo vivo, ele se transforma constantemente, através de
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seus instrumentos e suportes, dialoga com o inusitado, se alguns cineastas preferem se
estabelecer em lugares comuns, com o progresso a vanguarda de ontem se torna o
entretenimento de hoje. O incompreensível se transforma em prosaico, o criticado em
cultuado. Lars von Trier em meio a essa máquina gigantesca soube transpor os difíceis
degraus percorridos pela indústria cinematográfica e conquistar um espaço de uma
maneira oposta a vigente até então, não foi o primeiro a fazê-lo, mas sua constância é no
mínimo admirável. Sua obra de uma provocação abusiva, crítica, suscita uma reflexão
constante, obviamente não se pretende somente entreter seu público, por isso os
suportes escolhidos, as linguagens cuidadosamente selecionadas tecem indagações que
muitas vezes é mais cômodo ignorar e esse é um dos pontos principais de sua obra:
extrair o espectador de sua zona de conforto mental. Em relação ao cinema realista
pode-se perceber que diversos teóricos possuem pensamentos sobre o que é a
representação do real, ou do que pode nos parecer real, mas são opiniões que não
possuem uma estatística ou dado concreto, e sim uma visão subjetiva desse conceito, já
que o cinema é subjetivo, então se opta por acreditar que o filme Dogville é um cinema
realista apoiado na idéia de um axioma, Bazin o descreve com precisão é algo que se
auto-manifesta, ou ainda, se auto-legitima.
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Bibliografia
ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema – uma introdução. Rio de
Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2002.
AUMONT, Jacques. O olho interminável – cinema e pintura. São Paulo: Cosac &
Naify, 2004.
BAZIN, André. O Cinema - Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BURCH, Noel. Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
MERTEN, Luiz Carlos. Cinema – Entre a realidade e o artifício. Porto Alegre. Artes e
Ofícios, 2003
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro. Editora:
Jorge Zahar, 1998.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Editora brasiliense. 1987.
XAVIER, Ismail. (org.). A experiência do cinema : antologia. 2ª ed. rev. aum. Rio de
Janeiro : Edições Graal/Embrafilme, 1991.
________ O Discurso Cinematográfico – A opacidade e a transparência. São Paulo.
Editora Paz e Terra. 2005.
Referência Eletrônica.
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ZUOLIN, Huang. Um acréscimo ao texto de Brecht: o efeito de estranhamento na
interpretação do teatro chinês. Disponível em:
http://www.academia.edu/167234/Brecht_e_o_Estranhamento_no_Teatro_Chines_-
_traducao_de_texto_de_Huang_Zuolin. Acesso em: 15 de julho de 2013.
BURNS, Paul. The History of the Discovery of Cinematography. Disponível em:
http://www.precinemahistory.net/1895.htm. Acesso em: 18 de julho de 2013.
Website do IMDB . Disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0001885/. Acesso em: 19 de
julho de 2013.
Periódicos ALLAIN, Clara. Conheço todos os sabores do meu filme. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 jan. 2004. Ilustrada, p. E1.
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ANEXO
Filmografia de Lars Von Trier
2013 The Nymphomaniac
2011 Melancolia
2010 Dimension 1991-2024 (video short)
2009 Anticristo
2007 De unge ar: Erik Nietzsche sagaen del 1 (as Erik Nietzsche)
2006 O Grande Chefe
2005 Klovn (TV series)
2005 Manderlay (written by / as Lars Von Trier)
2004 Kingdom Hospital (TV series)
2004 Querida Wendy (written by)
2003 De fem bensaend (documentary)
2003 Dogville (written by / as Lars Von Trier)
2000 Dançando no Escuro (written by / as Lars Von Trier)
2000 De udstillede (documentary)
1998 Os Idiotas (writer)
1997 Riget II (TV mini-series)
1996 Marathon (TV series)
1996 Ondas do Destino (written by / as Lars Von Trier)
1994 Riget (TV mini-series)
1994 Larervarelset (TV series)
1991 Europa
1988 Medea (writer)
1987 Epidemia (screenplay / as Lars Von Trier)
1984 Elemento de Um Crime
1982 Befrielsesbilleder
1980/INocturne (short)
1979 Menthe - la bienheureuse (short) (writer)
1977 Orchidégartneren (short)
1971 En blomst (short) (as Lars Trier)
1969 Et skakspil (short) (as Lars Trier)
1969 En rovsyg oplevelse (short) (as Lars Trier)
1968 Nat, skat (short) (as Lars Trier)
1967 Turen til Squashland (short) (as Lars Trier)