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Í n d i c e

11Primeira recordação de Karmele Urresti_

17Primeira parte1927–1943Noite de artistas em Ibaigane, 19Imagens de Paris, 37Amor em Belloy, 59O diário da Quinta Avenida, 85Chuva em Caracas, 109_

131Segunda parte1943–1950Regresso a Antsosolo, 133Darío Landa, 151O verão mais breve, 175Dias de prisão, 193Um presente por abrir, 213_

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221Terceira parte 1951–1979Casa vazia, 223O reencontro, 241Anos felizes, 253Paisagem com nevoeiro, 273Livro caído, 291_

303O fim (2011)_

311Nota do autor_

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Conhecia a história. Desconhecia a verdade.

carlos fuentes

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P r i m e i r a r e c o r d a ç ã o d e K a r m e l e U r r e s t i

1

Algumas histórias convivem na cabeça do escritor durante muito tempo, anos até, antes de verem a luz do dia. Nesse intervalo, a maioria delas perde ‑se ali mesmo, extraviadas

entre as profundezas do cérebro, sem ganhar vida; não obstante, algumas, poucas, continuam latentes para sempre.

Esta é uma dessas histórias.Em minha casa, tinha ouvido muitas histórias acerca da família

Urresti; afinal, Ikerne Letamendi Urresti era da idade da minha mãe e sua amiga de infância, desde os verões que partilharam durante as férias escolares que Ikerne passava em Ondarroa. A minha mãe contava ‑me que, naqueles dias do pós ‑guerra, os livros eram um luxo a que a sua família não se podia dar, mas que ela arranjava sem‑ pre forma de ler na casa de Antsosolo, onde Ikerne veraneava com os avós. Se as amigas combinavam sair ao princípio da tarde, ela apresentava ‑se na residência de Antsosolo com muita antecedência e, desse modo, os avós de Ikerne pediam ‑lhe, por favor, que fosse para o salão e esperasse que a neta terminasse o almoço. Então, a minha mãe escolhia um livro da biblioteca e dedicava essa meia hora à leitura.

Lembro ‑me bem do dia, durante a minha época de estudante universitário, em que Ikerne, acompanhada pela mãe, Karmele Urresti, nos fez uma visita na nossa casa de família em Ondarroa.

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K i r m e n U r i b e

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Ikerne conhecia a minha inclinação literária e animara a mãe a que me contasse episódios da sua vida, sabendo que eu adorava aquele tipo de histórias. Apesar da sua idade avançada, Karmele pareceu ‑me uma mulher elegante e de inteligência lúcida, mas confesso que eu, sendo naquela altura tão jovem, vivia mais preocupado com o futuro do que com o passado e a verdade é que me perdi no meio dos muitos e muitos dados, datas e nomes que Karmele mencionava. Se me recordo tão bem daquela visita, é porque agora me arrependo de não ter dedi‑cado mais curiosidade e atenção à vida extraordinária daquela mulher quando ela ainda conservava as suas plenas faculdades mentais.

Apesar de tudo, não há dúvida de que ficou gravada em mim a essência daquela conversa e, com o passar dos anos, longe de me esquecer, o meu interesse e a minha preocupação a seu respeito aumentaram, simplesmente porque compreendi que as vivências de Karmele, tudo o que lhe aconteceu, aquela época, aquele contexto, faziam também parte da minha própria história e eram subjacen‑tes à origem do que eu sou, eram a semente da minha identidade. Como se costuma dizer, não somos seres isolados, mas sim filhos do nosso tempo, da nossa educação, da nossa cultura, mas também, do mesmo modo, filhos do passado.

Há um último episódio que também tem relação com a génese deste romance. Há já alguns anos que a minha mulher me mostrou uma fotografia da equipa de futebol em que ela jogava em criança na praia durante a maré ‑baixa, como era habitual nas povoações costeiras. Uma fotografia da década de 80, e, embora ela ainda não tivesse dez anos, identifiquei ‑a imediatamente entre as colegas, com uma bola nas mãos, sorridente. Na imagem, atrás da equipa que posava na areia molhada, chamava a atenção a parede do cais, tão cheia de murais reivindicativos, uma coisa tremenda. Perguntei ‑me como fora possível termos sido tão felizes num território marcado a sangue e fogo pela tensão política.

Só em 2010 decidi escrever um livro a partir da vida de Karmele Urresti, da sua família e da sua geração. Ainda que, entretanto,

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A H o r A d e A c o r d A r m o s J u n t o s

tenha terminado e publicado outro romance, desde o momento exato em que este propósito me assaltou, durante uma viagem de comboio de Boston para Providence, não parei de dar voltas à história nem de recolher informações através de entrevistas e investigações.

Thomas Mann afirmava que para se mostrar a verdade de um acontecimento era preciso que passassem vários anos sobre os factos ou, pelo menos, que a própria sociedade tivesse evoluído o suficiente para uma nova época.

Ainda que talvez não se tenha cumprido totalmente nenhum destes dois pressupostos, sinto que a fase prévia de documentação já está concluída e que chegou a hora inadiável de, à minha maneira, reconstruir o passado.

Sim, é a vida de uma família, mas também — porque não? — a história de todo um povo.

2

Em finais de março ou princípios de abril de 1953, sempre segundo os testemunhos, Karmele Urresti foi ao colégio das Mercedárias Missionárias de Berriz pela última vez. Nesse ano, a primavera chegou tarde, como acontecia com frequência, e, depois de quase 40 dias de chuva ininterrupta, o céu, por fim, desanuviou e ficou limpo. Logo que o ténue calor do Sol dispersou a neblina matinal, o verde resplandecente dos prados apoderou ‑se de todos os recantos.

Karmele percorreu a pé o caminho da estação e, quando subia por uma das encostas, deteve ‑se por alguns instantes a contemplar a paisagem que se estendia sob o monte Oiz. Pareceu ‑lhe irreme‑diavelmente abrupta e selvagem. Entre os penhascos das lombas esfumavam ‑se as últimas nuvens de bruma, pouco a pouco, com a mesma subtileza com que a ponta de um lençol destapa um ventre nu. Procurou animar ‑se e pensou que aquele lugar talvez não fosse tão inóspito para a sua filha como imaginara.

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Entretanto, Ikerne, a sua primogénita, tinha ido passear nos arredores do convento com as restantes colegas. Saíram de manhã do edifício, atravessaram a ponte sobre o rio e depressa deixaram para trás a freira que cuidava delas, dispersando pelo monte acima. As alunas do colégio ansiavam por brincar ao ar livre, depois de um longo inverno de recreios em recinto coberto.

A silhueta preta e branca de uma segunda freira apareceu de repente num dos caminhos. Avançava para as raparigas e, a cada passo, gritava «Visitación». Ikerne sabia que a chamava a ela, mas não ligou nenhuma e continuou a divertir ‑se como se nada tivesse ouvido. «Chamo ‑me Ikerne, não Visitación», murmurou com amor‑‑próprio. «Ikerne.»

A freira alcançou ‑a, agarrou ‑a pelo ombro e informou ‑a: «Visi ta‑ ción, a tua mãe veio ver ‑te.» Mal recebeu a notícia, a rapariga correu pela ladeira abaixo o mais rapidamente que pôde e, entre a emoção e as quedas, os óculos caíram ‑lhe ao chão, sobre a erva. Através das lentes, as ervinhas pareciam do tamanho de folhas de milho.

Não via a mãe desde as férias de Natal. À felicidade pelo reencon‑ tro juntou ‑se, de súbito, a inquietação de um mau presságio, o medo de que uma visita tão inesperada e em dia de trabalho fosse devida a alguma desgraça. Morria de curiosidade. Apressou ‑se a mudar de botas e, de um salto, desceu até à sala de visitas. Não queria perder um segundo que fosse. Entrou na sala e lá estava a sua mãe à espera, esbelta, vestida de preto dos pés à cabeça. O escuro das vestes acen‑tuava a tristeza do seu olhar.

Começaram por conversar sobre a família, e Karmele falou ‑lhe dos avós e também da tia Anita, a quem Ikerne amava muito. Mais tarde, ajeitou com ternura uma madeixa loura que tapava a testa da filha e anunciou ‑lhe:

— Ikerne, não nos vamos ver durante algum tempo.— Sim, já sei, até às férias da Páscoa.— Não, mais ainda. Não encontro trabalho aqui e vou para a

Venezuela.

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— Voltamos para a Venezuela? Que bom! — exclamou Ikerne, cheia de alegria.

Tinha vivido na Venezuela na infância, apenas até aos três anos, mas ainda conservava algumas recordações agradáveis daquele país sul ‑americano: o calor, certas plantas e animais exóticos, a praia onde brincava com o pai… Da casa em Caracas, lembrava ‑se de um cão que se chamava Txino e de como, uma vez, ele mordera Txomin, o seu irmão mais novo. A mãe voltou a falar e a sua voz séria cravou‑‑se ‑lhe como uma dentada na doçura das suas lembranças.

— Não, Ikerne, não. Vou sozinha. Vocês têm de ficar cá, para já. Mas em breve nos juntaremos outra vez, a família, os quatro: os teus irmãos Txomin e Patxi, tu e eu. Até lá, escreveremos cartas. Trouxe ‑te um lápis, sobrescritos e selos.

Ikerne levantou ‑se da cadeira, zangada.— Primeiro, foi ‑se embora o aita1 e, agora, tu. Odeio ‑vos.A mãe manteve a firmeza.— O Txomin portou ‑se melhor do que tu e é mais pequeno

— repreendeu ‑a.Ikerne desatou a chorar.— Pelo menos, deixa ‑me ir ao porto de Santurtzi despedir ‑me

de ti — rogou ‑lhe entre soluços.— Isso não é possível, Ikerne.A mãe enxugou ‑lhe as lágrimas com um lenço de linho e meteu ‑lho

no bolso. Naquela noite, a filha adormeceu com a memória indelével daquele perfume no seu rosto.

Poucos dias depois, Karmele Urresti embarcou no Marqués de Comillas rumo à Venezuela. Viajava sozinha e deixava os filhos mais velhos no internato e o mais pequeno com os avós, em Ondarroa. A mãe partiu ao amanhecer e, à mesma hora que soava o apito do transatlântico, os sinos do convento repicaram, chamando a sua filha para a missa.

1 «Pai», em basco. [N. dos T.]

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Após a eucaristia, as alunas do colégio puseram ‑se em fila para receber a comunhão. Ikerne era a última. O capelão ficou estupefacto quando chegou a vez dela. A rapariga tinha colado nas lentes dos óculos os selos com a cara de Franco rabiscada e de cabeça para baixo.

— Visitación, mas que irreverência é esta? Devemos ter respeito ao caudilho.

A madre superiora aproximou ‑se e agarrou ‑lhe no braço com violência.

— Maldita rapariga! Esta vai ‑te custar caro, vais ver.

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P r i m e i r a P a r t e1 9 2 7 – 1 9 4 3

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n o i t e d e a r t i s t a s e m i B a i G a n e

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Em 2008, a Câmara Municipal de Bilbau adquiriu, para a coleção do Museu de Belas ‑Artes da cidade, um quadro do pintor Antonio Gezala que pertencera a um particular durante muito tempo.

A tela, chamada Noche de Artistas en Ibaigane e que recria uma festa realizada no palácio bilbaíno em 1927, não é muito grande, mede 90 � 85 centímetros, mas, logo no próprio dia da sua apresentação, captou o meu interesse.

O que mais sobressai na obra é o ambiente festivo associado a uma cena noturna, algo inovador porque, até então, prevaleciam as cenas diurnas no exterior, paisagens de ambientes rurais ou marítimos, e com protagonistas mais estáticos. A festa noturna que motiva o quadro, pelo contrário, decorre no próprio átrio do palácio e reproduz o ar distinto e algo louco dos anos 20. Veem ‑se convidados em todos os cantos, embora seja complicado identificar as personagens retratadas, cujos rostos são indefinidos. Os homens vestem fraque e as mulhe‑res exibem vestidos de gala curtos, na sua maioria azuis ou verdes, e mostram as costas nuas ou têm uma echarpe sobre os ombros. À sua volta, os empregados servem ‑lhes as taças oferecidas em bandejas.

Gezala reveste toda a tela com uma luz roxa, parecida com a que se reflete na água das pequenas piscinas naturais que a maré baixa cria entre as rochas. A composição pictórica segue a pauta de uma pirâ‑ mide, como se um enorme triângulo imaginário distribuísse todos

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os elementos do quadro. Nos cantos inferiores, tanto à esquerda como à direita, está um casal, e, na parte superior, a fechar o triângulo, a maquete de um veleiro de três mastros pendurada do teto. O coração da cena é ocupado por um casal em plena dança, e é para esse ponto que se dirige o olhar do espectador. O homem agita um bastão comprido com penas coloridas na ponta, vermelhas, verdes, amarelo ‑pálidas. Na cabeça, um gorro branco com uma borla, desses que eram usados para dormir, e que contrasta de forma hilariante com o fraque, e, se ainda houvesse dúvidas sobre a alegria que transmite, na cintura, por cima do fato, usa uma saia de tule cor ‑de ‑rosa. Também a mulher, de cujo vestido verde se desprende uma das alças como consequência da dança, se enfeita com um chapeuzinho com a aba descaída de lado, na testa. Dançam com entusiasmo, o corpo em movimento, a mulher com as pernas cruzadas e o homem com os joelhos arqueados, enquanto o bastão gira e gira no ar; toda a sala parece seguir o mesmo ritmo: as esca‑ das, as varandas, os candeeiros, os quadros pendurados nas paredes.

Ao que tudo indica, dançam um cakewalk, que estava na moda naquela década. Uma dança originária do Sul dos Estados Unidos, onde os escravos provenientes de África a dançavam muito bem vestidos, empunhando os seus bastões com penas às cores na ponta. Os criados vestiam ‑se de gala para zombarem dos senhores, adorna‑dos como os ricos e fazendo movimentos como uma galinha — daí o pormenor das penas. Para estes africanos, era assim que os bran‑cos caminhavam e dançavam, sem estilo, e, para imitá ‑los, surgiu esta dança chamada cakewalk. Com o passar do tempo, e tal como aconteceu muitas vezes ao longo da história, as classes abastadas apropriaram ‑se da dança e tornaram ‑na uma moda, inicialmente nos Estados Unidos, depois em cidades como Paris e Londres, e, por fim, também em Bilbau, numa festa no palácio de Ibaigane.

No fundo do quadro veem ‑se umas escadas que conduzem ao primeiro andar e que traçam uma linha diagonal na tela. Sobre as esca‑das, à esquerda, assomam ‑se em fila amigos vestidos de várias cores, cada um com o seu bastão coroado com penas, e, no lado direito,

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exatamente debaixo das escadas, vê ‑se o grupo dos músicos, elegantes, também vestidos de fraque, constituindo a orquestra de seis instru‑mentos; por ordem: o baixo, a percussão, o violino, o piano, o saxofone e, atrás do piano, quase escondido, o trompete.

Só alguns anos mais tarde soube que aquele trompetista era precisamente Txomin Letamendi Murua, um dos protagonistas deste romance.

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Karmele Urresti conheceu Txomin Letamendi em Paris, disto não há qualquer dúvida, em dezembro de 1937. Karmele tinha na altura apenas 22 anos, ao passo que Txomin já se aproximava dos 36.

Embora desconheçamos o dia exato daquele primeiro encontro, os dois aparecem já numa fotografia do grupo folclórico a que perten‑ciam e que foi tirada pelos estúdios Lipnitz ‑Ki; ela vestida de dançarina tradicional basca e ele, com levita de instrumentista de orquestra, trompetista. Faziam parte de um conjunto chamado Eresoinka, que reunia um bom número de dançarinos e músicos desterrados promovido pela embaixada cultural do governo basco. Em concreto, a fotografia pertencia à série destinada a promover os recitais pro‑gramados para os dias 18, 19, 20 e 23 de dezembro de 1937 na sala de concertos Pleyel, de Paris.

José Antonio Agirre, o presidente basco no exílio, recebera, pouco antes, um conselho decisivo de um político europeu, supostamente suíço. «Perdereis a guerra; ganhai a propaganda», tinha ‑lhe reco‑mendado ele. Para dizer a verdade, o governo basco tinha assumido, quase desde o começo da Guerra Civil, que a possibilidade de vitória era praticamente inexistente. A frente norte estava isolada e cercada. Sem aviões, não havia outra solução senão perguntar ‑se quanto mais tempo conseguiria resistir um exército popular encabeçado por sol‑dados voluntariosos.

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Se albergavam alguma esperança, esta recaía na comunidade internacional e na crença de que mais cedo ou mais tarde esta tomaria partido pela democracia, combateria e, por fim, derrotaria Franco. No entanto, esta intervenção salvadora nunca chegou. A França e o Reino Unido depressa se puseram à margem do conflito e permitiram que se consumasse o levantamento que culminou na ditadura, tudo isto apesar de a Alemanha e a Itália se terem colocado abertamente do lado franquista.

Perante tanta calamidade, quando Bilbau caiu, em junho, milhares de pessoas viram ‑se obrigadas a fugir e a atravessar a fronteira. Mas, para Aguirre, ainda restava outra forma de luta. Segundo a estratégia planeada, manteriam a resistência a partir do desterro. Difundiriam a causa basca por todo o mundo, viajariam pelo estrangeiro e conta‑riam os abusos sofridos — e, para isso, valer ‑se ‑iam do desporto e da cultura. Com esse fim propagandístico, a recém ‑criada seleção basca de futebol disputou, durante o ano de 1937, numerosos desafios em todo o continente europeu e, seguindo os mesmos passos, o grupo Eresoinka fez também uma digressão por diversos países, contando entre os seus membros com ilustres compositores, pintores, dança‑rinos, cantores e, em geral, o mais seleto da cultura basca da época. Mais de cem artistas unidos por um mesmo projeto e, entre eles, Karmele Urresti e Txomin Letamendi: ela, uma das vozes do coro; ele, trompetista da orquestra.

Nas atuações do Eresoinka intercalavam ‑se canções contem‑porâneas com temas de raiz basca. Modernidade e tradição juntas. O repertório incluía peças do labortano basco ‑francês Maurice Ravel e, talvez por esse motivo, ou simplesmente porque admiravam a sua música, todo o grupo Eresoinka acompanhou a comitiva fúnebre que se despediu do compositor no cemitério de Levallois. Apesar de Ravel ter pedido ao irmão que não se celebrasse nenhuma missa ou convo‑ casse as autoridades, organizando um enterro simples, uma multidão extraordinária juntou ‑se de forma espontânea no campo ‑santo. Ravel era um músico muito querido em Paris.

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Quando a multidão dispersou, Txomin aproximou ‑se de Karmele e, juntos, dirigiram ‑se para a campa e ficaram sozinhos diante da lápide de granito da família Ravel; assim permaneceram algum tempo, sem dizer palavra. Maurice descansava junto dos pais, no mesmo sepulcro. Karmele lembrou ‑se, então, do seu próprio pai, exilado em Larresoro, e de quem quase não recebia notícias. Txomin, em contrapartida, reparou que Ravel não se tinha casado nem tivera muita sorte no amor, talvez porque a música lhe tivesse ocupado o tempo quase todo. Ocorreu ‑lhe que talvez a solidão fosse o destino dos músicos, como, na verdade, lhe acontecia.

Tinha medo das relações longas.— Conheci Ravel — atreveu ‑se a confessar Txomin. — Estive frente

a frente com ele, como agora estou contigo.— Oh, pá, não me digas que me queres impressionar!Mas Txomin não estava a mentir a Karmele. Tinha tocado ao lado de

Maurice Ravel nove anos antes, na sede da Sociedade Filarmónica de Bilbau. Naquele dia, Ravel interpretou ao piano, perante um público rendido e acompanhado pela Orquestra Sinfónica de Bilbau, da qual Txomin fazia parte, o seguinte programa: Le Tombeau de Couperin, Alborada del gracioso, Tzigane, Melodías hebraicas e La Valse. Mas tudo aquilo fazia parte de um passado que para Txomin era demasiado remoto e difuso, e que correspondia, na verdade, a um qualquer período pré ‑bélico. Embora só tivessem decorrido alguns anos, tudo o que acontecera antes da guerra lhe parecia de outro século.

Txomin quis mudar de assunto.— Amanhã faço anos.— Também não acredito nisso…

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A família de Karmele Urresti era oriunda de Ondarroa. O seu avô, Bittor Urresti, tinha um estaleiro na povoação, talvez o maior da terra,

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onde trabalhavam cerca de 60 operários, e nenhuma outra empresa, se excetuarmos as famílias que viviam da pesca propriamente dita, dava emprego a tanta gente. Naqueles estaleiros construíam ‑se velei‑ros, barcos a vapor e barcos a remo, entre estes últimos também as célebres traineras1 utilizadas nas regatas em mar aberto e em cuja construção se devem ter especializado, apesar de os entendidos em remos da época, com alguma malícia, propagarem o boato de que as traineras de Urresti só serviam para competir com mar agitado, pois com calmaria não havia remador que as movesse.

O rio Artibai corre até à sua foz em Ondarroa por um vale estreito entre montes altos, e o seu caudal varia sensivelmente conforme a maré sobe ou baixa. No entanto, isso nunca impediu que, desde a Idade Média, se instalassem nas suas margens estaleiros contí‑guos, alguns preparados para a construção de pesqueiros de grande calado. O estaleiro da família Urresti, em particular, erguia ‑se na margem direita, num meandro, e as casas do velho porto ocupavam a margem esquerda, entre a serra e o rio, como que suspensas por trás da igreja.

Naquela época, o ofício de carpinteiro naval era passado de pais para filhos, não requeria estudos, e os escantilhões, por exemplo, eram feitos à força de pulso, sem a utilização de esquadros. Depois, penduravam os moldes de madeira fina nas vigas do teto e tiravam‑‑nas para a manufatura das diferentes peças. Cada carpinteiro tinha a sua própria caixa de ferramentas, que se herdava de geração em geração, e nela se guardava o martelo, os restantes utensílios e os pregos, tudo bem organizado e ordenado, do mais pequeno ao maior, dos preguinhos mais pequenos aos grandes pregos caibrais.

Em dois meses eram capazes de construir o casco de um barco de 20 metros de comprimento com a mesma técnica utilizada na Idade Média: em primeiro lugar, colocavam a quilha, depois erguiam a proa

1 Embarcação própria da costa cantábrica, impulsionada a remos e dedicada à pesca e, hoje, ao desporto de regatas a remo. [N. dos T.]

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e a popa, a seguir armavam todo o esqueleto de quadernas até à borda e, por último, cobriam ‑no até completar o casco. O acabamento final consistia na colocação de dois olhos na proa, uma tradição que viria, aliás, a converter ‑se na própria assinatura dos estaleiros Urresti, e que correspondia a uma antiga crença de origem fenícia segundo a qual esses olhos ajudavam os barcos a encontrar o caminho de regresso a casa. Uma vez terminada a nave, os trabalhadores celebravam com um jantar em que se reuniam todos.

Bittor Urresti enriqueceu graças à construção de cargueiros para serem utilizados durante a Primeira Guerra Mundial. Existe uma história controversa sobre um desses cargueiros e da qual se contam várias versões. A verdade é que isso nos dá uma ideia da relevância que o seu estaleiro alcançou naquele tempo. Ao que parece, tinha sido prevista a presença do deputado ‑geral da Biscaia para o lançamento ao mar do Antsosolo, supostamente o maior barco, até então, de todos os construídos em madeira nos estaleiros do Norte. Mas, como o trajeto entre Bilbau e Ondarroa era feito por uma estrada dos diabos, cheia de curvas sinuosas, não houve forma de ele chegar a tempo. Entretanto, o calado do barco era tão proeminente que era urgente que o lançamento fosse feito durante a preia ‑mar, e, por se juntar a isto o motivo de se ter levantado um pouco de vento sul favorável, o cargueiro acabou por ser lançado ao mar sem a presença do político. O mandatário apareceu a destempo na povoação, quando a multidão, alheia à sua presença, já se amontoava no muro do adro à passagem do navio e apontava para a bandeira às cores num dos mastros, despreocupada e expectante. O dignitário regressou por onde viera e o caminho pareceu ‑lhe ser ainda mais tortuoso, ao ponto de pro‑meter, segundo se diz, que não voltaria mais àquela vila ondarrense.

A verdade é que os costeiros nunca se destacaram pela sua vene‑ração às autoridades políticas.

As duas versões conhecidas divergem sobre o destino final daquele grande cargueiro. Os descrentes e ressentidos defendem que nunca cumpriu a sua função, pois a guerra acabou quando ele

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iniciava a navegação, afirmando que ficou em Bilbau, atracado e sem outro fim que não o de ser contentor das ingentes quantida‑des de lixo acumulado pelo rio Nervión. Os últimos trabalhadores dos estaleiros, em compensação, asseguraram ‑me que, na verdade, o cargueiro sulcou os oceanos ao serviço dos Aliados, até que os submarinos alemães o afundaram em águas do Atlântico.

6

O pai de Karmele Urresti, Francisco, era conhecido na aldeia por Rezingão, e a verdade é que nunca ficou esclarecido se o alcunhavam assim devido ao seu carácter azedo ou se, pelo contrário, isso se devia à sua afabilidade, pois as alcunhas quase sempre são postas com ironia ou segundas intenções. A respeito dos estaleiros, depressa con‑seguiu um acordo familiar segundo o qual o seu irmão se dedicaria à construção dos cascos e ele se encarregaria do fabrico das máquinas a vapor — já que ele tinha estudado para maquinista — numa oficina que ele próprio adaptou para o efeito, num terreno próximo do riacho Antsosolo. Este ribeiro corria pelo monte em direção ao rio Artibai, pela encosta que se erguia sobre os estaleiros Urresti, uma paisagem sombria atravessada pela estrada para Mutriku. Tal como o pai fizera com o cargueiro, também o filho pôs o nome de Antsosolo a um dos seus barcos de pesca e Jontxu ao outro.

Francisco, que usava sempre boina e uns óculos redondos, pertencia a essa categoria de homens a quem, por se saberem dotados de uma habilidade especial, lhes agradava imenso o trabalho com as mãos. Além disso, era um homem caseiro, já que a sua rotina discorria entre a oficina e a habitação, e adorava aqueles momentos familiares em que conversava com os filhos e lhes contava, com a ajuda de um mapa ‑múndi, histórias sobre as suas viagens a África, os riscos que tinha corrido na estiva carregando as pesadas cargas dos navios, ameaçado por crocodilos e animais selvagens.

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Casou ‑se duas vezes. A primeira com Dolores Iturrioz e tiveram quatro filhos: Joseba, Josu, Karmele e Ana. Infelizmente, Dolores adoeceu, contagiada pela gripe de 1918, e morreu de forma súbita. Uma vez superado o luto, Francisco assumiu que precisava de uma nova companheira e convenceu ‑se de que não encontraria outra melhor do que a irmã da sua falecida esposa, que se chamava Carmen, pedindo ‑a em casamento, algo lícito e, até certo ponto, habitual naquela época. Apesar de se ter mudado para San Sebastian, onde trabalhava como professora, e mesmo tendo já um noivo oficial com quem pas‑seava nos jardins da cidade, Carmen terminou o noivado, aceitou a proposta do cunhado e regressou para a sua terra natal, para o modo de vida de sempre, onde cuidou dos quatro filhos da irmã. Com o passar dos anos, conseguiu amar o marido e concebeu dois novos rebentos: Jon e Gaizka. Os seis irmãos tiveram os mesmos apelidos.

Após as segundas núpcias, Francisco apercebeu ‑se de que a casa era pequena e precisavam de um espaço maior, pelo que abandona‑ ram a habitação do porto e construíram uma nova, mesmo por cima da oficina onde ele trabalhava no fabrico de caldeiras e máquinas a vapor, junto ao ribeiro Antsosolo. Além da nova morada, ergueu uma escola ao lado da oficina para que a sua mulher pudesse dar aulas e, assim, continuar a sua profissão de professora. Para a varanda do novo edifício, forjou com as suas próprias mãos um varandim com aspeto de ikurriña2, um gesto com o qual mostrava o seu desejo de que naquela escola se ensinassem as disciplinas em euskera, mas o rebentamento da Guerra Civil gorou os seus sonhos. Carmen nunca daria aulas na língua basca.

Francisco sentia ‑se nacionalista desde jovem. Ao que parece, assistiu a um dos comícios que o fundador do nacionalismo basco, Sabino Arana, fez numa pequena praça de Ondarroa, e, a partir desse momento, converteu ‑se num dos seus fervorosos seguidores. O político passava parte dos verões em Lekeitio e, no dia em que foi a Ondarroa para prosseguir com a sua «missão», o seu discurso público

2 Bandeira basca. [N. dos T.]

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entrou tão fundo em Francisco que este se sentiu tão identificado com o que ouvira que teve um verdadeiro despertar nacional. Apesar de a maior parte da mitologia de Arana se basear num imaginário próprio de uma nação mais montanhosa do que marítima, os seus primeiros seguidores eram oriundos de Bilbau e de povoações costeiras próximas. Com o passar do tempo, Carmen secundou o marido e converteu ‑se na presidente da Associação de Mulheres Nacionalistas de Ondarroa, onde chegou a participar como oradora em diversos comícios.

Francisco e Carmen esforçaram ‑se para que os seus seis filhos estudassem um ofício e, com exceção de Anita, todos eles o fizeram.

O mais velho, Joseba, entrou no seminário, primeiro em Orduña e depois em Valladolid.

Josu, a princípio, também seguiu os passos do primogénito, mas acabou por se fartar dos padres e voltou para casa, onde se dedi‑cou a ajudar o pai na oficina.

Karmele formou ‑se em enfermagem na Universidade de Valladolid e depressa encontrou trabalho no hospital de Basurto, em Bilbau. Naquela altura, só as freiras é que cuidavam dos doentes, e Karmele passou a ser uma das primeiras enfermeiras profissionais do centro, o que despertou os receios das religiosas.

Anita, porém, não estudou nada. Na povoação achavam estranho que ela fosse a única dos filhos de Francisco a não fazer qualquer curso. «Vais ter de lhe montar uma loja», advertiam ‑lhe, ao que o pai replicava: «Uma loja para a Anita? Ela tem um coração tão grande e tão bom que até o balcão ela oferecia, antes de vender fosse o que fosse.» Carmen e Francisco agradeceram o facto de Anita ter ficado com eles e os ajudar na casa.

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A festa imortalizada pelo pintor Gezala realizou ‑se no palácio de Ibaigane, residência do empresário Ramón Sota, na noite de 26 de fevereiro

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de 1927, como se pode observar numa folha de almanaque caída no chão, na parte de baixo do quadro.

Por aquela altura, Ramón Sota era um dos magnatas mais dis‑tintos e ricos de toda a Europa — as suas empresas faturavam por ano uma quantia superior ao Orçamento Geral do Estado —, como o demonstra o facto de o rei de Inglaterra o ter nomeado lord devido aos favores e às diligências efetuadas em benefício do Reino Unido, e também graças ao facto de Ramón ter cedido durante a Grande Guerra (é evidente que em troca do seu correspondente aluguer) boa parte da sua frota, da qual o Exército do Reich afundou cerca de uma dúzia de barcos. Os negócios dos Sota eram muito diversos, uma árvore com muitos ramos, entre os quais, minas, estaleiros e seguradoras, mas o tronco principal era formado pela companhia naval que sulcava mares e oceanos e unia a Europa à América, conhecida por Sota y Aznar.

O patriarca dos Sota também se destacou pelo seu altruísmo. Financiou diferentes projetos relacionados com o incipiente desper‑tar nacionalista e com a cultura basca em geral, e entre eles cabe destacar a revista Hermes, uma publicação de grande qualidade e na qual colaboraram escritores da dimensão de Ortega y Gasset, Rabindranath Tagore e Ezra Pound, junto com poetas espanhóis da Geração de 27 e outros pensadores, pintores e artistas bascos insignes da época.

Sota gostava de batizar os seus navios com nomes em euskera, mas, como as suas múltiplas ocupações absorviam quase todo o seu tempo, encarregou desta tarefa o seu amigo Resurrección María Azkue, que seria, desde a sua fundação até à sua morte, presidente da Euskaltzaindia, a Real Academia da Língua Basca, uma instituição também impulsionada pelo magnata. A verdade é que, para cumprir a sua enfadonha missão, o eminente acadé‑mico não teve uma ideia melhor do que aproveitar os nomes das montanhas bascas, tão numerosas como abundante era a frota dos Sota.

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O palácio de Ibaigane, desenhado no ano de 1900 seguindo o estilo basco, misturava na sua apresentação o ar dos baserris3 e do carác‑ter distinto das casas ‑torre medievais. O caminho que atravessava o jardim da quinta terminava nas escadas que dão acesso ao átrio e, uma vez passada a porta principal, tinha ‑se diretamente acesso ao pátio coberto, com a sua escadaria em madeira nobre no meio que conduzia aos seus 14 quartos, sem contar com os salões, a sala de bilhar ou a capela com sacristia e órgão. O célebre músico Jesús Guridi costumava tocar para os Sota ao domingo e até compôs algumas das suas peças mais notáveis durante as suas longas permanências como convidado de honra.

Ramón Sota teve 11 filhos e, de todos eles, o mais rebelde foi, sem dúvida, o penúltimo, chamado Manu, um homem atraente além de indomável, sempre bem vestido e de sorriso sedutor. Estudou Humanidades em Salamanca e Cambridge, foi professor durante algum tempo e, tendo regressado a Bilbau, converteu ‑se num dos maiores impulsionadores da vida cultural da cidade. De ideias mais radicais do que as do pai, independentista, não teve pejo em escrever um telegrama ao presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, em que pedia sem rodeios a independência de Euskal Herria4 em virtude dos célebres 14 pontos em que o próprio Wilson defendera o seu reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos, e que legitimaram os estados emergentes que naquela época ilumi‑navam a nova Europa.

Em relação aos negócios familiares, também não são claros o seu cargo e a sua função; parece que trabalhava ocasionalmente como secretário e como tradutor. Porventura conhecedor da sua falta de disciplina ou então porque se apercebera da sua oratória enganadora,

3 Grande casa rural de construção tradicional, sobretudo no País Basco e em Navarra, na qual podem viver todos os membros da família e, normalmente, dedicar ‑se à agropecuária. [N. dos T.]

4 «País Basco», em euskera (ou língua basca). [N. dos T.]

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o pai encomendou ‑lhe tarefas de relações públicas, e não há dúvida de que acertou em cheio, pois, se uma coisa não faltava a Manu Sota, era carisma. Por exemplo, era capaz de pedir emprestado o barco preferido do pai, o Goizeko Izarra, e ir à Feira de Sevilha navegando pelo Guadalquivir acima, ancorar o navio na margem e oferecer um acolhimento magnânimo às diferentes personalidades do evento. Mas, se houve uma coisa em que pôs todo o seu empenho e ganhou merecida fama em Bilbau, foi nas festas que organizava para o seu círculo de amizades, como os festejos que incluíam concursos de porteiros de hotel, em que os seus amigos e ele se vestiam de moços de recados, mandavam parar os táxis, transportavam as malas de um lado para o outro e rivalizavam em conseguir dos hóspedes os caprichos mais esplendorosos: rosas, champanhe ou marisco. Noutras ocasiões, representavam sessões de circo e mascaravam‑ ‑se de acrobatas, palhaços, domadores ou, até, de leão.

Foi Manu Sota, quem senão ele?, que organizou a célebre festa que deu origem ao quadro de Gezala; uma festa, aliás, sem outro objetivo conhecido que o de mostrar o seu agradecimento aos participantes de uma cerimónia realizada no hotel Carlton apenas cinco dias antes, e na qual se comemorava o décimo aniversário da morte do pintor Adolfo Guiard. Aquele encontro deixara um sabor tão bom que, com o desejo de prolongar o seu espírito, Manu improvisou um novo festejo para os mesmos artistas, mas desta vez na sua própria casa, e aproveitou o facto de Antonio Gezala estar entre os convidados para lhe encomendar o quadro Noche de Artistas en Ibaigane. É claro que não era a primeira vez que o pintor recebia uma encomenda de Manu Sota, um homem tão polifacetado que, por mero gosto pelo teatro, escreveu várias peças de cuja cenografia se ocupou também Gezala, que tinha igualmente dese‑nhado o símbolo da companhia naval familiar: a proa de um barco que sulca os mares abrindo a superfície da água como a lâmina de uma faca.

Gezala também pintou um retrato muito especial da irmã mais nova de Manu. Não era, com efeito, um retrato clássico, mas sim a representação em movimento de uma Begoña de la Sota muito jovem,

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teria na altura uns 23 anos, vestida com uma minissaia, gabardina e chapela5, as luvas ainda calçadas, no momento exato em que chegava ao hotel Carlton, já dentro da porta giratória. O ponto de vista do pin‑tor situa ‑se no interior do hotel, e as folhas da porta aparentemente seccionam a figura da mulher, mas ao mesmo tempo projetam ‑na em movimento, como se avançasse, um efeito semelhante ao de alguns quadros de Marcel Duchamp em que se mostra o corpo dividido de uma só pessoa e se ressalta assim a fugacidade do momento. A imagem é de uma fragilidade esmagadora; o espectador percebe que em breve a jovem Begoña abandonará aquele espaço, sairá da roda giratória e entrará no hall do hotel. Gezala tenta captar esse instante fugidio, a passagem inexorável do tempo, a maneira como tudo desaparece irremediavelmente e se desvanece a cada passo.

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Se Manu Sota, um tubarão que jogava golfe e praticava esgrima, se fez amigo de Txomin Letamendi, o humilde filho de um latoeiro, só pode ter sido graças à música. Que outra coisa podia uni ‑los? Txomin foi salvo pela música. A mãe divorciou ‑se quando ele e os irmãos ainda eram pequenos, abriu uma padaria no popular bairro bilbaíno de Castaños, e teve de arcar com a família sozinha, quase sem ajuda do ex ‑marido, que abandonou os filhos e deu poucos sinais de vida. Por isso foi a música que salvou Txomin, não há dúvida. Desde muito novo obteve um lugar na Orquestra Sinfónica de Bilbau e, além dos concertos clássicos, à noite atuava com a sua banda em cafés da cidade e arredores, ou tocava nas festas que se organizavam até ao amanhecer no seleto Club Náutico de Getxo, onde se reuniam os meninos ricos durante aqueles loucos e musicais anos vinte, e onde conheceu e tra‑ vou amizade com Manu Sota.

5 Típica boina basca. [N. dos T.]

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O grupo onde Txomin tocava trompete chamava ‑se Elola Band (assim mo deu a saber a sua filha Ikerne), e a marca do seu instru‑mento era Conn Silver Trumpet, 1927 C.G. Conn Ltd., provavelmente adqui‑ rido, segundo me contaram, durante uma viagem a Nova Iorque. Num primeiro momento imaginei que ele teria embarcado nal‑ gum dos navios dos Sota, talvez juntamente com o próprio Manu, num desses périplos organizados entre amigos, mas verifiquei que nos vistos de entrada nos Estados Unidos não figurava o nome de Manu Sota senão em 1938, ao passo que o visto de Txomin Letamendi certificava a sua chegada com a data de 27 de março de 1927, por acaso apenas um mês depois da festa da «noite de artistas em Ibaigane», segundo se recolhe na mencionada data na base da tela, 26 de fevereiro de 1927.

O seu nome nos documentos aparece entre estes:

Antolín Elola AlbisuPablo Elola AlbisuUbaldo Giménez CastroJulián Reina GrasDomingo Letamendi MuruaJacinto López

Os nomes de Antolín Elola e Pablo Elola fizeram com que me apercebesse de que se tratava efetivamente da Elola Band. Eram os mes‑ mos músicos que no quadro tocavam debaixo das escadas do átrio. Os papéis testemunham que a banda chegou a Nova Iorque num barco chamado Alfonso XII, que não pertencia à frota dos Sota, mas sim à da concorrência, e que tinha zarpado de Bilbau a 3 de março, 24 dias antes. Os seus nomes figuram entre os dos membros da tripulação, e a sua categoria também é pormenorizada em inglês: musician. Portanto, a Elola Band, provavelmente contratada a troco do cruzeiro grátis, amenizou os serões dos passageiros da primeira classe durante a travessia transatlântica.

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Eu tinha ouvido dizer que, uma vez em Nova Iorque, Txomin Letmamendi atuara com o seu grupo no Carnegie Hall e que até participara como solista num dos seus certames musicais baseado na interpretação improvisada de polcas. Não obstante, quando escrevi para o Carnegie Hall a fim de recolher mais informação, um homem muito amável chamado Rob Hudson respondeu ‑me dizendo que o apelido Letamendi não constava nos seus arquivos e que não havia o menor rasto dos participantes naqueles longínquos concursos. No entanto, o que ele realmente me garantiu foi o nome da compa‑nhia que os organizava, a marca Conn, pelo que podia muito bem ter acontecido que Txomin tivesse ganhado o seu trompete como prémio num daqueles certames, em vez de o ter comprado.

Seja como for, Letamendi teve sempre consigo aquele apreciado instrumento, um trompete Conn, durante o resto da sua vida.

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A partir de determinada idade, se uma pessoa regressa às paisa‑ gens da sua infância, apercebe ‑se imediatamente de que, na reali‑ dade, tudo era mais pequeno do que se recorda, o espaço que noutros tempos pareceu tão extenso, perante os olhos maduros fica reduzido a poucos metros insignificantes. De igual modo, recrio agora o uni‑verso de Karmele e constato como ele era reduzido: o estaleiro Urresti à beira do rio Artibai; detrás do estaleiro, a estrada para Mutriku traçada na encosta e junto da qual se situava a conserveira de peixe Bloem; e mais acima da estrada, subindo o monte, a casa de Antsosolo e a escola de Carmen. Todo um universo em poucos passos, assim era limitado o pequeno mundo de Karmele.

Em nova, Karmele gostava de passear com a sua irmã Anita encosta acima, pela estrada, até à atalaia chamada Arrigorri. Este era o lugar preferido do seu pai, de onde observava a entrada dos barcos de pesca na baía. Mas, a meio do caminho para a atalaia, de frente

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para um pequeno ribeiro chamado Txori ‑erreka, havia um único banco de pedra junto ao peitoril que oferecia umas vistas precio‑sas sobre a povoação. Ao entardecer, não havia melhor panorama de Ondarroa. O estaleiro Urresti, as três pontes sobre o rio e o Sol assomando ‑se no regaço do monte Oiz. Em frente, o lado este da fachada da igreja coroada pelas suas esculturas de pedra, que se viam desse banco melhor do que de qualquer outro sítio. Por cima da rosácea central, sobre uma balaustrada de arenito, alinham ‑se em fila, como se se despedissem das embarcações que saem para o mar, 15 figuras medievais: o rei, a rainha, nobres, músicos… Esculturas muito diferentes das gárgulas da igreja, cujo aspeto terrorífico se inspirava nos bestiários da Idade Média. A décima primeira estátua, situada quase na esquina direita, representa uma ama de leite gorda, baixa e de mamas grandes. A sua inclusão entre esta espécie de «apóstolos civis» responde a um motivo de troça, algo usual entre os artistas do século xv, como acontece, por exemplo, nos quadros de Bruegel, o Velho, nos quais os aldeões são desenhados de forma grotesca para regozijo da nobreza. De qualquer modo, vejam só como são as coi‑sas, ama de leite era a figura preferida dos pescadores da povoação, a mais bela e nada cómica, e a ela suplicavam amparo e abundância nas capturas, talvez porque a sua naturalidade despertasse neles mais confiança do que a presumível magnificência de clérigos e nobres.

— Sabes porque é que gosto tanto deste sítio? — deixou cair Anita, sentada ao lado de Karmele no banco de pedra. — Porque a nossa mãe nos amamentava aqui mesmo.

— E como é que sabes isso?— Porque me lembro.— Pois, sim! Como é que te podes lembrar dessas coisas?Karmele não acreditava naquelas histórias. Tal como o pai, era

uma mulher cética por natureza e de inteligência científica, mas, apesar de tudo, quando Anita falava com aquela convicção tão própria dela, tinha um assomo de dúvida. Eram tão diferentes, as irmãs! Karmele era bonita, esbelta e com grande confiança em si mesma.

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Anita, pelo contrário, era compassiva, alegre e vesga de um olho, e aquele estrabismo, somado à sua bondade, levava a gostarem mais dela.

Entre as pedras do banco apareceu uma lagartixa. Karmele apanhou ‑a habilmente e, enquanto a segurava entre as mãos, pro‑ pôs à irmã:

— Tu, que gostas tanto de histórias, de certeza que não sabes o que acontece se meteres uma lagartixa no peito?

— O que é que acontece? — atemorizou ‑se Anita.— Pois, acontece que te saem moedas pela tripa. Vais ver, anda,

vamos experimentar…Anita levantou ‑se do banco e saiu disparada a caminho de casa,

enquanto Karmele a perseguia a rir ‑se, com a lagartixa nas mãos.

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Os passos sigilosos de alguém que se aproximava soaram como o murmúrio de uma lagartixa assustada à procura de uma fenda, enquanto Karmele e Txomin ainda tinham o olhar perdido na campa de Maurice Ravel, absortos, cada um no seu abismo.

Eram os passos de Manu Sota. Este pousou as mãos nos ombros do jovem casal e avisou ‑os:

— It’s time to go. Temos de voltar para Paris.

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