outro facto que me surpreende (ou não) é o escasso...

12
A estupidez humana é, para muitos, um fascinante objecto de estudo. Tão fascinante que são raros os livros e teorias sobre ela. Interessa não apenas a grandes pensadores. Interessa a qualquer um, por isso cativa sujeitos tão distintos como Albert Einstein («Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, relativamente ao universo, ainda não tenho a certeza absoluta.»), Umberto Eco, Anton LaVey («É uma pena que a estupidez não seja dolorosa.»), Albert Camus ou George Carlin («Pensa quão estúpida a pessoa média é e repara que metade das pessoas ainda são mais estúpidas.»). Por que motivo somos tão estúpidos? Deveremos continuar a sê-lo? Como reagir de outro modo? Existem ainda diversas perguntas por responder, embora as teorias abundem. A Filosofia é um pouco assim: pergunta-se muito, responde-se ainda mais e ainda acabamos mais confusos. Outro facto que me surpreende (ou não) é o escasso material dedicado ao estudo de um tema tão importante como este. Existem, nas universidades, departamentos para analisar as complexidades matemáticas, os movimentos das formigas do Amazonas, a História medieval da ilha de Perima, mas nunca soube de uma Fundação ou Conselho Consultivo que dê apoio aos estudos da Estupidologia. Giancarlo Livraghi, 1996 Existe uma teoria, algo conhecida, sobre a estupidez humana: a do bem- humorado Carlo Cipolla, historiador económico que nasceu em Pavia 1 em 1922 e que faleceu em 2000. «As Leis Fundamentais da Estupidez Humana» foi um ensaio humorístico publicado em 1988 no livro Allegro ma non troppo, juntamente com outro texto do mesmo género («O papel das especiarias (e o da pimenta em particular) no desenvolvimento económico da Idade Média»). Pretendo com este artigo traduzir alguns excertos, resumi-la ao seu essencial (apesar de serem apenas algumas páginas de fácil leitura, que não li português, embora exista uma tradução da Celta) e comentá-la, de acordo com o conceito de estupidez de Cipolla, não conforme as minhas definições (que apresentarei de seguida). 1 A cidade italiana do ditado «Roma e Pavia não se fizeram em um dia», não a freguesia alentejana (portuguesa).

Upload: truongmien

Post on 10-Nov-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A estupidez humana é, para muitos, um fascinante objecto de estudo. Tão

fascinante que são raros os livros e teorias sobre ela. Interessa não apenas a grandes

pensadores. Interessa a qualquer um, por isso cativa sujeitos tão distintos como

Albert Einstein («Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas,

relativamente ao universo, ainda não tenho a certeza absoluta.»), Umberto Eco, Anton

LaVey («É uma pena que a estupidez não seja dolorosa.»), Albert Camus ou George

Carlin («Pensa quão estúpida a pessoa média é e repara que metade das pessoas ainda

são mais estúpidas.»).

Por que motivo somos tão estúpidos? Deveremos continuar a sê-lo? Como reagir de

outro modo? Existem ainda diversas perguntas por responder, embora as teorias abundem.

A Filosofia é um pouco assim: pergunta-se muito, responde-se ainda mais e ainda acabamos

mais confusos.

Outro facto que me surpreende (ou não) é o escasso material dedicado ao

estudo de um tema tão importante como este. Existem, nas universidades,

departamentos para analisar as complexidades matemáticas, os movimentos das

formigas do Amazonas, a História medieval da ilha de Perima, mas nunca soube

de uma Fundação ou Conselho Consultivo que dê apoio aos estudos da

Estupidologia.

Giancarlo Livraghi, 1996

Existe uma teoria, algo conhecida, sobre a estupidez humana: a do bem-

humorado Carlo Cipolla, historiador económico que nasceu em Pavia1 em 1922 e que

faleceu em 2000. «As Leis Fundamentais da Estupidez Humana» foi um ensaio

humorístico publicado em 1988 no livro Allegro ma non troppo, juntamente com outro

texto do mesmo género («O papel das especiarias (e o da pimenta em particular) no

desenvolvimento económico da Idade Média»).

Pretendo com este artigo traduzir alguns excertos, resumi-la ao seu essencial (apesar

de serem apenas algumas páginas de fácil leitura, que não li português, embora exista

uma tradução da Celta) e comentá-la, de acordo com o conceito de estupidez de Cipolla, não

conforme as minhas definições (que apresentarei de seguida).

1 A cidade italiana do ditado «Roma e Pavia não se fizeram em um dia», não a freguesia alentejana (portuguesa).

Farei também referência a dois dos comentários de Giancarlo Livraghi à teoria de

Cipolla, escritos em 1996 (contemplados no livro Il potere della stupidità, com edições em

italiano, inglês e espanhol).

Antes disso, porém, desejo fazer uma introdução ao tópico apresentando a minha

teoria sobre a estupidez humana.

Para os génios, os estúpidos são estúpidos. Para os estúpidos, os génios são

estúpidos. Boas premissas. Mas o que define um estúpido? E um génio? Não existem

definições definitivas nem verdades absolutas.

Para mim, existem dois modos opostos de pensar em termos de resultados, do que

deles resulta, pelo que não se excluem mutuamente:

todos somos estúpidos, na medida em que cometemos erros básicos e

inevitáveis, que nos frustram quando damos conta deles;

ninguém é estúpido, pois, mesmo aqueles que eventualmente

consideremos estúpidos, têm mais conhecimentos e

habilidades nalguma área da vida do que nós próprios.

A existência e o grau de estupidez ou inteligência de alguém são discutíveis, tanto

pelo que já referi noutros artigos tanto porque existe justamente sempre alguém que,

noutro domínio, sabe ou faz mais do que nós. Apesar tudo isto, seguirei a linha do autor e

considerarei que, de facto, existem estúpidos, assim classificados, pela definição do italiano,

segundo os resultados dos seus próprios actos.

Apresento uma possível teoria.

Quando classificamos um acto como sendo estúpido, quer dizer que não

encontramos qualquer razão de ser para o mesmo. A nosso ver, tal atitude

simplesmente não deveria ter existido. O que não sabemos é que existem, de facto,

motivos que conduziram àquela acção. Só que o nosso cérebro optou por seguir

um atalho, com o propósito de não deixar que nos confundíssemos ou que nos focássemos

naquilo que não é realmente importante. Afinal, nós é que somos estúpidos (não os

outros) quando apontamos que os (actos de) outros são estúpidos. Em boa verdade, se

cada um, individualmente, é estúpido, então todos ou a grande maioria (apenas os que

consideram os actos dos outros estúpidos) seriam estúpidos e, nesse sentido, outros

também seriam estúpidos para além de nós.

Então, por que é que não encontramos razões para determinado

comportamento? Falta de informação essencial, as nossas limitações,

os enviesamentos que nos são característicos, por exemplo. Ademais, é frequente, se não

mesmo constante, pensarmos nos outros como um espelho de nós mesmos, inseridos nas

mesmas circunstâncias, a todos os níveis, que nós. E não estão.

Eu, precisamente por que o sei, tenho dificuldade em julgar alguém. É possível ou

até provável que, na mesma situação, perante as mesmas condicionantes, eu

fizesse exactamente o mesmo que esse sujeito.

É mais fácil criticar sem conhecimento de causa. É por isso que muita gente quer

prisão perpétua ou de morte para, digamos, violadores, sem fazerem o mínimo esforço para

compreenderem o que os leva a agir desse modo (embora, é certo, nem sempre seja possível

apurar os mais ínfimos detalhes de determinada ocorrência específica). Não será, esse sim,

um acto estúpido? Segundo o que acabei de referir, não: atribuo a causa à preguiça e aos

nossos enviesamentos biológicos e culturais.

Com um pensamento menos filosófico e mais autocentrado, com sustento na prática,

apontamos uma imperfeição à teoria anterior. Então porque é que consideramos os

nossos próprios actos estúpidos? Supostamente, ninguém nos conhece melhor

do que nós, seja a nível de informação seja a nível de condicionantes. A explicação

continua a mesma: não compreendemos por que motivo fizemos o que fizemos.

Talvez porque não associámos, por exemplo, um conjunto de pequenos factores,

embora esses dados estejam ao nosso alcance (caso a memória não nos falhe). Talvez

possamos atribuir este facto ao subconsciente.

Por outro lado, podemos encontrar-nos perante um caso de dissonância

cognitiva, ou seja, perante sentimentos subjectivos suscitados num indivíduo face a uma

situação de ambivalência e contradição em relação aos valores e identidade desse indivíduo.

Ocorre muito com os preconceitos. Por um lado, pode ser legítimo, por qualquer razão ou

conjunto de razões, que os tenhamos. Os nossos sentimentos e enviesamentos podem-nos

levar a eles. Contudo, por outro, no plano do pensamento filosófico, parece irracional e até

desumano tê-los.

Mesmo que considere esta teoria estúpida, existirão razões que a sustentem, ainda

que não as encontremos.

Assim, ou consideramos que nós é que somos estúpidos (e, nesse caso, todos

são estúpidos), ou que cada um de nós apenas tem as suas limitações naturais, o

que não significa ser-se estúpido. Como ilação, a segunda hipótese parece-me melhor.

Em primeiro lugar, se optarmos pela minha primeira definição, a verdade é que a

estupidez funciona. Embora não se tenha justificado, Cipolla iniciou comentando que

a Humanidade sempre se encontrou numa situação deplorável, devido ao modo

de como foi organizada desde o seu começo. É legítimo supor que, efectivamente, sempre

fomos estúpidos. Mesmo assim, já somos mais de seis mil milhões. A nível reprodutivo,

isto é, no que ao objectivo primário da nossa existência, esta nossa versão estupidificada

funciona. Aliás, por vezes, pensar demasiado pode arruinar, entre tantas outras coisas,

os nossos planos de acasalamento e reprodução. Somente perplexos com este

raciocínio apenas porque, culturalmente, nos ensinam que ser inteligente é que é

importante. Os factos apontam para que, de facto, o mais importante é o sexo.

Em segundo, a estupidez nem sequer existe (segunda definição), pois, na

realidade, todos os actos têm explicação racional, mesmo que nós não a encontremos,

logo não são estúpidos.

Por muito alta que seja a estimativa que se faça da estupidez humana,

faltarão sempre estúpidos, repetitiva e recorrentemente, porque:

a) pessoas que se consideraram racionais e inteligentes no

passado revelam-se, de repente, inequívoca e irremediavelmente, estúpidas;

b) no quotidiano, com una monotonia incessante, indivíduos

obstinadamente estúpidos, que aparecem inesperadamente, nos sítios e

momentos menos oportunos, dificultam a nossa actividade.

A Primeira Lei Fundamental impede a atribuição de um valor numérico

à percentagem de pessoas estúpidas no total da população: qualquer

estimativa seria uma subestimação. Por isso, [...] essa percentagem

será representada por €.

Carlo Cipolla, 1988

O primeiro argumento é fácil de entender.

Contudo, parece-me que o segundo não está bem explícito, pelo que passo a

descrever o que subentendi das palavras do autor. A nossa estimativa para a percentagem

de estúpidos baseia-se no valor que estimamos apenas para as pessoas que

conhecemos. A partir daí, generalizamos esse valor. No entanto, do facto de

encontrarmos indivíduos menos inteligentes em todo o lado resulta que aqueles que

conhecemos possam ser uma excepção relativamente à população não-estúpida.

Além disso, acrescento eu, pessoas estúpidas relacionam-se com pessoas

estúpidas e não se dão conta de que são estúpidas (o próprio autor também o

defenderá mais tarde). Este poderia ser um terceiro argumento que complementaria os

anteriores.

Mais: seria 100% uma subestimação? Não me parece, pois é o valor máximo que

a variável pode tomar.

Sintetizando: concordo, em geral, embora não se verifique para todos os

casos (quando cremos que a percentagem de estúpidos corresponde ao todo, é impossível

que o valor esteja deflacionado).

Tenho a firme convicção, sustentada por anos de observação e

experimentação, de que não somos iguais - alguns são estúpidos e outros

não -, e de que a diferença não é determinada por forças e valores

culturais, mas sim por uma acção biogenética da inescrutável Mãe

Natureza. [...] [Porém, não pretendo] reintroduzir discriminações de classe ou

raça. [...]

É mais do que sabido que a Natureza, de modo misterioso, actua de tal

modo que mantém a frequência relativa de certos fenómenos naturais sempre

constante. Por exemplo, [...] [em todos os casos conhecidos] a proporção rapaz-

rapariga entre os recém-nascidos é constante, com um ligeiro predomínio dos

homens. Não sabemos como é que ela obtém este resultado extraordinário. [...]

[C]onsegue sempre actuar de modo a que a frequência da probabilidade € seja

sempre igual, onde quer que seja, independentemente da dimensão do grupo

[...]. [...]

Podemos classificar a população de uma universidade em quatro grandes

grupos: auxiliares, empregados, alunos e corpo docente. Sempre que se analisou o

grupo dos auxiliares encontrou-se uma percentagem € de estúpidos. Como o valor

era mais alto do que se esperava (Primeira Lei Fundamental), julgou-se, à

partida, que era devido à pobreza das famílias de onde provinham e à sua escassa

educação. Contudo, encontrou-se a mesma percentagem entre empregados e

alunos. Os resultados do corpo docente foram mais impressionantes. Tanto numa

grande universidade como numa pequena, numa escola famosa ou desconhecida,

encontrou-se a mesma percentagem € de estúpidos no seio dos professores da

instituição. Tal foi a surpresa que se resolveu estender as investigações a um

grupo especialmente seleccionado, uma autêntica elite, aos galardoados com o

prémio Nobel. O resultado confirmou os poderes supremos da Natureza:

verificava-se a percentagem € de estúpidos.

Carlo Cipolla, 1988

No meu entender, o historiador terá partido do facto de a estupidez ser

independente da classe social ou da escolaridade de cada um. Acabou, no entanto,

por incorrer numa generalização precipitada.

A asserção vai contra as teorias das correntes da Psicologia que considero

mais acertadas. Não podemos ser "fundamentalistas" e dizer que somos resultado ou só

de factores biológicos e genéticos ou só do nosso ambiente cultural. Entre ambos,

existe uma combinação dissociável.

Ademais, o autor sustenta-se numa base alegadamente científica, que não

pude comprovar, se é que tal é possível. Terá ele realizado o estudo a que se refere? Será,

de facto, a percentagem de nados-vivos do sexo masculino igual em todo o mundo (o que, à

partida, parece improvável)? Se é verdadeiro que este pode ser apenas um texto irónico de

intervenção social, também o é o facto de esta ter sido uma das primeiras teorias sobre o

assunto e, portanto, tida, de uma maneira ou outra, como referência.

Portanto, simplesmente não consigo concordar com a Segunda Lei Fundamental.

A Terceira Lei Fundamental pressupõe, ainda que não o enuncie

explicitamente, que todos os seres humanos estejam incluídos numa das quatro

categorias fundamentais: inteligentes, egoístas, ingénuos e estúpidos.

Carlo Cipolla, 1988

Gráfica e textualmente, o autor aborda basicamente os seguintes tipos de seres

humanos:

Inteligentes - agem de modo a que o resultado seja vantajoso para si mesmo e

para os outros;

Egoístas - agem de modo a que o resultado seja vantajoso para si mesmo, mas

inconveniente para os outros (na maior parte dos casos, os outros perdem mais

do que aquilo que ganha o egoísta; os egoístas perfeitos, ainda que raros,

conseguem fazer com que ganhem justamente o que fizeram perder aos outros,

nem mais nem menos);

Ingénuos - agem de modo a beneficiar os outros, mas saindo prejudicados;

Estúpidos - agem de modo a que o resultado seja desvantajoso para os outros

sem que beneficiem com isso (os muito estúpidos geram consequências

negativas não só para os outros como para si mesmos).

O autor especifica que todos nós temos acções típicas de cada um dos grupos.

Simplesmente tendemos a agir com mais frequência de determinada maneira. Digamos

que a "média" das nossas acções seria o ponto em que nos encontramos como

indivíduos.

Definições muito válidas, a meu ver, de entre as quais se inclui a Terceira Lei

Fundamental.

É, não obstante, relevante esclarecer que os estúpidos não ficam sempre a

perder. Numa relação com um ingénuo ou inteligente, eles também beneficiam. No

entanto, beneficiam das actos dos outros, não das próprias acções.

Esta descrição relaciona-se com o conceito de custo de oportunidade.

Corresponde, em Economia, ao sacrifício que fazemos em favor da nossa opção quando

decidimos quando, como e onde gastar os nossos recursos, nomeadamente tempo e

dinheiro. As hipóteses que escolhemos geram resultados, que podem ser melhores ou piores

do que outras. Nunca saberemos. Então, como saber se as nossas decisões são as

mais acertadas? Já escrevi sobre isso. Se as acções fossem sempre tomadas

racionalmente, a questão não se levantava, mas não o são, com efeito. Daí que a única

explicação plausível para um comportamento estúpido seja a própria

estupidez (impulsiva e intuitiva). O estúpido será, de entre as classificações

mencionadas por Cipolla, aquele que, diria, pior gere o custo de oportunidade de

cada atitude que toma.

Segundo as definições da Terceira Lei Fundamental, esta ilação parece-me também válida.

Geralmente, tende-se a crer que uma pessoa estúpida só se prejudica

a si mesma, mas tal significa que se está a confundir estupidez com

ingenuidade. Por vezes, até se pode cair na tentação de se associar com um

estúpido com o objectivo de o utilizar em proveito próprio. Essa manobra

não pode ter mais do que efeitos desastrosos, pois:

a) baseia-se na total incompreensão da natureza essencial da

estupidez;

b) a pessoa estúpida ganha a oportunidade de desenvolver

posteriormente as suas capacidades. Alguém pode ter a ilusão de estar a

manipular uma pessoa estúpida e, até certo ponto, é possível que sim, mas não se

poderão prever todas as suas acções e reacções, logo rapidamente esse alguém se

verá arruinado pelas imprevisíveis acções do indivíduo que tentou

manipular.

Carlo Cipolla, 1988

Essencialmente, os estúpidos são perigosos porque as pessoas

razoáveis têm dificuldade em imaginar e entender um comportamento

estúpido. [...] Posto que as acções de uma pessoa estúpida não se ajustam às

regras da racionalidade:

a) geralmente o ataque apanha-nos de surpresa;

b) mesmo quando se tem conhecimento do ataque, não é possível organizar

uma defesa racional, porque o ataque em si mesmo carece de qualquer

estrutura racional.

Carlo Cipolla, 1988

Com o que até agora foi mencionado, compreendemos que as pessoas não-estúpidas

ou razoáveis, ao dar a oportunidade de os estúpidos entrarem em cena, estão a ser

estúpidos (não no geral, mas naquela postura em particular), porque os estúpidos

prejudicarão ambos. Realço, já agora, que um acto pode traduzir-se na ausência

de acção.

Entretanto, não poderia deixar de apresentar o seguinte raciocínio:

A capacidade destrutiva que tem uma pessoa estúpida depende de dois

factores principais. Antes de nada, depende do factor genético. [...] O segundo

factor que determina o potencial de uma pessoa estúpida provém da posição de

poder ou autoridade que esta ocupa na sociedade. [...]

A pergunta que por vezes surge nas pessoas razoáveis é a de que como será

possível que pessoas deste tipo cheguem a alcançar posições de poder ou

autoridade. As classes e castas (laicas ou eclesiásticas) foram as

instituições sociais que permitiram um fluxo constante de pessoas estúpidas a

postos de poder na maioria das sociedades pré-industriais. No mundo

industrial moderno, as classes e castas têm vindo a perder cada vez mais a sua

importância. Todavia, em vez delas temos partidos políticos, burocracia e

democracia. No seio de um sistema democrático, as eleições são um instrumento

eficaz para assegurar a manutenção estável da percentagem € entre os

poderosos. Há que recordar que, segundo a Segunda Lei, a percentagem € de

pessoas que votam são estúpidas e as eleições são uma magnífica ocasião

de prejudicar todos os outros, sem obter benefícios. Estas pessoas

cumprem o seu objectivo, contribuindo para a manutenção do nível € de estúpidos

entre as pessoas que estão no poder.

Carlo Cipolla, 1988

Muito interessante (por enquanto, não pretendo discutir se verdadeiro ou não).

Cipolla infere que a postura dos estúpidos é a que mais perdas introduz na

Humanidade:

Os incautos dotados de rasgos de inteligência superiores à média da sua

categoria, assim como os malvados com rasgos de inteligência e, sobretudo, os

inteligentes, contribuem, ainda que em diversas medidas, para o aumento do bem-

estar na sociedade.

Carlo Cipolla, 1988

Esta ideia explica-se mais facilmente através de um referencial cartesiano, mas passo a

explicar (com dois exemplos meus entre parênteses):

o inteligente gera sempre benefícios para todos, logo, depois da sua acção, o

bem-estar da sociedade aumenta;

o ingénuo, sempre que não perca mais do que aquilo que os outros têm a

ganhar, também contribui para o bem-estar da sociedade (alguém que perde

um avião para as férias de sonho em troca do auxílio a um homem que está

prestes a perder a vida e que será aquele a conceber, anos mais tarde, a cura

para a SIDA);

o egoísta, sempre que não ganhe menos do que aquilo que faz perder,

também contribui para o bem-estar da sociedade (alguém que rouba um livro

de uma biblioteca que o faz ter uma grande ideia, que revolucionará a

tecnologia em todo o mundo);

o estúpido nunca consegue contribuir para o bem-estar da sociedade.

Existe apenas um corolário oficial:

Em geral, as pessoas do tipo egoísta são as mais desacreditadas pela

sociedade, como os ladrões. É uma ideia incutida nas crianças desde cedo, de modo a fazer

a distinção bem/mal, sobretudo pelos pais, mas também pelos desenhos animados, por

exemplo. No entanto, concluímos, com a Quinta Lei Fundamental, que os estúpidos são

piores que os egoístas, porque não só não ganham nada como fazem perder o que é dos

outros. "Como se fizesse a coisa mais natural do mundo, o estúpido aparecerá quando

menos se espera para pôr em causa os teus planos, destruir a tua paz, complicar-te a vida

e o trabalho, fazer-te perder dinheiro, tempo, bom humor, apetite, produtividade. Tudo

isto sem malícia, sem remorosos e sem razão", afirmava Cipolla.

Entretanto, a esse, Livraghi agregou mais um.

Quando li o livro, gostei tanto dele que escrevi uma carta a Carlo Cipolla

(apenas fiz esse tipo de coisas duas vezes na minha vida). Para minha surpresa,

ele respondeu-me, de modo breve, mas amável. [...] A resposta a "O que pensa do

meu corolário?" foi “Bem... Porquê não? Talvez...”, que interpretei como uma

entusiástica aprovação e adesão ao

Giancarlo Livraghi, 1996

É uma possibilidade.

Contudo, mais tarde, encontrou outros dois.

[...] Dei-me conta de que não o poderia chamar de "primeiro", porque

apenas existia um. A minha intuição inicial estava, porém, correta. Descobri,

depois, que existem pelo menos três. Aqui estão eles: [...]

“A quantidade de possíveis inter-relações entre membros de um grupo de

pessoas aumenta proporcionalmente ao quadrado da quantidade de membros” é

uma ideia geralmente aceite. Parece-me muito óbvio que o mesmo critério se

aplica à combinação dos factores individuais de estupidez. Isso pode ajudar a

explicar o facto bem conhecido de que multidões como um todo são mais estúpidas

do que um indivíduo isolado.

Giancarlo Livraghi, 1996

Uma analogia válida exige semelhanças essenciais (não as secundárias) entre os

elementos que se comparam. Acrescento que, se compreendi de modo correcto,

a premissa que respeita à suposta teoria matemática nem sequer me parece

correcta (os gráficos das permutações de x e dos quadrados de x são claramente distintos,

mesmo se comparados a diferentes escalas). Terei que debater o assunto com um

matemático. Portanto, embora me pareça despropositado, nada tenho a dizer, em definitivo,

sobre este corolário.

A estupidez não tem cérebro – não precisa de pensar, organizar-se

ou planear para gerar um efeito combinado. A transferência e

harmonização da inteligência é um processo muito mais complexo.

As pessoas estúpidas podem reunir-se instantaneamente num grupo muito

estúpido, enquanto que as pessoas inteligentes só são efectivas em grupo quando

se conhecem bem e têm experiência em trabalho de equipa. A criação de grupos

bem sintonizados de pessoas que compartilham inteligência pode gerar forças

anti-estupidez razoavelmente poderosas, mas, em oposição à aglutinação de

estupidez, essas pessoas necessitam de um planeamento organizado e de

acompanhamento; podem perder grande parte de sua efectividade com a

infiltração de pessoas estúpidas ou pelo surgimento inesperado de estupidez em

pessoas que agem de forma inteligente em qualquer outra actividade.

Giancarlo Livraghi, 1996

Este já me parece mais provável e, em determinada medida, concordo com ele.

Exemplos ilustrativos abundam no dia-a-dia. Não será a probabilidade de convencer

alguém a saltar do telhado de uma casa num acto de “estupidez” maior do que a de

conseguir que essa mesma pessoa leia um livro (um acto que, por norma, não se considera

“estúpido” – por agora)?

Se a intenção de Cipolla foi obter somente um escrito bem-humorado, está muito

bem conseguido, porque o autor se refere a uma base alegadamente científica, que

não pude comprovar, como já referi.

Alguns dos seus conceitos são válidos, como o de estupidez. Segundo a minha

concepção, chegamos às duas conclusões possíveis, mas se atestarmos um estúpido com

base na consequência dos seus actos – e não pela racionalidade dos seus actos –, obtemos

uma forma interessante de estudar o assunto, que se pode, até, traduzir em experiências

sociológicas ou suposições que resultam da reflexão pessoal de cada um.

Recapitulando, apesar de, neste contexto, concordar que subestimamos o potencial

destrutivo dos e o número de indivíduos estúpidos, que o estúpido é o tipo de pessoa mais

perigoso que existe e que a combinação da inteligência de várias pessoas tem um impacto

menor do que a combinação da estupidez, não considero que a estupidez de uma pessoa seja

independente de qualquer outra característica nem que a estupidez de várias pessoas,

combinada, cresça geometricamente. São, também, posições teóricas que podem mudar a

qualquer momento.

É óbvio que, todavia, prefiro a minha teoria, de que a estupidez não existe,

porque, não sendo irrefutável nem definitiva (nenhuma o é), é a que me parece mais

adequada diante das circunstâncias, supondo, em jeito de explicação psicológica não-

comprovada, o que ocorre na mente humana2.

2 Se não servir a mais ninguém, pelo menos que sirva para que as apostas a favor da estupidez humana deixem de existir (hoje em dia existem apostas sobre tudo). Se quem aposta a favor pode apresentar a teoria de Cipolla, quem aposta contra pode apresentar a minha.