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OUTRAS CONTRIBUIÇÕES

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Outras COntribuições

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estudOs das representações versus COnsideraçãO das representações. uma COntribuiçãO tradiCiOnal da filOsOfia1

Hubert Vincent2

Tradutor: Novalca Seniw3

1 Publicado na língua original: Recherches en Education, n. 17.2 Professor de filosofia, Universidade de Rouen, Ciências da Educação,

laboratório CIVIIC. E-mail: [email protected] Mestranda em Estudos Literários - PPGLetras - UFJF

Resumo“Considerar as representações dos alunos” é, atualmente, a palavra de ordem da cultura pedagógica. Entretanto, não é difícil evidenciar que essa palavra de ordem tem raízes nos primeiros textos da tradição filosófica e, principalmente, na obra de Platão: o método socrático da “refutação” é o desenvolvimento disso. Este retorno às fontes permite, por um lado, situar essa relação em meio a outras e não entender essa palavra de ordem pelo único e exclusivo caminho do ensino e, por outro lado, limita os direitos dessa relação com o ensino mais diretamente, contribuindo para a espontaneidade da atividade. O filósofo Alain permite essa crítica.Palavras-chave : pedagog ia ; re futação ; ensa io ; espontaneidade; Sócrates; Platão; Alain.

É necessário ou não, no quadro da atividade de ensino, ter em consideração as representações dos alunos? Em qual medida essa exigência vale como norma para nossas práticas educativas?

Parece-me que uma das mais antigas tradições

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filosóficas tem algo a nos dizer sobre essa questão e é o que eu gostaria de expor aqui. Eu o farei de um modo contraditório, isto é, esforçando-me para desenvolver tão bem os argumentos a favor dessa norma, que encontramos em Platão, como aqueles capazes de se oporem a ela, que encontramos na obra de Alain. Eu tentarei, enfim, concluir evidenciando essa contradição e sustentando que a escola deveria se abrir um pouco mais, não tanto à “consideração das representações”, mas simplesmente aos estudos sobre elas. Para isso, é a noção de “representação inicial” mais que a noção de representação que deve ser criticada. A ideia é a mesma, sobretudo em suas falhas e des vios, de modo que as representações nunca são uma questão única ou uma “falha” de um determinado indivíduo, que não poderíamos compreender ou que poderia ter sido nossa.

pedagOgia e a COnsideraçãO das representações: uma identidade.

Que, de fato, se deva associar pedagogia e consideração das representações e que haja boa pedagogia somente em função desse vínculo é o que se pode estabelecer, a partir de algumas páginas de Platão, extraídas de sua obra O sofista. (Eu consagrei toda uma parte de um livro anterior a uma análise rigorosa desse texto; eu o retomo aqui nesse espaço, ainda que com algumas modificações de perspectiva).

O modo de argumentação do qual ele se serve para estabelecer esse vínculo vai, certamente, surpreender, mas eu creio e o digo antecipadamente, que é bastante adequado à prática do ensino. E essa é uma das razões maiores pelas quais esse modo de argumentação parece-me completamente aceitável: a educação é uma prática e, ao considerar isso, supõe-se que nos mantenhamos o mais perto dessa prática.

Qual é precisamente esse modo de argumentação? É, antes de tudo um diálogo no qual Platão não coloca em cena, ao menos uma vez, Sócrates, mas uma personagem que ele denomina o estrangeiro, que discute com um jovem

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matemático, Teeteto. Os dois têm por objetivo definir ou estabelecer a identidade do sofista. Quem são, de fato, essas personagens que pretendem vender o seu próprio saber e formar os jovens gregos que almejam as mais altas funções do Estado? Quanto vale o ensino deles e podem eles realmente pretender a um título de educador da juventude? Antes de chegar à definição dessa mesma personagem, o estrangeiro julga necessário realizar alguns exercícios, a fim de conhecer o processo da definição. Assim eles se debruçam sobre a noção de educação, de um lado porque ela é considerada como mais simples, de outro lado porque os sofistas se apre-sentam como educadores. A discussão que eu vou relatar tem, dessa forma, um status preparatório: é um exercício, mas como frequentemente em Platão, essa preparação diz, muito frequentemente, coisas essenciais, como se caminhos considerados secundários ou preparatórios pudessem dizer tudo tão bem e, por vezes, melhor, que outros mais diretos e sérios.

O método de definição aqui se faz por divisões sucessivas e, se o fato de ser um diálogo se dá porque a cada etapa, a cada divisão e subdivisão, o estrangeiro solicita a concordância de Teeteto. Ele prossegue com sucessivas divisões, mas a cada etapa, pede a seu interlocutor para dizer se ele está ou não de acordo com as subdivisões feitas. Para começar, ele parte de um gênero maior no qual o objeto a definir é comprovar uma suposição; depois ele divide esse gênero em dois, para se interessar por uma de suas ramificações na qual ele solicita novamente a confirmação de que a realidade a definir foi bem explicada, depois ele repete a mesma operação, tantas vezes quanto for necessário para assegurar-se de que há somente a realidade e somente ela, a definir. Dessa forma, tem-se, de fato, sua diferença específica.

eduCaçãO, ignOrânCia e preOCupaçãO da habilidade.

No caso que nos ocupa, é a educação que necessita ser

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definida, porque o sofista foi identificado como um educador. O estrangeiro partiu de um gênero maior, as artes que selecionam, depois, por derivação sucessiva, ele estabelece que a educação é uma das artes de selecionar:

- que diz respeito ao melhor do pior (e não o semelhante e o diferente) e isso confere espaço e existência às artes de purificação, que separam, de fato, o melhor do pior;

- que diz respeito à alma e não ao corpo e, para o último, há artes de purificação assim como há a trituração que separa o joio do trigo. Por exemplo: o banho, no qual o corpo se desfaz de suas viscosidades, ainda, por exemplo, também a ginástica, que pode nos curar de nossas deformidades.

- que tem por objeto o mal da ignorância e não outra forma do mal como seria a perversão ou a maldade e às quais se aplicam as artes da “correção”.

Dessa forma, chega-se a uma primeira definição, a partir de divisões sucessivas: a educação é uma arte que purifica nossa alma (e não o corpo) de um dos seus males mais importantes, a saber, a ignorância (e não a “perversão”).

Importa notar que na etapa que permite ao estrangeiro distinguir dois males da alma, de um lado a ignorância, do outro a maldade, estabeleceu-se que a educação relaciona-se essencialmente à falta de habilidade, à falta de jeito. Essa última é a situação segundo a qual alguém busca apenas atingir um objetivo sem conseguir fazê-lo; por exemplo, o arqueiro, que tem um objetivo, mas não consegue atingi-lo. Diríamos que ele é ignorante e isso significa que lhe falta habilidade e nada mais. A educação tem por tarefa reparar nossa inaptidão, de nos tornar pessoas hábeis, qualificadas. Por contraste, poderíamos dizer que a arte que se encarrega da maldade ou da perversão, à qual o estrangeiro dará o nome de “correção” (e isso inclui todas as artes de punir), ocupa-se de um aspecto que poderíamos afirmar como sendo mais “profundo”, ou mais “interior” da mente. A habilidade, a facilidade são coisas que pertencem à mente, mas que se situam em níveis um pouco diferentes, e menos “profundos” que a perversão ou a maldade.

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A educação relaciona-se à “superfície de nós mesmos”.Nós estamos nesse ponto: a educação nos cura desse

tipo de mal bem específico que é a ignorância como falta de habilidade.

didátiCa e pedagOgia

Quanto a isso, o estrangeiro criará uma nova divisão, que dará origem a duas artes, uma que ele chamará de didática e outra que ele chamará de pedagogia.

Há, de fato, diz ele, uma forma de ignorância que, ainda que quantitativamente pequena, não é menos importante e que ele define assim: “não saber e acreditar que sabe”. É uma forma de ignorância particularmente difícil de reparar, pois, por definição, ela exclui que se possa aprender o que quer que seja. Em grego, é a amatia e é ela e somente ela que dará origem à pedagogia; é por ela e somente por ela que aqueles que educam precisam ser educadores. A pedagogia, pois, é a arte de curar-nos dessa ignorância específica que é a amatia. Em uma perífrase, o estrangeiro fala da pedagogia como uma “educação pelo discurso”.

Ao lado dessa forma particular, qual ramificação será deixada de lado, ou qual é a forma de ignorância que não interessará aos protagonistas desse diálogo? Há, dizem eles, aquilo que depende da aprendizagem dos ofícios e que não é, particularmente, um problema; nesse caso os indivíduos sabem que eles não sabem e a condição para que eles aprendam alguma coisa é garantida. Nesse nível e para esse tipo de ignorância que não apresenta problemas, o estrangeiro falará “de ensino dos ofícios” ou de “didática”.

Uma vez que a pedagogia é “ensino pelo discurso”, disso resulta que a didática não trabalha principalmente com o discurso, ainda que ele seja secundário. De fato, a transmissão de ofícios ou de técnicas, se ela implica o discurso, implica somente um pouco e, no máximo, como um meio destinado a desaparecer. Dizem-me, para começar: “isso é um lápis, isso é o teu livro, isso é um folha”; mostram-

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me também como fazer para escrever; ajudam-me a ajustar meus gestos com algumas palavras e, depois essas palavras se apagam progressivamente, à medida que a atividade assume o seu lugar.

Imagina-se que o mesmo acontece com o saber: “eis o teorema, eis o conhecimento, eu te digo, eu te explico os termos, tu podes repeti-los e compreendê-los, se necessário, nós faremos exercícios que confirmem a tua boa apreensão desse saber de modo que agora tu tens tudo isso memorizado pronto para se utilizado”. Podemos, então, pensar a transmissão do saber de acordo com o mesmo esquema da transmissão da técnica: o discurso tem a função de ser apenas um meio ou tem apenas uma função didática, antes de desaparecer em seguida. Bastaria, basicamente, falar bem e explicar bem, compreender o que é falar bem, definir bem, apresentar bem. Eis a didática.

Tal posição é espontânea ou primeira de todo ensino; eu quero dizer que é assim que nós abordamos a prática educativa, nessa crença que, enfim, é muitas vezes verificada; explica-se bem, fala-se claramente, se necessário, fazemos nós mesmos com precaução diante dos alunos; permite-se ver a atividade, exercícios são propostos e garante-se, assim, que as técnicas como também o conhecimento são bem retidos. No início, muitas palavras, depois, progressivamente, a substituição da palavra pela atividade automatizada.

Ora, o estrangeiro tem por certo que a educação não pode se limitar a essa relação didática. Por quê? A resposta se dá em função da determinação desse outro tipo de ignorância que é a amatia: “não saber e acreditar que sabe” e que mostrará a pedagogia na sua diferença com a didática.

Antes de abordar esse assunto, parece-me importante apontar o seguinte: o estrangeiro, em suas divisões sucessivas, não analisa apenas uma noção, mas ele se dá conta também de um percurso. Em um primeiro momento, é como se a transmissão se desse naturalmente, que a linguagem tivesse apenas o status de meio. Começa-se por isso, é o pressuposto e ainda uma vez mais, não é nada criticável

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querer formar pessoas qualificadas, ajudar crianças e, frequentemente adultos também, de deixarem de ser inábeis e assim reunir esforços para construir habilidades diversas. Mas, e é o que Platão parece dizer, é que em um determinado momento, encontramos resistência, chocamo-nos com alguns obstáculos: por mais que expliquemos, que façamos previsões, que construamos o melhor possível seus progressos, que tenhamos os melhores objetivos, algumas coisas não são transmitidas ou parecem não ser apreendidas. Há “resistência”, os alunos “resistem” ao que nós queremos lhes transmitir. Essa resistência dará lugar à pedagogia, ou a outra especificação da relação entre professor, alunos e saber, não mais tão centrado no saber ou na técnica, mas principalmente no aluno e no que “nele” se apresenta como obstáculo.

O que ocorre, então? Que “interioridade” é essa que surge? Nós podemos ver que quem começa não o faz sem perigo e que o caminho que se anuncia não é mais simples. È, entretanto, o caminho da pedagogia.

eduCaçãO dOs pais e exOrtaçãO

Qual é, de fato, a divisão seguinte? O estrangeiro dirá que há duas novas possibilidades. A primeira se dá no que ele nomeará “o método de nossos pais”, ou dos pais. Ela consiste em repreender e aconselhar. Exortar, repreender são dois modos de relação tanto com a palavra quanto com o outro que, de uma parte pressupõe-se que a intenção é boa (e como um pai poderia supor o contrário? Supor o contrário é deixar de ser pai), mas de outra parte pressupõe-se que falta vontade, ou que ela é uma fraqueza. É isso que fazem os pais e frequentemente também os professores e os educadores: eles repreendem gentilmente, eles dizem para estudar, eles lembram as exigências, eles convidam a serem menos preguiçosos, etc.

Ora, muito rápido o estrangeiro dirá isso: esse método de exortação, na verdade, é impotente e não chega a lugar algum. Sem dúvida, pode-se dizer que será necessário

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repreender e aconselhar: é dessa forma que se afirma que se é pai, um bom pai e é uma postura que se encontra regularmente nos educadores. Mas é necessário saber também que em relação a isso não fazemos nada. Por quê? O estrangeiro o diz: “toda ignorância é involuntária”, isto é, não depende da vontade e “aquele que se acredita sábio sempre se recusará a aprender aquilo no qual ele se imagina qualificado; e também para tanta tristeza que produz a admoestação, essa forma de educação é pouco eficaz”. Ele diz, igualmente, que é uma verdade de experiência, isto é, uma verdade que cada educador, ou cada professor pode e, sem dúvida, deve encontrar por si mesmo: começa-se ensinando, para depois exortar e em seguida constata-se uma vez, dez vezes, cem vezes, talvez que isso não serve para nada; que o aluno continua preguiçoso, desatento, que o fumante volta a fumar, ainda que ela saiba que é ruim para ele. O pedagogo, Platão parece dizer, começa com certo sofrimento, sofrimento da crença em nosso poder de transformar diretamente e isso embora muito frequentemente e para muitos, será suficiente fazer uso da didática e exortar.

É a partir disso que surge a possibilidade de outra via que Platão nomeará pedagogia ou educação propriamente dita.

Antes de abordar esse ponto, especifiquemos aqui e relembremos o percurso feito: para começar, fazemos uso da didática, no sentindo em que o vimos; muito rápido, porém, as resistências aparecem: eles não querem aquilo que lhes queremos dar; então repreendemos, o que cansa rápido e desespera. Geralmente, o que vem em seguida? A punição, a sanção, a rejeição e o abandono: “eu os preveni que era necessário estudar, agora eu os puno; não se pode fazer nada com você, você que não quis o que queremos dar”. Isso quer dizer, seguindo o esquema platônico, que retornamos para uma divisão anterior, e bem anterior. Eu diria que regressamos por partir sempre de um mesmo círculo: didática, resistência, exortação, sanção; didática, resistência,... Ora, entretanto o estrangeiro diz que nesse momento se abre outra via,

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na qual se identifica realmente o que é a pedagogia, e é aí que nós encontramos algo como a necessidade de levar em consideração as representações iniciais.

refutaçãO

Essa outra via, a qual o estrangeiro chama de refutação e, dessa vez, tal como com a noção de amatia, nós estamos lidando com uma noção técnica da filosofia platônica. De fato, não é nada mais do que o método socrático que o termo define, ao menos em parte.

Do que se trata?

“Eles fazem, ao seu interlocutor, perguntas às quais ele acredita responder alguma coisa válida, ele não responde, entretanto, nada que valha a pena; depois, verificando facilmente a vaidade de opiniões tão disparatadas, eles as aproximam em sua crítica, as confrontam umas às outras e assim demonstram que, no que concerne ao mesmo objeto, sob os mesmos pontos de vista, sob as mesmas relações, elas são mutuamente contraditórias”.

Temos exatamente aí nosso modo comum atualmente de entender essa noção de consideração das representações, porque se se trata de considerá-las é porque, de um lado, supõe-se que elas configuram um obstáculo para a transmissão, que são mesmo o maior obstáculo, e por outro lado, que o objetivo é de purificar desse obstáculo aqueles que o tem para lhes permitir ao menos alguma mudança e a possibilidade de aprender.

E como o estrangeiro, com uma precisão que ana-lisamos mais além, pensa que chegou realmente ao fim da divisão, porque conhece a arte de purificar, de purgar a alma de seu mal da ignorância, pode-se concluir disso que a pedagogia é, estritamente falando, essa consideração das representações.

O caminho dessa purificação é o princípio lógico da

contradição e talvez seja necessário insistir no fato de que

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é apenas esse princípio que é questionado pelo estrangeiro e muitas vezes por Sócrates. Isso significa que quando a mente é purificada, ela o é da vaidade das representações ou de sua pretensão em valer-se pelo saber. As representações ou crenças não são o saber: é isso que está em questão aqui. O saber nasce além de nossas representações. Eis porque temos que começar por eliminá-las todas, ou eliminar a forma mesmo com que cremos.

Dizendo de outro modo, e talvez de modo, que parecerá mais expressivo: eu posso pensar o que eu quero, a questão não é essa; ela é, sobretudo, saber porque eu penso ou quero pensar isto mais do que aquilo; quais são minhas razões, ou as razões de ter este pensamento por mais justo ou mais verdadeiro, ou mais necessário que seja em relação ao outro? Se nós temos pensamentos, se muitas vezes os pensamentos nos vêm, se nós temos pensamentos saídos de alguns bons e reputados livros, isso ainda não é o saber: são opiniões e crenças e isso na medida em que nós não sabemos dizer por que temos esses pensamentos por mais justos, mais necessários, mais verdadeiros que possam parecer, ou simplesmente como capazes, mais que outros, de despertar nosso interesse, nossa curiosidade e nossa reflexão.

Compreende-se que, nessas condições, não se trata tanto de criticar tal ou tal crença para dar lugar àquelas tidas como verdadeiras (mas de onde e por quê?), mas principalmente a forma mesmo de crer, ou ainda um tipo de pensamento em estado livre que teria múltiplas e mutáveis representações e se contentaria com isso. O método de purgação, que é a recusa visa, assim, nos purificar da forma de crer, não das crenças.

Como diz Platão em outro texto, a relação da mente com suas representações ou crença pode ser simbolizada pela imagem das estátuas de Dédalo, que tinham a dupla propriedade de serem, ao mesmo tempo, muito pesadas (quando acreditamos muito forte nelas, elas se impõem sem nenhuma distância) e voláteis (elas mudam conforme os humores e a moda, poderíamos dizer; são opiniões). Essa dupla propriedade caracterizaria tipicamente, segundo ele, a

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relação entre opinião ou crença e a mente; ao mesmo tempo muito estreita, tirânica (“é a que minha crença e eu não quero mudá-la; eu me identifico nela, sou eu e minha identidade que está em jogo”), mas igualmente muito variável (de um tempo a outro de minha vida, essas crenças mudam). A pedagogia começa na preocupação de escapar a esse duplo movimento, no momento em que ficamos cansados dessas variações ou dessas instabilidades de “sua” opinião. É verdade que, sob essa forma, ela se identifica com a experiência filosófica e o pedagogo torna-se um mestre da filosofia.

É disso que é necessário purificar aqueles que querem aprender, para que eles aprendam, não é, portanto, de modo nenhum de tal ou tal representação para, em seguida, dar-lhes outras, mas é a ideia de que o saber poderia ter o status de uma representação no sentido de uma crença interna idêntica à uma proposta clara. O saber é, sobretudo, aquilo que se examina logicamente ou de acordo com a experimentação.

Não temos um saber nesse sentido, mas tentamos expô-lo.

vaziO e vaziO

Na sequência, o estrangeiro fará duas constatações que, eu creio, são importantes. Ele constata, para começar, que aqueles que sofrem uma purgação se beneficiam disso imediatamente: eles tornam-se menos frágeis, menos orgulhosos, mais ternos. É um ponto importante porque ele quer dizer que a operação que consiste em purgar alguém de suas opiniões, ou esvaziá-lo, não tem de modo nenhum por efeito e ainda menos por objetivo fragilizar ou afligir os indivíduos, de mostrar-lhes a sua nulidade. Em absoluto: eles tornam-se menos orgulhosos, mais conciliadores, mais abertos à discussão e à pesquisa, o que é completamente diferente: ser um pouco menos “frágil”, não é simplesmente formular alguma dúvida simples a respeito do que se sabe, mas é, antes de tudo, preocupar-se em expor esse saber, de dizê-lo, de apresentá-lo, de prová-lo e ter realizado, assim, a experiência de que o que pensamos ou acreditamos saber

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não é sempre idêntico ao que dizemos em relação a isso; e do mesmo modo: que o que dizemos não é sempre idêntico ao que nós pensávamos saber.

Há, pois, efeitos do tipo moral e que se apresentam como puro exercício intelectual. É, novamente, um saber do professor: criticar o trabalho do aluno não deve ter por objetivo, nem por efeito “fragilizá-lo” ou destruí-lo, mas ao contrário, deve ter por objetivo permitir-lhe buscar um pouco mais longe. Há, assim, várias maneiras de esvaziar, mas também vários vazios, com sentidos completamente diferentes. A crítica ou as avaliações devem ser “positivas” como se diz e não fragilizar os indivíduos, nem anular sua pretensão de saber, mas permitir-lhes a análise de si mesmos tanto quanto a análise de sua pretensão.

Insistamos um instante nesse último ponto: o uso atual da noção de representação a associa à perspectiva de uma mudança. Nós analisamos as representações de uns e outros a partir da ideia de que visamos uma mudança ou uma evolução do comportamento deles. A perspectiva que aqui se apresenta claramente e que também é mesma de Platão, não é estranha a essa ideia, mas ela a aborda de modo radicalmente distinto. Não é uma mudança em particular que se espera, não é mais a esperança de que mudando as representações das pessoas, modificam-se seus comportamentos; não é, enfim, a ação de alguém sobre outro (“é necessário modificar a representação deles”); entretanto, o que se espera, através da possibilidade de estudo e aptidão ao diálogo como capacidade de analisar conjuntamente nossas representações como se não fossem nossas, é um pouco de delicadeza e um caráter menos frágil. É a curiosidade das mentes e as mais diversas razões que elas se dão que produzirá um distanciamento em relação a suas próprias opiniões. E por que não pensar que é a construção dessa delicadeza que permitirá depois os indivíduos de mudarem, de evoluírem?

Isso dito, parece-me que essas reflexões sobre o vazio permitem compreender a última interrogação do estrangeiro,

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que se pergunta no final: “quem é o refutador?”, “quem é o verdadeiro educador?” e acrescenta rapidamente que seria dar crédito demais aos sofistas situá-los nessa posição. Se eles parecem assemelhar-se estranhamente àqueles que gostaríamos de colocar na posição de educador, eu sugeri que a diferença se dava em duas modalidades diferentes em relação ao vazio.

COnClusões intermediárias

Bem. Eis um primeiro testemunho, uma primeira análise que tenta validar a ideia de que há um vínculo essencial e não acidental entre pedagogia e consideração das representações, necessariamente consideração das representações.

Eu tenho procurado validar esse vínculo, interpretando o esquema platônico segundo um eixo temporal: esse esquema conta ou reproduz o percurso do professor: posição didática para começar, ou preocupação de construir a habilidade e somente a habilidade (um saber que não me torna mais hábil, mais flexível, tanto fisicamente quanto manualmente, é um saber nulo); encontro de resistência com a nossa boa vontade; exortação; risco de regressão; refutação; desejo de saber. Dito de outra forma, esse esquema se reforça pelo fato de reproduzir e explicar o movimento da prática docente; e senão explica o movimento, pelo menos elabora uma série de coordenadas, de um modo mais econômico e simples, em função das quais nós podemos pensar essa profissão.

Seguir ou aceitar esse esquema com a sua capacidade de controlar nossas práticas diárias, é o mesmo que dizer que nunca estamos prontos, nem tampouco que devemos estar. Ele se impõe quando há resistência, quando a exortação fracassa; ele não tem, para dizer de outro modo, a vocação de valer pelo conjunto dessa prática. Os alunos não resistem sempre a tudo; não ocorre tampouco, assim me parece, de começarmos por essa última etapa e pressupormos sempre que haverá um obstáculo: a exposição do saber, sua explicação também, sua ilustração, sua retomada na forma

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de exercícios podem, por vezes, bastar perfeitamente, sem que seja necessário antecipar e projetar obstáculos. Que tenhamos refletido sobre isso, é fato, sem dúvida; mas que se calcule sistematicamente em função das representações prévias e, mais exatamente, em função da pressuposição dessas representações, isso não é justo. Corre-se o risco de identificar o saber com uma representação ou crença específica considerada completamente como aceitável.

Seria necessário acrescentar igualmente que se o modelo de refutação aqui é apresentado globalmente (purificar a mente de todas as representações, construir o vazio), a prática de Sócrates mostrava algo diferente. Interlocutores específicos, assuntos específicos; discussões frequentemente muito lentas, nas quais é trabalhado determinado aspecto de uma questão e, em seguida, outro aspecto, sem que Sócrates tentasse realmente e, de uma só vez, purificar a mente de todas as representações. Ao contrário, parece que ele se satisfaz em repassar progressivamente e, se possível, de modo sistemático, todas as nossas representações. Logo, não seria de maneira alguma exato dizer que o que é dito sobre a refutação vale para a prática socrática. O caráter global assumido aqui quer dizer, de um lado, que se trata de distinguir relação com a crença e relação com o saber e, do outro lado, dizer que podemos examinar todas as representações, mesmo as mais confusas, como se elas fossem mais ou menos as nossas.

É, pois, um princípio de estudo.

Enfim, é necessário acrescentar que o que é retratado aqui e descrito como refutação diz respeito aos adultos. Mais exatamente, esse método chamado de refutação é, antes de tudo, um jogo que implica uma temporalidade específica, regras específicas, um acordo sobre o fato de que nos retiramos do mundo por um momento para examinar, em dupla e diante dos outros, o que nós pensamos. É um tipo de jogo intelectual adequado para alguns adultos que o aceitam e que, de todo modo, terá somente um tempo de duração. Parte-se, assim, de uma representação comum, que aceitamos focar durante um determinado tempo para começar o

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trabalho; depois se passa a outras, isto é, agimos como se essas representações primeiras valessem como saber; não é o que se pensa de verdade, é o que se aceita como verdade por certo tempo. Um jogo filosófico, se assim quisermos, mas que em todo caso, não tem nada de natural e espontâneo. Retomando a preocupação com as crianças, supõe-se uma fortíssima consciência de sua institucionalização.

alain: a preOCupaçãO COm O atO

Eu gostaria, agora, de seguir uma segunda linha argumentativa, que se contrapõe à primeira, e tentarei confirmar que não é necessário de forma alguma para o professor pensar sua profissão segundo tal exigência. Estará em jogo a crítica de determinada posição do docente que crê dever ser um psicólogo para ensinar. De qual psicologia se trata é o que vamos analisar.

Eu acredito que identifico essa segunda linha argumentativa na obra do filósofo Alain. A singularidade do pensamento de Alain sobre a escola se dá, entre outras coisas, ao fato de que ele buscou pensar a escola em função do que ele denominou o grupo escolar. O lugar adequado, ou quase natural da infância não é, em absoluto, a família, como se pensa frequentemente, mas o grupo escolar, isto é, o coletivo formado pelas próprias crianças no qual elas são iguais. As brincadeiras infantis e, sobretudo, a propensão das crianças em se colocarem em pares para brincar, confirmam essa naturalidade. Todo o interesse e também a dificuldade desse pensamento de Alain se dá pelo fato de que ele buscou pensar não somente as brincadeiras infantis segundo essa ideia, mas também a escola: a escola somente o é verdadeiramente se ela dá vida e desenvolve esse gosto pelo coletivo. Isso explica as propostas seguintes.

O pai intrusO e a questãO dO julgamentO

“Esse povo é ateu e religioso; há ritos e preces nos jogos, mas sem nenhum Deus exterior; esse povo é seu

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próprio Deus; ele adora suas próprias cerimônias e nada mais; é a idade de ouro das religiões. Os leigos fazem escândalos quando são os espectadores; ainda mais se eles entram no jogo; o hipócrita não pode enganar aqueles que têm fé. Daí movimentos de humor incompreensíveis. Eu tenho a recordação de um pai indiscreto que queria brincar de soldado de chumbo conosco, crianças; eu via claramente que ele não compreendia nada; seu próprio filho tinha humor e modificava tudo. Os adultos não devem nunca brincar com as crianças; parece-me que a decisão mais sábia é ser educado e reservado com eles como seríamos com um povo estrangeiro. Quando uma criança se encontra separada de outras de sua idade, ele brinca melhor sozinho” (eu enfatizo). Eis aí a característica do “peuple enfant”: sua independência, sua ciumenta independência. O adulto não é bem-vindo e de modo claro, isso é uma norma para Alain: nós não temos que nos meter nas brincadeiras infantis e, como nós o veremos, nós não temos que nos meter em seu trabalho.

Essa imagem do adulto intruso e, sobretudo do pai intruso, é uma imagem constante na obra de Alain e a qual ele retoma várias vezes, em termos e segundo imagens de uma bem grande violência. Assim, por exemplo, em sua proposta 11, na qual aparece seu “irmão de leite”: “Meu irmão de leite era um garoto quieto, inventivo e, tanto quanto pude observar, também afetuoso”, e Alain evoca suas brincadeiras com esse irmão de leite, tanto mais que ele ficava sob o “domínio de meus pais”. Mas tudo mudava “quando com a outra família, em sua casa: havia apenas cenas violentas e punições terríveis”. Alain, pois, mostra novamente um fato que encontra eco naquilo que os pais regularmente dizem a si mesmos, a saber: que seus filhos não são os mesmos quando os pais estão com eles ou quando eles estão sob o domínio de outro”. E eis a explicação que ele dá: “Como começara essa guerra, eu não sei; mas eu compreendo agora que ela durava por seu próprio impulso. O pai imaginava meios de corrigir seu filho e julgava necessário qualificá-lo sem fraqueza; e o filho, preocupado com esse tipo de glória, aproveitava para se mostrar desobediente, mentiroso

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e grosseiro, de acordo com os julgamentos paternos. (...) Eu frequentemente constatei depois, com as crianças e os homens também, que a natureza humana se molda facilmente a partir dos julgamentos do outro, como a réplica no teatro, mas, talvez ainda por essa razão mais profunda que temos uma espécie de direito de mentir àquele que pensa que somos mentirosos, de bater naquele que o julga um grosseiro e assim para o resto. (...) Se você distingue um condenado, você lhe dá um tipo de direito selvagem. No fundo de todos os vícios há, sem dúvida, alguma condenação na qual acreditamos; o julgamento confirma sua prova e a prova fortalece o julgamento”. Desse tipo de “lei do julgamento”, que é uma lei de condenação, Alain extrai a seguinte lição: “Eu tento nunca julgar tão alto, nem mesmo baixo, porque os olhares e a atitude falam sempre mais; e eu espero o bem após o mal, frequentemente pelas mesmas razões; nisso, eu não me engano muito; todo homem é muito rico”” (pr. 11). E vê-se já aqui que há uma passagem de uma análise que prende o mundo familiar à escola: é como professor que Alain proíbe-se de julgar, ao menos ele se esforça nisso.

a nOrma da exteriOridade

Essas diferentes análises têm por objeto enfatizar negativamente uma determinada norma: “a boa autoridade” deve se abster e deve ser exterior; ela não deve se meter a regular a atividade do interior, ela não deve querer participar e mesmo ver. Alain fará dessa norma adotada nas brincadeiras coletivas entre iguais uma norma da escola e uma norma pertinente à relação mestre/alunos.

As passagens que confirmam isso são múltiplas e com sentidos vários.

Para começar, nesta passagem onde se encontra a dualidade entre a condição da infância e a espontaneidade infantil: “Não devemos ter medo de desagradar às crianças e é mesmo necessário ter medo de agradá-las. A criança gosta do que é fictício, mas ela o despreza também. Se você ajudá-la

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a contar, ela cederá e se alegrará, porque ela é criança, mas se você não ajudá-la, se ao contrário você espera calmamente que ela mesma se ajude e se você mostra a falha sem nenhuma complacência, é nesse momento que ela reconhecerá seu amigo verdadeiro, que não a adula e que não a engana. Quanto à severidade, o resultado se encarregará dela sendo implacável”4. A frieza do professor que faz somente apontar ou mostrar a falha e assim nem corrige, nem ajuda, responde à espontaneidade infantil que tende a fazer “por seus próprios meios”, e que se mantém a si mesma.

Ou ainda, conforme a proposta 13: “Aprender requer esforço, mas é necessário que o mestre seja um estranho e distante; a partir do momento que ele se aproxima e quer moldar a criança, há o choque”.

É necessário, pois, que os mestres mantenham distância. Essa última ideia é, talvez, a mais surpreendente para nós, porque ela sugere que o professor não tem que se meter a “aprender”. Entretanto, Alain nos assegura que é mantendo certo distanciamento que uma conversação será possível com o aluno e, talvez uma tocante lição para aprender: “A conversa com um irmão mais velho é sempre difícil; ela é talvez impossível com um pai; ela é mais natural com um estranho de outra idade; mais natural com um mestre da escrita ou da ciência, ou das letras, porque o mestre verifica e mantém as diferenças, enquanto que um pai e um irmão querem aproximar e compreender e se irritam antes de conseguirem isso”. O pai, bem como o irmão, gostariam de compreender as dificuldades, gostariam de ajudar e tornam-se, dessa forma, intrusos. Em contrapartida, Alain parece sugerir que é porque o mestre mantém certa distancia que ele torna possível outra relação e possibilitando uma conversa sem mal-entendidos.

Alain não diz mais nada sobre isso, mas nós podemos prolongar o assunto. Diferentemente do pai ou do irmão, o professor espera; ele não procura entender a razão pela

4 Pr. 3.

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qual a criança não compreende, nem faz a menor hipótese, a não ser secretamente e para si mesma, mas sem que isso tenha a menor influencia sobre sua ação. Ele espera; ele espera para ver e prepara-se para discutir o trabalho feito e, sobretudo, escutar o que o aluno diz a respeito, escutar as razões de ter feito isso ou aquilo. Dito de outro modo, ele espera que as explicações sejam dadas, tendo esperanças que nas palavras que vão surgir, as quais ele não pode adivinhar antecipadamente, se mostrará claramente o equívoco, a imprecisão, a razão que explicará e fará compreender. Ele não julga nada antes, somente espera e escuta, não recusa nenhuma explicação.

Nós poderíamos dizer que longe de querer explicar, compreender e ajudar, o professor espera que o aluno pergunte e demonstre a dificuldade: “eu não compreendo isso ou aquilo”: dizer tal coisa, não é exatamente pedir ajuda, é demonstrar uma dificuldade esperada com a qual o professor pode trabalhar. Ora, sabe-se que tais pedidos de esclarecimentos e, sobretudo, o hábito de solicitá-los é, de fato, raro nas escolas e que é necessário lutar com os alunos e conosco mesmos para torná-lo eficaz. A instauração desse hábito, enquanto regra do trabalho habitual na escola, a reflexão igualmente nessas condições (o que a impede, bem como o que a autoriza) me parece perfeitamente adequada para mudar muitas coisas na escola e, particularmente, para construir uma relação mais ativa do aluno com ele mesmo.

Se o professor deve continuar do lado de fora, veremos qual o sentido específico tem essa injunção. Mas veremos como se desenvolve essa relação externa.

a CrítiCa dOs psiCólOgOs.

É nesse momento que a crítica aparece de modo regular na obra dos filósofos, dos pedagogos sempre suspeitos de intrusão psicológica. Parece-me que Alain foi bem claro a respeito desse ponto na proposta 21. Falando do desenho

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livre e pensando, sem dúvida, nas obras de psicologia que se escrevia sobre o desenho, ele escreve o seguinte: “Eu vejo claramente que esses desenhos livres podem instruir o mestre; mas a escola tem também por objetivo instruir as crianças. Vocês dizem que, para instruir, é necessário conhecer aqueles que são instruídos. Eu não sei. Talvez seja mais importante conhecer o que se ensina. Quanto à natureza da criança, que é representada nesses desenhos simples, a partir desses traços insistentes, desses movimentos desajeitados, desses rabiscos fortes, eu creio que ela desafia seu julgamento e todo julgamento existente. Eu vejo até mesmo indiscrição nesse olhar do psicólogo, que procura adivinhar alguma coisa, declarar, julgar de modo favorável essa natureza onde tudo seria ruim pela ignorância, a confusão, a timidez, a dependência, a fúria, a tristeza, mas também tudo seria bom, sim, tudo, pela ciência, cultura, exercícios físicos, autodomínio, entrega. (...) O que é bom para todos e universalmente humano é precisamente aquilo que parece ter sido escrito para cada um; enquanto que aquele que quer dirigir-se a mim, criança ou homem coloca-se a minha altura, está sempre perto e, frequentemente, abaixo. Os psicólogos se enganam sobre tudo e sobre eles mesmos, por causa desta mania de querer tudo conhecer em vez de mudar e educar. Conhecer meu pensamento é fazê-lo; conhecer meu sentimento é educar e humanizar. Meu verdadeiro retrato é em Homero, Virgilio, Montaigne. E, ainda mais à criança que a mim mesmo, eu devo ter um espelho onde ele se veja crescido e purificado”5.

A continuidade entre brincadeiras coletivas e escola se estabelece, pois, nesse tema da intrusão e na indiscrição sempre ameaçadora dos psicólogos em querer conhecer a criança. É o desenvolvimento do “grupo escolar” a partir de um tipo de ciúmes de si mesmo, ou de uma forma de sentimento que faz com que, quando brincam ou trabalham, as crianças não gostam que se intrometam em suas atividades. E aos olhos de Alain, o pai que se mete nas brincadeiras das

5 Pr. 21, eu disse, e a tese foi retomada na 23ª lição de P. E.

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crianças é, evidentemente, intrusivo, o mesmo ocorre com o professor que se preocupa em saber ao mesmo tempo em que ele ensina e, porque ensina, é intrusivo. Não há nenhuma necessidade de saber para mudar e educar.

Desdobremos claramente os argumentos. Se o pro-fessor não tem que ser um psicólogo é por dois motivos. Para começar, “a natureza das crianças desafia nosso julgamento”: quem pode deter os meios de ver as razões pelas quais uma criança, em certo momento, se choca contra certos aspectos de uma disciplina? Esses motivos serão sempre únicos e escondidos; a psicologia pode nos falar somente de leis gerais, que ela terminaria por projetar de qualquer jeito em casos particulares; observando cada vez mais essas leis e pensando que elas são leis reais do funcionamento mental. É preciso também constatar que é nessas condições particulares e únicas que os psicólogos da aprendizagem se intrometem por vezes no que é efetivamente um obstáculo. Os trabalhos de S. Baruk parecem demonstrar claramente que, de fato, as “razões” dos “bloqueios” se devem frequentemente aos “quase nada”, aos pequenos equívocos que são em seguida corrigidos, mas que demandam numerosos acompanhamentos e entrevistas individuais. Eu quero dizer que além do fato de que as “razões” dos bloqueios se darem, às vezes, em função de situações únicas e imprevisíveis, as condições gerais da escola tornam difícil, senão impossível, escutar esses alunos.

Na sequência, Alain parece dizer, sobretudo, que esse conhecimento seria inútil de qualquer modo: o objetivo é a facilitação e a flexibilidade, e essa última, por necessidade, nos livra das insistências, dos rabiscos, da inaptidão. O nó passional, ao contrário, se articula sempre ao da inaptidão, se bem que basta corrigi-la, assim como a impaciência, o autobloqueio e o medo de não fazer bem. “Eu me descubro fazendo algo facilmente; eu me descubro como se esse poder de facilitação e esse poder de realizar ultrapassassem qualquer paixão”, poderíamos dizer; a descoberta da subjetividade livre e soberana é a descoberta desse poder de agir facilmente. Há

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um poder de realizar algo com graça que ultrapassa nosso conhecimento, ou mais exatamente, tudo o que nós dizemos de nós mesmos, todas as dúvidas ou crenças desmedidas que nós podemos ter a respeito de nós mesmos. Nós temos esse poder de realizar com facilidade bem antes de saber. Não é porque eu me controlo ou porque eu sou capaz de controlar minhas paixões ou minhas inabilidades que eu faço algo facilmente; é muito mais que isso: é o fato de que há facilidade ou experiência de meu poder de agir facilmente que me revela certa subjetividade que me representa e que ultrapassa toda e qualquer inabilidade. Mas, com certeza, “nós gostamos” de nossa inabilidade, nós gostamos de conservá-la, confortavelmente, e quando aparece uma circunstância, nós nos desprendemos dela; nós gostamos de reclamar e de calar ou, ainda, de partilhar nossas hesitações. É nesse ponto que a psicologia é, talvez, perigosa, porque ela faz acreditar que há boas razões para reclamar, ou mais exatamente, ela faz nossa facilidade eventual depender da supressão de toda razão de sermos impacientes. Ora, a própria facilidade, o poder de agir facilmente revela um outro lugar da subjetividade, um outro local, distinto e independente daquele do mau humor, que é o lugar principal de nossos sentimentos, como o medo e a satisfação desse medo.

Nós reencontramos aqui a importância da ação pois, a despeito da afirmação segundo a qual seria melhor conhecer o que se ensina mais do que aqueles para quem se ensina para bem ensinar, o que Alain opõe a essa tendência psicológica, é a preocupação com a flexibilidade, com a cultura de uma dada flexibilidade ou de uma dada facilidade, e sobre a qual ele diz que, ela sim, muda crianças. Assim, não é estudando “as representações” que se consegue a flexibilidade esperada, mas é tornando sistematicamente possível na sala de aula a realização fácil tanto quanto espontânea daquilo que muda os indivíduos.

Toda reflexão a respeito da disciplina na obra de Alain, bem como sua reflexão sobre os exercícios escolares vão nesse sentido. Mas eu não posso me estender sobre isso aqui.

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a via indireta

Vê-se bem nesse texto que a crítica da psicologia está relacionada a outra temática que diz respeito ao vínculo do fazer espontâneo com as grandes obras, sendo que o fazer espontâneo vai direto ao ponto. O ponto de junção é, poderíamos dizer, a ausência de obstáculo, o gosto e a capacidade de ir direto ao ponto, onde se situa a facilidade. Uma obra não é bela e expressiva para outros, porque ela dá testemunho de um determinado gosto pela simplicidade (o que não significa que todas as obras sejam simples: em função da complexidade e da diversidade de implicaturas e questões assumidas por elas, se sua grandeza consiste em separar de modo preciso, esse traço pode lhe ser mais ou menos complexo a dominar. Assim, o texto de Platão que nós vimos acima comprova essa simplicidade, sem que para tanto nós possamos dizer que ele é simples, ou passível de ser resumido em algumas frases).

Mas, parece que Alain evidencia que a preocupação de reformar, educar, é apenas indireta. Aqueles que querem dirigir-se a mim e me reencontrar, me escapam; aqueles que, ao contrário, tiveram preocupação em se analisarem e compreenderem, esses falam com todos. Aqui fala o leitor de obras filosóficas e literárias, mas também poderíamos acrescentar que as obras que enfatizam as ciências humanas, ao menos algumas dentre elas, não têm nenhuma dimensão exortativa, encarregando-se apenas em evidenciar. As obras que educam, efetivamente, não são as obras que pretendem fazê-lo, ou que pretendem nos dizer o que conviria fazer. As obras que educam são escritas, principalmente, por aqueles que se desesperaram a respeito desse assunto e que se entregaram ao fato de somente compreender ou querer compreender. Não de modo abstrato e mecânico como se, no fundo, para fazer uma boa ciência ou para realmente fazer ciência fosse necessário crer antes na preocupação de reformar, na preocupação da educação e da melhora e só depois ter a experiência que, de fato, não permite chegar a nada por esse caminho. O gosto, o valor que se confere

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à simplicidade vem desta experiência ou dessa decepção: queremos ter o interesse simples e puro de demonstrar, por termos compreendido que não havia interesse em mudar os pensamentos do que se é. Se essa impossibilidade pode ser considerada verdadeira, a dificuldade está em refletir bastante sobre ela para que se torne um critério do discurso: eu procuro a simplicidade, a exatidão, na medida em que eu paro de crer que meu discurso teria a propriedade de tocar ou mudar o que quer que seja. Da mesma forma, é a crença em “não é preciso dizer que sou compreendido ou que deveria ser” que nos torna negligentes.

De qualquer modo, o conjunto dos três traços que eu tentei desenvolver aqui (natureza única da criança, a relação entre subjetividade e facilidade, a razão de um direcionamento que, para ser eficaz, não deve ser anexado a evidencia de que ele se faz sozinho), eu gostaria de nomear: “via indireta”

A proposta 32 é uma variação disso e da qual eu gostaria de citar as passagens principais: “A partir do momento que nós nos instruímos com o objetivo de ensinar, instruímo-nos mal. Aquele que revê a totalidade do século de Luis XIV a fim de falar dele de modo conveniente e sequencialmente durante uma hora ou duas, não aprende nada da história; eu diria que ele a esquece. (...)

Eu quero um professor tão instruído quanto ele pode sê-lo; mas instruído nas fontes. O ensino superior instrui na fonte. Que o futuro professor vá até elas e que ele consiga três ou quatro diplomas segundo o seu gosto, duas línguas, duas ciências. Mas que ele não vá, depois disso, derramar tudo o que ele sabe em uma aula de crianças, onde ainda se soletra. É necessário que o professor seja instruído, não para ensinar o que ele sabe, mas para esclarecer algum detalhe rapidamente, sempre improvisando, porque as ocasiões, os lampejos de atenção, o jogo de ideias em uma cabeça jovem não podem ser previstas. Para o dia a dia, eu concebo a classe primária como um lugar onde o professor não trabalha e onde a criança trabalha muito. Não o lugar onde as lições caem

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como a chuva e que a criança escuta de braços cruzados. Mas onde as crianças leem, escrevem, calculam, desenham, recitam, copiam e recopiam. (...) Muitos exercícios no quadro, mas nunca repetidos no caderno e, sobretudo, lentos, repetitivos e ocupando muito tempo. Enfim, um tipo de atelier. (...) O que você pensaria de um mestre pintor que pintasse diante dos alunos? (...) O mestre observará do alto, livre de preparações, de desgastantes monólogos e dessas ridículas entrevistas pedagógicas nas quais ele rumina a mesma coisa no lugar de adquirir outras. Livre da fadiga e tendo tempo para si mesmo, ele se instruirá sem cessar, se ele é instruído primeiro nas fontes; e eis o professor capaz de guiar e esclarecer em algumas palavras, em momentos raros e preciosos em que a mente da criança dá um salto. E, para preparar esses momentos felizes, há a leitura, a escrita, a recitação, desenho, cálculo; trabalho de campo, zumbido de vozes infantis”. Essa proposta trata, pois, da formação dos professores e de seu oficio; vê-se aí o modelo do atelier e, sobretudo, do atelier da escrita se anuncia o qual nós retomaremos mais abaixo.

Vemos, sobretudo, ser afirmado novamente essa “via indireta”, aqui construída contra toda a pedagogia, contra toda a preocupação pedagógica, crítica relacionada a certa teoria da mente que aparece apenas furtivamente e em local específico, em contraponto a uma atividade delimitada e constante e que é necessário poder controlar. De um lado, a repetição constante de exercícios, sobretudo, da escrita; de outro lado, os movimentos furtivos da mente que deve ser controlada.

Nesse sentido, o mestre na obra de Alain é, apesar de tudo, um psicólogo: ele é atento aos movimentos da mente que são movimentos cognitivos. Ele é curioso disso, ele os recolhe e os compreende, ele os corrige sem dúvida e os conduz igualmente. A psicologia que era recusada era uma psicologia que pretendia estar à frente da mente da criança e dessa forma controlar sua realização.

Mas o notável é também a total confiança que exprime Alain. Confiança total em uma parte no próprio saber, que não tem nada a ver com a memorização de conhecimentos,

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mas que corresponde aos melhores movimentos da mente: aquele saber que, quando ele se eleva, reencontra as fontes do saber e cabe ao professor lhes dar significado. Por pouco que ele conheça a fonte, esse saber não é estranho ao que ele tem de mais espontâneo na mente. Logo, no momento em que a mente da criança se eleva, não são operações psicológicas que controla o mestre, mas sua aptidão para conhecer e saber. E isso explica novamente e mais profundamente sua rejeição da psicologia. O que os alunos compreendem de si mesmos, por pouco que trabalhem ou que estudem, não é estranho ao saber, mas diz respeito a ele diretamente. Isso quer dizer nada mais que o saber não é um dado exterior, mas que ele é obra de nossas mentes. Confiança total, por outro lado, na universidade onde provavelmente encontraríamos aquilo que Alain nomeia de a fonte do saber, isto é, o que é essencial e primeiro nele. Mais se medita sobre as fontes, mais encontrasse a mente em seu nascimento e é isso que torna inútil toda pedagogia.

O que se afirma aqui é a impossibilidade de formar o que se chama uma mente ou a mente: são formados, no máximo, alguns hábitos de escrita, mas nesses exercícios deve poder surgir, e surge efetivamente, todo um conjunto de observações, de ideias, “lampejos de atenção” os quais é preciso controlar, isolar, apresentar, relacionar com as fontes do saber.

Tem-se a impressão de que nesse ponto é a prática de Alain que se expressa, ou que ele mesmo dava essa atenção aos movimentos da mente: do mesmo modo que em todo trabalho escrito há o que se chama não de pérolas, por geralmente zombarmos delas, mas sim de descobertas e de descobertas notáveis, mas frequentemente deslocadas por sua falta de jeito. E frequentemente obscuras para aqueles que as disseram ou escreveram. Nesse momento, mais que a prática de Alain, o que fala é a prática de um corretor ou de um examinador de trabalhos que vê as gafes e porque ele vê também o que pode ser excelente e assim atingir o objetivo. Não é preciso nenhuma pedagogia a respeito disso, se entendemos por pedagogia a pretensão de um método para

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conduzir a mente; o que é principalmente requisitado é o poder de análise e atenção, atenção aos próprios movimentos da mente, como eles se relacionam e chegar ao essencial, a capacidade de retomar os trabalhos e de colocá-lo em forma.

Parece-me que essas teses precisam de algumas correções.

Para começar, pode-se adiantar que Alain é bem pouco dialético: o que é descrito aqui é a prática de um professor que se tornou meditativo, ou que soube se distanciar de um saber enquanto conjunto de conhecimentos a transmitir, que soube se distanciar da pretensão da via direta para formar mentes e que pode preocupar-se com os exercícios e com o que aparece nesses exercícios. Essa posição é um resultado, o resultado de uma experiência e não de uma posição imediata. A universidade como a conhecemos atualmente não transmite essa distância ao saber que Alain supõe aqui. A imagem de um professor que simplesmente “teria alguns diplomas universitários” supõe que alguém livre em sua mente, capaz de discernir por si mesmo o saber e as fontes do saber, de modo que o que fala Alain parece-me, sobretudo, convir à pessoas em formação contínua tendo já estabilizado suas práticas e os exercícios em sua prática e que, de um momento a outro, podem melhor dirigir-se às “fontes”, dirigir-se ao que há de mais essencial em um saber e, assim, estabelecer um vinculo com os trabalhos dos alunos. Inversamente, um ensino que se declara como a fonte, produziria a confusão que consiste em pensar que esse saber é o que há para se conhecer e transmitir e não encontrar ocasionalmente. Não se pode mais ensinar as fontes como tais não seria necessário que a universidade diga e mesmo pense que ela traz o saber essencial ou o saber na fonte. A noção de saber elementar, se ela pretende isolar esses saberes-fontes primeiro, é no sentido de uma impossibilidade: declará-lo como tal, pretender ensiná-lo como tal, é tornar impossível o fato de que o encontramos. Nesse ponto, Alain é platônico.

Em segundo lugar, parece-me igualmente que a análise do medo é insuficiente. Alain pensa no fundo que

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não há razão nunca para ter medo e mais precisamente, nenhuma boa razão; os temores, os medos são puramente imaginários e devem-se sempre a uma falsa timidez, um tipo de constrangimento imaginário, preguiça, a um “defeito de juventude”. Podemos estar de acordo ao dizer que a enunciação dessas razões imaginárias é que permitem à criança de retomar a iniciativa e reencontrar esse poder de iniciativa que ela tem. Assim, a criança vem em direção a nós por nos confiar seus temores; nós os escutamos, os compreendemos simplesmente, sem julgá-los, os acolhemos e dessa forma, ela os esquece e pode retomar a iniciativa, mas “dessa forma” porque seus medos, enquanto necessidade infantil, terão sido aumentados, aceitos, sem julgamento. Nesse sentido, há uma legitimidade em entender e em considerar as representações: aquelas que tentam exprimir nossos medos e tensões internas. Parece-me que a experiência analítica reencontra essa questão quando ela diz que, na cura, os sintomas são suprimidos muito rápido enquanto sintomas que dizem respeito a nossas dificuldades de empreender.

COnClusãO

Devemos, pois, considerar as representações e em que sentido exatamente? A argumentação de Platão diz que sim e ele até mesmo admite a ideia de que há uma pedagogia propriamente dita somente em função dessa consideração. No entanto, essa consideração se traduz principalmente na livre encenação de um diálogo onde as representações serão objeto de estudo. Elas não são mais as crenças de um individuo, elas são estudadas, isso sim, como crença-tipo, por aqueles que as formularam. O jogo de Sócrates, que é também o de Platão escritor, consiste em refletir no que eles dizem e parecem acreditar também; ele leva suas falas a sério. Mas, nesse trabalho de reflexão, não se sabe precisamente se é apensas um único individuo que é questionado; temos a impressão que é uma crença bem comum, que poderia ser também a do próprio Sócrates. Curiosamente, nos textos de Platão alguns indivíduos apenas nos mostram o que é

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necessário realmente mudar, mas eles nos mostram nós mesmos. Cada um pode se reconhecer nele. Nesse sentido, em sua obra, as representações são objeto de estudo tanto quanto de crítica.

Especifiquemos que nessa delimitação, é a noção de “representação inicial” que perde toda legitimidade. De fato, frequentemente ela funde duas coisas bem diferentes: a representação explícita, que vamos estudar e criticar e depois a crença de que essa representação é a crença interna da mente que criticamos e que essa crença é estável nessa mente. Confundimos e sobrepomos dois níveis, o primeiro pode ser chamado lógico (trata-se do exame de certas representações na perspectiva da verdade delas) e o segundo psicológico (ao qual adere uma mente num momento específico).

Daí a introdução da noção de concepção, que se esforça em dar um pouco de estabilidade interna a nossas crenças. Assim, por exemplo, o que aparece através de desenhos ou representações esquemáticas desse ou daquele fenômeno físico ou biológico é, mais do que através de palavras, supostamente, melhor delimita as “concepções” das crianças, o que elas pensam realmente. É certo que essa diferença nas modalidades representativas (seja uma simples palavra, seja um desenho ou um escrito) é significativa e não saberia ser negligenciado: vemos melhor as crianças através de seus trabalhos do que através do que elas dizem rapidamente e, nesse sentido, os escritos são um melhor observatório desses que são crianças, ou ainda de onde eles estão. Mas desde o momento que a máquina é lançada, será necessário “extirpar” a representação assim compreendida, a “concepção”, para substituí-la por uma melhor. Tratar-se-á de substituir uma concepção errônea por outra, colocar uma coisa no lugar de outra.

Se, em contrapartida, tratamos a representação ou concepção como um simples ponto de partida no discurso e no exame, a única coisa que fazemos é estudá-la e examiná-la, não se julga antecipadamente que ela esteja “na mente”, mesmo se ela estava nos escritos, além de simples palavras. Ela poderia ter sido, o que é outra coisa. Não se pretende

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fixar não importa o que aqui, nem pensar de qualquer modo; dizemos que certas concepções são mais pesadas, tem mais peso que outras, se prendem por diversos fios a nossas experiências, nossas condições, nossos usos (e tanto os nossos quanto os das crianças) e nos preocupamos somente em examiná-las, sem nos identificar com elas. Por isso, sugerimos e pensamos como se a mente fosse algo tal como um poder de examinar mais que um conjunto de representações ou concepções internas.

Retomando, entretanto, a questão das representações, não há necessariamente oposição ao que adianta Alain. Esse último é muito preocupado com a atividade e pensa que o poder de agir e de fazer dos alunos, não exatamente aprender, não depende do estado de suas representações. O objetivo é de que eles façam e que eles ousem fazer e Alain exprime uma grande confiança nesse poder das crianças de fazer por conta própria e de fazer bem, simplesmente. O objetivo não é somente que eles façam bem, mas que eles façam, encontrem, se ajustem aos dados. Veremos, em seguida, o que eles terão feito e eles não terão com o que se inquietar, como nós não temos que perturbá-los com isso. Eles farão; depois, porque eles terão feito, responderão. A aprendizagem é tão somente isso. “Infeliz, o que você vai fazer aí,”, é uma expressão de ateliê. “Mostre-me o que você fez” é uma expressão de escola, diz ele e nessa ideia de aprendizagem, na qual se trata retomar a si mesmo, isto é, de retomar as primeiras tentativas, não há nenhuma necessidade de “considerar as representações”. A única coisa que conta é livrar-se do medo, da timidez, do orgulho, que são para Alain as paixões que tornam impossível a ação facilitada.

Entretanto, o que pode acontecer também é o estudo do que os homens, em geral, pensam; os adultos e as crianças, os ignorantes e os inteligentes que pensam, frequentemente, as mesmas coisas; as crenças de uns e de outros e, claro, de qualquer lugar. Alain pensava que esse era o lugar das Humanidades e em particular, da literatura. Pode-se acrescentar que atualmente esse campo estendeu-

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se consideravelmente e que ele seria permitido levar esses materiais de análise para outros lugares. A escola se abriria, por seu turno, ao estudo da mente, com todas as suas loucuras, bizarrices e beleza. Mas é ainda melhor formar as crianças do que estudar e querer estudar com eles a mente nas formas em que ela se apresenta? É estranho que duvidemos ainda disso e que curiosamente a escola é tão pouco aberta a esse tipo de estudo, mesmo em um domínio tão neutro quanto à história das ciências. É porque nós temos que parar de querer reformar os outros e, em particular, as crianças, produzindo sempre a mesma separação entre eles e nós. É necessário crer que ela nos faz bem e que nós temos nossa identidade de adultos.

bibliOgrafia

Platon, O sofista

Alain: Propostas sobre a educação.

study Of representatiOns versus COnsideratiOn Of representatiOns: a COntributiOn traditiOnal philOsOphy

“Consider the representations of students” is currently the buzzword of the pedagogical culture. However, it is not difficult to show that this slogan has roots in the earliest texts of the philosophical tradition, and especially in the work of Plato: the Socratic method of “refutation” is to develop it. This allows you to return to the sources, firstly, to situate this relationship in the midst of others and do not understand this slogan the sole and exclusive way of teaching and, on the other hand, limits the rights of this relationship with education more directly contributing to spontaneity of activity. The philosopher Alain allows this criticism.Keywords: pedagogy; refutation; trial; spontaneity; Socrates, Plato, Alain.

Abstract

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