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1 | Oswaldo de Camargo OSWALDO DE CAMARGO TÍTULO DE CIDADÃO PAULISTANO ANTOLOGIA

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Antologia publicada para a outorga do Título de Cidadão Paulistano ao escritor e jornalista Oswaldo de Camargo | Ciclo Contínuo Editorial

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1 | Oswaldo de Camargo

OSWALDODE CAMARGO

TÍTULO DE CIDADÃO PAULISTANO

ANTOLOGIA

Oswaldo de Camargo (Bragança Paulista, 1936) é jornalista, com carreira de revisor no jornal O Estado de S. Paulo, redator e resenhista literário no Jornal da Tarde , da mesma empresa. Foi, por sete anos, assistente da presidência na Imprensa Oficial do Estado. Ex-seminarista, cursou Humanidades (Latim, Português, Francês e Grego) no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São Jose do Rio Preto, SP. Lá estudou também teoria musical e órgão e, já em São Paulo, por sete anos, piano no Conser-vatório Santa Cecília, em Vila Pompeia, Capital. Palestrante, tem dado cursos

de Literatura em várias escolas e universidades do País, com destaque para o de atualização para professores, ministrado em anos conse-cutivos na Universidade de São Paulo.Sua participação na antolo-

gia Swarze Poesie – Poesia Negra rendeu-lhe, em 1988, viagem, com os autores Cuti (Luiz Silva) e Geni Guima-rães, à Alemanha e à Suíça, para declamação e comentá-rios sobre Literatura escrita por negros no Brasil.

Ativista da cultura afro – brasileira, foi um dos funda-dores do Grupo Quilombhoje, coletivo de autores voltados para publicação, discussão e divulgação da Literatura Negra em nosso país. Como escritor, contam-se entre alguns de seus livros O Negro Escrito – Apontamentos sobre a Presença do Negro na Literatura Brasileira (estudos literários); O Carro do Êxito (contos ); O Estranho (poemas) A Descoberta do Frio (novela) e Oboé (novela).Por seus estudos sobre o

poeta negro simbolista Cruz e Sousa, recebeu, em 1998, da Secretaria de Cultura de Santa Catarina a Medalha de Mérito Cruz e Sousa e, pela presença e atuação na Literatura Negra no Brasil, a Medalha Zumbi dos Palmares, outorgada, em 2013, pela Câmara Municipal de Salvador (BA). É conselheiro do Museu Afro

Brasil, em São Paulo.

27 DE OUTUBRO DE 2015

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Oswaldo de Camargo

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ANTONIO DONATO

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A CiClo ConTínuo EdiToriAl, ao participar

da homenagem conferida ao jornalista e escri-

tor oswaldo de Camargo, não só pretende tor-

nar público o reconhecimento de sua laureada

trajetória na vida cultural da comunidade negra,

mas também reconhecer, ao vivo (e não à sua

memória!), o valor e a importância de sua obra.

Por isso, a entrega do título de “Cidadão Pau-

listano” a ele significa, também, empoderar sim-

bolicamente a caminhada de todo um povo.

Pois, então, caminhemos!

Agradecemos aos GTs do Plano Municipal do livro, leitura, literatura e Biblioteca e ao Presidente da Câmara Munici-pal de São Paulo, Antonio donato, que concedeu o título a oswaldo de Camargo.

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A leitura e o livro costumam chegar à vida das pessoas de várias formas e em vários momentos. Cedo, de surpresa, mais tarde, despercebido, abruptamente, em forma de risco, nas mãos de outros. Es-sas várias formas de leitura podem ampliar a visão sobre o outro, a compreensão do mundo e sua pluralidade.

o indivíduo pode optar por ler ou não ler; o problema maior é quando ele não o faz devido à exclusão social, à falta de cuidado e oportunidade, não por opção. logo, podem ser vários os motivos dessa ausência, dessa impossibilidade de optar.

uma das maneiras de não entregar ao acaso o gosto e a importância desse encon-tro fundamental é criando coletivamente as possibilidades para que as pessoas tenham acesso ao livro e à leitura. As políticas públi-cas podem facilitar esse caminho, sobretu-do se elas forem construídas conjuntamen-te, de maneira aberta e democrática.

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É daí que entendemos a importância da institui-ção do Plano Municipal do livro, leitura, literatu-ra e Biblioteca para a cidade de São Paulo. São com as diretrizes e os caminhos traduzidos em projetos, programas e ações que ele pode fazer a diferença, transformando o acesso à leitura e ao livro como di-reito básico do cidadão e não como obra do acaso ou concessão de uma elite.

São Paulo agora tem seu Plano para o livro e a leitura, que foi construído com ampla participação popular e por várias mãos. Porém, desde sempre a Cidade teve suas letras e sua literatura, que têm a sua forma e que com ela dialogam, extrapolando os seus limites e desvelando a sua complexidade.

o poeta, ficcionista e jornalista oswaldo de Ca-margo é um dos responsáveis por uma das face-tas literárias da cidade de São Paulo. Saindo, ainda criança, de Bragança Paulista, passando por Poá, na Grande São Paulo, de onde seguiu para São José do rio Preto, cidade em que foi seminarista, chegou aqui exatamente no ano em que a capital paulis-ta comemorava o seu quarto centenário, em 1954. desde então não parou de agir entre escritas, leitu-ras e livros.

no jornalismo, nas associações culturais, na militância do Movimento negro, na constante

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afirmação da literatura negra, ele encontrou as várias maneiras de escrever e descrever a cidade, tornando-a mais diversa e explícita.

Promover a discussão sobre as políticas do livro e da leitura, usando como um dos enredos dessas tratativas a vida de um poeta e jornalista que cons-truiu a sua trajetória de forma contra hegemônica e incomum, pode ser um dos motes para dissipar barreiras e fazer avançar a luta por uma cidade mais plural.

E foi assim que juntamos toda a batalha e o en-volvimento de vários atores sociais do livro, da lei-tura, da literatura e das várias bibliotecas que te-mos na Cidade com essa homenagem a oswaldo de Camargo. não foi um mero gesto laudatório e comemorativo.

o título de “Cidadão Paulistano”, que a Câmara Municipal de São Paulo concede ao poeta e jornalis-ta oswaldo de Camargo, é apenas parte de uma his-tória que começou há muito tempo e que rendeu letras e beleza. É o reconhecimento de uma história de resistência e luta.

ricardo Queiroz Pinheiro, bibliotecário e assistente parlamentar (Vereador Antonio donato)

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Flávio Carrança*

Questão de circunstância, de acaso, é a explicação que oswaldo de Camargo dá para o fato de ser visto por muitos autores negros mais jovens do que ele como um elo entre as gerações. E, acrescenta, com sua modéstia habitual, que talvez isso se deva tam-bém ao fato de ter sobrevivido em relação a vários de seus companheiros de lida literária, já falecidos: “Muita gente vai antes do tempo. Eu não morri, segui escrevendo, comparecendo e informando, enquanto vários de meus companheiros se trans-figuraram em lembrança... Que eu podia fazer?“, explica, sobre esse epíteto, em entrevista concedida a Thiara de Filippo1. outro estudioso da literatura negra, luiz Silva, o Cuti, diz que Camargo

“no contexto estritamente literário, é o mais importante elo de gerações (grifo meu), pois sua dedicação à vertente negro-brasileira tem se dado não só pela acolhida aos jovens auto-res como também pela elaboração de ensaios, palestras acerca do assunto, prefácios, organi-zação de antologias, livros histórico-literários, além da obra em prosa e verso.”2

1 Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 2 Consolidação. / Eduardo de Assis duarte, organizador – Belo Horizonte: Editora uFMG, 2011.2 Literatura negro-brasileira / Cuti – São Paulo: Selo negro, 2010.

Oswaldo de Camargo: elo entre gerações

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A primeira obra publicada por oswaldo de Ca-margo foi o livro de poesias Um Homem Tenta ser Anjo, de 1959. depois desse, em 1961, vem 15 Poemas Ne-gros, seguido de O Carro do Êxito: contos, de 1972, e da novela A Descoberta do Frio, de 1979. Também me-recem destaque a organização de A Razão da Chama: Antologia de Poetas Negros Brasileiros, de 1986, e O Negro Escrito: Apontamentos Sobre a Presença do Negro na Literatu-ra Brasileira, de 1987, que inclui uma antologia com textos de diversos autores; e, ainda, Solano Trindade, Poeta do Povo - Aproximações, de 2009. no ano seguinte, participa da coletânea Paula Brito: Editor, Poeta e Artífice das Letras, publicada pela Edusp, da qual foi o idea-lizador. Somam-se a esses títulos inúmeras partici-pações em coletâneas, revistas e outras publicações, além do relançamento de A Descoberta do Frio pela Ate-liê Editorial em 2011.

Mas, para entender um pouco melhor como se construiu esse escritor negro brasileiro, vamos vol-tar ao século passado, mais precisamente em 1936, na cidade de Bragança Paulista, quando e onde nas-ceu oswaldo de Camargo. Filho de lavradores mui-to pobres, ficou órfão quando ainda era criança. Por conta disso, passou três anos no Preventório ima-culada Conceição, em Bragança, e outros dois anos em Poá, município situado a 34 quilômetros da ca-pital e hoje integrado à Grande São Paulo. Ali, no

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reino da Garotada dom Bosco de Poá - dirigido pelo padre holandês Simão Switzar -, foi onde começou a desenvolver o gosto pela leitura, mergulhando em romances infanto-juvenis, como Genoveva, Du-quesa de Brabante e Tom PLayfair. Com 13 anos, entrou no Seminário Menor nossa Senhora da Paz, em São José do rio Preto (SP), onde aos 16 anos começou a escrever.

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no seminário, leu Casimiro de Abreu, Castro Alves, Gonçalves dias e Cruz e Sousa em livros didáticos ou paradidáticos, como a Antologia Nacional, de Carlos de laet e Fausto Barreto e também O Português Prático, do professor Marques da Cruz, além de Páginas Floridas, de Silveira Bue-no. “É bom lembrar que nesse tempo existia ainda - diz em entrevista a Eduardo de Assis duarte - um parnasia-nismo tardio, que ditava as regras do bem escrever. no meu caso, o que eu fazia (tenho até hoje guardadas essas páginas) era copiar os poemas que me interessavam. Por-que no Seminário em que estudei não nos permitiam ler nenhum poeta por inteiro. Havia veto aos poetas, possi-velmente porque eram insinuadores de sensualidade”3.

oswaldo avalia que, na verdade, o fato de o Seminá-rio ter vedado a leitura das obras completas dos poetas acabou sendo bom, pois lhe deu mais “gana” de ler e o levou à disciplina:

“Primeiro os poetas; depois os prosadores. Eu não misturei escolas. Egresso do Seminário, me nutri lite-rariamente dos românticos – Castro Alves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela; dos parnasianos – olavo Bilac, Alberto de oliveira, raimundo Correia; simbo-listas – Cruz e Sousa inteiro, Alphonsus de Guima-rães. depois, em livros de minha propriedade ou em-prestados, drummond e outros modernistas.”4

3 Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 4 História, teoria, polêmica. Eduardo de Assis duarte, organizador – Belo Horizonte: Editora uFMG, 2011.4 idem

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Passado esse período de iniciação literária, entre os 16 e os 18 anos de idade, oswaldo enfrenta uma crise, em parte desencadeada pelo ingresso na adolescência, mas causada, principalmente, pelo racismo. É o momento em que resolve sair do Seminário. Antes disso, no entanto, estava convicto de que tinha uma real vocação para o sa-cerdócio, e o padre Miguel Switzar, irmão de Padre Simão, aquele de Poá, começou a procurar um Seminário para ele prosseguir os estudos eclesiásticos. Mas as instituições consultadas não abriram as portas:

“não era questão de aproveitar o status dado pelo co-nhecimento de latim, francês, grego, conhecimentos de canto e música, como acontecia com tantos meni-nos do meu tempo. no meu caso, não era. Eu acredi-tava que tinha vocação; os padres que me educaram no Seminário em rio Preto também acreditavam. E a noção de que existia, sim, preconceito na socieda-de brasileira mostrou-se clara para mim nos meus 16 anos, idade em que comecei a escrever.”5

nessa época, entra em profundo estado de melancolia,

talvez mesmo depressão, mas produz, às vezes, dois ou mais textos em versos por dia, exercitando-se na técnica do soneto, com a necessária chave de ouro e tudo o mais: “Foi uma iluminação na minha vida de adolescente negro

5 idem

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e pobre. E, naquele ano luminoso, tive a sorte excepcio-nal de começar a estudar harmônio, um tipo de órgão pequeno, com palhetas em lugar de tubos”6. Aos 17 anos, tocava muitas vezes esse instrumento na catedral de São José do rio Preto. o fato de ter se tornado um organista explica por que, em alguns contos que escreveu, apare-cem situações envolvidas com a música, até no título, como se verifica em “oboé”, de O Carro do Êxito. “A música que estudei, e continuo estudando, me tornou recepti-vo a algumas obras, como A Montanha Mágica, de Thomas Mann, em que há uma passagem famosa que se refere à importância política da música, da qual transponho um pequeno trecho para meu conto Oboé”. 7

Em 1954, aos 18 anos, frustrada a vocação eclesiástica, oswaldo vem para a capital do Estado tentar uma vida nova. Já havia escrito um caderno de versos denomina-do “Vozes da Montanha”, com poemas em que usava a métrica de redondilha maior ou menor (versos de 5 ou 7 sílabas) ou sonetos, que mantém guardado até hoje por mera lembrança, mas que poderia ter sido seu primeiro livro. depois de várias andanças à procura de emprego, resolve tentar a sorte no jornal O Estado de S. Paulo. Aproxi-mou-se da família Mesquita, à época proprietária do jor-nal, devido ao fato de sua madrinha, Maria Esther Silva, prima de sua mãe, ser, havia já alguns anos, empregada na casa de dona Alice Vieira de Carvalho Mesquita, mãe

6 idem7 idem

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de luiz e de José Mesquita, diretores do grande jornal. Faz, no entanto, questão de esclarecer não ter sido muito beneficiado por esse laço. Conta que foi submetido a um rigoroso teste de português e passou. Em 1955, com 19 anos, começa a trabalhar como revisor, cargo de prestígio na época, porta de entrada para a redação do maior jor-nal do país, ainda funcionando no velho prédio da rua Major Quedinho.

Quando está na revisão do Estadão, em 1959, publica seu primeiro livro de poemas, chamado Um Homem Tenta Ser Anjo, bem acolhido pela crítica. Thiara Vasconcellos de Filippo8 afirma que a precariedade da vida e o mito da “queda do homem” são referências constantes a en-volver toda a obra, prefaciada por José Pedro Galvão de Souza, naquele tempo professor de Ética na PuC. “Em Um Homem Tenta Ser Anjo - escreve a pesquisadora - predo-minam os sentimentos de angústia e desalento, solidão e desamparo, e podem-se notar tanto a sua formação católica quanto os diálogos estabelecidos com rainer Maria rilke e Augusto Frederico Schmidt.” Em artigo pu-blicado no livro Reflexões Sobre a Literatura Afro-brasileira (Qui-lombhoje, 1985), Cuti detecta na obra uma visão fatalis-ta da história: “(...) Achar que deus nos esqueceu é um desencanto que a religiosidade, sobretudo católica, nos legou diante da exploração do homem sobre o homem. oswaldo de Camargo no seu livro de estreia (...) mostra,

8 Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 2 Consolidação. / Eduardo de Assis duarte, organizador – Belo Horizonte: Editora uFMG, 2011.

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em meio a versos, uma forte tentativa de atingir o céu da sublimação que:

Ser anjo, em verdade, é coisa triste...Pesa o corpo, Senhor, e cada nuvemé inimiga chovendo exaustão...Tédio grosso pingando em minha testa,por pensar que o céu é tão distante...9

Em 1961, lança 15 Poemas Negros, livro que, segundo Thiara Vasconcelos, não se diferencia muito do anterior, uma vez que também se caracteriza pela presença mar-cante dos valores católicos, sobretudo da ideia da salva-ção da alma por meio do sofrimento da carne. “no en-tanto – alerta a autora – distancia-se de Um Homem Tenta Ser Anjo no que diz respeito à sua proposta, revelada no títu-lo. Em 15 Poemas Negros, introduz a reflexão que irá nortear toda a sua produção posterior, sobre o significado de ser negro em uma sociedade que nega a marginalização ao disseminar o mito da “democracia racial”. no prefácio, Florestan Fernandes destaca a ligação espiritual com os ancestrais africanos escravizados, manifestada em alguns de seus versos:

Dê-me a mão.Meu coração pode mover o mundocom uma pulsação...Eu tenho dentro em mim anseio e glóriaque roubaram a meus pais.

9 Reflexões sobre a literatura afro-brasileira: Quilombhoje,1985.

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Meu coração pode mover o mundo,porque é o mesmo coração dos congos,bantos e outros desgraçados, é o mesmo.

no Estadão, ganhava salário acima da média em ou-tros jornais e tinha contato com intelectuais e artistas que frequentavam o jornal. Aproximou-se de “modernos” como Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, domingos Carvalho da Silva, luiz Martins (cronista), Paulo Bomfim, ruy Apocalipse, lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst... no escritório de sua casa, no bairro de lauzane Paulista, exi-be com orgulho seus retratos feitos por darcy Penteado e Clóvis Graciano. declamava versos no programa A Hora do Livro, da rádio Gazeta, dirigido pelo intelectual e radia-lista Fernando Soares. nessa mesma época, com 22 anos, começa a frequentar o meio negro da capital e ingressa na Associação Cultural do negro (ACn), onde conhece fi-guras como o poeta Solano Trindade, o escritor Fernando Góes, o tenente rosário, pai de Theodosina ribeiro, Hen-rique Cunha e o jornalista José Correia leite, figura ímpar para a história da imprensa negra. Estes dois últimos, Henrique Cunha e Correia leite, eram remanescentes da geração que construiu a Frente negra Brasileira. Conhece também intelectuais brancos que frequentavam aquele espaço em alguns momentos, como Afonso Schimdt, autor do romance abolicionista A Marcha, a Colombina (Yde Schloenbach Blumenschein), fundadora da Casa do

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Poeta, um reduto romântico e parnasiano, além de conhecer Florestan Fernandes e Henrique l. Alves.

inicia, nessa época, sua colaboração com a im-prensa negra, no jornal O Novo Horizonte, onde se torna redator-chefe. Ainda nesse período, colabora com Mutirão, jornal fundado em 1959; com Niger, revista que surge entre 1959 e 1960; e com Ébano, de 1961. Com 23 anos, torna-se diretor de cultura da ACn, organizando saraus literários, criando um coral que se apresenta não só em São Paulo, mas também em várias cidades do interior paulista. no entanto, todas as noites, às 22 horas, tinha que es-tar no Estadão para o seu trabalho de revisor.

Arrisco um palpite: aquele rapaz magro, de ócu-los, certamente bem vestido e cortês, que estudara e foi muito bem recebido no meio negro paulista-no, tornando-se presença constante em saraus e em reuniões, nas quais recitava suas poesias, além de conhecer literatura e música clássica, ter um bom emprego, sendo respeitado pela elite intelectual branca, encarnava um ideal de “bom moço negro” que habitava o imaginário de homens e mulheres da intelectualidade afrodescendente, em grande parte voltada para uma integração harmônica do negro na sociedade brasileira.

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Como se percebe, sua vida cultural não se restringe ao meio negro. no final da dé-cada de 1950, frequenta também, assidu-amente, o saguão da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e os bares próximos, pontos de encontro de uma juventude intelectualizada – em grande parte candi-datos a escritores e escritoras – que discu-tia literatura, chegando mesmo, em 1962, a organizar um movimento literário de breve duração, o Desagregacionismo, que ti-nha a pouco modesta pretensão, natural da juventude, de “revolucionar” a poesia do modernismo brasileiro. “nessa épo-ca, entre os dois primeiros livros – conta oswaldo – estou lendo bastante teoria, como O Amador de Poemas, de Péricles Eu-gênio da Silva ramos, que foi grande in-fluência na minha vida. E também Cartas a um Jovem Poeta, de rilke, leitura obrigatória dos poetas que se reuniam no saguão da biblioteca municipal”.

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É nesse contexto que oswaldo de Camargo se torna um poeta brasileiro assumidamente negro, que sofre influências de drummond, Bandeira, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, rilke e, arrisco-me a dizer, o primei-ro modernista da poesia negra do país, um poeta que já não faz mais da rima “a salvação da seara poética”, como diz drummond. usa verso livre, verso branco, sim, mas em termos. oswaldo, na verdade, segue os paradigmas da Geração de 45, que tem suas maiores expressões em Péricles Eugênio da Silva ramos, Ha-roldo de Campos e décio Pignatari:

“É uma reação contra a forma de Mário de An-drade. A Geração de 45 vai trabalhar com extremo esmero a forma (seus integrantes chegam a ser ta-chados de neoparnasianos). Eu estou, como ide-ário poético, nesse grupo que se contrapõe a um certo relaxamento do pessoal de 22, usado para enfrentar o Parnasianismo de olavo Bilac, ‘ourives da forma’.”

interessante observar que o tema do “elo”, que dá título a este texto, ressurge em O Negro Escrito (1987), quando oswaldo de Camargo analisa o lugar de sua própria produção na história da poesia negra brasilei-ra: “Elo – por uma questão cronológica – necessário

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para a ‘nova Poesia negra’, que para nós começa a partir de oliveira Silveira, é a nossa produção. Elo apenas. Por termos estreado já em 1959, nos consideramos um ‘an-tigo’. Para alguns críticos, somos ‘novíssimos’ da Geração de 45, ao lado de lindolph Bell, ruth Maria Chaves, lélia Coelho Frota, Fernando Py, Hermínio Bello de Carvalho, Afonso romano de Santana”10.

É também nessa época que começa a voltar os olhos para a prosa. Já tinha bom conhecimento do romantis-mo e dos poetas do simbolismo, passando a ler os prosa-dores lá pelos 24 anos de idade. devora não só os autores brasileiros como Adonias Filho e Gerardo de Mello Mou-rão, mas também os mais citados no meio jovem que frequentava, como Hermann Hesse, de O Lobo da Estepe, e Thomas Mann, de A Montanha Mágica. A partir daí, era natural que tentasse a prosa. depois de algumas frustra-ções, o primeiro texto que deu certo foi o conto “Civili-zação”, que teve até agora o maior número de traduções entre tudo o que escreveu neste gênero. Ele revela ter es-crito “Civilização” quase com um ímpeto poético. Foi esse texto que abriu caminho para a elaboração dos outros contos, que formariam O Carro do Êxito. Vale um pequeno tira-gosto:

10 Antologia da Geração de 45, organizada por Milton de Godoy Campos

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Conhecemos até agora um pouco da formação do po-eta e do prosador, mas o ensaísta se amplifica, sobretudo a partir de 1975, quando oswaldo sai da revisão e passa a editar a seção São Paulo Pergunta, do Jornal da Tarde (JT). Ao mesmo tempo, também tem como cargo fazer a revisão e preparação dos textos dos jornalistas e escritores que publicam na página 4, entre eles luiz Carlos lisboa e Fre-derico Branco. Vale lembrar que a página 4 era a página do patrão, ruy Mesquita: “isso me pôs em um corpo a corpo maior com o texto. Podia conversar com os autores, co-locando os problemas que detectava“. Começa, também, nesse período, a escrever resenhas para o JT, em que sua face de ensaísta se mostra mais nitidamente. Privilegia a presença negra no jornal conservador ao falar de persona-gens como dom Silvério Gomes Pimenta, primeiro bispo de Mariana, Cruz e Sousa, lino Guedes, José Correia leite, tratando de eventos que envolvem o negro com a lite-ratura, como a página inteira sobre o Perfil da literatura negra, em 1987, ao mesmo tempo em que apura o estilo

Subi na “Neurotic’s House”, porque Fred foi com a minha cara. Foi, pousou a mão no meu ombro, falou logo:– Gostei de você, preto, gostei mesmo...O mundo bravo comigo, o desencanto reinava na minha vida. Exemplo: o ma-estro Borino, que me alugara o quarto, me enxotou e largou nos meus ouvidos umas palavras, com jeito sofrido, mas largou:– Assim não dá, Paulinho, a gente quer ajudar, mas vocês...– Aí está, vocês, pretos, pessoal de côr... Se traiu o maestro, claro, se traiu. (...)

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e a profundidade, chegando a fazer uma resenha do Dicio-nário de Música, obra póstuma de Mário de Andrade.

na década de 1970, desenvolve grande atividade. Além das resenhas e artigos de crítica literária que escre-ve para o JT, colabora com o jornal da imprensa negra O Quadro, fundado em 1974, e participa da Antologia dos Poetas da Cacimba (1976), da primeira edição dos Cadernos Negros (1978), ano em que também escreve a introdução de Me-mória da Noite, livro de estreia de Abelardo rodrigues. Em 1979, lança a novela A Descoberta do Frio, reeditada em 2011 pela Ateliê Editorial. no prefácio, o grande estudioso da questão racial no Brasil, Clóvis Moura, classifica o livro como desconcertante e explica:

“oswaldo de Camargo procura, com muita habilidade, usar de um elemento – o frio – como contraponto dra-mático e simbólico de toda a obra. Em determinado mo-mento um personagem aparece com frio. Esse frio não é apenas um fenômeno meteorológico, mas um elemento que o autor aproveita para poder desenvolver o seu reca-do e articular a sua trama. um negro com frio. Mas, esse frio não vem apenas da atmosfera – outros não o sentem -, porém de uma situação existencial e social.”

Aqui talvez seja um bom momento para falar de outra característica desse escritor bragantino, que é a constante reelaboração dos textos publicados. na orelha da nova

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edição de A Descoberta do Frio, Eduardo de Assis duarte nos informa que “cotejando-se essa edição com a publicada em 1979 (que teve tiragem mínima, mal chegou às livra-rias), ressalta-se, diante de quem leu a primeira, o tra-balho fundo de reformulação, acréscimos e novas refle-xões trazidas às páginas da nova versão.” de acordo com o pesquisador, na primeira edição, o “frio” cobriu-se de diferentes camadas “e uma explicação surge, polêmica, para justificar por que ele chegou solto, fácil, ao territó-rio negro “. na nova edição, no entanto, segundo Assis duarte, o “frio” ganha também feição de personagem, a indiferença, “que pode abraçar brancos e negros”.

outro exemplo de reelaboração está no poema “Em maio”, presente em O Estranho, muito declamado pelos jovens do grupo Quilombhoje por fazer crítica ao 13 de maio da Princesa isabel:

Já não há mais razão para chamar as lembranças e mostrá-las ao povo em maio. Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam o sentido do que sonhamos. Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça e desce às praças das bocas entreabertas e começa: “Outrora, nas senzalas, os senhores...”

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Mas a Liberdade que desce à praça nos meados de maio, pedindo rumores, é uma senhora esquálida, seca, desvalida, e nada sabe de nossa vida. A Liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada no ombro dos moleques ou se esconde no peito, em fogo, dos que jamais irão à praça. Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes e seu grito: “Ó bendita Liberdade!” E ela sorri e se orgulha, de verdade, do muito que tem feito!

na nova versão, oswaldo alterou três versos finais do seu poema, talvez agora considerados um pouco pesados ou mesmo grosseiros:

Na praça, a Esperança se encolhe ante o grito “Ó bendita Liberdade!”E esta sorri, e se orgulha, de verdade,do muito que tem feito...

Vamos permanecer um pouco mais nessa década tão importante, que marca uma inflexão na linha de desen-volvimento das relações raciais no país. É nesse momento

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que o papel de elo entre gerações, atribuído a oswaldo, mostra toda sua importância. no mesmo quadro de efer-vescência que levou à construção do Movimento negro unificado (Mnu), surge, principalmente em São Paulo, uma nova geração de escritores negros que se aglutinam em torno do grupo Quilombhoje. durante o ano de 1978, existiu, em São Paulo, no bairro do Bexiga, o Centro de Cultura e Arte negra (CECAn), onde se reuniam pessoas ligadas às letras, entre as quais o poeta Cuti e o advogado Hugo Ferreira que, juntos, decidiram lançar os Cadernos Ne-gros, pequenas coletâneas de poemas.

Paralelamente, Cuti participava de um grupo formado por oswaldo de Camargo, Abelardo rodrigues, Jorge les-cano e o falecido poeta Paulo Colina, que se reunia no bar Mutamba, no centro de São Paulo, para discutir literatu-ra e que, por volta de 1980, resolveu batizar-se Quilom-bhoje. o grupo assumiu a publicação dos Cadernos Negros, recebeu adesões, mas, em seguida, sofreu uma ruptura, com a saída de Camargo, Colina e Abelardo, que critica-vam principalmente a qualidade do material publicado: “Essa literatura que o negro produz surge exatamente das experiências particulares dele, mas tem de ser sancionada por um texto literário”, afirmou certa vez oswaldo em en-trevista a este repórter.

os Cadernos Negros, no entanto, prosseguiriam, agora com Cuti, Abílio Ferreira, Sônia Fátima Conceição, Miriam

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Alves, Jamu Minka, oubi inaê Kibuko, Esmeralda ribeiro e Márcio Barbosa. na avaliação de oswaldo de Camargo, a formação do Quilombhoje, sobretudo depois do surgi-mento dos Cadernos Negros, foi uma experiência necessária para que se formasse um coletivo que tornou possível reunir – como acontece até hoje – autores de todos os cantos do país, definindo um método de trabalho que deixou mapeada a maneira de escrever do negro, suas temáticas e suas buscas.

outro episódio que reforça a característica de elo entre gerações de oswaldo de Camargo, neste caso no âmbito do jornalismo, é a criação do “Caderno Afro-la-tino-América”, no jornal Versus, da chamada imprensa alternativa, que se opunha à ditadura militar. Quando criou a publicação, em 1975, o jornalista Marcos Faer-man trabalhava no Jornal da Tarde e era amigo de oswal-do. Quando a equipe, que dirigia a publicação, resolveu tomar a iniciativa de criar uma seção dedicada à questão do negro, Faerman perguntou a oswaldo se ele poderia chamar algumas pessoas que pudessem colaborar. Foi a partir daí que entraram em Versus jornalistas e intelectu-ais negros, como neusa Pereira, Hamilton Cardoso, Jamu Minka, Tânia regina Pinto e Wanderley José Maria.

A vida segue e, em 1984, oswaldo publica novo volu-me de poesias, O Estranho, no qual, segundo ele, se nota muito mais a presença dos processos da Geração de 45.

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Thiara Vasconcelos afirma que essa obra é centralizada na tentativa de entender a experiência ambivalente do pertencimento a dois universos culturais, enquanto Zilá Bernd identifica a “experiência do exílio no interior de si próprio e do próprio país”, como fio condutor da obra. o poema Escolha faz parte do volume:

Eu tenho a alma voandono encalço de uma ave cega: Se escolho o rumo do escurome apoio à sombra do muropousado na minha testa. Se elejo o rumo da alvurafalseio os passos da vidae me descubro gritando um grito que não é meu.

A antologia A Razão da Chama sai do prelo em 1986, com uma epígrafe na qual se utiliza do pseudônimo Benedito Antunes: “Eu tenho na minh’alma a angústia de todas as raças. Só há um pormenor: sou um negro”. Justificando plenamente o subtítulo Antologia de Poetas negros Bra-sileiros, a obra mostra a linha evolutiva de uma escrita sobre o negro produzida pelo próprio negro, que recebeu o nome, às vezes contestado, de literatura negra.

A Razão da Chama abriga autores que chegam do século 18, como o cantador de lundus domingos Caldas Barbo-sa, passando por luiz Gama, Cruz e Sousa, lino Guedes,

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Solano Trindade, oswaldo de Camargo, Eduardo de oli-veira, Carlos de Assumpção, oliveira Silveira, Geni Maria-no Guimarães, Paulo Colina, Cuti, Miriam Alves e muitos outros. na apresentação da coletânea, que selecionou e organizou, Camargo escreve:

Possivelmente a proposta mais válida e renovadora desta soma de poetas – adentrando em várias gerações de auto-res – desde árcades, até a poesia moderna escrita hoje no País – é a junção, que, até onde sabemos, jamais foi feita com poetas ‘registrados’ já na história literária do Brasil. Pois é da obra de Caldas Barbosa, luiz Gama, Gonçalves Crespo, Cruz e Sousa – negros – às correntes literárias posteriores, com poetas negros e mulatos que se revelam negros, que escorre esta seiva poética, alento, reivindi-cação, consolo, e afirmação de que nós também somos literatura.

Considerado, de acordo com Eduardo de Assis duarte, um dos 20 livros mais importantes para a construção de uma consciência negra no Brasil, O Negro Escrito foi lançado em 1987, com preâmbulo de Paulo Colina, que ressalta a importância do trabalho do autor para “a depuração da bibliografia afro-brasileira”. É um livro, segundo Thia-ra Vasconcelos, “indispensável por fornecer uma visão abrangente do panorama histórico da produção literária afro-brasileira, com informações biográficas e apreciações

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críticas (de vários críticos e do próprio Camargo) e repro-duzir poesias e/ou contos na seção intitulada “Breve An-tologia Temática”. Camargo diz que só pôde escrever essa obra por que começou a juntar livros sobre o negro em um tempo em que isso não era comum:

“Houve um tempo em que eu era um dos poucos pesqui-sadores dessa literatura. E fui juntando isso devagar, bem antes da chegada da nova geração, que veio formar como que um coletivo de autores negros, formado por Paulo Co-lina, Cuti, Jônatas Conceição, Adão Ventura, e tantos ou-tros. E os livros iam surgindo e eu ia guardando: textos da Associação Cultural do negro, etc. na hora em que fui redigir O Negro Escrito, 90% do material eu já tinha comigo...”

Vida que segue, em 1988 Camargo escreve A Mão Afro--brasileira em nossa literatura e tem alguns de seus poemas tra-duzidos para o alemão. na verdade, vários de seus poemas, contos e artigos a respeito da trajetória do negro brasileiro foram traduzidos para o alemão, inglês, francês, espanhol. Em 1992, publica nas coletâneas Poesia negra brasileira, e em 1998 em Cadernos Negros: os melhores contos. no mesmo ano, recebe da Secretaria da Cultura de Santa Catarina a Medalha Cruz e Sousa, pelas publicações e estudos sobre a obra do poeta. Foi integrante do Conselho Editorial do jornal o Escritor, da união Brasileira dos Escritores e um dos fundadores, em 2001, da Comissão de Jornalistas pela igualdade racial (Cojira), do Sindicato dos Jornalistas Pro-fissionais no Estado de São Paulo. Já aposentado no Grupo

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Estado, trabalhou sete anos na imprensa oficial do Estado de São Paulo (iMESP) e é consultor de literatura do Museu Afro Brasil. Foi casado por 47 anos com Eunice (Floreni-ce) nascimento de Camargo, com quem teve seis filhos: oswaldo, Sérgio, Maurício, Marcos, Márcia Helena e da-niel.

Para este jornalista, - que tem o privilégio de poder se dizer amigo de oswaldo de Camargo –, ele executou com graça e leveza no piano de sua casa uma linda composição de sua autoria, revelando, em seguida, que é organista da igreja do bairro, Santo António de lauzane Paulista, onde toca todos os sábados e domingos. Em meio às caixas e caixas de material acumulado ao longo dos anos, espalha-das por diversos cômodos de sua casa, falou também de um sonho que acalenta: reunir seu grande acervo de livros, quadros e partituras em um espaço cultural “para jovens que amem a literatura, a música, – diz ele – mas, sobre-tudo, os que desejem fazer do livro, como falou certa vez Marcel Proust, uma grande amizade”. E, com a realização desse sonho, digo eu, estaria se tornando um elo entre as futuras gerações de escritores e leitores da literatura negra brasileira.

*FláVio CArrAnçA é jornalista, sócio-diretor da Flama Jor-nalismo ltda, editor chefe da revista Angola Yetu (do Consulado de Angola em São Paulo) e diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, onde coordena a Comissão de Jornalistas Pela igualdade racial - CoJirA/SP.

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Antologia

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Poesia

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o Estranho

olhai! A noite que chegaborrando o vão da janelaé bem conhecida minha...Eu a carrego em baús vazios de vossa herançae eu a livro por vezesberrando de desespero e a minha mensagem viajamontada no uivo do vento.E vós dizeis, repousados,se a medo vossas faiançasvelais, arcados de tédio:“São lamentos, só lamentos,aprendizado do eito...”Senhores, vós não sabeis quem souah, não sabeis quem eu sou! Mirai-me o rosto de cobrecombusto de sóis e ardumes, notai-me o passo, eis que aturo a estreiteza da senda que vosso mundo traçou.Vinde, provai do meu pão!Abancai-vos a esta mesa

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se conheceis quem eu sou!Assentai-vos, meus senhores, provai do meu pão de fel,repasto useiro em família.no vosso rosto perceboenojo ao que vos oferto...Mas o que é meu tributo à vossa força e firmeza:sal e fel e ausência bíblica de uma “escada de Jacó!”Senhores, vós não sabeis quem sou,não, não sabeis quem eu sou!olhai-me a face de cobre combusta de sós e ardumes,notai-me o rastro, eis que meçoa estreiteza da senda que vosso mundo traçou.Vinde, provai do meu pão!A noite sentada à mesa é bem conhecida minha...A angústia serve de ancila...Eu vos convidei, senhores!Provai, provai do meu pão!

(Publicado em O Estranho)

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lembro-me, sim, estive lá!

dor no território negro!dor no território negro!os olhos, de verem tanta noite,fecharam-se à treva vergastanteda fofa luz da herdade do senhor.lembro-me, estive lá: a ladainhados lábios, hesitante, despedira-secom um “ora pro nobis!”A reverência das velas rumo à sala,retas e brancas, esguias, cavoucandoa hora escura.Súbito o grito – ô! – cresceu depressaante as portas do ouvido, um ô tão longo para viver nos séculos.lembro-me, estive lá... Ainda roucoadormece-me dentro e arfao contorno do grito desmaiadoantanho na memória.lembro-me, sim, estive lá!

dor no território negro!dor no território negro!

(Publicado em O Estranho)

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Em maio

Já não há mais razão para chamar as lembrançase mostrá-las ao povoem maio.Em maio, sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam o sentido do que sonhamos.Em maio, uma tal senhora liberdade se alvoroçae desce às praças das bocas entreabertase começa:“outrora, nas senzalas, os senhores...”Mas a liberdade que desce às praças nos meados de maio, pedindo rumores, é uma senhora esquálida, seca, desvalidae nada sabe de nossa vida.A liberdade que sei é uma menina sem jeito,vem montada no ombro dos molequesou se escondeno peito, em fogo, dos que jamais irão à praça.na praça, a Esperança se encolhe ante o grito “Ó bendita liberdade!”E esta sorri, e se orgulha, de verdade,do muito que tem feito...

(Publicado em O Estranho)

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Cantilena dos negros da Fazenda Soledade

A messe de sons errantesno tempo em que nos andamos,por dentro deitou raízes,por fora nuvens e ramos,

ramos e aves no verde daquilo que foi manhã, manhã vestida de rubrotal qual o grão da romã.

E o que no ar livre andava buscando a boca da gentepara semear alegrianos semeou diferente!

nossa alegria foi antesdo que nos mora no peito,uma esperança franzina,uma agonia sem jeito.

uma agonia sem jeitouma agonia sem jeitouma agonia sem jeitouma agonia sem jeito!

(Publicado em O Estranho)

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rumo

Às vezes ergo os olhos, interrogoo seco céu sem urubu, sem nódoade nuvem: deus,que queres?Que eu me atropele com minha própria sombra, que embranqueçameu dorso e voe?

(Publicado em O Estranho)

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Anjo

Se teu corpo é um bicho, será anjo? me disseram amigos mui contentesde saberem que anjo é coisa vaga existente além dos cimos verdes.Cada estrela no céu foi uma chagaanunciando na noite meu delírio, para deus enviei um pobre grito a tremer sob as cordas desse vento.Esta gente está longe de ajudar-me,pois que, morta, se enfeita, se diverte...levarei minha vida sob o manto da existência de anjo, malsabida.Essa gente não cansa de louvar-meporque ando com vida bem vestida...Meu anseio de ser além de mimé certeza de que tenho um fim – nele, o encontro do homem se resolvee a natura do bicho se dissolve...

(Publicado em Um Homem Tenta Ser Anjo)

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Anjos na tarde

Humanamente falando, não há anjos na tarde.um silêncio, porém, vem lá dos confinsdo crepúsculo, da noite...E não é esse o ruído de um anjo?

(Publicado em Um Homem Tenta Ser Anjo)

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Joãozinho da Cruz e Sousa

À memória do menino João da Cruz e Sousa, nascido póstumo a 30 de agosto de 1898 e fale-cido a 15 de fevereiro de 1915.

Joãozinho, filho do poetaescuro da Branquidão,fincou no mundo uma vida de terra sob erosão,andou com o corpo vergado debaixo do som de um “não”!Pobre filho do poeta escuro da Branquidão!

Pobre João da Cruz e Sousa,pobre menino João,emaranhou seu destinosem palmas, sem ovação,seu rastro curto no mundofoi um risco de carvão.Pobre João da Cruz e Sousa,pobre menino João!

A noite engoliu a vidabreve do menino João,pedaço estreito de vida comido na solidão,

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não sei se teve um amigo,amiga, senhora ou cão,nem o que fez da tristezanem o que fez da funçãode ser herdeiro de um nome,de um zero e o peso de um “não”!

Joãozinho, filho do poetaescuro da Branquidão!

(Publicado em O Estranho)

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Festa do Juvenal

O castelo pegou fogo,o sino deu o sinal;acuda, gente, acudaa bandeira nacional!

(Folclore brasileiro)

A festa foi inventadapor um tal de Juvenal,doido, genioso, um santoa pelejar contra o mal;Juvenal ria de um nada, até do espantoque é um negro sonhando calpara pôr branco na cara,xingando seu original.Por isso é que fez a festao santo do Juvenal.

Convidou João Balalãoe o Visconde do Frontal,o que incendiou o castelo com a bandeira nacional, convidou o capitão da embarcação “nada Mau”e o sineiro que depressano sino deu o sinalpara salvar do incêndio

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a bandeira nacional;chamou os escravos de Jó,que, dentro do canavial,pensando ser dominójogavam o caxangá.

Moeram, tanto moeramdo moinho a pá e a móque o milho, logo cedinho,virou pó!,e dona Sancha, cismando que vinha num vendavaltal poeirada de ouro do sítio do velho ló,chamou às falas, já brava, o santo do Juvenal:

“Juvenal, tu arremedasos tempos do Santo Graal, milagres, se tu procuras,estão nas curvas do mal,me retira, se puderes, a fome da capital,o vazio das colheres, os negros do canavial,afina o sino trincado do castelo do Frontal,onde foi salva do incêndio a bandeira nacional!”

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Juvenal ficou pensando, a fitar o canavial, chamou os escravos de Jóque jogavam caxangáe disse: “Tem fé no homem,ó Sancha, pois, afinal, o Bem endireita as dobras das curvas que há no mal;eu faço a minha festacom o Visconde do Frontal, com os negros que são contentesjogando seu caxangá, e o negrinho Pastoreio(ó ruindade, ó relho, ó sal!),que tem o corpo roído,mas sem pecado, nem mal; faço a festa com o sineiromanco, mas tão pontualque chegou a tempo certo de salvardo incêndioa bandeira nacional!

Foi com fé e devoção que a festa do Juvenal fincou pensamento santona testado Visconde do Frontal,

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encheu de alegria o sonho dos negros no canavial,que, achando ser dominó, jogavam o caxangá...

Por isso, meu povo, palmas pra festa do Juvenal!

(Publicado em O Negro em Versos)

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Antigamente

Como quem quer cantar, mas não canta,como quem quer falar, mas se cala,eu venho fazendo escala,no porto de muita mágoa.

Antigamente eu morria, antigamente eu amava,antigamente eu sabiaqual é o chão que resvalase o passo da gente pesa;hoje que sou homem leve,sem dinheiro, sem altura,e tenho a boca entreaberta,olhando o incêndio do mundo,vejo a certeza mais certa:eu estou cavando no fundo!

no fundo da ventania,no fundo da tempestade,no fundo do pão dormido,no fundo de uma metade,no fundo do desamor,no fundo da noite longa,meu bolso profundo abrigao corpo de muita sombra!

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Como quem quer cantar, mas não canta,como quem quer falar, mas se cala,eu venho fazendo escalano porto de muita mágoa.

Tentei viajar-me longe,sem vã bagagem, sem mala,ficou-me junto do rostoa parede de minha sala:borrões de sombras antigas,o relembrar pegajoso,o meu sofrer de mim mesmoe as vestes de umas cantigas.

Antigamente eu morria,antigamente eu amava,antigamente eu sabiaqual é o chão que resvalase o passo da gente pesa.Hoje que sou homem leve,sem dinheiro, sem altura,e tenho a boca entreaberta,olhando o incêndio do mundo,vejo a certeza mais certa:eu cavo sempre no fundo! (Escrito na rua rego Freitas, São Paulo, às 3 da manhã)

(Publicado em O Estranho)

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Canção amarga

Eu venho vindo, ainda não cheguei...Mas vive aqui meu velho pensamento, que se adiantou, enquanto demorei...

na mornidão de um solo bem crestado (é o território estreito do meu corpo)eu venho vindo, sim, mas não cheguei,pois rasgo minha sorte, ponho a vidasobre esta aguda lápide de abismo,um dia nesta pedra enterrareia minha carne inchada de egoísmo...Eu venho vindo, ainda não cheguei...

recolho o pensamento e me debruçonesta contemplação, assim me largo,e, preso ao ser que sou, soluço e babona terra preta do meu corpo amargo.Porém na hora exata cantarei...Eu venho vindo, ainda não cheguei...

(Publicado em 15 Poemas Negros)

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Alegria

ontem, quando você passou,acompanhada de um cortejo de tristezas, eu quis saltar até as nuvens e pedir que a socorressem com todas as boas lembranças que haviam recolhido aqui da terra. Mas você nem me viu,entrou na sua paisagem escura, esquecida de que nenhuma tempestadealcança amordaçar o clarão de uma estrela,esquecida de que rodamoinho algum de vento doidoconsegue envilecer a nobreza do silêncio.Escute:para mim, você podia ser Helena,entretida a amansar os arredores de Troia,a ruiva Heloísa, escapulida, por curto tempo, do ardor de Abelardo, ou alguma mocinha dos tempos de antanhopercorrendo caminhos ensolarados de certas páginas de livros de História.Mas eu... eu sou – doce vulgaridade! - só um homemcontido por um rosto estreito e negro,que a Alegria acaba de afagar com um ramo jovem e verdeporque novamente te vi!

(inédito)

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outra canção

Ela sabia que eu estava sozinho,passou por minha casa, disse: ô!,eu fico aqui até que as coisas melhorem.

(A noite, da janela, despediu-se,foi vadiar pela cidade.)

Ela entrou, me olhou e disse: ô!,você está feio e deixa a casa feia, está encolhido e deixa a casa pequenacomo casinha de anão. Então?

Ela sabia que eu estava sozinho,e pôs a mãona minha vida como se fosse a sua primeira boneca.

(Publicado em O Estranho)

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Prosa

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Maralinga

Meu pai, na estrada, tremia o corpo, de tanto chorar

À memória do Padre Simão Switzar

de manhã, ainda a cidade escura, meu pai me acordou.Trouxe o meu peniquinho, pediu que eu mijasse de-

pressa e me lavasse ainda mais depressa, que a fazenda do doutor era longe, e era bom chegar antes da noite, senão ele podia pensar que a gente não estava muito interessado.

Então engoli meu café, peguei o saco com minhas coi-sas, os dois boizinhos de sabugo e, atrás de meu pai, saí-mos de casa, que ficou solitária dentro da neblina matinal e entre as três mangueiras castigadas pela geada do mês.

não me esqueço que meu pai trouxe o peniquinho, ato desusado, delicadeza de quem tinha desamparos por den-tro e muita coisa doendo por me deixar ir tão pequeno e magrelo viver no povoado do doutor, lá servir e tentar ser alguém em Maralinga.

Então olhei os sobrados, os terraços, a matriz de São Gonçalo, com sua barriga de azulejo azul, a praça que os jeremins tentavam atapetar com a floração amarela, após o bravo frio que desrespeitara os jardins e as latinhas com gerânios nas janelas.

olhei os sobrados, então olhei a praça e o coreto, olhei as ladeiras, enquanto meu pai recolhia o seu desgosto ao coração, que naturalmente sofria por me deixar.

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Minha mãe morrera na Semana Santa passada, na quarta-feira, e eu, quando vi tudo escuro, as velhas tra-jando panos de crepe e as moças conversando d’olhos baixos, os meninos com cara de susto, entendi que ha-viam acontecido no mundo coisas muito sérias; até o sol – pareceu-me – brilhava menos, os passarinhos dor-miam cedo, e eu pensei que fosse por causa de mamãe.

Mas meu pai caminhava quieto, e eu ouvia nossos sa-patos nas pedras, como saudações ao chão que deixáva-mos naquela manhã, que até hoje me espanta, tão notó-ria está na relembrança, tão nítida e confrangedora, tão única e desamparada na minha vida.

Hoje meus olhos descem à ladeira que subimos para galgar a saída de rosana, cheia de rosas murchas nos jar-dins, cheia de coisas doendo, onde brinquei, briguei e defendi-me dos sustos que a infância prega às crianças sem parada, cuisarruins, infernais, mas que sentem se o pai aperta o seu braço e fala brabo:

– Vamos, o doutor espera; tá chorando, menino?Hoje estou me observando lá.dona Miquelina me desejou boa sorte, porque sabia

que eu ia passar ali, na rua Fortuna, defronte à sua casa decadente, onde havia um piano belo e sonoroso nas tar-des. o capitão, de camiseta, parou de fumar seu cachim-bo à janela, sorriu me olhando e me falou palavras de animação e tranquilizantes na emergência de eu ir de vez pra Maralinga.

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Andamos mais de horas; o sol já partia, passando sobre as carapuças das montanhas, quando a brancura das casas anunciou Maralinga, povoado antigo, onde eu ia tentar me arrancar do desamparo e, se desse certo, prosseguir depois como homem mesmo, e não ficar igual ao primo Zequinha no sítio de seu Artur ludgero, cultivando bicho-do-pé na sola e pondo no mundo uns negrinhos mirrados, brincan-do ali na barroca, até que arranjassem, na oficina da neces-sidade, uma enxada e um talhão de café pra existência toda, sem termo, pros séculos seculórum, sem amém de anjo ju-biloso, porque isso é desgraça e deus não quer, mas deixa.

Foi dali, de Maralinga, que eu parti pra hoje.o doutor, já velho, tinha olhos azuis, pequenos e úmi-

dos, debaixo dos óculos de aros dourados. o doutor cha-mava-se ricardo, era dono daquilo, de Maralinga e dos co-rações dos habitantes, pois era famoso de bom, e eu me senti contente quando ele falou:

– Então, João, é este o menino? É pequenino...E ele me pôs a mão na cabeça, me olhou lá de cima, pen-

sativo, e depois, pra meu pai:– E como vai agora, João; está resignado?Meu pai parece que não entendeu o que queria dizer

resignado, mas sorriu, pegou minha mão e respondeu ao homem rico:

– Pois é, doutor.doutor ricardo voltou a me olhar, mais pensativo, depois

gritou uma ordem rumo à casa branca maior e comentou pra ele mesmo, baixo, como quem admira pensamentos:

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– o menino é pequenino, não imaginei ... Mas, virando-se para meu pai:– Volta a rosana, João?– Volto hoje, respondeu meu pai, e vi que ele catava

reforço difícil no coração para me deixar ali sem tremer, sem molhar os olhos mansos que eram os dele.

depois, conformado:– o menino então fica, doutor. É bom menino; o se-

nhor pediu, eu trouxe ele. o que o senhor fizer... E meu pai susteve a palavra, pôs a mão na minha ca-

beça, pegou o saco com as coisas:– o menino é bom, agora sem luxo de mãe...olhou os meus boizinhos:– Brinca pouco; não será peso ficar com ele, doutor.Voltou o rosto para o casario branco e a paisagem es-

palhada no derredor:– o doutor possui tudo isso. Tem muito lugar aí pro

menino... Então doutor ricardo pegou os dois boizinhos, o saco

com as coisas e, em cima do meu espanto:– o menino fica como filho, João.

Meu pai, na estrada, tremia o corpo, de tanto chorar.

(Publicado em O Carro do Êxito)

* * *

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Pedro Garcia, o poeta do frio

Batista Jordão sentia-se solitário como nunca. A desespe-rança entrara na sua alma. não sabia o que opinar sobre o frio.

Autor de três livros de poemas, estudado por brasilia-nistas, versos citados em estudos de catedráticos de So-ciologia, na tentativa de elucidar o caminho afro, a senda negra, como diziam os Evoluídos, Batista Jordão queria opinar, achava que devia opinar sobre o frio.

Já havia consultado, naquela noite, seus cadernos de notas. Mas de outra fonte dispunha agora, pois mandara encadernar sua pequena coleção de jornais da impren-sa negra, pequena, mas valiosa, pois dela constavam um número de O Menelick, de 1916, O Alfinete, Liberdade, dez nú-meros de O Clarim da Alvorada e três de A Voz da Raça, de 1933.

Antes Batista Jordão, com algum fastio, costumava folhear exemplares solitários de sua coleção, nos muitos momentos em que gostaria de, sinceramente, voltando ao passado, estar com seus irmãos de alma tão mais sim-ples, adoradores do discurso e do verso à Castro Alves ou entre os que, na imprensa negra, tinham andado quase sempre nas trilhas do Parnasianismo: Gervásio de Mo-rais, ou, para ele, o insuficiente lino Guedes, que tanto o emocionava.

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Algo, porém, acabava de descobrir. Estremeceu. Ah, se aparecesse alguém! Se aparecesse alguém Batista Jordão comemoraria, sem dúvida, tal descoberta. Encontrara, ao acaso, em página amarelecida da Voz da Raça, Pedro Antô-nio Garcia!

– Quem foi ele? – interrogou-se desalentado. Quem foi Pedro Antônio Garcia?

leu de novo:

“Frio, frio, frio,nos exilaramnas terras do frio.”

não foi fácil, mas Batista Jordão conseguiu, passados alguns dias, saber algo sobre ele.

Por exemplo, onde nascera e se criara, em que épo-ca tinha vivido, em que ano começara a publicar seus poemas. deu-lhe informações roque Patrocínio, do Mo-vimento Participação, que militara bastante tempo na imprensa negra e conhecera um tanto da vida de Pedro Garcia.

lembrou-se, então, de Joana laureano. não o convi-dara para seu grupo, mas, por isso mesmo lhe anunciaria a sua descoberta. Proporia aos Vigilantes Escolhidos que o chamassem para expor, discutir com eles. não sabia se haviam tomado conhecimento da frialdade. Grupo ex-

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clusivo, que se propunha como uma iniciante “elite ne-gra”, se soubessem do seu anúncio, o mais aceitável é que, no mínimo, afastariam a ideia como inoportuna.

Escreveu, contudo, aos Vigilantes um breve comen-tário sobre o frio, como fuga à solidão daquela noite quente, demasiadamente prolongada, em que ninguém aparecia.

Escreveu que “o frio não saltou de repente da boca da ventania, nem se apegou ao ar, qual verme gélido, sugando-lhe a umidade. não foi assim. Já havia notícias dele nas publicações que a partir de 1890 apareceram para encaminhar a coletividade nos rumos de equilí-brio, bem-estar e respeitabilidade.

Quando Pedro Antônio Garcia, convicto parnasiano, rompeu com os regulamentos da Escola – rima rica e nobreza obrigatória dos termos –, para dizer com versos mancos, frouxos:

‘Eu vago toda noite, vago, vagopela cidade, retraído e mudo,caiu-me, inesperado, n’alma o frio;vejo-o sentar-se à porta do meu peitoe eu penso no calor das plagas d’áfrica!nesta minha alma o frio já envelhece,sentado, sempre sentadoà porta do meu peito!’,

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quando rompeu com os cânones da Escola – repito –, pôs-se a testemunhar, simplesmente, o frio.

Pedro Antônio Garcia morreu na miséria. Falou e es-creveu por doze anos sobre o frio. E os versos se compor-taram mal; e palavras de cunho quimbundo, alforriadas, começaram a visitar, com extraordinária frequência, os seus textos. E, sem vergonha do étimo africano, surgiam batucando sobre o chão onde imperara, por dilatado tempo, o soneto alexandrino. Mas a palavra ‘frio’, mes-mo assim, continuava a invadir-lhe os poemas, sibilando entre os destroços dos versos de pés-quebrados, outrora tecidos sob os regulamentos rígidos do Parnaso.

nos jornais, de 1920 a 1932, os versos de Pedro An-tônio Garcia. nos jornais – sobretudo em A Voz da Raça –, os inúmeros sintomas de que havia frio e o frio secava, engordava o desencanto, separava os grupelhos em as-sociações românticas, tolas. E ele denunciou-o por doze anos, meus amigos. Hoje vemos Zé Antunes tentando provar, indo à televisão, levando declarações aos jornais, acorrentando-se ao ridículo”.

(Excerto de A Descoberta do Frio)

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Crônicas

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Mudaria o natal ou mudei eu?

À memória de Maria leopoldina Machado, mãe de Machado de Assis

Menino pobre do Morro do livramento, no rio de Ja-neiro, mestiço de negro com mulher branca, como tantos outros de seu século, que é o XiX, entre as muitas pergun-tas possíveis sobre a vida de Machado de Assis, sobretudo os “seus dias de pequeno”, apresenta-se a curiosidade de saber como seriam seus natais, por exemplo, a partir de 1845, quando ele teria seus seis, sete, oito anos, antes da morte de Maria leopoldina, sua mãe.

Sabe-se que a respeito de sua infância, Machado, es-critor com obra de tremendo fôlego, calou-se, frustrando leitores e a história literária do País. resta-nos, neste caso, apoiado em alguns fatos de sua biografia, imaginar... ima-ginar, por exemplo, que Maria leopoldina, certamente, costurava para ele e a irmãzinha Maria uma roupa nova para o dia festivo, e esmerava. o pai, assinante do Al-manaque laemmmert – sabia ler! – dava-lhe o quê? Era hábito naquela família o presente, uma “lembrancinha” para marcar a data? Cantava-se o que no natal? Algo se cantava, pois impossível manter-se no espírito dessa fes-ta sem algum canto ao Menino aniversariante. “noite Fe-liz”, a canção de natal mais divulgada no mundo, é certo que não se cantava, pois, composta numa povoação dos Alpes austríacos, em 1818, só viria a ser conhecida no

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Brasil alguns anos antes do início do século 20, lá por volta de 1895. É possível imaginar ou acreditar que Maria leopoldina ensinasse a Machadinho e à irmã versos de uma antiga canção natalina portuguesa, que se ouvia nas igrejas da ilha de São Miguel, nos Açores, terra dela:

Pela noite de natal, noite de tanta alegria, caminhando vai José, caminhando vai Maria.. Abri a porta, porteiro, porteiro da portaria! não deu resposta o porteiro, porque também já dormia (...)

Quando voltou São José, já viu a Virgem Maria com o deus menino nos braços que todo o mundo alumia.

Possível, bem possível.imagino, entre os poucos pertences de Maria leopol-

dina, um livrinho de receitas, brochura, de onde tirava, para alegria da noite, o roteiro humilde do que iria prepa-rar. Essas duas, por exemplo, na grafia da época:

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Biscoito de coco: 1 libra de araruta, ½ de assucar, bas-tante manteiga, 1 ovo, leite de coco. leva-se ao forno brando. Pudim de queijo: 1 libra de assucar, 1 pires de queijo ralado, ½ libra mal pezada de pó de arroz, 16 ovos só 8 com claras, batem-se como para um pão de lot, de-pois ajunta-se-lhe a farinha, ½ quarta de manteiga, ca-nella, passas e cidrão. Vai ao forno em formas untadas1.

Cremos que foi também a simpleza da vida em sua in-fância, em um mundo que desapareceu – especialmente com a morte de Maria leopoldina, quando Machadinho tinha dez anos –, a lembrança do que, fora do cotidiano, saboreava naquelas noites antigas e – ai dele! – a desco-berta de que se tornara um imenso escritor, sem volta, que o levaram a escrever o verso final do seu famoso So-neto de natal, que ecoa até hoje e que serve para todos nós:

“Mudaria o natal ou mudei eu?”

(inédito)

1 Receitas extraídas do livro A Dona de Casa ou A Verdadeira Doceria Nacional – Repertório util de receitas de doces, bolos e cremes usadas pelas famílias brazileiras. À venda na Livraria Magalhães. Rua do Commercio n. 27 – São Paulo.

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Velho ou apenas idoso?

Faz algum tempo, quando cheguei a este declive (ou abis-mo?) chamado 70 anos, pus-me a pensar sobre a diferen-ça, evidente, entre velho e idoso.

Parece ideia não destinada a render muito, mas pode render, sim, se o interessado encontra tempo para obser-var, pensar e concluir.

Segundo um poeta amigo, “o tempo faz tinir um mar-telo de uma dobra a outra do mundo, ininterruptamente”.

E aí está: o velho não está muito interessado nesse tinir que chama à vida, à alegria e à renovação, mas o idoso, sim, visto que idoso não é sinônimo de velho, apesar de muitas vezes os desatentos confundirem os dois.

imperdoável falta de atenção.Vejam: o idoso quer voar ainda, por mais estreito e cir-

cunscrito que possa ser o seu voo, seja pouco além do seu quintal, seja até a alma do vizinho... o velho detém-se na planície, afagando lembranças, sobretudo as carregadas de perdas e desenganos. Já não tem força para convocar alegrias, porque o mundo de hoje – acha ele – é um total desastre e peso para ele. o idoso tem os olhos atentos a observar o mundo, para detectar a possível aproximação de uma ameaça, e apressa-se a descobrir como enfrentá-la, visto que teve tempo para conhecer todos os enredos pos-

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tos sobre o palco da vida, dos gloriosos aos vergonhosos. Está apto a ser útil.

o velho encara novidades no cheiro do mundo como sua ruína. de certo modo, se compraz com isso.

Portanto, ser velho, para muita gente, é muito triste. E é mesmo triste ver a vida secar lentamente, sem outro socorro que gestos gastos, mãos sem calor, a boca que não consegue mais apreciar sabores.

Se é triste ser velho, escutando do futuro tão só o es-talar dos dedos da morte, pode se tornar uma glória ser idoso, quando se aguarda na planície, ainda, a oportuni-dade para voos, divisando no ar uma misteriosa página branca, aberta para a anotação de sonhos, talvez ousa-dias, e desenhar nela a face da Esperança.

o idoso conserva-se como uma criança alegre, mesmo curvado, rosto mais perto do chão...

o velho não consegue isso, não.Por isso, o mundo precisa de muitos idosos, sobretudo

para reanimar os velhos...

(inédito)

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Artigos e Ensaios

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Apesar de tudo, a quase mudez...

Com a morte de lima Barreto, desaparece o último “gran-de mulato” da literatura brasileira, o último da literatura oficial. Fecha-se o ciclo que – fossem outras as circuns-tâncias – iniciaria o escritor negro em alto número nos rumos de uma escrita marcando o seu “particularismo racial” e as consequências desse “particularismo”.

lima Barreto morre em 1922, marco inicial – ao me-nos oficialmente – do Modernismo no Brasil. no entan-to, o Modernismo não verá aparecer, misturada às vozes de Mário de Andrade, Menotti del Picchia, oswald de Andrade, Jorge de lima e, depois, Jorge Amado, e tantos outros, a voz do negro. Após a morte de Cruz e Sousa, em 1898, podemos falar mesmo de um amplo silêncio de poetas negros até o aparecimento de lino Guedes em 1926, com o Canto do Cisne Preto. o negro cala-se nas primeiras décadas da república. Produção nula, exceção do livro solitário e praticamente desconhecido de Pedro nunes (o negro) – Inspirações Negreiras - publicado no rio de Janeiro em 1918.

Malungo, contos de Gervásio de Morais1, militante da imprensa negra, aparece em dezembro de 1943. Mas não

1. São inencontráveis dados sobre Gervásio de Morais. Foi poeta, andou pela imprensa negra, na qual detectamos alguns sonetos dele. A segunda edição de Malungo (contos) saiu, em Santos, em 1943. Foi composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da “revista dos Tribunais”, em dezembro desse ano.

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deixa consequências. Gervásio não aprendeu nada com lima Barreto.

no entanto, nas primeiras três décadas deste século o negro subiu ao palco da literatura brasileira como nun-ca, pelas mãos do escritor branco. E se o elemento afro--brasileiro se insinua, por vezes, apenas como esteio para a variedade na ficção, não há como negar que em vários romances ele se movimenta de corpo inteiro; é o perso-nagem.

Vejamos, em lista breve, alguns desses livros: o Vigia da Casa Grande, 1924, de Mário Sette; Rei Ne-

gro, 1926, de Coelho neto (nota Gregory rabassa, no seu estudo O Negro na Ficção Brasileira, que este é o pri-meiro romance no Brasil com tema negro); A Raça (contos), 1932, de Cacy Cordovil; Malês – A Insurreição das Senzalas, 1933, de Pedro Calmon; Bangüê, 1934, de José lins do rego; Moleque, 1938, de Athos damas-ceno; Canaã, 1939, de Graça Aranha; Thebas, o escravo, 1939, de nuto Sant’ Ana; Safra, 1947, de Abguar Bastos. no entanto – afirma Adonias Filho –, “sem o negro não teríamos a ficção que temos”. Mas – verificamos – não foi o negro que fez esta ficção. Foi ele, sim, “a presen-ça” imprescindível para a feição brasileira de romances e contos. “Emergindo da oralidade – lembra o autor de Fic-ção no Brasil –” desde o “ciclo do Pai João”, o negro escravo plasma já uma temática da metade do século XVii ou do

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começo do século XViii, com o Auto dos Congos, e “incor-pora a matéria ficcional que, denunciando o movimento temático, reaparece no Auto do Bumba-Meu-Boi”2.

Mas o negro brasileiro quase nada escreveu nas pri-meiras décadas da república, em ficção, tirando – repeti-mos – lima Barreto. o negro foi e é poeta, quase só poeta. Fato que surpreende, visto que, ao menos em São Paulo, já aparecia, em 1890, uma imprensa alternativa negra, em que assinalamos o primeiro título com A Pátria, órgão dos homens de cor, seguido de O Propugnador, de 1907, órgão da Sociedade Propugnadora 13 de maio, e o Menelick, em 1915, seguindo-se A Princesa do Oeste, A Rua, O Xauter, O Alfi-nete (de São Paulo); Bandeirante (Campinas); União (Curitiba); Patrocínio (Piracicaba), escritos, evidentemente, em prosa...

daí o espanto: o que foi que travou a realização da prosa ficcional, com o conto, a novela? A imprensa negra não poderia ter sido uma escola de se escrever também ficção? nem lembramos o romance, obra que, por seu porte e meandros, exige relativa “escravidão literária”, es-forço grande e contínuo.

o certo é que os contos – excetuando os do esquecido Gervásio de Morais – não vieram, a novela não veio, o romance não veio, até 1951, quando saiu das oficinas de “di Giorgio e Cia.” , A Maldição de Canaan, ficção de romeu

2 Filho, Adonias: O Negro na Ficção Brasileira – Cadernos Brasileiros, número especial – áfrica – Colaboração nacional, rio de Janeiro, 1963.

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Crusoé. Exígua produção, irrisória – repetimos – após a ficção do mestre lima Barreto. A não ser que, com versos geralmente de reivindicação social, que boa parte de au-tores negros vem escrevendo hoje, se prepare a realização em maior escala dessa prosa. Será este o caminho?

(Excerto de O Negro Escrito - Apontamentos Sobre a Presença do Negro na Literatura Brasileira)

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de como dom Silvério chegou à glória com a Palavra

Houve quem chamasse dom Silvério Gomes Pimen-ta, teólogo, historiador e primeiro bispo de Mariana, de “Bernardes brasileiro”.

não é pouco. Mas a par dessa comparação de dom Silvério com um dos maiores escritores da língua de Sá Miranda, Camões e Vieira, marcam a vida e a história do bispo negro de Mariana enredos de fato estupendos.

São já passados 150 anos de seu nascimento, em Con-gonhas do Campo (província de Minas Gerais). dia 12 de janeiro de 1840, o lar paupérrimo de Antônio Alves Pi-menta e Porcina Gomes de Araújo assistiu ao nascimento do primogênito Silvério, mais um menino negro, no sé-culo XiX, a pisar o chão da Pátria em tempo de escravi-

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dão. Aparentemente pura irrelevância. o relho e os berros de mando alcançavam o País de ponta a ponta. o menino luiz Gama, que vai iniciar mais tarde, com ruído e alma inteira, a campanha abolicionista, neste mesmo ano está sendo vendido pelo pai, para pagar uma dívida de jogo, e é levado de Salvador para o rio de Janeiro. nessa cidade, o mulatinho Machado de Assis está para fazer um ano no dia 21 de junho. Com os três acontecerá o milagre da inteligência e da Palavra, desviando para os lados da respeitabilidade e da glória os caminhos da obscuridade, mas Silvério será também marcado, a claro lume visto, pela mão de deus.

Fatos estupendos.o luzir da inteligência de Silvério salta e faísca mui-

to cedo em Congonhas do Campo. Com olhos fechados, pode ser visto... Manuel Seabra e Antônio Gurgel, gente da terra e mestres-escolas, enxergam esse luzir imediata-mente e o proclamam. Aos nove anos o menino já tem concluído o curso primário.

É certo que a fome e a miséria disputam tolher desde cedo o brilho precoce de Silvério e é certo também que, com a morte do pai – conforme escreverá mais tarde o autor da Vida de Dom Viçoso, quando já vigário geral –, “a fa-mília ficou reduzida às angustias da pobreza, e não qual-quer pobreza, senão indigência, na qual ocorreu parelhas a fome, a nudez, o desagasalho”.

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Clemente luz, no seu livro Infância Humilde de Grandes Homens, narra, de maneira deliciosa, essa fase da vida de dom Silvério. o menino, aos dez anos, trabalha em uma casa de secos e molhados. E, nas palavras de luz,

“à noite, estava moído, com dor nos braços e nas per-nas, tão pesado era o serviço que fazia. Mas, mesmo assim, não desanimava. Estudava em todos os mo-mentos que podia. Para ler alguma coisa, saía de casa, porque ali não havia querosene o suficiente para acender a lamparina, e ia para a rua. Encostava-se aos postes, de onde pendiam os lampiões da cidade. Abria o livro e sem se incomodar com o frio e com o ven-to, nem com os bêbados que iam e vinham, lia, lia, até que seus olhos estivessem cansados e doloridos. Fechava o livro e voltava para dormir, pensando no que lera.”

o destino de dom Silvério – vê-se – foi endireitado, nesses anos, à força dos livros. E com ajuda e com aceno de deus – acrescentarão a mãe Porcina e os contemporâ-neos em Congonhas.

Há na vida de dom Silvério, sobretudo na infância, um claro cerco de pessoas, humildes todas, que o socor-rem nas horas extremas. uma delas é o alferes Manuel Alves Pimenta, tio e padrinho do filho de Porcina. A pe-dido deste, o menino começa a frequentar as aulas no Colégio de Congonhas, dirigido pelos padres lazaristas, que funcionava ao lado do Santuário de Bom Jesus. É

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esse menino Silvério, negrinho indigente em Congonhas da Província de Minas Gerais, em tempo de escravidão, relho e mando, que se tornará padre em 1862, ordenado na matriz de Sabará, com 22 anos e meio, e bispo, com o título de Câmaco, em 26 de junho de 1890.

dom Silvério, “Bernardes brasileiro”, foi um sábio. E conta a lenda – uma das várias que cercam a sua vida – que, quando já bispo, teria pronunciado um discurso em latim, na presença de numerosos cardeais, arcebispos e bispos de todo o mundo, em certo banquete em roma. E, nessa ocasião, um cardeal que intimamente menosca-bara da sua cor, teria murmurado cheio de pasmo:

- Niger, sed sapiens! (negro, mas sábio!).não resta a menor dúvida de que o prelado podia dis-

cursar em latim e noutras línguas – observa Fernando Pereira de Castro, S.J., biógrafo de dom Silvério –, mas que o houvesse feito nas circunstâncias atrás supostas é pura fantasia.

Em 28 de maio de 1920, dom Silvério entrou para a Academia Brasileira de letras, sucedendo a Alcindo Gua-nabara. recebeu-o Carlos de laet, com estas palavras: “Sem aguardar a vossa iniciativa, a Academia Brasileira de letras pediu-vos aspirásseis a ser um de nós”.

levou-o à Casa de Machado de Assis, sobretudo o li-vro A Vida de Dom Viçoso, publicado quando o autor con-tava 37 anos. uma obra que “não só aos devotos, como

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obra de edificação cristã, e aos homens de letras, pelo es-tilo vernaculíssimo, oferece real interesse. Também aos olhos dos sociólogos e filósofos é um livro precioso...” (ivan lins).

Tornou-se antológico o seu discurso de posse na Aca-demia e que tem sido publicado sob o título “A Palavra”. dele extraímos:

“A nós, acostumados com as coisas grandes pela subs-tância, grandes pelos efeitos, mas comuns pela fre-quente repetição, passam-nos muitas vezes desper-cebidas maravilhas estupendas. Assim acontece com a palavra do homem. Maravilha que só não espanta por ser comum a todos os homens. leva a palavra ao entendimento, ao coração, à imaginação dos outros, os mais recônditos segredos de nossa alma. Grandes, variados, estupendos, os efeitos da palavra!”

Foi a palavra que determinou o rumo da vida de dom Silvério, até sua morte, 30 de agosto de 1922. E deus – acrescentariam ainda os contemporâneos de Congonhas do Campo, de Mariana das Minas Gerais.

(Publicado em “Caderno de Sábado” do Jornal da Tarde, 27/01/1979)

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índice de Fotos e ilustrações

oswaldo de Camargo | 10 anos de idade |Praça da república (São Paulo, 1946)oswaldo de Camargo | Associação Cultural do negro (São Paulo, 1959)oswaldo de Camargo| Paulo Colina (in memoriam) | Abelardo rodrigues| Arnaldo Xavier (in memoriam) - Praça dom José Gaspar de Barros, São Paulo, s/d.lançamento do livro Um Homem Tenta Ser Anjo | livraria Presença, São Paulo, 1959)lygia Fagundes Telles | oswaldo de Camargo | Eduardo de oliveira (in memoriam) lançamento do livro O Carro do Êxito | livraria Contexto, São Paulo, 1972.lançamento do livro O Carro do Êxito | Ao lado do escritor Antonio olinto (in memoriam) livraria Carlitos, rio de Janeiro.lançamento do livro O Carro do Êxito | na foto: Belsiva (in memoriam), Zozimo Bulbul (in memoriam) rubem Confete |livraria Carlitos, rio de Janeiro.lançamento do livro O Carro do Êxito | Ao lado do cartunista Jaguarlivraria Carlitos, rio de Janeiro.lançamento do livro O Carro do Êxito | Ao lado do escritor e sacerdote deoscóredes Maximiliano dos Santos - Mestre didi (in memoriam) | livraria Carlitos, rio de Janeiro.Foto 1 - oswaldo de Camargo ao lado da escritora Prêmio nobel de literaturaToni Morrison. Foto 2 - oswaldo de Camargo, Toni Morrison e Paulo Colina (in memoriam) Bar Brahma, 1990.lançamento do primeiro número de Cadernos Negros | oswaldo de Camargo,Ângela Galvão, Cuti, Jamu Minka e Eduardo de oliveira (in memoriam) livraria Teixeira, 1979.Cartaz de lançamento do livro Swarze Poesie- Poesia Negra, com presença dos autores oswaldo de Camargo, Geni Guimarães e Cuti, Alemanha, 1988.Capas de livros publicados pelo autor.Gravura de Joel Câmara para o livro O EstranhoGravura de Joel Câmara para o livro O EstranhoGravura de Genilson Soares para o livro O Carro do ÊxitoGravura de Genilson Soares para o livro A Descoberta do Frio

13.21.34.

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45.54.66.72.81.

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Organização Texto

Seleção de TextosColaboradora

Fotos do mioloIlustrações

Arte FinalRevisão

FormatoTipologia

Papel da CapaPapel do miolo

Número de PáginasImpressão e Acabamento

Marciano Ventura e Ricardo QueirozFlávio Carrança Oswaldo de CamargoLetícia CamargoAcervo Oswaldo de CamargoGenilson SoaresJoel CâmaraCiclo Contínuo EditorialFernanda Sousa19x15 cmCalligraph810 BTCartão SupreMo 250 g/m2 Polen Soft/ Avena 80 g/m2100Prol Gráfica