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Outorga de Direito de uso dos Recursos Hídricos e suas implicações na Atividade Agropecuária Revista Referência - Ano 2 - Nº 2 - 2º Semestre 2016 ISSN 2359-5728 OUTORGA DE DIREITO DE USO DOS RECURSOS HÍDRICOS E SUAS IMPLICAÇÕES NA ATIVIDADE AGROPECUÁRIA Carinna Gonçalves Simplício Leonardo Vieira de Faria RESUMO A conceituação da água como bem de uso comum do povo e, portanto, de domínio público, implica a impossibilidade de sua apropriação por uma só pessoa física ou jurídica, com exclusão absoluta de outros usuários em potencial. Em se tratando a água de um bem de uso comum do povo, a intervenção que se pretenda efetuar em um corpo hídrico, relativa à quantidade, qualidade ou regime das águas, dependerá, na maioria das vezes, de outorga pelo Poder Público. A outorga de direito de uso de recursos hídricos é um ato administrativo autorizativo, mediante o qual o Poder Público faculta ao outorgado fazer uso da água por determinado tempo, nas condições expressas no respectivo ato. A gestão do imóvel rural está condicionada a este instrumento, seja por aspectos de localização regional onde o imóvel rural está inserido, seja pela atividade produtiva desenvolvida ou, ainda, no que tange ao domínio do imóvel rural. Acerca da localização do imóvel rural, verifica-se que a outorga está relacionada a variações regionais tanto da disponibilidade quanto da demanda, exigindo adequações ao planejamento ambiental e produtivo. A atividade produtiva a ser exercida no imóvel rural também se relaciona com a outorga, na medida em que o consumo de água varia de acordo com a modalidade da atividade e com os processos produtivos empregados, havendo também a distinção entre usos prioritários para abastecimento público e dessedentação animal. No que tange à dominialidade do imóvel rural, há de se partir do pressuposto que a intervenção em corpo hídrico acarretará a utilização do solo do imóvel rural, necessitando ser resguardo o direito de propriedade. Palavras-chave: Outorga de direito de uso dos recursos hídricos. Água. Atividade Agropecuária. ABSTRACT Doutora em Administração; Doutoranda em Teoria do Direito; Mestre em Direito Empresarial; Especialista em Direito Público; Professora Universitária; Bolsista CAPES; Advogada e Analista Ambiental do Instituto Mineiro de Gestão da Águas - IGAM. Mestre em Ciências; Especialista em Meio Ambiente; Especialista em Avaliação de Flora e Fauna em Estudos Ambientais; Zootecnista; Agrônomo e Gestor Ambiental da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável SEMAD.

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Outorga de Direito de uso dos Recursos Hídricos e suas implicações na Atividade Agropecuária

Revista Referência - Ano 2 - Nº 2 - 2º Semestre 2016 – ISSN 2359-5728

OUTORGA DE DIREITO DE USO DOS RECURSOS HÍDRICOS E SUAS

IMPLICAÇÕES NA ATIVIDADE AGROPECUÁRIA

Carinna Gonçalves Simplício

Leonardo Vieira de Faria

RESUMO

A conceituação da água como bem de uso comum do povo e, portanto, de domínio público,

implica a impossibilidade de sua apropriação por uma só pessoa física ou jurídica, com exclusão

absoluta de outros usuários em potencial. Em se tratando a água de um bem de uso comum do

povo, a intervenção que se pretenda efetuar em um corpo hídrico, relativa à quantidade, qualidade

ou regime das águas, dependerá, na maioria das vezes, de outorga pelo Poder Público. A outorga

de direito de uso de recursos hídricos é um ato administrativo autorizativo, mediante o qual o

Poder Público faculta ao outorgado fazer uso da água por determinado tempo, nas condições

expressas no respectivo ato. A gestão do imóvel rural está condicionada a este instrumento, seja

por aspectos de localização regional onde o imóvel rural está inserido, seja pela atividade

produtiva desenvolvida ou, ainda, no que tange ao domínio do imóvel rural. Acerca da

localização do imóvel rural, verifica-se que a outorga está relacionada a variações regionais tanto

da disponibilidade quanto da demanda, exigindo adequações ao planejamento ambiental e

produtivo. A atividade produtiva a ser exercida no imóvel rural também se relaciona com a

outorga, na medida em que o consumo de água varia de acordo com a modalidade da atividade e

com os processos produtivos empregados, havendo também a distinção entre usos prioritários

para abastecimento público e dessedentação animal. No que tange à dominialidade do imóvel

rural, há de se partir do pressuposto que a intervenção em corpo hídrico acarretará a utilização do

solo do imóvel rural, necessitando ser resguardo o direito de propriedade.

Palavras-chave: Outorga de direito de uso dos recursos hídricos. Água. Atividade Agropecuária.

ABSTRACT

Doutora em Administração; Doutoranda em Teoria do Direito; Mestre em Direito Empresarial; Especialista em

Direito Público; Professora Universitária; Bolsista CAPES; Advogada e Analista Ambiental do Instituto Mineiro

de Gestão da Águas - IGAM. Mestre em Ciências; Especialista em Meio Ambiente; Especialista em Avaliação de Flora e Fauna em Estudos

Ambientais; Zootecnista; Agrônomo e Gestor Ambiental da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável – SEMAD.

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The concept of water as a good of people common use and, therefore, with public domain,

implies the impossibility of its ownership by one person or entity with absolute exclusion of other

potential users. The intervention in the regime, quantity or quality of water, as a good of people

common use, depends on grants by the Government. Granting the right of water resources use is

an administrative act of authorization, whereby the Government provides granted to make use of

the water for some time, under the conditions expressed in the respective act. The management of

rural property is conditioned to this instrument, by aspects of regional rural location where the

property is located and by the productive activity developed or even with regard to rural property

area. About the location of rural property, it appears that the grant is related to regional variations

in both availability as demand, requiring adjustments to the environmental and productive

planning of rural property. The productive activity to be performed in rural property also relates

to the grant, to the extent that water consumption varies according to the type of activity and the

processes employed, and there is also the distinction between priority uses for public supply and

animal consumption. Regarding the dominion of rural property, it has to be assumed that the

water resource intervention will result in rural property land use, requiring guards of the right

property.

Keywords: Granting water resources use right. Water. Farming activity.

1 INTRODUÇÃO

A água, entendida como um bem natural, assume papel de destaque no cenário atual de

desenvolvimento socioeconômico. Trata-se de um recurso de uso comum do povo, indispensável

à sadia qualidade de vida, à recreação, às atividades econômicas e às obras sociais.

Segundo consta da Constituição Federal de 1988, todos têm direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, cabendo ao Poder Público e a coletividade o dever de protegê-lo e

preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Assim, a água, é um bem de uso comum do

povo, cuja gestão deve se pautar pelo equilíbrio ecológico.

No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos foi instituída por meio da Lei 9.433,

de 08 de janeiro de 1997. Dois anos mais tarde, Minas Gerais editou a Política Estadual de

Recursos Hídricos, pela Lei Estadual 13.199, de 29 de janeiro de 1999. Ambas as políticas

públicas instituem instrumentos de gestão que visam garantir a utilização das águas em

quantidade e qualidade e regime satisfatórios para as presentes e futuras gerações.

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Apesar de sua aparente abundância e da posição privilegiada do Brasil no cenário

mundial, os recursos hídricos têm sido objeto de conflito pelos múltiplos usuários, frente ao

aumento da demanda e à escassez da oferta (MINAS GERAIS. SEMAD, 2008).

Cumpre ressaltar que a gestão dos recursos hídricos está historicamente vinculada à

geração de energia hidrelétrica. Conforme consta do Atlas de Energia Elétrica do Brasil, editado

pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL (2002), a contribuição da energia hidráulica

ao desenvolvimento econômico do país foi e continua sendo expressiva, participando com 42%

da matriz energética nacional gerando cerca de 90% de toda a eletricidade produzida no país.

Não obstante sejam os recursos hídricos a principal fonte de geração de energia elétrica

do Brasil, há outras possibilidades de utilização que também precisam ser garantidos, tais como o

consumo humano; o abastecimento público; a dessedentação animal; os demais usos para fins

industriais, comerciais, agrícolas, de recreação e o transporte hidroviário.

A outorga de direito de uso de recursos hídricos é um dos instrumentos da Política

Nacional de Recursos Hídricos, estabelecido no inciso III, artigo 5º da Lei Federal 9.433, de 08

de janeiro de 1997, bem como da Política Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais, nos

termos do inciso V, artigo 9º da Lei Estadual 13.199, de 29 de janeiro de 1999. O instrumento de

outorga tem por objetivos assegurar o controle qualitativo e quantitativo dos usos da água e o

efetivo exercício dos direitos de acesso à água.

A outorga de direito de uso de recursos hídricos é um ato administrativo autorizativo,

mediante o qual o Poder Público faculta ao outorgado fazer uso da água por determinado tempo,

nas condições expressas no respectivo ato. Dada a natureza do instrumento de outorga, torna-se

necessário conhecer as suas implicações na gestão dos sistemas produtivos, em especial ao

imóvel rural que é elemento fundamental da produção agropecuária.

Diante dessas questões, o presente artigo tem por objetivo apresentar fundamentação

teórica para utilização do instrumento de outorga do uso de recursos hídricos em Minas Gerais e

sua relação com a gestão e planejamento do imóvel rural.

Dentre as alternativas metodológicas existentes, optou-se pela pesquisa documental,

realizada por meio de levantamento bibliográfico (tecnológico, teórico, legislativo e de dados da

Administração Pública), acerca dos conceitos e instrumentos relativos à gestão de recursos

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hídricos. Foram analisados: os fundamentos e diretrizes da Política Nacional e da Política

Estadual de Recursos Hídricos; os instrumentos de gestão de recursos hídricos; a outorga de

direito de uso de recursos hídricos; e a gestão do imóvel rural sob a perspectiva da necessidade

de outorga.

2 FUNDAMENTOS E DIRETRIZES DA POLÍTICA DE RECURSOS HÍDRICOS

O artigo 1º da Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997 institui os fundamentos da Política

Nacional de Recursos Hídricos, in verbis:

Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:

I – a água é um bem de domínio público;

II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico;

III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo

humano e a dessedentação de animais;

IV – na gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas;

V – a bacia hidrográfica e a unidade territorial para implementação da Política Nacional

de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos

Hídricos;

VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação

do Poder Público, dos usuários e das comunidades (brasil, 1997).

Granziera (2006, p. 89) ensina que, “quanto maior a importância de um bem à

sociedade, maior a tendência a sua publicização, com vista na obtenção da tutela do Estado e da

garantia de que todos poderão a ele ter acesso, de acordo com os regulamentos estabelecidos. ”

Isso foi precisamente o que ocorreu com os recursos hídricos. O inciso I, artigo 1º, da Lei 9.433,

de 08 de janeiro de 1997 determina que a água é um bem de domínio público. O termo “domínio

público” significa o poder que os entes públicos exercem sobre bens, que se prestam ao uso

público.

Uma vez que a água é reconhecidamente de domínio público, por sua utilidade coletiva,

torna-se um bem não suscetível de apropriação. Os bens ambientais, dentre eles os recursos

hídricos, são de uso comum; logo, todos poderão utilizá-lo, mas ninguém poderá dispor dele ou

transacioná-lo (FIORILLO, 2011).

Vale ressaltar que Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997 ao afirmar a dominialidade

pública da água, não transforma a União, os Estados ou Distrito Federal em proprietários da água,

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mas apenas em gestores desse bem de uso coletivo. Além disso, a citada Lei regulamenta o inciso

XIX do artigo 21 da Constituição Federal que prevê que compete à União instituir sistema

nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu

uso.

Por sua vez, a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, prevê

em seu artigo 99, que os rios são bens de uso comum do povo. Tais bens são de uso de todos

indistintamente, de acesso e fruição livres e imediatos pela coletividade.

Segundo Machado (2003), a conceituação da água como bem de uso comum do povo e,

portanto, de domínio público, implica a impossibilidade de sua apropriação por uma só pessoa

física ou jurídica, com exclusão absoluta de outros usuários em potencial.

O Código de Águas, instituído pelo Decreto 24.643, de 10 de julho de 1934, traz no

artigo 1º que as águas públicas podem ser de uso comum ou dominicais. O artigo 6º do Decreto

conceitua as águas públicas dominicais como sendo todas as águas situadas em terrenos que

também o sejam, quando as mesmas não forem do domínio público de uso comum, ou não forem

comuns. No artigo 7º do mesmo diploma, está contida a definição de águas comuns como sendo

as correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se façam, citando como exemplos os

mares territoriais, as correntes, os canais, os lagos e as lagoas navegáveis ou flutuáveis, as

correntes, as fontes, os reservatórios públicos, as nascentes, os braços de quaisquer correntes

públicas, dentre outros.

Além disso, o citado Decreto em seu artigo 8º afirma que “são particulares as nascentes

e todas as águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não estiverem

classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns".

Note-se, entretanto, que os bens dominicais são aqueles que não se destinam à utilidade

pública e que, portanto, integram o patrimônio privado do Poder Público, sendo suscetível à

alienação. São diferentes dos bens de uso comum pela possibilidade de serem utilizados para

qualquer finalidade e de serem alienáveis pela Administração Pública.

A Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997 afirmou a dominialidade pública de todo o tipo de

água e a impossibilidade de sua alienação. O artigo 18 desse diploma legal prevê que “a outorga

não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso".

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Nesse mesmo sentido, no Estado de Minas Gerais, a Lei Estadual nº 13.199, de 29 de janeiro de

1999 determina, em seu artigo 21 que “a outorga confere ao usuário o direito de uso do corpo

hídrico, condicionado à disponibilidade da água, o que não implica a alienação parcial das águas,

que são inalienáveis”.

Assim, com o advento da Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, revogaram-se os

dispositivos do Decreto Federal nº 24.643, de 10 de julho de 1934 que se tornaram incompatíveis

com a nova lei; razão pela qual todos os dispositivos legais que afirmam ser água bem particular

ou dominical encontram-se revogados.

Ademais, o artigo 225 da Constituição Federal (brasil, 1988) estatui que “todos têm

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo [...]”.

Considerando que os recursos hídricos são elementos do meio ambiente, conclui-se que a água é

um bem de uso comum do povo, cuja dominialidade pública está expressa na Lei 9.433, de 08 de

janeiro de 1997, que revogou os dispositivos legais em contrário.

As políticas públicas de recursos hídricos visam garantir a utilização das águas em

quantidade, qualidade e regime satisfatórios para as presentes e futuras gerações. O artigo 3º da

Lei Estadual 13.199, de 29 de janeiro de 1999 (MINAS GERAIS, 1999), determina quais serão

os parâmetros a serem seguidos na implementação da Política Estadual de Recursos Hídricos:

Art. 3º Na execução da Política Estadual de Recursos Hídricos, serão observados:

I - o direito de acesso de todos aos recursos hídricos, com prioridade para o

abastecimento público e a manutenção dos ecossistemas;

II - o gerenciamento integrado dos recursos hídricos com vistas ao uso múltiplo;

III - o reconhecimento dos recursos hídricos como bem natural de valor ecológico, social

e econômico, cuja utilização deve ser orientada pelos princípios do desenvolvimento

sustentável;

IV - a adoção da bacia hidrográfica, vista como sistema integrado que engloba os meios

físico, biótico e antrópico, como unidade físico-territorial de planejamento e

gerenciamento;

V - a vinculação da cobrança pelo uso dos recursos hídricos às disponibilidades

quantitativas e qualitativas e às peculiaridades das bacias hidrográficas;

VI - a prevenção dos efeitos adversos da poluição, das inundações e da erosão do solo;

VII - a compensação ao município afetado por inundação resultante da implantação de

reservatório ou por restrição decorrente de lei ou outorga relacionada com os recursos

hídricos;

VIII - a compatibilização do gerenciamento dos recursos hídricos com o

desenvolvimento regional e com a proteção do meio ambiente;

IX - o reconhecimento da unidade do ciclo hidrológico em suas três fases: superficial,

subterrânea e meteórica;

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X - o rateio do custo de obras de aproveitamento múltiplo, de interesse comum ou

coletivo, entre as pessoas físicas e jurídicas beneficiadas;

XI - a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos aspectos de

quantidade e qualidade;

XII - a descentralização da gestão dos recursos hídricos;

XIII - a participação do poder público, dos usuários e das comunidades na gestão dos

recursos hídricos.

Dentre os fundamentos das políticas públicas de recursos hídricos, pode-se destacar a o

gerenciamento integrado dos recursos hídricos com vistas ao uso múltiplo e a o direito de acesso

de todos aos recursos hídricos, tendo em vista a relação que estes possuem com o instrumento de

outorga de direito de uso de recursos hídricos.

3 OUTORGA DE DIREITO DE USO DOS RECURSOS HÍDRICOS

A Política Estadual de Recursos Hídricos prevê a existência de nove instrumentos de

gestão, que apresentam natureza predominantemente técnica, conforme consta do artigo 9º, da

Lei Estadual 13.199, de 29 de janeiro de 1999:

Art. 9º - São instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos:

I - o Plano Estadual de Recursos Hídricos;

II - os Planos Diretores de Recursos Hídricos de Bacias Hidrográficas;

III - o Sistema Estadual de Informações sobre Recursos Hídricos;

IV - o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo seus usos preponderantes;

V - a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos;

VI - a cobrança pelo uso de recursos hídricos;

VII - a compensação a municípios pela exploração e restrição de uso de recursos

hídricos;

VIII - o rateio de custos das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo;

IX - as penalidades. (MINAS GERAIS, 1999)

Em se tratando a água de um bem de uso comum do povo, toda e qualquer intervenção

que se pretenda efetuar num corpo hídrico e que altere significativamente o regime, a quantidade

ou a qualidade das águas, dependerá de outorga do Poder Público.

Lembre-se que a outorga de direito de uso de recursos hídricos é o ato administrativo,

mediante o qual a autoridade outorgante faculta ao outorgado o direito de uso de recurso hídrico,

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por prazo determinado, não excedente a trinta e cinco anos, nos termos e nas condições expressas

no respectivo ato.

Nessa oportunidade é importante definir ato administrativo, para melhor compreensão

do instrumento de outorga de direito de uso de recursos hídricos. Trata-se de manifestação

unilateral de vontade da Administração Pública que tenha por finalidade adquirir, resguardar,

transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si

própria (MEIRELLES, 2006).

Outorga significa consentimento, aprovação ou permissão (POMPEU, 2006). Segundo

ensina Granziera (2006), a outorga é o instrumento pelo qual a Administração Pública atribui ao

interessado o direito de utilizar privativamente os recursos hídricos.

O instrumento de outorga é o elemento central de controle para o uso racional das águas.

Conforme se extrai do artigo 11 da Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997 e do artigo 17 da Lei

Estadual 13.199, de 29 de janeiro de 1999, o regime de outorga de direito de uso de recursos

hídricos tem por objetivos assegurar o controle qualitativo e quantitativo dos usos da água e o

efetivo exercício dos direitos de acesso à água.

A competência para praticar o ato administrativo de outorga obedece aos ditames

contidos nos artigos 20, inciso III; 26, inciso I e 32, § 1º, todos da Constituição Federal. A

outorga das águas superficiais é de competência da União e dos Estados. Compete à União a

outorga de direito de uso das águas dos lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de

domínio da União ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limite com outros países, ou se

estendam a território estrangeiro ou dele provenham. Compete aos Estados proceder à outorga de

direito de uso das águas superficiais que estiverem sob seu domínio, ressalvada a competência da

União. Por sua vez, a outorga das águas subterrâneas compete apenas aos Estados.

De acordo com o Manual Técnico e Administrativo de Outorga de Direito de Uso de

Recursos Hídricos no Estado de Minas Gerais (IGAM, 2010a), os usos de recursos hídricos que

alteram a quantidade de água existente em um corpo hídrico são as captações, as derivações e os

desvios. Tais usos somente poderão ser outorgados se houver disponibilidade hídrica,

considerados os usos já outorgados a montante e a jusante de determinada seção do curso de

água. Avalia-se então o balanço hídrico na seção considerada, tendo-se por base a vazão de

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referência adotada pelo Estado, verificadas as finalidades a que se destinam as águas captadas,

derivadas ou desviadas, de acordo com procedimentos e critérios definidos para cada finalidade

de uso.

Cumpre ressaltar que as águas que estão acumuladas em reservatórios formados a partir

da construção de barramentos; as travessias rodoferroviárias (pontes e bueiros); as estruturas de

transposição de nível (eclusas); as dragagens e as demais intervenções que alterem as seções dos

leitos e velocidades das águas, produzindo alterações no seu escoamento natural e sazonal estão

sujeitos à outorga (IGAM, 2010a).

A análise do pedido de outorga de direito de uso de recursos hídricos, depende de

informações contidas nos planos de recursos hídricos. Exemplo disso é a previsão das demandas

hídricas nas bacias hidrográficas. A distribuição espacial da demanda de água por município foi

prevista no Plano Estadual de Recursos Hídricos (IGAM, 2011), conforme FIG. 1:

FIGURA 1 – Demanda de Água por Município do Estado de Minas Gerais

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Fonte: IGAM (2011)

O Estado de Minas Gerais demanda um total de recursos hídricos correspondente a

214.336 L/s (duzentos e quatorze mil, trezentos e trinta e seis litros por segundo), distribuída

entre os setores de abastecimento humano, pecuária, indústria, mineração e irrigação, todos usos

consuntivos (IGAM, 2011), conforme GRAF. 1:

GRÁFICO 1 - Distribuição da Vazão de Demanda de Água no Estado por Uso Consuntivo

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Fonte: IGAM (2011).

Cumpre esclarecer que uso consuntivo é aquele que diminui espacial e temporalmente a

disponibilidade quantitativa ou qualitativa de um corpo hídrico, ou seja, o uso que ocasiona

perdas entre o que é retirado e o que retorna ao curso de água natural (IGAM, 2008).

Ressalta-se que a outorga confere ao usuário apenas o direito de uso de parcela do corpo

de água, condicionado à disponibilidade hídrica existente no ponto de intervenção. Assim, o

usuário outorgado não passa a ser proprietário exclusivo dos recursos hídricos, porque a outorga

não corresponde à sua alienação parcial.

A água, como bem de uso comum do povo, é inalienável. Logo, a outorga de direito de

uso dos recursos hídricos poderá ser suspensa, parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo

determinado, em caso de descumprimento, pelo outorgado, dos termos da outorga. Há também

outras hipóteses de suspensão, tais como: a não utilização da água por três anos consecutivos; a

necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de

condições climáticas adversas; a necessidade de se prevenir ou fazer reverter grave degradação

ambiental; a necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não

se disponha de fontes alternativas e as necessidades de se manterem as características de

navegabilidade do corpo de água.

De acordo com a Lei Delegada Estadual 180, de 20 de janeiro de 2011 (MINAS

GERAIS, 2011), compete às Superintendências Regionais de Regularização Ambiental -

SUPRAMs, órgãos que compõem a estrutura básica da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais – SEMAD-MG, analisar os processos de

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regularização ambiental do Estado de Minas Gerais, dentre eles, os relativos ao uso dos recursos

hídricos.

A SUPRAM, antes de deferir a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, procede

à análise jurídica dos processos, verificando o preenchimento dos requisitos legais impostos, e à

análise técnica, a qual compreende a análise quantitativa e qualitativa da água e a verificação dos

estudos hidráulicos e hidrológicos apresentados. Entretanto, em se tratando de outorga dos

direitos de uso de recursos hídricos para empreendimentos de grande porte e com potencial

poluidor, em Minas Gerais será necessária a aprovação do respectivo comitê de bacia

hidrográfica.

Conforme expressão do artigo 13 da Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, toda outorga

estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos,

devendo respeitar a classe em que o corpo de água estiver enquadrado e a manutenção de

condições adequadas ao transporte aquaviário, quando for o caso, preservando os usos múltiplos.

No Estado de Minas Gerais, em respeito ao princípio da publicidade, para assegurar o

interesse da coletividade e dar efetiva transparência à outorga, os principais atos do procedimento

são publicados, quais sejam, o pedido e a concessão ou o indeferimento do pedido de outorga de

direito de uso dos recursos hídricos.

A outorga tem por finalidade principal garantir disponibilidade hídrica para as demandas

existentes e as demandadas futuras, possibilitando-se o desenvolvimento econômico sustentável,

o abastecimento público e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Uma vez concedida a outorga, a efetiva utilização da água se torna obrigatória, evitando-

se, assim, que a outorga seja requerida apenas com a finalidade de garantir usos futuros ou

impedir que terceiros utilizem-se da água.

Tanto a Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, quanto a Lei Estadual 13.199, de 29 de

janeiro de 1999, listaram os usos de recursos hídricos sujeitos à outorga da seguinte forma:

acumulação, derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para

consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo; extração de

água de aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; lançamento

em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim

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de sua diluição, transporte ou disposição final; aproveitamento dos potenciais hidrelétricos e

outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de

água.

Por outro lado, as citadas Leis também relacionam os usos que independem de outorga

pelo Poder Público: o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos

núcleos populacionais, distribuídos no meio rural, a serem regulamentados; as derivações,

captações, acumulações e lançamentos de águas superficiais e/ou subterrâneas considerados

insignificantes. Tal inexigibilidade não desobriga a União, o Distrito Federal e os Estados de

exercerem de fiscalizar e exigir o cadastro dos usuários que gozam desse direito.

Os usos insignificantes nas Unidades de Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos -

UPGRHs e circunscrições hidrográficas no Estado de Minas Gerais foram definidos pela

Deliberação Normativa CERH-MG 09/2004 e Deliberação Normativa CERH-MG 34/2010.

O Manual Técnico e Administrativo de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos

no Estado de Minas Gerais (IGAM, 2010a) esclarece que, tendo em vista a significativa variação

da oferta hídrica entre as diferentes regiões do Estado os usos insignificantes para águas

superficiais apresentam valores distintos conforme a UPGRH, notadamente nas regiões Norte,

Noroeste e Nordeste.

As captações e derivações de águas superficiais menores ou iguais a 1,0 l/s (um litro por

segundo) são consideradas como usos insignificantes para as UPRGHs do Estado de Minas de

Minas Gerais, exceto as UPGRHs SF6, SF7, SF8, SF9, SF10, JQ1, JQ2, JQ3, PA1, MU1, Rio

Jucuruçu e Rio Itanhém, onde é considerada insignificante a vazão máxima de 0,5 l/s (meio litro

por segundo) para as captações e derivações de águas superficiais dessas mesmas Unidades.

As acumulações de águas superficiais com volume máximo de até 5.000 m³ (cinco mil

metros cúbicos) também são consideradas insignificantes para as UPRGHs do Estado de Minas

de Minas Gerais, exceto para as UPGRHs SF6, SF7, SF8, SF9, SF10, JQ1, JQ2, JQ3, PA1, MU1,

Rio Jucuruçu e Rio Itanhém, cujo volume máximo a ser considerado insignificante é de até 3.000

m³ (três mil metros cúbicos).

As captações subterrâneas, tais como, poços manuais, surgências e cisternas, com

volume menor ou igual a 10 m³/dia (dez metros cúbicos por dia), serão consideradas como usos

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insignificantes para todas as UPGRHs de Minas Gerais. E as captações subterrâneas em poços

tubulares, em área rural, menores ou iguais a 14.000 l/dia (quatorze mil litros por dia), por

propriedade, serão consideradas como usos insignificantes nos municípios localizados nas

UPGRHs SF6, SF7, SF8, SF9, SF10, JQ1, JQ2, JQ3, PA1 e MU1.

A visualização dessas informações é possível na FIG. 2:

FIGURA 2 – Usos Considerados Insignificantes nas UPGRHs e Circunscrições Hidrográficas do

Estado de Minas Gerais

Fonte: Adaptado de IGAM (2011).

Ao isentar de outorga as retiradas ou lançamento de pequenas vazões e as pequenas

acumulações de água consideradas insignificantes procura-se não dificultar através de

procedimentos administrativos, o atendimento a pequenas demandas de água que não alteram as

características dos corpos de água isoladamente. A não obrigatoriedade da expedição da outorga

não desobriga o Estado a inspecionar e fiscalizar tais usos, sendo os mesmos passíveis de

cadastramento (IGAM, 2010).

Por fim, é importante ressaltar que a outorga extinguir-se-á pelo término do prazo de

validade da outorga sem o pedido de renovação no prazo legal; bem como no caso de morte ou

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liquidação judicial ou extrajudicial do usuário sem, em caso de pessoa física, requerimento de

retificação do ato administrativo pelos herdeiros.

Tecidas essas considerações gerais sobre a outorga de direito de uso dos recursos

hídricos, proceder-se-á à análise das implicações deste instrumento da política de recursos

hídricos na atividade agropecuária.

4 IMPLICAÇÕES DA OUTORGA SOBRE A ATIVIDADE AGROPECUÁRIA

Diante dos aspectos normativos da Política Nacional e da Política Estadual de Recursos

Hídricos, que dispõem sobre o instrumento de outorga utilizado para equacionar a utilização nos

diversos usos da água, resta claro que a atividade agropecuária se inclui no conjunto dos usuários

passíveis de sua aplicação. A utilização da água na dessedentação animal, irrigação, aquicultura,

processamento dos produtos agrícolas e demais usos na propriedade agrícola devem ser

outorgados pelo Poder Público, criando uma obrigatoriedade gerencial de requerer autorização

para utilizar o volume de água de que depende a atividade.

4.1 Fator Localização

As políticas públicas de recursos hídricos, de certa forma, buscam equacionar as

variações de disponibilidade natural e as demandas pelo uso desses recursos, diferenciadas

regionalmente. Essa regionalização constitui um elemento que determina que a localização do

imóvel rural implique ações gerenciais distintas, no que tange ao uso da água.

A FIG. 3 demonstra que em determinadas regiões do Estado de Minas Gerais a água

superficial já está totalmente comprometida, conforme informações do estudo denominado

Zoneamento Ecológico Econômico do Estado de Minas Gerais – ZEE-MG (SEMAD, 2008).

A FIG. 4 apresenta o nível de comprometimento dos recursos hídricos subterrâneos.

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FIGURA 3 – Nível de Comprometimento da Água Superficial

Fonte: SEMAD (2008).

FIGURA 4 – Nível de Comprometimento da Água Subterrânea

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Fonte: SEMAD (2008).

Na elaboração do ZEE-MG, foram consideradas as outorgas de direito de uso dos

recursos hídricos constantes nos bancos de dados do Instituto Mineiro de Gestão das Águas –

IGAM e da Agência Nacional de Águas – ANA. Esse instrumento serviu de base para a

elaboração do zoneamento, notadamente no que tange à vulnerabilidade das águas superficiais do

Estado de Minas Gerais.

Dentre os usos analisados no ZEE-MG destacaram-se a irrigação, o abastecimento

público, a indústria, o agronegócio, a dessedentação de animais e o consumo humano.

Na região do Triângulo Mineiro, do Alto Paranaíba, Central e Noroeste identificou-se

elevado nível de comprometimento e maior concentração de outorgas de direito de uso de

recursos hídricos. Apesar da menor quantidade de outorgas ao Norte, existem algumas áreas com

nível de comprometimento elevado, em decorrência de uso para irrigação e da baixa

disponibilidade natural da região (SEMAD, 2008).

Há de se considerar também a quem a solicitação de outorga deverá ser endereçada,

tendo em vista que a localização da captação está associada à sua dominialidade. Caso a captação

ocorra em lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de domínio da União ou que

banhem mais de um Estado, sirvam de limite com outros países, ou se estendam a território

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estrangeiro ou dele provenham, deverá ser solicitada à ANA. Caso a captação de água seja

subterrânea ou superficial nos domínios do Estado de Minas Gerais, ressalvada a competência da

União, a solicitação deverá ser realizada junto à SUPRAM.

4.2 Conflito pelo Uso dos Recursos Hídricos

A gestão dos recursos hídricos esta pautada na cooperação entre os usuários, buscando

harmonizar os diversos interesses existentes em uma determinada bacia hidrográfica, sejam

individuais ou coletivos. Ocorre que em determinadas bacias hidrográficas o recurso hídrico já se

apresenta totalmente comprometido, configurando uma situação de conflito pelo uso da água.

Ressalta-se que a outorga tem função de ratear a água disponível entre as demandas

existentes ou potenciais de forma a que os melhores resultados sejam gerados para a sociedade.

4.2.1 Outorga coletiva

Em Minas Gerais, uma solução apontada para equacionar os conflitos pelo uso dos

recursos hídricos superficiais está baseada em um processo administrativo denominado “processo

único de outorga de direito de uso de recursos hídricos”, por meio da Portaria IGAM 26, de 17 de

agosto de 2007, a qual aprova a Nota Técnica de Procedimento 07, de 10 de outubro de 2006

(IGAM, 2007), nos seguintes termos:

Considerando que se observa em muitas regiões do Estado uma disputa crescente pelo

direito de uso do recurso hídrico em função de alta demanda e baixa oferta de água seja

por situações ambientais ou econômicas e considerando que para regiões em conflito

pelo uso da água o IGAM recomenda que seja realizado um processo único de outorga

que contemple todos os usuários da bacia, de maneira a adequar os usos à

disponibilidade hídrica existente sem ultrapassar a capacidade dos mananciais mantendo

o fluxo residual de água a jusante das captações.

O IGAM define os procedimentos para formalização de processo único de Outorga de

Direito de Uso de Recursos Hídricos.

Quando da verificação de conflito pelo uso da água o interessado em realizar captação

de água em determinada bacia ou microbacia deverá solicitar ao IGAM, através de oficio

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encaminhado a Diretoria de Instrumentalização e Controle, a Declaração de Área de

Conflito.

[...]

O IGAM através destas informações irá verificar se aquela bacia hidrográfica é uma área

de potencial conflito. Se constatada a situação o IGAM emitirá a Declaração de Área de

Conflito.

Assim, nota-se que os conflitos pelo uso dos recursos hídricos serão dirimidos por uma

autarquia estadual, qual seja, o IGAM, que define os procedimentos para formalização de um

processo único de outorga em áreas declaradas de conflito, analisando e proferindo decisão

administrativa acerca do tema.

Em Minas Gerais, há áreas com Declaração de Área de Conflito – DAC já emitidas pelo

IGAM, conforme FIG. 5:

FIGURA 5 – Áreas Declaradas de Conflitos pelo Uso dos Recursos Hídricos em Minas Gerais

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Fonte: SEMAD (2014).

A resolução dos conflitos decorrentes dos múltiplos usos da água deve ficar a cargo do

consenso expresso entre os usuários. Não obstante, devem ser referendadas em decisões

colegiadas dos membros dos comitês de bacia hidrográfica (FARIAS, 2005), conforme

determinam as políticas públicas do setor.

4.2.2 Outorga sazonal

Ribeiro e Lanna (2003) destacam que existem vários desafios a serem vencidos na

operacionalização do instrumento de outorga. Dentre esses desafios poderiam ser citados: a

definição do valor adequado para a vazão máxima outorgada; a inexistência de dados

fluviométricos nas bacias hidrográficas; o desconhecimento sobre usuários e respectivas

demandas; as dificuldades na definição dos sistemas subterrâneos; o desenvolvimento de

metodologias específicas para o estabelecimento dos valores adequados a serem outorgados como

vazão ecológica, assim como de metodologias que integrem os aspectos quantitativos e

qualitativos da outorga.

Euclydes; Ferreira e Faria Filho (2006) buscaram desenvolver uma metodologia que

permita estabelecer outorga sazonal, com captação a fio d’água, para a agricultura irrigada,

utilizando vazões diferenciadas para os períodos seco e chuvoso do ano e verificaram ser possível

aumentar a vazão a ser outorgada em até 61,8% para determinadas sub-bacias do Rio Grande,

área objeto do estudo dos autores.

4.2.3 Barramentos como mecanismo de regularização de vazão

A variação dos regimes pluviométricos durante o ano resulta na variabilidade da vazão

nos rios. Assim, verificam-se momentos em que há déficit hídrico natural, quando a vazão é

insuficiente para atender à demanda dos usos múltiplos, ou em situações contrárias, em que o

excesso de vazão produz enchentes e inundações.

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A construção de reservatório de acumulação de água pode reduzir a variabilidade

temporal da vazão. Os volumes acumulados durante os períodos chuvosos servem para

compensar as deficiências hídricas dos períodos de estiagem, exercendo assim, uma função de

regularização das vazões naturais.

Nesse sentido, pode-se dizer que a técnica de regularização das vazões naturais constitui

um procedimento que busca a melhor utilização dos recursos hídricos superficiais. Por outro lado,

nos períodos chuvosos, o reservatório poderá reter os volumes excessivos de cheia, protegendo as

áreas situadas à jusante do barramento (EUCLYDES; FERREIRA e FARIA FILHO, 2006).

Os barramentos podem atender a outros objetivos, destacando-se: o atendimento às

necessidades do abastecimento urbano ou rural; o aproveitamento hidroelétrico; a atenuação de

cheias; o controle de estiagens; o controle de sedimentos; a recreação; a produção de peixes; e,

em certos casos, a navegação fluvial (EUCLYDES; FERREIRA e FARIA FILHO, 2006).

Há de se ponderar que nem sempre a construção dos barramentos é uma alternativa

viável e necessária, visto que se as vazões naturais forem significativamente maiores que o

consumo de água, mesmo durante os períodos de estiagem, não haverá a necessidade da

regularização de vazão. Portanto, a implantação de um reservatório somente se justifica se a

acumulação mitigar os efeitos de enchentes a jusante. Por outro lado, caso a vazão a ser retirada

seja superior à mínima do curso d’água, então a acumulação dos excessos no período chuvoso,

pode ser uma alternativa para atender àqueles períodos em que as vazões naturais são menores

que as vazões outorgadas.

4.3 Fator Atividade Desenvolvida e Volume Consumido

A atividade desenvolvida no imóvel rural passa a ter relação com a outorga de direito de

uso de recursos hídricos, uma vez que água é um insumo indispensável à produção agropecuária

e também fundamental para o consumo humano da população que vive no meio rural.

Há de se ponderar também a variação no volume consumido de água para as diferentes

atividades desenvolvidas no imóvel rural. Em caso de dessedentação animal o volume de água

consumida dependerá do número de matrizes; estágios de crescimentos dos espécimes, tecnologia

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adotada no manuseio; condições climáticas locais; condições de alimentação; tipo de raça e porte

físico. De acordo com o Manual Técnico e Administrativo de Outorga de Direito de Uso de

Recursos Hídricos no Estado de Minas Gerais (IGAM, 2010a), os consumos médios variam de

acordo com a TAB 1:

TABELA 1 – Consumo de Água para Dessedentação e Criação de Animais

DESSEDENTAÇÃO DE

ANIMAIS

CONSUMO DE ÁGUA

(L/Cabeça/ Dia)

Bovinos, Equinos e Muares 60 – 80

Suínos 30 – 40

Aves 0,2 – 0,4

Fonte: IGAM (2010a)

Para a atividade de agricultura irrigada, nas estimativas de demandas de água visando à

outorga são consideradas as necessidades hídricas dos diferentes estágios de desenvolvimento das

culturas, bem como um balanço hídrico regional para atendimento da irrigação em anos críticos

quanto ao clima.

Apresentam-se na TAB. 2, os consumos de água por método e tipo de irrigação, para

efeito de estimativas expeditas, que são utilizadas nas análises dos pedidos de outorga.

TABELA 2 – Consumo de Água de acordo com o Método de Irrigação

MÉTODO DE IRRIGAÇÃO TIPO CONSUMO DE ÁGUA

POR HECTARE

Superfície Sulcos ou faixa de infiltração

Inundação

1,5 – 4,0 l/s x ha

Aspersão Pivô central

Autopropelido

Convencional

1,0 – 1,4 l/s x ha

Localizada Gotejamento

Micro aspersão

Tripa de irrigação

0,5 – 0,8 l/s x ha

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Fonte: IGAM (2010a)

Nota-se, consequentemente, que o porte da atividade produtiva também constitui fator

determinante no volume de água consumida. Os volumes diferenciados de consumo refletem no

trâmite do processo de avaliação de outorga, uma vez que as outorgas de grande porte são

avaliadas pelos comitês de bacias hidrográficas, e o fato de cumprir este rito, altera o período de

avaliação da solicitação protocolada pelo gestor do imóvel rural.

4.4 Fator Dominialidade do Imóvel Rural

O direito de propriedade confere o poder de usar, gozar e dispor da coisa, de maneira

exclusiva, observadas as restrições legais.

Segundo se infere do artigo 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que

institui o Código Civil, o proprietário tem a faculdade de usar, gozar, dispor da coisa, e o direito

de reavê-la do poder de quem quer injustamente a possua ou detenha.

A faculdade de usar é colocar a coisa a serviço do titular sem lhe alterar a substância.

Gozar do bem significa extrair dele benefícios e vantagens, percebendo frutos, tanto naturais

quanto civis. A faculdade de dispor envolve o poder de consumir o bem, alterar-lhe a substância,

aliená-lo ou gravá-lo (VENOSA, 2003).

O direito de propriedade tornou-se inviolável e ganhou status de direito fundamental do

homem, constitucionalmente assegurado, juntamente com a vida, a igualdade, a segurança e a

liberdade. Por outro lado, a liberdade de uso, gozo e disposição da propriedade deve respeitar os

limites impostos pelo interesse social, compatibilizando-se o direito de propriedade individual

com o atendimento dos fins sociais da mesma.

Por sua vez, o artigo 1.228, § 1º do Código Civil, além de definir o proprietário

determina que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades

econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em

lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e

artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

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Ademais, a Constituição de 1988 estatui em seus artigos 170 e 225 que a ordem

econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,

observado os princípios da propriedade privada, da função social da propriedade e da defesa do

meio ambiente; já que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, definido

como bem de uso comum do povo.

A propriedade imobiliária é aquela cujo domínio se exerce sobre bens imóveis. O

Código Civil classifica os bens imóveis no seu artigo 80, considerando o solo e tudo quanto se

lhe incorporar natural ou artificialmente.

A propriedade imobiliária pode ser privada, quando estiver sob domínio de pessoa física

ou jurídica de direito privado, ou pública, relativa aos bens pertencentes à União, Estados,

Municípios, Distrito Federal ou outras entidades ou órgãos de direito público.

Conforme mencionado anteriormente, o proprietário do bem imóvel, ou seja, aquele que

exerce com exclusividade domínio sobre o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou

artificialmente, tem a faculdade de usar, gozar e dispor do imóvel, e o direito de reavê-lo do

poder de quem quer injustamente a possua ou detenha.

Ressalte-se, entretanto, que as águas superficiais ou subterrâneas que estejam contidas

dentro dos limites do imóvel pertencente à determinada pessoa física ou jurídica, de direito

público ou privado, não pertencem ao proprietário do imóvel; já que a água é um bem de uso

comum do povo.

O domínio que o proprietário exerce sobre seu bem imóvel não abrange as águas

existentes dentro dos limites territoriais desse bem. Para que o proprietário do bem imóvel possa

fazer uso dos recursos hídricos existentes dentro de sua propriedade imóvel deverá, via de regra,

solicitar outorga de direito de uso de recursos hídricos.

Assim, o proprietário imobiliário poderá usar, gozar, dispor e reaver o solo desse bem

imóvel e tudo que se incorporar a ele; contudo, as águas superficiais ou subterrâneas existentes

dentro dos limites desse imóvel só poderão ser utilizadas, respeitadas as exceções legais,

mediante outorga de direito de uso das águas; já que os recursos hídricos são bens de uso comum

do povo, ou seja, são de domínio público.

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Note-se que o usuário dos recursos hídricos inevitavelmente usará também o solo da

propriedade imóvel onde se encontra a água superficial ou subterrânea, durante o exercício do

direito de uso das águas. Para proceder à captação ou derivação em corpo de água, o usuário

necessitará da reserva de um espaço terrestre para instalação do conjunto moto-bomba e das

tubulações de recalque.

Na explotação de água subterrânea, o usuário perfurará o solo e construirá um poço ou

cisterna, cuja laje de proteção será instalada sobre o solo. Para executar a construção de

barramento, açude, dique, desvio, estruturas de lançamento de efluentes em corpo de água e

estrutura de recreação nas margens ou de transposição de nível, o usuário utilizar-se-á do terreno

marginal ao corpo de água.

Em se tratando de travessia rodoferroviária será necessária a utilização do solo como

alicerce para a implantação da obra. A dragagem, o desassoreamento e a limpeza de corpo de

água dependerão da possibilidade de acesso terrestre ao local.

Por sua vez, no lançamento de efluentes em corpo de água, o usuário deverá utilizar-se

do solo ou subsolo, a fim implantar a tubulação necessária ao transporte dos efluentes. Na

transposição de bacias hidrográficas, retificação, canalização ou obras de drenagem, será

necessária a reserva de um espaço terrestre para implantação das obras e demais intervenções.

Para proceder ao aproveitamento de potencial hidroelétrico e às demais intervenções no

curso, leito ou margens dos corpos de água, o usuário necessitará, no mínimo, de acesso ao local

da intervenção.

Logo, qualquer tipo de intervenção em corpo hídrico, seja superficial ou subterrâneo,

acarretará a utilização do solo e algumas vezes, também do subsolo, da propriedade imóvel.

Ao outorgar o direito de uso de recursos hídricos, a SUPRAM deverá respeitar o direito

do proprietário usar e gozar com exclusividade do imóvel onde será realizada a intervenção. Em

atendimento ao direito de propriedade o citado órgão ambiental deverá certificar-se que o

requerente da outorga de direito de uso das águas é realmente o proprietário do imóvel onde se

encontra o corpo hídrico que sofrerá intervenção ou se o proprietário concorda com o uso do seu

imóvel para a citada intervenção; já que a mesma acarretará o uso do solo da sua propriedade

imóvel.

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Ocorre, muitas vezes, de o requerente da outorga de direito de uso das águas junto a

SUPRAM não ser proprietário do imóvel onde se dará a intervenção em corpo hídrico. Em outras

palavras, pode ocorrer das águas a serem utilizadas estarem dentro dos limites territoriais de

imóvel pertencente a terceiro, diverso daquele que solicita a outorga. A princípio essa situação

não configuraria impeditivo para a autorização do uso dos recursos hídricos; já que a água é um

bem de uso comum do povo e, portanto, de domínio público. A intervenção em corpo de água

nada teria a ver com a propriedade do imóvel onde a mesma está contida, não fosse o fato do

usuário inevitavelmente usar também o solo da propriedade imóvel onde se encontra a água

superficial ou subterrânea.

Assim, a intervenção em corpo de água (que é de domínio público) implica também na

utilização do solo da propriedade imóvel (que é de domínio exclusivo do proprietário). Por essa

razão, quando a outorga é requerida por terceiro, faz-se necessária a anuência expressa do

proprietário do imóvel onde se encontre o ponto de intervenção no corpo hídrico, com a

utilização do seu imóvel para fins de uso das águas.

Por fim, cumpre lembrar que o Código Civil tem uma seção dedicada às águas, todavia,

com enfoque para o direito de vizinhança. Vale transcrever alguns artigos:

Art. 1.292 O proprietário tem direito de construir barragens, açudes, ou outras obras

para represamento de água em seu prédio; se as águas represadas invadirem prédio

alheio, será o seu proprietário indenizado pelo dano sofrido, deduzido o valor do

benefício obtido.

Art. 1.293 É permitido a quem quer que seja, mediante prévia indenização aos

proprietários prejudicados, construir canais, através de prédios alheios, para receber as

águas a que tenha direito, indispensáveis às primeiras necessidades da vida, e, desde que

não cause prejuízo considerável à agricultura e à indústria, bem como para o escoamento

de águas supérfluas ou acumuladas, ou a drenagem de terrenos.

§ 1º Ao proprietário prejudicado, em tal caso, também assiste direito a ressarcimento

pelos danos que de futuro lhe advenham da infiltração ou irrupção das águas, bem como

da deterioração das obras destinadas a canalizá-las.

§ 2º O proprietário prejudicado poderá exigir que seja subterrânea a canalização que

atravessa áreas edificadas, pátios, hortas, jardins ou quintais.

§ 3º O aqueduto será construído de maneira que cause o menor prejuízo aos proprietários

dos imóveis vizinhos, e a expensas do seu dono, a quem incumbem também as despesas

de conservação.

[...]

Art. 1.295 O aqueduto não impedirá que os proprietários cerquem os imóveis e

construam sobre ele, sem prejuízo para a sua segurança e conservação; os proprietários

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dos imóveis poderão usar das águas do aqueduto para as primeiras necessidades da vida.

(BRASIL, 2002)

Consoante se extrai dos dispositivos citados, ao tratar das águas o Código Civil procurou

assegurar seu uso com vistas ao direito de vizinhança, protegendo o máximo possível o direito

subjetivo que cada cidadão tem de fazer uso das águas que correm superficial ou

subterraneamente em sua propriedade imóvel. Ressalte-se, entretanto, que o enfoque do Código

Civil é a relação de vizinhança, ou seja, uma relação de direito privado; não fazendo qualquer

referência ao regime de uso dos recursos hídricos ou sua fiscalização, institutos que têm natureza

de direito público.

Assim, mesmo se tratando de utilização das águas em atendimento às primeiras

necessidades de vida, a SUPRAM deverá exigir toda a documentação necessária à formalização

do processo, inclusive a certidão de registro do imóvel onde está situado o ponto de intervenção e

a anuência expressa do proprietário em caso de uso de recursos hídricos executado por terceiro.

Se houver desacordo entre vizinhos que fazem uso do mesmo corpo de água em pontos

diferentes, a utilização das águas existentes em imóvel alheio sem a anuência do proprietário do

imóvel não será autorizada pela SUPRAM, mas deverá ser discutida no âmbito do Poder

Judiciário, o qual também determinará o valor da indenização devida, por se tratar de uma relação

de vizinhança, portanto, de direito privado.

3 CONCLUSÃO

Não obstante seja a água um bem de uso comum do povo e a outorga de uso de recursos

hídricos busque equacionar os usos múltiplos em uma determinada bacia hidrográfica, a gestão

do imóvel rural está condicionada a este instrumento, seja por aspectos de localização regional

onde o imóvel rural está inserido, ou mesmo pela atividade produtiva desenvolvida e pelo

domínio do imóvel rural.

A localização do imóvel rural relaciona-se com a outorga de direito de uso dos recursos

hídricos, uma vez que as variações regionais tanto da disponibilidade quanto da demanda hídrica

exigem adequações ao planejamento ambiental e produtivo do imóvel rural.

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Da mesma sorte, o planejamento da atividade produtiva a ser exercida no imóvel rural

relaciona-se com a outorga de direito de uso dos recursos hídricos, na medida em que o consumo

de água varia de acordo com a atividade e os processos produtivos empregados, respeitada a

excepcionalidade dos usos prioritários para abastecimento público e dessedentação animal.

A outorga coletiva e sazonal, juntamente com a reserva de água na propriedade rural são

instrumentos estratégicos para maximizar o uso da água, gerando valor e permitindo que a água

cumpra a suas funções, tanto como insumo dos sistemas produtivos quanto na manutenção dos

ecossistemas.

Por fim, a dominialidade do imóvel rural torna-se importante na correlação entre a

outorga de direito de uso dos recursos hídricos e a gestão do imóvel rural, uma vez que qualquer

tipo de intervenção em corpo hídrico, seja superficial ou subterrâneo, acarretará a utilização do

solo do imóvel rural. Com a finalidade de resguardar o direito de propriedade é exigida

comprovação de propriedade do imóvel rural ou anuência expressa desse proprietário com a

utilização do seu imóvel para fins de uso das águas.

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