os sentidos da sujeira

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Os sentidos da sujeira A antropóloga Mary Douglas, morta em maio, investigou como a higiene pode estar ligada a medos e inseguranças individuais PETER BURKE COLUNISTA DA FOLHA A sujeira, tal como a conhecemos, é essencialmente desordem. A sujeira absoluta não existe: ela está nos olhos de quem a vê. Foi assim que Mary Douglas, que morreu em 16 de maio, começou seu livro "Pureza e Perigo" (1966), aquele que a tornou célebre. Mary Douglas (1921-2007) foi antropóloga inglesa, aluna de Edward Evans-Pritchard, o mais importante antropólogo britânico de meados do século 20. Como Evans-Pritchard, Douglas era católica num país protestante (estudou no colégio de freiras Sacred Heart) - um pano de fundo que talvez ajude a explicar o que a levou a interessar-se pela antropologia. Ela fez seu trabalho de campo na África, no então Congo Belga, entre os leles, que na época era um povo que vivia da caça e do cultivo de milho. Retornando ao Reino Unido, publicou uma etnografia dos leles que lhe valeu uma boa reputação entre seus colegas e um cargo docente na University College, em Londres. Então, de repente, quando estava na casa dos 40 anos, tornou-se famosa nacional e internacionalmente (especialmente nos EUA, onde mais tarde iria viver por algum tempo). Por quê? Mary foi uma das primeiras antropólogas a compreender que as técnicas que aprendera para estudar o "outro" -para pesquisar "povos primitivos", como ainda diziam os antropólogos nos anos 1960- poderiam ser empregadas com bons resultados no estudo de sua própria sociedade. Ela foi uma das criadoras do que se poderia chamar de "a antropologia do nós", aquilo que Pierre Bourdieu mais tarde descreveria como "antropologia reflexiva" (em 1966, Bourdieu retornara à França havia pouco, vindo da Argélia, e seu grande estudo sobre a França, "La Distinction" [A Distinção], não seria publicado até 1979).A grande idéia de Mary Douglas foi a de que os conceitos de poluição e de tabu, tão freqüentemente empregados para analisar o "pensamento primitivo" ou "a mente selvagem", eram igualmente relevantes para a compreensão do cotidiano dos ocidentais, como os ingleses. Na Inglaterra, assim como na África, as crenças e as ações relacionadas à pureza e à impureza não são apenas questões de higiene. A higiene e a limpeza são um ritual que ajuda a criar ordem na vida das pessoas. “Quando refletimos honestamente sobre nossas escovações e faxinas", escreveu a antropóloga - que era também dona-de-casa inglesa-, "percebemos que não estamos principalmente procurando evitar doenças". "Estamos separando, demarcando fronteiras, fazendo afirmações visíveis sobre o lar que pretendemos criar a partir da casa material.

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Page 1: Os Sentidos Da Sujeira

Os sentidos da sujeira

A antropóloga Mary Douglas, morta em maio, investigou como a higiene pode estar ligada a medos e inseguranças individuais PETER BURKE COLUNISTA DA FOLHA

A sujeira, tal como a conhecemos, é essencialmente desordem. A sujeira absoluta não existe: ela está nos olhos de quem a vê. Foi assim que Mary Douglas, que morreu em 16 de maio, começou seu livro "Pureza e Perigo" (1966), aquele que a tornou célebre. Mary Douglas (1921-2007) foi antropóloga inglesa, aluna de Edward Evans-Pritchard, o mais importante antropólogo britânico de meados do século 20.

Como Evans-Pritchard, Douglas era católica num país protestante (estudou no colégio de freiras Sacred Heart) - um pano de fundo que talvez ajude a explicar o que a levou a interessar-se pela antropologia. Ela fez seu trabalho de campo na África, no então Congo Belga, entre os leles, que na época era um povo que vivia da caça e do cultivo de milho. Retornando ao Reino Unido, publicou uma etnografia dos leles que lhe valeu uma boa reputação entre seus colegas e um cargo docente na University College, em Londres. Então, de repente, quando estava na casa dos 40 anos, tornou-se famosa nacional e internacionalmente (especialmente nos EUA, onde mais tarde iria viver por algum tempo).

Por quê? Mary foi uma das primeiras antropólogas a compreender que as técnicas que aprendera para estudar o "outro" -para pesquisar "povos primitivos", como ainda diziam os antropólogos nos anos 1960- poderiam ser empregadas com bons resultados no estudo de sua própria sociedade. Ela foi uma das criadoras do que se poderia chamar de "a antropologia do nós", aquilo que Pierre Bourdieu mais tarde descreveria como "antropologia reflexiva" (em 1966, Bourdieu retornara à França havia pouco, vindo da Argélia, e seu grande estudo sobre a França, "La Distinction" [A Distinção], não seria publicado até 1979).A grande idéia de Mary Douglas foi a de que os conceitos de poluição e de tabu, tão freqüentemente empregados para analisar o "pensamento primitivo" ou "a mente selvagem", eram igualmente relevantes para a compreensão do cotidiano dos ocidentais, como os ingleses. Na Inglaterra, assim como na África, as crenças e as ações relacionadas à pureza e à impureza não são apenas questões de higiene. A higiene e a limpeza são um ritual que ajuda a criar ordem na vida das pessoas. “Quando refletimos honestamente sobre nossas escovações e faxinas", escreveu a antropóloga - que era também dona-de-casa inglesa-, "percebemos que não estamos principalmente procurando evitar doenças". "Estamos separando, demarcando fronteiras, fazendo afirmações visíveis sobre o lar que pretendemos criar a partir da casa material.”

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Ameaça

Inversamente, aquilo que não se enquadra no sistema de classificação e, logo, ordenação do mundo de uma cultura específica -ou aquilo que está no limite ou na margem desse sistema- é comumente visto como sendo ameaçador e, portanto, como impuro, sujo.

Por que, por exemplo, os judeus e muçulmanos evitam comer carne de porco? Porque tanto judeus quanto árabes eram povos pastoris, que se alimentavam de seu gado, e os porcos não se enquadravam nos critérios que definiam o gado (eles tinham cascos fendidos, como os bovinos, mas, à diferença destes, não ruminavam).

De maneira semelhante, alguns grupos humanos enxergam outros como marginais, perigosos e sujos. Assim os mendigos são vistos como sujos por pessoas que têm dinheiro, e o mesmo acontece com as prostitutas por parte das mulheres respeitáveis, com a classe trabalhadora por parte da classe média, com os judeus por parte de cristãos ou muçulmanos, e assim por diante.Logo, não é por acaso que os brasileiros se refiram aos criminosos como sendo marginais.Numa era em que a "limpeza étnica" virou um slogan comum, este último ponto pode parecer evidente, mas na Inglaterra, em 1966 (pelo que me recordo), era algo surpreendente e até mesmo, para alguns leitores, chocante.

De minha parte, devo confessar que -embora tenha lido "Pureza e Perigo" nos anos 1960 e achado suas idéias extremamente interessantes- foi apenas quando primeiro visitei o Brasil, na década de 1980, me casei com uma brasileira e fui incorporado a uma família brasileira que me dei conta de quão diferentes podem ser as idéias e premissas cotidianas sobre limpeza em culturas distintas e de que os brasileiros acreditam que os ingleses não tomam banhos suficientes (os ingleses pensam o mesmo acerca dos franceses).Em 1966, Mary Douglas ainda tinha mais de 40 anos de vida pela frente. Ela recebeu muitos convites para fazer palestras, dentro e fora do mundo acadêmico, e publicou livros sobre uma série de temas -"Símbolos Naturais" (1970), ampliando suas idéias sobre o simbolismo do corpo, para além da sujeira e da limpeza; "O Mundo dos Bens" (1978), que dizia respeito ao que chamou de "a antropologia do consumo"; um estudo intitulado "Risco e Cultura" (1980) e uma antropologia das instituições, desde famílias até grandes empresas, intitulado "Como as Instituições Pensam" (1986; no Brasil, pela Edusp).

Esses livros, juntamente com seus ensaios mais curtos sobre temas que variam de piadas até a memória, são repletos de idéias originais, que, em

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muitos casos, desafiam as premissas convencionais. Por exemplo, damos como certo que o pensamento é algo feito por indivíduos, mas Mary Douglas argumentou que, em certo sentido, as coletividades ou instituições têm pensamentos próprios.

Sistemas de informação

Estamos habituados, também, à idéia de que os bens materiais podem ser vistos ou "lidos" como símbolos do status de quem os possui. Douglas, por outro lado, criticava essa leitura, que via como sendo simplista. Ela concordou que os bens podem ser vistos como um "sistema de informação", mas argumentou que os objetos que um indivíduo específico possui e exibe não dizem respeito apenas a status mas também, como já sugerira o romancista Henry James, à personalidade, aos interesses e aos gostos de quem os possui.Embora suas realizações não possam ser reduzidas a um único livro e muito menos ainda a uma idéia, o nome de Mary Douglas permanece ligado com firmeza a sua sugestão de que aquilo que enxergamos como sujo depende de nossa cultura e revela muito sobre nossos temores conscientes e inconscientes. Da próxima vez em que nos flagrarmos descrevendo um objeto, um lugar ou uma pessoa como sujos, poderíamos nos fazer a pergunta proposta por ela: "Do que eu tenho medo?". Para compreender a era da globalização na qual vivemos, na qual o mundo está sendo reordenado mais rapidamente do que a maioria de nós consegue aceitar, precisamos todos da inspiração da abordagem antropológica de Mary Douglas, de sua visão das margens e de seu dom de enxergar outras culturas de dentro para fora e sua própria cultura de fora para dentro. PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Tradução de Clara Allain.

BURKE, P. Os sentidos da sujeira. Folha de S. Paulo, São Paulo, 05 ago. 2007. Caderno Mais!

Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe. jsp?id=49321>.