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REVISTA DE LETRAS UFMS UFMS PA EI Papéis - Rev. Letras UFMS Campo Grande, MS v. 1 n. 2 p. 1-84 jul./dez. 1997

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R E V I S T A D E

LETRASUFMSUFMS

PA EI

Papéis - Rev. Letras UFMS Campo Grande, MS v. 1 n. 2 p. 1-84 jul./dez. 1997

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R E V I S T A D E

LETRASUFMSUFMS

PA EI

UNIVERSIDADE FEDERAL DEMATO GROSSO DO SUL

ReitorJorge João Chacha

Vice-ReitorAmaury de Souza

CÂMARA EDITORIALJosé Batista de Sales (DED-CEUL/UFMS)Alda Maria Quadros do Couto (..........)

Ana Maria Pinto de Oliveira (CCHS-UFMS)Ana Maria Souza Lima Fargoni (......)

Dercir Pedro de Oliveira (.....)Maria Adélia Menegazzo (CCHS-UFMS)

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (CEUD-UFMS)Rita Maria Baltar Van Der Laan (CEUC-UFMS)

Ronaldo Assunção (CCHS-UFMS)Vânia Maria Lescano Guerra (.......)

Papéis revista de letras UFMS. Vol. 1, n. 2(jul-dez. 1997)- . -- Campo Grande, MS :Ed. UFMS, 1997-

v. : 27 cm.

Semestral.

1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Ficha Catalográfica preparada pelaCoordenadoria de Biblioteca Central-UFMS

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APRESENTAÇÃOPapéis, Revista de Letras da UFMS, apresenta seu segundo número. De acordo com a orientaçãoeditorial, publica o resultado de pesquisas dos professores de quase todos os cursos de Letras destauniversidade e de alguns pesquisadores de outras instituições de ensino superior, de maneira que possadivulgar parte das atividades desenvolvidas na UFMS, o que deve servir para veicular entre o meioacadêmico interno e externo uma amostra do que estamos realizando e, particularmente, estimularoutros colegas, céticos ou receosos, a tomarem parte desta publicação nos próximos números.

Como uma publicação de Letras, contamos com trabalhos na área de Lingüística e de Literatura,o que certamente contribuirá para o enriquecimento de uma gama variada de leitores.

Vânia Maria Lescano Guerra e Celina Garcia Nascimento discorrem sobre os mecanismosutilizados na leitura e no ensino da escrita, no artigo “O conhecimento prévio e asinferências lexicais na sala de aula”. Noutro trabalho, “Um estudo da polifonia e damodalidade na estrutura argumentativa de dois textos jornalísticos”, a professora VâniaGuerra analisa a interrelação dos conceitos de polifonia e de modalidade discursiva nacomposição de estruturas argumentativas diferentes.

Regina Dalcastagne faz uma fundamentada reflexão sobre a relação entre criação e opressão,a partir da análise de uma narrativa contemporânea, em seu artigo ‘‘Entre a palavra e a vida:intelectuais e o salazarismo no romance Bolor, de Augusto Abelaira’’, ficcionista português.Paulo Nolasco, em “A epígrafe - metáfora do conto Anel de Moebius, de Júlio Cortázar”, fazuma análise serniótica do conto Anel de Moebius, explorando a homologia entre a epígrafe,retirada da obra de Clarice Lispector, e a obra do autor de Orientação dos Gatos.

Marileuza Ferreira da Silva, em “Uma leitura de Alice no país das maravilhas e As aventurasde Alice através dos espelhos, de Lewis Carroll”, elaborou um estudo sobre a construçãotextual, com destaque para o uso da sintaxe, nessas duas obras. O artigo de Edgar CésarNolasco, ‘‘Clarice Lispector: a assinatura e a grafia da escritura”, é uma cuidadosa discussãosobre o processo de criação da autora de A hora da estrela.

Josênia Marisa Chisini, com o artigo “O Quinto Império: confluências e divergências entreFernando Pessoa e o Padre Antônio Vieira”, contribui com um rico estudo sobre asaproximações entre Fernando Pessoa e Padre Vieira, por meio de análises das característicashistóricas, mística e literárias que envolvem a obra desses dois autores.

O artigo “Guimarães Rosa: Tutaméia”, de Luiza Melo Vasconcelos, é um estudo deorientação estilística das formas de comparação do mencionado conto do autor de GrandeSertão: veredas. Em “Leitoras de Sabrina: Usuárias ou consumidoras”, uma originalproposta de estudo da chamada literatura de consumo, seu autor, Genésio José Fernandes,nos instiga com uma arrojada proposta de análise.

A professora Nadir de Boral, em seu artigo “Oral Strategies used by brasilian studentslearning english’’, procura estudar os procedimentos e as estratégias usadas no ensino delíngua inglesa para adultos brasileiros.

Como podemos observar, os temas são bastante variados, de modo a oferecer um leque amplode informação e de abordagem. Sem dúvida representa um lance importante para os profissionaisvoltados para o ensino da literatura e da língua/linguagem, no segundo e no terceiro graus.

José Batista de Sales

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Publicação da

Rua 9 de Julho, 1922CEP 79.081-050 - Campo Grande-MS

Fone: (067) 787-1335 - Fax: (067) 787-7642e-mail:[email protected]

Projeto Gráfico e Editoração EletrônicaEditora UFMS

RevisãoA revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores

Impressão e AcabamentoDivisão de Produção Gráfica - ACS/UFMS

DistribuiçãoLivraria UFMS

R E V I S T A D E

LETRASUFMSUFMS

PA EI

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O CONHECIMENTO PRÉVIO E ASINFERÊNCIAS LEXICAIS NA SALA DE AULAVânia Maria Lescano Guerra e Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento

ENTRE A PALAVRA E A VIDA: INTELECTUAIS E OSALAZARISMO NO ROMANCE BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRARegina Dalcastagnè

A EPÍGRAFE-METÁFORA DO CONTO‘‘ANEL DE MOEBIUS’’ DE JÚLIO CORTÁZARPaulo Sérgio Nolasco dos Santos

UMA LEITURA DE ‘‘ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS’’ E DEAS ‘‘AVENTURAS DE ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO DE LEWIS CARROLMarileusa Ferreira da Silva

CLARICE LISPECTORA ASSINATURA E A GRAFIA DA ESCRITURAEdgar Cézar Nolasco

UM ESTUDO DA POLIFONIA E DA MODALIDADE NAESTRUTURA ARGUMENTATIVA DE DOIS TEXTOS JORNALÍSTICOSVânia Maria Lescano Guerra

O QUINTO IMPÉRIO: CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS ENTREFERNANDO PESSOA E O PADRE ANTÔNIO VIEIRAJosenia Marisa Chisini

GUIMARÃES ROSA:TUTAMÉIALuiza Mello Vasconcelos

LEITORAS DE SABRINA: USUÁRIAS OU CONSUMIDORAS?UMAPRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO DA PRÁTICA LEITORADAS LEITORAS DE ROMANCES SENTIMENTAIS DE MASSAJ. Genésio Fernandes

ORAL STRATEGIES USED BYBRAZILIAN STUDENTS LEARNING ENGLISHNadir de Assis Borall

SUMÁRIO

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This paper presents some reflections about the lexicalinferencing in reading comprehension within a publicschool.

Key- words:

* Vânia MariaLescano Guerra é....................UFMS/PUC-SP

** CelinaAparecida Garciade S. Nascimentoé ....................UFMS/PUC-SP

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7Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.

IntroduçãoNa vida acadêmica, já tornou comum a referência

explicita ao insucesso escolar no que se refere ao ensinada leitura. Isto é, os argumentos valem-se dos resulta-dos avaliados, quer no desempenho acadêmico, quer naatuação social e profíssional do professor. Daí nossa pre-ocupação com esta prática pedagógica.

O objetivo deste trabalho é verificar as estratégias deinferências lexicais utilizadas pelos alunos da 5ª série,em relação às atividades desenvolvidas durante a aula, naescola “João Dantas Filgueiras”, em Três Lagoas-MS.

Este estudo é parte integrante de uma pesquisa maisampla, desenvolvida pela Profa. Dra. Laís Furquim deAzevedo, pesquisadora responsável, da PUC-SP.

As orientações para coletas e os instrumentos de pes-quisa, foram fornecidos pela pesquisadora responsável,composta de dois textos: a primeira “Receptidade”, deViriato Corrêa; e, o segundo, “Aproveitando o Solo”, re-tirado de um livro de Ciências.

O córpus é constituído de 84 informantes cuja médiade idade está entre 11 e 16 anos. São alunos da 5ª série Ae B, período matutino. Pôde-se observar que as classessão heterogêneas, com alunos repetentes e com dificul-dade de aprendizagem.

As coletas duraram, em média de 50 minutos a umahora e trinta minutos, a nossa participação foi de obser-vadoras nos dois primeiros momentos e num terceiro,fizemos protocolo com quatro alunas que não haviamparticipado da 1ª etapa.

Há algumas noções importantes que fundamentam nos-so trabalho e que passaremos a expor; primeiramente porinferência lexical, entendemos a capacidade de se inferirpalavras desconhecidas durante a leitura de um texto.

O CONHECIMENTO PRÉVIOE AS INFERÊNCIAS LEXICAIS

NA SALA DE AULAVânia Maria Lescano Guerra*

Celina Aparecida Garcia de S. Nascimento**

Parece-nos que, para a efetividade do processo deinferência lexical, o leitor deve ser capaz de selecionar es-tratégias mais apropriadas e verificar as hipóteses formula-das através de um processo de monitoração eficaz, que lheassegura a precisão das inferências feitas (Corte, 1991).

Por monitoração, entendemos os controles consci-entes e deliberado que se tem sobre as próprias açõescognitivas (Brown,1980).

Entretanto, apesar de muitas pesquisas realizadas so-bre a inferência lexical, restam muitas dúvidas a respeitodesse processo. É evidente a necessidade de pesquisanessa área, visando a uma elucidação mais precisa(Kleiman, 1.985).

Quanto ao processo ensino/aprendizagem da leituraMiller (1978), diz que ao leitor caberia, a tarefa de“decodificar”, isto é, de “reconhecer” (os itens lingüíticosjá conhecidos) e de descobrir (o significado dos itensdesconhecidos).

Nessa visão, o texto objetifica, ganha existência própriaindependente do sujeito e da situação de enunciação: o lei-tor seria, então, o “receptáculo” de uma saber contido notexto para construir o sentido. Note-se que, neste caso,constrói-se o sentido como se constrói uma casa, um obje-to (a partir de unidade menores, combináveis entre si).

Contrapondo a essa visão, a essa concepção, outrosestudiosos e pesquisadores, como por exemplo Goodman(1970), defenderam a idéia de que o bom leitor seria aque-le que diante dos dados de texto fosse capaz de acionar aque Rumelhart (1984) chama de “esquemas”.

Considera-se esquemas um conhecimento de mun-do, geralmente adquirido, informalmente, através de nos-sas experiências e convívio numa sociedade, conheci-mento este cuja ativação no mundo oportuno é tambémessencial à compreensão de um texto.

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Entre os modelos de leitura, Cavalcanti (1989), adescreve como um processo de solução de problemas,altamente complexo; uma combinação de processos con-trolados e automáticos. Em seu livro “Interpretação -Leitor & Texto”, afirma que:

“Os leitores, portanto, somente expõem abertamente seussistemas de crença se eles adotam uma atividade emrelação ao texto que representa a autoridade do autor”.A pessoa nunca só se baseia no texto que leu, ela aci-

ona modelos cognitivos, “pacotes” de conhecimento namemória. Os conhecimentos permanecem armanezadosnas pessoas. Os modelos estão frequentemente sendo mo-dificados, transformados, aumentados, mudados,atualizados. Eles são altamente dinâmicos. 0 que o indiví-duo tem armazenado ajuda a processar o que entra denovo e o que entra de novo também ajuda a atualizar o quejá está no modelo.

Outra noção essencial que é o conhecimento préviona compreensão lingüística tem sido estudado como te-oria de esquemas. Rumelhart (1980) a define, basica-mente, como uma teoria sobre como nosso conheci-mento prévio está representado em nossa mente e comoesta representação facilita o uso de conhecimento de for-mas específicas.

Brown (1980) define o processo de controle conscientedeliberado que se tem sobre as próprias ações cognitivas(metacognição) como monitoracão. Assim, as estratégiascognitivas munem o leitor de procedimentos altamente efi-cazes e econômicos, responsáveis pelo processamento au-tomático e inconsciente, mas são as estratégias metacog-nitivas que orientam o seu uso, a fim de desautomatizá-lasem, situações de problemas (Kato, 1985).

Kleiman (1985) parece compartilhar da mesma opi-nião quando alerta que o caráter precário do conhecimen-to lexical do aluno teria como uma das causas a sua inca-pacidade de controlar o processo de inferência lexical.Segundo a autora, a habilidade de monitorar a inferêncialexical traria consequência não apenas para a compreen-são, mas também para a aquisição do item lexical.

Henriques (1989) avaliando o que leitores usavamquando tentavam adivinhar o significado de palavras des-conhecidas ou parcialmente desconhecidas num texto,verificou a frequência do uso e também o grau de utili-dade. Dessa forma, a autora conclui que é importanteestar consciente das técnicas usadas, já que a maior par-te delas são de certo modo úteis quando os leitores lidamcom inferência lexical e, além disso sendo o contextoimportante para inferência lexical, se a frase tiver muitaspalavras desconhecidas será quase impossível adivinharo seu significado.

Análise do córpuse discussão

Na primeira etapa de nossa análise, verificaremos asestratégias utilizadas pelos informantes no texto A(Receptidade) e no texto B (Aproveitando o Solo); emseguida passaremos a apresentar alguns exemplos das

transcrições dos protocolos verbais, em que foram utili-zados os dois textos mencionados acima.

Nos dois primeiros momentos desta pesquisa, os textosA e B foram trabalhados em dias diferentes, em que pri-meiramente foi solicitado aos informantes a leitura; apósesta, solicitou-se que preenchessem as falhas anexas aotexto. Assim os alunos tentaram inferir o sentido aproxi-mado das palavras e explicitar seu raciocínio, mostrando-nos como haviam chegado a tal conclusão.

Observamos que os informantes demonstraram fa-zer uso do mesmo tipo de estratégias, tanto no texto Acomo no B, entretanto os índices variam, principalmen-te em relação ao conhecimento Prévio e ao contexto ime-diato. (cf. quadro I).

Esclarecemos que tivemos índices mais altos no tex-to A, pelo fato de que o mesmo contém 15 palavras emdestaque para serem dados sinônimos, enquanto que noB, poderíamos ter 15 palavras supostamente desconhe-cidas, porém os informantes tentaram fazer inferênciasapenas nas palavras em que nomearam como desconhe-cidas. Talvez eles tenham percebido outras, porém igno-raram, parece-nos, por não encontrarem tais palavrasem destaque. (cf. quadra I).

Observamos que entre os 80 textos pesquisados aíndice por palavras, de inferências com palavras origi-nais ativadas pelo conhecimento prévio variou entre 38,7%para a palavra 6, redouças/pessoas; 26,2% para a palavra9 tambas/cama; 22,5% para a Palavra 5 conesa/fome.Isto parece deixar transparecer a grande dificuldade dosinformantes em selecionar uma palavra mais adequadade acordo com a sua compreensão do texto.

Pode-se verificar que os índices por palavra apre-sentados com o uso do contexto imediato foram 47,5%para a palavra 5 conesa/alimento/cama; 37,5% para apalavra 15 receptidade/religião/dever; 30% para a pala-vra 1 receptidade/dever sagrado; e, l0,0% para a palavra8 recâmaro/crianças. Isto possibilita-se supor que taissujeitos estão acostumados a trabalhar dentro de um pro-cesso automático e inconsciente.

Parece-nos, que em relação à inferência com sonssemelhantes, os informantes tentaram adivinhar preco-cemente o significado da palavra, por não terem consci-ência de quais estratégias eles poderiam ter usado parachegar a uma aproximação do significado da referidapalavra, de acordo com o contexto.

Exemplificando, temos 8,7% para a palavra 9tambas/tampas/tambores; 6,2% para a palavra 8 recâmaro/reclamar/câmara; 5% para a palavra 2 redouças/bolsas/redondo/louças.

As palavras mais facilmente inferíveis no texto A foramconesa 22,5%; redouças, 38,7% e tambas 26,2%, corres-pondentes a fome, pessoas e cama. Supõe-se que os sujei-tos pesquisados tenham tido mais facilidade nessas pala-vras por estarem mais relacionadas com suas experiênciasdiárias ou por inferirem através do contexto imediato.

As palavras mais dificilmente inferíveis do texto Aforam receptidade 1 e recepto 3, para as quais não en-contramos nenhuma palavra original substituindo-as. Istopode ser observado no depoimento desse informante:

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“Olha primeiro a senhora não esplicou o que é re-cepto pois eu só sei que recepto dorme na casa dagente... come e depois pede obrigado. Pois até agoraeu não sei o que é recepto".Entre os 80 textos, tivemos um leque muito variado

de inferências para cada palavra, chegando a um total deaproximadamente dezoito para receptos, exemplificandocomida e avião; e dezoito para recâmaro, como por exem-plo criança e despertador.

É importante ressaltar que tivemos um total de 50%dos textos em que os alunos deixaram de uma a setepalavras em branco.

Em se tratando das palavras do texto ou idéias queajudavam nas inferências, o índice de cópia de frases ouparágrafos do texto, variou em média 52,5% parareceptidade a 5,0% para contrucando. O que confirmanovamente que os informantes tiveram maiores dificul-dades ao tentar dar sinônimos à palavra receptidade e aoutras com o mesmo cognato.

Pensamos ser interessante comentar também que nosresumos dos 40 textos, solicitados antes da compre-ensão, obtivemos os seguintes resultados: 25,0% de re-sumos com cópias de alguns parágrafos do texto; 7,5%considerados aceitáveis; 45,0% com algumas idéias oudados do texto. Três alunos não fizeram o resumo e osoutros disseram que não entenderam o texto ou que oresumo fala de “coisa legal”.

Verifique esse relato:“Eu não entendi muito. Mas eu acho que fala sobreas pessoas de religião’’.Pode-se dizer diante desses fatos que não foi pos-

sível afirmar que os resumos feitos no início do textoajudaram na compreensão das palavras, ou menos aindaapós a compreensão, pois, 50% não fizeram. Nesse últi-mo caso, é possível concluir que os informantessentiram-se desestimulados diante da complexidade dotexto, não inferindo satisfatoriamente.

Em termos concludentes, retomando os pontos le-vantados nessa análise, os dados mostram-nos que asmaiores dificuldades dos alunos foram como procederpara: a. entender cada enunciado apresentado; b. fazer aleitura do texto; c. procurar as palavras que não sabiamo significado; d. explicitar sobre o processo, após loca-lizar a palavra no texto; e. fazer o resumo e, f. dar opi-nião ou idéias sobre o texto.

Conforme expusemos anteriormente, quanto maisfamiliar for o texto, mais fácil será para o leitor ativaros esquemas necessários para a construção do seu sig-nificado. Assim, acreditamos que a processo deinferência lexical no texto B foi facilitado devido à exis-tência de esquemas familiares para a leitor, contribuin-do para a ocorrência de um maior número de inferênciasapropriadas.

A ativação de esquemas, relacionados com o assuntotratado nos textos (conhecimento prévio), foi uma es-tratégia, frequentemente, utilizada pelos informantes. Oíndice foi de 51,2%, conforme já mostrado no quadro I.Verifique alguns exemplos, referentes ao texto

“lavrador eu acho que lavrador é aquele que planta,cuida da plantação e colhe. Eu acho que lavrador éaquele que cuida de suas roças porque sempre minhamãe fala que o meu pai era lavrador e falava que elecuidava das suas roças sozinho”.“cereais é alimentação para pessoas. Explicação: euvejo escrito em mercados, armazéns etc.”.‘‘agricultura: é porque toda vez que meu tio plantaele fica cuidando da planta”.Notamos que os informantes inferiram o significado

da palavra de maneira perfeitamente coerente dentro docontexto imediato, ou de acordo com seu conhecimentode mundo. Entretanto, à medida que analisamos o con-texto imediato maior, isto é, analisamos outras informa-ções contidas no mesmo parágrafo ou mesmo se levar-mos em conta o contexto global (idéias apresentadas emoutros parágrafos), observamos que as inferênciastornam-se inconscientes.

O uso do contexto imediato demonstrou ser uma es-tratégia muito utilizada também, com o índice de 43,7%,servindo como uma complementação, cuja função seriaassegurar a precisão da inferência. Para Scott (1989), ouso do contexto esconde uma variedade de processosrápidos e inconscientes do leitor (conhecimento lingüís-tico e textual). Ex:

‘‘agrônomo - uma pessoa que entende de plantaçõesporque explicou o problema ao lavrador’’.A análise de palavra (conhecimento morfológico ou

reconhecimento e cognatos) apresentou um índice de 5%quando utilizada como estratégia isolada e não demons-trou levar à inferência lexical adequada. O contexto pare-ce ter ficado obscurecido diante de tal estratégia, perden-do sua força, como se pode observar no trecho abaixo:

‘‘calagem eu acho que calagem é para as pessoascalar”.Em relação ao uso de estratégias ascendentes, o uso

de associação de palavras por semelhança fonológicatambém ocorreu num índice de 7,5%, conforme ilustrao depoimento abaixo:

‘‘hortaliças são retirados da horta, verduras, o queme ajudou a descubrir isso foi o som da palavra pelosom eu achei que era esta resposta’’.Quanto ao processo de inferência lexical, outro pon-

to que merece ser discutido é o fato de o informante nãosaber explicar seu raciocínio ao inferir a palavra desco-nhecida, sendo que apenas uma minoria conseguiu talresultado.

Somos inclinados a acreditar que a explicação para aocorrência de tal fato em nossos dados estaria no uso deestratégias cognitivas ou metacognitivas, já que as es-tratégias metacognitivas emergem quando as estratégiascognitivas são usadas automaticamente. (Kato, 1987).

A estratégia de uso do contexto global (temático) foimenos usada no texto A do que no texto B. Acreditamosque, devido à ausência de um conhecimento prévio mai-or, que pudesse ajudar o processo de comprensão dotexto A, os informantes obtiveram uma visão fragmen-

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tada, não conseguindo, talvez, apreender seu todo. Daí arazão da estratégia ter tido uma ocorrência menor.

Um fato que teve várias ocorrências foi a dificuldadede resumir que os alunos demonstraram. O fato é quefica dificultado o trabalho com o texto quando se pedepara o informante falar sobre a sua compreensão e ela-borar resumo, mesmo quando se percebe que ele enten-deu as idéias centrais do texto. Eis um depoimento:

‘‘eu entendi quase tudo mas não sei resumir direito.Eu pudi entender que o solo precisa de fósforos, po-tássio, enxofre nitrogênio etc’’.Outro elemento que aparece muito nos textos A e B,

principalmente no A, é a cópia literal, parecendo-nosque o informante não consegue compreender o que sepede e, não conseguindo inferir, apenas copia para daruma resposta ou para não deixar em branco.

Tais resultados retratam o que diz Kato (op.cit.), quese o assunto do texto não é familiar, espera-se uma abor-dagem especificamente ascendente, em que o leitor nãofaz uso do conhecimento lingüístico e nem textual.

Quanto aos Protocolos Verbais, as inferências feitasforam por meio das estratégias do uso do conhecimentoprévio e contexto imediato. Veja alguns exemplos, comuso do conhecimento prévio, no protocolo 01:

C: “que... significa nitrogênio aqui?R: Nitrogênio?... Significa um adubo... prá terra... éa... que tem que fazer uma adubação correta... senão poderia até prejudicar as plantas... porque a adu-bação demais poderia prejudicar as plantas”.Selecionamos a seguir, as inferências feitas a partir

do contexto imediato e observamos que nesses casos oinformante tentava resolver o problema lançando mãode estratégias conscientes do tipo: releitura do texto, comacréscimo de novas informações através do sentido domesmo ou da própria palavra.

C: ‘‘O que você acha que é essa calagem RI? vocêconhece?R: Calagem eu não conheço”.Ao fazer algumas perguntas ao RI, ele disse que quan-

do não sabe o significado de uma palavra na sala de aula,primeiro pergunta para professora, e, depois em casaolha no dicionário. A seguir perguntamos:

C: Nesse caso... aqui no texto... essa calagem quevocê acha que seria?R: Seria a correção do solo?’’ (após uma releitura,RI esclarece que viu no texto essa resposta).Finalmente, pode-se afirmar que RI procedeu de for-

ma clara e concisa, com marcadores frasais. Durante todoo trabalho ele vai refletindo sobre suas idéias, ordenandocom uma certa segurança a sequência do assunto tratado,demonstrando ser um leitor que faz uso de forma interativado conhecimento lingüística e conhecimento prévio, e ain-da, usando os dois processos de leitura, conforme KATO(1985), que são descendente (top-down), dependente doleitor e ascendente (botton-up), dependente do texto.

Assim como no Protocolo 01, tentaremos verificarno Protocolo 02 os tipos de inferência realizada a cada

palavra desconhecida e como o informante tentou resol-ver a situação-problema.

Pode-se afirmar a partir dos dados que parece haverum único caso em que a informante, ao ter dificuldadepara fazer inferência sobre uma palavra, fez uso do co-nhecimento prévio.

C: ‘‘hummm!... tá erosão você conhece? ou não?R: mais ou menos.C: você já viu essa palavrinha Re?R: hum -hummC: O que você acha que é?’’ (...)R: "Não sei ( ) quando tem ( ) assim nas estradas( ) aquelas montanhas de terra assim... daí podechover muito... ventar... ( ) um pouco de terra ecausa a erosão...C: e tem alguma... algum... alguma palavrinha ouidéia aqui no texto que ajudou a dá esse significado?ou você já viu em algum local...R: eu já estudei... no texto de ciências ( )"Observamos nesse relato que a informante tenta com-

preender o texto, recorrendo ao que já estudou em séri-es anteriores ou por já ter visto algum tipo de erosão.

O uso do contexto imediato também demonstrouser uma, estratégia utilizada pela informante RE, ser-vindo como um suporte para assegurar a precisão dainferência.

R: “provém... aquiC: Provém? o que você acha que é... o que o vocêestá pensando... pode lê: novamente... (R fica emsilêncio olhando para o texto por 12")R: ah! é precisa né?C: precisa?’’R: ah... eu acho que os nutrientes ao solo VÊM daspartículas minerais.’’Observamos na Protocolo 03, um exemplo de uso de

conhecimento prévio.T: ‘‘no sertão do Brasil... quem pergunta o preço dareceptagem ofende aquele que a deu... é que num...num... acho que não tem preço... num precisa pagarpara receptar...’’.O contexto imediato (anterior ou posterior) foi leva-

do em conta aqui, veja um exemplo:T: ‘‘nossa casa vivia apinhada... de criatura... estranhas...várias... as gentes... estranhas que vinham... lá...’’.Já no Protocolo 04, a ativação do conhecimento pré-

vio aparece na maioria das inferências realizadas. Veja:A: ‘‘a receptidade é um dever sagrado que cumprereligiosamente... é... que a receptidade é um dever...é... como se fosse uma religião...’’.

Considerações FinaisEste trabalho objetivou investigar as estratégias de

inferência lexical que leitores da quinta série de uma es-cola da periferia utilizaram durante a leitura de dois tex-tos distintos e do protocolo verbal.

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Vale a pena ressaltar novamente que os resultados apre-sentados neste estudo restringem-se ao tipo de informan-te escolhido, apresentando portanto, muitas limitações.

Uma das limitações diz respeito à motivação ao exe-cutar a tarefa pedida. O texto B revelou ser muito maisinteressante e motivante para os informantes do que otexto A. Tal fato pode ter representado uma variávelinterveniente na dificuldade encontrada pelos informan-tes ao processar os textos e executar as tarefas.

Os informantes conseguiram inferir, apesar de suaslimitadas condições, um número considerável de palavrasem ambos os textos, revelando que a inferência lexical éuma estratégia frequente durante a leitura de textos.

Os informantes também tenderam a ter desempenhomelhor no texto B, sobre o qual possuíam maior conhe-cimento prévio, do que no texto A, revelando uma faci-lidade de se inferir termos desconhecidos quando o as-sunto do texto é familiar.

O processo de inferência lexical tendeu a ocorrer anível inconsciente com primazia de estratégias cognitivassobre as metacognitivas.

De uma certa forma, os resultados nos mostraram quede fato, o ensino da leitura em Língua Materna e compre-

ensão de texto na nossa realidade, encontram-se bastanteinsatisfatórios por vários fatores que lentamente tem afeta-do a aprendizagem e o desenvolvimento de nossos alunos.

Torna-se necessário mencionar que tivemos algunsalunos que se destacaram no texto escrito e no protoco-lo verbal em que trabalhamos com o texto B, transpare-cendo uma maior consciência, com atitudes de ativaçãode esquemas do conhecimento prévio, assim como for-mulação de hipóteses, construção de significado com oobjetivo de dar coerência ao texto.

Em consequência de diversas leituras, observa-se queo aluno aprende o que julga relevante e não aprende oque não percebe como útil para si próprio, pois o pro-cesso de aprender é regulado por princípios e julgamen-tos do aluno de forma consciente ou inconsciente e porpontos que esse aluno julgue desnecessária e/ou difíceise que são por ele descartados.

E por último, é importante salientar que um dos mai-ores impasses do processo ensino/aprendizagem atual-mente é a formação equivocada do aluno e a inadequadaformação profissional do professor, por falta de instru-mentos adequados que transformem tanto o educandocomo o professor em leitores eficientes.

Referências BibliográficasAZEVEDO, L.F. (1992) Inferência e Coesão, mimeo.BROWN, G. & YULE, G. (1983) Discourse Analysis. Cambridge, Cambridge University Press.CAVALCANTI, M.C. Interacão leitor-texto. Campinas-SP. Editora da UNICAMP.CORACINI, M. J. (1989) Leitura: Decodificação, processo discursivo? In Anais do Gel, São Paulo.CORTE, A. C. O. (1991) Uma Análise do Uso de Estratégias de Inferência Lexical em Leitores Proficientes da Língua Inglesa. Disserta-

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Hillsdale, N. I., Lawrence Erlbaum Associates Publishers.SCOTT, M. (1982) An Investigation into Student Preferences regarding the Topics of Texts. The Especialist 4, PUC-SP.

QUADRO IESTRATÉGIAS DE INFERENCIA LEXICAL UTILIZADAS

Estrat. de texto A indice Texto B indice T.de Est.Inferências Recept. Solo de Infêr.

ConhecimentoPrévio 59/80 73,7% 41/80 51,2% 100

ContextoImediato 70/80 87,5% 35/80 43,7% 105

Cognatos - - 04/80 05,0% 04

Som da Palav. 28/80 35% 06/80 07,5% 34

Sentido Liter. 25/80 31,2% - - 25

Dica Tipográf. - - 01/80 01,2% 01

T.de Infer.Por Texto 182/80 227,4% 87/80 108,6% 269

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 6-11, jul./dez., 1997.

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O artigo discute a relação entre criação e opressão noromance Bolor, do português Augusto Abelaira. Em meioa uma ditadura que atravessaria quatro décadas, artistas eintelectuais se viam espremidos entre a impossibilidade deagir e a necessidade de continuar formulando discursos. Aspersonagens de Abelaira são capturadas nesse instante,perdidas entre o medo e os restos dos antigos sonhos. Estetrabalho procura definir as feições dessas figuras, revelan-do o que se esconde por trás de seus discursos.

Palavras-chave:criação e opressão, discurso, literatura

portuguesa contemporânea

The essay discusses the report between creation andoppression in the novel Bolor, from Portuguese writerAugusto Abelaira. In Salazar’s dictatorship, that willlast by four decades, artists and intellectuals weredivided between the impossibility to act and the need toremain to formulate discourses. Abelaira’s charactersare capturated in this moment, lost between the fear andthe rests of the old dreams. This paper searches todetermine the features of these figures, exposing whatis behind their discourses.

Key-words:creation and oppression, discourse,Portuguese contemporary literature

Mas homens são homens. E o melhor delesesquece-se, às vezes, de que é humano.

Shakespeare

* Regina Dalcastagnè éProfessora de LiteraturaBrasileira naUniversidade deBrasília; doutora emTeoria Literária pelaUniversidade Estadualde Campinas;coordenadora do Grupode Trabalho emLiteratura BrasileiraContemporânea da UnB.É autora do ensaio Oespaço da dor: o regimede 64 no romancebrasileiro (Brasília:Editora UnB, 1996);e-mail:<[email protected]>.

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13Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.

O homem diante de uma página de papel em bran-co. Ela o convida e o constrange, exige respostas paraperguntas que ainda não foram feitas, sonha sentidosjamais experimentados, reclama disciplina e talento. Eo homem à sua frente o que faz? Mente, trapaceia,inventa emoções que talvez nunca venha a sentir, su-gere razões que desconhece, perpetua uma angústiaque não é só sua - saber-se traidor, seja da vida, já quese vê impedido de desfrutá-la sem recolher materialpara a escrita que se engendra dentro de si, seja dapalavra, que não lhe basta para reconhecer o mundo.O dilema do homem diante do objeto de sua escrita -ele próprio - é construído de forma extremamente ori-ginal em Bolor, romance de Augusto Abelaira1.

No Portugal dos anos 60, um homem chamadoHumberto escreve um diário. Embora anunciando-se“antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas” (pg.9) que ainda não redigiu, ele sai em busca da palavraque pode resgatar a vida. E seu percurso vai se trans-formando numa sucessão de equívocos. Ao começar odiário, Humberto pensa estar procurando desvendar amulher, Maria dos Remédios. Diz querer observá-la, “nãocom os olhos, mas com uma esferográfica” (pg. 13).Tenta desfazê-la em sua memória para só então revelá-la no papel. Mas é através de objetos que ele pensapoder recuperá-la. Pelo relógio ou pelos brincos que elausa, pelas palavras que ela pronuncia:

Pois se os teus brincos não fostes tu quem os fez, omesmo sucede com as palavras. No fim de contas limi-taste-te também a aceitá-las já feitas, escolhes estasou aquelas como escolheste os brincos, uma escolha

ENTRE A PALAVRA E A VIDAINTELECTUAIS E O SALAZARISMO NO

ROMANCE BOLOR, DE AUGUSTO ABELAIRA

sobre coisas existentes desde sempre, mesmo quandotu ainda não existias e ainda ninguém podia sonharcontigo (pg. 25).Irremediavelmente perdido num espaço qualquer

entre a palavra e a vida, entre o discurso e a ação,Humberto escreve um diário - que também é escritopor Maria dos Remédios e por Aleixo, quem sabe atépor Leonor - numa tentativa desesperada de reencon-trar a si mesmo. Nesse universo ficcional ele não é ape-nas criador, mas também, e principalmente, criatura.Arma ciladas literárias, oculta pistas, dificulta o jogo,mas se embrenha no mesmo nevoeiro que ajudou a er-guer e, de repente, já não é mais senhor de sua história.De narrador passa a narrado, um pouco como Tchuang-Tseu que “não sabe se é um filósofo que sonha ser bor-boleta ou uma borboleta que sonha ser filósofo” (p. 125).

Todas as personagens acabam reivindicando a au-toria do diário. Primeiro é Maria dos Remédios - quese insere no caderno do marido para deixar-lhe umrecado, passa a narrar sua própria angústia e terminapor confessar que desde o início escreve em nomedele, como se fosse ele. Depois é Aleixo, amigo deHumberto e amante de Maria dos Remédios, que o vêredigindo, tem a mesma idéia e começa seu próprio“diário íntimo”. Não demora muito para que ele tam-bém diga que escreve como se fosse os outros dois,deduzindo seus pensamentos, imaginando seus ranco-res. Por fim, há Leonor, mulher de Aleixo, persona-gem menor que, numa constrangedora conversa comMaria dos Remédios nas últimas páginas do livro, re-vela também ter se insinuado no diário do marido.

1 Augusto Abelaira, Bolor. 2ª ed. Lisboa: Bertrand, 1970 (1ª ed., 1968).

Regina Dalcastagnè*

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Assim, Bolor tem quatro autores diferentes, quatropersonagens que se escrevem mutuamente, que sedestróem, se sonham e que se simulam através de pa-lavras. Palavras “existentes desde sempre”, como querHumberto, ou aquele que escreve em seu nome, masque vão ganhando novo poder a partir de sua manipu-lação. Embora profundamente enraizados em seu tem-po, Humberto, Maria dos Remédios, Aleixo e Leonorsão pura ficção - irmãos do infeliz Augusto Pérez queem Névoa ousa questionar seu autor, Miguel deUnamuno. Pérez não se conforma com a situação depersonagem, obra de um outro: “Se um homem sonhaque vive... vá lá, mas que outra pessoa tenha esse so-nho por ele...”2.

As personagens de Bolor vivem esse mesmo dra-ma, pressentem sua condição imaterial e sabem quetêm de continuar se sonhando para que não sejam var-ridos deste mundo. Por isso a palavra é perseguida tãoarduamente. Só ela pode dar opacidade a seres trans-parentes, descarnados, que se agarram aos objetos paratentar se enxergar: “Apesar de transparentes, de vezem quando pões um fato novo, eu um vestido novo... Eàs vezes conversamos de certa maneira..., talvez comoagora. Não digo que fiquemos absolutamente visíveis,homem invisível, mas a transparência deixa de ser ab-soluta, torna-se translúcida... E é bom tropeçar numacoisa inesperada...” (p. 156). São as palavras, garanteHumberto, “que dão olhos aos sentidos” (p. 36), sãoelas que o permitem sentir a vida, entrar em contatocom o outro.

Mas são elas também que o enclausuram e o con-denam à sua condição de não existência. Como podeviver um ser que depende única e exclusivamente da-quilo que escreve ou do que escrevem sobre ele? Di-ante da enormidade da vida, as palavras “são cegas,são surdas, não têm sabor, nem tacto...” (p. 35), pro-testa Maria dos Remédios. Como seres de ficção, elesnão sentem de verdade, não amam, não odeiam, nemagem. Mas sofrem, porque têm consciência de vida,uma memória qualquer que os faz ter expectativas ealguns sonhos. É justamente essa consciência de nãoestarem vivos que os faz tão diferentes de persona-gens como Anna Karênina ou Julien Sorel, que mer-gulham intensamente naquilo que acreditam ser suasvidas sem questionar uma origem ou um fim.

A única personagem que tem solidez, que é símbo-lo e representação da vida dentro de Bolor, é a faxi-neira. A “mulher a dias” de Maria dos Remédios nãopossui nome nem voz, tudo o que tem são cinco filhosmiseráveis, dezoito abortos a sangue-frio e um maridoestúpido, mas é o que há de mais real no livro. Mariados Remédios tem consciência, talvez até inveja, des-sa “materialidade” da empregada. A faxineira possuium corpo, não simplesmente pelo fato de ser uma des-

graçada, mas porque está em contraposição à trans-parência da outra, que se vê no limiar da insensibilida-de: “De súbito sucedeu-me esta coisa incrível: olheipara ela e pensei que não pertencíamos à mesma es-pécie, éramos animais diferentes” (p. 57). Diante damulher a dias Maria dos Remédios reconhece sua vida,e a de Humberto, em negativo: “Nada fizemos, massomos felizes, não é? Felizes negativamente... Felizessòmente porque não somos infelizes!” (p. 57).

Vivas somente porque não estão mortas, cada umadas personagens tenta, através da escrita, resgatar algoque lhe permita sonhar a si mesma, construir a vida apartir de sua própria pessoa e não do outro. Maria dosRemédios escreve em nome de Humberto porque nãose reconhece enquanto ser independente, “a minha vidaprópria transformou-se em adivinhar quem és, a mi-nha vida própria, mesmo quando me limito a pensar,mesmo quando não escrevo, deixou de estar conjugadana minha primeira pessoa ou até na terceira pessoareferida a ti - mas numa primeira pessoa que é a tua”(p. 119). No diário, que a escravizaria até pronominal-mente, Maria dos Remédios procura não a restituiçãodo que ela teria sido um dia, mas a possibilidade desonhar em ser algo diferente, de poder pronunciar fra-ses e “simultâneamente as viver” (p. 128).

Já Humberto busca, meio sem saber por quê, con-quistar o direito à comunicação com o outro. Apesarde dizer, logo no início, que o diário é “a tentativa deencher os momentos em que sou obrigado a estar so-zinho” (p. 32), ele acaba confessando que seu objeti-vo, na verdade, é “observar minuciosamente as mi-nhas relações com os outros (amigos e simplesmenteconhecidos), verificar se sim ou não os nossos diálo-gos gozam da propriedade comutativa, são inter-mutáveis, se onde está eu poderia estar indiferente-mente ele” (p. 59). Humberto pressente que é só atra-vés do outro, Maria dos Remédios ou Aleixo, que elepode se reconhecer, legitimar sua própria identidade.Mas, ainda vítima do sortilégio da palavra, se mantémisolado e, assim, não consegue reconectar seu ser, nãoé tocado pelo “milagre salvador” do qual fala HannahArendt, e permanece no equívoco. Afinal,

todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e cons-titui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogodos dois-em-um não perde o contato com o mundo dosmeus semelhantes, pois que eles são representados nomeu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamen-to. O problema de estar a sós é que esses dois-em-umnecessitam dos outros para que voltem a ser um - umindivíduo imutável cuja identidade jamais pode ser con-fundida com a de qualquer outro. Para a confirmação daminha identidade, dependo inteiramente de outras pes-soas; e o grande milagre salvador da companhia para oshomens solitários é que os “integra” novamente; pou-pa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem

2 Miguel de Unamuno, Névoa. Trad. de José Antônio Ceschin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 173 (ed. original, 1914).

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sempre equívocos, e restabelece-lhes a identidade que lhes permitefalar com a voz única da pessoaimpermutável3.Esse “milagre salvador” parece

ser prerrogativa exclusiva daquelesque vivem, que habitam o mundo emcompanhia de outros homens, nãode seres de mentira, que simulamseus dramas e interpretam seus pró-prios discursos. Aleixo é mais atentoa esse fato, desiludido até. Diz es-crever o diário apenas em busca doremorso que não tem por trair oamigo, camuflando assim a necessidade maior: “Se nãosentes remorsos, então estás morto, és um ser perdi-do” (p. 141). Parece tão pouco, mas é com esse sen-timento - o remorso - que Aleixo pretende se agarrar àvida, se fazer humano. Ele que se sabe máscara, quese reconhece ficção: “Quando me encontro contigoponho uma máscara. Como os primitivos que nos gran-des ritos anuais às duas por três acabam por acreditarno poder da máscara... sinto-me outro, com outrospoderes, já não sou eu... ou sou verdadeiramente eu.[...] E represento um papel, um papel bem mais ricodo que o meu, bem mais dramático” (pp. 128-9).

Mas há ainda Leonor, que lê escondida o diário domarido e dá a entender que age da mesma maneiraque Maria dos Remédios, ou seja, que também escre-ve um diário em sobreposição ao de Aleixo. Ela é aúnica que traz algumas reminiscências da infância, sem-pre ligadas a objetos - as primeiras meias de naylon, oprimeiro aparelho de rádio - mas são lembranças es-tagnadas, em um presente cristalizado: “Mas tudo istosei, não sinto... O mundo parece-me imóvel, tenho aimpressão de que continuo com a mesma idade, deque nada se passou” (p. 187). Escrever o diário pode-ria ser a forma encontrada por Leonor para fazer seumundo girar, acordar de um pesadelo que a impede deexistir, de sonhar o homem amado e ser sonhada porele. Leonor, como Maria dos Remédios, imagina umarelação amorosa diferente, muito mais intensa do quea que possui. Talvez uma relação onde tudo estivesseem jogo.

A palavra tudo, que Maria dos Remédios tentadecodificar de mil maneiras, e que a leva sempre àconstatação de que Humberto não é tudo em sua vida- o que, inconfessadamente, a irrita - vai assumindonovas dimensões ao longo do diário. Traveste-se emalgo mágico, que tem de ser perseguido até o infinito,como se fizesse parte de uma “essência humana”, algoque pudesse ser apreciado, tocado com a ponta dosdedos e, enfim, incorporado ao ser. A “Verdade”, a“Certeza”, o “Tudo”, palavras ocas de concretude,

possuem um poder encantatóriosobre as personagens de Bolor - sãocomo jaulas transparentes que man-têm o cativo em ignorância de suacondição. Maria dos Remédios,Humberto, Aleixo e Leonor estãoenclausurados pelas palavras e acada instante que passa reforçameles próprios as paredes da prisão.

Armazenam palavras, cons-tróem discursos numa tentativaalucinada de se transformarem na-quele “indivíduo imutável cuja iden-tidade jamais pode ser confundida

com a de qualquer outro”. Mas, como se estivessemabandonados sobre um campo de areia movediça, oespernear de sua angústia só os faz afundar cadavez mais rapidamente. Gastam todas as energias ela-borando seus textos e depois ainda se vêem conde-nados a encená-los. Maria dos Remédios inventa ca-tegorias como o tudo e o insubstituível para tentarsentir o mundo sob seus pés, mas acaba se deixandoescravizar por elas. Já não pode se imaginar feliz semser tudo para o outro, sem que ele seja insubstituívelpara si própria. Constatar que ninguém pode ser tudo,que ninguém é insubstituível, só a deixa mais insegu-ra, mais só.

O mesmo acontece com Humberto. Ao se casarcom Catarina, sua primeira esposa, ele pronuncia pa-lavras que se pretendem mágicas: “Estamos no cen-tro do mundo! [...] Aqui o tempo parou. Não: aqui ofluir do tempo rompeu-se, regressámos ao momentoda criação, Marduk acaba de vencer Tiamat, imita-mos a aurora do mundo, estamos verdadeiramentena aurora do mundo, purificados, tudo vai começar,acabamos de nascer...” (pg. 42). Palavras idênticasàs que utilizará ao casar-se com Maria dos Remédi-os. Um discurso que ele constrói do nada mas que seestabelece como uma verdade, uma necessidade queacaba não se concretizando. Humberto decepciona-se ao perceber que não nasceu outro, é sempre omesmo, mas continua a acreditar no encanto de suaspalavras.

A partir daí, por não encontrar o culpado em si, pornão enxergar a origem de sua frustração, ele culpaMaria dos Remédios. É a mulher que o impede de existir,de ser outro, “de nascer de novo” - velha ilusão queela desmistifica quando pergunta “que farias tu de ti,desse homem novo? Para que te serviria ele?” (pg.125). Ao mesmo tempo ela também sabe que Humbertoé seu álibi. Ambos são o reflexo de um mesmo fracas-so. De alguma forma amarrados um no outro, eles nãotêm forças para dar o salto decisivo, não conseguemsair do texto para entrar na vida.

3 Hannah Arendt, Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. S. Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 528-9.

Uma página de papelem branco convida

e constrange.Exige respostas paraperguntas que ainda

não foram feitas.Reclama disciplina

e talento.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.

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Se todo o diário, ou os diários, é uma grande prisãode seres que não existem, suas três últimas páginassão uma espécie de solitária, escura e fria, onde fica-rão esquecidas personagens que não conseguiram sefazer humanas. Personagens que, como o desgraçadoAugusto Pérez, de Névoa, não ouviram o conselhoamigo: “Não há pedagogia que mereça a pena. Só seaprende a viver vivendo, e cada homem tem que reco-meçar o aprendizado da vida...”4. Nas três últimaspáginas, Humberto encarcera definitivamente Mariados Remédios, condenando também a si próprio: “Elaolha para mim em silêncio, escrevo que ela olha paramim em silêncio, e aguardo as palavras restantes a fimde as congelar neste diário [escrevo que aguardo aspalavras restantes a fim de as congelar neste diário (eescrevo que escrevo que aguardo as palavras restan-tes a fim de as congelar neste diário - ... -)]” (pp. 193-4). O “T” final, que encerra o livro, os remete, juntocom Aleixo e Leonor, a um vácuo qualquer, espaçoonde até a palavra se vê impossibilitada de continuarexistindo. E, assim, os “seres de mentira” de Abelairasão expulsos do mundo dos homens.

Mas - e se eles não forem de mentira? Se, ao invésde ocupados com sua existência ficcional eles estives-sem simplesmente representando o drama do homem,do intelectual português dos anos 60? Que terrível so-nho poderia ter feito seres de verdade parecerem dementira? Humberto, Aleixo, Maria dos Remédios eLeonor teriam então habitado efetivamente o mundo.Um era advogado, defendia presos políticos; o outroera artista plástico, e não se conformava em ver suaarte “reduzida a dar beleza aos bem instalados na vida”(p. 69). Maria dos Remédios foi cantora um dia eLeonor, que tem dois filhos, está se sentindo envelhe-cer. São intelectuais, apreciam boa música e boa lite-ratura, já viajaram bastante e estão sempre muito beminformados. Passam horas discutindo o sonhado avan-ço e os inúmeros retrocessos políticos. Parecem tãovivos quanto você. Mas não são.

Chegando bem perto dá para ver um vazio no fun-do dos olhos, o medo bem apertado dentro da gargan-ta, os ombros dobrados por um sentimento que é mistode vergonha e culpa. Caso se tome uma distância umpouco maior ainda dá para ouvi-los falar. Repare comosão largos seus gestos, como parecem seguros do quedizem, como se sentem imponentes quando estão jun-

tos, numa mesa de bar, num evento social qualquer.Mas ao voltar para casa já são outros de novo. Assus-tados, correm para seus diários, onde podem continuarse confundindo com seus discursos. Só em barulhen-tos grupos podem ter a ilusão de ainda serem huma-nos, de estarem participando de uma vida comum àque-les que habitam o mundo.

Praticamente toda a obra de Abelaira, semprecentrada na intelectualidade portuguesa, discute essaimpotência, essa impossibilidade de combinar discursoe ação. Em Sem tecto, entre ruínas, a mesma situa-ção é explicitada quando, em meio a uma festa, umadas personagens questiona:

- Impressiona-me o ar sério com que todos representamo seu papel. Como todos, por um momento, supõem queesta casa é o país inteiro, talvez a Europa, não sei se ouniverso, e que aqui se decifram os grandes aconteci-mentos, se decidem as grandes linhas da evolução futu-ra. E como se sentiriam terrivelmente desprotegidos sesuspeitassem que não legislam sobre coisíssima nenhu-ma, que se limitam a passar tempo, substituir por pala-vras as horas, os minutos, os segundos! Que consomemtempo em vez de o produzirem. São deuses, têm necessi-dade de se sentir deuses, de conhecer o futuro, não lhesbasta conhecer o presente5.Para em seguida receber a resposta, que remete

diretamente a uma intrincada rede de mitos que cercaPortugal: “Talvez a teia da história e do mundo se con-funda com as palavras e esta sala seja efectivamentetudo quanto existe no universo ou pelo menos o mode-lo do universo. À falta de poderem produzir tempo pro-duzem símbolos, símbolos que nada simbolizam”6.

As personagens de Abelaira são seres alienados,homens e mulheres cultos e bem informados, mas queperderam o contato com o mundo e se tornaram alhei-os à sua própria humanidade7. Envolvidos por uma di-tadura que se estenderia por quase meio século, elesforam se transformando gradativamente nesses orga-nismos estranhos, que se alimentam de tempo e queparem símbolos ocos. Seres confusos, que se enre-dam em seu próprio discurso, e se deixam aprisionarpor ele, vivendo eternamente comprimidos entre a im-possibilidade de agir, de produzir uma realidade social,da qual se sabem responsáveis, e a necessidade de sejustificar por nada fazerem. Por isso falam tanto, es-crevem tanto, e vivem tão pouco. A esfera política,lugar onde os homens “agem em conjunto na realiza-

4 Unamuno, op. cit., p. 77.5 Augusto Abelaira, Sem tecto, entre ruínas. 2ª ed. Lisboa: Sá da Costa, p. 18 (1ª ed., 1978).6 Id., ib.7 “L’être générique de l’homme, aussi bien la nature que ses facultés intellectuelles génériques, sont transformées en un être qui lui estétranger, en moyen de son existence individuelle. Il rend étranger à l’homme son propre corps, comme la nature en dehors de lui, commeson essence spirituelle, son essence humaine. [...] D’une manière générale, la proposition que son être générique est rendu étranger àl’homme, signifie qu’un homme est rendu étranger à l’autre comme chacun d’eux est rendu étranger à l’essence humaine”. Karl Marx,Manuscrits de 1844. Traduction de Emile Bottigelli. Paris: Editions Sociales, s.d., pp. 64-5.

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ção de um interesse comum”8, foi destruída pelosalazarismo. E a esfera privada, refúgio natural da almahumana, também se viu atingida. De politicamente iso-lados, eles vão se fazendo igualmente solitários.

E a solidão é o fundamento do terror, como de-monstra Hannah Arendt. Momento em que o homemse vê esvaziado do seu eu, onde ele “perde a confian-ça em si mesmo como parceiro dos próprios pensa-mentos e perde aquela confiança elementar no mundopara que se possam ter quaisquer experiências”9.Quando recorrem ao diário - para “preencher os mo-mentos em que estão à sós” - as personagens de Bo-lor já não estão conseguindo mais restabelecer o diá-logo com o outro. Aos poucos, ao longo da escrita,percebem que já não podem contar sequer consigopróprias. Maria dos Remédios não dispõe mais de suaprimeira pessoa. Perdida em meio ao jogo, ela precisadesesperadamente confirmar sua identidade. Não oconsegue junto de Humberto; tenta Aleixo, mas tam-bém se decepciona. Eles não são “insubstituíveis”, oque faz dela também um ser supérfluo.

Uma vez que nenhuma das personagens é insubs-tituível para a outra, todas são supérfluas e convivemintimamente com o horror dessa descoberta. O únicoque tem coragem de manifestar essa angústia é Aleixoque, numa conversa com Humberto, faz o retrato desua própria impotência:

Sinto necessidade, através do voto, através de um ou outroartigo escrito para o jornal, sei lá que mais!, de dar a minhacontribuição à marcha do mundo, isto é, sinto necessidadede pesar, por pouco que seja, nos actos governativos, nasgrandes decisões... E que sucede? Não voto, não possoescrever esses artigos... Se eu fosse verdadeiramente umpolítico ou um revolucionário a sério ainda poderia tentaressa influência de outra maneira. Mas não. [...] O mundofaz-se sem mim, sem o meu voto, nem sequer contra o meuvoto. Cortado da vida social, se por vida social entender-mos a construção de uma sociedade nova. Isso destrói-me,torna-me céptico, céptico até em relação às coisas em queacredito, pessimista (pp. 95-6).E aquilo que poderia ser o vislumbrar de uma solu-

ção para o impasse, mostra-se apenas como o reco-nhecimento, lúcido e brutal, da situação: “Através dacomparticipação na coisa pública o homem integra-sena sociedade, domina a solidão. E essa solidão não sevence a escrever diários ou livros, ou a pintar quadros,compreendes? Não se vence também a conversar nocafé com os amigos” (pg. 96). Aleixo é capaz de de-tectar o mal que sofre, conhece até o remédio, mas

8 Arendt, op. cit., p. 527.9 Id., p. 529.10 Na sua revolta contra aqueles que consomem a beleza sem merecê-la, Aleixo pinta o quadro de uma mulher nua “extremamente bela no

rosto, a Primavera, quem sabe?, com um corpo repelente, chagado - e um cão, também apodrecido, a lamber-lhe as feridas” (pp. 67-8).Depois, esconde suas chagas sob uma camada de tinta especial, que se decomporá com o tempo, revelando a obra inicial: “Ao fim dealgum tempo, o bom burguês, comprador de uma genial Vénus para seu repouso, para embelezamento da sua sala de estar, verá apareceruma imagem repugnante. E, pelo menos como artista, deixarei de contribuir para o sossego dele” (p. 72).

está impedido de avançar até ele. Enquanto espera -nem todos são revolucionários - vai se destruindo aospoucos. Chega a propor que a arte se cale, que osartistas cruzem os braços temporariamente, até que omundo mude, até que não haja mais “riqueza mal dis-tribuída” (p.71).

Da mesma forma que Aleixo se sente culpado porfornecer beleza àqueles que não a merecem, Humbertose remói na vergonha de não lutar por aquilo em queacredita. Eternamente frustrado, vendo em todos umaespécie de “consciência do seu fracasso”, ele está du-plamente condenado. Primeiro, pela ditadura, que o im-pede de agir, que lhe incute o medo; depois, por si pró-prio, uma vez que ele já não confia em si e põe anteci-padamente em dúvida suas reações:

Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. De repente,vindo de Londres, o Alexandre Herculano aparece em mi-nha casa e diz-me: “Vamos desembarcar dentro de poucashoras, precisamos do teu apoio”. Acordei nesse instantecom suores frios e, por acaso, lembrei-me do sonho inter-rompido. Pensei então, repousadamente acordado: Queresponder? “Não conte comigo”? Nunca mais poderiaolhar para ele a direito (nunca mais poderia olhar para mimmesmo a direito), mas como dizer-lhe: “Conte comigo” seo medo invadira o meu coração e a minha alma? Sem que-rer, sem dar por isso, surpreendi-me a raciocinar destemodo: “porque vieste? Eu vivia em paz, sim, vivia em paz,sabedor de que nada poderia fazer, crente de que era porisso que nada fazia. Porque vieste?” (pg. 51)Se Aleixo realmente tivesse parado de pintar, se

Humberto vivesse mesmo em paz com sua consciên-cia, entre os escombros da ditadura portuguesa teri-am sido encontrados seres disformes, vagantes, semfeições, nem alma. Não seriam “seres de mentira”;esses ainda precisam de alguém que os crie, que ossonhe, e o autoritarismo é o anti-sonho, a anti-cria-ção. Seriam apenas homens desinventados, nus detoda alegria, vazios de esperança. Aleixo não é mes-mo nenhum revolucionário, sabe que assim a angús-tia da espera será ainda maior, mas vez ou outra pin-ta um quadro, e por baixo da beleza que produz ca-mufla o horror que sente, chagas e podridões10.Humberto também não faz muito. Defende algunspresos políticos e envelhece. Mas à noite, quando voltapara casa, posta-se diante de um caderno e tenta re-compor seu mundo, mesmo que ele surja infectadode dúvidas, contaminado pelo medo. O homem dian-te de uma página de papel em branco ainda é umapossibilidade em aberto.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 12-17, jul./dez., 1997.

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Este artigo tem por objetivo analisar o conto “Anel deMoebius”de Julio Cortázar segundo princípios da semióticado paratexto. A partir da epígrafe de Clarice Lispector, pro-cura-se discutir a relação de homologia entre a epígrafe e oconto, enfocando as diferenças e as semelhanças que essarelação implica.

Palavras-chave:estratégia textual; crítica.

The aim of this article is to analyse Julio Cortázar’s story“Anel de Moebius”. Taking Clarice Lispector’s epigraphas reference, it is attempted to discuss the homology’srelation between the epigraph and the story to emphasizethe differences and the similitudes contained in this relation.

Key-words:textual strategies; critic

* Paulo Sérgio Nolascodos Santos é doutor emLetras, Professor deTeoria Literária eLiteratura Comparadano CEUD/UFMS.

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19Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.

“ANEL DE MOEBIUS” é um dos contos de Ju-lio Cortázar mais memorável do que conhecido.Cortázar, admirado por escrever contos magníficos,conseguiu neste relato, continuando sua mestria jácomprovada desde “A casa tomada” até “Blow-up”1, prender a atenção do leitor e obrigar a releitura.Dai, o ser mais memorável; uma vez que, quem querque tenha lido “Anel de Moebius” dificilmente dei-xou de relê-lo e certamente não escapou do exercí-cio de querer “escrever a leitura: interrompê-la comfreqüência, acossado por afluxo de idéias, excita-ções e associações - ou como diz Roland Barthes“ler levantando a cabeça”2.

“Anel de Moebius” tem na imagem do gato umponto em comum com os demais relatos da coletâneaOrientação dos Gatos, na qual está inserto3. Há, ali,gatos por toda parte, e, se variados são os caracteres,nuances e matizes do ser felino descrito pelo Autor, aqualidade felina do “escorregadio” e do “esquivo” aca-ba predominando nesses relatos “des/orientando” oleitor. Não é nossa intenção estudar a rede de signifi-cações que os títulos dos contos, inclusive o que dánome à coletânea, sugerem; nem, a partir disto, buscaro elo que, por sua vez, possa justificar uma aproxima-

A EPÍGRAFE-METÁFORA DOCONTO “ANEL DE MOEBIUS”

DE JULIO CORTÁZARPaulo Sérgio Nolasco dos Santos*

ção dos relatos, mesmo quando a pura imagem do gatotorne plausível a aludida aproximação. Entretanto, al-guns dos lexemas aqui sublinhados já prenunciam ocaminho da difícil entrada no conto “Anel de Moebius”.

Nosso propósito é tentar uma aproximação da na-tureza metafórica da epígrafe que encabeça o conto;uma reflexão em torno da epígrafe como correlato doprocesso narrativo, como elemento extradiegético quepredispõe a leitura e amplifica o mundo representado.

A epígrafe de que se utiliza Cortázar foi extraídade Perto do coração selvagem4, o primeiro romanceda escritora brasileira Clarice Lispector, e diz:

Impossível explicar. Afasta-se aos poucos daquela zonaonde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo temum nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava naregião líquida, quieta e insondável, onde pairavamnévoas vagas e frescas como as da madrugada5.

• • •

A epígrafe, ocupando um lugar fora do texto, podesignificar apenas um revestimento de erudição e/ouum testemunho de afinidades, no que sua função dereferência marginal pode ser prescindível para a pro-

1 “Blow-up”é o título da obra-prima de Micheangelo Antonioni. O título original deste conto de Cortázar é “Las babas del diablo”e estáinserido em Blow-up e outras histórias (título do original Las armas secretas), Trad. Maria Manuela Fernandes. Buenos Aires: Europa-América, 1968, 208p.

2 BARTHES, Roland. “Escrever a leitura” e “Da leitura”, In: O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 19883 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, In: Orientação dos Gatos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 133-1494 LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.5 A epígrafe de Cortázar, extraída, está na página 208 da 8ª ed. da obra citada

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dução de sentido. Contudo, para asemiótica do paratexto, comoenfatiza G. Genette6, a epígrafe aca-ba se constituindo em outro elemen-to que participa da rede de relaçõesque é toda narração. A epígrafe aoacompanhar o discurso recolhe aperspectiva do autor implícito, e as-sim se auto-remete enquanto textocomplementar a revelar um nívelsuperior de compreensão. GérardGenette, ao definir a epígrafe comouma citação, “du fait que l’épigra-phe est une citation, il s’ensuitpresque nécessairement qu’elle consiste en un texte”7,mostra que as suas utilizações são muito variáveis. Comisto, deixando de repetir aqui o histórico, o lugar, das“épigraphes”, e na terminologia do autor “épigrapheurs”,“épigraphaires”, e as respectivas “fonctions”, tão mi-nuciosa quanto detalhadamente foram desenvolvidos,voltemos a atenção para a nossa proposição inicial quejá se embasa no capítulo “Les épigraphes”de Seuils.

Assim, para que se possa ir formando a correlaçãoepígrafe-metáfora com o relato de “Anel de Moebius”,a despeito da desorientação a que o leitor está subju-gado quanto à escolha de um fio condutor de leitura,necessário se faz passear o olhar pela estrutura mes-ma da narrativa.

A forma, a disposição espacial, que Cortázar im-primiu ao relato resulta numa inquietação e perplexi-dade que forçam o leitor a um trabalho de Sísifo. Antesde tudo, não se está diante de uma estrutura narrati-va sequer minimamente usual, ou que atenda às ex-pectativas do leitor comum — ainda que esteja estefamiliarizado com as rupturas modernistas. O relatose inicia com a utilização de uma das técnicas funda-mentais para a apresentação do fluxo da consciên-cia: o monólogo interior orientado, e convida a notaro giro das frases, num parágrafo extenso, com ob-servações parentéticas e ausência de ponto, a nãoser no final:

Por que não, talvez bastante propô-lo como ela have-ria de fazê-lo mais tarde veementemente, e se a veria,se a sentiria com a mesma nitidez com que ela se via ese sentia pedalando bosque adentro na manhã fresca,seguindo caminhos envoltos na sombra das plantas,em algum lugar da Dordonha, que os jornais e o rádioencheriam mais tarde de uma efêmera e torpe celebri-dade até o rápido esquecimento, o silêncio vegetal

dessa meia-luz perpétua por ondeJanet passava como uma mancha lou-ra, um tilintar metálico (seu cantilmal ajustado ao cruzeiro de alumí-nio), o longo cabelo oferecido ao ven-to que seu corpo rompia e alterava,leve carranca afundando os pés nobrando ceder alternado dos pedais,recebendo na blusa a mão da brisaapertando-lhe os seios, dupla carí-cia dentro do duplo desfile de tron-cos e plantas em um verde translúcidode túnel, um cheiro de fungos e corti-ças e musgos, as férias8.

O que aqui se observa para essetipo de monólogo interior vai se tornar uma constanteem todo o relato. Procurando dar a impressão de queé apenas a consciência da personagem que está sen-do mostrada, o autor apresenta marcas estilísticas quecaracterizam o pensamento da personagem. Em tex-to cujo monólogo predomina pode-se constatar o “ca-ráter associativo da seqüência de pensamentos, a suaexpressão truncada, e o estilo pessoal da persona-gem”9. Com o predomínio desse tipo de monólogonão se pode falar em ausência total de mediação doautor como nos casos do monólogo interior direto oumesmo da onisciência seletiva múltipla. Nesses ca-sos o foco narrativo centra-se no retrato de estádiospsíquicos que se iniciam dentro da psique das perso-nagens.

A técnica do monólogo interior orientado acede aum lugar de destaque ao cobrir todo o conto de “Anelde Moebius”, deixando perscrutar nesse relato o re-gistro do estilo que caracteriza as personagens-pro-tagonistas, e, bem assim, a apresentação de suas men-tes. Já no aludido parágrafo de abertura do relatodepreende-se que o uso do monólogo interior põe emevidência um narrador onisciente a apresentar mate-rial não falado, truncado quanto à coerência, e porisso dá a impressão de que é apenas a consciênciada personagem (no caso, Janet) que está sendo mos-trada. Até as três primeiras linhas do parágrafo, olexema “nitidez” serve de eixo para aquilo que onarrador vê (Janet pedalando bosque adentro) e irárelatar, “contar” mais tarde ( o que será plasmado natessitura de “Anel de Moebius”) e, ao mesmo tem-po, remete e introduz o leitor no monólogo interiorde Janet, o qual vai até a constatação última: “asférias”.

6 GENETTE, Gerard. “Les épigraphes”, In: Seuils. Paris: Seuils, 1987, p. 134-149.7 Op. Cit. p.1408 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.133-1349 CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de . Foco Narrativo e Fluxo da Consciência. São Paulo: Pioneira, 1981. p.57. Nesta obra o autorapresenta considerações sobre a vasta problemática do foco narrativo, inclusive, revendo obras consagradas sobre a matéria, e sugere umanomenclatura mais precisa para o assunto.

A despeito dadesorientação quanto

à escolha de um fiocondutor de leitura,necessário se fazpassear o olhar

pela estrutura danarrativa.

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O que observamos para esseparágrafo vai se tornar um proce-dimento reiterado em todo o relato.Entretanto, o elemento renovador,e que põe à prova a paciência doleitor, diz respeito à estrutura, ao usode “blocos” de narrativa desloca-dos ao longo do relato. Trata-se de(12) doze “blocos, também longose apartados no decurso da narrati-va. A experiência advinda da leitu-ra de outros textos do Autor,Rayuela, p.ex., faz crer queestamos diante de um experimen-talismo que se deixa marcar pela renovação e revolu-ção presentes na arte narrativa contemporânea.

Voltando à questão do foco narrativo, pode-se dizerque vários são os modos pelos quais o autor provocaou instaura um impacto ou estranhamento: se a obser-vação do mundo só se realiza através de um ponto devista, conseqüentemente, “a grande particularidade daobra de arte é a perspectiva exótica dessa percep-ção”10. São inúmeros os recursos dos quais o autorpode lançar mão para destacar o fato narrado pelofoco narrativo. Assim, a base dessa percepção exóti-ca em “Anel de Moebius” se assenta no pressupostoda renovação e revitalização da linguagem, que aomesmo tempo tende para um “descondicionamento”da visão do leitor, esteoreotipada pelo olhar caseiro ehabitual:

Quem vive na praia não escuta o barulho das ondas.Quem vive nas grandes cidades não percebe a polui-ção sonora, nem que ela o leve à surdez. Não percebe-mos o que nos rodeia. O estranhamento é o modo parti-cular da percepção artística.11

Toda a questão do estranho e do estranhamentotem como um de seus objetivos despertar certo efeito-leitura.12 Assim, no relato de “Anel de Moebius”, autilização de blocos de narrativa encontram sua justifi-cativa na medida em que o narrador põe em relevoacontecimentos fulcrais do mundo narrado. Percebe-se que a figura do protagonista Robert encontra na-queles blocos o lugar da manifestação de sua voz. Apresença de Robert é ostensiva em todos os blocos e éneles que o narrador, via monólogo interior, explorareiteramente a modalidade do discurso indireto livre, epassa a caracterizar a personagem:

E também o outro bosque ainda quefosse o mesmo bosque, mas não paraRobert recusado nas granjas, sujo deuma noite de bruços sobre um maucolchão de folhas secas, esfregando acara contra um raio de sol filtradopelos cedros, perguntando-se vaga-mente se valia a pena ficar na regiãoou entrar nas planícies onde talvez oesperasse um jarro de leite e um poucode trabalho antes de voltar aos gran-des caminhos ou se perder de novo embosques sem nome, o mesmo bosquesempre com fome e essa inútil cóleraque lhe torcia a boca.13

E no segundo bloco de narrativa:Não era fácil vê-lo da vereda. Sem saber havia dormidoa vinte metros de um hangar abandonado, e agoraachou estúpido haver dormido sobre o chão úmidoquando atrás das tábuas de pinho cheias de buracosvia-se um piso de palha seca sob o teto quase intacto.Não tinha mais sono e era uma pena; imóvel, olhou ohangar e não se surpreendeu que a ciclista chegassepelo sendeiro e freasse, ela sim como que perturbada,diante da construção, aparecendo entre as árvores.Antes que Janet o visse, ele já sabia tudo, tudo sobreela e ele em uma única maré sem palavras, de uma imo-bilidade que era como um futuro escondido. Agora elavirava a cabeça, a bicicleta inclinada e um pé no chão,e encontrava seus olhos. Os dois pescaram ao mesmotempo.14

Se em alguns blocos o narrador onisciente compar-tilha do monólogo interior de Robert, com a troca davoz narrativa, ora centrada no narrador, ora em Robert— confirmando técnicas do estilo indireto e indiretolivre —, outros blocos assumem a pura função de es-clarecimento de fatos extradiegéticos. Com isso, asinformações caracterizadas formalmente nos Autos doprocesso instaurado contra Robert (detalhes queenformarão os Autos como o processo intaurado enfins de 1956; o encontro da bicicleta de Janet pelo filhodo lenhador e a constatação por parte dos guardas deque o “o assassino não tinha tocado na mala ou nabolsa de Janet) trazem a marca da fala do narrador.

É interessante ressaltar, do que viemos comentan-do, que a utilização do discurso indireto livre, enquantomeio estilístico, resulta altamente significativo no rela-to de “Anel de Moebius”. É a partir do manejo sutil

10 FACÓ, Aglaêda. “Estranhamento”, In: Guimarães Rosa: Do Ícone ao Símbolo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 50.11 Op. Cit. p.5012 O sentido de estranho pode ser entendido, aqui, segundo Heidegger: “Estranho entendemos como o que sai e se retira do familiar (das

Heimliche) í.é. daquilo que nos é caseiro, íntimo, habitual, não ameaçado. O estranho não nos deixa estar em casa”. Cf. M. HEIDEGGER,Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p.174.

13 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.134.14 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.135.

Se a observaçãodo mundo só

se realiza através deum ponto de vista,

conseqüentemente, agrande particularidade

da obra de arte éa perspectiva exótica

dessa percepção.

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desse estilo que se dá o processoosmótico entre narrador oniscientee personagem, com as fronteirasentre ambos se evaporando, e cri-ando uma ambivalência na qual oleitor não sabe se aquilo que onarrador disse provém do relatorinvisível ou do próprio personagemque está monologando. Assim mo-delados/nivelados, personagem enarrador, ao leitor só resta pergun-tar “quem é o sujeito que pensa?”,uma vez que toda a astúcia empre-gada para destacar a onisciênciado narrador acaba por denunciar que ele já não sabetudo, que tem dúvidas e que seu poder diminui tremen-damente, por isso nivelando-se ao personagem15.

O segundo parágrafo do relato pode ilustrar essainteração: iniciando-se com “Janet freou indecisa naestreita encruzilhada, direita ou esquerda ou quem sabepara a frente”(p.134), o resto do parágrafo é relatadoatravés do discurso indireto livre preenchidoassociativamente pela seqüência de pensamentos dapersonagem (seu monólogo interior advém da técnicado fluxo da consciência). Somente após o longo trans-curso de sua corrente de pensamento Janet parecedecidir-se “À esquerda, talvez, havia uma leve desci-da na sombra, deixar-se ir depois de um simples impul-so de pedal”. Além desse parágrafo, os demais queintegram a primeira camada do relato — o que fazpreponderar o emprego do estilo indireto livre, visandonarrar a intimidade —, tendem a aproximar o maispossível o leitor e a personagem. Daí, parecer-nos plau-sível continuar indagando se o que o narrador disse emtodo o quarto parágrafo do relato, ou em parte dele,considerando as “mudas do narrador”16 , provém donarrador onisciente ou da personagem Janet, que estámonologando mentalmente. Quanto a isto notou muitobem o estudioso de Madame Bovary que o estilo in-direto livre, interagindo maquiavelicamente, transladaa narração insensivelmente do mundo exterior ao inte-rior e vice-versa. A transferência de um plano a outrodá-se por um recurso complementar, com a troca donarrador onisciente a narrador — personagem pas-

sando indvertida, não provocandocortes no relato. Com efeito, é inte-ressante observar o quanto a ques-tão do ponto de vista resultarelativizada nesses relatos:“O estilo indireto livre, relativizandoo ponto de vista, consegue uma via deingresso até o íntimo do personagem,uma aproximação à sua consciência,que é tanto maior por quanto o inter-mediário— parece volatilizar-se. Oleitor tem a impressão de ter sido re-cebido no seio mesmo dessa intimida-de, de estar escutando, vendo, umaconsciência em movimento antes ou

sem necessidade de que se converta um expressão oral,quer dizer, sente que compartilha sua subjetividade”.17

Entretanto, a despeito do meio estilístico tender aaproximar narrador onisciente, personagem e leitor, asmarcas do narrador não são apagadas, antes são níti-das como na nota sobre Fanny Hill ao pé da página137 e nos blocos das páginas 141 e 143. Essa aproxi-mação acaba por fazer ajustar tais consciências numatemporalidade indivisa, pois o monólogo interior,predelineando o movimento de leitura, ajusta “a cons-ciência do personagem-narrador à consciência do lei-tor, as vivências de um devendo ser a do outro”18. Fun-de-se, então, o tempo da história com o tempo da es-crita e com o tempo da leitura.

Cotejando com outros textos de Cortázar, depara-mos com o também irrequieto relato de “A barca ounova visita a Veneza”19 . Esse conto também apre-senta “blocos” de narrativa insertos no relato. Toda-via, “A barca” (como se intitulava inicialmente) estáprecedido de uma nota de Cortázar explicando queacabara de encontrá-lo - “o acaso e um pacote develhos papéis - e diz: “Que ruim! Escrevi-o em Venezaem 1954; eu o releio dez anos depois, e me agrada, eé tão ruim”. Em sua nota Cortázar explica que sem-pre fora tentado pela idéia de reescrever textos, masreescrever “A barca” lhe parecia falso e desleal: “Éentão que Dora entra em cena”. Recusando-se a re-escrever o relato de “A barca”, Cortázar entressacha-o com novos textos que resultam na renovação da-

15 Estudando o emprego do estilo indireto livre em Madame Bovary, o autor se refere à noção de “os personagens falavam a si mesmos econtavam-se o que sentiam, pensavam ou recordavam. Nisso estriba-se a diferença: falavam, não pensavam. Mesmo quando o narradoranota “Fulano pensou” e em seguida se retira da narração, o que fica no relato é uma voz, um personagem recitando, teatralmente, suavida interior,”(Cf. Llosa, Mario Vargas. “O estilo indireto livre”, IN: A orgia Perpétua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.154.

16 Llosa se refere às mudas do narrador como decorrência do estilo indireto livre (Cf. Op. Cit. p.139). Também Harald Weinrich, nocapítulo “Realidade e irrealidade na Linguagem” anota: “Muchas veces ni siquiera puede distinguirse si un texto tiene como perspectivala introspección del narrador que comprende e interpreta al personaje o — como estilo indirecto libre —la perspectiva del personaje queinterviene en la acción”(Cf. WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968, p.174.

17 Llosa,M. Vargas. Op. Cit. p.155.18 NUNES, Benedito. “A sintonia no monólogo interior”,In: O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988, p.64.19 CORTÁZAR, Julio. “A barca ou nova visita a Veneza”, In: Alguém que anda por aí. Rio; Nova Fronteira, p. 89-132. As citações que

comentam a origem de “A barca” foram extraídas da nota de Cortázar que está nas páginas 89-90.

A singularidade daestrutura narrativa em

"Anel de Moebius"parece ser tão

somente um jogo deprestidigitação que

tem seu contrapontono próprio relato.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 18-27, jul./dez., 1997.

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quele em “A barca ou nova visitaa Veneza”.

Se por um lado o relato de “Abarca” requer leitura diferente dade “Anel de Moebius”, por outro,ele nos põe alerta o suficiente paraaceitar a narrativa de “Anel deMoebius”, considerando o carátersui generis deste e da leitura queora realizamos, como um procedi-mento tendente a instaurar oestranhamento.

A singularidade com que a es-trutura narrativa se apresenta em“Anel de Moebius” parece ser tão-somente um jogode prestidigitação que tem seu contraponto no relatomesmo, i. é., na história que é contada, e que é a dafigura do Anel de Moebius — história encenada, re-presentada no envolvimento dos protagonistas Janet eRobert.

A história do “Anel de Moebius” pode ser assimseqüênciada: a) Janet passeia por um bosque, numamanhã, pedalando sua bicicleta, quando pára indecisana estreita encruzilhada. Tinha um caderno de capalaranja para encher, fotografias para tirar e “dezenoveanos ingleses já com muitos cadernos e milhas peda-lando”20 . Definindo-se por uma vereda da estreita en-cruzilhada, janet se aproxima de um hangar abandona-do no bosque, perto do qual Robert passara a noite:“Antes que Janet o visse, ele já sabia tudo, tudo sobreela e ele em uma única maré sem palavras, de umaimobilidade que era como um futuro escondido”21 ; b)com o pé no pedal, Janet empurra a bicicleta para dara meia volta “quando Robert cortou-lhe a passagem esegurou a direção com uma mão de unhas pretas”22 .Janet desgoverna-se, cai, e é “atacada” por Robert.No hangar Robert irrompe num acesso de desejo —misto de luxúria e ânsia de posse —, acabando porviolentar Janet que, assim, de uma cena dedefloramento vem a des/falecer; c) agora, a maiorparte da narrativa é preenchida por mutações - trans-posições - de pólos, fazendo oscilar a mente do leitorentre as alternâncias: ora estado febre, ora estadoonda e ora o estado cubo. Nessa oscilação, com jo-gos de emoções e sentimentos, o leitor chega a capitu-lar frente a qualquer possibilidade de imputar culpa aoassassino Robert que, a esta altura, já se encontra de-tido, “o processo instaurado em Potiers em fins de

1956”. Robert, defendido, “o Júrinão admitiu as circunstâncias ate-nuantes”. Também, “a apelação foirecusada e transferiram Robert àSanté na espera de execução”; d)com Robert na prisão, Janet, queagora re/vive no estado cubo, visi-ta-o. O reencontro de ambos dá-seapós o suicídio de Robert no presí-dio – só que agora no “estado cubono agora sem tempo”.

• • •

A tentativa de ordenar os passos da narrativa de“Anel de Moebius” resulta numa tarefa quase imprati-cável ou de paralisia face ao que é indefinível por na-tureza. O estado cubo do qual co-participam os prota-gonistas se caracteriza pela REPTAÇÃO, pelo “esta-do reptante”23.

Explorando os significantes reputare e reptare si-multaneamente, porém mentalizando sobretudo a ima-gem poética da “lagarta percorrendo uma folha”(p.142), chega a ser instigante senão provocante acei-tar o desafio de penetrar na simultaneidade dos esta-dos vivenciados pela protagonista Janet. Simultanei-dade que não significa permanência e continuidade,mas que traduz uma idéia de tempo estilhaçado eminstantes descontínuos ( os estados reptantes deixammarcar-se pelo que é dinâmico). É assim que Janet,saltando “de ponto em ponto ou de nota em nota”, en-tra e sai dos diversos estados (sentimentos); identida-de metafórica com o réptil lagarta (observe-se aetimologia latina de réptil arrastando os dois signifi-cados indicados): estado vento, estado reptante, esta-do cubo, estado onda. Na passagem de um estado aoutro, o ser Janet anseia um modo-de-ser que seja ode plenitude. Dai que o seu suplício se assemelha aodrama de tântalo, sempre pensando tocar o alvo e sen-tindo-o fugitivo, esta a razão da sua (dela) própria vida.Experimentando ser febre, ser onda, ser em ondas,ser em febre, “ser vento ou ser folhagem”, Janet de-sorienta-se num torvelinho de maelstrom.24

Para Janet, arrastar-se com lentidão e sofrimentode um estado a outro, reptando nos diversos estados,jogada num redemoinho de maelstrom, “passando porsuas caras e tornando a passar sem a menor visãonem tato nem limite”, sua âncora só pode ser encon-

20 Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 134.21 Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 135.22 Cortázar, Julio. “Anel de Moebius”. Op. Cit. p. 136.23 “REPTAR”: (Do lat. reputare) 1. Estar em oposição a; 2. Desafiar, provocar. (Do lat. reptare) 1. Andar de rastos; rojar-se pelo chão;

arrastar-se. O sintagma “reptar”com suas flexões aparece pelo menos oito vezes no relato. Cf. Dicionário Aurélio.24 “torvelinho”: o mesmo que redemoinho. “MAELSTÖM”, s.m. corrente do mar Ártico, junto à costa norueguesa, que se caracteriza por

constantes turbilhões. (Cf. Dicionário Caldas Aulete)

Nos jogos de emoçõese sentimentos em

"Anel de Moebius, oleitor chega a

capitular frente aqualquer possibilidade

de imputar culpa.

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trada naquela imagem da lagarta percorrendo a folha:Infinito anel de Moebius, reptação até a beira de umacara para ingressar ou já estar na oposta e voltar seminterrupção de cara a cara, um arrastar lentíssimo e pe-noso aí onde não havia medida da lentidão ou do sofri-mento mas se era reptação e ser reptação era lentidão esofrimento.25

Mas era no estado cubo que Janet ansiava perma-necer, pois nele ela voltava, ainda que confusa, a umreconhecimento de si. Reencontrava o hangar e o cho-colate e “rápidas visões de campanários e colegas”:

O pouco que podia fazer lutava sobretudo por durar aío cúbico, por se manter nesse estado onde havia deten-ção e limites, onde acabaria por pensar e se reconhe-cer.26

Se pudesse decidir por sua vontade, decidira fixar-se no estado cubo, no qual a sua sensibilidade afloravae podia lutar por uma relativa permanência. Entretan-to, àquele que aspira à plenitude, e teme ser lesado emalguma parte deste patrimônio infinito que é a somadas experiências de que um homem é capaz, o estadocúbico representa a réplica do anel de Moebius aconciliar anverso e reverso. Neste sentido todo o rela-to não deixa de permeabilizar-se por uma aguda com-preensão do ser à la Bachelard. Para Bachelard, aoreconhecer que a linguagem que usamos no dia-a-diapermanece cúmplice do continuísmo, uma vez que nãopodemos falar sem empregar todos os advérbios,todas as palavras que evocam o que dura, o quepassa, o que espera ( ponto nevrálgico de sua polê-mica com Bergsom), não há lugar para a permanênciae para a continuidade, estamos no reino do “tempo es-tilhaçado em instantes descontínuos”.27

O estado cubo — cubo corresponde a um poliedroregular com seis faces quadradas, hexaedro — é aimagem de um certo plasmar temporal, que só se

corresponderia à imagem/metáfora do anel deMoebius. Enquanto figura recorrente e de insistenteretorno no relato, o “estado cubo” representa o quesó se permite alcançar através da imagem de refe-rentes indefiníveis ou quase nada precisos, segundoo narrador: “rajadade imagens”. Dai, sua nãoparmanência, mas sua descontinuidade. Momentopontual e vetor do relato, um “meio hialino”, “suspen-são hialina”, um “agora hialino” (hialino: o que temaparência ou transparência do vidro). Na ânsia decaptar o instante hialino, de tornar possível plasmar oindizível, o “impossível explicar” que abre e prolongatoda a epígrafe claricena, o narrador do “Anel deMoebius” lança mão de sintagmas/significantes quese entre-ofuscam:

garrafas cristalinas ou torvelinhos de maelstron emsuspensão hailina ou reptação penosa sobre superfíciede dupla face ou poliedros facetados.28

Outros exemplos mais notáveis, vocábulos índi-ces, palavras e expressões valises, chamam a aten-ção e merecem destaque: “diafanidade”, “meiotranslúcido”, “cristais”, “plexiglás” (p.140); “ocea-no de cristais ou de rochas diáfanas” (p.141); “es-tado em que tudo fluía como que se criando no atode fluir, uma fumaça girando em seu próprio casuloque se abre e se enrosca em si mesmo, o ser emondas, no indefinível transferir-se que já tantas ve-zes a havia mantido em suspensão, alga ou cascaou medusa”.(p.145); “cristais líquidos ou estrato denuvens” (p.146); “pedais cromados”, “cubo de dia-mante” (p.147); “tigre de espuma translúcida”, “ní-veis vagamente glaucos”, “hélice”, “salto metálico”(p.148).

Sob o império da imagem29 , em que as rajadas deimagens se evolam num estado de evanescência e flui-dez, e ao conceber a ficção como uma teia de ara-

25 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius, Op. Cit. p.14226 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.14427 A análise do pensamento de Bachelard é feita por José Américo Motta Pessanha em “Cultura como Ruptura”, In: BORNHEIM, Gerd

et alli, Tradição/Contradição, Rio de Janeiro: Zahar/Funarte, 1987, p 59.28 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.14329 Como quer Octavio Paz, para quem a imagem poética traduz-se no lugar de uma luta entre o silêncio que se instala e forças tendentes

a fugir dele. Ato de criar realidades, através da linguagem, contrárias à lógica: “O sentido da imagem poética é a própria imagem: não sepode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma”(Cf. PAZ, Octavio. “A imagem”, In: O Arco e a Lira. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1982, p.133).

Ainda, por imagem, deve-se entender, segundo René Wellek, como o que não sendo exclusivamente da poesia, mas que tem origem a partirda analogia e da comparação, na própria definição de Ezra Pound: “aquilo que apresenta um complexo intelectual e emocional numinstante temporal”, “unificação de idéias díspares”. (Cf. WELLEK, René. “Imagem, Metáfora, Símbolo, Mito”, In: Teoria da Literatura.Lisboa: Europa-América, 1962, p.231.

30 Sobre a concepção de que “a ficção é como uma teia de aranha”, cf. nosso estudo comparativo “Clarice Lispector e Virginia Woolf: aescritura depondo o romancista”, In: Anais do 1º Congresso da ABRALIC, Porto Alegre: 01-04/06/88, v.II, p.49-55. Em Cortázar anoção de “teia de teia” alude ao homem em sua relação com a “realidade”. Seguindo a idéia do particular e do universal. o cronópiocortazariano padece de um sentimento de exceção: “sentimento de não estar de todo em qualquer das estruturas, das teias que a vida armae em que somos simultaneamente aranha e mosca”. (Cf. Prosa do observatório, p.45, e “Do sentimento de não estar de todo”, In: Valisede Cronópio. Trad. de Davi Arrigucci Junior, São Paulo: Perspectiva, 1974, p.166).

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nha,30 Julio Cortázar desenvolveuna Prosa do Observatório31 seuconceito, tão rico quanto diáfano, deimagem poética. A figura centra daProsa - uma vez que não podemosfalar em termos de personagens - ,é uma ENGUIA: “informe cabeçatoda olhos e bocas e cabelos”32 .Ela é o signo da imagem pura, cabi-de de imagens, de quem o narradorestá sempre falando, sem, contudo,nunca alcançar o objeto ( a enguia)que lhe escapa pelos dedos e, porconseguinte, da apreensão. Prosado Observatório vai configurar a a idéia-conceito deenguia sobre a qual Cortázar desenvolve a teoria doanel de Moebius. Reduto da imagem, a Prosa elabora-se como crítica às pretensões de cientificidade que tudoquer aprisionar e categorizar através de uma nomen-clatura. Crítica que vai em direção ao olharinstitucionalizado, às concepções passivas e enlatadasda realidade:

Enguias, sultão, estrelas, professor da Academia de Ci-ências: é de outra maneira, de outro ponto de partida,para outra coisa que se deve emplumar e lançar a fle-cha da pergunta.33

Para o homem que se quer lançar numa concepçãodo aberto, seu desenho da realidade deverá ondularsobre si mesmo (reptação), no anel de Moebius dasenguias, anverso e reverso conciliados. Somente nestarevolução de dentro para fora e de fora para dentro, ohomem poderá ocupar o seu posto nesta

pulsação de astro e enguias, anel de Moebius deuma figura do mundo onde a conciliação é possí-vel, onde anverso e reverso deixarão de se desgar-rar, onde o homem poderá ocupar o seu posto nessajubilosa dança que alguma vez chamaremos reali-dade. (o grifo é meu)34

Tal como Janet que parara indecisa na “estreitaencruzilhada, direita ou esquerda ou quem sabe para

a frente”, o narrador de “Anel deMoebius” tenta a tessitura de seurelato à sombra de um bosque (aesta metáfora do bosque voltare-mos), lugar da perda, do des/fale-cimento e do defloramento, onde“tudo era claríssimo e confuso aum só tempo”35; “larvas translú-cidas flutuando entre duas águas,anfiteatro hialino de medusas eplâncton”, “urdindo seus fios parauma inteligência cúmplice, teia deteias”36 . Dai, também, sua inca-pacidade “de pensar articulada-

mente”37 . Incapacidade e impossibilidadeproblematizada, tematizada senão dramatizada portodo o texto de “Anel de Moebius”. Neste sentido eao pé da letra, todo sentimento de perplexidade e es-tranheza do leitor diante do texto decorre, decerto,da correlação com a epígrafe clariceana escolhidapor Cortázar. O texto de “Anel de Moebius”. éreptação do texto epígrafe de Clarice Lispector eesse daquele, uma vez que, correlacionados formamum espaço textual único.

A epígrafe de Clarice, que nos lança para o mun-do representado no conjunto de sua obra, tambémconvida ao diálogo com o texto de Cortázar. Umaespécie de forma monologal reúne a escritura deambos os autores. Ora, num e noutro o processo decomunicação parece não se fundamentar, não se re-alizar através de um código, mas, como mostra W.Iser,numa “dialética movida e regulada pelo que se mos-tra e se cala”38. Parece confluir aí um caráter deescrita semovente que envolve a um só tempo aepígrafe e o próprio relato de “Anel de Moebius”,com um certo tema da paixão que predispõe o ato deleitura, arremetendo tudo para o terreno movediçoonde se situam texto literário e leitor. Ambos os tex-tos ( epígrafe e relato) exigem do leitor uma partici-pação especial, na qual ele deve atuar com seu pró-

31 CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Trad. de Davi Arrigucci Junior. São Paulo; Perspectiva, 1974. A apresentação à Prosa,feita pelo tradutor, intitula-se “Paráfrase do Tradutor”e resultou num texto “síntese” da poética cortazariana: “Cortázar revém,reinventado, reinventando: sinuoso, elástico, irônico, erótico, revolucionário: enguias, estrelas, estrias nos açudes celestes em que aperseguição persiste com a proposição de um novo perscrutar: metafórico, metafísico, feérico, fálico, telescópico: abarcante desejocósmico de abraçar num só ato tudo de uma vez: curso de enguias e estrelas, decurso de palavras, discurso global do homem e de suanecessidade de mudar”.

32 “Enguia”, espécie de peixe ápode, serpentiforme.33 CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Op. Cit. p.43.34 CORTÁZAR, Julio. Op. Cit. p.7335 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.136.36 CORTÁZAR, Julio. Prosa do Observatório. Op. Cit. p.15 e 45 respectivamente.37 CORTÁZAR, Julio. “Anel de Moebius”, Op. Cit. p.146.38 ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”, In: Luiz Costa Lima (Org). A Literatura e o Leitor. - textos de estética da recepção.

São Paulo: Paz e Terra, 1979, p.90.

Para o homemque se quer lançarnuma concepção

do aberto,seu desenho darealidade deveráondular sobre si

mesmo.

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prio universo cultural de leitor, suas vivências, suavisão de mundo, seus valores, ou renunciando a tudoisso. O labirinto como espaço de representação é osigno do erradio e do transverso. Jogando com umaescrita que envolve a participação do leitor, o aludido“espaço textual único” metamorfoseia seu aproximar-se do labiríntico do real:

Porque a ficção, a narrativa, o conto, hoje — marca-dos na sua base pelo alto grau de consciência do es-critor sobre a própria criação —, parecem oscilarentre estes dois pólos dialéticos: optando por uma“maneira de dizer”, realizando uma escolha ao níveldo contar, o escritor está “matando” as outras formaspossíveis, cometendo um “assassinato” em relação aoreal.39

Problematizando a escrita ao nível do “contado”,obrigando a participação do leitor no “como” o relato étecido, “Anel de Moebius” encena um processo nar-rativo onde o fluxo da consciência, modalizando a téc-nica do monólogo interior e sobretudo o meio estilísticodo discurso indireto livre, vai arrastar o leitor para omundo representado no qual tudo oscila entre pólosdialéticos — de onde nascem os estados porque passaa protagonista.

Em relação à epígrafe, “Anel de Moebius” deixa amarca da diferença ( o outro) por realizar-se num es-paço textual estruturado ( os limites do conto), com asvozes dos narradores e suas mudas e por exigir doleitor um tempo de leitura muito maior do que o daepígrafe.

Numa época marcada pelo recorte das “semelhan-ças”, acabamos por tanto ver “semelhanças” e muitopouco as “diferenças”. Contudo, é pertinente notar quea literatura contemporânea, muito consciente de seusprocedimentos, aberta para o livre exercício da lingua-gem, a completa autonomia do texto, acaba por atenu-ar os limites de demarcação entre os gêneros. Com oadvento de uma episteme que põe em demanda a cri-se de representatividade na arte, o conto, a narrativatradicional sofreram evoluções e chegam àmodernidade acentuando seu caráter “poético”, depoesia mesmo. Daí que, a epígrafe de Clarice Lispector,um excerto do romance Perto do coração selvagem,cai numa autonomia em relação ao texto de origem ebem assim na sua relação com o relato de “Anel de

Moebius”, porém dialogando com este numa espéciede síntese metafórica de toda a des/orientação que orelato difunde.

É penetrante notar o quanto Clarice trafega livre-mente por dentre os gêneros literários, tornandoinviável a classificação de suas narrativas que têmsido mais acertadamente vistas como uma formapoemática.40 Se a epígrafe-metáfora de Clarice podeser usada com variados graus de limite figurativo,tornando pertinente a pergunta “De que valeriam asmetáforas se fossem exatamente a mesma coisa?”,parece plausível ver nela a reptação do bosque comoponto avançado criado pelo narrador do relato, paranele colocar a imagem de uma vida concebida comoensombrada por um bosque.41

Convém lembrar, como já se assinalou, de a figurade Clarice Lispector ser o contrário do espíritocartesiano, “para o qual a linearidade das naturezassimples é o ideal do conhecimento”42 . Não é demaisnotar que se tra ta de uma compreensão não-euclidiana da realidade que opera a partir de umaperspectiva mais aberta, dando voz a sua própria equa-ção existencial. Quanto a Cortázar é relevante no-tar, como o fez J. Alazraki, que sua geometria, suacompreensão não-euclidiana da realidade, propugna,em termos de uma nova postulação da realidade, umaescr itura “neofantástica” como alternativagnoseológica:

Não só o fantástico novo, senão toda a literatura con-temporânea opera a partir de uma perspectiva maisaberta, sobre a qual o escritor abarca um campo maisamplo, e mais complexo, no qual as categorias de cau-sa e efeito e as leis de identidade começam a perder aprecisão de seus contornos, e com elas a límpida e pro-lixa imagem da realidade tecida nas lançadeiras dossilogismos.43

Portanto, lembrando um pouco de mestre Borges,orgulhamo-nos tão-somente de havermos lido ambosos textos - epígrafe e relato - e num restrito espaço deinterferência e confluência ter-se dado deparar comleituras cruzadas. Dai, a leitura desses textos deixar aincômoda sensação de areia nos olhos, pois que aocrítico, aqui, é vedado manter qualquer relação de su-bordinação quanto ao objeto literário; antes, deve ad-quirir seu mesmo nível e, portanto, seu mesmo grau de

39 MARIA, Luzia de. O que é conto. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.93.40 NOVELLO, Nicolino. O Ato Criador de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Presença, 1987.41 Cf. Gass, William H. “Em termos da biqueira do sapato: Ficção e as imagens da Vida”: “Numa metáfora significativa, nunca

se pode descer ao literal. (...) realizar, quando pudermos, a total e ardente participação do leitor naquilo que tem de ser umarelação puramente conceitual, um envolvimento poético com a linguagem. ”In: A Ficção e as Imagens da Vida. São Paulo:Cultrix, p.77.

42 PELLEGRINO, Hélio. “Perto do coração selvagem”, IN: Perto de Clarice. Homenagem a Clarice Lispector. 23 a 29/11/87. Casa deCultura Alvim.

43 ALAZRAKI, Jaime. En Busca del Unicornio: Los cuentos de Julio Cortázar. Madrid: Gredos, 1983, p.31.

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ficcionalidade. Logo, a leitura exigida há que sertransferencial: “às vezes se chama paixão - na qual osujeito se aniquila no objeto”44 . Com efeito, os textosque ora comentamos parecem se auto-denunciar comoescritura silenciada, excluída dos sistemas e, num lu-gar intersticial entre o exílio e o desterro, se esquivamdas leituras oficiais. Da interação, epígrafe-relato/lei-tor, resulta “essa esquiva” que, para mencionarBarthes, é a própria literatura.45

• • •

Girando devagar, como os raios de um holofote, aepígrafe clariceana paira sobre o relato de “Anel deMoebius”, projetando na mente do leitor miríades deimpressões. Assim como um holofote, ou espécie decubo, ou poliedros facetados, informe e sem aresta,ela põe em espiral a mente do leitor, cada vez maisprojetada para uma região onde tudo é quedo e inson-dável, — onde pairam “névoas vagas e frescas comoas da madrugada”. Sua tênue brisa não é conduzidapelo acaso, antes, como de uma estrela surgindo nocéu, ou de um Farol, vai se intrometendo pelos mean-dros do relato. E a essas luzes resvaladiças e a essaslúdicas brisas que a epígrafe (holofote) sopra, não sepode dizer-lhes (como Mrs. Ramsay ao Farol de Tothe Lighthouse) que o que repousa ali no relato de “Anelde Moebius” é imutável. Ao contrário, nele, elas po-dem tocar, podem destruir.

O trajeto que nos impusemos neste estudo, a saber,cotejar a epígrafe de “Anel de Moebius” como metá-fora catalizadora do relato, na tentativa de ampliar a

ida e a volta de um texto ao outro — devolvendo oreflexo reptante de um anel de Moebius —, não nosinibiu de retomar, unicamente, algumas obras de Claricee alguns textos críticos sobre a autora. A despeito daescassez de bibliografia sobre a epígrafe, um artigo deH. Verani foi fonte de leitura e estímulo46 .

Sobre a figura do anel de Moebius — a fita deMoebius —, levantamos uma pesquisa heurístico-onomástica sobre sua origem e propriedades.Deliberadamente, deixamos por último e para a nota oseu valor significante.47

À guisa de conclusão, à maneira de uma “enguia”ou de um anel de Moebius, resta acrescentar que di-ante de um texto como “Anel de Moebius”, como ummundo que concilia anverso e reverso — num mundoassim figurado —, só resta a escolha de um leituranorteada pela imperspectiva, que esboroe não só nos-sas noções de espaço e tempo mas qualquer vetor ouponto axiomático.

Reservamos para o final deste trabalho, que, alémde ser um trabalho sobre leitura, é uma reflexão sobrea epígrafe, a nossa epígrafe extraída do item “o efeito-leitor”, análise do conto “Orientação dos gatos” feitapelo crítico francês Jean Andreau ao indagar “Queminvadiu a ‘Casa tomada’ ”:

O texto não responde a estas questões e nem tem querespondê-las, uma vez que elas não são colocadas. Cria-se uma espécie de vazio semântico que o leitor, em seuélan, é tentado a preencher com sua própria imaginaçãoe segundo suas disponibilidades culturais. Mas, agindodessa maneira, o leitor dá uma resposta a uma questãoque a narrativa não coloca e anula o texto simplesmentepor querer satisfazer demais sua própria razão.48

44 ROSA, Nicolás. “Estos textos, estos restos”, In: Los fulgores del simulacro. Cuadernos de Extension Universitária. nº 15, Santa Fé:1987, p.10.

45 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, trad. de Leyla Perrone-Moisés. p.31: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logromagnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu chamo, quanto a mim:literatura”.

46 VERANI, Hugo J. “Las mascaras de la nada: Apocalipsis, Dylan Thomas Y ‘El perseguidor’ de Julio Cortázar”, In: Narrado-res latino-americanos, 1929-1979, II Tomo, Caracas: Italgrafica, 1980. XIX Congresso Internacional de LiteraturaIberoamericana.Cabe ressaltar que tendo realizado amplo levantamento de bibliografia sobre Julio Cortázar, nada encontramos sobre “Anel deMoebius” enfocado na perspectiva que hora desenvolvemos.

47 MÖBIUS (August Ferdinand), 1790-1868. Matemático e astrônomo, ensinou toda a vida na Universidade de Leypzig. Publicou obrasde astronomia e geometria. Foi num memorando que apresentou à Academia das Ciências de Paris as propriedades das superfícies comum só lado, tal como a fita que tem o seu nome: Fita de Möbius - superfície com um só lado; pode-se obter torcendo uma vez uma fitade papel retangular e colando as extremidades topo a topo:

Trata-se de trabalho fundamental para o progresso da geometria projetiva. A faixa é uma figura tridimensional. Confiram-se:FREITAS MOURÃO, Ronaldo Rogério de. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CNPq, 1987.GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1979, v.8.LOUIS BOURSIN, Jean. Dicionário Elementar de Matemáticas Modernas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983.

48 ANDREAU, Jean. “Personage, lecteur auteur”. Distantiation et engagement cortazariens. L’Arc (80) , Paris, [s.n.t.] ( Revue trimestriellepublié avec le concours du Centre National des Lettres).

A ’B ’

A

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Esse trabalho teve por finalidade a de tentar fazer umaleitura crítica da construção textual, destacando o uso dasintaxe. Deve-se ressaltar que, devido a riqueza das obrasem estudo e pela própria natureza deste trabalho, optou-sepor analisar alguns aspectos das obras em lugar de outrosnão menos importantes.

Palavras-Chave:Análise textual; leitura.

This work tries to make a critic reading of the textualstructure emphasizing the use of syntax. According to thegreatness of the studied works and by the nature of thispaper it was chosen to analyse some aspects of the worksin place of others no less important.

Key Words:Textual analysis; reading.

* A idéia inicial dessetrabalho foidesenvolvidaconjuntamente comoutras colegas dadisciplina LiteraturaInfanto-Juvenil,ministrada no IIsemestre de 1993 nocurso de Letras doCEUD/UFMS.

**Marileusa Ferreirada Silva é professora doDepartamento deComunicação do CentroUniversitário deDourados/UFMS.

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29Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 28-33, jul./dez., 1997.

I - IntroduçãoEste trabalho apresenta uma análise textual e psi-

canalítica das obras Alice no País das Maravilhas eAs Aventuras de Alice Através dos Espelhos.

Lewis Carrol é considerado um dos responsá-veis pela nova visão da vida através da literatura doabsurdo, o nonsense. Diferente dos contos dePerrault, Andersen, Grimm, observa-se ainda que omaravilhoso se faz presente nas coisas do dia a dia.

Essa análise textual procurará destacar a ques-tão do uso da sintaxe no texto. Será apresentadotambém exemplos de leitura psicanalítica que po-dem ser aplicadas à obra.

II. Leitura das Obras2.1 - UMA LEITURA DE ALICE NO

PAIS DAS MARAVILHAS

2.1.1 - ORIGEM DA OBRA“Alice no País das Maravilhas” foi escrito na

segunda metade do séc. XIX, época em que o soci-al era tema freqüente dos romances.

Alice é um livro que, mesmo enraizado em seutempo, anuncia a modernidade (contemporãneo,romance não-linear: começo, meio e f im) .

O livro Alice no país das Maravilhas nasceu daseguinte maneira:

“Numa tarde dourada de sol, o professor LewisCarroll convidou Alice Liddell e as irmãs para da-rem um passeio de barco no rio Tâmisa, Alice, ale-

UMA LEITURA DE"ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS"

E DE AS "AVENTURAS DE ALICEATRAVÉS DOS ESPELHOS

DE LEWIS CARROLL*

Marileusa Ferreira da Silva**

gre, pediu-lhe uma história. Carroll, que não sabiadizer não à sua afilhada predileta, fez o que Alicepedia e inventou logo ali uma história, cuja heroínatinha o mesmo nome que o dela.

Para quem leu o livro ou assistiu ao filme,pode-se dizer que tem partes divertidas, mas éuma história sem pés nem cabeça. É a fantasiaque faz o encanto e a originalidade de Alice. Afantasia é precisa, porque põe alegria no cora-ção e imprevisão nos pensamentos. É também afantasia que permite imaginar uma lagarta fu-mando cachimbo, um grifo e uma tartaruga dan-çando a quadrilha das lagostas e um grande gatodesaparecendo e deixando apenas à mostra umsorriso.

A própria menina inglesa para quem foi escrita ahistória disse.- “- Quero que seja uma história sempés nem cabeça. Despropositada como um sonho!“Há aventura mais bonita que um sonho?”

Quem lê o livro, chegando ao final, há de acor-dar como Alice, deslumbrada com tudo aquilo queviu e viveu, ficando sabendo que o País das Mara-vilhas pertence a todos os meninas e àquelas pes-soas que tal como os personagens, comuns e semcomplicações, utilizam o dom divino da imagina-ção.

2.1.2 - ANALISE TEXTUALConstrução Lingüística Literária

Recursos Expressivos1. Figuras fônicas:a) Anáfora

Ex.: p. 92 - “Ora, o quê! Ela a Rainha!”

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b) Aliteração - repetição dasmesmas sílabas no mesmo versoou nos versos seguidos.

Ex.: p. 62 - “... naquela dire-ção, disse o gato... com a patadireita.” p. 81 - “Os jogadoresjogavam...”p. 86 - “Isto é o que eu queriaque...”p. 119 - “Comece no come-ço...”

c) Consonância - uniformidadede sons na terminação das pala-vras ou das frases.

Exs.: p. 51 - “... mas achava que não adianta-va...”p. 54 - “... outro criado também uniformiza-do...”

d) Onomatopéia - reproduz aproximadamente cer-tos sons ou ruídos.

Exs.: p. 59 - “ ... Uai! Uai! Uai!”p. 60 - “ ... Buá, buá, buá.” p. 92 - “Grifo Hjckreh!”

Expressividade Morfológica1. Diminutivo - transmite afetividade.

Exs.: p. 24 - “ ... um louro, uma aguiazinha...”p. 42 - “...um cachorrinho a espiava...”p. 124 - “ ... umas folhinhas secas que tinham...”

2. Neologismo- palavra tomada com sentido novo.EX.: “A tartaruga falsa, olha para Alice com des-prezo - como você é burrinha!”0 nonsense como se depreende deste exemplo éa palavra que diz seu próprio sentido. Tortura +Tartaruga é = Torturuga.Embora a palavra Torturuga não possua qual-quer sentido particular, ela não é a ausência des-te. Pelo contrário, ela é a abundância dele por-que doa e soma o sentido. No caso, de “Tartaru-ga que tor tura”, numa grande economiavocabular (Torturuga).

3. Paranomásia - emprego de palavras semelhan-tes no som.

Exs.: “torturuga” “brilha, esbrilha”4. Substantivação da onomatopéia.

Ex.: p. 117 - “Se alguns dos jurados é capaz deexplicar esse blábláblá, eu lhe dou um doce.”

5. Repetição.Ex.: p. 21 - “Rato, de um rato, para um rato, umrato, ó rato!”

6. Iconização - modelização do signíficante em sig-nificado.

ícone - signo que mantém uma relação de seme-

lhança com a coisa significada.Uma figura: a história do rato

trazendo nela inscrito o rabo dosprotagonistas, gato-rato, e deação de perseguição que terminana palavra Prato, em cujo interi-or é devorado o Rato.

A Professora da falsa tarta-ruga, a Torturuga, que já trazinscrustada em seu nome a qua-lidade torturante.

Linguagem-coisa - p. 11 e 17:“Palavra, som e imagem constro-em, simultaneamente, uma men-

sagem icônica que se faz por inclusão e síntese,sugerindo sentidos apenas possíveis. É a informa-ção lançada no horizonte da arte feito de “um re-talho de impalpável, outro de improvável, cosidostodos com a agulha da imaginação”(Machado deAssis).

P. 17: “Figura passa a designar, agora, um tipode construção icônica, seja ela visual, sonora, ouverbal, estruturada com base em alguma semelhan-ça que une a forma qualitativa do signo àquela doobjeto que representa. Figuras que, mais do que re-presentam, desejam, representar os objetos perten-centes à realidades de outra ordem: aquelas dasformas possíveis, cuja existência se deve ao fatode poderem ser imagináveis, independentes da con-formação da experiência e da razão.”

“Alice, o Grifo, o Rei e a Rainha de Copas. Fi-guras apenas. Não há modo de vê-los como répli-cas do ser humano. Não há como provar sua exis-tência no contexto extratextual. Simples formas depensamento feitas da analogia palavra-som-imagem.

Seres de papel que habitam o imaginário do livroe se transformam em lances vivos para outras for-mas de pensamento no instante mágico da leitura.

De Alice, não se tem a definição de uma repre-sentação visual, mas, ao contrário, a baixa defini-ção de uma figura, que é, ao mesmo tempo, bruxa,fada, serpente, anã e monstro. Tudo isso e nada dis-so. Alice é um poder ser. Sonho dentro de um so-nho. Formas de metamorfose tal qual um diagramade uma cadeia de pensamentos, na qual ela própriase vê inscrita como signo.

“Quando eu lia contos de fadas, pensava queessas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu me-tida numa dessas estórias! Deve haver um livro es-crito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer,escreverei um... mas eu já cresci” - e acrescentou,cheia de tristeza: “pelo menos aqui não existe maisespaço para crescer”.7. Estranhamento - referente percebido de certamaneira pelo autor.

Ex.: “Exmo. Sr. Pé Direito de Alice”.

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Pode se dizer que, a partirda entrada do coelho Brancoem cena, tudo é estra-nhamento.8. Materializacão de ele-mentos abstratos em objetosconcretos - explora a peculi-ar idade do mundo infantil(que consiste em indissociaro real e o imaginário), dondedecorre a facilidade em trans-formar objetos, animais, sen-timentos, fenômenos da natu-reza e os próprios pensamen-tos infantis, à imagem e semelhança de seres hu-manos.

Ex.: Cartas de baralho, coelho, gato, lebre, rato.

Expressividade da sintaxe do discurso poé-tico1. Repetições enfáticas (enguiço de pensamento)

Ex.: p. 20 - “E agora? As coisas estão piores doque nunca - Pensou a pobre menina - Nuncaestive tão pequena assim antes.Nunca!

2. Hipérbole - é o exagero na afirmação.Exs.: p. 17 “ ... derramando baldes de lágrimas.”p. 58 “... um sorriso que ia de uma orelha aoutra.”

3. Apresentação de um super código pictórico.Ex.: p. 9 A OS p. 31 “0 coelho em PUR” p. 105

2.1.3 - UM EXEMPLO DE LEITURAPSICANALITICA APLICADA.

Basearemos essa análise no momento histórico,onde o Rei era apenas uma figura simbólica. Anali-saremos o instante em que Alice estava no julga-mento das Tortas.A Rainha - Apresenta-nos uma pessoa cheia defutilidades e seguida pelos súditos.

Exs.: tít. do cap. 11 - Porque as tortas tinhamsumido ela convocou um julgamento.p. 111 - No meio dos depoimentos, ela pede umalista de cantores.Parecem que estes dois assuntos estão fora de

questão no livro, entretanto lembremos que ononsense, onde o absurdo aparentemente é despro-positado, nos mostra nestas cenas como a Rainhanão se preocupa com assuntos sérios.

Ela tem o controle total do País das Maravilhas,seus súditos temem contrariá-la, mesmo ela sendouma ditadora.

Ex.: p. 110 “Aqui a Rainha olhapara o Chapeleiro.”Nessa cena o Chapeleiro fica com

medo da Rainha mandar cortar suacabeça.0 Rei - Aparentemente ele dá umaidéia de autoridade, que é ele quemcomanda o reinado. Expressõescomo:

Exs.: p. 108 - “Dêem a sentença.”p. 110 - “Preste o seu depoimentodisse o Rei e não fique nervoso senão mando matá-lo imediatamente.”Porém mais adiante na narrativa

sua verdadeira personalidade é revelada. Quando oCoelho Branco o corrige:

Ex.: p. 117 - “Desinteressante é o que Vossa Ma-jestade quer dizer, naturalmente, disse em tommuito respeitoso, mas (aqui a quebra da expec-tativa de que acontecerá algo que contradizerá oanterior), carrancudo e fazendo caretas.”O que percebemos é que o Coelho Branco não

tem um respeito verdadeiro para com a Rei e, simuma imagem de que o monarca é um incompetente.O que é repartido pelos demais e pelo próprio au-tor.

Ex.: “Houve uma salva de palmas no salão. Eraa primeira coisa realmente inteligente que o Reidizia nesse dia.”

Alice - Continua suas aventuras relacionando oseu conhecimento de mundo anterior com estenovo. A procura de si mesma, procurando o ab-surdo para alguns, mas para ela, coisas comuns eexploráveis.Outros personagens - Porcos-da-India: repre-sentando a ignorância e a cegueira do povo, elesnão podiam se manifestar de nenhuma forma, poiseram logo colocados em um saco e os guardassentavam sobre eles. Coelho: o subconsciente;Alice durante suas aventuras corria sempre atrásdele.

2.2 UMA LEITURA DE “AS AVENTURASDE ALICE ATRAVÉS DOS ESPELHOS”

2.2.1 - ORIGEM DA OBRAEssa obra faz parte continuação de “Alice no

país das Maravilhas.Alice no Pais das Maravilhas e Alice Através

do Espelho formam obras singulares que,construídas com elementos da realidade, são muitomais ricas que qualquer história de fadas. Nesteslivros, descobre-se o maravilhoso nas coisas cotidi-anas e em nós. Tudo quanto possuímos de poético ede absurdo se apresentam nesses livros. Ao descer

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pela toca do coelho, Alice passaa habitar - como quando atraves-sa o espelho - um país diferente econhecido.

Em Alice Através do Espelho,o espelho simboliza o elementochave da problemática do incons-ciente. Na narrativa, Alice vai aoencontro de seu inconsciente mer-gulhando no fundo do espelho paraviver o mundo de suas fantasias,escapando do controle que se im-põe por obediência ao adulto,onde em vários trechos pode-seperceber nitidamente a critica aomundo adulto que corrompe e domestica a criança.

Ex.: - “Você nunca foi castigada?- Sim - respondeu Alice mas só quando eu tive

culpa”.“Who are you?” Com essa pergunta, LewisCarroll soube ir ao fundo do inconsciente do seusleitores - crianças e adultos - os “pequenos”encontrão ironia nessa dúvida sobre a personali-dade mas os grandes saberão o seu íntimo signi-ficado sobre ela.Ex.: “Quem é você?Eu - eu mal sei, senhor, neste momento - ao menossei quem eu era quando acordei esta manhã, masacho que devo ter mudado muitas vezes desde en-tão.” (em Alice no País das Maravilhas).A obra de Carroll é completamente surrealista,

já que explora o inconsciente, mas em certas pas-sagens o surreal é bem claro aos nossos olhos,como no aparecimento o desaparecimento do gato.Outras passagens também envolvem problemas delógica, como na conver sa de Alice com oChapeleiro.

A poesia, os jogos de palavras, os trocadilhosestão derramados em todas as páginas de suasobras. Lewis joga livre com o pensamento de seuspersonagens e as r imas atravessam a obrailuminando-a.

2.2.2 - ANALISE TEXTUALPerfil Estético - EstilísticoA obra poética do mestre do nonsense

apresenta-se com profundas mensagens e represen-ta a mais notável representação lúdica da lingua-gem e do pensamento, portanto, o estudo estilísticoda obra levara à formulação deste universoficcional. 1. Iconização: modelização do significante em sig-nificado.

Ex.: p. 21 - “Jaguadarte”. 2. Estranhamento: rompimento da lógica.

Ex.: p. 41 - “Um bode, sentadoao lado do Cavalheiro de Branco,fechou os olhos e disse em vozalta...”3. Singularização: modo de apre-ensão da realidade.Ex.: p. 45 “Os insetos lá não medão prazer, na verdade explicouAlice - porque tenho medo deles,pelo menos dos maiores.”4. Materialização: explora apeculiaridade do mundo infantil,que consiste em indissociar o reale o imaginário; donde decorre a

facilidade em transformar objetos, animais, senti-mentos, fenômenos da natureza e os próprios pen-samentos infantis à imaginação e semelhança deseres humanos.

Exs.: p. 16 - “As peças de Xadrez”.“Ela se abaixou de quatro para observar melhor.As figurinhas de xadrez estavam andando na sala,duas à duas.”Em “Alice Através do Espelho”, a linguagem re-

vela o emprego de figuras fônicas tais como:a. Anáfora - Ex.: p. 76 - “E ela mesma tentouendireitar o broche. Mas era tarde: o alfinete ti-nha saltado e picado o dedo da Rainha.”b. Aliteracão - Ex.: p. 21 - “Garra que agarrabocarra que urra.”c.Consonância - Ex.: p. 22 - “Era Briluz aslesmolisas touvas. Roldavam e relviam osgramilvos. Estavam mimsicais as pintalourvas.E os momirratos davam grilvos.”d. Onomatopéia - Ex.:.p. 65 - “Puff”.Em “Através dos Espelhos”, a linguagem adqui-

re também um colorido todo especial, devido aosdiminutivos, que transmitem afetividade, e aos neo-logismos, que por sua vez, tomam palavras com sen-tido novo

- Diminutivo - Exs.: p. 67 - “Um pouquinho” p. 82 - “Um caranquejinho”- Neologismos -Exs.: p. 66 - “Irmão furibundo”p. 21 - “Era Briluz as lesmolisas touvas.”Na obra há também a presença de um super có-

digo pictórico que denota a expressividade da sin-taxe e revela o próprio objeto da temática, o espe-lho.

Ex.: p. 21 - “JAGUADARTE” (refletido no es-pelho).

2.2.3 - UM EXEMPLO DE LEITURAPSICANALITICA APLICADA

O livro de Carroll sobre o ponto de vista psicoló-gica e repleto de possibilidades, mas neste trabalhoa anàlise será somente do capítulo que inicia a obra.

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A estória resume as aventu-ras de Alice desde que ela sonhaatravessar o espelho da sala desua casa. 0 sonho representa afuga da nossa realidade - ladoobscuro e incerto dos aconteci-mentos; o espelho, por sua vez,refere-se à função refletora dopensamento, s imbolizando oautoconhecimento e a consciên-cia, como também a verdade e aclareza, portanto, pode-se dizerque Alice vai ao encontro de seuinconsciente, mergulhando no fun-do do espelho para desvendar a desconhecido. Paraadentrar à casa do espelho a menina utiliza a larei-ra - símbolo da família - deixando toda a proteçãodo seu ambiente conhecido para ir em busca do mis-terioso, do obscuro, em busca da “casa do espe-lho.”

Na “casa do espelho”, o primeiro gesto que Ali-ce fez foi o de olhar se havia fogo na lareira, e fi-cou muito contente em saber que havia “fogo deverdade.” 0 poder de destruição do fogo é interpre-tado geralmente como meio para o renascimentoem uma esfera mais elevada e, por uma relaçãoanalógica, pode-se dizer que a menina Alice cres-ceu interiormente, se libertando do mundo adulto,como pode-se observar claramente neste trecho:

Ex.: p. 16 - “Assim ficarei tão quentinha aquicomo na minha antiga sala, pensou Alice, e na ver-dade até mais aquecida, porque não vai haver nin-guém para ralhar comigo e me tirar de junto do fogo.Ai, que engraçado, quando me virem aqui do outrolado e não conseguirem me pegar.”

Na sala da “casa do espelho” Alice observa vá-rias peças de xadrez andando na sala “duas à duas”.Na narrativa o nümero dois é constante e simbolizao equilíbrio na visão de mundo dualista: bem/mal;

vida/morte; dia./noite, etc. 0 mun-do adulto imposto no mundo infan-til.

O jogo de xadrez, que tambémse relaciona com o mundo, dualistaaparece na estória como o campoque Alice deve atravessar para seencontrar interiormente. As per-sonagens, as próprias peças doxadrez, simbolizam as oposiçõesinternas e a evolução do “Eu.”

A interpretação para “AliceAtravés dos Espelhos”: casa doespelho, aqui apresentada, é ape-

nas uma das possíveis leituras que podemos fazer.Vários temas aparecem na estória, e é esta riquezade idéias, esta variedade de significados profundosque tornam o livro de Lewis Carroll uma obra dearte.

III. ConclusãoConstatamos que as obras de Lewis Carroll,

“Alice no País das Maravilhas” e “As Aventurasde Alice Através do Espelho”, são obras que rom-pem com a sintaxe linear - inicio, meio e fim -fazendo com que a atenção do leitor seja redo-brada. Percebemos, portanto, que Lewis Carrollé um autor inovador. Suas obras são de cunhoimaginário, totalmente icônicas e com a predomi-nância do nonsense, levando cada leitor a umadiferente interpretação das obras.

O elemento fantástico e maravilhoso, apresen-tado nas obras de Lewis Carroll, desperta nos seusreceptores o prazer pela leitura, pela criatividade, eoferece ainda muitos outros subsídios a serem ex-plorados e aprofundados por todos aqueles que pre-tendem desenvolver um trabalho no campo de Lite-ratura Infanto-Juvenil.

IV. Referências BibliográficasCARROLL, Lewis Aventuras de Alice Através dos Espelhos. SAo Paulo integral Tradução cedida pelo Círculo do Livro por

cortesia de Sebastião Uchoa Leite.CARROLL, Lewis Alice no Pais das Maravilhas. São Paulo: -Brasil S/A, Produção de Oliveira Ribeiro Netto.COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil Juvenil. São Paulo: Atica, 4ª ed., 1991.KHÉDE, Sônia Salomão. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Atica, 2. ed. 1990.MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infanto. Brasília: Summus, 3. ed. 1979.NARDES, Laura Battisti. Literatura Infanto-Juvenil: a estética literária em Lígia Bojunga Nunes/Tese. Brasília: Universo,

1988.ROSEMBERG, Flávia. Literatura Infantil e Ideologia. São Paulo: Global, 1985.PASCHOAL, Erlon José (Tradução) Dicionário de Símbolos. Herder Lexikon. São Paulo: Cultrix, 1990.

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* Edgar Cézar Nolascoé mestre em Teoria daLiteratura pela UFMG

Acho que inventei tudo, nada disso existiu!Mas se inventei o que ontem meaconteceu – quem me garanteque também não inventeitoda a minha vidaanterior a ontem?

Clarice Lispector

Com base na figura do autor, este artigo discute oprocesso de criação praticado por Clarice Lispector.

Palavras-chave:autoria textual, produção

According to the author’s illustrations, this articlediscusses the creation process pratised by Clarice Lispector.

Key-words:textual authorship, production

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35Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997.

Passados vinte anos (1977-1997) da morte de Clarice,muita tinta ainda corre no papel a despeito de sua produ-ção, e, conseqüentemente, sobre a própria escritora, umavez que ela, ao escrever, também se escrevia nas entre-linhas da escritura, deixando na grafia não só as pegadasde tal prática, como também daquele que a praticou.Desse modo, ao estudarmos aqui o processo de criaçãooperacionalizado por Clarice, um corpo, paralelo ao cor-po escritural, se levanta e se apresenta no cenário dotexto: um corpo, bem entendido, aquém e além do real,porque advindo completamente do ficcional, mas que, por“uma lembrança circular”, me faz lembrar da imagem-corpo do escritor ali interposto que trago comigo enquan-to sujeito-leitor de sua obra.

Pela constatação de que o que sobra ao leitor e aocrítico é tão-somente um “fictício de identidade” autoral,e o fato de que Clarice Lispector fez de sua vida matériapara sua ficção, acrescentamos, agora, que a autora fezda busca pela/na linguagem a inscrição e a procura desua própria identidade de escritor.1

Para melhor abordarmos e exemplificarmos o que aquiqueremos tratar, vamos nos valer das obras A Hora daEstrela e Um Sopro de Vida, por entendermos que mes-mo não sendo elas romances, mas o “puramente roma-nesco”, tratam do factício e do fictício de toda identidade,quer esta seja de uma obra ou de um sujeito. Nesse es-

paço romanesco, onde o escritor escreve sem nunca es-crever,2 ocorre a circulação incessante de seus desejose a inscrição de seu prazer que, como a escritura, é in-sustentável, impossível, circulando infinitamente nessamaquinaria de linguagem desejante chamada escritura.

De acordo com Michel Schneider, diríamos que asescrituras, tanto a de A Hora da Estrela quanto a de UmSopro de Vida, trabalham, num certo ponto de sua cons-trução, o encontro de seu autor ficcional (?) com seuleitor, na medida em que um interroga sobre o outro, comose um sempre pudesse dizer a identidade do outro. Nes-se sentido, a prática escritural dessas obras encontra-seaberta, demandando uma participação ativa do leitor parasua construção inacabada.

A assinatura (ou nome próprio) Clarice Lispector apa-rece como um dos 14 subtítulos que abrem o registrochamado de A Hora da Estrela.3 Diferentemente dosdemais subtítulos, esse não aparece escrito no corpo daescritura, mas, como essa, é totalmente explícito desdesua origem, remetendo o leitor para um autor sem más-cara: traços de um corpo já-escrito e já-lido em outrasescrituras clariceanas vêm se dizer ali, nessa última, que-rendo dizer ao leitor que essas escrituras nada mais sãoque seus “papéis de identidade”. A cada nova escritura,a cada novo registro, ele se inscreve — deixa sua assina-tura no corpo escritural — tornando-se mais próximo de

CLARICE LISPECTORA ASSINATURA E A GRAFIA

DA ESCRITURA

Edgar Cézar Nolasco*

1 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.9.2 A respeito do texto que se escreve, Barthes afirma: “O escriptível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio sema dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura.” BARTHES. S/Z, p.11.

3 Benedito Nunes fala em “treze títulos diferentes”; ao que acrescentaríamos mais um, o próprio nome da autora – Clarice Lispector – queali aparece assinado e ninguém o poderá retirar; o que, por sua vez, tal qual o nome A hora da estrela, pode ser lido como um dos sub/títulos concorrentes para o livro. Cf. NUNES. O drama da linguagem, p.164.

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sua identidade. Atestar a identidade de escritor não émais se perguntar “quem sou eu?”4 mas, pelo contrário,saber que se escreve com o próprio corpo e saber porque se escreve: “Antes de tudo porque captei o espíritoda língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo.Escrevo portanto não por causa da nordestina mas pormotivo geral de ‘força maior’, como se diz nos requeri-mentos oficiais, por ‘força de lei’.”5

É através dessa “força maior” que o escritor escreveo que escreve, mesmo sabendo que não sabe o que vaiescrever, e se inscreve, às vezes se transfigurando emoutrem e materializando-se enfim em objeto escritural,como é o caso do registro inacabado de A Hora da Es-trela. Aplicando o exemplo ao livro Um Sopro de Vida,Ângela, a personagem-autora criada pelo Autor, é amaterialidade ficcional do escritor.

Mas voltando ao “registro que em breve vai ter quecomeçar,6 e nunca começa, porque o escritor não querescrever nada senão seu próprio desejo de escrever,que cessa no intransitivo da escritura, diríamos que nadaresta ao escritor (ou ao Autor do registro de A Hora daEstrela) senão copiar a si mesmo, uma vez que o quevai escrever já está de certa forma escrito em si, no seucorpo. Esse escritor, essencialmente moderno, acabaescrevendo sobre a própria literatura,7 o que denuncia,por sua vez, que ele sofre de uma certa ansiedade, nãoansiedade da influência, mas, antes, de uma “falta” deassunto (história) e de tema (ele tornou-se seu própriotema), tendo a linguagem nela mesma e o “ato de es-crever” como sua busca. Como observa o Autor doregistro, “a palavra é fruto da palavra. A palavra temque se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu pri-meiro dever para comigo. E a palavra não pode serenfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.”8

O que leva o escritor a escrever não é só por se achar“desesperado” e estar “cansado”, por não suportar maisa si mesmo e nem “a sempre novidade que é escrever”mas, pelo contrário, o que parece mover essa práticainacabada — pegar o “ato de escrever” nele mesmo seescrevendo — é, mais do que o desejo que move qual-quer escritor, uma certa solidão que advém de quemtem a palavra como isca, uma solidão inerente e neces-sária a quem escreve. Tomando de empréstimo o que

disse Lacan a respeito da escritura de Duras, reafirma-ríamos que um escritor não deve saber que escreve,nem o que escreve, porque, caso ele viesse a saber, seperderia, o que seria uma catástrofe, sobretudo para oleitor. É esse abandono, essa solidão, que devolve o es-critor ao seu lugar, produzindo a escritura. Nessa pro-dução, estrutura-se um silêncio escritural, aquilo que nãoé um “estilo”, mas que diferencia a prática de escreverde um escritor, deixando reconhecer-se enquanto tal naescritura, sendo esse reconhecimento como se fossesua verdade, sua assinatura definitiva.

Não é por acaso que o Autor do registro de A Horada Estrela afirma que escreve com o corpo.9 Duras, noseu Escrever, também afirma: “Não se pode escreversem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que simesmo para abordar a escrita.”10 Escrever com o cor-po, sobretudo para Clarice, é não mais escrever, é não-falar, é se recolher em sua própria solidão e no silêncioescritural porque, ao escrever, não é mais o escritor queescreve, é a própria escritura “que avança para o seudestino e do seu autor”, escrevendo o seu escritor à suarevelia, grafando no seu corpo as grafias do corpo dele,enfim, declarando que a escritura é sempre, no final, “uni-forme” e “ajuizada”. Por esse motivo, talvez possamosdizer, ainda seguindo Duras, que escrita a escritura —qualquer escritura —, jamais podemos afirmar quem aescreveu, nem o que escreveu, nem em que estado “pes-soal” a praticou, a não ser pela via do próprio ficcional,atestando com isso, mais uma vez, que “o escritor seproduz no texto”.11

Esse autor que advém de sua escritura, essa “outrapessoa que aparece e avança”, sabe que o ato de es-crever é o desconhecido e que, antes de praticá-lo, nun-ca se sabe o que se vai escrever, o que independe desua “total lucidez”. Autor verdadeiro, porque mesmoao reconhecer-se enquanto tal na escritura, aceita emantém o “incontornável” na escritura para que essapermaneça uma escritura verdadeira. Tal escritor, “quenunca assina senão por procuração”,12 tem consciên-cia de que

Escrever não é sequer uma reflexão, é um tipo de faculdadeque se possui ao lado da personalidade, paralela a ela, umaoutra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de

4 ”Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu’,cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu’? provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga éincompleto.” LISPECTOR. A hora da estrela, p.21-22.

5 Ibidem.  p.24.6 LISPECTOR. A hora da estrela, p.30.7 Ver SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.75.8 LISPECTOR. A hora da estrela, p.26.9 LISPECTOR. A hora da estrela, p.22.10 DURAS. Escrever, p.23.11 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.63.12 SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p.135.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 34-39, jul./dez., 1997.

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pensamento, cólera, e que por vezes acaba colocando a simesma em risco de perder a vida.13

Como nos alerta o Autor de a “Dedicatória do Autor(Na verdade Clarice Lispector)”, o livro A Hora da Es-trela “trata-se de livro inacabado porque lhe falta a res-posta”.14 Essa citação concorre para o projeto que movequalquer escritor: escrever. Afinal, qualquer escritor,mesmo não sabendo o que e sobre o que vai escrever, aprincípio tem um projeto. Nesse sentido, todo livro, falha-do ou não, é a escrituração de um projeto. A escritura éa pergunta mesma feita a sua arquitetura: “Escrever sig-nifica tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemosescrever — só se pode saber depois — antes, é a per-gunta mais perigosa que se pode fazer.”15 É assim, des-se modo, que Macabéa vive sem saber que vive, que seuAutor escreve sua história falhada, mesmo sabendo quea morte é sua “personagem principal”, enfim, é com basenessa “não-sabença” que se move e se constrói qual-quer produção escritural.

Semelhante ao livro A Hora da Estrela, porém maisdesconstruído, o livro Um Sopro de Vida assinala o pró-prio projeto de criação literária. Nele, seu autor, que as-sume o papel de escritor e inventa a personagem ÂngelaPralini para com ele dialogar e se fazer existir, é umapersonagem do projeto escritural para o leitor. Entretan-to, além de desempenhar o papel de autor de sua perso-nagem, bem como de sua escritura, desempenha tam-bém o papel de leitor de si mesmo: lê seu projeto escrituralno momento de sua arquitetura e relê, o mesmo projeto,numa leitura posterior que acaba mudando sensivelmen-te o projeto inicial. Esse descentramento temporal de lei-tura só vem reforçar o aspecto fragmentário e descontínuodo livro, porque trabalha para uma não linearidade notrabalho operado pelo leitor.

Talvez em nenhum outro livro de Clarice o tema dacriação tenha aparecido de forma tão contundente. Setomarmos o livro A Hora da Estrela, só para exemplificaro que aqui estamos querendo dizer, nele subscreve-se ahistória da criação, mas há a história explícita de Macabéa,atestando, em certo sentido, a volta clariceana à narrati-va. Em Um Sopro de Vida, ao contrário, sua história, sehá alguma, se volta para o próprio escrever,16 porque é

nesse “ato” que Clarice, enquanto escritora, atinge o aquie agora mesmo da escrita, isto é, o momento mesmo daenunciação onde a escritura se diz. Para Clarice, só exis-te esse tempo único e indivisível, longe de qualquer senti-do ou verdade instituídos, confirmando que a autora tra-balha com uma linguagem que ainda está por ser inven-tada, mesmo quando as palavras têm um certo tomrepetitivo como é o caso de Um Sopro de Vida.

O “Livro de Ângela” é uma réplica perfeita do livrodo Autor17 na medida em que ambos tematizam eproblematizam o próprio escrever, o desejo comum a todoescritor, o que nos reporta imediatamente ao desejo debusca de criação da escritora Clarice Lispector, que sepresentifica em todos os seus livros, mas de modo espe-cial neste Um Sopro de Vida. Esse livro, mais do queuma “cilada escritural”, e suposta origem dessa mesmaescritura, é o lugar onde autores e personagens se dis-persam, um ocupando o lugar do outro sem cerimônia,onde a linha tênue entre real e ficção deixa de existir,demandando do leitor uma certa desconfiança, uma vezque a noção de autoria foi para sempre abalada nessecampo minado chamado texto.

A escritura do Autor ficcional concorre com o quadroque a sua personagem Ângela Pralini pinta chamado de“Sem sentido”: enquanto o quadro se compõe de “coisassoltas — objetos e seres que não se dizem respeito, comoborboleta e máquina de costura”, a escritura, muito se-melhante, se constrói a partir de “destroços de livros”,isto é, por fragmentos: “Esses fragmentos de livro que-rem dizer que eu trabalho em ruínas.”18 Além dessassemelhanças escriturais, pode-se dizer ainda que ambosos livros, tanto o do Autor quanto o de sua personagemÂngela, se constroem por anotações: ora o Autor anotauma nota, ora sua personagem anota outra, o que auten-tica a fragmentação escritural do livro, reforçando umamarca constante da prática de construção escritural deClarice Lispector.19 Na verdade, essas anotações queconstituem o livro Um Sopro de Vida representam mui-tas vozes, ora do Autor, ora da personagem-autora ÂngelaPralini e, ora, da autora-personagem Clarice, o que con-corre para o fato de que o livro foi escrito, por assimdizer, a quatro mãos, uma vez que coube a Olga Borelli a

13 DURAS. Escrever, p.48. (Grifo nosso)14 LISPECTOR. A hora da estrela, p.815 DURAS. Escrever,  p.48.16 ”O que escrevo agora não é para ninguém: é diretamente para o próprio escrever, esse escrever consome o escrever.” LISPECTOR. Um

sopro de vida, p.77.17 ”Como começo?

Estou tão assustado que o jeito de entrar nesta escritura tem que ser de repente, sem aviso prévio.” LISPECTOR. Um sopro de vida,p.24. Ângela, à página 100, diz: “Nem sei como começar.”

18 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.19.19 ”Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido. Este trecho aqui foi na verdade escrito em relação à sua forma

básica depois de ter relido o livro porque no decorrer dele eu não tinha bem clara a noção do caminho a tomar. No entanto, sem darmaiores razões lógicas, eu me aferrava exatamente em manter o aspecto fragmentário tanto em Ângela quanto em mim.” LISPECTOR.Um sopro de vida, p.19.

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organização dos manuscritos, conforme ela mesma dizna apresentação, o que repercute não só no estudo desua construção, como também, num sentido muito pecu-liar, desvia a leitura efetuada, reforçando com isso odescentramento de qualquer noção de origem bem comode qualquer suposta autoria.

Nesse livro de “não-memórias” a origem não existepelo fato mesmo de que seu Autor-leitor o lê no momentomesmo do “ato de escrever” e relê, a posteriori, cortandode ambos os livros o “supérfluo” como ele mesmo diz. Éessa leitura a posteriori, por parte de seu autor-leitor, do“já-escrito”, em que o autor tem medo de copiar a si e suapersonagem, que contribui para a construção fragmentá-ria e desconexa da escritura do livro Um Sopro de Vida.Entretanto, segundo seu próprio Autor, mesmo sendo tudo“fragmentário e dissonante e desconexo”, há em tudo uma“ordem submersa”, uma verdade escritural. A preocupa-ção do Autor-leitor com relação à imitação do outro, ecom o plágio, remete o leitor a uma problemática nodalencontrada no livro, que é a questão da autoria. Sua escri-tora Clarice Lispector aparece e desaparece por trás dasmáscaras de seus supostos autores, confundindo e disper-sando os papéis autorais e apagando, de uma vez por toda,a distância entre realidade e ficção.

Aquele “eu enviesado” encontrado na “dedicatóriado autor” de A Hora da Estrela soma-se agora ao sujei-to enviesado20 apresentado por Clarice em Um Soprode Vida. Nesse livro, diferentemente daquele, podemoselencar passagens escriturais que atestam a dispersãoautoral, afirmando que o escritor (Clarice Lispector) de-senvolve seu projeto escritural através de “hieróglifos”seus, e que, por isso mesmo, não lhe possibilitam “as ver-dadeiras palavras”, deixando-o preso no ato de escrevere no “vórtice que é se pôr em estado de criação”. Assim,dessa falta de estilo,21 o escritor enredado e perdido en-contra-se consigo e com seu projeto escritural inacabado.Esse escritor enviesado, que para escrever Um Soprode Vida abdica de toda sua obra e começa “humilde-mente”, se expõe “a um novo tipo de ficção” que nãosabe ainda como manejar, só reconhecendo de seu tra-balho sua caligrafia. Tal escritor, que é ao mesmo tempoClarice Lispector, ludibriando mais uma vez o leitor quantoà troca de papéis autorais, se pergunta: “E eu? será quenão serei meu próprio personagem? Será que eu me in-vento? Só sei de mim que sou o produto de um pai e deuma mãe. É tudo que sei sobre a criação e a vida.”22

É com base nesse jogo intercambiável entre criaçãoe vida, Autor e autor, que passaremos a destacar algu-mas passagens escriturais — mesmo tendo a escriturade Um Sopro de Vida como o exemplo maior — quecertificam o jogo consciente operacionalizado pelo escri-tor na construção de sua escritura. Mesmo reafirmandoque a escritura do livro como um todo simboliza a preo-cupação da própria escritora Clarice, encontramos, emmeio às anotações e fragmentos que compõem a escri-tura inacabada, grafias que nos remetem para a“pessoalidade” da escritora, delatando que traços de suavida estravasaram para sua ficção, à revelia da própriaautora. Devemos ressaltar ainda que o livro Um Soprode Vida tem como “tema” a própria criação do monu-mento literário, além de ser o lugar no qual Autor e per-sonagem participam do desejo comum de “escrever umlivro”. A personagem Ângela, falando de seu cachorroUlisses, relata: “Fui fazer um carinho nele, ele rosnou. Ecometi o erro de insistir. Ele deu um pulo que veio dasprofundezas selvagens de lobo e mordeu-me a boca.Assustei-me, tive que ir ao Pronto-socorro onde deram-me dezesseis pontos.”23 Essa citação, não menos ficcionalque o resto do livro, remete o leitor, imediatamente, parao fato ocorrido com a escritora Clarice Lispector que, naverdade, tinha um cachorro que atendia pelo nome deUlisses.24

Outra passagem que podemos destacar, não só comoexemplo de trocas autorais de papéis, mas como provaexplícita de que o leitor não deve confiar no que o autordiz, lendo-o com uma certa desconfiança, é nos dada maisuma vez pela personagem Ângela: “Objeto — a coisa —sempre me fascinou e de algum modo me destruiu. Nomeu livro A Cidade Sitiada eu falo indiretamente nomistério da coisa. (...) Há anos também descrevi um guar-da-roupa. Depois veio a descrição de um imemorávelrelógio chamado Sveglia: relógio eletrônico que me as-sombrou e assombraria qualquer pessoa viva no mundo.Depois veio a vez do telefone. No ‘Ovo e a galinha’ falono guindaste.”25 Tal citação, além de fazer alusão diretaa outro texto da autora, nos permite postular ainda a res-peito daquele cuidado excessivo do Autor da persona-gem Ângela quanto à imitação e ao plágio do livro deambos, o que nos remete agora para a preocupação daprópria escritora Clarice que se pegava, no decorrer desua prática, imitando e plagiando a si mesma, disfar-çadamente.26 Não é por acaso que o processo de re-

20 ”Eu sou um abismo de mim. Mas sempre serei enviesado.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.76.21 ”Eu perdi o meu estilo: o que considero um lucro: quanto menos estilo se tiver, mais pura sai a nua palavra.” LISPECTOR. Um sopro

de vida, p.83.22 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.143.23 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.58.24 A respeito desse  fato verídico, ver BORELLI. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, p. 97-98.25 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.102.26 ”Noto que os meus imitadores são melhores do que eu. A imitação é mais requintada que a autenticidade em estado bruto. Estou com

a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que faz de si mesma.” LISPECTOR. Um sopro de vida, p.30.

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escrever e a apropriação são uma constante na constru-ção escritural praticada por Clarice.

A última passagem escritural por nós buscada parafinalizar a questão da “pessoalidade” da autora ClariceLispector, dessa vez nos é apresentada não mais pelapersonagem Ângela, mas, pelo contrário, por seu próprioAutor, quando diz: “Eu já falei isso no meu livro chaman-do esse grito de it.”27 A referência é clara porque reme-te o leitor para o livro Água Viva, onde a escritora traba-lha a questão do it; mas, diferentemente, com relação àautoria não podemos ter a mesma certeza, podendo dizerque o Autor é e não é mais Clarice Lispector, ou melhor,que ele apenas lembra por um processo circular a figurada autora para sempre dispersa em sua ficção.

Entretanto, devemos reconhecer, ou pelo menos sus-peitar, a presença mascarada da autora Clarice interpos-ta a esse Autor ficcional — e por isso chamado aqui desujeito enviesado — que afirma ser “um escritor enreda-do e perdido”, relutando em convencer o leitor de queesse “eu”, que aparece em seu livro, não é ele e que seulivro não é em nada autobiográfico.28 Poderíamos con-tra-argumentar, dizendo que toda escritura, em certa me-dida, é também a escritura de uma autobiografia, umavez que só há escritura — qualquer forma de escritura— “a partir de uma relação em que o sujeito se encontradesde sempre emaranhado ao objeto que supostamentedeve descobrir ou criar”.29 Desse modo, o escritor, aoescrever, se inscreve e deixa suas marcas “pessoais” naescritura, que nada mais é que a grafia de seu desejo.

Por esse viés de leitura crítica, que parte do pressupostode que os significados são produzidos por um “sistema dearticulação”, podemos dizer que o leitor sempre acabaocupando também uma “posição autoral” na relação como texto literário.

O Autor ficcional de Um Sopro de Vida, por saberdemais o seu compromisso com o papel a desempenharem relação à sua personagem, a si mesmo e ao outro,observa em “nota” que não pode se esquecer de dar“um rosto a Ângela” porque, dando um rosto a sua per-sonagem, está se reconhecendo no seu reflexo, umavez que nessa relação a personagem se apresenta “maisforte” do que seu Autor. Entretanto, nessa busca, o Au-tor distancia-se de sua personagem, perde o Livro deÂngela,30 e extravia o seu próprio livro não escrito, dei-xando a escritura para sempre inacabada como só seusujeito consegue ser: “Eu.... eu.... não. Não posso aca-bar.”31 Como esse Autor-leitor mesmo nos alerta, noinício do livro, que seu fim não deve ser lido antes, por-que “se emenda num círculo ao começo, cobra que en-gole o próprio rabo”,32 talvez possamos pensar que suabusca, assim como a busca da autora Clarice Lispector,e sua própria escritura, se encontram resumidas na pá-gina em branco deixada pelos autores, propositadamen-te, no centro do livro, refletindo as “pulsações” de umaescritura que se constrói por notas de seus persona-gens que são autores, que dialogam entre si e com suaautora, que dialoga consigo e com seu leitor imagináriopor toda sua prática escritural.

27 Ibidem.  p.153.28 ”Eu sei que este livro não é  fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu me

esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim.” LISPECTOR. Um soprode vida, p.19.

29 ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p.47.30 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.160.31 LISPECTOR. Um sopro de vida, p.162.32 Ibidem.  p.20.

Referências BibliográficasARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 212p. (Biblioteca Pierre Menard).BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, 1980. 199 p.BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 147p.DURAS, Marguérite. Escrever. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 115p.LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 7.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 98p.LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. 162p.NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 1997, 249 p.

(Dissertação de Mestrado em Letras – Teoria da Literatura)NUNES, Benedito. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995. 175p.SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

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Este artigo tem como meta demonstrar como os concei-tos de polifonia e de modalidade se interrelacionam paracompor estruturas argumentativas diferentes. Embora te-nhamos comparado dois textos jornalísticos diferentementeorganizados, os efeitos da argumentação foram semelhan-tes.

Palavras-chave:polifonia - discurso - argumentação

This article aims at demonstrating how the conceptsof poliphony and modality interrelate to formdifferent argumentative structures. Although we havecompared two differently organized newspaper texts,the effects of argumentation were similar.

Key-words:polifony - discourse - argumentation

* Vânia Maria LescanoGuerra é professora deLingüística e LínguaPortuguesa no curso deLetras do Departamentode Educação do CEUL/UFMS, com Mestradoem Lingüística Aplicadapela PontifíciaUniversidade Católica deSão Paulo.

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Introdução Este trabalho tem por objetivo a análise de um

corpus constituído por dois textos escritos, retira-dos de duas seções dos jornais “Diário do Comér-cio e Indústria “e o “Estado de São Paulo”. Os doistextos atingem leitores específicos, isto é, aquelesque se interessam particularmente por economia,negócios, etc, sendo que o texto 1 é escrito por umjornalista e o 2 é escrito pelo presidente de umaempresa.

É importante ressaltar, ainda, que os dois textosse referem à Empresa Simonsen Associados.

A análise se dará à luz da teoria da SemânticaArgumentativa, tendo como base os estudos desen-volvidos por Ducrot (1987), com relação à polifonia.Um outro fenômeno da argumentação que aindanorteará nossa pesquisa é o das modalidades do dis-curso, utilizando trabalhos de Cervoni (1989) eMaingueneau (1991).

Algumas questões estarão orientando a nossadiscussão. Em pr imeiro luga r, como es táconstruída a estrutura argumentativa dos textosque compõem o corpus em questão? Ou ainda:quais as variabilidades e regularidades, no nívellingüístico, existentes entre elas? E finalmente,como definir o ato perlocucionário derivado des-sa argumentação?

I - Fundamentação TeóricaPara procedermos a análise do corpus, é neces-

sário examinarmos alguns conceitos essenciais re-

UM ESTUDO DA POLIFONIAE DA MODALIDADE NA

ESTRUTURA ARGUMENTATIVA DEDOIS TEXTOS JORNALÍSTICOS

Vânia Maria Lescano Guerra*

ferentes à organização da estrutura argumentativados textos. Para tal, mobilizaremos os conceitos deargumentação, polifonia e modalidades do dis-curso.

1. Argumentação: Ducrot dando início à suateor ia da argumentação (apud Indursky,1989:94-95), conclui que tal atividade deixa mar-cas lingüísticas no enunciado. Através do estudode algumas destas marcas (os operadoresargumentativos), o autor incorpora à sua teoria anoção de orientação argumentativa a qual repre-sentaria uma função constitutiva do discurso, ouseja, de conduzir o interlocutor a uma determinadaconclusão ou mesmo a uma mudança de compor-tamento ou posicionamento em relação a uma opi-nião.

2. Polifonia: Partindo dos estudos de Bakthin,Ducrot postula que é constitutivo do sujeito - oulocutor, em seus termos - estar em relação cons-tante com um outro do discurso. Segundo a teoriapolifônica, o locutor só existe enquanto se estiverfalando em um discurso, enunciação ou enunciado.Já o sujeito falante é um elemento da experiência,ou seja, é aquele que existe empiricamente. De acor-do com Ducrot (1987:182) o locutor é “um serque é, no próprio sentido do enunciado, apre-sentado como seu responsável, ou seja, comoalguém a quem se deve imputar a responsabili-dade deste enunciado”.

O locutor quando está explícito pode se apre-

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sentar segundo um EU ou umNÓS, causando efeitos de senti-dos diferentes. O efeito do uso deEU pode se referir a uma tomadaclara de posição. Em muitos ca-sos, como mostra Charaudeau(1992), as marcas de primeirapessoa desaparecem dando lugara formas lingüísticas cuja princi-pal função é apagar a responsa-bilidade ou participação do locutor com relação aoenunciado.

Ainda segundo Ducrot, a polifonia pode ocorrerem um outro nível: o do enunciador. Dentro de umenunciado podem existir vários pontos de vista dis-tintos. Cada um desses pontos de vista é represen-tado por enunciadores que são incorporados naenunciação do locutor. É nesse imbricamento deenunciadores que se estabelece o jogo polifônicodas vozes que compõem o discurso.

3. Modalidades: Ao se utilizar de modalidades,o locutor estabelece relações com o seu próprioenunciado, podendo mostrar um maior ou menorengajamento ou distanciamento com o que diz. Podetambém decorrer do uso das modalidades que o lo-cutor se apresenta como autoritário ou polêmico.Cervoni (1989) estudou as modalidades do pontode vista formal e estrutural. Ele considera somentemodais algumas estruturas sintáticas e itens lexicaiscomo pertencentes a um “núcleo duro”. Dentro detal núcleo duro, encontram-se as modalidades queos lógicos denominaram de aléticas, epistêmicas edeônticas.

As modalidades aléticas dizem respeito ao ne-cessário e ao possível, enquanto que as modalida-des epistêmicas referem-se ao nível do certo edo provável. E as modalidades deônticas dizemrespeito ao que é obrigatório e permitido.

Se o campo das modalidades é complexo, po-demos acrescentar que o da asserção pode serconsiderado extremamente delicado. A partir dareflexão sobre as modalidades nos estudos deCervoni e Maingueneau, cremos que a assertivapossui as seguintes características formais: a. podeser afirmativa ou negativa, já que uma asserçãose faz em termos positivos ou não; b. não apre-senta marcas lingüísticas específicas, que seriamenglobadas dentro da classificação de “núcleoduro”; e, c. não pode ser imperativa, interrogativaou exclamativa.

Semanticamente, ao fazer uma asserção o locu-tor valoriza o fato, tentando esconder suas opiniõessobre ele e, portanto, fazendo o fato falar por si

mesmo. A “subjetividade” tãopreocupante em certos discursosdá lugar a uma “objetividade” de-sejada. O enunciado adquire, en-tão, valor de verdade irrefutável.Em termos perlocucionários, odiscurso assertivo se apresentacomo o discurso da ciência e daautoridade.

II - Análise e Interpretaçãodo corpus

Na exposição teórica que fizemos, explicitamosnossa intenção de caracter izar a estruturaargumentativa dos textos, decompondo-a segundoalgumas categorias: a polifonia associada ao uso depronomes, e a modalidade. Como estas questõescontribuem para a identificação da orientaçãoargumentativa dos textos?

O Texto 1O texto 1 (anexo 1) foi publicado no jornal “Di-

ário do Comércio e Indústria” em 08 de maio de1986. O autor é jornalista, as características geraissão da empresa Simonsen Associados e o seu títu-lo é “Simonsen, crescendo com seus clientes des-de 1966.”

Para procedermos a nossa análise, buscaremosno texto os locutores e enunciadores que o com-põem. O locutor (L1) é jornalista e autor do texto.Sua voz é representada por E1. L2 é o presidenteda empresa e fala da perspectiva de E2 (represen-ta o presidente Simonsen cuja voz se confunde coma de sua própria empresa). E3 representa a pessoaSimonsen que lutou para chegar à construção desua empresa. E4 é a voz dos técnicos da empresa.Os exemplos a seguir são recortes da análise totaldo texto:

Ex. 1 - “Harry Simonsen Júnior, presidenteda empresa diz que o ano de 1966, quandoa empresa começou a atuar, foi uma espéciede divisor.”L1 - E1: “Harry Simonsen Júnior, presiden-te da empresa, diz que ...” em que L1 marcaclaramente que a sua fala posterior pertencea um outro. A perspectiva aqui é do próprioL1 enquanto jornalista que conhece os fatos eos apresenta, contextualizando o tema que pre-tende tratar.L1 - E2: “...o ano de 1966, quando a empre-sa começou a atuar, foi uma espécie dedivisor.” A perspectiva aqui já muda para a de

Ao fazer uma asserçãoo locutor valoriza o fato,

fazendo-o falar por simesmo. O enunciado

adquire, então, valor deverdade irrefutável.

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Simonsen, pois ocorre umasérie de comentários que pre-tendem valorizar a empresa.Ex 2 - “Antes de criar aSimonsen, fiz uma boa pes-quisa de mercado para sa-ber o que estava faltando eresolvi criar esta empresa.Confesso que fui desenco-rajado por muitos, mas se-guimos em frente e aqui estamos.”L2 - E3: “Antes de criar a Simonsen... Confes-so que fui desencorajado por muitos,...”Neste caso, E3 representa a pessoa que lutoupara chegar à construção de sua empresa.L2 - E2: “ ...mas seguimos em frente e aquiestamos”. Já E2 representa o presidente Simon-sen cuja voz se confunde com a de sua própriacompanhia.Ex. 3 - “ É por isso que nossos técnicos pre-ferem ser chamados de “Engenheiros do Lu-cro”, pois é uma equipe que busca resulta-dos”.L2 - E4: “É por isso que nossos técnicos pre-ferem ser chamados de “Engenheiros do Lu-cro”, pois é uma equipe que busca resulta-dos”. Neste caso, a valorização do trabalho daempresa é compartilhado pelos seus técnicos,cuja voz se faz ouvir juntamente com a do pre-sidente.No texto como um todo, houve a predominância

da voz do enunciador 2, isto vem confirmar que odelocutário passa de um simples referente a umapessoa fundamental deste discurso, já que o mes-mo vai ser apresentado seguindo uma linhaargumentativa que visa a persuadir o público quan-to à importância da empresa em questão.

Dentro da organização da argumentação, existeainda a questão dos pronomes, que se relaciona coma distinção dos participantes do enunciado. Duasmarcas pronominais se evidenciam no texto: EU eNÓS. Vejamos o exemplo:

“Antes de criar a Simonsen fiz uma boa pes-quisa de mercado para saber o que estavafaltando e resolvi criar esta empresa.Confessoque fui desencorajado por muitos, mas segui-mos em frente e aqui estamos. Para criar umaempresa de serviços como a nossa, acentua,há necessidade de três itens importantes: in-tenção, recursos e coragem. No nosso casoficamos com a coragem.”O NÓS neste texto adquire o valor de EU +

ELE. EU seria representado pelo presidente da

companhia e ELE(A) refere-seà empresa propriamente dita, emque ambos (presidente e empre-sa) assumem uma só perspecti-va, a de E2.

Já o EU cuja perspectiva cor-responde a E3, representa o indi-víduo que lutou para conseguir umdeterminado objetivo. No exem-plo percebe-se como, argumenta-

tivamente, L2 constrói um processo de valorizaçãode si mesmo e de sua empresa. Ao mostrar-se atra-vés de um EU, ele se apresenta como indivíduo quepassou por dificuldades para desenvolver com su-cesso sua empresa. Ao utilizar NÓS, L2 explicita-mente marca a sua posição atual de autoridadeconferida pelo seu cargo de presidente. A partir daí,ele passa a falar de um lugar discursivo que o des-loca da posição do indivíduo para a do representan-te da empresa em questão.

A estrutura do exemplo é, então, a seguinte:Antes da Simonsen MAS Ir em frente EU NÓSVerificamos, assim, que E2 e E3 são identifica-

dos, neste caso, não só pelo uso dos pronomes, mastambém pelo próprio uso do operador argumentativoMAS. A teoria acima comprova a existência dasvozes distintas que identificamos no enunciado.

Dentro do processo argumentativo, analisaremosainda as modalidades, que identificamos a partir docritério proposto por Cervoni. Encontramos trêsmodalidades deônticas e uma epistêmica. Comoexemplo, podemos citar:

“... como devem penetrar no mercado etc.”(deôntica)“...a Simonsen olha para frente para saber oque acontecerá...”(epistêmica)Quando Simonsen usa estas modalidades, seu dis-

curso adquire o valor de autoritário e sua imagem éde detentor do poder. Portanto, sua argumentaçãonão deixa espaço para uma refutação de ordem po-lêmica.

A estrutura do texto, porém, gira em torno douso do que chamamos de modalidades assertivas:

“Esta empresa é a Simonsen Associados querapidamente passou...”“O normal de todos os empresários era olharpara...”“...seus funcionários trabalhavam baseadosno conceito...”O efeito deste uso é o mesmo que o do anterior,

ou seja, de não permitir a existência de um espaçode ordem polêmica.

Na organização daargumentação, existe aquestão dos pronomesque se relaciona com adistinção dos partici-pantes do enunciado.

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Pode-se dizer que a autorida-de do Simonsen, caracterizadapela frequência do aparecimentode sua voz (como E2), do usoque faz dos pronomes e das mo-dalidades, chega mesmo a ter umefeito de apagamento de L1. Istoé, Simonsen é o que traz o co-nhecimento e a verdade para otexto. A função de L1 fica redu-zida a ser veículo (como uma espécie de microfo-ne) de L2.

O Texto 2O texto 2 (anexo 2) foi publicado no “Caderno

de Empresas” do jornal “O Estado de São Paulo”em 23 de maio de 1986. O autor é Simonsen, presi-dente da empresa de mesmo nome. O título do tex-to é “Métodos para avaliação de negócios”.

Este texto se diferencia do anterior principalmen-te pelo fato de que o jogo polifônico converge paraa presença de um único locutor (L1), o presidenteda Simonsen Associados e autor do texto. Duranteo processo de construção do texto, L1 incorporauma série de vozes (enunciadores) que equivalema diferentes representações que o mesmo faz dotema em questão. A seguir, identificamos as diver-sas ocorrências enunciativas: E1 é a voz do presi-dente. E2 é a voz que poderia estar em desacordocom E1. E3 é a voz restr it iva. E4 é a vozmetadiscursiva. Observemos exemplos de cada umadessas vozes:

Ex. 1 - “A avaliação de um empreendimento,quer seja existente, quer esteja apenas emprojeto, é sempre uma tarefa subjetiva...”L1-E1:é a voz do presidente enquanto conhece-dor do tema de que trata. Assume um tom didá-tico ao expor seu conhecimento e experiênciasobre o assunto, e é isto que delineará a orien-tação argumentativa do seu discurso.Ex. 2 - “ ...não só em termos do empreendi-mento como em termos do ambiente onde eleestá colocado.”L1-E2: é a voz que poderia estar em desa-cordo com E1, no sentido de apresentar umaidéia de que tudo o que o autor disse antes sedaria em um certo nível,e,a partir do uso doNÃO, E1 pode, então, refutar este E 2 po-tencial, reiterando a posição que defenderá(mecanismo argumentativo recorrente fre-quente no texto).Ex. 3 - “Recomendável apenas naqueles ca-sos em que for possível estimar-se a probabi-

lidade de ocorrência de cadaum dos eventos...”L1 - E3: é a voz do enunciadorrestritivo que tenta se defender dequalquer possível refutação de al-gum alocutár io. (Marcadolingüisticamente pelo operadorapenas).Ex. 4 - “...que pode tanto seraplicado a empreendimentos

existentes como estendido, em termos de con-ceito, a empreendimentos novos...”L1-E4: é a voz metadiscursiva, representadaatravés de uma oração explicativa, no sentido deque tenta explicitar um enunciado anterior.Argumentativamente, o efeito de sentido que seobtém, é que L1 procura garantir uma ausênciade mal-entendidos.De um modo geral, E1 é a voz predominante no

texto. Quanto à questão dos pronomes, encontra-mos no texto estratégias de ocultamento do sujeitoda enunciação, predominando o uso de nomi-nalizações e de voz passiva (cf. Charaudeau). Ve-jamos alguns exemplos:

“A avaliação de um empreendimento . . .”(nominalização)“.. .são aceitos mais ou menos uniforme-mente...”(voz passiva)Em relação às modalidades, verificamos que o

texto é constituído por quatro modalidades deônticase quatro modalidades epistêmicas, sendo que as mo-dalidades assertivas permeiam todo o discurso. Eisalgumas das modalidades analisadas:

“É importante para a empresa...” (modalida-de deôntica).“... pode ser considerado de três formas dis-tintas... ” (modalidade epistêmica).“...é o que prevalece sobre todos os outrosmétodos...” (modalidade assertiva).De acordo com o quadro teórico as modalidades

assertivas dão ao corpus um valor de verdade as-sociada ao saber do locutor. Em decorrência doque foi exposto, pode-se dizer que o discurso,como um todo, mostra-se autoritário.

III. ConsideraçõesFinais

A partir da análise do corpus, foi possível ob-servar como as categorias de polifonia e de moda-lidade se interrelacionam para compor estruturasargumentativas diferentes.

O texto 1 caracteriza-se pelo fato de que o

A avaliação de umempreendimento, querseja existente, queresteja apenas em

projeto, é sempre umatarefa subjetiva...

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delocutário torna-se locutor 2,chegando até a apagar o locutor1, que a princípio deveria ser o res-ponsável pelos enunciados. O atoperlocucionário resultante destedeslocamento diz respeito a ummecanismo argumentativo de L2para convencer ou persuadir osalocutários quanto ao valor de suaempresa.

É interessante notar que, embora o locutor 2pretenda formar uma opinião positiva sobre aSimonsen, nem ele nem L1 mencionam o alocutário.O que podemos considerar como uma possível men-ção, em nível bas tante implícito é o t ítulo:“Simonsen, crescendo com seus clientes.” A re-ferência acima é uma estratégia discursiva paratrazer o alocutário para o quadro de clientes.

Dentro da argumentação, o uso dos pronomescontribui para um efeito perlocucionário de umaconstrução da imagem do presidente como lutadorbem sucedido, o que valoriza ainda mais a própriaempresa. A justaposição do presidente e da com-panhia, feita pelo uso do NÓS, confere uma forçaargumentativa a L2, caracterizada pela autoridadede um cargo empresarial.

A autoridade acima se ratifica pelo uso que L2faz das modalidades do discurso. Há a predomi-nância das modalidades deônticas e das assertivas,bem como das epistêmicas. As categorias de aná-lise que adotamos se entrelaçam de tal forma quecriam uma aparente unidade discursiva cujo efeitode sentido é o de uma valorização indiscutível dodelocutário.

Já no texto 2 o que ocorre é que o locutor utilizauma estratégia de produzir um discurso que tentaapagá-lo enquanto sujeito/utor. Tal apagamento ser-ve de fachada para abrigar uma multiplicidade de

vozes que, freqüentemente, sesobrepõem umas às outras, resul-tando disso um movimentoenunciativo polifônico bastanteespesso.

Este recurso argumentativoassociado à questão do uso dasmodalidades neste texto, caracte-rizando-o como autoritário, cria oefeito perlocucionário de que a

empresa citada é digna de valor e eficiente em seusmétodos de avaliação e serviços prestados.

A presença do alocutário neste texto também éextremamente implícita. Ela se dá a partir doenunciador 3, o qual assume uma posição defensi-va a uma possível refutação. E3, então, marcariaindiretamente a referência ao alocutário.

Se tentarmos comparar os dois textos acima, oque nos chama a atenção é o seguinte:

a) pode-se dizer que há uma referência, aindaque indireta, aos alocutários nos dois textos. Notexto 1, isto ocorre no título, sendo feita pelo L1(E1).Já no texto 2, a referência se dá através de L1(E3);

b) quanto ao jogo polifônico, ele se dá de for-mas distintas. No texto 1, existe um movimentoque leva ora a L1 ora a L2, através de umamultiplicidade de vozes, as quais darão predomi-nância a L2. No texto 2, este movimento ocorreno nível dos enunciadores de um único locutor(L1);

c) em termos de modalidades, o uso é semelhan-te nos dois textos, com ênfase nas assertivas. Es-tas modalidades, em geral, caracterizam os textoscomo autoritários; e,

d) com relação ao ato perlocucionário, pode-sedizer que é igual nos dois textos: o de mostrar umaimagem positiva e bem sucedida da empresa.

Referências BibliográficasBEACCO, J. C. (1988). Les roles enonciatifs. In : La rhetorique de l’historien:une analyse linguistique du discours. Berne, Peter Lang,

136-154.BRANDÃO, H. H. N. (1988). Dialogismo e polifonia enunciativa. Análise do Discurso da Propaganda. Tese de Doutorado,

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo._________________ (1991). A Constituição da Subjetividade no discurso da Propaganda. In: D. E.L.T.A., vol 7, nº 2: 449-462.

São Paulo, EDUC.CERVONI, J. (1989). A Enunciação. São Paulo. Ática.CHARAUDEAU, P. (1992). Faits de discours. In: Grammaire du sens et de l’expressions. Paris, Hachette.DUCROT, O. (1987).Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação. In: O Dizer e o Dito. Campinas, Pontes, 161-218.INDURSKY, F. (1989). Relatório Pinotti: O Jogo Polifônico das Representações no Ato de Argumentar. In: GUIMARÃES, E. ( org.).

História e Sentido na Linguagem. Campinas, Pontes, 93-127.MAINGUENEAU, D. (1991). L’énonciation.In: L’Analyse du discours: une introduction aux lectures de l’archive. Paris, Hachette,

107-126.

Naargumentação, o usodos pronomes contribuipara uma construção

da imagem dopresidente como

lutador bem sucedido.

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ANEXO I

Simonsen, Crescendo com seus clientes desde 1966Quando o Brasil se lançou na sua corrida desenvolvimentista, por volta de 1966, faltou suporte e

conhecimento para as empresas nas áreas de marketing, administração, planejamento e sistemas.Muitas empresas cresceram e se desorganizaram. Enquanto isso, uma outra empresa começou atrabalhar e a acertar na prestação de serviços às indústrias em planejamento e marketing, especial-mente em informações de mercado, distribuição, transporte e tudo o que estivesse diretamente ligadoà comercialização de seus produtos e serviços. Esta empresa é a Simonsen Associados que rapida-mente passou a ter uma participação meia abrangente, envolvendo-se em consultoria geral, em estu-dos de organização e métodos, planejamento financeiro, sistemas de informações gerenciais, estudosde viabilidade e de localização, e na coordenação de investimentos.

Harry Simonsen Júnior, presidente da empresa diz que, o ano de 1966, quando a empresa come-çou a atuar, foi uma espécie de divisor. O normal de todos os empresários era olhar para dentro dasfábricas achando que uma máquina resolvia qualquer problema. A partir daí, passou-se a ver o mer-cado como gerador de lucros. “Antes de criar a Simonsen, fiz uma boa pesquisa de mercado parasaber o que estava faltando e resolvi criar esta empresa. Confesso que fui desencorajado por muitos,mas seguimos em frente e aqui estamos. Para criar uma empresa de serviços como a nossa, acentua,há necessidade de três itens importantes: intenção, recursos e coragem. No nosso caso ficamos coma coragem”.

Nestes 20 anos de atividades, a Simonsen Associados completou um grande número de progra-mas, de ampla variedade: informação de mercado, viabilidade e localização, expansão e diversifica-ção, planejamento financeiro, aquisição e desinvestimento, organização e métodos. Além disso, suaequipe técnica desenvolveu série de modelos de simulação, tanto modelos algorítmicos - muitos dosquais com aplicação em computador - como modelos heurísticos utilizados principalmente na previ-são de cenários empresariais.

A empresa, informa, vem desenvolvendo continuamente e seus inúmeros clientes utilizam hámais de 15 anos programas integrados de simulação de empreendimentos e operações, através deseus instrumentos financeiros - previsão de vendas, orçamentos de lucros e perdas, de fluxo decaixa, de investimentos e de pessoal, bem como as subsequentes análise de sensitividade e análise derisco - e instrumentos estatísticos de inferência e aferição.

Na realidade, a Simonsen, garante o seu presidente, dá toda a ajuda à empresa cliente, buscandodetectar os mercados para os quais deveria vender seus produtos, mostrando a demanda, concorren-tes, como competir com sucesso, como fazer fluir os produtos, quais produtos e como devem pene-trar no mercado etc.

O primeiro trabalho realizado pela empresa, informa Simonsen, foi para o BNDE - Banco Nacio-nal de Desenvolvimento Econômico. “Nosso trabalho envolveu a mudança do conceito de análise deavaliação dos empreendimentos. Até então seus funcionários trabalhavam baseados no conceito dolucro e nós mostramos que o segredo estava no fluxo de caixa. O próprio País vive problema de fluxode caixa. É por isso que nossos técnicos preferem ser chamados de “Engenheiros de Lucro”, pois éuma equipe que busca resultados”.

O presidente da Simonsen diz que, a principal finalidade de qualquer forma é a de gerar lucros aosseus acionistas, as outras funções são decorrências, como gerar empregos, pagar impostos etc. Nes-te período, acentua, a Simonsen está apta adizer que desenvolveu uma série de instrumentos que lhepermite abordar os problemas de mercado para dentro da empresa. Ele garante que seus funcionári-os atuam totalmente ao contrário dos auditores, pois enquanto eles olham para trás para ver o que foifeito, a Simonsen olha para frente para saber o que acontecerá e como transformá-los em benefíciospara os clientes, em todos os segmentos da livre empresa.

Um grande mérito da empresa, segundo o seu presidente, pode ser atribuído aos computadores.Explica que antes desses equipamentos eram guardados apenas 50% das informações que passa-va pela empresa. Depois passou a classificar cerca de 80 a 90% da informação coletada para umarecuperação de 60 a 80%. “Antes nós éramos o maior banco de informação privada do País econtinuamos sendo”, garante.

Dirce Siqueira - O ESTADO DE SÃO.PAULO, DCI, em 08/05/86 - p. 03

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ANEXO 2

Métodos para avaliação de negóciosA avaliação de um empreendimento, quer seja existente quer esteja apenas em projeto, é sempre

uma tarefa subjetiva; requer que se refinam vários parâmetros e várias grandezas e que se faça issoolhando para o futuro muito mais que para o presente ou para o passado, não só em termos doempreendimento como em termos do ambiente onde ele está colocado. Alguns métodos estão consa-grados pela prática e são aceitos mais ou menos uniformemente nos países de livre empresa, pelomenos por empresas e executivos mais experimentados.

Nesse ponto, consideração importante deve ser feita. Diz respeito à finalidade da avaliação, separa venda ou para compra de empresas, se para decisão sobre execução de um novo empreendi-mento ou sobre a descontinuidade de uma operação. Nestes termos a maioria das avaliações utilizamais de um método, servindo a vários resultados como limites do intervalo de valores.

O mais usual dos métodos de avaliação, que pode tanto ser aplicado a empreendimentos existen-tes como estendido, em termos de conceito, a empreendimentos novos é o do Valor PatrimonialAtual. É importante para a empresa cujo patrimônio contábil é maior que aquele necessário para asoperações normais. O valor patrimonial pode ser considerado de três formas distintas: valor patrimonialcontábil (basicamente igual ao valor do “não exigível” da empresa. Obviamente apenas com as re-servas corretas); valor patrimonial venal (em que o valor do ativo é computado em termos de merca-do, para venda, e do qual são deduzidas as exigibilidades); valor patrimonial de reposição (em que osvalores dos ativos - prédios, máquinas, equipamentos, veículos, estoques, contas a receber - sãocomputados ao valor de reposição correspondente ao estado em que se encontram). Além do valorpatrimonial atual há também o futuro que, embora seja financeiramente mais complexo que o primei-ro, pois necessita de projeções futuras das operações, não apresenta benefícios adicionais em ter-mos de precisão. Permite, sim, que o valor do empreendimento seja calculado em termos de valorpatrimonial contábil ao fim do período escolhido para análise.

Outro método utilizado para a avaliação é o do período de repagamento (Pay-Back), quecorresponde ao tempo que o empreendimento necessita para gerar os fundos necessários e amortizaro investimento feito. Calcula-se o período necessário para que o valor dos recursos gerados sejaigual ao valor do investimento, em cruzados. Multiplicador de lucro, o quarto dos oito métodos ébaseado na capacidade de gerar lucros de um empreendimento. Este método leva em consideraçãoparâmetros estabelecidos nas Bolsas de Valores, para a relação preço-lucro das ações.

Valor presente do fluxo de caixa descontado. Este método é utilizado para avaliar um empreendi-mento em função do valor presente do dinheiro gerado pelo empreendimento. Requer que se definaa taxa de desconto, isto é, a expectativa de remuneração de capital investidor, expectativa esta queé em geral baseada em outras oportunidades alternativas de investimento que existem.

Completando os métodos de avaliação encontram-se: taxa interna de retorno; análises de risco epreço do vendedor. O primeiro deles (Taxa interna de Retorno) parte da premissa que o empreendi-mento é realizado com recursos próprios e tem por objetivo calcular a taxa de desconto que zera ovalor presente do fluxo de caixa. Isto é, uma vez fixado o prazo para avaliação, é calculada a taxa dedesconto que iguala os saldos de caixa de investimentos.

Recomendável apenas naqueles casos em que for possível estimar-se a probabilidade de ocorrên-cia de cada um dos eventos, a análise de risco introduz o cálculo de probabilidade para qualificar ovalor de fluxo de caixa descontado e elaborado na forma descrita anteriormente. A análise de riscoé feita sob várias formas, com graus de sofisticação bastante viáveis. A abordagem mais simplesconsiste na atribuição de probabilidades para a ocorrência de eventos que vão estabelecer as grande-zas, as quais, por sua vez, determinam a geração de fluxo de caixa e, conseqüentemente, o respectivovalor presente. Como a soma dessas probabilidades é igual a 1, o valor presente do empreendimentosob várias probabilidades será o resultado da soma do fluxo de caixa descontado e multiplicado pelarespectiva probabilidade de ocorrência.

Por último, o método preço do vendedor, que se baseia na avaliação intuitiva dos donos do empre-endimento, no caso de venda. Em muitas das vezes é o que prevalece sobre todos os outros métodoscientíficos de avaliação.

O autor é Harry Simonsen Jr., engenheiro civil e presidente da Simonsen Associados. O ESTADO DE SÃO PAULO - CADERNO DE EMPRESAS, em 23/05/86, p.03

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Para compor algumas passagens sobre a utopia do QuintoImpério, mediatizo contrastes de abrangências sincrética,histórica, mítica e artística, entre o Padre Antônio Vieira eFernando Pessoa. Articulo as influências proféticas emPortugal, expostas pelas idéias de Vieira, que consagram oImpério Universal de Cristo. Cotejo esses posicionamentos,através do pensamento e dos registros deixados nas obras eno Espólio de Fernando Pessoa. Entre convergências edivergências propicio um elo unificador sobre dois escrito-res, que tiveram em comum um talento intelectual dedicadoàs origens cósmicas de uma divindade universal, plena devalores espirituais e supra-nacionais.

Palavras-chave:Quinto Império - Antônio Vieira - Fernando Pessoa

In order to compose some passages about the utopia ofthe Fifth Empire, I unravel contrasts of syncretic,historical, mythological, and artistic amplitude, betweenFather Antônio Vieira and Fernando Pessoa. I articulatethe prophetic influences in Portugal, as exposed by theideas of Vieira, which consecrate the Universal Empireof Christ. I appraise these perspectives by way of theideas and notes left in the works and in the Bequest ofFernando Pessoa. Among convergences and divergencesI point out a link between the two writers, who had incommon an intellectual talent dedicated to the cosmicorigins of a universal divinity, full of spiritual and supranational values.

Key-Words:Fifth Empire -Antônio Vieira - Fernando Pessoa

* Josenia Marisa Chisinié professora deLiteratura PortuguesaUFMS - UniversidadeFederal de MatoGrosso do Sul - Brasil.

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Josenia Marisa Chisini *

O QUINTO IMPÉRIOCONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIASENTRE FERNANDO PESSOA E O

PADRE ANTÔNIO VIEIRA

O tema que desenvolvo neste ensaio é vasto einesgotável, porque transcorre pelas peculiaridadessubjetivas da Nação Portuguesa, que vivenciou umamulticulturaneidade histórica, religiosa, mítica e ar-tística. Recorro a algumas sinalizações contrastivassobre a dimensão daquilo que seja nominado deQuinto Império. Demonstro a confluência de idéiasutópicas que estiveram impregnadas de espiri-tualidade, patriotismo, motivos do engenho intelec-tual universalizante e também artístico de doisinigualáveis escritores: Fernando Pessoa e PadreAntônio Vieira.

Para ilustrar, coloco as palavras de admiraçãode Fernando Pessoa ao Padre Antônio Vieira, ondeaparece a seguinte declaração, indicando o contex-to das trovas de Bandarra: “As Profecias desse sa-pateiro de Trancoso, amou-as e as comentou o mai-or artista da nossa terra, o Grão Mestre, que foi daOrdem Templária de Portugal” (Joel. Serrão. Org.Fernando Pessoa Sobre Portugal - Introduçãoao Problema Nacional, Ática, 1979, p. 179).

Padre Vieira estréia suas preleções religiosas eproféticas na Capela Real, em 1642, demonstrandocomo Portugal ligava-se a uma força divina, cujapotencialidade conduzia as marcas dos textos pro-féticos da Bíblia. Ele comunica, que era desde aBatalha de Ourique, que os padres prognosticavamum futuro, no qual adviria um momento de Restau-

ração para o ano de 1640. A convicção sobre essasidéias foi decisiva para que ele elaborasse a obraHistória do Futuro, onde intencionalmente legiti-ma a voz das profecias, nos destinos e nas esperan-ças de Portugal. Na obra vê-se como o projeto doQuinto Império propicia um alargamento difusor etambém repleto de sentimentos de nacionalidade,que ascendem o espírito religioso lusitano. Tem-sea oportunidade de verificar como o exercícioevangelizador é argumentativo, ilustrativo, expostopor uma caudalosa linguagem interpretativa, que dáacesso às preconizações judaicas, metaforicamen-te transferidas ao catolicismo.

Vieira aproveita essas ocasiões para convocar oleitor, alertando-o para o tipo de dificuldade que aIgreja Católica, as Instituições clericais vinham en-frentando. Diante desse intuito, ele alerta para o fatode que - os padres não haviam entendido o verda-deiro sentido das profecias, sobretudo, porque nãosabiam acompanhar a evolução dos tempos.1

Lembro, que mesmo dentro do espírito religioso,o Padre Vieira não poupou críticas à sua Institui-ção, aos nobres, ao clero, e aqueles que detinham opoder financeiro. Ao mesmo tempo defendeu osCristãos-novos, principalmente os judeus converti-dos ao catolicismo, já que estes faziam parte do povoe da historicidade de Portugal. Nesse contexto re-corro ao trabalho profícuo do professor Alfredo Bosi,

1 VIEIRA, Antônio. História do Futuro. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, s.d., pp. 202-217.

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com o seu ensaio - Vieira. Ou aCruz da Desigualdade2 ondeaparecem algumas informaçõessobre o projeto político, e os con-ceitos desenvolvidos sobre os“Três Estados”. A construção re-flexiva revela quais eram os com-promissos, os deveres da nobre-za, do clero e do povo, cujas clas-ses sociais deveriam se entenderpara poderem elevar a dignidadeda nação portuguesa. Vieira ar-gumenta que os três Estados, mes-mo sendo desiguais, tinham pos-sibilidades de diminuir e transformar as injustiçassociais, cuja finalidade produziria um refinamentocultural à raça portuguesa, e aos domínios coloni-ais. Por conseqüência, a lei de Cristo era o instru-mento legislador que promoveria a transformação,e o alcance de um “Re-Nascimento”. Essa edifi-cação continha ressonâncias messiânicas, que emol-duravam uma herança de “Reis Benfeitores”. Deacordo com a prática da fé cristã ocorreria uma ade-quada “Restauração Política em Portugal”.

A preocupação política de Vieira perpassa poruma forte influência precursora dos textos bíblicos,fazendo com que ele se apropriasse da história dopovo judeu, das expectativas da vinda do Messias.As elucubrações interagem similarmente com a his-tória, com a cultura do povo português. As profeci-as e seus envolvimentos simbólicos recaem cons-tantemente sobre os profetas Daniel, Isaías,Jeremias, nos Evangelhos de São João, São Mateuse nas cartas de São Paulo. Estas passagens sãoreinterpretadas na História do Futuro, onde Vieiraargumenta que a nacionalidade lusa presentificou-sequando houve a intervenção divina de Cristo a Afon-so Henriques, na Batalha de Ourique. Esse sinaldemarcava vivamente a ação divinizante, compro-vada no documento do ‘‘Juramento’’, o qual sobre-vivera e havia sido motivo de várias análises. Oencontro demiúrgico revela-se com o aparecimentode Cristo, oferecendo a garantia de êxito para Por-tugal, na Batalha de Ourique, cuja concordância iriaser preservada até o desenrolar da 16ª geração dereis, ligadas à Casa de Avis.

Para revitalizar os temas míticos e místicos éoportuno lembrar os elucidativos e detalhados le-

vantamentos feitos por IsabelBuescu, colocados no texto - Vín-culos da Memória: Ourique e aFundação do Reino. A pesquisaencontra-se obra organizada porYvette K. Centeno - PortugalMitos Revisitados3. Neste traba-lho a pesquisadora salienta, que apromessa de um ‘‘Império Cris-tão Universal’’ seria encarnadopor um descendente do primeiroRei de Portugal e esse destinohavia sido sinalizado pelo PadreVieira. Além disso, encontram-se

informações preciosas sobre a descoberta do “Ju-ramento”, a avaliação das análises sobre a fidelida-de do referido documento, uma mensagem, que porsi traz um valor histórico para os registros da cultu-ra portuguesa.

Fernando Pessoa deixou vários apontamentos quetratam sobre o Quinto Império, Bandarra e oSebastianismo. As informações estão ligadas à suaprópria inciação espiritual, aos ideais de nacionali-dade, aos temas ocultistas, os quais heraldicamenteestão simbolizados por uma linguagem hermética.Em relação ao Padre Vieira, há uma variedade dedeclarações, tanto na obra poética como em prosa.Um momento primordial é aquele que aparece noLivro do Desassossego, no qual Vieira é valiosa-mente designado através do emblema de “MeuMestre”. Certamente essa imagem idealizadora in-fluenciou as conotações místicas, míticas deFernando Pessoa4, dentro do seu pensamento.

A idéia e o desenvolvimento das significânciassobre o “Grande Império” têm uma forte exposiçãona História do Futuro, na qual desígnios proféti-cos trazem uma comunicação cifrada, cheia desimbologias, que foram encobertas pelo tempo e peloseus efeitos polissêmicos. Para essa demonstraçãoevolutiva e progressiva, Vieira retomou a figura doInfante D. Henrique, para indicar a origem do des-tino do Grande Império. Nesse curso, o Navegadortambém servia de exemplo, porque tinha sido umser preparado cientificamente e moralmente paradar continuidade ao espírito religioso, empreende-dor do desejo de progresso humanista. Em decor-rência desses fatos, Portugal tivera oportunidade deadquirir os conhecimentos náuticos e centrar-se no

2 BOSI, Alfredo, Revista CEBRAP. São Paulo: 1989, v.25. pp. 28-49.3 BUESCU, Ana Isabel.Vínculos da Memória: Ourique e a Fundação do Reino. In: Portugal: Mitos Revisitados. Lisboa: Edições Salamandra,1993, pp. 9-50 et pp. 18,19,20. Recomendamos leitura de Antônio Vieira no livro Ante Primeiro da História do Futuro. In: José Van DenBesselaar. Padre Antônio Vieira – Livro Ante Primeiro da História do Futuro. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, Cap. 5, pp. 51-52.

4 PESSOA, Fernando, Livro do Desassossego. São Paulo: Editora Unicamp, 1994, v.2, p. 31.

Segundo Bosi,para Vieira a lei de

Cristo era oinstrumento legislador

que promoveria atransformação e o

alcance de um"re-nascimento".

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.

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Ciclo das Grandes Descobertas.Interessante são as ilações meta-fóricas, históricas sobre o CaboBojador, indicando um desafio ul-tramarino, científico e espiritual,diante de um mundo desconheci-do. É no Livro Ante Primeiro5 deHistória do Futuro, que Vieiraabre seu pensamento de formamítica, explicando que a primeirapessoa a ultrapassar aquele espa-ço geográfico tinha sido o portu-guês Gilianes. E se esse Cabo, eraoutrora denominado de “Não”, eraporque o mesmo envolvia-se em sombras, num ne-voeiro, que serviam de exemplo desafiador para umareflexão ao povo português, que agora estava sen-do convocado para uma missão.

Eu aproveito o tema acima para associá-lo eaproximá-lo com às idéias de Antônio Vieira e àpoeticidade dos textos de Mensagem e Quinto Im-pério6 de Fernando Pessoa. As palavras nos res-pectivos poemas contextualizam um Portugal sob ne-voeiro, mas que deveria superar as dificuldades eunir-se num desejo de concitar uma melhoria políti-ca, um aprimoramento espiritual, aludidas nestas pa-lavras: “É a Hora!/ Valete, Fratres”; “Convoco to-dos sem saber/ (É a Hora!) aqui!” Esses momentostrazem a influência da marca do “Mestre”, daqueleVieira do Livro Ante Primeiro, capítulo 10, que ape-la para o povo português, lembrando os episó-dios da travessia do ‘‘Cabo Não’’, ao utilizar a se-guinte convocatória - “porque chegou a hora”. Es-tas palavras tinham a capacidade de promover um“Re-Nascimento”, uma Restauração político-religiosa.

Vieira traz a voz profética de Isaías e dela retirasituações exemplares para impulsionar a difusão dafé no mundo. Portugal aparece como o destinatáriodessa propagação aos povos da América e do Ori-ente, cuja fé cristã seria levada à China, ao Japão eao Brasil, através do envio de religiosos que tives-sem “grandes virtudes”.

Essas prospecções e conclamações fazem comque a utopia do Império seja de uma herança aristo-

crata e régia, transmitida desdeAfonso Henriques7, que haviaconcretizado a união de dois es-paços: o terreno e o espiritual. Osuporte textual das profecias deDaniel e Esequiel permitia comque Vieira demonstrasse o Quin-to Império sendo o sucessor doImpério Romano. No curso dasreferências simbólico-judaicasestão as impregnações cabalís-ticas, que incidirão sobre o anode 1666, data ansiada por Vieira,visto que nela ocorreria a supos-

ta “fundação do Reinado Universal de Cristo”8.As profecias de São João, no texto do Apoca-

lipse9 trazem uma base para Vieira instalasse uto-picamente as “Esperanças de Portugal”, movidaspelo desejo do “Quinto Império do Mundo”, um “Im-pério Esperado”. “Todos os reinos deveriam se unirsob um cetro, e os homens obedeceriam a uma su-prema cabeça e todas as coroas teriam um sódiadema, a Cruz de Cristo”. As declarações fazemparte tanto nos prognósticos do Livro Ante Primei-ro, nos capítulos segundo e terceiro, como tambémanteriormente já tinham sido proferidas no Sermãodos Bons Anos em 1642, cujas palavras reforça-vam a idéia da Restauração, sendo uma conse-quência de ordem divina e messiânica.

A intencionalidade em comprovar a eficácia dasprofecias para que elas servissem aos objetivosdifusores, faz com que Vieira proponha a utopia doImpério de Cristo, ou seja o Quinto Império, com aparticipação do clero na vida nacional e na expan-são da fé cristã. Essa proposição aparece de formamuito ilustrativa e ao mesmo tempo traz um sentidoocultista secreto, quando Vieira fala sobre os “Ca-valeiros de Cristo”. Essa passagem textual pode serconstatada nos fragmentos da seguinte citação:

“Os portugueses foram aqueles cavaleiros a quemCristo abriu o primeiro caminho pelo mar ( ... )pisaram as ondas do mar, como os cavalos pisa-ram o lodo da terra. ( ... ) As naus dos portugue-ses, aquelas carroças que levaram pelo mar a fé ea salvação: ( ... ) a primeira empresa e vitória des-

5 BESSELAAR, Van Den. Padre Antonio Vieira – Livro Ante Primeiro da História do Futuro. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, p. 108,cap. 10, observa-se: O Livro Ante Primeiro é um texto introdutório à História do Futuro, composto em 12 capítulos, sendo publicadopela primeira vez, em 1718.

6 PESSOA. Fernando. Obra Poética. In: Mensagem, Quinto Império. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, pp. 89 et 97.7 VIEIRA, Antônio. História do Futuro. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, s.d., pp. 240-241.8 CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira - A Obra e o Homem. Lisboa: Editora Arcádia, s. d., p. 144. Et Lucio Azevedo. A Evoluçãodo Sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947, p. 89.

9 VIEIRA, Antônio. A História do Futuro. São Paulo: Edições Publicações Brasil, s.d., pp. 49, 53-54.

Vieira traz a vozprofética de Isaías edela retira situações

exemplares paraimpulsionar a fé no mundo.Portugal é o destinatário

dessa propagaçãoaos povos da América

e do Oriente.

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ta Cavalaria de Cristo foi a su-jeição do mesmo mar bravo omaior ministro do Evangelho seembarcou nas carroças destaCavalaria ( ... ) foi o grandeApóstolo da Índia São Francis-co Xavier, ele foi cavaleiro damesma Ordem. ( ... ) O mesmosanto apóstolo apareceu vesti-do com a Cruz vermelha no pei-to, como insigne cavaleiro des-ta santa cavalaria ( ... ) da Or-dem dos Cavaleiros de Cristo dePortugal” (Vieira. História doFuturo, pp.264,265).Nas expectativas messiânicas e proféticas tam-

bém estava a visão medieval teocêntica, porém di-luída nas canalizações dos princípios ecumênicos,na modernidade política e no avanço tecnológico.Essas circunstâncias dialogavam entre idéias con-traditórias, silogismos organizados por uma lingua-gem ornamental, que não desprezava a herança e atradição cultural, principalmente a de influência ju-daica. A convicção da força messiânica da figurade Jesus Cristo sobreleva-se e transporta-se na fun-dação da Igreja Católica, dando a esta poderes so-brenaturais, mesmo quando Vieira critica profunda-mente os jesuítas. A valoração de uma ideologia po-lítica, religiosa e monárquica expande-se pelo dese-jo de colocar ações globalizantes no mundo daquelaépoca. Portanto, a nacionalidade de Vieira é vistapela supranacionalidade, na qual Deus engloba aespiritualidade do ser humano, fazendo parte de umsupra sistema civilizacional, a Monarquia Universaldo Reino de Cristo.

Observo que Vieira acreditava na vinda de umnovo messias, no renascimento de Cristo, porém naconcepção do Encoberto, que se revelava exemplar-mente na crença da ressurreição de D. João IV, ouainda, da incorporação de D. Sebastião em outrosreis. Nisso agregam-se os conhecimentos provin-dos de uma sabedoria secreta, ou da Teosofia, queassumem proporções ocultistas. Creio, ser este umgrande caminho de averiguações, para que se pos-sa compreender o Padre Vieira dentro de um con-texto espiritual, ideológico de maior abrangência.

Após essas incursões, quero agora deter-me nasinfluências e entendimentos de Fernando Pessoa,junto ao tema sobre o Quinto Império. Certamentesão nos documentos reunidos no Espólio, que pode-mos melhor verificar o modo pelo qual houve essadeterminada dedicação, valorizando a nacionalida-de lusa e o seu envolvimento cultural. Como eu ex-

pus no início desta minha análise,é preciso levar-se em conta o con-junto das manifestações de ordemhermético-ocultistas, as idéias es-téticas, filosóficas e político-sociais, para que se possa avaliarcom proficiência as informaçõesdeixadas por Pessoa.

Quero esclarecer e tambémtransmitir o seguinte depoimento:- Foram nas pesquisas efetivadassobre os tipos de cânones e fon-tes influenciadoras da estéticasensacionista, que encontrei o

modo extremamente singular das significâncias in-telectuais, espirituais e ocultistas de Fernando Pes-soa. Dentre essa busca, deti-me nas questões míticasnacionais, na compreensão sobre Deus, sobre as re-ligiões e a arte. De acordo com algumas premissas,reservadas no meu trabalho, eu fui compreendendo,percebendo que, o entendimento sobre Pessoa de-pendia da minha entrega às investigações nos cam-pos culturais, porque neles expandia-se uma inva-são profunda da personalidade e das idéias originaisdesse escritor. Nos aspectos científicos utilizei aCiência da Literatura, tomei a linha metodológicacomparatista e com isso verifiquei o vigor da cons-trução da obra e da vida de Pessoa, constatandoligações constantes com o conhecimento da Sabe-doria Teosófica, desenvolvida em várias civilizaçõese presentificadas nos textos, tanto poéticos comoem prosa de Fernando Pessoa, especialmente nosfragmentos do Espólio. Diante desse enorme desa-fio e com algumas hipóteses em mente, dire-cionei-me às procedências multiculturais, quedesaguávam, nos aspectos civilizatórios, cosmogô-nicos e transcendentais.

Como exemplo do que referendei acima, estãoas trovas de Bandarra, apreciadas sob o ângulo doQuinto Império, e que são revisitadas por FernandoPessoa, quando verifica a existência de umadicotomia mental, expostas em duas forças: do ladoesquerdo, a presença da Sabedoria da Ciência, oraciocínio, a especulação intelectual. No lado direi-to, o posicionamento do conhecimento oculto, a in-tuição, a especulação mística e a kabalística. Den-tre essas forças haveria um só deus conhecido, umapaz para todo mundo e a existência de uma sófraternidade, contudo quando isso iria acontecer, eraimprevisível10.

É também rentável se observar, junto a essas de-clarações, a posição sobre a compreensão de Deus,

10 SERRÃO, Joel et alii, Fernando Pessoa, Sobre Potugual - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, 1979, pp. 239, 146.

Vieira acreditava navinda de um novo

messias, norenascimento de Cristo,porém na concepção do

Enconberto, que serevelava na crença da

ressureição eincorporação de reis.

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que para Pessoa fica exposta nasseguintes palavras: “o mundo nos-so não [é] o único, porque [há]outros universos, como tantos ou-tros deuses e isso torna-se ummistério de mais alto ocultismo”.Os fragmentos do Espólio de-monstram sobre esse tema as se-guintes questões sobre as profe-cias, cujas circunstacialidades sãobastante esclarecedoras.

‘‘( ... )A profecia é a visão dosacontecimentos na sua formacorpórea. [Ela] pode às vezes(ou sempre) aplicar-se a várias cousas. Isto nãoinvalida a profecia. É que vários acontecimentossão um acontecimento só, isto é, um só ente sobvárias formas (Serrão. Opus Cit, p. 196)’’.Para Fernando Pessoa a divisão histórica dos cin-

co impérios, nos quais incluía-se o quinto, atravésdo Império Hebreu, era uma suposição ingênua,porque essa divisão não se concretizava. Haveria-sede compreender os impérios a partir da construçãode “várias coisas e influências”. Junto a esses con-teúdos, também deve-se levar em conta a inclina-ção constante de Pessoa na sua construção trans-cendental panteísta, bastante trabalhada intelectu-almente nas referências dos textos sobre arte, filo-sofia e cultura. Pessoa demonstra a sua concepçãoreligiosa, utilizando a filosofia pagã, dentro das qua-tro grega e fundira isso a outros povos formadores;o Império Cristão com a inserção de cultura grega,que ainda se agregava aos elementos de toda or-dem oriental, incluindo o hebraico. Por último apa-rece o Império Inglês, distribuído por toda a terra, eeste trazia um resultado provindo dos outros trêsimpérios. Por conseqüência dessa progressão, oQuinto Império fundiria os quatro impérios antece-dentes11.

Como pode-se constatar, Pessoa desejava a uni-versalização da civilização européia, de modo que oobjetivo do Quinto Império seria congregar uma sóreligião, em uma só situação espiritual, mas que eladesse conta de um caráter ecumênico, holístico, poisesta proposta recaía nos conhecimentos de proce-dência Teosófica. Ressalto que essa religiosidadeecumênica não era do cristianismo católico, mas simde um cristianismo de origem sincrética e de influ-ência cosmogânica. Essa decorrência viria por meio

de uma evolução européia, dian-te das dimensões materiais, inte-lectuais e espirituais e sob trêsordens: espacial, temporal e inte-lectual. A prolepse visionária dePessoa amplia-se e indica o tér-mino do Quinto Império atravésda dissolução de nossa civilizaçãoe que a mesma ocorreria fatal-mente naquilo que era denomina-do por ‘‘Fim do Mundo’’, com avitória cristã, porém o fim domundo também significava a“morte da religião católica”. As

observâncias de Pessoa entram em comum acordocom as profecias de Nostradamus, que previam aextinção cristã da forma romana-católica para oséculo XX12.

Sobre a veracidade das profecias de Nostra-damus, Pessoa afirma que elas tinham sido imparci-ais, como também as de Bandarra e de São Fran-cisco de Paula, pois este havia previsto que surgiriauma nova Religião13. Esclarece, ainda, que as inter-pretações sobre as profecias de Daniel, no sonhode Nabucodonosor, elas não correspondiam e nãoestavam corretas às associações culturais com Por-tugal, visto que, a tradição hebraica e a divisão dosimpérios, apresentada nesses sonhos, indicavamcircunstancialidades diferentes, e por isso o QuintoImpério aparecia de forma duvidosa. Com essas de-monstrações, conclui-se que Pessoa não partilhavadas mesmas interpretações proféticas e religiosasdo Padre Antônio Vieira, sobretudo, quando demons-tra em várias ocasiões, que o Quinto Império seriauma decorrência do progresso cultural de Portugal.Para isso a nação deveria se preparar para essecultivo e se caso isso viesse acontecer, não poderiasê-lo de maneira estéril, movida ao ‘‘universalismohumanitário” e nem com a “brutalidade de um naci-onalismo extra-cultural’’. Mas sim, ele deveria acon-tecer com a dimensão de uma fraternidade univer-sal semelhante à doutrina social, íntima dos RosaCruz”14.

Fernando Pessoa ao interpretar e analisar o cor-po das “altas profecias’’, expostas pelas Trovas deBandarra, em que estão as sugeridoras alusões aD. João IV, manifestou uma posição contrária a deVieira, porque entendeu que a linguagem das trovasnão poderia ser tomada como sendo uma prova efi-

11 Idem, ibidem. pp. 148-149.12 Idem. ibidem. 185-186; 241-242.13 Idem, ibidem. pp. 150-151.14 Idem, ibidem. p. 239.

Para Pessoa,o mundo nosso nãoé o único, porque há

outros universos, comotantos outros deuses

e isso torna-seum mistério de

mais alto ocultismo.

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caz da inclusão de D. João IV. Naverdade, essa passagem deveriaser entendida dentro de uma cer-ta época histórica, na qual Portu-gal, ligava-se ao surgimento do“Primeiro Perigo do Norte”. Aspalavras pessoanas deixam umalacuna indagativa, pois o escritorverifica que naquela época daRestauração, acontecera o apare-cimento de “ondas de misticismo”e desse modo teriam ocorrido naHistória Cultural de Portugal trêsgrandes falsos encobertos. Elesteriam surgido através de circunstâncias sociais obs-curas, as quais trouxeram D. João IV, o Marquêsde Pombal e Sidónio [ Pais ]15.

Eu não poderia deixar de comentar alguma coisasobre a interpretação e a influência do Sebastianismoem Pessoa, todavia sabemos que ele ficou bem lem-brado por Antônio Quadros, na sua obra Poesia eFilosofia do Mito Sebastianista. Este escritor tam-bém utiliza os apontamentos do Espólio e concluique a posição de Pessoa referente ao Sebastianismoela é teosófica e mitosófica16. Observa-se que o“Grande Regresso” constrói-se num contexto, ondeD. Sebastião é visto por Fernando Pessoa como umasinalização, advinda do desejo de se obter a unidadeIbérica, através de Portugal. Este acontecimentoocorreria a partir da retirada dos elementos estran-geiros, tais como o Cristianismo Católico, inimigoradical da Pátria. Após essa passagem é que come-çaria despontar o Quinto Império, o qual permane-ceria oculto até o princípio do século XX. FernandoPessoa transmite outras informações, dizendo queo movimento “em volta de uma figura nacional’’17

tinha um sentido simbólico. Portanto D. Sebastiãorepresentava Portugal e era um fenômeno que fa-zia parte da assombrosa sociedade secreta, que cadavez mais se ocultava e guardava religiosamente essesegredo, no qual estava o sentido simbólico portu-guês.

A compreensão conceitual sobre o Quinto Impé-rio aparece nos registros do Espólio, que trazem asseguintes anotações:

‘‘O conceito de ‘quinto império’ é antigo na pro-fética cristã e pré-cristã, entendendo por ‘pré-

crista’, a hebraica. No esquemaprofético, em que este conceitoaparece, determina-se a existên-cia de cinco impérios, até aquilo aque simbolicamente os profetaschamam de ‘fim do mundo’. (...)isto é o fim do conceito que têmdo mundo (...), o fim do ciclo psí-quico-ordinariamente um ciclo re-ligioso a que pertencem os profe-tas]. (...) Usado por um cristãoserve instintivamente [ para ] de-signar o fim da religião cristã’’(Serrão. Opus. Cit., 1979, p.241).

Além dessas informações éimportante manter-se esse conceito costurado àsinter-relações dos processos civilizatórios, porqueeles são constantemente levados em consideraçãopor Fernando Pessoa, que os divide em três estádi-os: o imperialismo de domínio, o de expansão e o dacultura, este como consequência do segundo. As alu-sões condicionam-se ao período que inicia-se com aRenascença, que trouxe o imperialismo de domínioe o do século XIX, o qual desenvolveu-se dentro deuma ação modelada pela expansão. Segundo os es-clarecimentos do escritor, é a partir desse momentoem diante que surge a formação do imperialismo dacultura, no qual Portugal possuía condições dedesenvolver-se como uma grande potência espiritu-al. Essa vocação ocorrera desde as descobertasmarítimas, que haviam sido um ato cultural, sobre-tudo de criação civilizacional. Segundo Pessoa aprópria idéia de descoberta gerara um processo debusca, no desejo de encontro com o desconhecido.

Podemos obter maiores detalhes, em outros es-critos, nos quais o Quinto Império é demonstradocomo fruto de uma imanência espiritual, origem dosprognósticos de profetas bíblicos. Fernando Pessoadeclara que em Portugal as profecias estavam fun-dadas nas trovas de Bandarra e nas quadras deNostradamus. Como resultado, o futuro de Portugalcondicionava-se em “sermos tudo”.18

Frente ao exposto, conclui-se que Vieira condu-ziu uma intencionalidade espiritual aproximada a deFernando Pessoa. Porém a utilização dos instrumen-tos ideológicos, religiosos e a sua própria formaçãoclerical o tornaram diametralmente diferente de Pes-soa, sobretudo, porque esses escritores ocuparam

15 Idem, ibidem. pp. 206-207.16 QUADROS, Antônio. Poesia e Filolofia do Mito Sebastianista. Lisboa: Guimarães e Cia. Editores, 1982. v.1. p. 117.17 SERRÃO, Joel et alii. Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, pp. 190-191.18 PESSOA, Fernando. Obra Em Prosa. In: O Futuro de Portugal, O Sensacionismo, Idéias Filosóficas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1990, pp.

332,334; 424,454; 543,576.

Vieira dessacralizou aTeologia de sua

Instituição, que sóadmite a ressureiçãopara o Filho de Deus,

restando aos homens apromessa de uma

futura ressureição.

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circunstancialidades históricas cul-turais e artísticas diversas. Vieiradesejou o “Império Universal deCristo”, exercendo uma potencia-lidade temporal e espiritual, queexigia um novo Estado para a Igre-ja. Ao mesmo tempo, vivenciouuma complexa situação, diante daIgreja Católica, a Monarquia, queconfrontavam-se com a expansãofinanceira judaica, impondo umaconversão religiosa aos judeus.Para enfrentar o Tribunal do San-to Ofício, Vieira produziu para asua própria defesa a peça textual jurídica, Repre-sentações. Nesta pode-se apreciar a agudeza inte-lectual, as posições corajosas e argumentativas des-se jesuíta, declarando que “o mundo se converteriauniversalmente cristão e toda essa ( ... ) proprie-dade se chamaria “Reino e Império Cristão”19.

A divergência fundamental entre os dois escri-tores apresenta-se através do uso dos meios pelosquais se realizaria a utopia da imperialização. ParaPessoa, as vias de acesso seriam as reflexões crí-ticas culturais, a composição religiosa sincrética,que tinham possibilidades de revigorar a tradiçãopagã-panteísta, precursora das multiplicidades re-ligiosas e do conhecimento adquirido pelas civili-zações. O Quinto Império seria construído medi-ante o caminho individual, altamente iniciático, oqual reverteria numa nação próspera, engajada aouniversal. Esse intuito privilegiava um encontro sobtrês dimensões: espacial, temporal e espititual. Paraessa busca, a humanidade, especialmente Portu-gal, estava convocado devido à sua vocação místi-ca e secular, a conviver numa mentalidade incor-porada por ações holísticas, emanadas peloaprofundamento da consciência. Pessoa acredita-va na imortalidade da alma, porque ela tinha o po-der de desaparecer e reaparecer, evocando-se emoutras formas e trocas20.

A postura sobrenaturalista, aparentemente ab-surda de Vieira, frente à ressurreição de D. JoãoIV, conferindo a este rei o poder da transfiguraçãosebastianista, deve ser entendida sob o prisma daSabedoria Teosófica, que possui a “Arca do Conhe-cimento do Universo”, emblemas traduzidos pelascivilizações egípcias e judaica. Devido à ignorânciada humanidade sobre esses conhecimentos arcai-

cos e secretos, surge uma abissalimpossibilidade investigitiva einterpretativa, a mesma que levouVieira à Inquisição, ao ter que en-frentar os dogmatismos da IgrejaCatólica. Além disso, ele des-sacralizou a Teologia de sua Ins-tituição, que só admite a ressur-reição do corpo e da alma para oFilho de Deus, Jesus Cristo, na re-alidade o que resta é uma pro-messa de uma futura ressurrei-ção para os homens. Também,deve-se levar em consideração a

força parenética daquele jesuíta, sobre as profeci-as, os evangelhos, pois estes textos tinham sidoreinterpretados mediante à tradição hebraica, quecontinha elementos, significâncias transferíveis à Pe-nínsula Ibérica, mais especificamente aos territóri-os, de Portugal.

O mito do “Encoberto” trazia uma aparente he-resia, porque dimensionava ‘‘atos de reapare-cimento”,nos quais fundia-se a matéria, o corpo como espírito, digníficados na alma. Um exemplo foramos textos produzidos em torno de D. João IV e so-bre outros reis, que Vieira elaborou, afirmando o seuposicionamento sobrenatural e profético, isso nãocompatível aos dogmas e a teologia da Igreja Cató-lica.

Conclui-se que há um elo de aproximações entreos dois escritores aqui estudados, porque neles apa-rece a crença da imortalidade da alma, produzindouma fenomenologia transcendental, cujos desdobra-mentos ocorrem nas dimensões desconhecidas - umlaço com o além, com outras vidas, que se comuni-cam após a morte.20

O que chama a atenção são as palavras deFernando Pessoa, quando referiu-se a Vieira, dizendoque ele era o “Grão-Mestre da Ordem Templáriade Portugal”. Essa afirmação não é gratuita, vistoque as Ordens Secretas trazem essas informações.Na verdade elas é que terão as melhores explica-ções e revelações para que possamos obter as ori-gens místicas, cheias de mistérios dos reis, das cren-ças e da cultura de Portugal. Tanto nos textos deVieira como nos de Pessoa há esses comprometi-mentos esotéricos, herméticos, principalmente aque-les associados à utopia universalista de uma culturaespiritual, denominada de Quinto Império.

19 CIDADE, Hernani. Prefácio. Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957, pp. XV et pp222,310. v.2.

20 SERRÃO, Joel et alii. Fernando Pessoa, Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Lisboa: Ática, 1979, p. 196.

O mito do "Encoberto"trazia uma aparente

heresia, porquedimensionava "atos dereaparecimento", nos

quais fundia-se o corpocom o espírito,

dignificados na alma.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 48-55, jul./dez., 1997.

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A comparação parece ser uma das figuras de linguagemmais utilizadas pelo sertanejo brasileiro. Este ensaio co-menta as formas de comparação utilizadas por GuimarãesRosa em Tutaméia, considerado pelos críticos como deimportância capital na interpretação da obra do escritor mi-neiro.

Palavras chave:Literatura brasileira, teoria literária, crítica literária.

The comparison seems to be one of the most commonfigures of language used by the brazilian “sertanejo”.This essay comments the ways Guimarães Rosa uses thecomparison in Tutaméia, seen by his critiques as of crucialimportance for the interpretation of his work.

Key-words:Brazilian literature, literary theory, literary critique

* Luiza MelloVasconcelos éprofessora do Curso deLetras no CentroUniversitário daGrande Dourados/UNIGRAN. Mestre emLingüística pelaUniversidade Católicado Paraná

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57Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997.

GUIMARÃES ROSATUTAMÉIA

Luiza Mello Vasconcelos *

Literatura é arte ; assim como as demais formasde arte, possui seu meio próprio de expressão. Apalavra é para a Literatura o que são as cores paraa pintura e os sons para a música. O escritor utilizaos recursos lingüísticos de que dispõe de maneira aexpressar seus sentimentos, da melhor maneira pos-sível.

Guimarães Rosa, segundo Mary Daniels(1968), chama a atenção para o valor ineren-te e o potencial da palavra. As palavras todasde Rosa em Tutaméia são medidas e pesadas,postas no seu exato lugar, não se podendo supri-mir ou alterar mais de duas ou três em todo olivro sem desequilibrar o conjunto. (Ronái, apudDaniels, 1968)

Muito já se falou sobre a linguagem do escritormineiro. O presente artigo tem intenções modestase não pretende ser original. Procura apenas relaci-onar as formas de comparação utilizadas por eleem Tutaméia com algumas considerações sobre lin-guagem, Guimarães Rosa e sua obra.

Para muitos críticos, a obra de Guimarães Rosa éobra de artífice, de artesanato incomparável, tãoconsciente, que é impossível conceber que alguémfaça aquilo sem uma total adesão às tarefas que exe-cuta. Peregrino Jr., também citado por Daniels (1968),é um deles: É o temperamento do relojoeiro.

Segundo Wilson Martins (apud Daniels, 1968),Guimarães Rosa não rompe com a tradição literá-ria de seus país, nem seria grande escritor se ofizesse:

... sua obra define-se como a tentativa, não rarobem sucedida e sempre, de qualquer forma, extre-mamente original, de superá-la e prolongá-la pelainclusão num processo espiritual de outra ordem.(...) Parece um erro sobrepor o que há de univer-sal e estético na obra de Rosa àquilo que nela existede regional e sociológico. (...) Dois caracteres deestrutura histórica a distinguem: por um lado, arenovação do regionalismo e, por outro lado, afixação literária da linguagem rural. (...) Seriapreciso definir a arte de Guimarães Rosa como umaarte “sintática”; mesmo no plano romanesco, astécnicas que empregou são exatamente as mesmasque condicionaram a invenção do seu estilo en-quanto linguagem. É natural que haja, por umlado, relações estruturais sobre a intriga, os per-sonagens e o meio, e, por outro lado, entre essaarquitetura e a sua natureza de criação puramenteestética.Ainda Daniels (1968) considera Guimarães Rosa

regionalista, referindo-se não só à sua representa-ção simpática e viva dos tipos regionais de Minasmas também à penetração mais profunda nos pro-blemas perenes da personalidade humana tal comoestes se revelam nos homens, mulheres e meninossimples que habitam o Sertão, refletindo a influên-cia desse fator na sua vida.

Tutaméia foi o último livro de Guimarães Rosaa ser editado em vida. É considerado pela críticacomo de importância capital na interpretação daobra de Rosa devido às confidências que nele fazo autor.

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No apêndice da edição JoséOlympio/MEC, Paulo Ronái diz:ele me segredou que dava amaior importância a este livro,surgindo em seu espírito comoum todo perfeito não obstanteo que os contos necessariamen-te tivessem de fragmentário.Quanto ao título, toda minha,confirma a asserção de que oficcionista pôs no livro muito, senão tudo, de si.

Tutaméia, ou Terceiras Estó-rias, saiu do prelo pouco mais detrês meses antes da morte do grande mineiro em1967, e vem coroar a obra dele num estranhomomento de verdade, tão próximo do fim de suacarreira. Mantendo a tradição do conto breveestabelecida por Primeiras Estórias, Tutaméia nostraz uma série de quarenta estórias brevíssimas equatro prefácios, estes em forma de ensaio sobrevários aspectos da criação literária: o primeiro -Aletria e Hermenêutica - visa à linguagem figura-da; o segundo - Hipotrélico - à criação e uso deneologismos; o terceiro - Nós, os Temulentos -nos apresenta uma deliciosa anedota humorística(uma das poucas, aliás, do autor, e de temáticaurbana); o último dos prefácios - Sobre a Escovae a Dúvida - figura-se de suma importância paraqualquer leitor da obra rosiana no que tem de de-finitivo, confessional, pois é neste prefácio que Gui-marães Rosa fala abertamente da fé, da felicida-de, do processo criador, e da essência da vida,dando-nos por assim dizer a sua auto-análise ouautopsicografia.

Para Mary Daniels,Tutaméia constitui a afirmação definitiva da obrarosiana. As quarenta minúsculas “estórias” do vo-lume, arrumadas numa seqüência mais ou menosalfabética segundo os respectivos títulos, continu-am o padrão estabelecido por “Primeiras Estóri-as”: episódios concisos, de orientação introspectiva,especulativa. No que diz respeito às característicaslingüísticas (...) pode-se dizer que Tutaméia confir-ma plenamente o caminho escolhido e mantido des-de Sagarana, trazendo-nos novamente formas ori-ginais criadas dentro dos padrões reconhecidos comojá típicos da obra dele. Tais são os geniais “acha-dos” neologísticos, nenhum igual a seus antecessoresnas obras anteriores do autor mas todos obedecen-do às mesmas tendências formais e criadoras. Evi-dencia-se em Tutaméia a mesma preocupação pelasimultaneidade e dinamismo de expressão que se notaem “Sagarana”, “Corpo de Baile”, “Grande Ser-

tão: Veredas” e “Primeiras Estóri-as”. É uma prosa intensiva, com-pacta, até telegráfica na sua ânsiade comunicação imediata e direta -uma prosa que encurta palavras efrases, elimina ligações extensas, in-verte e repete elementos na criaçãode um estilo forte, viril, oral. Asmúltiplas faces e facetas da existên-cia, da realidade vivida, sentida, eàs vezes pensada de cada indivíduo- eis aí a essência de Tutaméia e aliásde toda a obra rosiana. Daí aimagética tão típica do autor, a con-junção de elementos às vezes apa-

rentemente díspares com o fito de recriar experiên-cias sinestésicas e sugerir novas tomadas de consci-ência.Em Tutaméia dá-se uma série de quadros serta-

nejos, instantâneos da vida, costumes, e ambientedo sertão, cada qual a revelar-nos uma faceta di-versa e complementar para completar a visão doconjunto.

Pode-se dizer que Tutaméia contém a chavede toda a obra de Guimarães Rosa e que vemmuito a propósito como última palavra do gran-de mineiro.

Casais Monteiro, também citado por Daniels(1968), afirma que Guimarães Rosa imita o serta-nejo no seu processo, mas de modo algum copia amaneira como ele fala; imita a atitude dele para coma língua, coloca-se no lugar dele, como um sertane-jo erudito, um sertanejo que conhece a beleza dasua fala.

Na linguagem espontânea e coloquial observa-se a atuação constante das figuras e tropos. Dentreeles, a comparação é, sem dúvida, um dos recursosbásicos da linguagem sertaneja. Podemos observar,nas comparações feitas por Rosa em Tutaméia, queas mesmas utilizam palavras familiares, comuns, co-nhecidas por todos, mas combinadas de tal modoque sua associação chega a ser poética. Confirman-do Nereu Corrêa (1978): não raro desborda dológico para o poético e deste para o alegóriconos seus arroubos imagísticos:

... como é como uma fruta azul a água fecha-da na cisterna (Tutaméia, p. 127)

Por meio do emprego sensível das técnicas poé-ticas e retóricas, Guimarães Rosa cria uma prosade beleza estética e poder expressivo:

... miúda, mansa feito botão em flor (Tutaméia,p. 45)

Diz Viggiano (1974): como grande criador, eletranspõe a realidade para o texto de forma ex-

A obra de GuimarãesRosa é obra de artífice,

de artesanatoincomparável, tãoconsciente, que é

impossível conceber quealguém faça aquilo sem

total adesão àstarefas que executa.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 56-59, jul./dez., 1997.

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tremamente seletiva, a come-çar pelo idioma, que elabora agrau elevadíssimo, a ponto derecriá-lo.

... fechada a gestos, ladean-do o tempo, como o que seme-lhava causada morte (Tutaméia,p. 143)

Para Bosi, citado por Megale(1978), Rosa reencontra a paisa-gem e o mito na materialidade dalinguagem:

... que amistosa o esperavacomo o mel que as abelhas cri-am no mato (Tutaméia, p. 135)

A linguagem de Guimarães Rosa, segundo a clas-sificação de Coronado (1960), é essencialmenteoblíqua: na linguagem oblíqua, pela sua irradia-ção, o significado radical e o real se dilata, alar-ga-se pelo contágio imaginário de outros signi-ficados, em graus diversos e dos mais váriosmodos, carregando-se da energia entitativa dosmesmos; e por esse contágio, seus contornosaparecem oscilantes e fluidos dinamizando a re-alidade.

Queria eu, um dia, que fôsse, atravessar orio, como quem abre enfim os olhos (Tutaméia,p. 135)

A linguagem oblíqua apresenta um caráter alusi-vo e referencial, aberto a outros horizontes, ganhan-do em riqueza e sensibilidade o que perde em estri-to rigor:

... como o dia de ontem que não passou(Tutaméia, p. 133)

O escritor, aproveitando o sistema estabeleci-do e mantendo-o nas suas bases (pois, de outromodo, não seria entendido pela comunidade) in-troduz nos sinais comuns de comunicação algumasmodificações pessoais que dão outra dimensão àmensagem lingüística, embaçando inicialmente asuperfície de sua transparência, o imediatismo desua transmissão:

... e aí eis, salteada de per-fil, como um retrato em bran-co, alheante, fixa no perpasso(Tutaméia, p. 123)

O significado faz uma curva nocaminho da comunicação; porém,para chegar carregado com umsignificado mais rico, captadomais em profundidade e, no finalda operação, mais luminoso:

Mas o assunto enriquecido- como do amarelo extraem-seidéias sem matéria.(Tutaméia,p. 81)

A linguagem oblíqua, por sua irradiação e opaci-dade, é aberta e sem recortes, ou seja, fundamental-mente interpretativa. Interpretativa no termo justo, en-quanto que obriga o leitor a procurar e encontrar averdadeira mensagem que, embora aberta e de difícilinterpretação, não pode ser senão única:

...tão certo como eu hoje estou o que nuncafui (Tutaméia, p. 46)

Ainda segundo Coronado, uma linguagem pre-dominantemente oblíqua tenderia a apagar apara-realidade e o factismo radical da matériado conto em benefício de uma mais ou menosdisfarçada meta-realidade, como tenderia atransformar a índole narrativa dos fatos em pre-texto ou ponto de partida para outra atitude nãomaciçamente fáctica e nem relevantemente nar-rativa pois, para ele, a linguagem do conto é es-sencialmente reta, atendendo às características dogênero.

Extrapolando as observações feitas com relaçãoà linguagem de Guimarães Rosa, considerando-a,de acordo com a classificação de Coronado(1970)como linguagem tipicamente oblíqua, coloca-se umaquestão: pode-se dizer que os contos de Rosa sãoos supostos contos mencionados pelo teórico, que,em virtude da linguagem oblíqua, estão de tal mododesfigurados que, mais do que contos, acabam sen-do peças literárias de outra natureza e gênero?

Referências BibliográficasCORONADO, Guillermo de La Cruz (1970). Teoria do Conto. Separata de Estudos Anglo-Hispânicos m. 2-3. S. José do Rio Preto:

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.CORRÊA, Nereu (1978). A tapeçaria lingüística dós Sertões e outros estudos. S. Paulo: Quíron/MEC.DANIELS, Mary (1968). João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro: José Olympio.MEGALE, Heitor e MATSUOKA, Marilena (org.) (1978). Contos - Guimarães Rosa. Série Literária, vol.3. S. Paulo: Nacional.VIGGIANO,Alan (1974). Itinerário de Riobaldo Tatarana. B. Horizonte: Comunicação/MEC.

Tutaméia foi o últimolivro de Guimarães

Rosa a ser editado emvida. É de importância

capital nainterpretação de sua

obra devido asconfidências que nele

faz o autor.

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Neste trabalho fazemos uma primeira tentativa de com-preensão da prática leitora das leitoras de romances senti-mentais de massa. A partir de novas concepções de lingua-gem, de sujeito e de leitura, defendemos a hipótese de queessas leitoras são “usuárias’’ e não “consumidoras” reco-lhidas à passividade e à alienação. Nos momentos de leitu-ra, elas vivem uma experiência estética: como no filme ARosa Púrpura do Cairo, há uma fratura nos acontecimentoscotidianos, uma conjunção sujeito/objeto e uma visão mo-mentânea, da ‘‘perfeição’’ que as predispõem à construçãode utopias.

Palavras-chave:leitura, práticas leitoras,

romances sentimentais de massa, utopia.

* J. Genésio Fernandesé artista plástico e prof.de Teoria Literária doDepto de Letras daUFMS. Mestre emTeoria da Literaturapela UFPE e doutorandopela USP.

In this work, we make a first attempt in order tounderstand the practical reading of a group of readerswho enjoy a kind of popular sentimental romances. Startingfrom a new language conception, about subject and aboutreading, we hold the hypothesis that these readers are“users” and not “consumers” due to the passivity and thealienation. While reading, they have an aestheticexperience: like in the film “The Purple Rose of Cairo”,there is a rupture in the daily events, a conjunction subject/ object and a momentary vision of the “perfection” thatpredispose them in a construction of utopias.

Key-words:reading, practical reading,

popular sentimental romances, utopia

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1. Introdução1.1. Ao leitor

“A leitura tem uma história. Não foi sempre e em toda parte amesma. (...) Os esquemas interpretativos pertencem, a configu-rações culturais, que têm variado enormemente através dostempos. Como nossos ancestrais viviam em mundos mentaisdiferentes, devem ter lido de forma diferente, e a história daleitura poderia ser tão complexa quanto a história dopenssamento.”1

“A uma produção racionalizada, expansionista além de cen-tralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra pro-dução qualificada de ‘‘consumo’’: esta é astuciosa, é disper-sa, mas ao mesmo tempo ela se insunia ubiquamente, silenci-osa e quase invisível, pois não se faz notar por produtospróprios mas nas maneiras de empregar os produtos impos-tos por uma ordem econômica dominante. (...) Essas práticascolocam em jogo uma ratio ‘‘popular’’, uma maneira de pen-sar investida numa maneira de agir, uma arte de combinarindissociável de uma maneira de utilizar.’’2

Para aqueles leitores que têm a leitura na contade uma atividade sagrada de poucos iniciados comas obras que a instituição literária elegeu como “clás-sicos”, “obras-primas’’, ou ‘‘bons livros’’ o título aci-

LEITORAS DE SABRINA:USUÁRIAS OU

CONSUMIDORAS?UMA PRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO

DA PRÁTICA LEITORA DAS LEITORASDE ROMANCES SENTIMENTAIS DE MASSA

ma não deixa de inquietar.3 Há aqueles que, antes dequalquer consideração, precipitam-se e revelam umenorme zelo de guardião: “mas isso não é literatu-ra!”. Há também os que são movidos por uma ojerizadeclarada pelos produtos dos meios de comunicaçãode massa, porque os concebem como eficientes fá-bricas de massas dominadas e homogêneas.4 E háaqueles outros que, embora gostem de novelas, fil-mes e romances sentimentais, mantêm o hábitoinconfesso e se portam como os leitores de umMaugham fora de moda, descritos por FredericoBranco: “Retiram furtivamente os volumes das pra-teleiras, quase como quem se arrisca a comprar co-caína de um fornecedor fortuito. Feita a aquisição,partem com seu Maugham cuidadosamente embru-lhado em papel opaco, sorrateiramente, olhando desoslaio, temendo serem pilhados em flagrante de con-cessão à vulgaridade por amigos ou inimigos”.5

Aos primeiros, adianto que não tenho a pretensãode desmerecer a Literatura ou pregar a morte delapara, em seu lugar, exaltar a literatura de massa.Tranqüilizem-se. Também sou dessas águas, ainda quesem a exigência de que sejam absolutas.6 Aos segun-dos, lembraria que “Sempre é bom recordar que não

1 Darton, Robert, História da Leitura: In: Burke, Peter (Org.), A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 218.2 Certeau, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 19943 Jean Hebrard diz que as políticas pedagógicas ‘‘conhecem apenas uma modalidade, universal, da leitura, aquela que, por sua transparên-cia, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole que imaginamos ser o leitor’’. Ver seu artigo ‘‘Autodidatismo Exemplar:Como Valentin Janery-Duval Aprendeu a Ler?’’ In: Chartier, Roger, Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 36.

4 Ver: Felinto, Marilene, Mulheres que Lêem Bobagem. In: Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 1995.5 Branco, Frederico, Por que reler Maugham. In O Estado de São Paulo, de 15 de maio de 1988.6 Lacoue-Labarthe, Philiphe et Nancy, Jean Luc (Orgs). L’Absolu Littéraire: Theorie de la Littérature du Romantisme Alemand. Paris, DuSeuil, 1978

J. Genésio Fernandes*

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se deve tomar os outros por idiotas”.7 E, aos terceiros,quero dizer que, embora não sendo um aficionado porromances sentimentais de massa, também experimen-tei uma certa vergonha ao perceber que escolhera comoobjeto de estudo uma prática leitora que valoriza umgênero tão negativamente marcado como “porcaria’’ou ‘‘bobagem’’8 por freqüentadores assíduos da Lite-ratura, numa ponta e, na outra, pelos que têm elevadograu de inapetência à leitura. Essa vergonha, proveni-ente das coerções do campo cultural9 em que milito,surpreendeu-me, colocou interrogações e foi o fatorque firmou a decisão pelo estudo do assunto. Entre-tanto o que há muito tempo me despertara para asoperações dos usuários dos produtos culturais foi umcaso pitoresco.

1.2. A obra de arte nopé de tomate

e o caso do teatro do absurdoEm 1987 mudei-me de Minas para o Acre. Lá dava

aula de Teoria da Literatura e de Literatura, pintavaminhas obras em duratex e, assim, continuava segurodos conceitos necessários para atuar na área, até quea estranha conjunção de uma obra de arte com um péde tomate perturbou-me o conforto intelectual.10

Dona Ana, a vizinha viu a pintura em duratex navaranda de minha casa, maravilhou-se com o que esta-va procurando, falou dos planos, para a sala, descreveulongamente a moldura que colocaria e as combinaçõesque faria com ela, levou o quadro, e o tempo passou.

Um belo dia, dona Vera apareceu lá em casa. Esta-va injuriada com dona Ana e fazia um pedido quasedesagravo: queria o tal quadro. “Que aquilo era umaofensa’’, e que eu fosse vê-lo, discretamente, na hortada vizinha. Tudo muito estranho, mas fui e vi. Lá esta-va minha obra de arte, molhada, suja de terra, servindode jirau para um belo pé de tomate.

Para atender dona Vera, salvar a obra e evitarencrenca, sugeri que propusesse uma troca bem argu-mentada à desalmada dona Ana: uma estaca boa pelopedaço de duratex. Que fosse ‘‘para tapar buraco dacasa dos cachorros”. Dito e feito. Dona Vera, vitorio-sa, levou a obra de arte para casa e a história teriaacabado por aí se, depois de algum tempo, não che-gasse a vez de dona Ana também ir ver-me injuriada.

Apareceu na varanda com ares de vítima. Foraenganada, estava ofendida, mas demorou mais na

descrição voluptuosa da moldura cor de ouro earabescada, caríssima, que a danada da Vera colo-cara, lá na cidade maravilhosa, no Rio de Janeiro.Desconsolada com a perda, pediu por favor outro qua-dro. Prometi, mas, desta vez, compreendendo que ha-via uma diferença entre o que eu lhe dava e o queela recebia e usava. O quadro como um mundo devalores expressivos, independente da moldura e dascombinações que pudesse estabelecer com os mó-veis da casa, contava pouco para dona Ana. Diantede um produto cultural dado como signo de distinçãoe de bom gosto estético, e não podendo tratar deleconvenientemente por desconhecer a linguagem queo campo das artes utiliza para fazê-lo circular comoum valor, ela parasitava-o com uma arte de usarmuito própria e sofisticada. O que contava para elaera uma arte de combinar indissociável de uma ma-neira de utilizar.

Em l978, chegou ao Acre o projeto de apresentaçãode uma peça de teatro do absurdo na cidade de SenaMadureira, por um grupo de missionários da cultura doRio de Janeiro.

Disse-lhes que a cidadezinha fora no passado, naépoca áurea da borracha, um palco de apresentaçãode comédias, que provavelmente teriam bom público eque repensassem a programação de peças quedestacavam mais as inovações formais. Dito isso, foramrisonhos e voltaram de olho arregalado.

A peça tinha sido um sucesso de público e umfracasso de gosto, quase dera em tragédia. As pessoaschegaram cedo, suportaram as movimentações e osdiálogos absurdos no palco e, depois da peça, ficaramesperando a Peça. Como os artistas estranhassem aexpectativa delas, trataram de corrigi-la: o espetáculoera aquilo mesmo e já acabara. Babau! Poderiam irembora. E foi então que apresentou-se o absurdo, agorapara os artistas: ofendidas, sairiam todas, mas queriamo dinheiro do ingresso, nem que fosse à força.Resultado: os artistas só puderam sair do camarim bemde madrugada.

A Dona Ana e as pessoas de Sena Madureiratinham uma prática leitora diversa da erudita, eprovavelmente, experimentassem o prazer estético nocontato com objetos artísticos que privilegiavam a formado conteúdo, uma arte mais mimética, como a pinturafigurativa ( quando muito até a pintura impressionista),a comédia e as narrativas tradicionais.

7 Certeau, Michel, op. Cit. P. 198 Nas entrevistas, as leitoras de Sabrina, Bianca, Júlia, etc., falam, explícita ou implicitamente, que há uma censura muito forte em relaçãoa sua prática leitora: ‘‘Isso aí é porcaria, dizem eles. Isso principalmente quem nem lê nada’’.

9 A expressão pertence a Pierre Bourdieu. Ver A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1987.10 Para não parecer ingênuo ou pretensioso, esclareço que não pretendo colocar meus trabalhos de pintura na categoria consagradora de

“obra de arte”. Nomeio-os assim, colocando-me no ponto de vista daqueles que os acolheram em museus e salões de arte - sem garantiaalguma de que estejam certos. Meu interesse aqui é outro.

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No campo dos estudos dos bens culturais que ohomem produz ao longo da história, tem sido comumos estudiosos, homens cultos de uma determinada so-ciedade, elegerem um posto de observação voltadopara o passado e, daí, munidos do protocolo verbalpróprio do campo cultural em que militam, passarema estabelecer conceitos e teorias com pretensões deuniversalidade e, com eles, os divisores de água en-tre o que é e o que não é cultura erudita, cultura demassa, cultura popular, arte, arte primitiva, Literatu-ra, para-literatura, contra-literatura, literatura femi-nina. Por meio da teoria (theorein, fazer crer) e deuma amnésia do processo de constituição dessas ca-tegorias estabelecem a diferença e promulgam o sa-grado.11 Não quero dizer que os estudiosos possamprescindir do estabelecimento de categorias e con-ceitos para pensar, mas tem sido comum ver explícitaou implicitamente no trabalho de reflexão que fazemsobre os produtos culturais, sobre a Literatura, porexemplo, uma dificuldade em tomar a própria refle-xão e o objeto a que ela se aplica como um produtohistoricamente marcado. Não lhes ocorre com fre-qüência desviar o olhar do objeto e dos valores quelhe atribuem para um outro objeto, o uso que o sujei-to faz desse objeto dentro de determinadas condiçõessociais e históricas, no interior de determinadas prá-ticas leitoras.

A leitura é uma prática milenar e diversificada deatualização desse objeto virtual que é o livro12. O sen-tido é produzido, atualizado ou atribuído ao texto den-tro de determinada prática leitora, de determinadascondições de produção. Aqui, para tratar da leitura,mais especificamente, da leitura dos romances senti-mentais de massa, como uma atividade de algum modoprodutiva e não passiva, atividade de consumidores (do-minados) como querem crer os seguidores dos postu-lados marxistas e frankfurtianos, é preciso romper coma concepção de sujeito universal e abstrato, de sujeitoassujeitado13, com a concepção de linguagem comosistema de signos e meio de comunicação e, conse-qüentemente, com a concepção de leitura como meradecodificação14.

2. Alguns PressupostosTeóricos

Para explicitar a concepção de linguagem com queconcordamos, temos, necessariamente, de começar porfazer referência ao Curso de Lingüística Geral.Saussure, embora tenha se ocupado da língua comoum sistema de signos, não deixa de fazer distinção entrelinguagem e língua. Diz ele:

‘‘Tomada como um todo, a linguagem é multiformee heteróclita; participando de diversos domínios, tan-to do físico, quanto do fisiológico e do psíquico, elapertence ainda ao domínio do individual e ao domí-nio do social; ela não se deixa classificar em ne-nhuma categoria dos fatos humanos, porque não sesabe como isolar sua unidade. A língua, ao contrá-rio, é um todo em si mesma e um princípio de clas-sificação. A partir do momento em que atribuímoso maior destaque entre os fatos da linguagem, in-troduzimos uma ordem natural num conjunto quenão se presta a nenhuma outra clasificação.’’15

Essa é a distinção que faz, tomando a totalidadedos fenômenos das manifestações lingüísticas. A par-tir dela, estabelece a dicotomia língua/fala, separan-do o que é social do que é individual. Enquanto a línguaé, para ele, um produto que o indivíduo registra passi-vamente; a fala é um ato de vontade absolutamenteindividual. Com essa concepção abstrata e ideal delíngua, com esse recorte por demais redutor, Sausurreconseguiu dar impulso aos estudos da língua e conferirestatuto de ciência à Lingüística. Muito, porém, do queé a língua viva ficou de fora.

Não é essa, entretanto, a concepção que postula-mos aqui. Ela nos levaria conseqüentemente, à con-cepção de leitura como decodificação16, e ao princí-pio de legibilidade17 que, uma vez resguardado naprodução, asseguraria recepção ótima daquilo que oemissor pensa que seu texto quer dizer e vai dizer. Poroutras palavras, e utilizando os termos de Eco, a cons-tituição do autor-modelo, por meio de estratégias ade-quadas estabelecidas, pela habilidade de previsão doautor-empírico, instaurar-se-ia, no mesmo lance, umLeitor-Modelo e, assim, assegurar-se-ia um princípio

11 Ver Bourdieu, Pierre, O Poder Simbólico, p. 293.12 ‘‘Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objueto virtual, abstrato, independente de um suporte específico. Essa entidade

virtual atualiza-se em múltiplas versões, traduções, edições, exemplares e cópias. Ao interpretar, ao dar sentido ao texto aqui e agora,o leitor leva adiante essa cascata de atualizações’’: Lévi, Pierre, O Que é Virtual. São Paulo, Editora 34, 1996, p. 35.

13 Ver referência a Althusseur, Luis, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado in Brandão, Helena H. Nagamine, Introdução à Análisedo Discurso. Campinas, Editora da Unicamp, 1993, p. 23.

14 Kleiman, Angela, Texto e Leitor. Campinas, Pontes, 1984. Para a autora, não se pode conceber a leitura como decodificação, mas comoatribuição de sentido ao texto.

15 Saussure, Ferdinand, Curso de Linguística Geral. São Paulo, Cultrix, s. d., apud Brandão, Helena H. Nagamine, op. cit. supra.16 Codificar tem o sentido de colocar um conteúdo no código e decodificar, o sentido de retirá-lo do código, de traduzi-lo - e a atividade

de leitura não se resume a isso. Ver Kleiman, Angela, op. Cit Supra.17 Orlandi questiona esse conceito: ‘‘Percebi que a legibilidade do texto tinha pouco de ‘‘objetivo’’ e não era apenas uma consequência

direta, unilateral e automática da escrita. Não me parecia verdadeira a afirmação: ‘‘um texto bem escrito é legível’’. Eu me perguntava:bem escrito para quem? Legível para quem?’’ Orlandi, Eni Pulcinelli, Discurso & Leitura, Unicamp, cortez, 1988, p. 8

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 60-73, jul./dez., 1997.

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de legibilidade e, conseqüentemente, a decodificação dotexto por parte do leitor-empírico18. Esse modo de pen-sar a linguagem e a leitura nos levaria a concordar com aopinião corrente de que os leitores da literatura de massarecebem exatamente aquilo que o texto (com estruturasimples e vocabulário fácil) quer dizer.19 Parece que sãoessas as concepções que estão no fundo de grande partedos estudos da literatura de massa, orientados pelo pen-samento da Escola de Frankfurt, e que tomam os leitorescomo consumidores, vítimas da competência técnicahomogeneizante da indústria cultural. Ecléa Bosi, porexemplo, diz que na literatura açucarada ‘‘reduz-se o lei-tor ao nível da aceitação passiva’’.20 Discordamos des-sas concepções, pois se a ‘‘língua pode ajudar a moldar aidentidade coletiva”, também “pode atuar como parteirada identidade individual, a viga mestra da biografia.”21

Preferimos as contribuições de Bakhtin e da Análise doDiscurso que nos permitem uma concepção diversa delinguagem, de sujeito e de leitura.

Bakhtin, por um lado, concorda com Saussure quantoao princípio de que a língua é um fato social; mas, poroutro, discorda dele, ao conceber a língua como umfenômeno concreto, produto da interação social22.Nessa concepção de língua como fenômeno vivo deinteração entre indivíduos sociais, o signo ganha es-pessura: não se trata mais de um ‘‘sinal’’ inerte epreexistente ao ato de fala, mas de signo dialético, vivo,arena de luta dos valores sociais. Para ele, a palavra,signo ideológico, dirigindo-se a um interlocutor, “é fun-ção da pessoa desse interlocutor’’23 e de sua atividadesocial. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, diz:‘‘Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Elaé determinada tanto pelo fato de que procede de al-guém, como pelo fato de que se dirige a alguém. Elaconstitui justamente o produto da interação do locutor

e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a umem relação ao outro. Através da palavra, defino-meem relação ao outro, isto é, em última análise, em rela-ção à coletividade.’’24 Para Bakhtin, a linguagem é,portanto, um processo que instaura, ao mesmo tempo,o ato individual da fala, o sujeito (indivíduo e ser soci-al), e a própria linguagem.

Em sua Estética da Criação Verbal, Bakhtin diz que,no começo da constituição da subjetividade, tudo quediz respeito a mim, e que vai fluindo para minha cons-ciência, a começar pelo meu nome, me vem do mundoexterior, através da palavra alheia, no caso, a voz demeus familiares, com todo o colorido de emoções evalores.25 Mesmo os objetos do mundo, diferentemen-te do que parece querer Paulo Freire em seu texto AImportância do Ato de Ler, me vêm revestidos designos e da memória social deles. Em outras palavras,as primeiras referências que formo de mim mesmome vêm através dos outros: “a consciência do homemdesperta envolvida na consciência alheia’’26.

Essas, palavras alheias, por sua vez, passam porum processo de reelaboração do qual resultam as pala-vras próprias alheias e, depois, as palavras própri-as, com o esquecimento de suas origens. É com essaspalavras próprias, marcadas já por um caráter criativo,que formo as contrapalavras com as quais entro emdiálogo ou em combate dialógico e ideológico com apalavra do outro, agindo sobre ela, sobre a cultura.27

Por isso, não há como concordar com a noção desujeito assujeitado28 produto do meio e das condi-ções históricas; e nem com a noção de um sujeitocomo origem e fonte de seu dizer. Com a contribuiçãode Bakhtin e as reflexões de João Wanderley Geraldi,entendemos que o sujeito é sempre incompletudefundante29 que, pelo desejo de completude, mobiliza o

18 Utilizamos aqui os termos da Eco, mas seria injusto dar a entender que ele concebe a instauração adequada do ‘‘autor-modelo’’ comosuficiente para assegurar leituras corretas. O que se pode dizer é que em ‘‘Lector in Fabula’’ ele dá maior destaque ou parece crer, ainda,que o ‘‘autor-modelo’’, como conjunto de estratégias de previsão de um ‘‘leitor-modelo’’, seria uma construção totalmente consciente- o que, sabemos hoje, não é bem assim. Essa afirmação pode ser comprovada com as reações do Eco romancista às cartas e opiniões dosleitores sobre seus romances: de início, ele se confessa até zangado com as atribuições de alguns sentidos, para ele improcedentes, ao seutexto; mas posteriormente admite e confessa que alguns leitores tinham razão.

19 Lotman afirma que ‘‘É falso que os pensamentos se repetem. Cada pensamento é novo, porque a novidade rodeia-o e lhe dá forma.’’:Lotman, Iuri, A Estrutura do Texto Artístico, Lisboa, Estampa, 1978, p. 38.

20 Bosi, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 165.21 Burke, Peter et Porter, Roy (Orgs.), linguagem, indivíduo e Sociedade. Unesp, p. 222 Bakhtin, Mikhail (V. N. Volochínov), Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992. Ver principalmente capítulo 4:

‘‘Duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico’’.23 Bakhtin, op. cit. supra P. 11224 Bakhtin, op. cit. supra p. 11325 Bakhtin, Mikhail, A Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.26 Bakhtin apud Claudia T. G. de Lemos. In Barros, Diana Luz Pessoa de et Fiorin, José Luiz, Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade.

São Paulo, Edusp, 1975, p. 39.27 Ver Claudia T. Lemos. In: op. Cit Supra.28 Ver referência a esse termo em nota acima.29 Todorov, Tzvetan, A Vida Em Comum: Ensaios de Antropologia Social. São Paulo, Papirus, 1996. p. 22: ‘‘Os animais e os deuses são

auto-suficientes, pode-se portanto, representá-los a sós; o homem, por sua vez, é irremediavelmente incompleto, tem necessidade dosoutros.’’; ‘‘A vida em sociedade não provém de uma escolha: somos sempre sociais. Como já observaram, quase na mesma época, orussoBakhtin e o americano H. G. Mead, jamais podemos nos ver fisicamente por inteiro; é a prova gritante de nossa incompletudeconstitutiva, da necessidade que temos dos outros para estabelecer nossa consciência do eu, portanto, também para existir.

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outro, miragem de completude, para se fazer inteiro,configurando, assim, um espaço discursivo onde iden-tidade e alteridade se apresentam sempre em rela-ção dinâmica30. Nesse espaço discursivo de consti-tuição da subjetividade, agem a força do sujeito en-quanto produto de condições mas, também e sobre-maneira, um indivíduo criativo, que articula, sem-pre, e de maneira diferente, a herança cultural, pro-duzindo nesse presente a diferença, a história de ama-nhã.31

Dessas concepções de línguagem e de sujeito de-riva a concepção de leitura que postulamos: a leitu-ra como um combate dialógico e ideológico de mi-nhas palavras, as que internalizei no processo histó-rico de minha constituição, com a palavra alheia, paraa produção de sentidos novos, de diferenças, de iden-tidade.32

Os estudos de Maingueneau sobre a passagem doHumanismo Devoto ao Jansenismo33 nos ajudam acompreender que, a despeito de todas as coerções docódigo língüístico e do código dos gêneros, o que reali-zamos no processo de leitura é uma tradução dos enun-ciados do outro em nossas próprias categorias - e coma agravante de que não se trata dos enunciados dooutro como tais, mas dos simulacros que deles cons-truímos.

Si sur le plan de langue chacun des protagonistesdiscursifs peut croire q’uil “comprend’’ les énoncéde l’autre, i1 ne vá pas de même sur le plan dudiscours, où s’exercent des contraintes historiquesirrédutibles. Chacun ne fait que traduire les énoncésde l’autre dans ses propres catérgories, les motscirculent bien d’une pôle de l’échance a l’autre, maisavec les ‘‘mêmes’’ mots ils ne parlent assurementpas de la même chose.34

Maingueneau postula assim uma interin-compreensão fundante e recíproca entre os inter-locutores; uma interincompreensão irremediável porqualquer dicionário ou higiene lingüística que se con-voque, porque constitutiva da atividade da linguagem,da identidade do sujeito em relação ao Outro.” É por

isso que Maingueneau estabelece o primado dointerdiscurso sobre o discurso, ou seja, a unidade deanálise é, para ele, o interdiscurso como um espaço derelação entre vários discursos.

O interdiscurso consiste em um processo dereconfiguração incessante no qual uma formaçãodiscursiva é conduzida (...) a incorporar elementospré-construídos produzidos no exterior dela própria;a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitarigualmente a lembrança de seus próprios elemen-tos, a organizar sua repetição, mas também a pro-vocar eventualmente seu apagamento, o esqueci-mento ou mesmo a denegação35

Nessa perspectiva, os sentidos não estão para sem-pre dados, trafegando incorruptíveis de um pólo ao outroda comunicação e com o poder de se imprimir na ceramole dos leitores, mas em constituição. Segundo JeanHebrard, ‘‘as políticas de alfabetização, quaisquer quesejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável:elas conhecem apenas uma modalidade, universal, uni-versal, de leitura, aquela que, por sua transparência,permite ao livro, pura mensagem, transformar a ceramole que imaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensi-nar a ler a um grupo social até então analfabeto, éapresentá-lo ao poder, com direito infinito, do livro.’’36

Isso nos leva a considerar as leitoras de Sabrina, Bianca,Julia não como consumidoras, no sentido de domina-das por uma mensagem ideológica, mas como usuáriascom muito maior grau de consciência do que fazem ecom muito maior julgamento crítico sobre o objeto queusam do que comumente, ou preconceituosamente, sesupõe. Talvez para ela a leitura não seja apenas umaoperação intelectual, mas uma operação de caça se-melhante àquela da personagem de Eugênio Onieguin,de Pushkin, quando, visitando a biblioteca do homemque ama: olha na lombada os títulos das obras, folheiaos livros retendo-se aqui e ali - não para perceber aqualidade literária dos volumes, mas para negacear umcódigo de acesso ao mundo do amado. A todo mo-mento, os usuários dos códigos estão a transformá-losem metáforas e elipses de suas caçadas, mesmo que

30 Geraldi, Wanderley, conferência proferida no 10º Cole, Campinas, 1995.31 Geraldi, conferência citada acima.32 Idem.33 Maingueneau, Dominique, Sémantique de la Polémique. Lausanne, Suisse, 1983.34 Maingueneau, op. Cit. 25: ‘‘Se no plano da língua cada um dos protagonistas do discurso podem acreditar que ‘‘compreendem’’ os

enunciados do outro, não ocorre o mesmo no plano do discurso onde ocorrem constrangimentos históricos irredutíveis. Cada um traduzos enunciados do outro em suas próprias categorias; as palavras circulam de um pólo ao outro da interação, mas eles, com as ‘‘mesmas’’palavras, não falam da mesma coisa.

35 Courtine et Morandin, 1981, apud Brandão, Helena H. Nagamine, op. cit. supra.36 ‘‘Mas as políticas de alfabetização, quaisquer que sejam, guardam um otimismo pedagógico inabalável: elas conhecem apenas uma

modalidade universal, de leitura, aquela que, por sua transparência, permite ao livro, pura mensagem, transformar a cera mole queimaginamos ser o leitor. Nesse sentido, ensinar a ler a um grupo social até então analfabeto, é apresentá-lo ao poder, com direito infinito,do livro.’’: Hébrard, Jean, ‘‘O Autodidatismo Exemplar: Como Valentin Jamerey-Durval Aprendeu, a Ler?’’ in Bourdieu, Pierre,Bresson, François et Chartier, Roger (Orgs), Práticas da Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p. 36.

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não autorizadas pelas práticas dominantes.37 Por astú-cias que remontam às profundezas das eras, aomimetismo desenvolvido por certos peixes disfarça-dos e insetos camuflados, assim também procederamos índios da América submetidos à religião dos vence-dores; os seguidores do Candomblé da Bahia dianteda igreja católica; as mulheres em relação aos códigosmasculinos de contenção e de heroísmo; os leitoresem relação à escrita que se impôs como umaracionalidade estável pelo banimento do corpo.38

A leitura é, por isso, uma atividade tática e nãoestratégica. Denomina-se estratégia ‘‘o cálculo dasrelações de força que se torna possível a partir domomento em que um sujeito de querer e poder éisolável de um ‘ambiente’. Ela postula um lugar ca-paz de ser circunscrito como um próprio e, portanto,capaz de servir de base a uma gestão de suas rela-ções com uma exterioridade distinta.’’39 Quanto àtática, ao contrário, ela refere-se a “um cálculo quenão pode contar com um próprio, nem, portanto, comuma fronteira que distingue o outro como totalidadevisível. A tática só tem por lugar o outro.”40 Omigrante, por exemplo, não tem um lugar ‘próprio’,uma base onde capitalizar seu ganhos, instaurar suaindependência, projetar sua expansão. Ele está den-tro do lugar do outro, de sua língua, de sua cultura, deseus domínios. Assim, por esse fato, a tática depen-de do tempo. O migrante vigia no tempo para tirarproveitos, fazer jogadas oportunas, combinando ele-mentos heterogêneos, sem contudo capitalizar seusproveitos, isto é, sem dominar o tempo. A estratégia,

ao contrário, postulando um lugar, um próprio, “é umavitória do lugar sobre o tempo’’.

Para diferenciar os tipos de táticas, podem-se en-contrar modelos na retórica. Nada de surpreenden-te, pois, de um lado, ela descreve os “rodeios” deque uma língua pode ser simultaneamente o lugar e oobjeto e, de outro, essas manipulações são relativasàs ocasiões e às maneiras de mudar (seduzir, persu-adir, utilizar) o querer do outro (o destinatário). Poressas duas razões, a retórica, ou ciências das “ma-neiras de falar’’ oferece um aparelho de figuras típi-cas para a análise das maneiras cotidianas de fazerao passo que ela, em princípio se acha excluída dodiscurso científico. Duas lógicas da ação (uma táticae outra estratégica) se depreendem dessas duas ma-neiras de praticar a linguagem. No espaço da língua(como no dos jogos) uma sociedade explícita mais asregras formais do agir e os funcionamentos que asdiferenciam. (...) os sofistas ocupam um lugar privi-legiado, do ponto de vista das táticas. Tinham elescomo princípio segundo Corax, tornar “mais forte” aposição “mais fraca’’ e pretendiam possuir a arte devencer o poder por uma certa maneira de aproveitara ocasião. As suas teorias inscrevem aliás as táticasem uma longa tradição de reflexões sobre as rela-ções que a razão mentém com a ação e com o ins-tante. Passando pela Arte da Guerra de Shu Tzu naChina ou pela antologia árabe do Livro das Astúci-as, esta tradição de uma lógica articulada em cimada conjuntura e a vontade do outro, conduz até asociolingüística contemporânea.41

37 Jean Hébrad diz que ‘‘O trabalho de leitura é, em grande parte, um processo de produção de sentido no qual o texto participa mais comoum conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos em consideração) do que como estrita mensagem. A partir de então,pensamos poder mostrar que as inferências inerentes ao ato léxico apóiam-se mais sobre a capitalização cultural específica de cada leitorde que sobre a aprendizagem escolar de uma técnica de decifração.’’ Ver Bourdieu, Pierre, op. cit. p. 37.

38 Certeau, Michel, op. cit. p. 19 e 38. Ver também: Vattimo, Gianni, The Problem os Subjectivity From Nietsche to Heidegger. In:Garravetta, Peter (editor), Differentia: Review of Italian Thought, number 1. Itália, Differentia Ltd, 1986, p. 10: ‘‘...in the struggle forsurvival, mimicry, camouflage [mimetismo] is a crucial instrument.’’ Ver, ainda, Certeau, op. cit. p. 229: A virada da modernidade secaracteriza em primeiro lugar, no século XVII, pela desvalorização do enunciado e pela concentração sobre o ato de enunciar, aenunciação. Quando se tinha certeza quanto ao interlocutor (‘‘Deus falava no mundo’’), a atenção se voltava para o ato de decodificaros seus enunciados, os ‘‘mistérios’’ do mundo. Mas quando essa certeza fica perturbada com as instituições política e religiosas que lhederam garantia, pergunta-se pela possibilidade de achar substitutos para o único locutor: quem falará? E a quem? Com o desaparecimen-to do primeiro locutor surge o problema da comunicação, ou seja, de uma linguagem que se deve fazer e não mais somente ouvir. Nooceano da linguagem progressivamente disseminado, mundo sem margens e sem âncoras é duvidoso, e logo improvável que um únicosujeito se aproprie dele para fazê-lo falar), cada discurso particular atesta a ausência que, no passado, era atribuído ao indivíduo pelaorganização de um cosmos e, portanto, a necessidade de cortar para si um lugar por uma maneira própria de tratar um departamento dalíngua. Noutros termos, pelo fato de perder seu lugar, o indivíduo nasce como sujeito. O lugar que lhe era outrora fixado por uma línguacosmológica, ouvida como ‘‘vocação’’ e colocação numa ordem do mundo, torna-se agora um ‘‘nada’’, uma espécie de vácuo que obrigao sujeito a apoderar-se de um espaço, colocar-se si mesmo como um produtor de escritura. Devido a esse isolamento do sujeito, alinguagem se objetiva, tornando-se um campo que se deve lavrar e não mais decifrar, uma natureza desordenada que se há de cultivar. Aideologia dominante se muda em técnica, tendo por programa essencial a construção de uma linguagem e não mais a sua leitura. A próprialinguagem deve ser agora fabricada, ‘‘escrita’’. Construir uma ciência e construir uma língua é, para Condillac, o mesmo trabalho, bemcomo estabelecer a revolução e, para os homens de 1790, forjar e impor um francês nacional, isso implica um afastamento do corpovivido (tradicional e individual) e, portanto, também de tudo aquilo que, no povo, continua ligado à terra, ao lugar, à oralidade ou àstarefas não-verbais. O domínio da linguagem garante e isola um novo poder, ‘‘burguês’’, o poder de fazer a história fabricando linguagens.Este poder essencialmente escriturístico, não contesta apenas o privilégio do ‘‘nascimento’’, ou seja, da nobreza: ele define o código dapromoção socio-econômica e domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que não possuem esse domínio dalinguagem. A escritura se torna um princípio da hierarquização social que privilegia, ontem o burguês, hoje o tecnocrata.’’

39 Certeau, Michel, op. cit. p. 4640 Certeau, Michel, op. cit. p. 46 e 4741 Certeau, Michel, op. cit. p. 47 e 48

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Como dissemos, a atividade leitora, diferentementeda atividade escrita, é de ordem tática, pois o fluir dosolhos sobre a página não domina o tempo, não capita-liza. Os leitores viajam, caçam nas terras alheias, re-galam-se com os bens que colhem, mas não estocam,não acumulam; a escrita ao contrário, acumula, estocae bate-se contra o tempo pela fundação de um lugar.A atividade leitora das leitoras de Sabrina, acredita-mos, contrariamente aos que a têm como lugar de do-minação, de inércia e submissão, constitui-se como umaprodução silenciosa:

(...) flutuação através da página, metamorfose do olhopelo texto que viaja, improvisação e expectação designificados introduzidos de certas palavras,intersecções de espaços escritos, dança efêmera. Masincapaz de fazer um estoque (salvo se escreve ou‘‘registra’’), o leitor não se garante contra o gasto dotempo (ele se esquece lendo e esquece o que já leu) anão ser pela compra do objeto (livro, imagens) que éapenas o ersatz (o resíduo ou promessa) de instantes‘‘perdidos’’ na leitura. Ele insinua as astúcias do pra-zer e da reapropriação do texto do outro: aí vai caçar,ali é transportado, ali se faz plural como os ruídos docorpo. Astúcia, metáfora, combinatória, esta produ-ção é igualmente uma ‘‘produção’’ de memória. Fazdas palavras as soluções de histórias mudas. O legívelse transforma em memorável: Barthes lê Proust nostextos de Stendhal; o espectador lê a paisagem de suainfância na reportagem de atualidades. A fina películado escrito se torna um remover de camadas, um jogode espaços. Um mundo diferente (o do leitor) se intro-duz no lugar do autor.Esta mutação torna o texto habitável, à maneira deum apartamento alugado. Ela transforma a propri-edade do outro em lugar tomado de empréstimo,por alguns instantes, por um passante. Os locatári-os efetuam uma mudança semelhante no aparta-mento que mobiliam com seus gestos e recorda-ções; os locutores, na língua materna (...).’’42

Mesmo assim, e diante de novas Concepção de lin-guagem e de leitura, há quem negue poder existir pro-dução de sentido na relação de determinados leitorescom a literatura de massa, Sabrina, Bianca, Júlia, porexemplo. Para esses, o contato com essa literatura,

que faz ou pode fazer mal, não possibilita experiênciaestética de nenhum grau. Já se chegou a argumentarque, para constatar se essa leitura (de “bobagens”)leva ou não o seu leitor à produção de sentido, a umaressemantização da vida, bastaria observar quem vo-tou no Collor, o que, a nosso ver, é afirmação demaispara verificação de menos. Muitos ainda acreditam nafixação dos consumidores na posição de receptáculose na circulação dos meios. Para esses, só restaria àsmassas “a liberdade de pastar a ração de simulacrosque o sistema distribui a cada um’’.43

Alguns escritores da literatura erudita parecem pen-sar o mesmo. Marilene Felinto, em artigo intitulado “Mu-lheres que lêem bobagem”,44 na Folha de São Paulo de29 de janeiro de 95, diante da constatação da pesquisa doDatafolha de que as mulheres determinaram, com 55%das compras, os cinco primeiros colocados da lista doslivros mais vendidos em janeiro de 95, compara a suahistória de leitura com a de sua irmã , leitora de “boba-gens’’, e conclui que a leitura da literatura “açucarada’’ éprejudicial: ela tornou-se ‘‘escritora’’ e, sua irmã, uma‘‘leitora insone’’ que rejeita a literatura erudita. O queorienta a autora do artigo é a suposição de que assimilar étornar-se semelhante àquilo que se absorve, e não torná-lo semelhante àquilo que se é, por mil maneiras dereapropriação e uso.45 Para ela, “as mulheres não sãomais burras que os homens por ler Sheldon; são apenamais ridículas’’. Chega a essa conclusão a despeito doconhecimento textual, pragmático e referencial reve-lado pelas leitoras de ‘‘bobagens’’, suas interlocutoras, nojulgamento dos textos e da leitura que fazem deles. En-quanto a autora do artigo está preocupada com o valor daLiteratura erudita e com os malefícios da literatura demassa, as leitoras estão interessadas no uso que podemfazer daquilo que lhes dá a indústria dos meios de comu-nicação de massa. Mais ainda: elas explicam o que, ocomo, e o porquê de suas leituras.

Portanto, as mulheres dessa “procissão silenciosaassaltando livrarias’’ não parecem tão hipnotizadascomo quer a articulista da Folha, mas empenhadas emoperações de “caças não autorizadas”. O momentoda leitura desses romances representa para elas umafratura nos acontecimentos cotidianos e a possibilida-de de uma conjunção sujeito/objeto em um outro tem-po e lugar, ainda que fugaz, da “perfeição”.46 Falando

42 Certeau, Michel, op. cit. p. 4943 Certeau, Michel, op. cit. p. 26044 Felinto, Marilene, Mulheres que Lêem Bobagem, in Folha de São Paulo. São Paulo, 29 de janeiro de 1995.45 Certeau, Michel, op. cit. p. 26146 Greimas. Algirdas-Julien. De La Imperfección, presentatión, traducción y notas de Raúl Dorra. México, Fondo de Cultura Económica,

Universidad Autónoma de Puebla, 1990. No capítulo V dessa obra, Greimas, tomando um conto de Júlio Cortazar para refletir sobre aexperiência estética da leitura da obra literária, quando o leitor ‘‘morre’’ para o mundo imperfeito e duradouro da vida cotidiana para vivera perfeição efêmera do mundo novelesco, diz o seguinte: ‘‘Se trata, poes, del vertimiento progressivo del sujeto de estado que entra encontato de manera sucesiva com los distintos estratos del objeto literário: primero su organización temática (‘‘la trama’’, ‘‘el dibujo de lospersonajes’’, ‘‘los nombres’’, ‘‘las imagenes de los protagonistas’’) expressadas com los términos de la crítica literária clássica, y en seguida sumanifestación figurativa (‘‘imágenes que se concertaban y adquiríam color e movimiento’’) que amarra um nuevo modo de aprehensión.’’ p. 62.

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do momento de suas leituras, uma das leitoras deSabrina, nossa entrevistada, diz, que se ‘‘encaixa’’ napersonagem e é ‘‘encaixada’’ por ela, desenhando, poressa construção simpática, o movimento do sujeito parao objeto e deste para o primeiro, para a fusão plena eperfeita no mundo ficcional.

( ... ) eu viajo na leitura, eu me sinto como persona-gem, eu me sinto como personagem. ( ... ) Entãoeu procuro assim, é... eu me, eu me enqua... eu meencaixo perfeitamente, eu me sinto encaixada per-feitamente na... na personagem, ( ... ) nos livrosespíritas também eu me sinto assim como se fossea personagem, eu me sinto como se eu tivesse vi-vendo aquela história. E eu adoro ler, eu adoro ler, éuma coisa assim que eu esqueço do mundo, esque-ço da realidade, eu viajo. Na minha imaginação euviajo na... nas leituras.47

Algumas das entrevistadas, mais envergonhadas desua prática leitora, dizem o mesmo pelos implícitos deuma fala defensiva. Essa confirmação torna-se maisrelevante ainda se considerarmos que esta referênciaà maneira de ler foi parasitada em um turno de fala emque o assunto era bem outro.

( ... ) ela passa a se fundir naquele personagem. E eu,realmente, assim, não tenho uma idéia porque eu não...eu não... eu não me fundo em nenhuma personagem.Eu gosto de ler, assim, eu acho divertido. Se ela édivertida, eu acho divertido, mas não que eu passe poraquela pessoa. É uma coisa que eu não sei. Não entrodentro do personagem pra saber. Já essas pessoasque gostam, que são apaixonadas por eles, assim peloromance em si, ela entra no personagem. E eu nãoentro, não, não sei.48

Essa experiência estética vivida na fruição, se nãoatravés da forma da expressão - que demandariaeducação esmerada na prática leitora erudita -, pelomenos através da forma do conteúdo, desempenhaum papel importate na construção das utopias desseleitorado, mesmo que a modernidade tenha prometi-do um futuro sem futuro.49 Esses momentoscatárticos, longe de meramente alienantes, provocamuma ressemantização da vida dessas leitoras, seme-lhante ao que ocorre com a personagem Cecília no

filme A Rosa Púrpura do Cairo. Diante de uma vidamiserável, oprimida pelo marido e pelo patrão, redu-zida a objeto de uso, ela busca a sala do cinema, ondemorre para a realidade dada como real e passa a vi-ver outra realidade luminosa, a da ficção dos filmesromânticos e de aventuras. É através dessa fraturada vida imperfeita do cotidiano e da vivência de mo-mentos de perfeição que ela, de assujeitada, passa asujeito, com vontade e coragem para agir. Dentro doenunciado do filme, identificada com o herói TomBaxter, que é “honesto, corajoso, romântico e beijabem”, ela enfrenta pela primeira vez o marido opres-sor. Você “foi corajosa também, você o enfrentou”,diz a personagem e Cecília, pessoa, responde: “Vocême inspirou”. O depoimento de uma das leitoras en-trevistadas por nós confirmam a fala das persona-gens do filme dentro do filme: “você se sente total-mente transforma’’.50

3. Leitoras nada passivas3. 1. Limites deste trabalho

Uma vez esboçados os postulados com que pre-tendemos compreender a prática leitora desses ro-mances sentimentais, passamos a apresentar algunsresultados de uma primeira leitura do material queconstitui nosso corpus: entrevistas, cartas e as narra-tivas da série Sabrina. São resultados, repetimos, deuma primeira leitura do material, mas suficientes parasustentar a tese de que não se trata de leitoras reco-lhidas numa atividade passiva e, assim, cada dia maisdominadas.

3.2. Sabrina, Bianca, Júlia:‘‘mauvais livres’’, ‘‘mauvais genres’’

Sabrina, Júlia e Bianca, são denominações de trêsséries de publicações de romances de amor - na cate-goria livro e não revista - em formato de bolso, barato edentro tradição do romance sentimental que vem desdeas trobairittz, mulheres trovadoras da Idade Média.

Cada série obedece certos padrões de gênero re-comendados pela empresa e que as torna diferentesumas das outras. As séries Sabrina, Júlia, Bianca, Ten-tação, Clássicos Românticos, Clássicos Históricos e

476 Entrevista com leitoras de Sabrina, Bianca, Júlia: entrevista 5, p.1.48 Entrevista com as leitoras: entrevista 14, p. 1449 ‘‘ ‘O futuro já é o que era’, diz um graffitto numa rua de Buenos Aires. O futuro prometido pela modernidade não tem, de fato, futuro.

(...) ‘‘Perante isto, como proceder? Penso que só há uma solução: a utopia. A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontadeshumanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que ahumanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar. A utopia é, assim, duplamente relativa. Por um lado, é uma chamada deatenção para o que não existe como (contra)parte integrante, mas silenciada, do que existe. Pertence à época pelo modo como se apartadela. Por outro lado, a utopia é sempre desigualmente utópica, na medida em que a imaginação do novo é composta em parte por novascombinações e novas escalas do que existe. Uma compreensão profunda da realidade é assim essencial ao exercício da utopia, condiçãopara que a radicalidade da imaginação não colida com seu realismo.’’ Santos, Boa Ventura de Souza. Pelas Mãos de Alice. São Paulo,Cortez, 1995, p. 232, 233.

50 Entrevistas com leitoras de Sabrina, Bianca e Júlia: entrevista 11, p.7.

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outras são publicadas no Brasil pela Abril Cultural que,mediante contrato com a Harlequin, uma empresa ca-nadense, tem direitos exclusivos de publicação e dis-tribuição para todo o território nacional.

A Harlequin foi fundada em 1949, em Wennipeg,uma pequena cidade do Canadá e, desde então, nãoparou de crescer. Os romances que edita e distribuisão publicados em noventa países de culturas diferen-tes.51 Há mulheres lendo os romances da Harlequinna Arábia Saudita, na África, na Austrália, na Améri-ca do Norte, na Europa do Leste, na América Latina eem muitos outros países. Cada sucursal se encarregade traduzir as histórias para a língua local, conservan-do sempre as características e os nomes anglo-saxãosdos personagens.

Na França, por exemplo, há três milhões de leitorasdos romances da Harlequin. Quarenta e nove títulosnovos são mensalmente lançados no mercado, soman-do um total de quinze milhões de exemplares ano.52

No Brasil, a Abril Cultural está sozinha no mercadodesse tipo de livro, publicando trinta dos sessenta esete originais que recebe mensalmente da empresa ca-nadense. A Abril Cultural traduz, publica e distribuipara todo o país. Até mesmo os cromos das capas,antes fotografias, hoje fotografias pintadas em estiloimpressionista já vêm prontos da Harlequin.

A Abril Cultural começou a publicar a série Sabrina,semanalmente, em 1979 e, segundo a editora, no espa-ço vazio deixado pela foto-novela, que perdeu terrenopara a televisão. Desde o lançamento, foi um sucessoentre as leitoras de todo o Brasil, chegando a vender ototal de um milhão de exemplares em 1983.53 Sabrina,inicialmente, era uma publicação da Mills & Boon, umaempresa inglesa. A Harlequin comprou depois a Mills& Boon e continuou a publicar a série. Quando a AbrilCultural começou a publicar a série Sabrina, a Mills &Boon já era da Herlequin.

Escrita por mulheres, lida por mulheres e caracteri-zada como sentimental, essa literatura recebeu e re-cebe qualificativos com evidentes conotações negati-vas: popular, de massa, feminina sentimental. Ao con-trário de outros gêneros considerados mais nobres,esses “mauvais genres” não são considerados dignosde se tornarem objeto de trabalhos acadêmicos, nãomerecem ser citados, não merecem convívio com ou-tros livros nas prateleiras de livrarias e de bibliotecas,e nem são considerados best sellers. Para muitos lei-

tores eruditos, trata-se de “bobagem” e para os leito-res de livro algum, em uníssono coro de pura e simplescondenação com os primeiros, de “porcaria’’. Um dou-tor em Teoria Literária e apaixonado pela arte que seimpõe sobremaneira por uma poética da forma da ex-pressão e um vendedor de banca, que mal conseguiuassimilar o Impressionismo, estão inteiramente de acor-do: para o primeiro, somos loucos”; para o segundo,‘‘isso aí, para estudo de doutorado, não serve.’’54 As“disciplinas” e os “campos artísticos” vigiam suas fron-teiras muito além delas, pois sabe-se que não se “podefalar de qualquer coisa”.55

3.3 As leitorasdesqualificadas:

quem são?A primeira constatação é de que todas passaram

pelos bancos escolares de primeiro, de segundo ou deterceiro grau é todas tiveram “aula de literatura’’ oupelo menos ouviram falar dela. Muitas se lembram dasastúcias de que se utilizavam para sobreviverem àsobrigações de leitura de José de Alencar e de Macha-do, leituras, para elas, intragáveis por causa da lingua-gem considerada “difícil’’ e do conteúdo pouco atra-ente. Pouquíssimas se lembram do nome de uma obrada Literatura Brasileira ou podem se referir a um ro-mance que leram. “Aquilo lá, ih! Não desce”, diz uma;‘‘na época, eu detestava’’, diz outra.56 Se ficássemossomente nas falas em que tocam na questão da leituranos bancos escolares, teríamos a impressão de quejamais pegariam em um livro para ler. No entanto, es-sas mulheres de todas as idades, de 18 a 65 anos, se-cretárias, domésticas, professoras, diretoras de esco-la, vendedoras, comerciantes, aposentadas epresidiárias, todas, em algum momento de suas vidas,por iniciativa própria ou influenciadas pelas amigas darede de leitoras, buscaram e encontraram um materialde leitura para elas atraente nas bancas de revistas, narede de troca com as amigas, nos sebos ou nasbanquinhas barateiras da esquina. E, a partir do acha-do, todas se tornam, como elas mesmas se denomi-nam nas entrevistas e nas cartas, leitoras “assíduas”,“apaixonadas’’ e “vorazes’’. Há as que leêm cinco,dez, vinte, trinta, sessenta e até mesmo cem, roman-ces de 130 páginas por mês, encontrando prazer emdizer da velocidade de leitura a que chegaram e das

51 Houel, Annik. Le Romant D’Amour et as Lectrice. França/Canadá, Lármattan, 1997, p. 72.52 Houel, Annik, op. Cit. Supra, p. 72.53 Informação dada pela editora. Observamos que ela não se dispõe a dar informação sobre seu desempenho no mercado dos anos mais

recentes, o que é uma forma de proteger o seu negócio. Desconfiamos a princípio dessa informação, mas os donos de bancas e de casade livros velhos tendem a confirmar um boom da série Sabrina nesse ano.

54 Opinião de um professor quando soube o objeto deste estudo; e opinião de um vendedor de banca de revista, quando soube a razão donosso pedido de informação sobre as leitoras de romances sentimentais.

55 Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo, Loyola, 1996, p. 956 Dos depoimentos das leitoras nas entrevistas semidirigidas.

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“viagens’’ que fazem. Todas lêem compulsivamentenas brechas do trabalho tedioso e mal pago, no ônibuse, em 90% dos casos, na cama, à noite, cabeça e cor-po nivelados, deitadas na espuma fofa do texto, flutu-ando na água-com-açúcar do romantismo, viajando porterras de pasárgadas distantes.

3.4. Em busca da práticaleitora erudita ou a utopia da

educação de qualidadeO que é notável é que todas, a despeito do trabalho

competentemente inibidor do gosto da leitura, feito pelaescola, e a despeito da censura exercida pelosfreqüentadores da Literatura erudita, pela família, pelosmaridos, pelos pastores e, principalmente, pelos que so-frem de inapetência crônica pela leitura de um livro, elasbuscaram a leitura por iniciativa própria, desviando su-perlativamente de seus fins, “para as más leituras”, odiminuto saber ler que lhes foi conferido pela instituiçãoescolar. Não é por acaso que a voz da escola e da igrejafaçam coro na condenação dessa leitura.

Em coro, todos dizem que isso não as leva a nada,que vão ficar aí, para sempre lendo ‘‘bobagens’’,“narcotizadas’’, e que nunca experimentarão o prazerestético de ler Literatura mesmo, “de verdade’: falade guardiões encastelados numa prática dada comoúnica, extremamente capazes de tomar os outros poridiotas, e de fixar essa leitoras na posição de domina-das pelos meios de comunicação de massa. Com essaatitude, pretensamente reencaminhadora da ovelha des-garrada da boa prática, excluem ainda mais essas lei-toras da mesma maneira que a estigmatização de bair-ros periféricos na mesmice de uma vida de crime e demiséria concorre para reforçar a sua negação e exclu-são. Quem diz que essas leitoras não vão a lugar al-gum, que são conformistas, e que não aspiram mais doque aos romances de Sabrina, pode ter surpresas.

Um primeiro exame das entrevistas parece indicardois tipos de leitoras desses romances sentimentais: asque são mais ou menos novatas na prática e se restrin-gem à leitura dos romances mais simples e menorescomo Sabrina, Bianca, Júlia, e as que praticam há muitomais tempo a leitura desses romances sentimentais e,de alguma forma, já não se limitam à leitura só deles.Tanto da parte das primeiras como das segundas, em-bora se encantem com o romantismo das narrativas,com a facilidade da linguagem, com o prazer da leiturapara passar o tempo e reanimar a vida e mesmo comos conhecimentos que obtêm deles - deixamtransparecer, aqui e ali, uma certa insatisfação com ocapital cultural dessas leituras. Nos depoimentos quefazem sobre suas leituras, concebem, implicitamente,a existência de uma outra prática leitora cujo capitalcultural é maior e de maior prestígio social.

As leitoras que há mais tempo lêem os romances de

Sabrina, conquanto continuem a fazê-lo, desmerecemessas narrativas: ‘‘leu uma, leu todas’’, dizem, perce-bendo claramente a estrutura narrativa fixa delas. Ouseja, percebendo o que um estudo teórido revelaria coma fórmula: X quer entrar em conjunção com o amor deY, X não pode fazê-lo (há um obstáculo), X passa apoder fazê-lo (o obstáculo é removido), o amor realiza-se. Assim, colocam-nas na conta de leituras do passa-do, e se confessam leitoras que evoluíram para um grauacima. Há as que estão nos romances denominadosClássicos Históricos; as que já chegaram a SidneySheldom; as que estão lendo mas diversificadamente eaté mesmo aquelas que já chegaram a incluir as obrasda Literatura Brasileira, algumas da mesma lista dasobrigatórias do tempo de escola. Utilizando as categori-as de quantidade e de dificuldade, postulam um grau decomplexidade crescente para esses romances coloca-dos entre Sabrina e as obras da Literatura brasileira, oque é, de alguma forma, procedente. O que isso podesignificar?

Provavelmente duas coisas. Primeiro, que queremmesmo é ascender ao patamar da prática leitora deprestígio, àquela cujo valor é inconteste e; segundo,que excluída dela por um sistema de ensino ineficiente,estão fabricando um caminho ou escada de acesso a

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ela com a literatura de massa, mais especificamentecom as ‘‘más leituras’’, a leitura de “bobagens”.57 Aum erudito que lhes dissesse: ‘‘lendo essas bobagens,com que roupa vocês vão um dia ler boas obras?”,elas poderiam responder, “é com essas mesmas quenos dão, é com essas que temos, e com as quais, aonosso modo, fazemos caminho, embora sob serradacondenação para nos excluir ainda mais’’. Uma dasentrevistadas considera que o encontro com essa lite-ratura de massa possibilita aquilo que a escola não con-segue desenvolver nos alunos: a predisposição paraler, uma atitude leitora que envolve também o corpo, eevolui em direção a outros livros - o que não está dis-tante da afirmação de Paul Zumthor de que “A leituraexige iniciativa e ação física tanto quanto audácia inte-lectual.’’58 Sabem, enfim, o que não sabia Kaper

Houser quando pergunta no filme “por que não se podetocar piano como quem respira’’.59

Eu acho que aprende aprende a, a ... ter umpouquinho de paciência, sentar, ler. Acho que nis-so aí ajuda sim. Porque é uma coisa que te, te envolve,né? Então eu acho que você adquire aquela paci-ência prá você pegar outros livros, né, e... e ler60.Nesse sentido, esse grande contingente de leitoras

excluídas no trabalho, na educação e na prática leito-ra, longe de recolher-se numa subjetividade confor-mista, está a repor, sob a forma de usar esses objetosda comunicação de massa, a velha utopia dos filhosdos trabalhadores do século XVIII: a educação de boaqualidade dos filhos dos humanistas e burgueses, semos conteúdos rebaixados com que, depois, foi estendi-da para todos.61 Por si mesmas, e a sua maneira, vão

56 ‘‘O conhecimento tem ainda um sentido mais geral, de sorte que se encontra também nas idéias ou termos, antes de chegarmos àsproposições ou verdades. Pode-se dizer que aquele que tiver visto com atenção mais retratos de plantas e animais, mais figuras demáquinas, mais descrições ou representações de casas ou de fortalezas, que tiver lido mais romances engenhosos, ouvido mais narraçõescuriosas, este, digo eu, terá mais conhecimento que um outro, mesmo que não houvesse uma só palavra de verdade em tudo o que viurepresentado ou ouviu. Com efeito, o hábito que tem de representar no espírito muitas concepções ou idéias expressas e atuais o tornamais apto a conhecer o que se lhe propõe, e é certo que ele será mais intruído e mais capaz do que um outro, que não viu, não leu, nemouviu nada, sob a condição de que nessas histórias e representações não considere verdadeiro o que não o é, e que suas impressões nãoo impeçam de discernir o real do imaginário, ou o existente do puramente possível.’’ Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1646-1716. NovosEnsaios sobre o entendimento humano, trad de Luiz João Baraúna, 2. Ed. São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 285.

57 Zumthor, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo, Companhia das Letras, p. 10458 O Enigma de Casper Houser, de Werner Herzog. Kasper Houser, depois de ouvir os sons do piano: - Isso me soa muito no peito. A música

me soa muito forte no meu peito. Agora eu me sinto velho. Por que tudo é tão difícil? Por que não posso tocar piano como respeito?’’.59 Entrevista com as leitoras: entrevista 13, p. 960 Alves, Gilberto Luiz, Quatro Teses Sobre a Educação Material da Escola Pública Contemporânea. In: Intermeio: Revista do Mestrado

em Educação, v. 1 n.2. Campo Grande, UFMS, 1995, p. 10: ‘‘Quando a escola nova burguesa chegou aos trabalhadores, o conteúdo daescola tradicional, apesar de ser o seu ponto de partida, foi subvertido de uma forma tal que a dita formação humanista, calcada notrivium e no quadrivium, assim como a formação científica, fecundada no desenvolvimento das ciências modernas, passaram por umprocesso de desvitalização progressiva até submergir numa mera apologia da dominação do capital.’’

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aprendendo a ler, vão assimilando as condições ele-mentares exigidas por esse ato. O desejo de se torna-rem escritoras de muitas delas, e as exigências de queos editores zelem pela correção das publicações, ma-nifestados em cartas para a editora, comprovam-no.

3. 5. A vergonha e a utopia dePasárgada

As leitoras dos romances sentimentais de Sabrina,todas são tomadas por um sentimento: a vergonha deser as leitoras que são. Poucas delas confessam expli-citamente ter esse sentimento, a maioria o deixa implíci-to ou admite a existência dele, não nelas, mas nas outras- o que é natural, pois da vergonha não se fala. Darwindiz que o rubor é a mais humana de todas as expressõese que somente os animais e os idiotas não se ruborizam,não se envergonham62. ‘‘J’ai honte, donc j’existe”, dizJankelevitch’’.63 Para se ter o sentimento da vergonha,é preciso alguém mais, um outro para quem o sujeitodesloca sua atenção, à procura do como esse outro o vêe avalia, ou seja, da imagem de si feita por esse outrodigno de fé, merecedor de consideração. É assim que avergonha é a primeira fobia da má consciência, umavez que ‘‘Ela se instaura num sujeito cindido, desdobra-do e debruçado sobre si mesmo. Objeto do pensamentoalheio, objeto do próprio pensamento, objeto.... Sujeitoque percebe estar sujeito e não ser sujeito, percebe ocu-par uma posição de sujeito, quando pensa, quando olha;de objeto, quando é pensado, quando é olhado’’.64

As leitoras de Sabrina vivem uma dicotomia interi-or. Reclusas na intimidade do lar, no fundo das noites eno aconchego da cama, essas leitoras habitam os tex-tos dos romances, dando vez e voz ao corpo. A leituranão é mais, predominantemente, operação intelectualobediente aos constrangimentos e regras. Ali viajampor terras de Pasárgadas, fartam-se e confortam-secom projeções de si num imaginário de confiança erelaxamento. Tudo parece em equilíbrio, tudo é otimis-mo enquanto existe, dentro do simulacro existencialque tecem, identificação do sujeito a sua imagem, ouseja, enquanto imagem e sujeito configuram um mes-mo e único valor. Quando, porém, na esfera pública,perdem esse estado de relaxamento. Disfarçam ouocultam a pertença a essa prática leitora. Para elas, éclaro e pesado o olhar da outra prática leitora, o valorque no meio social lhe atribuem leitores e não-leitores.O olhar da prática leitora dominante está ali, sancio-nando impiedosamente para um quase nada a imagemde leitoras com que acreditavam representar-se: ‘‘lei-toras de porcaria’’ diz um; ‘‘melhor que nada’’ diz.outro;‘‘leitoras insone’’, acrescenta um terceiro.

O modo como essas leitoras se vêm na esfera ínti-

ma ou diante de interlocutores menos perigososrevela-se em desajuste com o modo como percebemque são vistas. Como imagem e sujeito sãoindissociáveis, essas leitoras reconhecem não ser lei-toras de fato, passam para um estado de tensão e te-mem o juízo dos outros, cuidando para não franquearao domínio público o conhecimento de seus hábitos deleitura. A vergonha é, pois, um sentimento intersubjetivoconflitante. As leitoras se desdobram entre dois simu-lacros: o simulacro em que se atribuem uma compe-tência positiva; e o simulacro em que não se julgampossuidoras dessa competência. Em termos com queopera a semiótica greimasiana, a leitora de Sabrina éum ator que desempenha, ao mesmo tempo, o papeldos actantes destinatário e destinador julgador, poisé ela mesma que se atribui uma competência e, aomesmo tempo, a sanciona como negativa, em confor-midade com outro destinador julgador, aqueles leitorese não-leitores que reconhecem a competência leitoraerudita como a única legítima. Longe de serem “inso-nes’, essas leitoras vivem um drama: reconhecem muitobem a prática leitora erudita como a que vale social-mente; elegem-na como parâmetro para julgar negati-vamente a imagem de leitoras que projetam de si in-ternamente a própria prática. O sentimento de inferio-ridade é, pois, resultado de um fazer cognitivo. Longede serem “insones”, essas leitoras percebem muito bemo poder simbólico excludente das práticas. O senti-mento de vergonha se instaura porque, tanto elas, lei-toras das narrativas-água-com açúcar, quanto os leito-res eruditos e também os leitores de livro algum com-partilham um mesmo modo de pensar sobre a noçãode leitura que tem valor: a noção de leitura como ope-ração intelectual obediente às coerções do texto paraaquisição de conhecimento imposta a todos pelo siste-ma educacional.

Assim, essas leitoras compõem uma massa de en-vergonhadas e culpadas por não possuírem aquilo queo sistema educacional não lhes permite possuir e asfaz crer que têm o dever moral e social de saber: lerconforme a prática leitora erudita. Se a vergonha é afobia daquela consciência cindida que se percebe a simesma como objeto (estando sujeita ao olhar do ou-tro) e como sujeito (pensando-se e vendo-se negada) -é compreensível que, para livrar-se dessa situaçãofóbica, as leitoras desviem-se da utopia de tudo co-nhecer pelo intelecto para a utopia do corpo, do sentir;para a utopia de Pasárgada. Nas brechas das incoe-rências de um sistema normativo e prescrito que asoprime, instauram desvios, repõem o que foi subordi-nado à mente e banido da escrita e da leitura: o cor-po.65 Deitadas, intelecto e corpo no mesmo nível, pilo-

62 Darwin, Charles. L’expression des émotions chez l’homme et les animaux. Belgique, Editions Complexes, 1981.63 Jankélévitcha, W. Traité de Vertues III: L’inocence et la Mechanceté. Paris, Flamarion, 198664 Harkot-de-la-taille, Elizabeth. Ensaio de Semiótica sobre a Vergonha. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Lingüís-

tica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1996.

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tam o texto a corpo, mirando outros corpos iluminados,sujeitos de Pasárgadas distantes, cujos nomes são ates-tados de possibilidades de realizações de sonhos: Sué-cia, Texas, Canadá, Grécia - geografias que ancoramas narrativas no real. E, como diz Pierre Lévin,

Aqui não é mais a unidade do texto que está em jogo,mas a construção de si, construção sempre a refazer,inacabada. Não é mais o sentido do texto que nosocupa, mas a direção e a elaboração de nossos praze-res, o fio de nossos sonhos. Desta vez o texto não émais amarrotado, dobrado feito uma bola sobre simesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avali-ado segundo critérios de uma subjetividade que pro-duz a si mesma. Do texto, propriamente, em brevenada mais resta, no melhor do casos, teremos, graçasa ele, dado um retoque em nossos modelos de mundo.(...) Ele nos terá servido de interface com nós mes-mos. (...) O texto serve aqui de vetor, de suporte ou depretexto à atualização de nosso próprio espaço men-tal. Confiamos às vezes alguns fragmentos do textoaos povos de signos que nomadizam dentro de nós.65

Se no passado os romances de Macedo e de Joséde Alencar respondiam às necessidades e sonhos demuitas mulheres, hoje são essas narrativas sentimen-tais de massa a paisagem onde essas excluídas domercado de trabalho compensador, do próprio corpo,do país e das prática leitora reconhecida, vão repetircompulsivamente o sonho do paraíso perdido ou porvir. Assim, ao seu modo, via corpo e sonho, ouvindoreiterados atestados de exclusão, vão aprendendo aler (Por vias tortas?) a geografia do mundo.

4. Conclusão“Os esquemas interpretativos pertencem a confi-

gurações culturais, que têm variado enormemente atra-vés dos tempos.” Aqueles que vivem em mundos men-tais diferentes, lêem de maneira diferente e, assim, ahistória da leitura poderia ser tão complexa quanto ahistória do pensamento.”66 Há pouco tempo, pensou-seque a sociedade de masa seria uma sociedadehomogeneizada ao extremo pela ideologia que detivesseo poder dos modernos meios de comunicação, mas hojeos fatos indicam que não é bem assim. A massafragmentou-se e torna-se cada dia mais complexa: nolugar das seitas, milhares de credos; no lugar do ‘‘Belo’’

dado por um grupo, os ‘‘belos’’ distribuídos por milha-res de grupos e, assim, até a vertigem. Os gestos con-cretos dos meios de comunicação de massa,dirigem-se, cada dia mais, à fatias específicas de pú-blico, dão testemunho disso. Os universos mentais semultiplicam e, com eles, as maneiras de ler, o fenôme-no do encontro entre o ‘‘mundo do texto’’ e o ‘‘mundodo leitor’’.67 Parece que, com a falta de visibilidadedas instituições poderosamente coesas, que garantiamuma determianda disciplina do ler, os códigos ficaramflutuando a mercê do uso de quem quer que seja queos habite com seu universo mental. É como se, na quedade braço entre as imposições do texto ao leitor e doleitor ao texto, o leitor estivesse levando a melhor esimplesmente habitando os códigos disponíveis com osimperativos de seus universos mentais.

Em um cinema de um das galerias da AvenidaPaulista um homem está na fila para comprar ingres-so. A tabuleta dá, em cima, o nome do filme, O Paci-ente Inglês, formando um pequeno bloco ou parágra-fo; e, mais em baixo, como que dando idéia de outrobloco, os dizeres: “Sex. a Dom.”. O homem então pedeum ingresso para “Sex(o) a Dom(icílio)’’. A mulher dabilheteria ri, rimos - e o homem sai meio sem jeito. Àessa atitude de habitar o código a seu modo correspondeoutra de produzi-lo, não por uma retórica de uma im-posição logica, mas por uma retórica dos brancos, dasdisponibilidades para um inquilinato.

Contra o estudo da recepção das obras pautadanuma definição puramente semântica do texto, Chartierdiz que a reconstrução do processo de atualização dostextos em suas dimensões históricas “exige, inicialmen-te, considerar que as suas significações são depen-dentes das formas pelas quais eles são recebidos eapropriados pelos seus leitores (e editores)’’68 O estu-do da leitura hoje, mais do que em outros tempos, senão quiser ser uma miragem ou abstração, precisainteressar-se pelas diversas e cada vez mais numero-sas práticas do ler. Compreender a prática leitora dasleitoras de romances sentimentais não deve ser desti-tuído de interesse e importância principalmente, paraaqueles que se dedicam ao ensino da literatura e nelaacreditam sobremaneira como possibilidade de umaexperiência estética (mais rica?) no nível da forma daexpressão e da forma do conteúdo.

65 ‘‘A escrita adquire um direito sobre a história, em vista de corrigi-la, domesticá-la ou educá-la. Ela se torna poder nas mãos de uma‘‘burguesia’’ que coloca a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio do nascimento, ligado à hipótese de que o mundo dado érazão.’’ Certeau, Michel, op. cit. p. 235.‘‘Onde se acha o limite da maquinaria pela qual uma sociedade se representa por gente viva e dela faz as suas representações? Onde é quepára o aparelho disciplinar que desloca e corrige, acrescenta ou tira nesses corpos, maleáveis sob a instrumentação de um sem-número deleis? Na verdade, eles só se tornam corpos graças à sua conformação a esses códigos. Pois onde é que há, e quando, algo do corpo que nãoseja escrito, refeito, cultivado, identificado pelos instrumentos de uma simbologia social? Talvez na fronteira extrema dessas escriturasincansáveis, ou furando-as com lapsos, exista somente o grito: ele escapa, escapa-lhes.’’. Certeau, Michel, op, cit, p. 240.

66 ‘‘Lévin, Pierre. Op. Cit p. 3667 Darton, Robert, História da Leitura. In: Burke, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, Unesp, 1992, p. 23368 Ricoeur, Paul. Temps et Récit, tomo III, Le Temps Raconté, Paris Éditions du Seuil, 1985, p. 228-26369 Chartier, Roger. A Ordem dos Livros. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 12

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The purpose of this study is to identify and to analyze thestrategies a group of adult Brazilian learners (learning English as aforeign language) draw on to solve their communicatíve problems.

The data for the study came from subjects of three differentproficiency levels who were tested on theree different tasks. Thelearners’ mental processes in the production of speech wereinferred from the subjects’ performance data and introspection.The taxonomy for the identification of communicationstrategies(CSs) for the present study was based on the typologies,of Tarone, Cohen and Dumas (1980); Faerch and Kasper (1984);Wilhems (1987) and Oxford (1990).

The general results of the study indicated that Interlanguage(IL) speakers consciously or unconsciously employ CSs to conveymeaning when communication runs into difficulties. This studyidentified many strategies in the speakers’ performance. The mostfrequent ones are foreignizing, code switching, approximation,overgeneralization and paraphrase.

Key-words:monono mnonon mnonon mnono mnono mnon

Este estudo tem como principal objetivo identificar, definir e analisar as estraté-gias de comunicação e signos de hesitação nas falas de um grupo de estudantes brasi-leiros, adultos, aprendizes de inglês. Adicionalmente, a relação entre o nível de profi-ciência linguística do grupo e o emprego de estratégias orais é discutida.

Os dados para o estudo forarn obtidos de alunos de três diferentes níveis de profi-ciência que foram testados em três diferentes atividades. Os processos mentais de produ-ção de fala dos alunos foram inferidos a partir de dados de desempenho e introspecção.A taxonomia empregada para a identificação das estratégias de comunicação foi base-ada em tipologias existentes, mais especialmente as de Tarone, Cohen e Dumas (1980);Faerch e Kasper (1984); Willhems (1987) e Oxford (1990).

Os resultados gerais deste estudo indicaram que apesar dos falantes basicamenteempregarem o mesmo tipo de estratégia de comunicação e signos de hesitação para superarseus problemas comunicativos, a frequência de uso de estratégias de comunicação e ossignos de hesitação variam de acordo com os níveis de proficiência, sugerindo que os estu-dantes brasileiros evoluem em termos de tipos (pouco significativos) e frequência (bastan-te significativos) no uso de estratégias de comunicação e signos de hesitação.

Os resultados parecem portanto indicar que o comportarnenteo comunicativo dosfalantes é transitório e dinâmico.

Palavras-chave:monno mnonon mnonon mnonno mnonon

* Nadir de Assis Borall é.............................................. .............................................

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IntroductionIn the past few years, a good deal of research has

been done on the interlanguages of leaners, in manydifferent situations. The theories of interlanguanges areof great importance since their principles maycontribute to the understanding of the learning and theteaching methodology of second languages (SLs). SinceSelinker’s proposal of the ‘interlanguage’ theory, therehas been a growing interest in the study of the learningprocess, rather than the learning product (cf. Ellis, 1984;Wenden and Rubin, 1987; Crookes, 1989). Champeau(1989) points out that the “focus has shifted from theteacher to the learner and with this has come therealization that each learner is an individual with distinctneeds, learning styles, mental schemata and attitudes’’(p.2). This position has motivated a growing interest inunderstanding the internal mechanisms the learnerdisplays when s/he wishes to convey messages whoselinguistic knowledge does not permit him/her to expressadequately. Thus, in recent years, an. increasingnumber of studies in interlanguage research havefocussed on the phenomena that take place insecond-language learners’ performance. Specialemphasis has been put on communication strategies(CSs) and phenomena of hesitation (PH) occurring inthe planning/execution phase of speech production.

Research on second-language acquisition hasidentified a variety of strategies that learners use toconvey meaning when communication breaks downor runs into difficulties in the target language. It hasbeen observed that depending on what the learnerswant or need to communicate they are often forced

ORAL STRATEGIES USED BYBRAZILIAN STUDENTSLEARNING ENGLISH

Nadir de Assis Borall

to use rules of which they do not have an adequatecommand. This can happen in all domains oflanguage: morphology, phonology, syntax and lexisand leads learners to constantly plan and revise theirutterances during the process of speech production.According to Faerch and Kasper (1983),second-language learners, when faced withdifficulties caused by lack of knowledge in thetarget-language (TL), employ certain strategies thatare ‘potentially conscious’ to solve troublesomesituations. These strategies (pauses, repetitions,drawlings, the use of foreignizing, paraphrase,approximation) can be clearly observed while thelearners are attempting to communicate.

Considerable research in the area of secondlanguage acquisition (Tarone, 1977; Faerch andKasper, 1983; Wenden and Rubin, 1987; Oxford,1990) has been devoted to discovering andunderstanding the internal mechanisms of the speechproduction process, to providing clues about the kindof strategies second or foreign learners employ tocommunicate, and to providing information importantto the field of second-language (SL) andforeign-language (FL) teaching and learning.

The purpose of this study is to increase ourunderstanding of the second/foreign languagecommunication processes through an investigation ofthe internal mechanisms Brazilian learners display whilethey are trying to communicate in a foreign language.In this investigation a framework will be provideddescribing the strategies these learners draw on to solvetheir communicative problems.

Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(2): 74-84, jul./dez., 1997.

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MethodologySubjects

The data for the study came from twenty-foursubjects of three different proficiency levels:High-Proficiency Speakers (HPSs); Intermediate -Proficiency Speakers (IPSs) and Low-ProficiencySpeakers (LPSs). The subjects were fromundergraduate students enrolled in the Letras Course(campus of Universidade Federal de Mato Grosso doSul/UFMS).The students were all adults, (twenty-onefemales and three males) their age ranging from 18 to30, and were all speakers of the same Ll, Portuguese.

Collection of dataData were collected over a span of two months at

the beginning of the school year. Students took part inthree oral production tasks resulting in a total of 72speech production samples. The data were audio-tapedand collected in a normal language classroom. Studentsparticipated voluntarily in the experiment. They weretold to produce the best they could and as muchlanguage as possible. Each task session lasted from 20to 40 mínutes.

InstrumentsThe subjects in all three groups performed three

production tasks: an oral description of a sequence ofpictures (CP) (appendix 1); the retelling of a story toldby the experimenter in L1 (RS)(appendix 2); theexplanation of four concrete and four abstract concepts(EC)(appendix 3). These tasks were selected becausethey have been mentioned in the literature as involvinga variety of oral speech styles and being frequentlyperformed in real life situations (cf. Morrow, 1979; Pint,1981; Shohamy, 1983; Fulcher, 1987).

ProceduresThe tasks were performed under a psycholinguistic

perspective (i.e.each learner tried to find a solution her/himself without the cooperative assistance of theinterlocutor, in opposition to the interactionalperspective). The approach followed to detect CSs wasthe ‘phenomena of hesitation’ reflected in theinterlanguage performance as an index of ‘how’ and‘where’problems in planning and execution are takingplace (cf. Beattie and Bradbury, 1979; Dechert andRaupach, 1983; Faerch and Kasper, 1983).

Because of considerable evidence that learners canbe used as informants to offer a better understandingof the internal mechanisms of their speech production,a second research tool used in this study wasself-observation: immediate retrospection based on aquestionnaire.

The methodological framework for reaching thelearner’s mental processes in the production of specchwas based on suggestions provided by Hosenfeld (1977)

(1979) Cohen and Aphek, (1981) Cohen and Hosenfeld(1981) and Cohen (1984).

For eliciting data, a brief questionnaire with thequestions given below was given to the students, andfurther explanation and clarification was given inPortuguese. Students were free to write their answersin English or Portuguese language.

Questionnaire- Try to identify the strategies you employed to solve

your communicative problems in the TL.-Did you have troubles with vocabulary while you

were trying to communicate in the TL?In order to obtain further insights on the learner’s

mental activities involved in the process, a third researchtool used in this study was self-observation: delayedretrospection based on interviews.

As in Cohen and Aphek (1981) an ‘externalelicitation format’ - namely questions of the type: “Whydid you say X?”, “Why is this type of signal of hesitationpresent in your speech?”, was used in this study. Theelicitation and response were oral ín the subject’smother tongue or in the target language, depending onthe speakers proficiency level. In order to capture someof the processes/strategies used by the speakers, theywere asked individually by the experimenter in aretrospective session a day after and in some casestwo or three days later, to discuss and comment of theproblems they had faced while performing the task.The reason why this retrospective session wasdiscussed only a day after or some days later was theneed to have the data transcribed before interviewingthe subjects. A tape-recorder with the students’language taped was used as a stimulus for the studentsto reconstruct what was going on in their minds at givenmoments.

Thus, the analysis of hesitation phenomena in thelearners’ speech data and an introspective analysisreflecting both immediate retrospection based onindirect questions (questionnaire), and delayedretrospection based on direct questions (interviews)were considered promising approaches forunderstanding mental activities involved in languageprocessing.

Analysis of DataEach session was tape-recorded and later

transcribed following the transcription symbolssuggested by Marcuschi, (1986), and Heritage andAtkinson, (1987).

Although the subjects were free to make theintrospective comments in their own language or in theTL, when transcribed to this study, the comments whichwere given in LI were translated into English.

The taxonomy of CSs for the present study is basedon the typologies of Tarone, Cohen and Dumas (1983);Faerch and Kasper (1984); Wilhems (1987) and Oxford

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(1990) Although the description of CSs was based onexisting research in the area, the categories werereorganized and classified to fit the performance andintrospection data of this experiment. In order to simplifythe task (following suggestions in Bialystok, 1980) theCSs are divided into two main groups of strategies: A)strategies based on LI linguistic knowledge and B)strategies based on the TL linguistic knowledge.

Resultsand Discussion

The following types of CSs were identified in theTL learners’ speech production to convey the desiredmessage when they lacked the appropriate TL words.

Taxonomy of Communication StrategiesA. L1 BASED STRATEGIESa.1 Foreignizing or Anglicizinga.2 Code Switching or BorrowingB. L2 BASED STRATEGIESb.1 Paraphrase or Circumlocution

b.1.1 Exemplificationsb.1.2 Definitionsb.1.3 Descriptions

b.2 Approximation or Substitutionb.3 Overgeneralization or Word CoinageC. REPAIRSc.1 Partial Immediate Repairc.2 Full Immediate Repairc.3 Restructuringc.4 Completion RepairD. OTHER STRATEGIESd.1 Semantic Fieldd.2 Omissiond.3 Message Abandonmentd.4 Mimes and Gestures

Discussion of Communication StrategiesA. LI BASED STRATEGIESa. 1 Foreignizing or Anglicizing: One of the most

common resources for coping with TL difficulties forlow-proficiency speakers is the process labelledforeignizing or anglicizing. This consists in applying L2rules of phonology or morphology or both processessimultaneously to a L1 lexical item. According to thespeakers, in many circumstances, they try to invent orcreate a new word based on L1, giving to the word aL2 pronunciation. However, in some points of theirspeech they did, not know how the word came to theirminds. Actually they did not know they were using adeviant lexical item. The three following examplesextracted from the data exemplify the use offoreignizing.

Ed (LPS) used /’eskeleid/ for climbed up, insertingphonological and morphological rules to the Portugueseverb ‘escalar’. Lc (LPS) in her struggle to find a verbto fill her speech gap reported: “I had to say ‘organizou’or ‘preparou’. I didn’t know how to say these words inEnglish because my English vocabulary is too poor, I,then, tried a similar word in Portuguese. I know the endingof regular verbs is -ed and I tried to add this suffix to theverb and I also tried to pronounce it in English and then1 had ‘organizeitid/. “ Kr (LPS) trying to express theword secure, used /se’guiur/. When asked why sheused this form, she answered: “Well I thought it wascorrect to say /se’guiur/. I do not know if I thought inPortuguese before saying the word”. As the word /se’guiur/ in her performance data is not preceded by aseries of signals of hesitations we can say that the wordwas used spontaneously by the speaker.

Many of the lower-proficiency speakers said theyused this process because they are aware of thesimilarities between the two systems (L1 and L2) andso looked for a word based on L1 to solve a specificlanguage problem they were having. The followingstatements provided by Ap (LPS) in example 1, andLc (LPS) in example 2 Mr(HPS) in exarnple 3, Cr(IPS)in example 4 illustrate the use of this strategy:

(1) My little experience has showed me that thereare many words that are very similar toPortuguese. Then I tried the word in the hope ofguessing the appropriate item. Ap(LPS)(2) I tried the word based on Portuguese becauseI know it works sometimes. Lc(LPS)(3) I used the word /reptail/ for reptile. Iremember this word caused me great problems. Ididn’t know if it was correct to use this wordand also I don’t know if I had heard it before, orif I thought in Portuguese to use the word.Mr(HPS)(4) The time was so short. I had to think quicklyand I used the first word that came to my mind tosay ‘cometer’ and I said to /komi:t/ mistakes,but I always think in Portuguese before decidingabout the word that I don’t know yet. Cr(IPS)a.2 Code Switching or Borrowing: The use of

code switching or borrowing is not so common in mydata as the use of foreignizing. However, speakers didoccasionally use code switching as a way ofovercoming their problems in communication. Codeswitching consists in using an item from L1 (withouttranslating it to L2) with L1 pronunciation. Observethe two following examples extracted from the data:

(5) One day he: - (he) were (0:10) (he were) -‘procurando’ -(eh) rich families - for stole...Mt(LPS)

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(6) Paul and John - taking a ‘pedra’ and brokingthe vase. Nd(LPS)(7) He: (he) had to: (to) (pause) he had to‘descer’(laughter). Dn(PS).Some subjects affirmed they rarely resorted to this

strategy because they know it is not very helpful. Somereported that they just resorted to this strategy becausethey were having serious problems, and they knew theycould not use the word, but the circumstances forcedthem to say something. Others reported that the wordcame at once, spontaneously. It came like an impulse.The introspections below illustrate, the strategy.

(8) I was in a terrible situation. I didn’t havemuch time to think and I was getting verynervous. It seems that the word just disappearedfrom my mind and at once I found myself usinga Portuguese word. Mt (LPS)(9) I don’t know why I used a word fromPortuguese, it was so spontaneous that when Ibecame aware I had already said the word.Nd(LPS)(10) Sometimes I use a Portuguese word becausethere is no other alternative. You are forced to.Dn (IPS)If we take into consideration the statements (11

and 12) below it is possible to say that the extent towhich code switching is present in some of thelearners’ inter languages will depend on theinterlocutor, namely, if s/he is talking to a personsharing the same L1 or a person who does not sharethe same language

(11) If I am talking to my English teacher or aBrazilian friend I always insert words fromPortuguese into my conversation, but I wouldn’tuse the same resource if I were talking to a natívespeaker. Lc(LPS)(12) If I were in a normal situation, talking toan English person, for instance, I would not usea word in Portuguese because the person wouldnot understand me. I would try other resources.Kt(HPS)

B. L2 BASED STRATEGIESb.1 Paraphrase or Circumlocution: The learner

tries to describe the characteristics of the object oraction instead of using the appropriate target languageitem. In order to overcome communication problemss/he resorts to the following processes: a) descriptions,b) definitions and c)exemplifications. According to thespeakers’ statements this is the most common strategyemployed by them. Almost all of the subjects reportedin the introspective analysis that when they do not know

the lexical item they try to explain the word, to define itor to give examples.

Z1, a HPS, did not know how to say ‘duet’ but shetried to express it in the following way:

(13) ... a couple of - (a couple of) young personswere playing - ‘a four hands’on the piano.Zl(HPS)Sd(IPS), in her attempt to produce ‘hide and

seek’, said:(14) Children are playing. One of them need to -close his eyes and the others - Will try to find aplace. Sd (IPS)Kr(LPS), trying to express the verb ‘to steal,

produced:(15) He obtained other peopIe to - get theirthings for he. Kr(LPS)It is important to mention that paraphrase seems to

be a conscious strategy since all the speakers reportedthat when they did not know the appropriate TL lexicalitem, they made a great effort to explain it. The followingtwo statements are typical of the learners’ introspectionabout this strategy:

(16) When I find myself in trouble with the wordsI have not learned yet,one of the ways I alwaystry to solve the problem is to explain, to givedefinitions. Cr (IPS)(17) It is impossible to memorize all of the wordsof a foreign language. I have discovered bymyself that the best way of dealing with this is totry to explain, to give examples, synonyms ordefinitions of the unknown word. Rc(HPS)b.2 Approximation or Substitution: This is a very

common type of strategy employed by the subjects,specially the low-proficiency ones. It can be observedthat they substitute a TL item they do not know orremember by another TL item they think canapproximate in meaning or produce the same effect ofthe intended item. From the point of view of the subjects,their main problem is to find a word that canappropriately substitute the TL item they do not knowor remember.

Looking at the examples presented below we canobserve that the substituted items in certain cases donot give us the exact idea of what happened, but theycould be accepted in other situations. Interesting toobserve is the fact that in many cases these items arenot preceded by long pauses, showing that the processmay be quite spontaneous. There is no long search forthe word.

(18) Instead of saying. A boy was climbing up

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the tree the learner produced. “A boy - was -playing on the tree.’’Ap(LPS)(19) Instead of saying: Peter hid under the tree,the learner produced: "Peter stayed under - thetree" Nd(LPS)(20) Instead of saying: ...suddenly he fell intothe vase, the learner produced: “... suddenly(0:5) he went to the vase.’’ Dn(IPS)When the learners were asked why they used this

process to communicate, they offered the followingexplanations:

(21) I was not going to be able to say exactlywhat I had to, but instead of not saying anythingI preferred to say it in a different way. Kr(LPS)(22) Trying to find substitutes is not an easytask. It takes me a lot of time thinking if theword would be the same that a native speakerwould use. Rh(IPS)(23) I don’t have much troubles. If I perceive 1won’t be able to say the word because I don’tremember or have not learned it, I try to substituteit by a word which produces a similar effect.Gr(HPS)b.3 Overgeneralization or word coinage: This is

not such a common strategy used by the group oflearners. However, it represents another technique ofcreating nonexistent words. The learner consciouslyor unconsciously invents or creates a new wordinduced by his/her linguistic knowledge of the TL. Theprocess of overgeneralization consists in extending theuse of a lexical item and/or grammatical rule beyondits accepted uses, e.g., one of the learners Mt(LPS) ofthis experiment needed to use the word ‘robber’ , butdidn’t remember the word. To solve the problem shetook another word from the same semantic field(available in her repertoire at the moment of speaking)and attached the suffix -er, producing “stoler”. It seemsthat she had automatized the general rule for theformation of nouns designating professions as in“player”, “writer”, etc . It seems that the process washighly spontaneous. When asked, the learner said sheremembered she was having trouble, but was not ableto explain how the word ‘stoler’ came to her mind,although she was conscious about the use of the -er.The following are typical examples ofovergeneralization:

(24) You work - very-much - a:nd (0:7) receivemoney and: the govern, governer? - stay..Nd(LPS)(25) It it - it’s the contrary to - unhonesty...Dn(IPS)

Asked about example (24), the learner said sheknew the word ‘govern’ and the ruler to designateprofessions, although at the time of speaking she wasnot sure if it was correct to say ‘governer’ or not.Most learners were not able to give satisfactoryexplanations about this process of creating new words,as exemplified by the introspective comments in (26)and (27):

(26) I don’t know how the word “stoler” came tomy mind. Perhaps I had already heard the wordin class. It was spontaneous. Mt(LPS)(27) Sometimes I am so confused! The words andthe grammatical rules all of them mix in my mind.I didn’t have much time to think. 1 have no otherway axcept trying to make some adaptations tothe words. Dn(IPS)

C. REPAIRSThis is a very common kind of strategy employed

by speakers at all levels of proficiency. It consists ofsetting up a new speech plan everytime the speakerperceives the original one has failed, or has not producedthe intended meaning. In my data the speakersemployed the following kind of repairs:

c. 1 Partial Immediate Repair: When the learneruses a linguistic form and perceives, before concludingthe whole sentence, that s/he has made an error andimmediately corrects it. This is the most frequent typeof repair used by the learners, although they are notalways able to produce a correct version. Examples ofpartial immediate repair are:

(28) ... many peoples and children go (eh)“went”- to a park. Lc(LPS)(29) ... he didn’t want to did “to do” the work.Mr(HPS)c.2 Full lmmediate Repairs: This happens when

the learner says a whole sentence or stops in the middleof the message because s/he perceives the sentenceis not going to express the desired meaning or s/he isjust not satisfied with it because s/he produced anungrammatical sequence. Observe the followingexamples:

(30) When he became to the house, he cameback home... Kr(LPS)(31) I wanna a - easy work that give - me a lotof money, and (0:5) with the govern... didn’t know- (0:5). - No I wanna - an easy work that give -me a lot of money, and - (the) the governmentdidn’t know abont it. Sd (IPS)c.3 Restructuring: This is another strategy used

by LPSs and it is a very interesting one. It happens

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when the learner is unable to plan a whole sentence atonce because the operation is complex. Phonological,morphological and lexical difficulties have to be facedsimultaneously and the learner plans and executes his/her utterances step by step or in small chunks until s/he can produce them as a whole. Examples 32 and 33illustrate this strategy:

(32) Then, to: (0:5)Then, Jim decided to - be...(long pause)Then, Jim decided to become - a thief. Ap(LPS)(33) I don’t because - he:I don’t be...I don’t know because - he: was: crying. Ed(LPS)

c.4 Completion Repair: This happens when thelearner is unable to utter the lexical item as a wholeand s/he tries to say it part by part:

(34)flag is a sym... symb... symbol... Cr(IPS)(35) but - he - orga... organi... organizated...Lc(LPS)

D. OTHER STRATEGIESd.1 Semantic Field: It was found that students

face difficulties when they have to cope with itemsthat belong to semantic fields that overlap or itemsthat have small differences in pronunciation but greatdifferences in meaning. These items normally operatein pairs such as tall and high, persons and people,steal and rob, large and big, push and pull, etc.According to the speakers, differentiating betweenthese words causes them considerable difficultybecause it is very hard to automatize the smalldifferences, specially because, in many cases, thereare no parallel words in L1. It seems the learners arenot always aware of the processes they employ tocope with this difficulty. Observe the two examples,of this strategy in (36) and (37) and the introspectivestatements in (38), (39), (40) and (41):

(36) ... but the bottle was very - tall very high.Sd(IPS)(37) ... they enter that house and to steal and torob. El(HPS)Introspective Statements:(38) When there are two words in English whichhave a small difference in meaning and I cannot discriminate the difference I use both forms.Sd(IPS)(39) If you use both forms, people will be indoubt if you know the word or not. Mt(LPS)(40) I never know which form is correct. I chooseone of them and I say it. Is(LPS)

(41) I was in doubt between to steal and to rob.I don’t know why I used both forms. El(HPS)

d.2 Omission: This consists of omitting a lexicalitem when the learner has tried all other availableresources. The learner omits the item but does not giveup the whole idea. This kind of strategy is not employedby the HPSs. It is employed by LPSs and to a lesserextent by IPSs. Observe the two examples belowwhere Rh (example 42) wanted to use the word‘assault’(observe the signal - ‘?’) but omitted it becauseshe was not able to remember it, and Mt (example 43)did not remember the past tense of ‘be’ and did notknow how to say the word ‘same’.

(42) He planned all the (0:7) (he planned) (0:8)(?) and (and) this man (0:13) (and this man) did- the robbery. Rh(IPS)(43) ... one - boy and one girl - (?) playing -together on the - (?) piano. Mt(LPS)The following are the learners’ introspective

statements about examples (42) and (43):(44) I didn’t know how to say the word. I didn’tknow how to explain it either. I had no otherresource except to omit the word. Rh(IPS)(45) Sometimes I don’t know the word, I don’tknow how to explain it either. In this case I justomit it. Mt(LPS)d.3 Message Abandonment: The speaker

abandons communication in mid-utterance because s/he perceives s/he is not going to be able to complete it.The subject gives up and does not try another way.Utterances (46) and (47) illustrate this strategy.Introspective statement (48) and (49) are typical ofthe learners’ introspection about this strategy:

(46)... flag we use - how (/) ... Kr(LPS)(47) ... a people was pride he is a - (a) people(eh) that know (uh) (/) Não sei explicar. Mn(LPS)Introspective Statements:(48) Sometimes I change the sentence a lot oftimes and if it’s not possible to express my idea,I have no other way out but giving up. Kr(LPS)(49) I have a lot of trouble because I don’t haveenough vocabulary. I try everything, butsometimes I have to abandon the idea. Mn(LPS)

d.4 Mimes or Gestures and Appeals forassistance:

These strategies were not included in the studybecause they occur in conversations under aninteractional perspective and the subjects whoparticipated in this study performed monologue

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activities. However, all of the subjects mentioned thatthey employ mimes or gestures and ask for theinterlocutor‘s help every time they are unable tocommunicate the intended item. One type of evidencethat the speaker would certainly appeal for assistancewhile communicating with others is the changing ofintonation to a rising tone as if the subject was askingfor confirmation. The signal (?) is used when thechanging of intonation was observed. Observe thesepieces extracted from the data:

(50) Honesty is (0:8) when a man or a womannot say - (eh) - (eh) mentiras? Nd(LPs)(51) You see, you work hard - but - the /govnment/? /gov nmemt/ (uh) (help me) (laugh).Vl(IPs)

General ResultsForeignizing seems to be the most important type

of CS based on L1 linguistic knowledge employed byLPSs. It is seldom employed by IPSs and it does notplay any important role for HPSs.

Code Switching is not employed by HPSs. It isalmost absent in the IPSs speech data, but it is employedto a limited degree by LPSs.

Paraphrase seems (based on the learners’introspection) to be the most important type of strategyemployed by the learners. All of the IPSs and HPSsreported to use paraphrase when they run intodifficulties trying to express the desired item.

Approximation is another common type of CSemployed by LPSs and it is still a very important typeof CS employed by IPSs. Although HPSs reportedmaking large use of this strategy, there were noexamples found in their performance data. It is possiblethat the activities of the experiment did not make strongdemands on their language competence. It wasobserved that IPSs usually get positive results whenthey replace the unknown items by other ones thatapproximate the meaning while LPSs, in many cases,used items which produced vague meanings, sometimeshard to understand.

Overgeneralization and semantic field also playa role in the speaker’s communication. No speaker inthe introspective analysis reported using semanticfield, but when asked about examples of this strategyin their speech, they were able to give some reasonableexplanations (see comments (26) and (27)).

It was observed that LPSs made a good deal of useof message abandonment and occasional use ofomission. However, less use of these strategies ismade by IPSs, omission is not used by HPSs andmessage abandonment was used only twice by them.These strategies seem to be seldom used because theydo not enhance communication.

Repairs, specially partial immediate repair, areregularly used by almost all of the speakers in this study.The use of repairs are perfectly justifiable forlow-proficiency speakers who do not yet have acquireda good command of the TL. However, this factbecomes interesting when it is discovered that repairsis still largely employed by, higher-proficiency speakers.The data revealed that both IPSs and HPSs have agreat predisposition to monitor and correct their speech.lt may be that the issue of repair is much broader thanthe mere corretion of errors, and its use does not justindicate lack of competence in the TL. But, beforedrawing conclusions about this issue, we still need muchdescriptive and analytical information about the use ofrepairs by foreigner speakers. However, based onliterature and on the introspections of this study, thereare at least two possible reasons for the large use ofrepairs.

1. In everyday communication, speakersspontaneously correct their speech in a kind ofautomatic monitoring, even if they are not always awarethat the strategy of monitoring is taking place. Accordingto Klein (1986) “any speaking involves an automaticmonitoring of the speech. In a way, ourspeech-production and monitor is always in action ”.

2. The type of instructions received in foreignlanguage classroom encourage the overt correction ofthe TL use. Teachers expect perfect performance, andstudents are told that in order to develop communicativecompetence in a TL they must use the languageaccording to the grammatical rules of the language.This leads learners to monitor and repair their language(cf. Lier, 1988; Mclaughlin, 1990). Although no attemptwas made to verify the type of instructions studentsreceive from their teachers to communicate in the TL,statements collected from the students during interviewsseem to confirm that the need of repairing for someFL speakers is great. They reported that usually theyare very insecure about what they have just producedand try to say it again in a different way: by changingpart or the whole sentence produced, or by substitutinglexical or grammatical items. Others reported that theywere not conscious that they were always correctingtheir speech. This confirms that repair may also be aspontaneous mechanism of speech production.

Implications of this studyfor second language

teaching and learningWith the shift from teaching methods and teacher

training towards more emphasis on the discovery oflearners’ cognitive styles and the development ofcommunication skills, the findings of studies like thismay have important applications in the field of second

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language teaching, most specifically in the areas ofsyllabus design and teaching methodology. Syllabusesshould be designed to favor the development oflearners’ communicative competence (cf. Canale andSwain, 1980 and Littlewood, 1981).

It seems possible to develop subjects’communicative competence by increasing their strategiccompetence and CSs may serve this purpose. Theymay bring very positive contributions to the developmentof oral communicative skills and consequently forlearning the TL in general. According to Si-Quing,(1990) “a more practical and economical way to developlearners’ communicative competence specially in theformal classroom setting, and the acquisition - poorenviromnent, is to increase learner ’s strategiccompetence, their ability to use communicationstrategies to cope with various communicative problemsthey might encounter” (p. 180). It has been mentionedin the literature (cf Bialystok and Frohlich, 1980;Wenden and Rubin, 1987; Willems, 1987 and Oxford,1990) that CSs are important tools to be used by thelearners(specially in the initial stages of learning) andif encouraged, the use of these tools, it will help themto become more aware of their potentialities, which inturn, will revert in more fluency of the new language.

In this view, teachers’ roles should go beyond theprovision of linguistic information. They should createa classroom atmosphere favourable to learning, asKrashen (1982) says, ‘situations where comprehensible

input is plentiful’ (p.31). Students must be advised toforget their inhibitions and the fear of losing face.Wenden and Rubin (1987) report that a willingness totake risks is a characteristic of successful languagelearners . Part of being a good teacher is trying toeliminate the ‘high affective filter’ (Krashen’sterminology) so that learning can occur in anenvironment in which CSs are not only allowed, butencouraged. As the learners’ TL experience increases,their language naturally improves and they willautomatically abandon the use of certain CSs.

To reinforce the position that CSs should be acceptedand encouraged in classroom, I agree with the view putforward by Si-Quing, (1990), that “any attempt to useCSs for the purpose of reaching communicative goals,however poor, is better than none”(p. 183). Although itseems clear that TL users should be advised to benefitfrom CS resources, there are two important points thatshould be taken into account before introducing them inthe classroom. First, it is necessary to investigate whetherlearners are already employing CSs in their speech andif so, what types. Second we have to know more aboutthe effectiveness of different types of CSs beforeadvising learners which strategies to adopt and whichones to avoid.

Finally, it is believed that a better understanding ofour students’ process of communication in the TL isbasic for modifying and improving the teaching of asecond/foreign language.

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APPENDIX 1

Composition Through Pictures (CP)Students were given five minutes to prepare the composition in advance. They were told to build a story based

on the pictures, to use the imagination as much as possible and to build at least five sentences for each picture.When asked, the experimenter helped the subjects to interpret the pictures. The pictures selected follow the sequencepresented below (in a more reduced size) and they came from Composition through Pictures by Heaton J.B, 1966.

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APPENDIX 2

Retelling of a Story (RS)In this activity the analyst told the subjects a brief story in L1 (five paragraphs) to be told by them in the TL.

The story was told twice and slowly and subjects had the opportunity to tell the story in L1 to the analyst in orderto check if s/he had not forgotten important details. Then, the subjects were asked to retell it in the TL at anormal speed. The story selected came frorn L.A. Hill’s Series of Stories for Reproduction(see the storybelow).

“Jim era inteligente, mas não gostava de trabalho árduo. Ele dizia, “a gente trabalha muito, ganha muitodinheiro, e o governo fica com a maior parte dele. Quero um trabalho fácil que me dê bastante dinheiro e que ogoverno não fique sabendo”.

Resolveu ser ladrão - mas não fazia os roubos: contratou outras pessoas (um grupo) para roubar para ele.Estas pessoas eram muito menos inteligentes que ele, portanto ele organizava tudo e pedia para que elas fizessemo serviço.

Um dia ele saiu à procura de famílias ricas para roubar, e mais tarde enviou um dos homens do grupo pararoubar uma bela e grande casa que ficava nos arredores da cidade.

Era noite, e quando o homem olhou através de uma das vidraças da casa, viu um casal de jovens tocando umdueto no piano.

O homem retornou até Jim e disse: “Aquela família não tem muito dinheiro. Duas pessoas estavam tocandono mesmo piano.

APPENDIX 3

Explanation of Concepts (EC)The subjects were required to explain orally four concrete and four abstract words. The concepts were

written in L1 and TL (in order to avoid ambiguities), and distributed to the subjects. The subjects were, asked toexplain the meaning of the items as if they were trying to explain to someone who did not know the meaning ofthe word at all. This activity was introduced because the analyst believed that it was more complex than the 1stand 2nd ones, since it is difficult to explain concepts even in L1, and this would force the subjects to use moreCSs.

The words were:Concrete Concepts Abstract Concepts1. Lantern (lanterna) 1. Pride (orgulho)2. Flag (bandeira) 2. Patience (paciência)3. Alligator (crocodilo) 3. Courage (coragem)4. Bachelor (solteirão) 4. Honesty (honestidade)

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