padre emílio ou a romanesca vida do padre emílio em ... que só sabia dar ... só porque eu lhe...

15
Padre Emílio... ou A Romanesca Vida do Padre Emílio em Crônicas de Noninhas da Silva Com a Prestimosa Colaboração da Senhora Ednéia Gomes Jorge Carlos & Eliana de Castela Petrópolis,13 de abril - 18 de setembro de 2013

Upload: vukhue

Post on 30-Apr-2018

214 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Padre Emílio...

ou

A Romanesca Vida do Padre Emílio

em Crônicas de Noninhas da Silva

Com a Prestimosa Colaboração da

Senhora Ednéia Gomes

Jorge Carlos & Eliana de Castela

Petrópolis,13 de abril - 18 de setembro de 2013

Padre Emílio...

2

Padre Emílio...

3

Padre Emílio...

4

Padre Emílio...

5

Padre Emílio teve que dar uma comunhão em

situação extraordinária. O tempo urgia e não havia nem uma côdea de pão. O padre não pestanejou. Lançou

mão de um tablete de chocolate meio amargo que, sempre que o calor permite, trás no bolso da batina.

- Tomai e comei! Este é o Corpo de Cristo!

O moribundo olhou, olhou... Não disse nada. Mas o padre Emílio arrematou:

- É o sol da Galiléia, meu filho!

II

Padre Emílio, numa missa matinal, usou todo o

tempo do sermão contando um sonho que teve. Sonhou que fora a Roma, coisa que todo bom católico deveria fazer pelo menos uma vez na vida, mas que

ele, um pobre vigário interiorano, nunca havia feito até à noite anterior, quando viu Roma com todo o requinte

dos turistas mais afortunados. Passeou pelo Trastevere; admirou o Coliseu; ficou girando como um bobo no meio da Praça São Pedro; entrou no Vaticano e

fez tudo que tinha direito: alisou o pé de bronze de São Pedro, subiu à cúpula, visitou o Museu, ficou

embasbacado com a Capela Sistina... Contou tudo com a riqueza de detalhes como a que se observa na Internet. Dona Verônica, uma das beatas, mal esperou

terminar a homilia, perguntou: - E o irmão não viu o Papa!? Quem vai à Roma...

E o Padre Emílio mal esperou começarem as risadas:

- Ontem foi quinta-feira e o Papa só aparece às

quartas. Dei azar!

Padre Emílio...

6

III

Padre Emílio não sabia bater pênaltis, mas como

o time em que joga não tem nenhum batedor oficial, o treinador estipulou que quem sofresse a falta era quem faria a cobrança sendo que na impossibilidade de ser o

próprio, seria o Padre Emílio, o mais velho da equipe, o responsável pela tarefa.

Foi o que aconteceu no último jogo do Cumarú Esporte Clube. O ponta de lança Wedesley foi derrubado na área e teve que ser retirado de campo

com suspeita de fratura no perônio. Lá foi o Padre Emílio aplicar o castigo máximo ao adversário que

ganhava de um a zero. Era a chance do empate que tanto precisava o Cumaru para manter-se bem no campeonato da várzea.

Saiu calmamente da zaga onde se postava durante quase toda a partida e, em passos decisivos

atravessou o campo sempre de olho no goleiro que parecia expressar um ligeiro sorriso. Padre Emílio foi logo implicando com o adversário.

- E isso aí na orelha brilhando mais que catarro na parede com farol de automóvel batendo em cima,

que que é isso? O defensor trocou o sorriso debochado pela cara

de quem não entendeu patavina. E o Padre continuou

com a pressão psicológica. - No meu tempo quem usava brinco era cigano.

Uma argola, numa orelha. Nas duas era coisa de mulher. Tá imitando o Cristiano Ronaldo ou o Maradona? Nunca vi goleiro usar brinco! É diamante ou

foi comprado no camelô? O goleirinho já incomodado conseguiu reagir.

Padre Emílio...

7

- Seu Padre tá tirando onda com minha cara!?

O árbitro interferiu. - Vamos logo com isso ou dou cartão amarelo

pros dois! O padre insiste com a guerra de nervos e diz:

- Senhor juiz, se não me engano é proibido jogar com joias, é uma questão de segurança!

O juiz olha para o goleiro, este solenemente,

retira os brincos, coloca-os no fundo da rede e se posiciona altivamente como que a dizer que com ou

sem brinco era mais ele e não seria um padre perna-de-pau, que só sabia dar pancada, que iria bater-lhe. A ele que era um bom goleiro e que até tinha a fama de

apanhador de pênaltis! O padre que tinha por lema “quando não se sabe

fazer, faz-se”, fez. Fechou os olhos e mandou uma bicuda. A bola foi forte e rasteira, bem ao canto, como se tivesse sido atirada por um especialista, mas o

keeper, que apesar da pouca estatura tinha bom impulso e elasticidade, alcançou a esfera e agarrou-a

firmemente com as duas mãos. Foi um momento de puro espetáculo. O goleiro acenou para a pequena, mas ruidosa torcida e foi pegar os brincos ainda com a bola

debaixo do braço. O juiz não conversou. Apitou gol e o zagueiro

Padre Emílio foi carregado aos ombros até à venda do Gonzaga aonde esperava, geladinha, uma grade de cerveja. Comentou-se que um caso parecido acontecera

com o Ademir Queixada, excelente batedor de pênaltis do Vasco da Gama. Mas isso foi nos antigamente.

IV

Padre Emílio gastara muito tempo da missa a contar um sonho que teve, no qual fizera um longo

Padre Emílio...

8

passeio por Roma. Desparamentava-se rapidamente

para ir filar a boia na casa dos Almeida que ficava a boa distância e a fome já se anunciava. Foi quando

apareceu na sacristia o Antônio Boticário, farmacêutico da comunidade, que pretendia fazer uma oferta para

ajudar na recuperação do campanário. O Antônio resolve também contar o seu sonho.

Diz que foi convidado para um banquete, que nunca viu

nada igual. O assunto chateia o pobre e apressado padre, mas a oferta era boa, daria até para ajeitar a

cumeeira. Porém, já com a barriga a dar horas, Padre Emílio decide-se a interromper a descrição de tantos petiscos e guloseimas regadas com bons vinhos e tão

bem detalhadas pelo sonhador importuno. - Não cometeste o pecado da Gula, pois não!?

O homem fica meio sem jeito e o padre pousa a mão sobre o seu joelho e diz mais amigavelmente.

- Deixa pra lá! Pecado maior foi não convidar o

amigo. Ao que o outro pulou logo. - Não! Eu mandei chamar o senhor padre, mas

disseram que o senhor tinha ido pra Roma!

V

Padre Emílio, muitas vezes, leva com questões

que não tem a ver com o sacerdócio. Queixas do foro da medicina então! São das mais comuns. A Menina Adélia é das mais costumeiras. Por ela o confessionário

vira ambulatório. Vive sozinha e é chamada menina, pois nunca se casou e é assim que se diz na terrinha, o

seu saudoso Portugal. Ainda há pouco, ela procurou o Padre para falar da sua última consulta ao médico novo, recém-chegado.

- E o rapazote passou-me uns comprimidos e disse que eu não me arreliasse, pois que esta dor na

Padre Emílio...

9

perna esquerda é da idade. Ao que Padre Emílio conclui

categoricamente a conversa. - Discordo, menina Adélia! Afinal, a perna direita

é da mesma idade e não tem dor nenhuma!

VI

Padre Emílio gosta de galinha gorda. Daquelas da

gordura amarela, que da cá um pirão de lamber os beiços! Dona Ednéia todos os meses separa a galinha mais gorda do seu galinheiro e leva para o padre. Mas

durante um tempo passou a desaparecer justo a galinha da oferta. O fenômeno durou uns três meses. A

princípio pensou-se que se tratava de uma mucura, mas nunca se viu gambá tão esperto e Dona Ednéia além da arapuca, ficou de atalaia e viu.

- Eu vi senhor padre! O gatuno era o Gilsinho. Quem diria, o Gilsinho. Filho de boa família,

frequentador da paróquia. Um bom rapaz! - Vício! Dona Ednéia, vício! - Desconjuro, senhor padre, mas eu até pensei

em chamar a polícia! De fato, Gilsinho é bom menino! É estudioso,

trabalhador e ponta direita do Flamenguinho. - Não faça isso, dona Ednéia! Deixe comigo! O homem não é violento, “nem gosta de

confusão”. Sempre diz que dá um boi para não entrar numa briga e dá uma boiada pra ser o primeiro a sair

dela. “É de paz”. Mas tudo tem um limite. E essa tênue linha divisória de humores ele transpôs novamente quando pediu ao treinador que o deixasse atuar na

lateral esquerda no jogo da primeira mão com o Flamenguinho de Baixo. O treinador achou estranho o

Padre Emílio...

10

pedido, mas era apenas mais uma esquisitice do padre

que não tem nem cacoete de lateral. Porém, permitiu a doidice, desde que fosse por pouco tempo - Só o tempo

de dar um recado. No primeiro ataque pela direita, o Gilsinho

passou a bola por entre as pernas do lateral improvisado. Por sorte o cruzamento foi para fora. Na segunda, o padre chegou primeiro à bola, mas manteve

o pé em riste acertando a canela do moleque. O juiz assinalou jogo perigoso. Padre Emílio correu para

dentro da área e rechaçou com a cabeça o tiro livre indireto. Mas o recado ainda não estava completo. Numa bola dividida o padre acertou um tostão no

Gilsinho, que ficou rebolando no chão. Voltando para sua posição, Padre Emílio deu por

encerrada a questão, para não levar com o segundo cartão amarelo e ser expulso de campo. Mas quando terminou o jogo foi ter com o Gilsinho que ainda

puxava da perna e reclamou. - Pô, seu padre! Só porque eu lhe dei uma

caneta! - Não! Foi por causa da galinha gorda que eu não

como há três meses. – e, ameaçadoramente - Ainda

temos o returno! Todos os meses, dona Ednéia leva para o padre a

galinha mais gorda de seu galinheiro, do qual continua desaparecendo galinha. Mas só as magricelas!

VII

Padre Emílio faz descasamentos. Isso mesmo, ele descasa os que já estão, pela lei dos homens, separados. Esta prática não é vista com bons olhos pela

Igreja, mas é só uma das muitas atitudes do Padre Emílio que a Igreja condena. O Bispo já nem sabe o

Padre Emílio...

11

que fazer com as doidices do homem. O último

descasamento que ele celebrou foi um pouco complicado porque os desnubentes já estavam com

outros parceiros e estes faziam questão de participar da cerimônia. Aproveitar a oportunidade para engrossar o

pacote e realizar dois casamentos não passou pela cabeça do padre. Seria abusar demais da sorte! E os fuxicos já chegavam ao arceBispo. A presença dos

novos companheiros criou certo constrangimento, mas Padre Emílio saiu-se bem, como sempre.

- Sandro Silva, aceita de sua livre e espontânea vontade o desenlace matrimonial com Fernanda Abreu, prometendo não guardar rancores, não trazer à tona

desavenças passadas, não intrujar na vida da ex-mulher e deixar o coração pautar pela amizade para

todo o sempre? Fez a mesma pergunta para Fernanda. Para o

público que lotava a pequena igreja, como era comum

nos descasamentos, fez a indagação de praxe: - Há alguém aqui que tenha algo a dizer contra

este desenlace e que possa contribuir para mais uma oportunidade de reconciliação? Se tem, fale agora ou converse com eles depois.

Após um longo e cochichado silêncio, Padre Emílio concluiu.

- Podem beijar os novos!

VIII

Padre Emílio nunca tinha viajado para o exterior.

Aliás, pouquíssimas foram as viagens que fizera mesmo dentro do Brasil. A bem da verdade, ele nunca saíra das Minas Gerais desde que nelas chegou. Há pouco, ele

caiu nas graças de um fazendeiro rico por ter conseguido tirar o filho adolescente do descaminho.

Padre Emílio...

12

Para o padre foi coisa de pouca monta. Uma conversa

ao pé do ouvido que incluiu um tabefe na mesma região e dois bons puxões de orelha foi o que bastou.

Mas para o pai angustiado não havia dinheiro que pagasse.

Ao ser perguntado o que queria para que o outro pudesse demonstrar a sua gratidão, o padre pensou logo numa pintura da igrejinha já tão desbotada. Ao

que o fazendeiro disse que isso era coisa pouca e que ele poderia fazer outro pedido, mesmo pessoal.

O padre viu aí a grande oportunidade de fazer uma viagem internacional. E, por surpresa, não pediu uma peregrinação a Roma e sim uma ida ao Quênia

para fazer um safári ecológico que ele vira no canal da National Geographic. Claro que, se acrescida de uma

ida ao Vaticano, seria ouro sobre o azul! Feitas as contas, o fazendeiro concluiu que por ora só daria para a viagem à África. Padre Emílio então propôs o

cancelamento da hospedagem para garantir a pintura da igreja. O fazendeiro aceitou.

O padre que chegaria em Nairobi num dia e sairia no outro, não se incomodaria em passar apenas uma noite no aeroporto, pois o objetivo da viajem já estava

assegurado, através de um jesuíta, seu amigo que dirige uma grande missão e lhe ofereceu um avião

bimotor para o passeio. A viagem foi cansativa, com muitas escalas, uma inclusive, no aeroporto de Fiumicino, em Roma, onde fez baldeação. Mas, enfim,

ele estava ali, numa clareira no meio da selva. Parecia um sonho!

O piloto foi logo descendo e dizendo ao padre que se avexasse para aproveitar bem o dia que já começava abrasado pelo sol, mas Padre Emílio

demorou-se um pouco. Havia que fazer algum agradecimento! Mas quando chegou à porta da

Padre Emílio...

13

aeronave... Bem, Padre Emílio não tem palavras para

contar o que se sucedeu, por isso, mostra uma fotografia tirada pelo piloto.

Sempre que ele conta a sua aventura na África

encerra a narrativa dizendo: A fé pode remover montanhas, mas não é capaz de tirar um leão da sombra!1

IX

Padre Emílio sempre foi teimoso e muitas vezes

paga caro pela sua teimosia. Foi o que aconteceu quando um raio rebentou com a torre do campanário, justo quando havia terminado o restauro em que todos

os fiéis participaram com doações e mão de obra. A sua teima em não instalar um para-raios o

deixou sem pai nem mãe e ele não teria a cara de pau

1 Infelizmente, Padre Emílio perdeu a fotografia original. Utilizamos esta similar, de autor

desconhecido, buscada na Internet.

Padre Emílio...

14

para iniciar outro peditório. Foi aí que o sacristão veio

falar de uma barbada numa rinha que um primo de um cunhado frequentava e de quem ele ouvira o

comentário. A barbada era a aposta num galo carijó que ia lutar naquela noite. Padre Emílio arreliou-se,

mas acabou cedendo aos argumentos do sacristão. - Afinal, o senhor gosta tanto de galinha, não é

mesmo?!

Disse contente o ajudante que saiu correndo para acertar tudo com o seu aparentado.

Como o Padre Emílio não queria ir sozinho foi convidar o Antônio Boticário, amigo das horas não muito católicas e quem havia feito a melhor oferta para

a reconstrução da igrejinha. O homem deu saltos dessa altura!

- O quê!? E ainda tem o desplante de me convidar! Imagine se me vou meter em briga de galos! Uma barbárie! Ainda por cima, uma coisa proibida.

O padre não se deixou abater e foi gastando argumentos até que mandou com esta na cara do

amigo. - E fique sabendo que foi por sua culpa que o

raio destruiu a torre!

Ante a estupefação do outro, ele conclui: - Eu até estava disposto a colocar o para-raios,

mas aí fiquei imaginando as gozações que o amigo, como bom ateu que é, me iria fazer. Como aquela quadra que você gosta de dizer, do tal...

- António Aleixo. Diz assim:

“Para-raios numa igreja Lembra a todos os ateus Que um cristão, por mais que o seja

Não tem confiança em Deus.”

Padre Emílio...

15

Bem, lá se acertaram e o Antônio Boticário aceita

fazer companhia ao amigo nessa inusitada aventura. Chegando ao pé daquele antro de contravenções, o

boticário estancou. - Padre Emílio, o amigo sabe que lhe tenho em

grande estima e sempre fui um bom companheiro, nas pescarias, no futebol... e mesmo sendo o ateu praticante que sou, participo das suas missas, ajudo na

sua obra e nunca me furto a dois dedos de prosa... Mas o amigo não poderia deixar-me fora desta?! Vai-me

fazer impressão ver os bichinhos sofrerem! Já com o pé na soleira, Padre Emílio lança mão

de outros argumentos, ainda que muito reles.

- Ué, você não come galinha?! Pois então! E tem mais, isso é coisa do povo. Que comunista é você?!

Entraram. A batina do padre não estranhou ninguém. Um fazendeiro que tinha se mudado há pouco e ainda não estava ambientado sentiu-se mais à

vontade ao ver o padre. O estranho havia tido uns problemas com os Sem Terra na sua fazenda no Mato

Grosso do Sul, largou tudo e comprou terras nas cercanias e ainda não se tornara íntimo de ninguém. Depois das apresentações, o homem perguntou sem

nenhuma cerimônia. - Seu padre, qual é o bom, aí?

Padre Emílio respondeu com toda a segurança: - O pretinho! O rico latifundiário correu logo a apostar no galo

preto, que com menos de cinco minutos foi trucidado pelos esporões do carijó. O fazendeiro, já não tão rico,

lamentou-se. O padre se defendeu. - Ué, você perguntou qual era o bom e eu disse.

Bom é o preto. O carijozinho é que é mau que só a

peste!