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i Junho, 2018 Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais – Musicologia Histórica, realizada sob a orientação científica da Prof.ª Doutora Luísa Cymbron e do Prof. Doutor Gerhard Doderer OS ÓRGÃOS HISTÓRICOS DOS AÇORES (1788-1892): CONSTRUTORES, CARACTERÍSTICAS E REPERTÓRIO I MARIA ISABEL ALBERGARIA SOUSA

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Junho, 2018

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais – Musicologia

Histórica, realizada sob a orientação científica da Prof.ª Doutora Luísa Cymbron e do Prof. Doutor Gerhard Doderer

OS ÓRGÃOS HISTÓRICOS DOS AÇORES (1788-1892):

CONSTRUTORES, CARACTERÍSTICAS E REPERTÓRIO

I

MARIA ISABEL ALBERGARIA SOUSA

OS ÓRGÃOS HISTÓRICOS DOS AÇORES (1788-1892):

CONSTRUTORES, CARACTERÍSTICAS E REPERTÓRIO

I

MARIA ISABEL ALBERGARIA SOUSA

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Junho, 2018

Junho, 2018

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais – Musicologia

Histórica, realizada sob a orientação científica da Prof.ª Doutora Luísa Cymbron e do Prof. Doutor Gerhard Doderer

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências Musicais – Musicologia

Histórica, realizada sob a orientação científica da Prof.ª Doutora Luísa Cymbron e do Prof. Doutor Gerhard Doderer

OS ÓRGÃOS HISTÓRICOS DOS AÇORES (1788-1892):

CONSTRUTORES, CARACTERÍSTICAS E REPERTÓRIO

I

MARIA ISABEL ALBERGARIA SOUSA

I

MARIA ISABEL ALBERGARIA SOUSA

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Ao meu Pai, pela força de viver,

à minha Mãe, símbolo de resiliência,

às minhas irmãs, companheiras insubstituíveis.

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v

Agradecimentos

A investigação e elaboração deste trabalho resulta, em larga medida, do apoio

incondicional e gracioso de inúmeras pessoas, quer a título pessoal e familiar, quer a

título institucional ou profissional.

Expresso, em primeiro lugar, o meu reconhecimento aos meus orientadores,

Luísa Cymbron e Gerhard Doderer, pelo acompanhamento, disponibilidade e

compreensão. Agradeço ainda o incentivo de Rui Vieira Nery, João Vaz e João Pedro

d’Alvarenga para a realização desta investigação.

Agradeço reconhecidamente o apoio do Governo Regional dos Açores, através

da Secretaria Regional de Educação e Cultura e do Conservatório Regional de Ponta

Delgada.

Considerando que os órgãos dos Açores foram alvo de uma ampla acção de

revitalização a partir da década de oitenta do século XX, tive a oportunidade de

conhecer os meandros daquele processo através dos lúcidos depoimentos pessoais de

três dos seus protagonistas, Ana Paula Andrade, Dinarte Machado e João Bosco Mota

Amaral.

Dado o objecto de estudo, manifesto o meu reconhecimento pela disponibilidade

da Diocese de Angra, na pessoa do seu Vigário-Geral, Pe. Hélder Fonseca, que sempre

acedeu prontamente aos meus pedidos de contacto com os párocos. Pela forma como

agilizaram o acesso aos órgãos e facilitaram a consulta dos arquivos paroquiais,

manifesto o meu agradecimento aos respectivos párocos: António Azevedo, Duarte

Melo, Hélder Fonseca, Hélio Soares, João Maria Brum, Manuel António dos Santos,

Marco Luciano, Nemésio Medeiros, Nuno Maiato. No contexto dos conventos,

agradeço a disponibilidade da Presidência do Governo Regional (órgão da Igreja do

Carmo em Ponta Delgada), das religiosas do Convento de S. Gonçalo em Angra do

Heroísmo e do Director do Museu de Angra, Jorge Paulus Bruno (Convento de S.

Francisco).

No âmbito dos arquivos e bibliotecas regionais, sublinho a prestabilidade de

todos os funcionários das secções de consulta das Bibliotecas Públicas e Arquivos

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Regionais dos Açores – Ponta Delgada, Luís Ribeiro da Silva (Angra do Heroísmo) e

João José da Graça (Horta). Nesta última devo mencionar a colaboração pessoal do seu

director, Luís San-Bento. Sublinho ainda a colaboração de Cristina Moscatel aquando

da consulta do Arquivo Municipal da Ribeira Grande, bem como a disponibilidade de

Raquel Cymbron para aceder ao Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Ponta

Delgada, e de João Cabral de Melo para o arquivo da instituição homónima da Ribeira

Grande.

Das inúmeras colaborações em diferentes áreas relacionadas com esta

investigação devo um agradecimento reconhecido pela prontidão e dedicação a Anabela

Albuquerque, André Ferreira, Catarina Moniz Furtado, Cristiana Spadaro, David

Cranmer, Diogo Pombo, Emanuel Cabral, Fábio Mendes, Graça Mendes Pinto, Helena

Cosme, Jaime Pacheco, João Pedro d’Alvarenga, João Sebastião Vaz, João Vaz, Luís

Henriques, Marco Brescia, Margarida Lalanda, Paula Albergaria, Paula Romão, Pedro

Hilário, Pedro Pascoal, Susana Goulart Costa, Tiago Hora, Válter Tavares, Victor Rui

Dores, e a tantos outros que por lapso de memória possa ter omitido.

Destaco, por último, o suporte imprescindível da minha família e do João,

verdadeiros instigadores de confiança e de incentivo e com uma enorme capacidade de

tolerância. Agradeço reconhecidamente a todos os restantes familiares, às minhas

amigas Diana, Rita, Sofia e Tânia, e aos profissionais de saúde que têm proporcionado

qualidade de vida ao meu Pai nos últimos dezoito meses, ajudando-me a terminar este

trabalho.

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Os órgãos históricos dos Açores (1788-1892):

construtores, características e repertório

Maria Isabel Albergaria Sousa

Resumo

Os Açores são detentores de um riquíssimo património organístico, composto

por cinquenta e quatro órgãos distribuídos por oito das nove ilhas do arquipélago, parte

do qual alvo de acções de restauro nos últimos vinte e cinco anos. Uma parcela daqueles

instrumentos deve-se aos dois mais proeminentes construtores de órgãos em Portugal no

final do século XVIII e início do século XIX: Joaquim António Peres Fontanes e

António Xavier Machado e Cerveira. Após a importação de instrumentos destes

organeiros, assistiu-se, nos Açores de oitocentos, à acção de construtores autóctones que

perpetuaram a tradição da organaria nacional, muito depois desta ter praticamente

desaparecido no continente. Esta profícua produção organeira ao longo de um século foi

acompanhada por uma intensa actividade musical sacra em torno do órgão,

inclusivamente com repertório escrito nos Açores, âmbito onde sobressai a figura de

Joaquim Silvestre Serrão. Para além do estudo dos próprios instrumentos, o presente

trabalho de investigação inclui a recolha de fontes documentais referentes à aquisição

dos instrumentos e à sua função e actividade na prática musical sacra açoriana entre

1780 e 1892, assim como de fontes musicais do mesmo período. A comparação das

especificificidades técnicas dos diferentes instrumentos e a análise da informação

documental permite esboçar uma importante fase da história do órgão nos Açores.

Palavras-chave: Órgão, Açores, Peres Fontanes, Machado e Cerveira, Silvestre Serrão

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Historic Organs of the Azores (1788-1892):

Builders, Morphology and Repertoire

Maria Isabel Albergaria Sousa

Abstract

The Azores possess a rich organ heritage, comprised by more than fifty-four

organs spread by almost all the islands of the archipelago, some of which restored

during the last twenty-five years. Part of those instruments is authored by the two most

prominent organ builders in Portugal in the late 1700s and early 1800s: Joaquim

António Peres Fontanes and António Xavier Machado e Cerveira. In addition to the

instruments supplied by those two builders, the Azores of the nineteenth century saw

the action of local builders, who maintained the Portuguese organ building tradition

long after it had almost completely disappeared in the mainland. This prolific organ

production coexisted with an intense activity in the field of sacred music, which

included locally-based composers such as Joaquim Silvestre Serrão. Besides the study

of the organs, this thesis includes research into documentary sources concerning the

purchase of the instruments and their role in the Azorean sacred musical life between

1780 and 1892, as well as into musical sources of the same period. The comparison

between the technical specifications of the different instruments and the analysis of the

documentary evidence allow an outline of the history of the organ in the Azores.

Keywords: Organ, Azores, Peres Fontanes, Machado e Cerveira, Silvestre Serrão

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Índice

I

Resumo ....................................................................................................... vii

Abstract ..................................................................................................... viii

Siglas e abreviaturas ................................................................................. xii

Introdução ................................................................................................. xiii

I. Aspectos da sociedade insular: enquadramento histórico ................... 1

II. Os órgãos no Antigo Regime ................................................................. 8

II.1 Da fundação da diocese de Angra até ao último terço do século XVIII ................ 8

II.2 Importação de instrumentos da organaria portuguesa tardo-setecentista (ca.1788-

1831): Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira ...... 28

III. Actividade organeira no período da Monarquia Constitucional

(1834-1892) ................................................................................................. 51

III. 1 Sebastião Gomes de Lemos .............................................................................. 53

III. 2 Joaquim Silvestre Serrão e João Nicolau Ferreira ............................................ 55

III. 3 Tomé Gregório de Lacerda ................................................................................ 62

III. 4 Nicolau António Ferreira ................................................................................... 64

III. 5 Francisco Botelho de Medeiros ......................................................................... 65

III. 6 Manuel de Sousa ................................................................................................ 66

IV. Os instrumentos e as suas características ......................................... 68

IV.1 Dimensão ........................................................................................................... 69

IV. 2 Tipos de caixas .................................................................................................. 75

IV. 3 Aspectos técnicos: análise comparativa ............................................................ 83

IV. 3. 1 Disposição fónica, nomenclatura e composição dos registos compostos . 84

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IV. 3. 2 Medição dos tubos labiais ....................................................................... 138

V. O órgão na prática musical religiosa: função e repertório ............ 142

V. 1 Os Estatutos da Sé de Angra (1797) ................................................................. 144

V. 2 O repertório ....................................................................................................... 154

V. 3 A composição autóctone após o final do Antigo Regime: Joaquim Silvestre

Serrão (1801-1877) ................................................................................................... 183

V. 3. 1 Síntese biográfica de Silvestre Serrão ..................................................... 184

V. 3. 2 Produção musical sacra............................................................................ 193

VI. Relação do repertório com os órgãos .............................................. 212

VI. 1 Aspectos de registação .................................................................................... 214

VI. 1. 2 As Matinas de Sexta-Feira Santa de Silvestre Serrão ................................. 230

Considerações finais ................................................................................ 244

Fontes e Bibliografia ............................................................................... 247

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II

Anexo 1

Sermão d’Acção de Graças pella fellis chegada do Orgão, q recitou Fr. Jozé do Mons

Serrate neste Conv.to de S. Fran. de P.ta Delg.da, à face de toda a Nobreza della, no

dia 25 de Dezb.ro de 1799 ................................................................................................ 2

Anexo 2

Venda de hum Orgão que fazem as Reverendas Relig.as do Mostrº de Santo André desta

Cid.e com a Assistencia do Seu Red.º Sindico, o Reverd.º João de Mattos Azevedo

Vigario da V.ª da Calheta da Ilha de São Jorge por Seu Procurador nesta Cid.e em 26

de Jan.º de 1827 .............................................................................................................. 10

Anexo 3

Plano por onde se devem seguir para armar o Orgão ................................................... 15

Anexo 4

Escriptura do contracto para a construção do orgão encomendado pela Confraria do S.

S. da Matriz de S. Sebastião de Ponta Delgada, ao Fabricante Antonio Xavier Machado

e Cerveira da Cidade de Lisbôa ..................................................................................... 21

Anexo 5

J. Silvestre Serrão: Partitura das Matinas de Sexta-Feira Santa ..................................... 27

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Siglas e abreviaturas

A Alto, contralto

AH Angra do Heroísmo

AIMCSJ Arquivo da Igreja Matriz de Santa Catarina

(Calheta – S. Jorge)

AIMPD Arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada (S. Miguel)

AIMVSJ Arquivo da Igreja Matriz das Velas (S. Jorge)

AIPSJ Arquivo da Igreja Paroquial de S. José (S. Miguel)

ASCMPD Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada (S. Miguel)

ASCMRG Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Ribeira Grande (S. Miguel)

AXMC António Xavier Machado e Cerveira

B Baixo

Bc Baixo contínuo

BPARJJG Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça (Faial)

CG Convento da Glória (Horta – Faial)

Colmsm Colecção Manuscritos Musicais

CONEPD Convento da Esperança (Ponta Delgada – S. Miguel)

FBM Francisco Botelho de Medeiros

Fl. Fólio

JAPF Joaquim António Peres Fontanes

JNF João Nicolau Ferreira

M.D. Mão direita

M.E. Mão esquerda

MCM Museu Carlos Machado (Ponta Delgada – S. Miguel)

MM Manuscrito

MON Monásticos

MS Manuel de Sousa

MV Matriz das Velas

NAF Nicolau António Ferreira

Org. Órgão

P-AHc Fundo musical da Sé de Angra do Heroísmo (Terceira)

P-AN

BPARLSR

Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro (Terceira)

Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro (Terceira)

P-PD

BPARPD

Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (S. Miguel)

Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (S. Miguel)

PD Ponta Delgada

RG Ribeira Grande

S Soprano

SA Arquivo musical do Seminário de Angra do Heroísmo (Terceira)

SGL Sebastião Gomes de Lemos

SJ S. Jorge

SM S. Miguel

SS Silvestre Serrão

T Tenor

TER Terceira

TGL Tomé Gregório de Lacerda

VFC Vila Franca do Campo

vl. Volume

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xiii

Introdução

O amplo número de órgãos históricos que existe nos Açores testemunha uma

actividade praticamente ininterrupta ao longo de um século. Não obstante a existência

de uma parcela exígua de instrumentos de construção alemã, francesa ou híbrida já no

final do século XIX,1 destaca-se um significativo conjunto de órgãos portugueses

construídos entre 1788 e 1892, cuja particularidade consiste na reprodução de um

mesmo modelo de concepção. Esse conjunto de instrumentos constitui o objecto de

estudo desta investigação. A sua importância advém primeiramente do representativo

número de órgãos de Joaquim António Peres Fontanes (1750-1818) e de António

Xavier Machado e Cerveira (1756-1828), construtores de referência no panorama

organeiro nacional que contribuíram terminantemente para a definição das

características técnicas e sonoras da organaria portuguesa de finais do século XVIII e

primeiras três décadas do século XIX.2

À importação de exemplares desses emblemáticos organeiros entre os anos

oitenta do século XVIII e 1831 sucedeu uma nova vaga de instrumentos,

maioritariamente assinados por construtores autóctones, mas também por outros que se

estabeleceram nos Açores temporária ou permanentemente, entre 1848 e 1892,

replicando a matriz de construção de Peres Fontanes e Machado e Cerveira. Foi desta

forma que o paradigma da organaria portuguesa tardo-setecentista perdurou nos Açores

até ao final de novecentos, fenómeno que, perante o cenário nacional após o final do

Antigo Regime, representa uma excepção. Quais terão sido as razões para aquela

continuidade, que não se verificou no continente? Terão sido as mesmas que justificam

o elevado número de órgãos históricos portugueses nos Açores? Quais as repercussões

1 Refira-se o órgão alemão da empresa Eberhard Friedrich Walcker & Cie, op. 481 (1886), na Igreja de

Nossa Senhora do Rosário, na cidade da Lagoa (S. Miguel), o órgão de autoria e data desconhecidas e de

estética francesa da Igreja de Nossa Senhora da Graça, na Praia do Almoxarife (Faial), os órgãos

atribuídos a Marcelino de Lima das igrejas de S. Mateus (Urzelina – S. Jorge) e de Nossa Senhora do

Carmo (Horta – Faial), ambos de 1855, e os órgãos de Manuel Serpa da Silva que surgem a partir da

década de oitenta do séc. XIX, de concepção híbrida. 2 Estas características têm vindo a ser identificadas através dos estudos de Gerhard Doderer, João Vaz e

Dinarte Machado.

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xiv

ao nível do repertório? Foram estas, no fundo, as questões estruturais da problemática

desta tese.

No continente, a profícua e intensa actividade organeira iniciada no último

quartel de setecentos começou a decair a partir da segunda década do século XIX:3

primeiro com a morte dos dois principais protagonistas – Peres Fontanes em 1818, e

Machado e Cerveira em 1828 –, depois com o triunfo do novo regime político, em

1834, cujas políticas liberais subtraíram à Igreja a preponderância que assumira até

então, sendo que a extinção das ordens religiosas4 – responsáveis pela aquisição de um

vasto número de instrumentos – foi a acção que mais abalou a produção organeira.

Também nos Açores essa instabilidade da organaria portuguesa se repercutiu,

verificando-se um hiato de dezassete anos entre o último instrumento de Machado e

Cerveira no Antigo Regime, em 1831, e o primeiro na vigência do governo liberal,

assinado por Sebastião Gomes de Lemos, em 1848.

Um outro efeito das acções liberais na vida organística portuguesa foi o

encerramento da única instituição de ensino profissional da música em Portugal, o Real

Seminário de Música da Patriarcal.5 O Conservatório, criado em 1835, embora copiasse

em muitos aspectos a estrutura do extinto Seminário, excluiría todas as disciplinas

relacionadas com a música sacra, incluindo o órgão. Logo, a consequente falta de

organistas habilitados e de compositores6 reflectiu-se progressivamente na produção de

repertório organístico e na conservação dos instrumentos, pelo que muitos

desapareceram com o tempo e outros foram alvo de adaptações ao gosto da época, por

vezes pouco adequadas.

3 Acerca da visão decadentista que se formou à volta do século XIX ver Paulo Ferreira de Castro, “O que

fazer com o século XIX? – Um olhar sobre a historiografia musical portuguesa”, Revista Portuguesa de

Musicologia, vol. 2, Lisboa, 1992, pp. 171-184. 4 Decreto de 30 de Maio de 1834 redigido por Joaquim António de Aguiar e assinado por D. Pedro IV,

que determina a extinção dos institutos religiosos masculinos de todas as ordens regulares no reino e no

Ultramar, sendo os seus bens secularizados e integrados na Fazenda Nacional, à excepção dos vasos

sagrados, paramentos e livros utilizados no culto divino. Cf. José Eduardo Franco (ed.), Dicionário

Histórico das Ordens, Institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal,

Gradiva, 2010, p. 164. As ordens religiosas femininas ficaram interditas de acolher noviças, sendo as suas

casas encerradas com a morte da última religiosa. 5 Sobre o funcionamento e acção do Seminário da Patriarcal consultar Cristina Fernandes, “O sistema

produtivo da Música Sacra em Portugal no final do Antigo Regime: a Capela Real e a Patriarcal entre

1750 e 1807”, Tese de Doutoramento, Universidade de Évora, vol. I, 2010, pp. 354-409. 6 Além da morte de importantes compositores/organistas do Antigo Regime, como Leal Moreira (1758-

1819), João José Baldi (1770-1816) e Frei José Marques e Silva (1782-1837).

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xv

Além da reprodução de uma matriz de construção, outra peculiaridade do

património dos órgãos históricos portugueses nos Açores reside no grau de integridade

de um representativo número de instrumentos, protegido de intervenções

descontextualizadas e irreversíveis graças à situação geográfica do arquipélago.7

Aquando da chegada de Joaquim Silvestre Serrão a Ponta Delgada (S. Miguel), em

1841, surgiram notícias sobre a falta de pessoa competente na área da organaria para a

manutenção dos instrumentos, pelo menos na ilha de S. Miguel, mas certamente

também nas restantes. É, pois, muito provável que tenha sido essa figura incontornável

do panorama organístico oitocentista nos Açores a intervir no órgão da Igreja Paroquial

de S. José, em Ponta Delgada (construído por Peres Fontanes em 1797), na segunda

metade do século XIX,8 e a zelar por muitos outros instrumentos, inclusivamente na ilha

Terceira, para cuja catedral construiu um órgão inaugurado em 1854. No entanto, as

intervenções em órgãos antigos – quer por parte de Silvestre Serrão nas décadas de 1840

a 1860, quer de Manuel Serpa da Silva (construtor natural da ilha do Faial, com

instrumentos de concepção híbrida)9 no final do século XIX e inícios de XX – não

resultaram em alterações estruturais dos someiros e da tubaria, conservando-se assim,

7 Dinarte Machado, o organeiro responsável pelo restauro da maioria dos órgãos históricos dos Açores

desde a década de oitenta do século XX, refere que a falta de técnicos habilitados com que os Açores se

depararam durante muito tempo, acabou por ser benéfica para os instrumentos. Cf. “Órgãos portugueses

nas Ilhas dos Açores”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, Zaragoza, Institución «Fernando El

Católico», vol. XXII, 2006, p. 378. 8 Esta hipótese foi primeiramente avançada pelo organeiro Dinarte Machado na brochura do concerto de

inauguração do restauro do órgão da Igreja Paroquial de S. José, em 1995, do qual foi responsável, (cf.

Inauguração do Órgão de Tubos da Igreja de São José, Integrada na Semana de São José 1995, s/p.). 9 Manuel Serpa da Silva nasceu na ilha do Faial, freguesia de Conceição da Horta, em 1847 (cf.

http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/FAL-HT-CONCEICAO-B-1841-1860/FAL-HT-

CONCEICAO-B-1841-1860_item1/P90.html, última consulta em 29 de Junho de 2017). Sendo

marceneiro de profissão, emigrou para os Estados Unidos da América em Abril de 1883 (cf.

http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/PASSAPORTES-FAL-1876-1889/PASSAPORTES-

FAL-1876-1889_item1/P126.html, fl. 126, passaporte n.º 237) de onde terá regressado quatro ou cinco

anos depois, de acordo com as notas de Manuel d’Azevedo da Cunha (cf. Notas Históricas – Calheta de

S. Jorge (Açores), Universidade dos Açores, 1981, p. 294). Segundo D. Machado e G. Doderer, Serpa da

Silva trabalhou numa fábrica de órgãos em New Bedford e, nessa condição, montou cerca de uma dezena

de órgãos nos Açores, através de um processo de montagem em série (cf. Inventário dos Órgãos dos

Açores, Presidência do Governo Regional dos Açores / Direcção Regional da Cultura, 2012, pp. 18 e 19).

Os dez órgãos que sobrevivem de Serpa da Silva, distribuídos por quatro das nove ilhas dos Açores (S.

Miguel, S. Jorge, Faial e Pico), caracterizam-se por uma estética híbrida, integrando elementos franceses

e americanos do século XIX e ainda reminiscências da organaria portuguesa de finais de setecentos, como

as palhetas em chamada e, em certa medida, o sistema anulador de cheios. Dada a proliferação dos seus

instrumentos a partir da década de noventa do século XIX, seria de maior interesse a realização de um

estudo sobre essa actividade.

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xvi

em larga medida, a concepção original dos instrumentos.10 Por estes motivos, se pode

afirmar que os órgãos dos Açores são um tratado vivo da organaria portuguesa.11

Já no arquipélago vizinho da Madeira, predominam os instrumentos de

construção inglesa, fruto da iniciativa da grande colónia inglesa ali instalada,

desconhecendo-se uma actividade regular de organeiros autóctones.12 Num outro

arquipélago da Macaronésia, o das Canárias, o património organístico de oitocentos tem

diferentes proveniências, como Alemanha, Inglaterra, Itália e Espanha continental, não

existindo uma produção local.

No contexto europeu, o cenário organístico ao longo do século XIX foi marcado

por inovações técnicas no campo da organaria, entre as mais conhecidas o sistema

pneumático, a máquina Barker (amplamente difundida por Aristide Cavaillé-Coll) e,

posteriormente, a acção eléctrica.13 Construíram-se órgãos para todo o mundo com a

assinatura de grandes firmas europeias, como a empresa alemã Walcker14 ou do

conceituado construtor francês Aristide Cavaillé-Coll.

No rescaldo dessa fase de novos instrumentos com concepções inovadoras

sobreveio, no primeiro quartel do século XX, a necessidade de valorização dos órgãos

antigos, reivindicada pelo movimento europeu Orgelbewegung.15 Em Portugal, os

primeiros ecos desse movimento surgiram em 1936, quando o musicólogo Santiago

Kastner manifestou a sua indignação perante o abandono a que “os magníficos órgãos

10 Não é comum encontrar-se nas igrejas açorianas com órgãos restaurados a documentação relativa ao

seu restauro, bem como ao estado em que o órgão se apresentava antes do restauro, o que dificulta um

discurso fundamentado. Contudo, através da observação de vários instrumentos e do seu resultado sonoro,

é possível, na maioria dos casos, perceber o nível de integridade. 11 Dinarte Machado, “Órgãos portugueses nas Ilhas dos Açores”, p. 378. 12 Consultar D. Machado e G. Doderer, Órgãos das Igrejas da Madeira, Direcção dos Serviços do

Património Cultural /DRAC, 2009. 13 Sobre as diversas experiências nos órgãos do século XIX ver Peter Williams, A New History of the

Organ – From the Greeks to the Present Day, London, Faber and Faber, 1980, pp. 159-169. 14 A conceituada empresa Walcker foi fundada em 1780 por Johann Eberhard Walcker, em Cannstatt

(ducado de Württemberg). O filho, Friedrich Walcker sucedeu-o em 1820, transferindo a oficina para

Ludwigsburg e introduzindo novos desenhos e outros melhoramentos, com a colaboração de A. Vogler.

Em 1847, a oficina Walcker exporta o primeiro órgão para os Estados Unidos da América, cujo exemplar

mais representativo se encontra no Boston Music Hall, construído em 1863. O mercado de exportação

ampliou-se para a América Central e do Sul nas décadas de 70 e 80 do século XIX. Em 1872 morre

Friedrich Walcker e o negócio prossegue com os seus filhos Heinrich, Paul, Karl e Fritz, sendo o filho

deste último, Oscar Walcker, quem assegurou a empresa no início do século XX. A sua principal

alteração na concepção dos instrumentos consiste no abandono dos numerosos registos de 8’,

característicos dos planos fónicos dos instrumentos da empresa (elemento ainda visível no órgão da Igreja

do Rosário da Lagoa, mencionado anteriormente). Oscar Walcker morreu em 1948, ficando a empresa a

cargo do seu neto Werner Walcker-Mayer. Cf. The House of Walcker – www. Walckerorgel.de. 15 Sobre a origem e o desenvolvimento desse movimento consultar Peter Williams, op. cit., pp. 192 a 206.

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antigos” das igrejas portuguesas estavam votados.16 Apesar dos esforços envidados pela

Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, dos quais resultou, por

exemplo, a intervenção no órgão de S. Vicente de Fora em Lisboa (1957),17 só no final

dos anos sessenta, através da iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, se levaram a

cabo restauros importantes como os dos órgãos das Sés de Faro e de Évora.18 Mesmo

depois disso, já na década de oitenta, Kastner voltou a chamar a atenção para o estado

de abandono dos órgãos portugueses.19 Essa atitude de desprezo para com o património

organístico terá sido uma consequência dos novos paradigmas estético-musicais da

segunda metade do século XIX, nomeadamente a música romântica francesa, em cujos

órgãos de Cavaillé-Coll se vislumbravam verdadeiras orquestras sinfónicas. Também se

enquadram no contexto dessa nova vivência musical as afirmações algo depreciativas

por parte de Ernesto Vieira, em 1900, e de Francisco de Lacerda, em 1927, sobre os

órgãos de Peres Fontanes e Machado e Cerveira. 20

16 Cf. Santiago Kastner, Música Hispânica. O estilo musical do Padre Manuel R. Coelho. A interpretação

da música hispânica para tecla desde 1450 a 1650, Editorial Ática, 1936, p. 14. Foi criada uma classe de

órgão em Lisboa no ano de 1905, sendo contratado o organista belga Desiré Paque, também mestre de

Capela Real e professor do príncipe D. Luiz Filipe. Quatro anos volvidos, Desiré Paque retirou-se e a

classe não se consolidou. Em 1933-34 foi reactivada a única classe de órgão em todo o país, no então

Conservatório Nacional, primeiramente a cargo do organista belga Edouard Chambon e depois de Filipe

Rosa de Carvalho, considerado o primeiro organista português moderno. Cf. Domingos Peixoto, “Antoine

Sibertin Blanc (1930-2012): o construtor da escola portuguesa de Órgão”, Glosas, n.º 7, 2013, p. 46.

Sobre Filipe Rosa de Carvalho consultar Rafael dos Reis, “Filipe Rosa de Carvalho – actividade do

primeiro organista português moderno”, Dissertação de Mestrado, Escola Superior de Música de Lisboa,

2014. 17 Cf. “Restauro de Órgãos”, Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, n.º 121,

Setembro de 1965, p. 15. A informação sobre a empresa responsável pela intervenção (João Sampaio) é

avançada por Carlos de Azevedo, Baroque Organ-Cases of Portugal, Amsterdam, Frits Knuf, 1972, pp.

75-77. 18 Consultar M. A. Vente e D. A. Flentrop, “The Renaissance organ of Évora Cathedral, Portugal”, The

Organ yearbook, vol. 1, 1970, pp. 5-19, e também João Vaz, “The ‘Renaissance’ organ in the Cathedral

of Évora (Portugal): origin and transformations”, The Organ Yearbook, vol. XLV, pp. 9-21. 19 Ver Relatório concernente aos órgãos da Capela do Palácio Nacional de Queluz e do Mosteiro de S.

Jerónimo em Lisboa/Belém, documento dactilografado de 1987. O mesmo discurso de abandono

transparece em “Restauro de Órgãos”, Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos

Nacionais, n.º 121, Setembro de 1965, p. 6, e é reiterado por Carlos de Azevedo em 1972 (op. cit., p. 3),

onde aponta inclusivamente o progresso que já se assistia quanto ao interesse e estudo dos órgãos

históricos na Europa, sem corolário na Península Ibérica. 20 Relativamente a Machado e Cerveira, Vieira elogia a ornamentação das caixas dos órgãos mas critica a

qualidade dos instrumentos assim como do seu tamanho, muito inferior aos instrumentos da Europa.

Acrescenta que os seus instrumentos (assim como os de Peres Fontanes) são “brilhantes e estridentes nos

cheios, mas pouco nutridos nos flautados. Satisfaziam ao gosto vulgar da época que exigia, mesmo na

egreja, musica alegre e ruidosa.” (Cf. Diccionario biographico de musicos portuguezes: historia e

bibliographia da Musica em Portugal, vol. I, Lisboa, Lambertini, 1900, p. 55). Relativamente a Peres

Fontanes, Vieira menciona a boa construção dos órgãos de Mafra mas sublinha que, de um modo geral, os

instrumentos do organeiro não são de grande fábrica (Cf. op., cit., vol. II, pp. 426-427). Francisco de

Lacerda, que estudou órgão em Paris com Charles-Marie Widor e Alexandre Guilmant – influenciado,

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A partir dos anos setenta do século XX, começaram a germinar de forma mais

consistente os estudos sobre os órgãos em Portugal, divulgando o património existente e

focando as especificidades a ele inerentes, sob a chancela de uma identidade “ibérica”, a

mesma que era proposta em várias obras dedicadas à historiografia organística

europeia.21 Nas décadas de oitenta e noventa surgiram referências tímidas a uma

individualidade da organaria lusitana nas obras de Wesley Jordan e de Manuel

Valença.22 Este último autor, inclusivamente, sublinha que a presença de numerosos

órgãos nos Açores é reflexo da época áurea da arte organística em Portugal.23 Todavia,

foi através das publicações de Gerhard Doderer, iniciadas nos anos noventa, que se

concebeu e se sistematizou a identidade da organaria portuguesa da segunda metade do

século XVIII e princípios do século XIX.24 Além desse aspecto, em particular, os

estudos de Gerhard Doderer debruçaram-se sobre a função do órgão na liturgia

portanto, pelos instrumentos sinfónicos franceses de Aristide Cavaillé-Coll – descreve os órgãos de Peres

Fontanes e de Machado e Cerveira da Basílica do Palácio Nacional de Mafra (construídos entre 1792 e

1807) como “bastante deficientes”, alegando que não dispunham de um segundo teclado, de uma caixa

expressiva, de uma pedaleira, e de uma massa sonora rica, requisitos que entendia como indispensáveis

para a “execução, correcta e artística, das obras organísticas dos melhores mestres”. Denuncia ainda a

“pobreza” dos registos, não só em número mas também em qualidade e variedade, o que resultava numa

“sonoridade excessivamente estridente e mal equilibrada.” Na conclusão do relatório que lhe foi

solicitado sobre os órgãos de Mafra, Lacerda considera que a restauração completa dos seis órgãos é

“materialmente difícil, demorada e onerosa e, artisticamente, inútil ou supérflua”, propondo a

conservação dos móveis como elemento decorativo integrado na estética da Basílica. Cf. José Bettencourt

Câmara, “Os órgãos da Basílica de Mafra num relatório de Francisco de Lacerda”, Brotéria, vol. 170, 5/6,

Maio/Junho de 2010, p. 446. Após algumas intervenções pontuais ao longo do século XX, que não

contemplaram os seis instrumentos como um todo, o conjunto dos seis órgãos da Basílica de Mafra foi

restaurado pelo organeiro Dinarte Machado com acompanhamento de uma comissão científica, num

processo de doze anos, que culminou com a inauguração em Maio de 2010. Cf. Os seis órgãos da

Basílica de Mafra, althum.com, DVD, 2012. 21 Refira-se como exemplos as publicações de Peter Williams, The European Organ: 1450-1850, London,

B. T. Batsford Ltd., 1966 e A New History of the Organ: From the Greeks to the Present Day, London,

Faber and Faber, 1980. 22 Wesley Jordan, “Dom Francisco António Solha – organeiro de Guimarães” in Boletim de Trabalhos

Históricos, vol. XXXV, Guimarães, 1984, pp. 116-136 e “The Organ in Portugal”, The Organ, 66, no. 25,

1987, pp. 25-29; Manuel Valença, A arte organística em Portugal - depois de 1750, Braga, Editorial

Franciscana,1995. 23 Op. cit.,p. 143 24 “A arte organística em Portugal no passado e no presente”, Boletim da Associação Portuguesa de

Educação Musical, 88, Janeiro/Março 1996, pp. 3-7; “Órgão. Portugal”, in Alfred Reichling (ed.),

MGGprisma, Barënreiter-Verlag, 2001, pp. 127-131; “Subsídios novos para a História dos órgãos da

Basílica de Mafra”, Revista Portuguesa de Musicologia, 2002; “Órgãos Portugueses”, Organ, Journal für

die Orgel, 1/11, Schott, 2011, pp. 22 a 36 e “A presença do órgão na liturgia portuguesa entre o Concílio

Tridentino e a Secularização”, in Manuel Pedro Ferreira e Teresa Cascudo (coord.), Música e história:

estudos em homenagem a Manuel Carlos de Brito, Lisboa, Edições Colibri / Centro de Estudos de

Sociologia e Estética Musical, 2017, pp. 77-142.

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portuguesa, uma problemática que contou posteriormente com subsídios colaterais,

nomeadamente de Cristina Fernandes e de João Pedro d’Alvarenga. 25

Os estudos de João Vaz prosseguiram a caracterização de uma organaria

portuguesa tardo-setecentista através da relação entre os instrumentos e o repertório no

final do Antigo Regime, tendo em conta as especificidades evidenciadas no repertório,

nomeadamente indicações de registação e tipo de textura, relativamente às

idiossincrasias fónicas e técnicas dos órgãos.26

No âmbito das investigações sobre os antecedentes da organaria portuguesa de

finais de setecentos, destacam-se os trabalhos de João Paulo Janeiro sobre o organeiro

genovês com actividade em Portugal entre 1740 e 1785, Pascoal Oldovini, e de Marco

Brescia, de modo particular, sobre a escola de Echevarría na Galiza e a sua influência

em Portugal, onde se sublinha a linhagem dos organeiros com o apelido de Fontanes.27

Refiram-se, ainda, os contributos de Ana Paula Tudela sobre a biografia e

actividade das famílias de organeiros em função em Portugal no séc. XVIII e inícios de

XIX, designadamente Cunha, Fontanes e Machado e Cerveira, os quais fornecem um

vasto leque de informação documental, além de uma perspectiva sobre o estado da

arte.28

25 Cristina Fernandes, op.cit., e João Pedro d’Alvarenga, “To make of Lisbon a new Rome: The repertory

of the Patriarcal Church in the 1720s and 1730s”, Eighteenth-century Music, 8/2, Cambridge University

Press, 2011, 179-214. 26 “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva (1782-1837) e o fim da tradição organística em

Portugal no Antigo Regime”, Tese de Doutoramento, Universidade de Évora, 2009; “Dynamics and

Orchestral Effects in Late Eighteenth-century Portuguese Organ Music: The Works of José Marques e

Silva (1782-1837) and the Organs of António Xavier Machado e Cerveira (1756-1828)”, in Interpreting

Historical Keyboard Music, John Kitchen e Andrew Woolley (eds.), Ashgate, 2013, pp. 157-172, e "The

Six Organs in the Basilica of Mafra: History, Restoration and Repertoire", The Organ Yearbook, nº 44,

2015, pp. 85-103. 27 João Paulo Janeiro, “Pascoal Caetano Oldovini – A actividade de um organeiro genovês no Sul de

Portugal, no século XVIII”, Organi Liguri, vol. I, Génova, 2004, pp. 1-16. Marco Brescia, “Quis audivit

unquam tale? Modos de registrar el órgano en España y Portugal en el siglo XVIII”, Dissertação de

Mestrado, Escola Superior de Música de Catalunya, 2 vols., 2012/2013, “L’école Echevarría en Galice, et

son rayonnement au Portugal”, Tese de Doutoramento, Paris, Sorbonne, 2 vols., 2013, e também

“Simetria visual e sonora do órgão ibérico em Portugal: o pioneirismo da Sé do Porto”, in António

Francisco dos Santos et al, Restauro dos Órgãos da Epístola e do Evangelho da Sé Catedral do Porto,

Cabido Portucalense, 2017, pp. 43-52. 28 Geneologia socioprofissional de uma familia de escultores e organeiros dos secs. XVIII e XIX: os

Machados - contributo para o estudo das Artes e Oficios em Portugal, s/ data,

URL: http://bibliopac.ual.pt/Opac/Pages/Document/DocumentCitation.aspx?UID=1b41f408-5a01-4e05-

a651-ff618cff72fd&DataBase=10014_BIBLIO; Os mestres organeiros Cunhas e o órgão que a abadessa

D. Córdola Francisca mandou fazer em 1741 para o coro de cima do mosteiro de São Bento de Cástris,

in: Do Espírito do Lugar - Música, Estética, Silêncio, Espaço, Luz: I e II Residências Cistercienses de São

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A fundamentação da existência de uma organaria portuguesa de finais do século

XVIII e da identidade de um tipo de órgão português foi fortemente impulsionada pelo

organeiro Dinarte Machado graças à sua experiência com os órgãos dos Açores,

também na década de noventa.29 A proximidade com os órgãos dos Açores, na

sequência da ampla acção da sua revalorização por parte do Governo Regional nas

décadas de oitenta e noventa, revela-se num artigo da sua autoria onde descreve de

forma clarividente as três fases de construção de Machado e Cerveira com base em

exemplares da sua autoria, quer nos Açores, quer no continente.30

Relativamente à bibliografia sobre os órgãos dos Açores a publicação mais

completa surgiu somente em 2012, com o Inventário dos Órgãos dos Açores31 da

autoria de Dinarte Machado e Gerhard Doderer. Esta obra apresenta todos os

instrumentos existentes nos Açores com a respectiva descrição técnica, contendo ainda

um prefácio que aborda sinteticamente o percurso do órgão nos Açores e a sua função,

sobretudo na liturgia monástica. Representa, pois, um instrumento de pesquisa

primordial para esta tese. Não obstante a pertinência dessa publicação como ferramenta

de trabalho, qualquer analogia entre o contexto organeiro insular e continental fica

comprometida devido à ausência de um inventário nacional “oficial” que permita

ampliar e fundamentar o conhecimento nessa área.32 Segundo José Nelson Cordeniz na

sua dissertação de Mestrado sobre os órgãos de António Xavier Machado e Cerveira nos

Açores, foi desenvolvido um projecto intitulado Levantamento dos órgãos de tubos

históricos em Portugal, promovido pelo extinto Centro de Estudos de Música em

Portugal da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa) e

financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, que contabilizou cerca de

setecentos e oitenta órgãos em Portugal.33 Todavia, esse projecto não terá sido

Bento de Cástris (2013, 2014) [en ligne]. Évora : Publicações do Cidehus, 2016 (généré le 10 juin 2017).

Disponible sur Internet: <http://books.openedition.org/cidehus/2184>. ISBN: 9782821875029. DOI:

10.4000/books.cidehus.2184; Os Organeiros da Oficina Fontanes em Portugal - Séculos XVIII e XIX,

Novembro/2014 (https://www.academia.edu/9460272/Os_Organeiros_Fontanes_em_Portugal). 29 O organeiro manifestou a sua posição no “Encontro Internacional de Órgão” realizado em Mafra em

Dezembro de 1994. 30 Dinarte Machado, “Órgãos portugueses nas Ilhas dos Açores”, Nassarre – Revista Aragonesa de

Musicologia, Zaragoza, Institución «Fernando El Católico», vol. XXII, 2006, pp. 377-383. 31 Presidência do Governo Regional dos Açores / Direcção Regional da Cultura, 2012. 32 A falta deste recurso foi reiterada no Simpósio Internacional “O Órgão Histórico em Portugal”,

realizado no Palácio Nacional de Mafra, entre 4 a 6 de Dezembro de 2015. 33 “Os órgãos de tubos de António Xavier Machado e Cerveira nos Açores”, Dissertação de Mestrado,

Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2010, p. 3.

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divulgado ou tornado público, pois permanece desconhecido de investigadores e

melómanos. A referida dissertação, apresentada em 2010, além de frisar a existência de

uma organaria portuguesa, inclui a primeira catalogação dos órgãos de Machado e

Cerveira nos Açores numa perspectiva tendencialmente organológica.

Dever-se-ão ainda considerar os trabalhos sobre a organística em Portugal e a

música no contexto franciscano da autoria de Manuel Valença, os únicos que, durante

largos anos, forneceram uma perspectiva cronológica e historiográfica da actividade

organística nos Açores.34

Pese embora a sua importância, todos os estudos sobre os órgãos dos Açores

atrás mencionados contêm algumas incongruências (que serão adiante sinalizadas, no

seu devido contexto) bem como a ausência de sustentação documental, factor que

dificultou sobremaneira este processo de investigação.

Revestem-se ainda de particular interesse dois artigos publicados antes do início

da política de restauro desenvolvida pelo Governo Regional dos Açores. Um deles, da

autoria de David Cranmer, publicado em 1987, oferece uma panorâmica do património

organístico açoriano nessa época através do diagnóstico de alguns instrumentos.35

Cranmer sublinha a especificidade dos instrumentos e reivindica a sua valorização,

descrevendo as características de instrumentos das ilhas de S. Miguel, Terceira e Faial,

salientando-se o órgão Peres Fontanes da Igreja de S. José em Ponta Delgada, com a sua

configuração antes do restauro em 1995, onde se visualiza todos os acessórios

adicionados numa intervenção atribuída a Silvestre Serrão.36 Outro relato sobre alguns

órgãos da ilha Terceira surge na sequência da visita de um estrangeiro àquela ilha nos

anos cinquenta do século XX. A sua autoria tem sido incorrectamente atribuída a

Monseñor Nouel, o que corresponde não à identificação do autor mas sim ao nome da

34 Op. cit., pp. 342-344, e também A arte musical e os franciscanos no espaço português (1463-1910),

Braga, Editorial Franciscana, 1997, pp. 84-85. 35 “Some organs of the Azores”, in Actas do IV Encontro Nacional de Musicologia, Boletim 52,

Associação Portuguesa de Educação Musical (APEM), Janeiro/Março 1987, pp. 86-90. No ano seguinte,

surge numa revista açoriana: “Organs in the Azorean Archipelago”, Revista Arquipélago, Universidade

dos Açores, 1988, pp. 149-163. 36Cf. Inauguração do Órgão de Tubos da Igreja de São José – Integrada na Semana de São José 1995,

(brochura cedida ao público por ocasião do concerto de inauguração, s/p).

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província (na República Dominicana) onde o autor escreveu o texto.37

Independentemente do discurso técnico revelar falta de conhecimento da organaria

portuguesa, esse relato assume-se como uma importante referência porque nele constam

os órgãos da Sé de Angra que não chegaram ao presente.

No decorrer da investigação para esta tese, foram por mim produzidos outros

contributos dedicados às diferentes vertentes da organística açoriana desde o final do

século XVIII até à actualidade: “Os órgãos das igrejas conventuais franciscanas dos

Açores”;38 “O órgão em Portugal após as lutas liberais: a actividade organeira nos

Açores no século XIX como consequência da importação de instrumentos de Joaquim

António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira”;39 “A revitalização do

património organístico dos Açores na sequência do 25 de Abril e da criação da região

autónoma”;40 “O repertório com órgão nos Açores após as lutas liberais: o caso das

Matinas da Semana Santa do Padre Silvestre Serrão”,41 “Os órgãos dos Açores na

segunda metade do século XIX: o último reduto da organaria portuguesa de finais de

setecentos”.42

No campo da discografia gravada nos Açores existem dois registos da década de

noventa que exploram as sonoridades de alguns dos mais importantes instrumentos:

Órgãos dos Açores, Capela Lusitana, Gerhard Doderer (órgão e direcção), Numérica

NUM 1025 (cd), 1994, e Os Mais Belos Órgãos de Portugal, Açores, João Vaz (órgão),

Rui Paiva (órgão), António Duarte (órgão), Movieplay 3-11045 A/B/C (3 cd), 1995.

Em termos metodológicos, esta investigação desenvolveu-se a partir da pesquisa

de fontes documentais e da observação e análise técnica dos instrumentos. Para além de

identificar as características dos instrumentos e a forma como foram trabalhadas pelos

construtores autóctones, era importante investigar o papel do órgão no contexto da

37 “Organs of two islands”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, n.os 27 e

28, 1969-1970, pp. 490-519. José Nelson Cordeniz é o único autor que indica a autoria de T. Glabenz,

identificação não encontrada na edição aqui considerada. Cf. op. cit., p. 10. 38 Itinerarium, ano LX, n.º 209, 2014, pp. 507-519. 39 Actas do II Encontro Ibero-Americano de Jovens Musicólogos, Marco Brescia e Rosana Marreco

Brescia (eds.), Tagus-Atlanticus Associação Cultural, 2014, pp. 271-277. 40 Comunicação apresentada no IV ENIM – Encontro Nacional de Investigação em Música, Biblioteca

Nacional de Portugal, Lisboa, 21 e 22 de Novembro de 2014. 41 Comunicação apresentada no III Simpósio Internacional de Música Ibero-Americana, CESEM, FCSH-

UNL, 12 a 15 de Outubro de 2014. 42 Comunicação apresentada no Simpósio Internacional “O Órgão Histórico em Portugal”, Mafra,

Portugal, 4 a 6 de Dezembro, 2015.

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liturgia católica açoriana, a partir dos pressupostos dos Estatutos da Sé de Angra (1797).

Para tal, era imperativo localizar e conhecer o repertório sacro com órgão dos séculos

XVIII e XIX conservado nos arquivos dos Açores, o qual testemunha a dinâmica das

festividades religiosas açorianas nos anos de oitocentos e o contributo iniludível de

Joaquim Silvestre Serrão (1801-1877). Ainda sob o prisma do repertório, importava

também compreender o nível de relação com os instrumentos, confrontando as

indicações de registação com a sua morfologia, mormente nas obras compostas

especificamente para os órgãos dos Açores.

A obtenção de dados sobre os órgãos dos Açores revelou-se, desde cedo, uma

tarefa vastíssima e muitas vezes desencorajadora. O ponto de partida incidiu sobre as

fontes manuscritas e impressas coevas, nomeadamente crónicas e periódicos.

Paralelamente, procedeu-se à recolha de indicadores, quer na bibliografia sobre a Igreja

nos Açores, quer na bibliografia de teor historiográfico.

Dada a amplitude cronológica e o extenso número de instrumentos, elaborou-se

uma amostra de catorze órgãos, baseada sobretudo em critérios morfológicos, a partir da

qual se procedeu à prospecção dos arquivos anexos às igrejas com os respectivos

órgãos, em muitos casos infrutífera, visto não possuírem qualquer documentação dos

séculos anteriores.43 Os dados encontrados nas fontes primárias desses arquivos, foram,

no fundo, o leme da investigação, que foi sendo construída consoante as referências

colhidas, reflectindo a desigual distribuição da informação. Paralelamente, todas as

informações localizadas noutras fontes conservadas nos arquivos institucionais,44 ainda

que sobre outros instrumentos (contemporâneos dos órgãos da amostra e anteriores),

foram consultadas e consideradas no seu devido contexto. Aliás, uma das principais

43 Refira-se, por exemplo, a Igreja de S. Pedro em Ponta Delgada (S. Miguel), cujo arquivo documental

anterior ao século XX não existe, segundo as indicações do pároco João Maria Brum. 44 Na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (BPARPD) foram ainda consultados:

Colecção Velho Arruda (que integra documentação da ilha de Santa Maria), Fundos de José do Canto e

Ernesto do Canto, Monásticos (Convento da Esperança de Ponta Delgada). Na Biblioteca Pública e

Arquivo Regional João José da Graça, Horta (BPARJJG): Colecção Thiers de Lemos, Monásticos

(Convento do Carmo da Horta). Outros arquivos: Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Ribeira

Grande (ASCMRG), Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada (ASCMPD). O arquivo

documental da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada, instituição à qual estava anexa a igreja da

Misericórdia da mesma cidade, é um caso particularmente interessante pois são múltiplas as referências à

actividade organística desde a segunda metade do século XVI até à primeira década de oitocentos

(quando a igreja desapareceu), e que, ao contrário da maioria dos restantes arquivos descritos já foi alvo

de limpeza, inventariação e catalogação. A sua consulta foi-me gentilmente permitida pela Dr.ª Raquel

Cymbron. Aproveito para expressar o meu agradecimento ao Sr. João Cabral de Melo, provedor da Santa

Casa da Misericórdia da Ribeira Grande na época em que acedi ao arquivo.

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preocupações no processo metodológico desta investigação foi a localização de fontes

(preferencialmente primárias) que corroborassem ou ampliassem as informações até

então divulgadas sobre os órgãos históricos dos Açores.

Também a pesquisa de repertório sacro com órgão se orientou primordialmente

pelos materiais existentes nos arquivos adstritos às igrejas dos órgãos da amostra:

Matriz das Velas e Matriz da Calheta em S. Jorge, Matriz de Ponta Delgada, Convento

de Santo André (actual Museu Carlos Machado) e Igreja paroquial de S. José em Ponta

Delgada.45 Foi igualmente considerado o arquivo do Seminário de Angra do Heroísmo,

pelo vasto leque de partituras que incorpora, e também o da Sé de Angra que, não tendo

órgãos históricos actualmente, contou com dois instrumentos no século XIX. À parte o

arquivo dessa Sé, o único devidamente catalogado,46 os restantes arquivos musicais

resumem-se a um amontoado de partituras, por vezes desprovido de acondicionamento

adequado, e sem qualquer suporte de inventariação.47 A fragilidade dos arquivos

musicais (paroquiais) dos Açores é de tal ordem que, não sendo tomadas as devidas

cautelas pelas entidades responsáveis, desaparecerão gradualmente e deixarão de servir

o seu propósito nas gerações vindouras.

Atendendo a que os arquivos conventuais – ou o que deles restou, por vezes

com grandes lacunas cronológicas – passaram para a responsabilidade do Estado,48 a

sua consulta foi realizada nas Bibliotecas Públicas e Arquivos Regionais de Ponta

Delgada, Luís Ribeiro da Silva (Angra do Heroísmo) e João José da Graça (Horta).

45 Importa referir que este arquivo da Igreja Paroquial de S. José foi desmantelado entre o final do século

XX e início de XXI, por motivos desconhecidos. No entanto, segundo a tradição oral, os papéis foram

colocados em sacos pretos na parte exterior à igreja, e os transeuntes com maior curiosidade acabaram por

salvar algumas partes do arquivo, guardando-as em sua posse. Foi o que aconteceu com algumas

partituras que hoje se encontram em mãos de particulares e cuja consulta me foi facultada, gesto que

agradeço. 46 Luís Henriques, Arquivo Capitular da Sé de Angra: Catálogo do Fundo Musical, Angra do Heroísmo,

Sé de Angra, 2012. Expresso o meu reconhecimento ao Luís Henriques por todo o apoio prestado. Uma

perspectiva sucinta sobre o arquivo musical da Sé de Angra é apresentada por Duarte Gonçalves Rosa e

Luís Henriques, “O acervo musical da Sé Catedral de Angra do Heroísmo – obras resgatadas do

esquecimento”, Glosas, n.º 5, Maio, 2012, pp. 74-79. 47 No arquivo da Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge (AIMCSJ), por exemplo, aquando da sua primeira

consulta, todas as partituras estavam empacotadas num quarto contíguo ao órgão e com indicações

genéricas do seu conteúdo. Contudo, por ocasião de uma segunda visita, já não se encontravam na igreja

mas sim na casa paroquial e, por zelo do pároco, todos os pacotes tinham sido abertos e reestruturados,

pelo que as referências antigas já não correspondiam às novas. 48 Considere-se o caso do arquivo do Convento da Esperança em Ponta Delgada que se encontra

distribuído entre a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e o edifício do Convento,

ainda em funcionamento. Também alguns materiais musicais relativos ao Convento de Santo André

(Ponta Delgada) permanecem no seu edifício, à responsabilidade do Museu Carlos Machado.

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Destaca-se, neste âmbito, a vasta colecção de manuscritos musicais guardada na referida

biblioteca de Ponta Delgada, que carece de uma inventariação.49

Nessas mesmas instituições procedeu-se à consulta de outros fundos,

nomeadamente paroquiais (em alguns casos disponíveis em arquivos digitais até ao ano

de 1910),50 fundamentais para os dados biográficos dos construtores da segunda metade

de oitocentos; a imprensa periódica, a qual fornece uma importante perspectiva sobre a

actividade musical sacra a partir de 1834; Alfândega de Ponta Delgada, onde se

localizaram procedimentos administrativos; colecções/arquivos particulares com

documentação avulsa relativa aos órgãos dos Açores.

Também no Arquivo Nacional da Torre do Tombo foram consultados alguns

fundos cuja descrição indiciava a existência de documentação atinente à administração

dos Açores, nomeadamente Ministério do Reino e Junta do Comércio. A Chancelaria da

Ordem de Cristo foi consultada muito pontualmente, mais no sentido de confirmar

dados existentes do que propriamente para encontrar novos dados, pois para esse efeito

teria sido necessário um maior investimento em termos de tempo. Na secção de Música

da Biblioteca Nacional de Portugal procedeu-se à consulta de alguns manuscritos

musicais.

Relativamente aos órgãos da já mencionada amostra, foi levada a cabo uma

análise técnica (plano fónico, composição dos registos compostos e dimensões dos

tubos labiais). Não obstante a morosidade desse processo, devida não só à

minuciosidade do trabalho mas também às questões logísticas de acesso aos órgãos,

assim como às suas próprias condições (e ainda do espaço envolvente), acabou por ser

um dos procedimentos mais desafiantes e enriquecedores para a análise comparativa da

concepção dos instrumentos.

Quer a dimensão documental, quer a componente organológica contempladas

nesta tese, reflectem o estado actual da arte, ou seja, os materiais dos arquivos

paroquiais e musicais e os órgãos que subsistem são uma imagem do que outrora

49 P–PD, Colecção de manuscritos musicais (colmsm). Uma inventariação dessa colecção foi iniciada por

João Bettencourt da Câmara (finais da década de noventa e início de 2000), mas sem continuidade. 50 Através do Centro de Conhecimento dos Açores: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ig/Default.aspx

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existia, porquanto os arquivos estão naturalmente depauperados e os órgãos eram em

muito maior número.

Uma das maiores dificuldades deste processo de investigação foi justamente a

dispersão territorial do arquipélago, o que obrigou à realização de várias viagens a sete

das nove ilhas (excepção das ilhas do grupo ocidental), com o propósito de visitar todos

os órgãos de construção portuguesa e localizar documentação a eles relativa. Todavia, o

facto de residir em S. Miguel (a ilha que congrega maior número de instrumentos)

permitiu mais tempo para a investigação e, consequentemente, um maior volume de

dados.

Considerando as especificidades do património dos órgãos históricos

portugueses dos Açores e a actividade musical desenvolvida entre 1788 e 1892, impõe-

se um estudo sistematizado que promova o seu conhecimento junto da comunidade

científica e educativa.51 Dar mais um passo nessa direcção foi, em suma, o objectivo

maior desta tese.

51 Tal como todos os conceitos dinâmicos, o de património também se alterou ao longo dos tempos, mercê

das próprias mudanças nas sociedades das diferentes civilizações. A sua constante actualização justifica-

se, por um lado, pelos diferentes cânones culturais e, por outro, dentro de cada cânone, com o valor

atribuído por um determinado colectivo humano a um legado do passado de acordo com as contingências

históricas de então. Esse colectivo humano corresponde, efectivamente, a uma parcela muito restrita da

sociedade, que deve dispor de conhecimento e capacidade intelectual suficientes para intervir no processo

analítico complexo que é a avaliação ou crítica do valor canónico. Cf., William Weber, “The History of

Musical Canon” in Nicholas Cook e Mark Everist (eds.), Rethinking Music, New York, Oxford

University Press, 1999, p. 351. O primeiro passo do processo de classificação dos órgãos dos Açores já

foi efectuado com o Inventário dos Órgãos dos Açores (D. Machado e G. Doderer, Presidência do

Governo Regional/Direcção Regional da Cultura, 2012).

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I. Aspectos da sociedade insular: enquadramento histórico

Um dos resultados do desiderato do infante D. Henrique na exploração do

oceano Atlântico foi a descoberta do arquipélago dos Açores, a cuja ilha mais oriental,

Santa Maria, aportou Gonçalo Velho Cabral e a sua tripulação em 1432, seguindo-se as

restantes ilhas: primeiramente S. Miguel, em 1444, depois Terceira e as outras ilhas do

grupo central, entre 1445 e 1449, e, finalmente em 1452, as ilhas mais ocidentais e

isoladas, Flores e Corvo.52

A organização da sociedade açoriana construiu-se sob o modelo piramidal

tripartido, com o clero no topo, depois a nobreza e por último o povo. Enquanto

administrador da Ordem de Cristo, o infante D. Henrique reclamou o domínio da Ordem

de Cristo na jurisdição espiritual das ilhas, o que lhe foi concedido pelo papa Nicolau V,

através da bula Romanus Pontifex.53 Com a fundação da diocese do Funchal, em 1514, a

jurisdição espiritual foi transferida para a nova diocese, dada a proximidade dos dois

arquipélagos, mantendo-se assim até á data da criação da diocese de Angra, em 1534.54

52 Cf. Rui Carita, “O descobrimento dos Açores” in Artur Teodoro de Matos, Avelino de Freitas de

Meneses e José Guilherme Reis Leite (dir.), História dos Açores – Do descobrimento ao século XX,

Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2008, vol. I, pp. 49 a 61. Refira-se que também a

colonização das ilhas se concretizou com ritmos diferentes, iniciando-se no decénio de 1440 nas ilhas

então descobertas e prolongando-se até ao século XVI nas ilhas mais ocidentais. Acerca do povoamento

consultar Avelino de Freitas Meneses, “O povoamento”, in História dos Açores – Do descobrimento ao

século XX, vol. I, pp. 63 a 78. A temática da descoberta e história dos Açores tem merecido a atenção de

inúmeros historiadores e dispõe de múltiplas publicações. A bibliografia aqui considerada é a mais

recente publicação sobre a história dos Açores, reunindo os contributos de uma panóplia de historiadores

e investigadores sobre o desenvolvimento das diversas áreas (geografia, social, religiosa, política, cultural

e económica) desde a época do descobrimento até ao século XX. 53 Cf. Susana Goulart Costa, “A igreja: implantação, práticas e resultados”, in História dos Açores – Do

descobrimento ao século XX, vol. I, p. 174. 54 Além da acção espiritual, que se traduzia em aspectos como a sagração dos templos, a administração de

sacramentos e procedimentos atinentes a religiosos e seculares, a Ordem de Cristo exerceu paralelamente

uma importante função na dimensão temporal da religião nos primeiros tempos da humanização do

arquipélago açoriano, associada a elementos físicos como a construção e conservação das igrejas e

respectivos recursos humanos. Cf. Susana Goulart Costa, op. cit., p. 174. A componente temporal

permaneceu sob a tutela da Ordem de Cristo até ao início do século XIX e foi nesse âmbito que surgiram

as inúmeras solicitações destinadas ao rei para aquisição ou manutenção dos órgãos, como se verá no

capítulo seguinte.

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A posição geográfica e a natureza vulcânica das ilhas influenciaram desde cedo

a vida dos seus habitantes.55 As recorrentes intempéries, acrescidas dos inúmeros

incidentes vulcânicos, e ainda os constantes assaltos dos corsários,56 fomentaram desde

logo um forte sentimento de fé nas gentes açorianas, alicerce para a posição dominadora

da Igreja Católica açoriana, em torno da qual se gerou uma sociedade marcadamente

religiosa e devota.57 De entre as ordens religiosas que se fixaram nos Açores, entre as

quais se contam os Jesuítas e os Agostinhos, a de S. Francisco foi não só a primeira

como a que mais se difundiu, tendo desempenhado um papel preponderante na

edificação da religiosidade local.58 Os sete conventos construídos no século XVI nas

ilhas mais povoadas (S. Miguel, Terceira, Santa Maria e Faial) aumentaram para dezoito

(femininos e masculinos) na primeira metade do século XVIII,59 em oito das nove ilhas,

o que conduziu, no ano de 1717, à divisão da província de S. João Evangelista em duas

custódias: a de S. Miguel (que incluía também a ilha de Santa Maria), e a da Terceira

(que abrangia as ilhas dos grupos central e ocidental, com excepção do Corvo).

55 Esta vivência traduz uma marca identitária dos açorianos, a que Vitorino Nemésio, no fulgor dos

movimentos autonomistas, em 1932, designou de “açorianidade”, conceito sustentado na condição

histórica, geográfica, social e humana do ser açoriano, e que representa o paralelo com o conceito de

“hispanidade” de Miguel Unamuno. Cf. António Machado Pires (1995), “Açorianidade”, in Enciclopédia

Açoriana, disponível em http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=566 e

também José Guilherme Reis Leite, “A consciencialização de uma identidade própria”, in História dos

Açores, vol. II, pp. 147-156. 56 Nos séculos XVI e XVII o arquipélago foi alvo de assaltos devido à sua privilegiada posição

geoestratégica, que o colocava como plataforma das duas principais carreiras ultramarinas ibéricas, a rota

do Cabo (portuguesa) e a carreira das Índias (espanhola), sendo uma região de interesse e cobiça por parte

de alguns povos europeus. Cf. Paulo Drumond Braga, “Manifestações de cultura açoriana”, in História

dos Açores, vol. I, p. 401. 57 Das inúmeras manifestações de fé insulares que surgiram ao longo dos séculos, algumas permanecem

ainda activas, como é o caso das Festas do Espírito Santo, o culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres e

as romarias quaresmais. Note-se que estas manifestações religiosas realizam-se fundamentalmente em

espaços exteriores. Na ilha Terceira, ainda são visíveis os inúmeros impérios do Espírito Santo, edifícios

de pequenas dimensões onde se desenvolvem os rituais associados à festa. Sobre o culto do Senhor Santo

Cristo ver Maria Fernanda Enes, “A Invocação e o culto do Senhor Santo Cristo em Ponta Delgada – São

Miguel”, Cultura [online], vol. 27, 2010, pp. 211-226, posto online no dia 08 de Agosto de 2013, URL:

http://cultura.revues.org/347; DOI:10.4000/cultura.347. Para as romarias quaresmais ver: João Leal, “As

romarias quaresmais de São Miguel (Açores)”, in Estudos em Homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira,

Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Estudos Etnologia, 1989, pp. 409-436. Sobre a

religião católica nos Açores ver Susana Goulart Costa, op.cit., pp.184-194 e também “Igreja, religiosidade

e comportamentos”, in História dos Açores – Do descobrimento ao século XX, vol. I, pp. 405-422. 58 A única ilha onde os franciscanos não se instalaram foi o Corvo. A custódia açoriana, inicialmente sob

a jurisdição dos Claustrais do Porto, depois da província de Portugal e finalmente da província dos

Algarves, foi elevada a província em 1640, sob o orago de São João Evangelista. Cf. Susana Goulart

Costa, “A Igreja: implantação, práticas e resultados”, in História dos Açores, vol. I, pp.186. 59 Cf. Susana G. Costa, “Igreja, religiosidade e comportamentos”, in op. cit., vol. I, pp. 421 e 422.

Actualmente, muitos desses conventos integram o património arquitectónico da região. Consultar:

http://www.inventario.iacultura.pt/ (última consulta em 29 de Maio de 2017).

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A par da missão evangelizadora, os observantes açorianos tiveram uma acção

preponderante nos campos assistencial e pedagógico. No primeiro, conjugavam a dupla

função de mentores espirituais e auxiliares na enfermidade,60 e no segundo, cuidavam

do ensino, não só ao nível das primeiras letras – imprescindível contributo para a

alfabetização – como também do latim e da música.61

Relativamente aos prelados, a diocese de Angra foi maioritariamente ocupada

por bispos vindos de importantes cidades do continente, com formação

predominantemente universitária, mas também conventual.62 Uma parte significativa

estudou em grandes centros musicais, como foi o caso de D. Frei João dos Prazeres

(1683-1685),63 em Évora, D. João de Brito de Vasconcelos (1716-1719) e D. António

Caetano da Rocha (1756-1772), em Coimbra, além de muitos outros vindos de Lisboa,

como D. José Pegado de Azevedo (1802-1812), reconhecido como melómano, e D.

Frei Estevam de Jesus Maria (1827-1870), identificado como músico, designadamente

organista, em Mafra.64 Graças à idade madura com que eram indigitados para a mitra

angrense, a qual representava a fronteira entre o Ultramar (incluindo o Brasil) e o reino,

estando, como tal, no topo da hierarquia diocesana não metropolitana, os bispos de

Angra patenteavam carreiras com importantes funções dentro da Igreja e com ligações

às principais igrejas lisboetas, como a Sé Patriarcal e o Convento de Mafra.65 Assim,

quer os antístites açorianos, quer os elementos das diversas ordens religiosas que se

instalaram nos Açores, foram importantes pilares do circuito de comunicação entre o

arquipélago e o reino, reduzindo o peso da insularidade.

60 Cf. Maria Fernanda Enes, “A vida conventual nos Açores – Regalismo e secularização (1759-1832)”,

Lusitania Sacra, 2ª série, 11 (1999), p. 330. 61 Cf. Susana G. Costa, op. cit., 186, 187. O ensino do latim foi igualmente ministrado pelos jesuítas,

sendo o primeiro colégio mandado erguer por D. Sebastião, em Angra, no ano de 1569, seguindo-se Ponta

Delgada, cuja igreja começou a ser construída em 1591. No entanto, com a expulsão dos jesuítas, por

determinação de D. José I, em 1759, os Franciscanos reassumiram a responsabilidade exclusiva do

ensino. Cf. Paulo Drumond Braga, “Manifestações de cultura açoriana”, in História dos Açores, vol I, p.

387. João José Tavares afirma que os franciscanos do Convento de Santa Cruz na Lagoa (S. Miguel)

foram uns beneméritos da instrução, ensinando inclusivamente música e cantochão. Cf. A Vila da Lagoa e

o seu Concelho – Subsídios para a sua história, Câmara Municipal da Lagoa, 1985, p. 199. Sobre a acção

dos franciscanos na música portuguesa consultar Manuel Valença A arte musical e os franciscanos no

espaço português (1463-1910), Braga, Editorial Franciscana, 1997. 62 Susana G. Costa, A diocese de Angra nas cartas do seu prelados 1695 – 1812, Boletim Eclesiástico dos

Açores (suplemento), vol. 62, Angra do Heroísmo, 2012, pp. 9-13. 63 Neste caso, e noutros similares mencionados neste parágrafo, as datas referem-se ao bispado. 64 Manuel D’Azevedo da Cunha, Notas Históricas – Calheta de S. Jorge (Açores), Universidade dos

Açores, 1981 p. 273. 65 Cf. Susana G. Costa, A diocese de Angra, pp. 9-13.

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Outras instituições, como as misericórdias e as confrarias, evidenciaram-se no

plano caritativo açoriano e foram inclusivamente importantes adquirentes de órgãos

para as igrejas às quais estavam vinculadas. As igrejas sob a tutela das misericórdias,

normalmente dirigidas pela elite local, desenvolveram uma actividade musical com

órgão registada em algumas fontes coevas.66 De entre as confrarias, sobressaem as

fortalecidas pela reforma tridentina, nomeadamente a do Rosário, uma das contraentes

no contrato do órgão para a Sé de Angra, em 1586, e a do Santíssimo Sacramento,

presente em inúmeras paróquias e responsável, no caso específico da Igreja Matriz de

Ponta Delgada, pela compra do órgão para a mesma igreja, em 1828, e pela encomenda

de música a Joaquim Silvestre Serrão, em 1848.

Artur Teodoro de Matos considera a posição geográfica dos Açores como uma

“escala atlântica de referência”, conseguida pela sua preponderância na circulação

comercial enquanto elo de ligação entre mercados.67 É precisamente essa situação de

entreposto que caracteriza a história da arte no espaço insular, alimentada pela simbiose

entre a “importação contínua de obras e de estéticas e a produção local inspirada nesses

modelos.”68 Terá sido esta a realidade da actividade organística açoriana nos seus cinco

séculos de vida: um contínuo processo de apropriação e criação.

Em termos administrativos, os Açores dependiam da Coroa portuguesa,

usufrutuária do direito de primeiro povoador. Ao longo dos tempos, a região conheceu

diferentes formas de administração, umas mais eficazes que outras, porquanto a

dispersão territorial dificultava uma uniformização e, aspectos como a morfologia e a

demografia de cada ilha, instituíam uma hierarquia natural. As ilhas Terceira e S.

Miguel sempre disputaram o topo dessa hierarquia. A sua preponderância reflectiu-se

66 As misericórdias açorianas ergueram imponentes igrejas, nomeadamente em Angra e em Ponta

Delgada, tendo esta última desaparecido no final da primeira metade do século XIX. Sobre esta igreja ver

Isabel Soares d’Albergaria, “A Igreja da Misericórdia de Ponta Delgada: considerações em torno de um

monumento perdido”, Arquipélago – História, 2.ª série, XIII, 2009, pp. 21-48. De acordo com Paulo

Silveira e Sousa, estas instituições representavam “estruturas de poder capazes de criar interesses,

disputas e conflitos, possuindo papéis importantes na organização da autoridade, das sociabilidades e da

estratificação e relacionamento entre grupos sociais”, sendo as suas direcções dominadas pela elite local.

Cf. “As elites insulares”, História dos Açores, vol. I, p. 580. 67 Cf. “Escala Atlântica de referência. Entre a atalaia do oceano e a opressão dos naturais”, in História dos

Açores, vol. I, pp. 199-233. Susana G. Costa alude igualmente ao duplo efeito da presença do oceano, que

ora bloqueia ora abre horizontes: “(...) nove parcelas separadas por um mar inóspito e cujo isolamento

joga ou não a seu favor, conforme as circunstâncias, as cronologias e os espaços.” Cf. “Igreja,

Religiosidade e comportamentos”, in História dos Açores, vol. I, p. 405. 68 Paulo Drumond Braga, op. cit., p. 399.

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desde logo na elevação à categoria de cidade de ambas as vilas, Angra em 1534 (ano da

criação da diocese de Angra) e Ponta Delgada em 1547. O sistema administrativo de

donatarias foi o primeiro e mais duradouro, mantendo-se até à criação da Capitania-

Geral dos Açores, em 1766,69 um novo modelo preconizado por Sebastião José de

Carvalho e Melo, que não vingou plenamente nos anos subsequentes à sua

implementação devido a uma elite, sobretudo micaelense, que se insubordinara contra a

superioridade de Angra, então capital dos Açores.70 Reitera-se assim a preponderância

política da ilha Terceira face à capacidade económica de S. Miguel, polaridade que

ainda hoje caracteriza as relações inter-ilhas.71 Nesse sistema político-administrativo, a

Igreja desempenhava um papel de relevo, uma vez que cabia ao prelado açoriano a

representação do capitão-general na ausência ou inexistência deste.72

A importância geopolítica dos Açores evidenciou-se uma vez mais com as

circunstâncias originadas pelas invasões francesas e a fuga da família real portuguesa

para o Brasil. Foi justamente na ilha Terceira que D. Pedro se proclamou regente em

substituição do duque de Palmela, em 1832, nomeando assim o primeiro governo

liberal,73 do qual emanaram alguns dos principais decretos reformistas pela mão do

ministro Mouzinho da Silveira e que se estenderiam depois ao continente,

nomeadamente o da extinção das ordens religiosas.74 Foi ainda D. Pedro que extinguiu o

sistema de Capitania-Geral até então em vigor, elevando os Açores à categoria de

Província, com sede em Angra, e duas subprefeituras: uma em Ponta Delgada e outra na

69 Ver Rute Dias Gregório, “Formas de organização do espaço”, in História dos Açores, vol. I, pp. 111-

113. 70 Cf. José Damião Rodrigues e Paulo Jorge Fernandes, “As novas e velhas estruturas do poder e os seus

reflexos nos vários espaços insulares”, in História dos Açores, vol. I, pp. 445 e 452. 71 Consultar Avelino de Freitas de Meneses, “Novas escalas ocasionais e relacionamentos exteriores”, in

História dos Açores, vol. I, pp. 322 e 323. 72 Cf. Susana G. Costa, “Igreja, religiosidade e comportamentos”, in História dos Açores, vol. I, pp. 410-

411. Foi o que aconteceu a partir de 1770, quando o governo interino ficou assegurado pelo bispo de

Angra, corregedor e intendente da Marinha. Cf. José Damião Rodrigues e Paulo Jorge Fernandes, op. cit.,

p. 450. 73 Foi inclusivamente pelos serviços prestados ao longo da guerra civil (1828-1834) que a cidade de

Angra beneficiou do epíteto “Heroísmo” por que hoje é conhecida, por carta régia de 1837. D. Pedro

passaria igualmente por S. Miguel, onde ficou hospedado, em 1834, no palacete do negociante Jacinto

Ignácio Rodrigues da Silveira, cujo auxílio financeiro à expedição militar liberal lhe assegurou o título de

Barão. Cf. Paulo Silveira e Sousa, “As elites insulares”, in História dos Açores, vol. I, p. 601. 74 Consultar José Mattoso (dir.) História de Portugal – O Liberalismo, vol. V, Editorial Estampa, pp. 89 e

90 e A. H. de Oliveira Marques, Breve História de Portugal, 8.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 2012,

pp. 446-453. O Decreto de 17 de Maio de 1832 extingue numerosos mosteiros e conventos nos Açores e

incorpora os edifícios no Património do Estado. Cf. José Eduardo Franco (dir.), op.cit., p. 164.

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Horta.75 Em pleno conflito civil, os Açores foram divididos administrativamente em

duas províncias: a Oriental, com sede em S. Miguel e abrangendo também a ilha de

Santa Maria, e a Ocidental, com sede em Angra e contemplando as restantes ilhas dos

grupos central e ocidental.76 Todavia, esses modelos, além de não satisfazerem

micaelenses e faialenses, não correspondiam ao sistema tripartido almejado pelos

açorianos, que viria a estabelecer-se em 1836 com a divisão do arquipélago em três

distritos: o de Ponta Delgada, englobando as ilhas de S. Miguel e Santa Maria,

designado distrito Oriental; o de Angra do Heroísmo, denominado distrito Central e

constituído pelas ilhas Terceira, S. Jorge e Graciosa; e o da Horta ou Ocidental,

integrando as ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo.77 Os três distritos permaneceram

grosso modo até 1974, com as respectivas cambiantes desde o final do século XIX. A

autonomia açoriana que hoje vigora foi conquistada na sequência da Revolução de 25

de Abril de 1974, tendo o primeiro governo regional tomado posse em 1976.78

Ao longo dos séculos, a economia açoriana sustentou-se fundamentalmente pela

produção das suas culturas e respectivas trocas e, neste enquadramento comercial,

movimentava-se ao ritmo político internacional, ou, nas palavras de Avelino de Freitas

de Meneses, “do progresso internacional”.79 A segunda metade do século XVII

correspondeu a uma das maiores épocas de depressão dos Açores, revertida

paulatinamente através da exploração de outros meios de subsistência e de

comercialização, nomeadamente a cultura e exportação da laranja, que assegurou a

estabilidade económica insular desde finais do século XVIII até sensivelmente ao

último quartel de oitocentos, quando uma nova crise se fez sentir.80 O desenvolvimento

económico gerado pela produção e exportação da laranja – cultivada em praticamente

todas as ilhas –, proporcionou à sociedade insular importantes inovações nos planos

arquitectónico e cultural, protagonizadas essencialmente pela fidalguia e alta burguesia

75 Cf. José D. Rodrigues e Paulo J. Fernandes, op. cit., p. 469. 76 Decreto de 28 de Junho de 1833. Cf. idem, p. 470. 77 De acordo com Guilherme Reis Leite, esta divisão regia-se unicamente por propósitos políticos,

justificados exclusivamente por razões socioeconómicas e não geográficas. Cf. “Novas formas de

governação das ilhas: divisões e autonomia fracassadas”, in História dos Açores, vol. II, p. 14. 78 Sobre o percurso da autonomia regional consultar José Guilherme Reis Leite, “Os acertos da

governação, a ilusão da autonomia e a continuidade do divisionismo”, in História dos Açores, vol. II, pp.

160-184. 79 Cf. “A auto-subsistência e as novas culturas”, in História dos Açores,vol. I, p. 269. 80 Consultar Fátima de Sequeira Dias, “A economia ao sabor das circunstâncias. Produções, agentes e

intercâmbios”, in História dos Açores, vol. II, pp. 33-66.

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regionais.81 Da elite micaelense novecentista faziam parte os grandes senhores do

comércio da laranja, os gentlemen farmers, que viajavam por cidades consideradas de

vanguarda, como Londres e Paris, absorvendo “as luzes das ciências e das artes de uma

Europa em plena expansão económica e cultural”.82 No período que Sacuntala de

Miranda identifica como o “ciclo da laranja” (1780-1880) surgiram relatos de viagens

de estrangeiros aos Açores, descrevendo as suas belezas e aspectos culturais e artísticos,

nomeadamente a música realizada no espaço das igrejas.83

O património de órgãos históricos portugueses que os Açores detêm actualmente

foi construído precisamente durante o período do ciclo da laranja, prolongando-se até

1892. Aspectos como a dimensão dos instrumentos e a sua ornamentação são

sintomáticos da oscilação da economia da laranja,84 que se repercutiu no poder de

compra dos patronos das igrejas, das irmandades, das misericórdias e das confrarias,

normalmente pertencentes às elites locais. Os órgãos mais imponentes, conceptualmente

mais ricos e economicamente mais onerosos foram adquiridos na época próspera

daquela cultura, sensivelmente de 1780 até aos anos cinquenta do século XIX, inclusive.

A partir da década de sessenta, com o declínio daquela produção citrina, as igrejas

adquiriram instrumentos menos dispendiosos.

81 Concomitantemente, a elite tradicional das ilhas de S. Jorge, Graciosa e Pico usufruía dos elevados

rendimentos provenientes da exportação do vinho. 82 Cf. O Ciclo da Laranja e os “gentlemen farmers” da Ilha de S. Miguel (1780-1880), 2.ª edição, Ponta

Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1995, p. 36. 83 Só para citar alguns exemplos: Joseph e Henry Bullar, Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das

Furnas, 3.ª edição, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2001; Henrique de Aguiar O. Rodrigues, Thomas

Hickling. Subsídios para uma biografia, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2010, onde o autor

transcreve, por exemplo, o diário de Catherina Green Hickling, escrito entre 1786 e 1789. 84 Sobre este assunto ver Fátima de Sequeira Dias, “A importância da ‹‹economia da laranja›› no

arquipélago dos Açores durante o século XIX”, Arquipélago – Revista da Universidade dos Açores, 2.ª

série, vol. 1, n.º 2, 1995, pp. 189-220.

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II. Os órgãos no Antigo Regime

A reconstituição do panorama organístico dos Açores consegue-se, até ao século

XVIII, quase exclusivamente a partir de fontes documentais, dada a não sobrevivência

de instrumentos. Assim, a parte inicial deste capítulo é uma compilação cronológica de

todas as informações encontradas nas fontes e analisadas à luz do contexto organístico

açoriano e continental. Ressalve-se, porém, que a maioria da informação apresentada no

subcapítulo II.1 resulta de uma pesquisa arbitrária, no sentido em que, não se tratando

do foco principal da temática, não obedeceu a uma consulta extensiva das fontes,

nomeadamente o fundo da Chancelaria da Ordem de Cristo (detentora da ordem

espiritual dos Açores até ao Liberalismo), o qual congrega uma vasta quantidade de

documentação relativa às fábricas das igrejas e estabelecimento de funções e provisões,

e cuja consulta sistematizada permitiria, certamente, complementar os dados aqui

apresentados.

II.1 Da fundação da diocese de Angra até ao último terço do século XVIII

A criação da diocese de Angra deu-se no ano em que aquela localidade foi

elevada a cidade, em 1534, correspondendo a um dos procedimentos de evangelização

da população açoriana. Da bula da sua instituição, Aequum reputamus, emitida pelo

Papa Paulo III naquele ano, consta a obrigação do rei D. João III e do governador local

em dotar a Igreja da Sé, bem como as outras igrejas, de alguns equipamentos, entre os

quais órgãos.85

85 Cf. Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos

Açores, III, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1961, pp. 265. Conserva-se uma cópia autêntica da bula

em P-AN, Cod. RES. N. 154, gaveta 10.

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A jurisdição espiritual passou assim a ser da responsabilidade da nova diocese,

enquanto a temporal se manteve sob a alçada da Ordem de Cristo, responsável pela

construção de estruturas adequadas à celebração do culto, devidamente equipadas e

assistidas pela Igreja-mãe, a Igreja do Santíssimo Salvador, em Angra.86 O registo mais

antigo sobre órgãos diz respeito ao pagamento do organista da Sé de Angra, onde terá

existido o primeiro órgão dos Açores. 87 Trata-se do alvará régio de D. João III, datado

de 18 de Outubro de 1540, que determina a atribuição de oito mil réis ao tangedor dos

órgãos da Sé:

(...) do primeiro dia do mes de Setembro deste ano presemte de mil Ve coremta

em diante, deis em cada hum anno, do dinheiro do rremdimento do dito

almoxarifado, ao tamgedor dos orgãos da se da cidade d’Amgra, que ora tamge,

oito mill reis de que faço merce ao bispo e cabido da dita see, emquanto o dito

bispo não prover diso outra pesoa. (...).88

Para Gerhard Doderer e Manuel Valença, bem como Valdemar Mota e Pedro de

Merelim,89 o alvará de D. João III corresponde ao estabelecimento do cargo de

organista. Apesar de isso não transparecer no seu conteúdo, a indicação de “gracioso”

contida no título do alvará leva a crer que o organista já estava em funções, passando a

ser remunerado a partir desse alvará.

86 Sobre a implantação da Igreja Católica nos Açores consultar Susana G. Costa, “A igreja: implantação,

práticas e resultados”, in História dos Açores, vol. I, pp. 173-189. 87 Atendendo a que a ordem seráfica foi a primeira a estabelecer-se nos Açores, alguns investigadores

admitem que os primeiros órgãos que lá chegaram foram deixados pelos frades menores aquando das

suas viagens de missionação para o Brasil. Cf. Adriana Latino e Luísa Cymbron, “Manifestações musicais

profanas no arquipélago dos Açores na transição do século XV para o XVI”, in Actas do Congresso

Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, vol. IV, Universidade do Porto, 1989, p. 236); Dinarte

Machado e Gerhard Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, Presidência do Governo Regional dos

Açores/Direcção Regional da Cultura, 2012, p. 9. Marco Brescia reitera que o primeiro órgão a chegar ao

Brasil foi levado por um frade franciscano na frota de Pedro Álvares Cabral. Cf. “El organo Almeida e

Silva/Lobo de Mesquita de Diamantina (1782-1787): ingenuo autóctono en el ultramar lusitano” in

Barroco Iberoamericano: identidades culturales de un imperio, Carme Calderón, María de los Ángeles

Valle e María Inmaculada Moya (coords.), vol. II, Santiago de Compostela, Andavira Editora, 2013, pp.

241-253. 88 Charles-Martial de Witte, “Documents anciens des archives du chapitre d’Angra”, Lusitania Sacra, 1ª

série, IX, 1970/71, p. 155. O documento original, conservado em P-AN, Cartório do Cabido de Angra,

não pôde ser consultado em Março de 2013 devido ao seu deteriorado estado de conservação. 89 Cf. Valdemar Mota, Santa Sé do Salvador – Igreja Catedral dos Açores, Angra do Heroísmo, 2007, p.

3; Pedro de Merelim, As 18 Paróquias de Angra – Sumário Histórico, Angra do Heroísmo, p. 520;

Manuel Valença A arte organística em Portugal – depois de 1750, Editorial Franciscana, Braga, 1995, p.

265; D. Machado e G. Doderer, op. cit., p. 9.

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A primeira identificação de um organista, Gonçalo Alvares (com o cognome de

“cego”), surge em 1545 na sequência do pagamento de um moio de trigo para tocar nos

domingos e festas, efectuado pela Câmara da Vila da Praia, na ilha Terceira.90 Na ilha

de S. Miguel, em 1555, há referência ao organista Francisco Dias na Igreja Matriz da

Ribeira Grande.91 Em ambos os casos, nada mais se conhece sobre as suas biografias.

Importa sublinhar que a Vila da Ribeira Grande foi crescendo demográfica e

geograficamente ao longo da segunda metade do século XVI, chegando a ser, em 1591,

a mais populosa do bispado.92

Do único sínodo realizado nos Açores, sob a responsabilidade do bispo D. Frei

Jorge de Santiago em 1559, resultaram as Constituições Sinodais do Bispado de Angra,

em cujo capítulo “Da immunidade das Ygrejas, & exempçam das pessoas

ecclesiasticas” se adverte aos regulares e seculares relativamente ao comedimento a ter

dentro do espaço físico da igreja e zonas contíguas no dia dos Fiéis Defuntos ou em

qualquer acto fúnebre, circunstâncias em que o órgão não tocava:

Defendemos a todas as pessoas ecclesiasticas e seculares, de qualquer estado &

condição que sejão, q nas ygrejas não comão nem bebão, cõ mesas nem sem

mesas, nem sobre as couas em dia dos finados, ou quãdo se enterrar algu

defuncto, ne cante, ne baile nellas ne em seus adros, ne nos orgãos se tanjão no

coro se cante cantigas profanas (...).93

O texto é assaz revelador dos comportamentos associados à prática religiosa da

época, onde o espaço da igreja se afigurava como uma sala de festas.94 Os bailes dentro

90 Francisco Ferreira Drumond, Anais da Ilha Terceira, vol. I, Câmara Municipal de Angra do Heroísmo,

Imprensa do Governo, 1850, p. 114. Segundo aquele autor, esta informação foi extraída do Livro de

acórdãos da Câmara da Praia, fl. 46 v. Apesar do Fundo da Câmara da Praia da Vitória estar depositado

em P-AH, não se encontra disponível para consulta devido ao seu delicado estado de conservação. Na

época em apreço, cabia aos poderes concelhios requerer à Coroa as necessidades das igrejas. Cf. Susana

G. Costa, op.cit., p. 185. 91 António dos Santos Pereira (ed.), Ribeira Grande no século XVI – Vereações (1555-1578), Câmara

Municipal da Ribeira Grande, 2006, pp. 58 e 144. 92 João Bernardo Oliveira, “Palavras prévias”, in Gaspar Fructuoso, Saudades da Terra, Livro I, Instituto

Cultural de Ponta Delgada, 1998, p. XXIV. Gaspar Frutuoso (1522-1591) é o mais importante cronista

açoriano, autor da única crónica sobre o descobrimento e colonização do arquipélago. Era natural da Vila

da Ribeira Grande, onde foi vigário da Igreja Matriz por vinte e seis anos, de 1565 a 1591. 93 Impressas em Lisboa nas oficinas de João Blávio de Colónia em 1560, fl. 58 (P-AN, RES/A.R.M.71.). 94 As “cantigas profanas” representavam o ambiente profano dentro do espaço sagrado, igualmente

condenado pelo prelado. Aliás, a sua prática não era exclusiva às igrejas seculares e conventuais

insulares, porquanto no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, por exemplo, os capitulares foram forçados

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dos templos permaneceram como prática comum nos Açores pelo menos até 1674,

quando os visitadores “ordenam que nas matinas cantadas se cantassem apenas

responsórios, banindo-se os vilancicos, os descantes e os bailes nos templos enquanto se

celebrassem os ofícios divinos”.95

Nas décadas de cinquenta e sessenta do séc. XVI regista-se o estabelecimento de

funções associadas à prática musical na igreja sede do bispado: mestre-escola,96

meninos de coro97 e um mestre de capela, sendo este último obrigado a ensinar

cantochão e canto de órgão aos clérigos da cidade de Angra e de toda a diocese.98 A

ausência de referência ao organista não significa a sua inexistência, antes confirma a sua

nomeação em data anterior.

Em 1560, encontra-se o pagamento ao “tamgedor de orgaõs” Salvador

Francisco, no valor de mil e seiscentos reis,99 nos registos da primitiva Igreja da

Misericórdia em Ponta Delgada.100 Para a mesma igreja, em 1575, a mesa contrata

Manoel Cabral para servir de capelão e “tanger os orgaõs” às missas, recebendo de

ordenado pela primeira função dois mil réis e pela segunda mil e seiscentos.101

Igualmente significativo é o pagamento de treze mil réis a Sebastião Barboza pelos

“orgãos velhos que se lhe serviam e pelos novos qe deu a esta casa”, no ano de

1607/1608102 (justamente os anos imediatamente seguintes ao término da construção da

igreja), evidenciando-se uma prática de reutilização de materiais. Entre o último terço

a proibir qualquer manifestação profana, quer cantada quer tocada, em 1576. Cf. Ernesto Gonçalves de

Pinho, Santa Cruz de Coimbra – Centro de Actividade Musical nos Século XVI e XVII, Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, 1981, p. 57. 95 Luís Bernardo Leite de Ataíde, Etnografia, Arte e Vida Antiga dos Açores, edição facsímile, vol. I,

Presidência do Governo, Direcção Regional da Cultura, 2011, p. 80. 96 P-AN, Carta de D. Sebastião de 26 de Maio de 1563, Mitra de Angra, pasta 1, doc. 5. 97 Em 1553, D. João III ordena a aquisição de quatro moços de coro com o pagamento de mil reis a cada

um por cada ano: P-AN, Mitra de Angra, pasta 1, doc. 4. Catorze anos mais tarde, em 1567, D. Sebastião

requeria mais 4 moços de coro para o serviço da catedral, desta feita com o pagamento anual de quatro

mil réis e uma veste de pano vermelho. Cf. Charles de Witte, op.cit., pp. 191 e 202. 98 Charles de Witte, op. cit., p. 195. Trata-se de um alvará de D. Sebastião datado de 1567, no qual consta

igualmente a obrigação do mestre de capela em ensinar, a título gracioso, vinte “moços pobres” que o

bispo designasse, sujeitando-se às restante obrigações tal como os “outros mestres de capella”, auferindo

vinte mil réis por ano. 99 Cf. [Extractos dos Livros da Misericórdia de Ponta Delgada] efectuados por Rodrigo Rodrigues (fl. 15

v.) e pertencentes a uma coleção familiar. Agradeço a colaboração do Dr. Pedro Pascoal no acesso a essa

colecção. 100 Segundo Isabel Soares d’Albergaria, foi um dos templos mais imponentes das ilhas, superando o seu

congénere da ilha Terceira, e desapareceu na primeira metade do século XIX. Consultar Isabel Soares

d’Albergaria, op. cit., p. 23. 101 Cf. [Extractos dos Livros da Misericórdia de Ponta Delgada], fl. 5 v. 102 Cf. idem, fl. 53.

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do século XVI e a primeira metade de XVII, são identificados como organistas nessa

igreja, além dos já mencionados: João Lopes Corrêa, Manoel d’Andrade, Miguel

Daredes, Martim Camacho e o padre Francisco Fernandes Maciel. A actividade destes

organistas reflecte uma prática organística dinâmica, na qual participavam outros

instrumentos como a harpa, o baixão e o corneto.103

Por ocasião da morte do pai do capitão donatário Rui Gonçalves da Câmara, em

1577, foi celebrado o ofício de defuntos na Igreja Matriz de Ponta Delgada, em cuja

descrição Gaspar Frutuoso faz referência aos órgãos:

(...) E o dia antes, a hora de vésperas, o foram visitar todos os oficiais das

Câmaras de toda a ilha, cobertos de dó para o acompanharem, mas ele não foi às

vésperas que, estando todo o povo presente, se cantaram com um primeiro

nocturno do ofício dos defuntos, solenemente. Estava a nave do meio da igreja

de S. Sebastião, da cidade de Ponta Delgada, onde se fez o ofício, e os peares

todos, coro, orgãos e a fronteira toda do cruzeiro cobertos de dó. (...) onde disse

a missa do ofício o vigairo Sebastião Ferreira (...). E Afonso de Goes, mestre da

capela, com os cantores, que estavam em dois bancos, cobertos de pano preto,

no meio de todos os outros padres, cantaram a missa e o ofício com música

funeral e muita solenidade (...).104

Em 1584, a Igreja de S. Sebastião, em Angra, manifestou a necessidade de um

ordenado para o organista, a qual foi atendida posteriormente pelo rei através de vinte

cruzados anuais para o efeito.105 De facto, Frei Agostinho de Monte Alverne, nas suas

Crónicas da Província de S. João Evangelista das ilhas dos Açores – a narrativa de

perfil histórico dos Açores mais significativa do século XVII (contendo testemunhos

anteriores) – confirma que a paróquia de S. Sebastião tinha vigário, cura, quatro

beneficiados, tesoureiro e organista.106

103 Dado o alargado corpus de informação sobre a prática musical sacra, este arquivo merece um estudo

aprofundado. Apesar de não ter sido efectuada qualquer pesquisa nas datas em estudo sobre a Igreja da

Misericórdia de Angra, é perfeitamente plausível que esta realizasse os modelos musicais da sua

congénere micaelense. 104 Saudades da Terra, Livro IV, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998, pp. 380 e 381. Afonso de

Goes foi o segundo mestre de capela daquela igreja (Cf. Idem, pp. 126 e 174). Segundo Luísa Cymbron e

Adriano Latino, Goes teria uma “sólida formação humanística e musical, adquirida provavelmente numa

das escolas adjuntas às catedrais da sua região de origem, Elvas, Évora ou ainda o colégio de Vila

Viçosa” (Cf. op. cit., p. 36). Este é um dos casos que testemunha a aproximação às práticas desenvolvidas

no continente através da circulação de entidades religiosas, administrativas e militares. 105 Cf. Pedro de Merelim, op.cit., p. 407. 106 Cf. op. cit.,vol. III, p. 25.

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O contrato para a aquisição de um órgão para a Sé de Angra, em 1586, é o mais

antigo documento que se conhece do género nos Açores.107 A entidade compradora é

constituída pelo bispo de Angra, D. Manuel de Gouveia, em representação da Sé, um

tesoureiro e ainda um mordomo da Confraria de Nossa Senhora do Rosário,108 em

representação da mesma. Como vendedor apresenta-se Nicolau de Resende, sobre o

qual o contrato apenas diz ser clérigo de missa e morador na cidade de Angra.109 Com

base nestes escassos dados surgem duas hipóteses relativamente ao construtor do órgão:

aceitar Nicolau de Resende como construtor, ou considerá-lo como intermediário de

algum construtor português ou até mesmo espanhol, pois nessa época os Açores,

enquanto região portuguesa, encontravam-se sob o domínio de Filipe II de Espanha,

sendo inclusivamente palco de inúmeros confrontos entre os partidários de D. António,

o Prior do Crato, e de Filipe II de Espanha.110

Os quarenta mil reais relativos ao valor da compra, assim como os custos da

manutenção e conservação do órgão, são repartidos pela fábrica da Sé e a referida

confraria. Sobre as características do instrumento o texto revela apenas que Nicolau de

Resende tinha “uns orgãos realejos que tangiam cravo e outras diferenças de órgãos”:

(...) foi dito Nicolau de Resende que ele tinha e possuia uns orgãos realejos que

tangiam cravo e outras diferenças de orgãos os quais vendia como logo de feito

vendiam deste dia para sempre à fábrica da sé e à confraria de nossa senhora do

rosário e irmandade para ambos juntamente usarem deles e os terem e

possuirem e isto por preço logo numeado de quarenta mil reais os quais logo

recebeo por esta maneira: vinte mil reais que confessou ter recebido da dita

irmandade e confraria da sua ametade do preço e os outros vinte mil reais que

107 Compra o Bispo D. Manuel de Gouveia uns orgãos para uso da igreja da Se a Nicolau de Reisende

(1586), P-AN, Cabido da Sé, Mitra de Angra, casa forte, pasta 2, doc. 48. Agradeço desde já a

disponibilidade e colaboração do Dr. Pedro Pascoal (Instituto Cultural de Ponta Delgada) e da Prof.ª

Doutora Margarida Lalanda (Universidade dos Açores), na descodificação completa do texto, bem como

da sua contextualização nos procedimentos católicos da época. Quer na bibliografia genérica, quer na

bibliografia sobre os órgãos dos Açores (ex. Dinarte Machado e Gerhard Doderer, op. cit, p. 9) a data do

referido contrato tem sido recorrentemente deturpada para 1589, apesar da sua clara enunciação no

manuscrito. 108 Esta confraria, junto com a do Santíssimo Sacramento e ainda dos Fiéis de Deus, foram revitalizadas

pelo Concílio de Trento (cf. Susana G. Costa, “A Igreja: implantação, prátics e resultados” in História dos

Açores, vol. I, p. 191) e proliferaram pelas paróquias açorianas graças ao impulso do então bispo de

Angra, D. Frei Jorge de Santiago. Esta participação das confrarias ter-se-á mantido, de resto, até ao século

XIX, inclusive, quando o órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada foi adquirido pela Confraria do

Santíssimo Sacramento da mesma igreja, em 1826. 109 Fl.1. 110 Sobre os acontecimentos nos Açores atinentes ao domínio dos espanhóis ver Paulo Drumond Braga,

“Espanhóis, continentais e açorianos. Um espaço para a libertação”, in História dos Açores, pp. 235-266.

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logo contou e recebeo em reais de 8 castelhanos [em moeda] que recebeu de

Baltazar Fernandes, tesoureiro da fábrica da sé desta cidade tantos que fizeram a

dita soma de vinte mil reis e por eles e pelos vinte já recebidos disse que se dava

por pagar e satisfeito do preço dos ditos órgãos e dava fábrica da sé e irmandade

nossa senhora do rosário por quites (...).111

Não obstante a ausência de estudos exclusivamente dedicados ao realejo em

Portugal, onde era utilizado nas igrejas quinhentistas,112 o teórico espanhol Pablo

Nassarre define-o como um órgão de pequenas dimensões, também designado

“portativo”,113 justamente por ser amovível, situação que transparece naquele contrato

através do procedimento de guardar o órgão na capela de Nossa Senhora do Rosário no

fim das festas realizadas no altar-mor.114

Considerando as características gerais dos órgãos em Portugal na centúria de

quinhentos (uma das épocas áureas da organaria em Portugal) – usualmente de pequenas

dimensões, um único teclado com extensão de C/E-a’’, oitava grave curta e sem

palhetas horizontais115 –, surge, portanto, a dúvida sobre a indicação de cravo e "outras

differenças de orguaos", a qual pode significar, por um lado, um craviórgão

(instrumento popular na Europa e em Portugal no século XVI)116 e, por outro, um órgão

111 Cf. Compra o Bispo D. Manuel de Gouveia uns orgãos para uso da igreja da Se a Nicolau de

Reisende (1586), Cabido da Sé – Mitra de Angra, Casa Forte, pasta 2, doc. 48, fl. 1 v. 112 Refira-se como exemplo o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (cf. Filipe Santos Mesquita de

Oliveira, “A génese do tento no testemunho dos manuscritos P-Cug MM 48 e MM 242 (com uma edição

crítica dos ricercari de Jacques Buus e das suas versões recompostas”), Tese de Doutoramento,

Universidade de Évora, 2011, p. 48) e também a Sé de Évora, em 1589 (cf. João Pedro d’Alvarenga, “On

performing practices in mid-to late 16th-century. Portuguese church music: The Capella of Évora

Cathedral”, Early Music, vol. XLIII, n.º 1, Janeiro 2015, p. 12. 113 Pablo Nassarre na sua obra Escuela Musica segun la practica moderna, vol. I, Zaragoza, Herderos de

Diego de Larumbe, 1724-1725, p. 483, refere: “En los Organos menores, que comunmente se llaman

Realexos, ò Portatiles, se haze el flautadillo tapado, porque ocupa menos lugar; y se pone en la misma

entonacion de los que llevan el flautado de seis palmos y medio.” Tradução da autora a partir do original:

“Nos órgãos menores, que comummente se chamam Realejos ou Portativos, faz-se o flautado tapado,

porque ocupa menos espaço, e põe-se a mesma afinação dos que têm o flautado de seis palmos e meio.” 114 Em termos de localização dentro da igreja, Maria Bernadette Dufourcet esclarece que, quer em França

quer em Espanha, os realejos posicionavam-se junto ao coro baixo. Cf. “El órgano barroco francés e

español”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, XXII, Zaragoza, Institución «Fernando El

Católico», 2006, p. 109. 115 Cf. Gerhard Doderer “A arte organística em Portugal no passado e no presente, Boletim da Associação

Portuguesa de Educação Musical, 88, Janeiro/Fevereiro, 1996, p. 5. 116 Ernesto Gonçalves de Pinho faz inúmeras referências a craviórgãos no Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra. Cf. Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical, Fundação Calouste Gulbenkian,

Lisboa, 1981, p. 166.

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com diferentes dimensões, ou ainda com potencialidades sonoras novas para os padrões

da época.117

O contrato acima indicado também menciona a presença do órgão na celebração

do culto, quer da própria Sé, quer da Confraria de Nossa Senhora do Rosário,

depreendendo-se uma actividade diária:

(...) celebração e festas do culto divino da dita sé e capela da confraria de nossa

senhora do rosário as quais festas todas serão as festas principais que se fizerem

no altar-mor da dita sé: de nosso senõr e de nossa snõra solenes e as festas do

apostólo São Pedro e São Paulo e de São João Baptista e santa Cruz de Maio118

nas missas novas e festas de todos os santos e pontificais e de São Tiago Maior

e na capela de nossa snõra do rosário todas as festas que se nela celebrarem de

nossa senhora e nas salvas e missas cantadas que for necessario assim na capela

de nossa senhora como no altar-mor não sendo dias da semana poderão porém

tambem tanger a todas as missas cantadas assim aos sabados como de semana

na capela de nossa senhora do rosário em cuja capela o dito órgão estará

fechado e aí será o seu lugar. (...)119

Os dados apresentados na Tabela 2.1 atestam a actividade organística e

organeira desenvolvida na centúria de quinhentos em algumas das zonas mais

importantes das duas principais ilhas dos Açores, S. Miguel e Terceira.

No início do século XVII, em 1625, a paróquia de S. José, em Ponta Delgada,

solicitou à coroa um órgão para a referida igreja.120 Na mesma fonte, cem anos volvidos

117 A partir do final da primeira metade do século XVI, os órgãos espanhóis passaram a integrar

sistematicamente mais duas famílias de registos: as flautas e as palhetas (primeiro as de ressoador curto e

depois com ressoador longo). Cf. Jesús Ángel de la Lama, “Principales características de los órganos

renascentistas e barrocos españoles”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, XVIII, 1-2,

Zaragoza, Instituición «Fernando El Católico», 2002, pp. 12 e 13. 118 Festa da Invenção da Santa Cruz (Inventio Sanctae Crucis), que se celebrava a 3 de Maio e que já não

faz parte do calendário litúrgico universal. 119 Cf. Compra o Bispo D. Manuel de Gouveia uns orgãos para uso da igreja da Se a Nicolau de

Reisende (1586), Cabido da Sé – Mitra de Angra, Casa Forte, pasta 2, doc. 48, fl. 2 e 2 v. 120 Arquivo da Igreja Paroquial de S. José (AIPSJ), Livro da vesita de Santa Clara da Parochia de S. Joze

(1581-1798), fls. 47-47v. A primitiva Igreja de S. José foi erguida nos arrabaldes da cidade, na zona

limítrofe de Santa Clara. Não obstante as inúmeras tentativas de mudança para um edifício condigno,

visto que a ermida de invocação a Santa Clara tinha dimensões reduzidas, tal viria a acontecer somente no

ano de 1714, para o local onde hoje se encontra o Jardim Sena Freitas. Um século depois, o edifício dava

sinais de degradação, e, na sequência da extinção das ordens religiosas, a paróquia foi transferida para o

extinto convento dos franciscanos, dedicado a Nossa Senhora da Conceição, em 1834, onde hoje se

encontra. Acerca da paróquia de S. José consultar: Susana G. Costa, “A Paróquia de S. José de Ponta

Delgada – da sua criação a meados do século XVIII”, Arquipélago – História, 2ª série, VII, 2003, pp. 61-

78. Ver ainda Duarte Melo (coord.), Igreja Paroquial de São José, Igreja Nossa Senhora da Conceição –

Património Móvel e Integrado, Paróquia de São José, 2013, pp. 14 e 15.

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(em 1736), lê-se que a igreja dispunha de um organista mas o órgão era emprestado e,

por esse motivo, o vigário deveria solicitar um novo instrumento ao rei,121 o que deverá

ter acontecido somente em 1748, quando a Fazenda Real regista a despesa de 600$000

reis num órgão para a referida igreja.122

Tabela 2.1 - Cronograma das notícias sobre órgãos/organistas no séc. XVI

Em 1626, o livro de Tombo da Câmara da Vila da Praia, na ilha Terceira, regista

o incumprimento da provisão anteriormente atribuída por sua Majestade para os

“ornamentos e sinos et orgãons” da Igreja Matriz, sendo então reposta através da

atribuição de quinhentos mil reais para o instrumento.123

Através de um registo contabilístico da Alfândega de Ponta Delgada atinente à

classe eclesiástica micaelense, efectuado em 1634, conhecem-se as igrejas que possuíam

órgão e capela de cantores (Tabela 2.2): Matriz de S. Sebastião e S. Pedro em Ponta

Delgada, N.ª S.ª dos Anjos em Lagoa, S. Miguel em Vila Franca do Campo, Matriz de

S. Jorge em Nordeste e Matriz de N.ª S.ª da Estrela na Ribeira Grande.124

121 Op. cit., fl. 162 v. 122 Cf. Arquivo dos Açores, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, vol. XII, 1983, p. 41: “Despezas

feitas pela Fazenda Real nas Egrejas das Freguezias da ilha de S. Miguel de 1631 a 1775. 123 Livro do Tombo da Câmara da Vila da Praia (1450-1666), Instituto Histórico da Ilha Terceira, Praia

da Vitória, 2005, p. 307 (fl.193). 124 Cf. Arquivo dos Açores, vol. XII, pp. 6-16.

Data Circunstância Igreja /Ilha

1540 Pagamento ao organista

(s/identificação)

Sé (TER)

1545 Pagamento ao organista

(Gonçalo Alvares)

Matriz da Praia (TER)

1555 Referência ao organista

(Francisco Dias)

Matriz da Ribeira Grande (SM)

1560 Referência ao organista

(Salvador Dias)

Misericórdia de Ponta Delgada (SM)

1575 Pagamento ao organista

(Manoel Cabral)

Misericórdia de Ponta Delgada (SM)

1577 Referencia ao órgão Matriz de Ponta Delgada (SM)

1584 Pagamento ao organista

(s/identificação)

S. Sebastião de Angra (TER)

1586 Compra de órgão Sé (TER)

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No contexto conventual, surge a compra de um órgão ao vigário da Ribeira

Grande na década de quarenta do século XVII,125 no valor de trinta e dois mil réis, por

parte das freiras clarissas do Convento de Santo André, em Ponta Delgada.126 Na

mesma década, e segundo o padre António Cordeiro na sua Historia Insulana das Ilhas

a Portugal sugeytas no Oceano Occidental,127 a Igreja de Todos os Santos, em Ponta

Delgada (mais conhecida por Igreja do Colégio), adquiriu uns “órgãos” ao Convento da

Esperança.

Assume particular relevância a alusão simultânea a uma “realejo normal” e a um

“órgão velho” no livro de Tombo da Igreja Matriz das Velas (S. Jorge), em 1676:

Mandamos ao p.e vigr.º que a custa do dinheiro que sua Alteza mandou dar do

que estaria p.ª as fortificações mande vir hum realejo normal cõn receita de

quem bem o entenda, p.ª o coro da cappella mor, e a custa da fabrica mande

concertar o órgão velho p.ª o coro de cima.128

Por aqui se confirma que o realejo seria um órgão de reduzidas dimensões

posicionado junto à capela-mor, assim designado por comparação a um instrumento de

maiores dimensões colocado no coro alto. A adjectivação do órgão como “velho”

sugere a sua presença naquela igreja muito antes de 1676 e, por essa razão, se impunha

125 À época, existiam na Ribeira Grande dois conventos: o de Jesus (freiras da 2.ª ordem de S. Francisco)

e o de Nossa Senhora da Guadalupe (frades da 1.ª ordem de S. Francisco). 126 P-PD, Tombo Velho de St.º André de Ponta Delgada (1581 a 1654), lv. 134, fl. 169. Não é possível

identificar a data relativa à despesa citada devido ao mau estado em que se encontram os folios anteriores.

A década de quarenta é apontada com base nas datas indicadas nos folios seguintes. 127 2.ª edição (facsimilada), Angra do Heroísmo, Presidência do Governo/Direcção Regional da Cultura,

2007, pp. 234 e 235. No “Extrato do Inventário do ano de 1785 feito ao Colégio de Todos os Santos”,

publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em Documentos para a História da Arte em Portugal, vol.

13, Lisboa, 1975, não consta qualquer órgão entre os bens móveis da igreja, o que poderá significar que o

órgão foi vendido ou removido para outro espaço de que não há conhecimento, aquando da expulsão da

ordem em 1759. 128 AIMVSJ, Livro de Tombo Matriz das Velas – 1676, fl. 40v. Agradeço reconhecidamente a

disponibilidade e gentileza do Senhor Padre António Azevedo (pároco da referida igreja) pela

digitalização da informação apresentada. No que respeita à manutenção das igrejas nos Açores, esta era

tradicionalmente partilhada pela Ordem de Cristo e pelo povo. A primeira era responsável pela “fábrica

grossa” ou “maior” (suportada pela Coroa) e garantia o sustento dos benefícios eclesiásticos e parte dos

edifícios, como sinos, sacristia, altar-mor e respectivos ornamentos. Ao povo cabia a “fábrica menor”,

encarregue do corpo da igreja, torre dos sinos, pia baptismal, cruzeiro, confessionários e alguns elementos

exteriores como o lajeamento do edifício e o muro do adro. Cf. Susana G. Costa, “Igreja, Religiosidade e

comportamentos”, in História dos Açores, p. 407. Considerando o órgão como um ornamento da igreja,

sendo recorrente encontrá-lo na secção intitulada por alfaias/utensílios/objectos nos inventários das

igrejas, este é um dos exemplos que corrobora a participação da fábrica maior quer na aquisição do

instrumento, quer no pagamento do organista, no contexto das igrejas paroquiais.

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a necessidade de um outro instrumento mais pequeno que assegurasse condignamente a

componente musical do serviço litúrgico.

Naquela mesma fonte, através da recomendação ao organista pelo então bispo D.

Frei Lourenço de Castro, infere-se a presença do órgão nas horas do Ofício cantadas,

nomeadamente Matinas, Laudes, Vésperas e Completas, descrição que até então não

tinha sido encontrada:

Encomendamos m.to ao organista assista có pontualidade em suas obrigações, e

tenha cuidado de alimpar o órgão e havendo mister concertos, avizará ao p.e

vigr.º p.ª que a custa da fabrica grossa os mãde fazer, e faltando o ditto organista

em ir tanger nas matinas, laudes, vesperas e completas que forem cantadas, será

multado por cada hora destas em hum vintem p.ª a fabrica menor e estando

empedido poderá mandar outrem em seu nome p.ª que não haja faltas e no mais

se observara o ditto.129

De acordo com Gerhard Doderer, a alusão à limpeza e afinação dos órgãos

enquanto deveres do organista estipulados nos documentados normativos de cada igreja

é uma prática recorrente ao longo do século XVII.130 Este procedimento surge

igualmente na Igreja Matriz de Vila Franca do Campo, em S. Miguel, no ano de

1674,131 e viria a repetir-se num discurso ainda mais pormenorizado, não só ao nível dos

cuidados como da própria função do órgão, na Igreja de S. José em Ponta Delgada, em

1728 (um ano após ter sido instituída colegiada):

O organista que S. Mag.e que Deos g.de brevemente hade prover nesta Igr.ª com

o zello e piedade que costuma, terá cuid.o de assestir em todas as vesperas e

missas cantadas e mais cantorias, em que se houver de tanger orgão, e faltando

a sua obrigação será apontado por cadauez em quarenta rs. que o P.e Apontador

repartirá pelos menistros do Coro, pois elles devem suprir a falta do organista,

cantando os versos, que o orgão havia suprir.

Tambem lhe ordeno trate o orgão com muito resguardo trazendo o sempre

fechado pello damno que cauza o ficar aberto, vigiando sempre qualquer falta

que possa haver no orgão, para o que fará avizo ao P.e Vigr.º que o mande

concertar, e não consinta que alguã pessoa se encoste, ou se sente sobre os

foles; e tendo algum impedimento que o excuse mandará em seo nome outra

129 AIMVSJ, Livro de Tombo Matriz das Velas – 1676, fls. 35 v. e 36. 130 Cf. Inventário dos Órgão dos Açores, p. 10. 131 Urbano Mendonça Dias, A vida dos nossos avós, vol. V, tipografia ‹‹A Crença››, Vila Franca do

Campo, 1944, pp. 57 a 94.

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pessoa que assista e toque o orgão para que não haja falta no serv.º de Deos e da

Igreja.132

Ao longo da segunda metade de seiscentos surgem outros registos que indiciam

a presença do órgão, nomeadamente na Igreja da Misericórdia em Ponta Delgada, onde

se descrevem as despesas relativas ao conserto dos órgãos,133 e também na Sé de Angra,

através da referência ao organista João Baptista Carmelo, no ano de 1688.134

O único registo fotográfico de órgãos anteriores ao século XVIII diz respeito à

caixa de um órgão de armário com chinoiseries encontrada na Igreja de S. Pedro, em

Angra, e identificada como sendo do século XVII (Fig. 2.1).135

Fig. 2.1

Caixa de órgão com chinoiseries

(séc. XVII)

A Tabela 2.2 resume as notícias sobre a presença do órgão e/ou de organistas

nos Açores no século XVII. Comparando-a com a Tabela 2.1 (relativa ao século XVI),

verifica-se uma actividade em torno do órgão cada vez mais intensa e alargada

geograficamente.

132 Idem, fl. 150 v. 133 ASCMPD, Livro da Capela da Misericordia (1664-1669), fls. 75 v. e 79 v. (n.º 49 do inventário). Ver

também o livro com o n.º 48 de inventário, fls. 69 v., 71 e 78, cujo título é imperceptível devido ao estado

deteriorado. 134 Cf. D. Machado e G. Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 9. 135 Cf. Francisco Ernesto de Oliveira Martins, Mobiliário Açoriano – elementos para o seu estudo,

Secretaria Regional da Educação e Cultura, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1981, pp. 147 e

181. De acordo com as informações gentilmente cedidas pela Dr.ª Paula Romão, a caixa esteve

depositada na ermida da Praça Velha, em Angra, onde foram armazenadas algumas peças recolhidas de

igrejas que ficaram destruídas com o sismo de 1980, sendo actualmente desconhecido o seu paradeiro.

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Data Circunstância Igreja /Ilha

1625 Solicitação de um órgão S. José (SM)

1626 Atribuição de 500 mil reis

para um órgão

Matriz da Praia (TER)

1634 Pagamento ao organista Matriz de Ponta Delgada (SM)

Pagamento ao organista S. Pedro de Ponta Delgada (SM)

Pagamento ao organista N. Sr.ª dos Anjos (SM)

Pagamento ao organista S. Miguel em Vila Franca do Campo (SM)

Pagamento ao organista Matriz de S. Jorge, Nordeste (SM)

Pagamento ao organista Matriz da Ribeira Grande (SM)

Década

de 1640

Compra de um órgão Convento de S. André (SM)

Compra de “uns órgãos” Igreja de Todos os Santos (SM)

1667 Conserto dos órgãos Igreja da Misericórdia (SM)

1676 Referência a um órgão

velho e ao organista

Matriz das Velas (S. Jorge)

1674 Deveres do organista Matriz de Vila Franca do Campo (SM)

1688 Referência ao organista

(João Baptista Carmelo)

Sé (TER)

1695 Conserto dos órgãos Igreja da Misericórdia (SM)

Tabela 2.2 – Cronograma da presença de órgãos/organistas no séc. XVII

A maioria das fontes locais dos séculos XVI e XVII136 reporta-se ao órgão,

como instrumento, no plural. De facto, é frequente encontrar esse tipo de alusão no

período entre a Alta Idade Média e o século XVII, independentemente do número

efectivo de instrumentos.137 No caso dos Açores, nem sempre é possível confirmar se se

trata de um discurso padrão ou de uma evidência quantitativa. Por exemplo, o contrato

para a Sé de Angra atrás mencionado, embora faça referência a ‘órgãos’, descreve duas

situações que apontam para um único instrumento: a primeira quando se estabelece que

o órgão não poderá estar noutro lugar senão na capela de Nossa Senhora e a segunda

quando se estipula duas chaves para a mesma fechadura. O facto de nas folhas de

pagamento da Alfândega de Ponta Delgada, em 1634, constar a indicação de “tangedor

de órgãos”, exclusivamente na Igreja Matriz de Ponta Delgada,138 coloca em hipótese a

existência de dois instrumentos nessa igreja, o que parece plausível dada a sua

136 Refira-se, a título de exemplo, G. Fructuoso, op.cit., livro IV, p. 380; Charles de Witte, op.cit., pp. 155

e 169 (1556); ASCMPD: Livro da despesa da Capela da Misericórdia [título do frontispício encontra-se

pouco legível devido ao seu estado de deterioração,], fl. 69v: despesa com o conserto dos órgãos em

1695; e ainda Arquivo dos Açores, vol. XII, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1983, pp. 6-16:

Pagamento da Alfândega de Ponta Delgada ao “tamgedor dos orgãos” da Igreja Matriz de Ponta Delgada

em 1634. 137 Numa das transcrições apresentadas por Santiago Kastner sobre Manuel Rodrigues Coelho surge a

referência a “Tocador de Orgãos”. Cf. Três compositores Lusitanos para Tecla – Séculos XVI e XVII,

Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 55. 138 Cf. Arquivo dos Açores, vol. XII, p. 6.

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representatividade na malha eclesiástica regional. Tal já não sucede, por exemplo, na

mesma rubrica de Alfândega datada de 1730. Contudo, encontram-se, por vezes,

referências a órgãos “grande” e “pequeno” ou “novo” e “velho” que evidenciam a

presença de dois instrumentos.139

Em termos morfológicos, as características gerais dos órgãos em Portugal no

século XVII traduzem, grosso modo, o natural desenvolvimento face aos órgãos de

quinhentos. São, portanto, de maiores dimensões, embora ainda modestas, com um

número de registos que oscila entre os seis e os dez da família dos Flautados,

permanecendo com a mesma extensão num único teclado (com oitava curta) e sem

pedaleira.140 No entanto, uma das inovações da organaria ibérica seiscentista, além das

palhetas dispostas horizontalmente na fachada, é o sistema de teclado partido, solução

habilmente encontrada pelos organeiros espanhóis no último terço do século XVI face à

limitação tímbrica de um único teclado,141 que consistia na divisão do teclado entre o

Dó e o Dó# centrais (c’ e c#’), com a separação do someiro em duas partes e a

existência de meios registos. Com este recurso, presente nos órgãos portugueses

seiscentistas, o organista dispunha de registações independentes em cada mão: a

sonoridade das teclas inferiores ao Dó central (c’) era controlada pelos registos

colocados na consola do lado esquerdo do organista, e a das teclas superiores ao Dó#

central (c#’) pelos registos colocados do lado direito. Deste modo, era possível salientar

uma ou mais vozes da textura polifónica.142

139 É o caso da Igreja Matriz da Ribeira Grande e da Igreja de S. José, ambas em Ponta Delgada. Cf.

Arquivo Municipal da Ribeira Grande (AMRG), Livro dos inventários da paróquia de Nossa Senhora da

Estrela (1839-1866), fl. 91. Quanto à Igreja de S. José ver AIPSJ: Inventário dos vasos sagrados,

Paramentos e mais objectos existentes na Igreja dos extintos egressos franciscanos, desta dita Cidade,

hoje pertencendo à referida Paroquial São José da mesma, feito no dia 5 de Outubro de 1837, fl.16.

Também na Sé de Évora, em 1589, havia "hum orgaõ muito grãde e muito bom e outros o menos e hum

Realejo". Cf. João Pedro d’Alvarenga, “On performing practices in mid-to late 16th-century. Portuguese

church music: The Capella of Evora Cathedral”, p. 12. 140 Cf. G. Doderer, “A arte organística no passado e no presente”, p. 5. 141 Cf. Jesús Ángel da la Lama, “Principales características de los órganos renascentistas e barrocos

españoles”, p. 15. O compositor aragonês Sebastian Aguilera de Heredia (1561-1627) foi o primeiro

compositor a escrever para teclado partido (a obra Registo Baixo de 1º tom é um óptimo exemplo). Cf.

M.ª Bernadette Dufourcet Bocinos, “El órgano barroco francés y español: un elemento teatral en el

escenario litúrgico”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, XXII, 2006, p. 113. 142 Manuel Rodrigues Coelho (1555-1635), todavia, não faz uso desse recurso em nenhuma das peças que

constituem a emblemática colecção Flores de Música, impressas em Lisboa em 1620, por oposição ao seu

contemporâneo espanhol Francisco Correa de Arauxo (1584-1654), em cuja compilação Faculdad

organica, publicada em Alcalá em 1626, explora o sistema de meios registos. Por sua vez, este sistema

proporcionou o florescimento de um género idiomático muito em voga no século XVII, o tento de meio

registo, bem representado em Pedro de Araújo (cf. Sérgio Silva, “Os tentos de meio-registo e as batalhas

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No século XVIII, os Açores prosseguem com a actividade organística dos

séculos anteriores. De 1730 data mais um registo de pagamentos efectuados pela

Alfândega de Ponta Delgada às igrejas micaelenses, onde se atesta a continuidade do

cargo de organista nas igrejas descritas em 1634, com ligeiras alterações nos honorários

atribuídos pelas igrejas matrizes de Nordeste e de Ribeira Grande (Tabela 2.3).

Matriz (PD) S. Pedro

(PD)

N.ª S.ª

Anjos

(Lagoa)

S. Miguel

(VFC)

Matriz S.

Jorge

(Nordeste)

N.ª S.ª

Estrela

(RG)

16

34

Organista 12$000 ou 2

moios + 25

alq. e 4$000

8$000 ou 1

moio + 37

alq. e 2$666

1 moio e

2$000

10$000 ou 2

moios + 1

alq. e 3$330

4$000 ou 1

moio + $700

10$000 ou 2

moios + 25

alq. e 4$000

Mestre de

capela

5 moios + 2

alq. e 6$600

-------------- ------------- 10$000 ou 2

moios + 1

alq. e 3$330

1 moio e

2$000

2 moios

17

30 Organista 2 moios + 25

alq. e 4$000

1 moio + 37

alq. e 2$666

1 moio e

2$000

2 moios + 1

alq. e 3$330

1 moio +

3$000

2 moios + 25

alq. e 4$000

Mestre de

capela

5 moios + 2

alq. e 6$600

-------------- ------------- 2 moios + 1

alq. e 3$330

18 alq. +

1$333

3 moios +

4$000

Tabela 2.3 – Registo de pagamento dos organistas e mestres de capelas

das igrejas colegiadas micaelenses em 1634 e 1730143

Os honorários eram efectuados em dinheiro (réis) e trigo (moio e alqueire).144

Importa sublinhar que a Igreja de S. José ascendeu a colegiada em 1727 e que o facto de

não constar os cargos de organista e mestre de capela nas despesas da Alfândega deve-

se possivelmente a um problema processual. Em termos geográficos, as igrejas descritas

estavam localizadas nas zonas economicamente mais prósperas da ilha e

demograficamente mais densas.

Através das despesas efectuadas pela Fazenda Real nas igrejas de S. Miguel

entre 1631 e 1775, sabe-se que a Igreja Matriz de Ponta Delgada adquiriu um órgão em

de Pedro de Araújo: questões de autoria e edição crítica”, Dissertação de Mestrado, Universidade de

Évora, 2010, pp. 5 e 6.). Por esse motivo, a presença de meios registos nos órgãos do lado ocidental da

Península tem sido assumida somente na segunda metade do século XVII e exclusivamente nos registos

compostos (Cf. Gerhard Doderer, “A arte organística em Portugal”, p. 5.) 143 Cf. Arquivo dos Açores, vol. XII, pp. 6 a 16 e 17 a 28 respectivamente. 144 O moio e o alqueire eram medidas agrárias utilizadas naquelas épocas, em que o moio equivalia a

sessenta alqueires, e o alqueire correspondia, grosso modo, a 1000 m2, consoante o tipo de vara, grande

ou pequena. O organista e o mestre de capela recebiam, portanto, o trigo produzido correspondente às

medidas que lhes eram devidas.

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1735, no valor de 430$000, acrescido de 109$000 para a pintura e douradura.145

Atendendo aos dados apresentados sobre essa igreja, e considerando o instrumento que

ainda subsiste, supõe-se que tenham sido adquiridos quatro órgãos, pelo menos, entre o

século XVI e o século XIX: o primeiro identificado por Gaspar Fructuoso, o segundo

mencionado nas despesas da Alfândega de 1634 e 1730, o terceiro e o quarto adquiridos

respectivamente em 1735 e em 1828. Outro exemplo ocorre na Igreja Matriz da Ribeira

Grande, sobre a qual há referência a um organista no século XVI, registando-se o

pagamento do frete de um órgão em 1758,146 no valor de 35$000 reis. Esse novo

instrumento viria a ser discriminado no inventário da igreja no ano de 1856 como

“velho”, com a indicação de que fora vendido.147 Note-se que em 1855 aquela igreja

adquiriu o instrumento que ainda hoje conserva.

Em 1732, a Igreja Matriz das Velas (S. Jorge) voltou a reinvindicar a aquisição

de um órgão. Deduz-se que o “órgão velho” mencionado no texto abaixo corresponda

ao mesmo da descrição de 1676:

He notoria a falta que ha de hum órgão para o choro desta igreja, porque o que

nella se acha além de ser muyto antigo, está quase de todo défectuozo das

vezes, e em forma que cauza notavel dissonância; e porque he percizo este

instromento para que com a devida decência se celebrem, não só as festividades

principais, mas ainda para as funçõens quaze quotidianas do mesmo Coro, que

por isso tem organista com ordenado que para este effeyto lhe tem consignado

Sua Mag.de que Deos g.de: pelo que ordeno ao Reverendo Vigario requeyra ao

ditto Senhor mande dar para esta Igreja hum orgão de oito registos, como os ha

nas principais Igrejas deste Byspado, e o deve haver nesta Matriz.148

A especificação de um órgão com oito registos é de suma relevância num

cenário completamente isento de indicações morfológicas e de vestígios de outros

instrumentos, ainda mais quando parece reger-se por um padrão comum às igrejas mais

importantes da diocese. Considerando o órgão de autor desconhecido e de estética

italiana que existe na vizinha ilha do Pico, construído no final do século XVII ou no

145 Cf. Arquivo dos Açores, vol. XII, “Despezas feitas pela Fazenda Real nas Egrejas das Freguezias da

ilha de S. Miguel de 1631 a 1775”, p. 39. 146 Idem. 147 AMRG, Livro dos inventários da Paroquia de Nossa Senhora da Estrela (1839-1866), fl. 91. 148 AIMVSJ, Livro Tombo n.º 2 Matriz das Velas – 1732, fl. 69.

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início do século XVIII,149 o qual dispõe precisamente de oito registos, é viável

equacionar a presença de instrumentos similares nas igrejas mais representativas.

Sublinhe-se que em 1730 foram mandados vir instrumentos italianos para a sagração da

Basílica do Convento de Mafra.150 Este convento, tal como o do Cais do Pico, que se

supõe ter sido o adquirente do referido órgão italiano,151 eram ambos de frades

seráficos. Reconhecendo a preponderância dessa ordem no contexto açoriano e

admitindo a circulação dos seus membros entre os Açores e o continente, onde a

vivência musical passou a ter um forte cunho italiano desde a subida ao trono de D.

João V, em 1707, a existência desse instrumento em solo açoriano traduz a proximidade

entre as ilhas e o continente no que a órgãos respeita.

Segundo João José Tavares, o cargo de organista da Igreja Matriz de Santa Cruz,

na Lagoa (ilha de S. Miguel) foi instituído em 1735 por alvará régio de 6 de Julho do

mesmo ano, com o pagamento anual de um moio de trigo e 2000 reis em dinheiro.152

Ainda na primeira metade do século XVIII, em 1748, Manuel Valença refere

que o Convento da Esperança, em Ponta Delgada, adquiriu um órgão em Lisboa no

valor de 600$00 reis.153 Neste convento, há alguns registos da manutenção que

provavelmente dizem respeito àquele instrumento, entre os anos de 1755 e 1772:154

“Concerto do Orgãm 1$600 reis”;155 “Ao francês Jacob Maria de concertos e afinar o

Orgãm 20$000” (em 1759);156 “a quem consertou o Orgam e prepares” (em 1760);157

“da pintura do pé do Orgam e reformação do dito 8$120” (1763);158 “concerto de Orgam

149 Existe alguma controvérsia acerca da datação desse instrumento, pois os únicos trabalhos que o

referenciam não são unânimes: Dinarte Machado e Gerhard Doderer apontam-na para finais do século

XVII (Cf. op. cit., p. 131), enquanto José Nelson Cordeniz indica o ano de 1720 sem, no entanto,

mencionar a fonte (Cf. op. cit., p. 9). No exterior do instrumento não se encontra identificação de autor ou

data. 150 Cf. G. Doderer, “Subsídios novos para a História dos órgãos da Basílica de Mafra”, Revista

Portuguesa de Musicologia, n.º 12, 2002, p. 92 e também João Vaz "The Six Organs in the Basilica of

Mafra: History, Restoration and Repertoire", The Organ Yearbook, n.º 44, 2015, p. 83. 151 Cf. D. Machado e G. Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 131. 152 Cf. op.cit., p. 266-267. O Alvará mencionado pelo autor não foi encontrado na Chancelaria de D. João

V guardada na Torre do Tombo, podendo, todavia, fazer parte de um outro fundo. 153 A arte organística em Portugal – depois de 1750, vol. II, Braga, Editorial Franciscana, 1995, p. 272. 154 Esta informação foi localizada e gentilmente cedida pelo Pe. Hélio Soares. 155 P-PD, Monásticos (MON), Convento da Esperança de Ponta Delgada (CONEPD), Livro das contas

gerais (1755-1772), fl. 2 v. 156 P-PD, MON/CONEPDL, Livro das contas gerais (1755-1772), fl. 32 v. 157 P-PD, MON/CONEPDL, Livro das contas gerais (1755-1772), fl. 41v. 158 P-PD, MON/CONEPDL, Livro das contas gerais (1755-1772), fl. 59.

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6$000” (1765).159

Na ilha de Santa Maria encontram-se indícios da presença de organista na Igreja

Matriz de N.ª Sr.ª da Assunção em Vila do Porto, a mais importante no contexto

religioso local, através do registo dos seus honorários nos livros da fábrica da igreja

desde 1753 até 1846, onde estão igualmente descritos procedimentos de manutenção

como afinação e arranjo do fole e, curiosamente, as despesas com o foleiro.160

No espaço de tempo entre 1775 e 1785 sobrevêm duas referências a órgãos. A

primeira diz respeito ao órgão que sobrevive na Igreja de Nossa Senhora da Guadalupe,

na ilha Graciosa, construído por Leandro José da Cunha, em 1775.161 Trata-se do mais

antigo do conjunto açoriano com autoria identificada, sendo por isso mais um

testemunho vivo da actividade organística imediatamente anterior aos instrumentos de

Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira.

A segunda referência corresponde ao contrato para a construção de um órgão,

datado de 1781, para o Convento da Esperança em Ponta Delgada, efectuado pelo

síndico do convento e por João Pedro Ayres (ca. 1706-1786), identificado como

organeiro residente em Ponta Delgada mas de naturalidade alemã.162 Nele estão fixadas

159 P-PD, MON/CONEPDL, Livro das contas gerais (1755-1772), fl. 73 v. 160 P-PD, Arquivo José António B. Velho Arruda, Livro da fábrica menor da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da

Assunção. 161 A igreja terá sido concluída dezanove anos antes da data de construção do órgão. Trata-se de um

instrumento de armário com meios registos e registos inteiros, um registo solista na mão direita

(Cornetilha), teclado com quarenta e sete teclas (C-d’’’) e oitava grave curta. No interior da caixa

encontra-se uma etiqueta com letra pouco legível mas onde é perceptível o nome de “Leandro Josephus à

Cunha” e a data de 1775. Segundo Dinarte Machado, responsável pelo seu restauro em 2010, o fole

permanece no seu estado original, denunciando algumas marcas da família Cunha. Na ilha da Madeira

encontram-se dois exemplares desta família, um de João da Cunha, na Igreja de Nossa Senhora da Luz, na

Ponta do Sol, de 1761, e outro de Leandro José da Cunha, na Igreja do Recolhimento do Bom Jesus, no

Funchal, datado de 1781. Cf. D. Machado e G. Doderer, Órgãos das Igrejas da Madeira, Direcção dos

serviços do Património Cultural – DRAC, 2009, pp. 42-47 e 126-131. Sobre a biografia e atividade da

família de organeiros com o apelido Cunha consultar Ana Paula Tudela: Os mestres organeiros Cunhas e

o órgão que a abadessa D. Córdola Francisca mandou fazer em 1741 para o coro de cima do mosteiro de

São Bento de Cástris In: Do Espírito do Lugar - Música, Estética, Silêncio, Espaço, Luz: I e II

Residências Cistercienses de São Bento de Cástris (2013, 2014) [en ligne]. Évora: Publicações do

Cidehus, 2016 (généré le 10 juin 2017). Disponible sur Internet:

<http://books.openedition.org/cidehus/2184>. DOI : 10.4000/books.cidehus.2184. 162 P-PD, MON/CONEPD, mç. 2 (1543-1839), doc. 136. Segundo Francisco d’Athayde Machado de

Faria e Maia, o síndico do Convento da Esperança - doutor António Francisco de Carvalho - era um dos

homens mais ricos e influentes no meio comercial de Ponta Delgada da época. Cf. Capitães-Generais

1766-1831, 2.ª edição, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1988, pp. 40 a 45. A certidão de óbito de João

Pedro Ayres refere que morreu com oitenta anos “pouco mais ou menos”. Cf.

http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/SMG-PD-SAOSEBASTIAO-O-1786-1793/SMG-PD-

SAOSEBASTIAO-O-1786-1793_item1/P43.html.

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directivas relacionadas com a estrutura, pormenores de acabamentos e pagamento, mas

sem menção à constituição do instrumento, excepto a indicação de que deveria seguir o

modelo do órgão da vizinha Igreja de S. José:

(...) hum Orgão comforme a sua pocebillidade mas com todas as medidas

perfeyção Factura tamanho Registos como o orgam de sam Joze de sorte que

tendo algum defey/to elle dito João Pedro Se obriga a tirallo com aquella Sua

posebellidade the onde chegar a sua Siencia como mestre de semilhante arte e

sera elle obrigado a dallo acabado das Suas mãos no que pertence ao seu oFicio

no mais breue tempo que o poder comcluir Sem ademitir outra alguma obra de

permeyo Feyto na altura perfeyção assim no extrior como no interior do mesmo

modo que o do ReFerido de Sam Joze (...)163

A ausência de indícios sobre a autoria e morfologia do então órgão de S. José

impede, naturalmente, a respectiva análise comparativa. Para os pormenores de

acabamento, João Pedro Ayres dispôs de dezoito tábuas de castanho para as laterais,

fundo, tecto e fole. Foram-lhe igualmente cedidos pelo síndico do convento dois

“taboanes largos do Brazil amarelos e coatro taboans grosos de maognia”, que serviriam

para a fachada e as ilhargas. No interior, o someiro e o fole seriam feitos de madeira de

castanho. À semelhança do órgão de S. José, este também deveria ter duas portadas

laterais com a respectiva fechadura.

O custo do órgão, no valor de setecentos mil réis, correspondia aos encargos

para a admissão da filha de João Pedro Ayres no convento da Esperança, que implicava

“gasto de profição e prepinas de entrada”, os dotes que as candidatas ao cenóbio deviam

oferecer.

Outro pormenor importante do contrato é a alusão ao facto de não haver pessoa

habilitada em S. Miguel (e quiçá nos Açores) na área da construção de órgãos,

depreendendo-se que os restantes órgãos seriam importados. Na ausência de outras

informações sobre a actividade de João Pedro Ayres, resta, em primeiro lugar, a dúvida

sobre a concretização do contrato e, em segundo, onde e com quem terá aprendido o

ofício, ou se seria apenas um curioso.

163 Fl.1.

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Tal como nos séculos anteriores, o registo de actividades em torno do órgão

permanece intenso ao longo do século XVIII (tabela 2.4), ficando efectivamente mais

enriquecido e documentado através dos exemplares de António Xavier Machado e

Cerveira e Joaquim António Peres Fontanes a partir da década de oitenta, e que

permanecem até ao presente.

Tabela 2.4 – Cronograma da presença de órgãos/organistas no séc. XVII

Data Circunstância Igreja /Ilha

1730 Pagamento organista Matriz de Ponta Delgada (SM)

S. Pedro de Ponta Delgada (SM)

N.ª Sr.ª dos Anjos (SM)

S. Miguel de Vila Franca do Campo (SM)

Matriz de S. Jorge,Nordeste (SM)

Matriz da Ribeira Grande (SM)

1732 Referência a órgão Matriz das Velas (S. Jorge)

1735 Aquisição de um órgão Matriz de Ponta Delgada (SM)

1735 Cargo de organista Matriz de Santa Cruz, Lagoa (SM)

1748 Aquisição de um órgão Convento da Esperança (SM)

1753 (a

partir de)

Referências a órgão Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Assunção (Santa

Maria)

1755 a

1772

Manutenção de um órgão Convento da Esperança (SM)

1758 Pagamento do frete de um

órgão

Matriz da Ribeira Grande (SM)

1775 Data de construção de um

órgão

Igreja de N.ª Sr.ª da Guadalupe (Graciosa)

1781 Contrato para construção

de um órgão

Convento da Esperança

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II.2 Importação de instrumentos da organaria portuguesa tardo-

setecentista (ca.1788-1831): Joaquim António Peres Fontanes e António

Xavier Machado e Cerveira

A destruição causada pelo terramoto de 1755 obrigou à reconstrução da cidade

de Lisboa e arredores, nomeadamente das igrejas e, por inerência, dos órgãos.164

Joaquim António Peres Fontanes (1750-1818) e António Xavier Machado e Cerveira

(1756-1828), que estabeleceram as suas oficinas em Lisboa,165 foram os principais

responsáveis pela construção dos novos instrumentos a partir da década de oitenta.166

Da oficina de Machado e Cerveira contabilizam-se cento e cinco órgãos, total apurado

através da numeração os instrumentos na respectiva caixa. Da parte de Peres Fontanes, a

inexistência de um inventário nacional associada à falta de numeração dos instrumentos,

dificulta o processo de contagem. Os instrumentos de ambos proliferaram por todo o

país, com menor incidência no norte, mas abrangendo os Açores e ainda o Brasil,167

sendo o exemplo mais emblemático o conjunto dos seis órgãos da Basílica do Palácio

Nacional de Mafra (1792-1807).168

164 Ernesto Vieira, op.cit., vol. II, p. 53. Também Ana Paula Tudela aborda esta temática em Geneologia

socioprofissional de uma familia de escultores e organeiros dos secs. XVIII e XIX: os Machados - contributo

para o estudo das Artes e Oficios em Portugal, s/data, p. 23

URL: http://bibliopac.ual.pt/Opac/Pages/Document/DocumentCitation.aspx?UID=1b41f408-5a01-4e05-

a651-ff618cff72fd&DataBase=10014_BIBLIO 165 Cf. Ana Paula Tudela, op. cit, pp. 25 e 30 e da mesma autora Os Organeiros da Oficina Fontanes em

Portugal - Séculos XVIII e XIX, Novembro/2014, pp. 4 e 5,

https://www.academia.edu/9460272/Os_Organeiros_Fontanes_em_Portugal. 166 G. Doderer, “Órgão. Portugal”, in Alfred Reichling (ed.), MGGprisma, Barënreiter-Verlag, 2001, pp. 129

e 130. 167 O arquipélago da Madeira não foi contemplado devido à enorme comunidade inglesa aí residente, que

influenciou sobremaneira a construção de órgãos ingleses. Cf. D. Machado e G. Doderer, Órgãos das Igrejas

da Madeira. Quanto à existência de órgãos de Machado e Cerveira no Brasil, aventada por Ernesto Vieira na

entrada do seu dicionário dedicada a Machado e Cerveira (op. cit., vol. II, pp. 53 e 54), continua a carecer de

confirmação, muito embora Marco Brescia contribua com uma série de conexões que fundamentam a sua

existência. Cf. “Órgãos e organeiros da Real e Imperial Capela do Rio de Janeiro: de António José de Araújo

a Pierre Guigon”, Revista Ictus, vol. 12, n.º 1, 2011, pp. 62-99. 168 Os instrumentos ficaram concluídos nos anos de 1806 e 1807, sendo cada um deles identificado com o

nome da capela sobre a qual se erguia. Assim, Machado e Cerveira assinou os instrumentos do Evangelho

(1807), da Conceição (1807) e do Sacramento (1806), e Peres Fontanes assinou o da Epístola (1807), o de

Santa Bárbara (1807) e o de S. Pedro d’Alcântara (1807).

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As características técnicas e fónicas constituem-nos como os representantes do

típico órgão português,169 que se apartou definitivamente do órgão espanhol na

sequência da influência da música italiana no contexto sacro português, tendo aqueles

organeiros de ajustar progressivamente a morfologia dos órgãos às novas tendências

estilísticas.170 A concepção do “órgão português” é resultado, portanto, da conjugação

da antiga tradição organeira ibérica, da qual conserva algumas características como o

teclado partido entre o Dó e o Dó# centrais, a presença de meios registos e de palhetas

horizontais, com algumas influências italianas e novos elementos técnicos e fónicos.171

Assim, no órgão português de finais de setecentos e inícios de oitocentos

verifica-se o gradual crescimento do âmbito do teclado, não só através do abandono da

oitava grave curta (característica transversal a todos os instrumentos anteriores) em prol

da oitava grave completa, mas também do aumento da tessitura aguda, que

progressivamente se estende até ao Sol sobreagudo, culminando num teclado com 56

teclas na segunda metade do século XIX. Além disso, integra um mecanismo de

anulação de “cheios” que permite a alternância rápida entre dois planos sonoros

distintos, como forte e piano,172 num único teclado, através da existência de um someiro

principal e outro secundário, este último conhecido como “someiro dos cheios”.

Machado e Cerveira, ao contrário de Peres Fontanes, aplica esse sistema também aos

registos de palhetas e, quando existem, ainda aos registos de eco (exemplo do órgão da

Igreja Matriz de Ponta Delgada, n.º 102, 1828). Desta forma, o organista pode preparar

antecipadamente a registação e accionar um pedal durante a execução sem ter de afastar

as mãos do teclado. Aquele pedal, comummente designado por pisante, em forma de

estribo, taça ou régua,173 ora bloqueia ora abre o fornecimento de ar ao “someiro de

169 Cf. Gerhard Doderer, “Órgão. Portugal”, p. 130. 170 Ver João Vaz, “Dynamics and Orchestral Effects in Late Eighteenth-century Portuguese Organ Music:

The Works of José Marques e Silva (1782-1837) and the Organs of António Xavier Machado e Cerveira

(1756-1828)” in Interpreting Historical Keyboard Music, John Kitchen e Andrew Woolley (eds.), Ashgate,

2013, pp. 158 e 159. 171 Durante o período da actividade de Peres Fontanes e Machado e Cerveira, aproximadamente entre 1780 e

1828, encontram-se outros organeiros activos em Portugal, mas cuja acção se terá desenvolvido sobretudo

fora da capital lisboeta. Refira-se, por exemplo, Leandro José da Cunha (1743-p.1819), Frei Domingos de S.

José Varela (1762-1834), Manuel de Sá Couto (1768-1837) e, apenas no período inicial, Gaetano Pasquale

Oldovini (ca.1710/1720-1785) e Francisco António Solha (ca.1715-ca.1795). 172 Na Europa Central e do Norte, esse recurso dinâmico era conseguido através de um segundo teclado,

frequentemente com indicação na partitura. Cf. João Vaz, “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva..”,

pp. 152 e153. 173 Em virtude da inexistência de bibliografia sobre este tipo de terminologia, optou-se por adoptar a

designação sugerida por Dinarte Machado, aquando da prova de defesa desta tese.

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cheios”, modificando o nível dinâmico e o tipo de sonoridade.174 Todos os instrumentos

de Peres Fontanes e Machado e Cerveira integram o mecanismo de anulação de cheios,

independentemente da sua dimensão. Considere-se, por exemplo, o órgão mais pequeno

de Machado e Cerveira nos Açores, um instrumento de armário que se encontra na

Igreja Matriz das Lajes do Pico, construído em 1804, n.º 66, e que dispõe de oito meios

registos com pedal anulador de cheios (Fig. 2.2).175

Fig. 2.2 – Igreja Matriz da Santíssima Trindade Lajes do Pico

António Xavier Machado e Cerveira, nº 66, 1804

(Pormenor do pedal anulador de cheios. Fotografia cedida por Dinarte Machado)

A par dessa particularidade, o órgão português apresenta outra característica que

se tornou lugar-comum no plano fónico dos instrumentos, embora com origem ainda

incerta: o meio registo da mão direita Voz Humana (do italiano voce umana), cujo

efeito ondulante é obtido através da sua afinação com o Flautado de 12 aberto mas com

batimentos inferiores.176 A sua introdução em Portugal tem sido cautelosamente

associada a Pasquale Caetano Oldovini, organeiro genovês com acção no centro e sul de

174 Cf. J. Vaz, “Dynamics and Orchestral Effects…”, pp. 161 e 162. 175 Este facto já foi mencionado por João Vaz na sua Tese de Doutoramento “A obra para órgão de Fr.

José Marques e Silva (1782-1837)...”, vol. I, p. 155, embora indique nove meios registos quando, na

realidade, são oito meios registos. 176 Cf. J. Vaz, “Dynamics and Orchestral Effects...”, p. 159.

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Portugal entre 1742 e 1769, estabelecendo residência e oficina em Évora.177 Não

obstante a falta de documentação que comprove a relação causa e efeito, o facto é que

aquele registo consta do Mappa de registar o orgão178 – um documento de finais do

século XVIII (ver cap. VI) – e faz parte parte do plano fónico da generalidade dos

instrumentos de médias e grandes dimensões de Peres Fontanes e Machado e Cerveira

no continente.179 Nos Açores, tal como se verá no cap. IV, surge em treze dos vinte

instrumentos desses organeiros.

Gráfico 2.1 – Distribuição dos órgãos importados por ilha

Os vinte órgãos que actualmente existem nos Açores com datas de construção

entre 1788 e 1831, são da autoria de António Xavier Machado e Cerveira e Joaquim

António Peres Fontanes (Gráfico 2.1). Desses, apenas um está atribuído a António

Joaquim Fontanes (oficial desde 1799),180 encomendado pelo Convento da Glória na

cidade da Horta, em 1805 e actualmente na Igreja das Angústias da mesma cidade (que

177 João Paulo Janeiro refere tratar-se de uma característica comum aos órgãos de Oldovini existentes no

Alentejo. Cf. “Pascoal Caetano Oldovini – A actividade de um organeiro genovês no Sul de Portugal, no

século XVIII”, Organi Liguri, vol. I, Génova, 2004, pp. 6 e 7. Ver também João Pedro d’Alvarenga,

[Notas para] Dieterich Buxtehude (1637-1707) – Órgão da Sé Catedral de Faro, Rui Paiva, Academia de

Música de Santa Cecília, 2007, CD. 178 P-Ln, s.c. 179 Em Espanha, assim como em França e Alemanha, o registo designado Voz humana corresponde a um

registo de palheta, permanecendo como registo labial ondulante apenas em Itália, país de origem de G.

Oldovini. 180 Cf. Ana Paula Tudela, Os Organeiros da Oficina Fontanes em Portugal – Séculos XVIII e XIX, 2014,

p. 5: https://www.academia.edu/9460272/Os_Organeiros_Fontanes_em_Portugal. Com a assinatura de

António Joaquim Fontanes subsiste um instrumento na Igreja Paroquial de Oeiras, de 1829.

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será aqui contabilizado como sendo da oficina de Peres Fontanes).181

Com base nos dados apresentados no subcapítulo anterior, os seis instrumentos

de Peres Fontanes e os catorze de Machado e Cerveira que sobrevivem nas igrejas

açorianas terão sido encomendados para substituir instrumentos mais antigos, à

semelhança das principais igrejas do continente.182 Considera-se, assim, a época de

importação dos novos instrumentos como sendo a segunda fase da história do órgão nos

Açores. É de notar o elevado número de instrumentos de Machado e Cerveira na ilha

Terceira, possivelmente devido ao facto de ser a ilha onde se instalou a sede da diocese.

Atendendo às datas de construção e salvaguardando a presença de outros

instrumentos que não sobreviveram, verifica-se que os períodos com maior índice de

instrumentos correspondem ao final do século XVIII e aos anos vinte do século XIX,

sendo o final da primeira década e também a segunda década do século XIX as fases

que registam menos instrumentos. Este período menos prolífico deve-se, seguramente, à

instabilidade política, social e económica que o país viveu com as invasões francesas.

Sendo que Peres Fontanes morreu em 1818, os instrumentos da década de vinte dos

anos de oitocentos são exclusivamente da autoria de Machado e Cerveira.

O primeiro órgão português de que há notícia nos Açores é atribuído a Peres

Fontanes e ficou colocado na Sé Angra por motivos que ainda não foram apurados

documentalmente.183 As fontes não são consentâneas quanto ao processo, menos ainda à

sua data de construção e identificação do respectivo organeiro. Consta que a

embarcação que transportava o instrumento em direcção a outro destino184

(eventualmente Macau), teve de ancorar em Angra por motivos técnicos ou

181 Nesta época, Joaquim António Peres Fontanes estaria a trabalhar nos três órgãos da Basílica de Mafra

da sua autoria: São Pedro d’Alcântara, Santa Bárbara e Epístola. 182 É disso reflexo a apreciação do historiador terceirense Ferreira Drumond (também conhecido por ser

organista) em 1850, reportando-se aos órgãos anteriores a Peres Fontanes e Machado e Cerveira: “não

haviam órgãos de oitava larga, com registos de palhetaria, e outras admiraveis exhibições que hoje se

admiram (...)”. Cf. Annaes da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, Imprensa do Governo, vol. III, 1850, p.

131. 183 A indicação de Peres Fontanes é avançada (oralmente) pelo organeiro Dinarte Machado,

fundamentando-se no tipo de estrutura do instrumento e na tubaria que subsistiu. Aquela mesma

informação é também mencionada pelo musicólogo Manuel Valença em A arte organística em Portugal

depois de 1750,... p. 267. Por sua vez, a descrição do instrumento por parte de um autor estrangeiro que

visitou a ilha Terceira na década de 1950, atribui a autoria a Machado e Cerveira, alertando

inclusivamente para a necessidade de manutenção. Cf. “Organs of two islands”, Boletim do Instituto

Histórico da Ilha Terceira, n.º 27 e 28, 1969-70, pp. 493-500. 184 Cf. Valdemar Mota, op.cit., p. 38. Pedro de Merelim, op.cit., pp. 517 e 518.

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meteorológicos e, atendendo ao tempo que aí permaneceu, o então bispo de Angra

requereu à rainha D. Maria I a sua cedência para a Sé, a qual foi concedida em jeito de

oferta,185 razão pela qual a legenda original de uma das suas reproduções (Fig. 2.3)

identifica-o como o “órgão de D. Maria I”.

Fig. 2.3 Joaquim António Peres Fontanes (atr.) (1778?) Sé de Angra do Heroísmo – Terceira Legenda:186

Sendo que o bispo em causa era D. Frei João Marcelino, em funções na diocese

angrense entre 1774 e 1782, é provável tratar-se de um instrumento ainda da década de

setenta, talvez de 1778, se se tiver em conta que esta é a data gravada pelo organeiro

Luís Esteves Pereira em inúmeros tubos que compõem o órgão que construiu para a

Capela do Seminário de Angra, em 1986, reutilizando tubos de órgãos históricos onde

interviera.187 Contudo, na lista de instrumentos da família Fontanes publicada por Ana

185 Não obstante o facto de esta informação surgir em documentos historiográficos não foi encontrada

qualquer fonte primária relativa ao processo. 186 “Angra do Heroísmo – Retalhos de outras eras”, Os Açores – Revista ilustrada, Ponta Delgada, 1923,

ano I, n.º 8, p. 10. 187 Este organeiro estava encarregado de restaurar os órgãos da Sé de Angra após o sismo de 1980 que

danificou a cidade de Angra. Três anos depois deflagrou um incêndio na Sé que inviabilizou o projecto de

restauro dos dois órgãos lá colocados, e, na sequência disso, surgiu a proposta para a construção de um

novo órgão a cargo daquele organeiro, o que não veio a realizar-se por falecimento do mesmo, sendo

então o projecto atribuído ao organeiro Dinarte Machado. Cf. D. Machado e G. Doderer, Inventário dos

Órgãos dos Açores, p. 92.

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Paula Tudela188 não consta qualquer instrumento de 1778, o que faz com que a data de

construção do instrumento permaneça desconhecida. Aquele instrumento foi colocado

numa tribuna da nave central do lado da Epístola e foi destruído por um incêndio

ocorrido em 1983. Das escassas informações existentes, deduz-se que seria o maior do

conjunto açoriano, com 28 registos (muitos dos quais presumivelmente divididos),

palhetas interiores e horizontais, anuladores de cheios e de palhetas e uma pedaleira

com extensão de uma oitava (Fig. 2.3a),189 tal como viria a ter o órgão construído para o

Convento de S. Franciscano em Ponta Delgada, actual Igreja Paroquial de S. José.190

Note-se que a referida pedaleira é uma particularidade dos órgãos barrocos espanhóis,

de cuja zona da Galiza vêm os antepassados de Peres Fontanes.191

A proliferação de casas conventuais nos Açores de setecentos (quer masculinas

quer femininas) levou à aquisição de um representativo número de instrumentos. Dos

vinte instrumentos de factura portuguesa, pelo menos doze foram adquiridos por igrejas

188 Cf. Os Organeiros da Oficina Fontanes em Portugal – Séculos XVIII e XIX. 189 A única descrição pormenorizada do instrumento encontra-se em “Organs of two Islands”, pp. 493-

500. 190 O mesmo sistema de pedaleira encontra-se, por exemplo, no órgão do Evangelho da Sé de Braga,

construído por Frei Simon Fontanes, em 1738. 191 Sobre os antepassados da família Fontanes consultar Marco Brescia, “L’école Echevarría en Galice, et

son rayonnement au Portugal”, Tese de Doutoramento, vol. I, Paris, Sorbonne, 2013, pp. 203-205. 192 Valdemar Mota apresenta o único registo fotográfico com uma perspectiva da fachada do instrumento,

a qual denuncia a riqueza decorativa. Cf. op. cit., p. 37.

Fig. 2.3a192 Joaquim António Peres Fontanes (atr.) (1778?) Sé de Angra do Heroísmo – Terceira

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conventuais (Gráfico 2.2), dez dos quais da ordem franciscana (os órgãos que se

encontram nas Igrejas do Colégio de Angra e Matriz da Praia da Vitória terão sido

transferidos de conventos da ordem de Santo Agostinho).193 Atesta-se, assim, a

preponderância das ordens religiosas, principalmente a de S. Francisco, no contexto

organístico açoriano, sendo que o maior número de órgãos nos conventos das ilhas de S.

Miguel e Terceira é sintomático da maior concentração de conventos nessas ilhas, por

serem as mais populosas.

Gráfico 2.2 – Número de instrumentos adquiridos pelas igrejas paroquiais e conventuais

No âmbito dos conventos masculinos, contabilizam-se três instrumentos: dois de

Machado e Cerveira e um de Peres Fontanes. O primeiro grande instrumento foi

adquirido pela Igreja de Nossa Senhora da Guia do Convento de S. Francisco, em

Angra, assinado por Machado e Cerveira, em 1788. A aposta em instrumentos de

grande porte e visualmente imponentes prosseguiu com a encomenda de um órgão,

desta feita a Peres Fontanes, em 1797, para o Convento de S. Francisco, em Ponta

Delgada (actual Igreja de S. José).

O órgão da Igreja de S. José, além de ser o maior instrumento histórico

actualmente existente nos Açores, é também o mais relevante, graças às suas

características preservadas no criterioso restauro a que foi submetido em 1995, por

Dinarte Machado. Por ocasião da sua chegada, foi proferido um sermão de Acção de

193 Respectivamente, Convento da Graça, em Angra, e Convento de S. Tomás, na Praia da Vitória. Cf. D.

Machado e G. Doderer, op. cit., pp. 79 e 93.

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Graças, em 25 de Dezembro de 1799, por Frei José de Monserrate, o qual estimulava os

fiéis à contribuição para o pagamento do órgão, no valor de doze mil cruzados,194 pelo

que se infere que a despesa com o instrumento foi suportada pelos donativos da

população de Ponta Delgada (Anexo 1).

O último instrumento que se conhece para um convento franciscano masculino

(Convento de Nossa Senhora das Lajes do Pico) tem a assinatura de Machado e

Cerveira e data de 1804, instalado actualmente na Igreja Matriz da mesma freguesia (ver

Fig. 2.1).195 Trata-se de um exemplar de pequenas dimensões, muito menos imponente

que os seus congéneres “conventuais”.

A par dos conventos masculinos, a sociedade açoriana assistiu a uma forte

implementação de conventos da segunda ordem franciscana (irmãs clarissas e irmãs

concepcionistas), devida essencialmente à necessidade de assegurar um futuro digno às

filhas segundas (Tabela 2.5). O facto de estas não receberem parte equitativa da herança

familiar inviabilizava um bom matrimónio, e a dedicação à vida consagrada, tida em

alta consideração, era a única forma de serem respeitadas em sociedade.196 Como

consequência, a entrega à vida espiritual nem sempre se regia pela vocação, mas sim

pela imposição dos progenitores, resultando numa vivência conventual aquém dos

princípios orientadores da congregação. A admissão à vida conventual era

obrigatoriamente acompanhada dos respectivos dotes e, por vezes, de uma pensão anual,

criando à partida uma hierarquia natural na malha inter e intra conventual feminina.197

194 AIPSJ, documento avulso com o título Sermão d’Acção de Graças pella fellis chegada do Orgão, q

recitou Fr. Jozé do Mons Serrate neste Conv.to de S. Fran. de P.ta Delg.da, à face de toda a Nobreza della,

no dia 25 de Dezb.ro de 1799. 195 Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 129. 196 Consultar Rui de Sousa Martins, “As artes conventuais nos Açores e o processo de criação do Arcano

místico da Ribeira Grande”, Arquipélago, 2ª série, XIII, 2009, 49-85; Susana G. Costa, “Igreja,

Religiosidade e comportamentos”, in História dos Açores... vol. I, pp. 423-425; Maria Fernanda Enes, “A

vida conventual nos Açores – Regalismo e secularização (1759-1832)”, Lusitania Sacra, 2.ª série, 11,

1999, p. 323, e John Webster, “A Ilha de S. Miguel em 1821”, in Arquivo dos Açores, vol. XIII,

Universidade dos Açores, 1983, p. 142. 197 Cf. Maria Fernanda Enes, op. cit., pp. 337 e 338.

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Ilha Convento Construtor/ano Estado actual198

Terceira S. Francisco [actualmente

Museu de Angra]

António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 22, 1788

Restaurado em 2011

S. Miguel S. André [actual Museu de

Ponta Delgada]

António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 29, 1790

Restaurado em 1991

Terceira S. Gonçalo Joaquim António Peres Fontanes, 1793 Restaurado em 1996

Terceira N.ª S.ª da Conceição Joaquim António Peres Fontanes, 1793 Desmontado

S. Miguel N.ª S.ª da Conceição

[actual Igreja do Carmo]

Joaquim António Peres Fontanes, 1794 Restaurado em 1989

Pico N.ª S.ª da Conceição António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 66, 1804

Restaurado em 1990

Faial Convento da Glória António Joaquim Peres Fontanes, 1805 Desmontado

Terceira Convento da Luz António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 81, 1815

Restaurado em 1996

S. Miguel S. André [actual Museu de

Ponta Delgada]

António Xavier Machado e Cerveira,

n.º 104, 1828

Não restaurado

Tabela 2.5 – Instrumentos adquiridos por conventos da ordem de S. Francisco

(femininos e masculinos)

Perante este contexto, depreende-se que os conventos femininos dispunham de

maior disponibilidade financeira do que os masculinos e que, por essa razão, havia uma

hierarquia que se expressava, entre outros aspectos, no tipo de instrumento adquirido.

As freiras clarissas do convento de Santo André, em Ponta Delgada, terão sido

as primeiras da ilha a encomendar um órgão a Machado e Cerveira, em 1790, um órgão

de armário, com o número 29 e doze meios registos. A sua posterior venda à Igreja

Matriz de Santa Catarina da Calheta, na ilha de S. Jorge, no ano de 1827, deu origem à

compra de mais um outro instrumento de Machado e Cerveira em 1828. Segundo a

bibliografia existente, aquela venda deveu-se ao excessivo volume sonoro do

instrumento para as vozes femininas,199 não sendo referido o convento de origem:

Dinarte Machado e Gerhard Doderer assinalam a transferência de um convento

feminino micaelense,200 Cunha de Azevedo esclarece o motivo da venda mas não revela

o nome do convento,201 enquanto Manuel Valença refere que a sua origem é o Convento

da Esperança.202 Foi entretanto encontrada a escritura de venda,203 a qual esclarece que

198 O restauro de todos os instrumentos foi da responsabilidade do organeiro Dinarte Machado. 199 Cf. Manuel d’Azevedo da Cunha, op.cit., p. 272. 200 Op. cit., p. 105. 201 Op. cit., pp. 271 e 272. 202 Cf. Manuel Valença, A Arte Musical e os Franciscanos no Espaço Português (1463-1910), Braga,

Editorial Franciscana, 1997, pp. 84 e 85.

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a parte vendedora é o convento de Santo André, e que o valor da venda foi de

quatrocentos mil réis (Anexo 2).

Fig. 2.4 – Convento de S. Gonçalo Angra do Heroísmo

Joaquim António Peres Fontanes, 1793

Fig. 2.5 – Igreja de Santa Bárbara Angra do Heroísmo

Joaquim António Peres Fontanes, 1793

O convento de clarissas de S. Gonçalo (actual Recolhimento de S. Gonçalo), na

ilha Terceira, recebeu um refinado instrumento de Joaquim António Peres Fontanes, em

1793, de fachada aberta, palhetas horizontais e vinte e dois meios registos (Fig. 2.4). As

suas cerimónias, reconhecidas como aparatosas e de grande ostentação e luxo,204

ganharam fama não só pela qualidade das vozes das religiosas mas também pela forma

como tocavam órgão.205 Ali se celebravam com grande pompa festividades como a

Epifania, Nossa Senhora da Conceição e S. Gonçalo, patrono do convento.206 O

203 P-PD, Cartório de Ponta Delgada, livro 464, mç. 84, fls. 35-37. 204 Cf. Maria Fernanda Enes, op. cit., p. 340. 205 Cf. Pedro de Merelim, Notas sobre os Conventos da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, vol. I, 1960,

131. 206 Há notícia da qualidade do ensino ministrado pelas próprias clarissas não só às professas e noviças

como também às filhas da nobreza angrense, contemplando áreas como a pintura, o desenho, a música, o

canto e as humanidades. Cf. Pedro de Merelim, op. cit., pp. 130-132. Segundo Maria Fernandes Enes, a

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convento de S. Gonçalo era considerado o convento da elite angranse, comparável ao

convento da Glória, no Faial.

No mesmo ano de 1793, Peres Fontanes construiu outro instrumento, com vinte

e três meios registos e muito semelhante ao do convento de S. Gonçalo, desta feita para

o mosteiro das concepcionistas de Angra, sendo posteriormente transferido para a Igreja

de Santa Bárbara (em 1837), onde se encontra em estado deploravelmente precário (Fig.

2.5). 207

Em 1794, foi a vez das concepcionistas de Ponta Delgada – actual Igreja do

Carmo – adquirirem um instrumento de armário também de Peres Fontanes, com treze

meios registos e representações iconográficas de instrumentos de sopro e de corda no

interior das portadas.208 Num dos livros de contas que sobrevive do convento, existe um

hiato entre 1760 e 1795 que impede a obtenção de dados relativos à aquisição do

instrumento. Contudo, no ano de 1796 há indicação de cinquenta mil réis para o

pagamento de um cravo para uso do coro.209 Tendo em conta que, regra geral, o ano de

construção indicado nos instrumentos não corresponde ao ano da sua instalação no

destino, porquanto a viagem e a montagem durariam no mínimo um ano (considere-se,

como exemplo, o órgão da Igreja de S. José em Ponta Delgada, o qual ostenta a data de

1797 e foi recebido em 1799), ocorre a hipótese daquela importância ter sido

despendida não para um cravo mas sim para um órgão, apesar da presença daquele

instrumento não ser estranha num espaço conventual feminino, devido às características

da sua sonoridade.

visita dos mestres de música nem sempre servia o seu propósito estritamente pedagógico, sendo pretexto

para a ociosidade e outros comportamentos menos adequados. Cf. op. cit., pp. 339 e 340. 207 Cf. Jerónimo Emiliano de Andrade, Topographia ou Descripção física, política, civil, ecclesiastica, e

histórica da Ilha Terceira dos Açôres, Parte I (com anotações de José Alves da Silva), 2.ª edição, Livraria

Religiosa, 1891, p. 385 e também Pedro de Merelim, As 18 Paróquias de Angra - Sumário Histórico, p.

224. O interior do instrumento foi recentemente desmontado e acondicionado num compartimento da

igreja pelo organeiro Dinarte Machado. Trata-se de mais um interessantíssimo exemplar da organaria

portuguesa que se encontra à entrada da igreja, com forte possibilidade de desaparecer se não for

devidamente protegido. No instrumento contabilizam-se nove manípulos de registos em cada um dos

lados da consola, sendo, no entanto, difícil delinear o seu plano fónico de forma integral. No Inventário

dos Órgãos dos Açores encontra-se uma proposta de plano fónico (p. 95). Segundo informações do actual

pároco, João Meneses, a igreja não detém documentação antiga e desconhece-se o seu paradeiro. 208 Este foi o primeiro instrumento restaurado por Dinarte Machado nos Açores, em 1986. 209 P-PD, Monásticos, Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, Entradas e saídas de dinheiro do

arquivo 1758-1832, Lv. 129, fl. 94. Nessa mesma fonte, parece existir uma indicação ao nome do

vendedor do cravo, mas é imperceptível.

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Fig. 2.6 – Órgão da Igreja Matriz da Horta

(Faial), AXMC, n.º 78, 1814

Fig. 2.7 – Órgão da Igreja da Conceição de

Angra (Terceira), AXMC, n.º 81, 1815210

Ainda no ramo feminino da ordem de S. Francisco, as concepcionistas da cidade

da Horta, do Convento da Glória, tido como o convento predilecto da fidalguia faialense

e ilhas próximas, encomendaram um instrumento ao sobrinho de Peres Fontanes,

António Joaquim. No Livro do arquivo para os assentos da saída do dinheiro (1790-

1827) daquele convento está registado, em Maio de 1803, o “principio do pagam.to de

hum Orgão q se mandou fazer p.ª este convento”, o qual terminaria em 1805, segundo

indicação na mesma fonte.211 Em 1874, esse instrumento seria transferido para a Igreja

de N.ª Sr.ª das Angústias,212 naquela mesma cidade, onde permanece actualmente,

encontrando-se desmontado (parte do seu mecanismo e a tubaria está encaixotada num

armazém próximo da igreja). Segundo a descrição apresentada no Inventário dos

Órgãos dos Açores, este instrumento tem vinte e dois meios registos, palhetas

horizontais e um teclado com cinquenta e três teclas (C-e’’’).213

Os conventos femininos só voltaram a receber um instrumento em 1815, desta

feita para o Convento da Luz, na Praia da Vitória: um órgão com dezoito meios

210 Fotografia de José Guedes da Silva/Direção Regional da Cultura. 211 BPARJJG/MON/CG, fls. 7 e 8 v. 212 Cf. A Persuasão, 10 de Junho, ano 13, n.º 647 e também 28 de Outubro, n.º 667, ano 13, de 1874. 213 Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 113.

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registos de Machado e Cerveira, actualmente na Igreja da Conceição de Angra (Fig.

2.7),214 cuja diferença em relação ao órgão construído uma ano antes para a Igreja

Matriz da Horta (Fig. 2.6), também de Machado e Cerveira, consiste essencialmente

na nomenclatura dos registos.215

Igreja Matriz do Santíssimo Salvador, Horta (Faial), AXMC, n.º 78, 1814

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’- e’’’)

Flautado de 12 tapado Flautado de 12 aberto

Flautado de 6 aberto Flauta travessa

Flautado de 6 tapado Oitava real

Quinzena Quinzena

Dezanovena Composta de 12.ª e 19.ª

Composta de 19.ª e 22.ª Composta de 22.ª

Composta de 22.ª Corneta, 4 v.

Clarão, 5 v. Voz humana

Trompa de batalha Clarim

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Angra (TER), AXMC, n.º 81, 1815

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’- e’’’)

Flautado de 12 tapado Flautado de 12 aberto

Flautado de 6 aberto Flauta travessa

Flautado de 6 tapado Oitava real

Quinzena Quinzena

Dozena Dozena e 19.ª

Dezanovena Vintedozena

Composta de 22.ª Corneta, 4 v.

Clarão, 5 v. Voz humana

Trompa de batalha Clarim

O actual órgão do convento feminino de Santo André em Ponta Delgada é da

autoria de Machado e Cerveira, nº 104, de 1828, e foi comprado para substituir outro

órgão do mesmo construtor datado de 1790, mencionado anteriormente. O instrumento

foi enviado de Lisboa na Escuna Audaz em 11 de Março de 1829,216 com a respectiva

indicação de mercadoria: Sette caixoens com todos os objectos pertencentes a hum

orgão, menos a caixa e Em 3 caixoens huma caixa de madr.ª de pinho p.ª hum Orgão.

As despesas relativas ao desembarque e respectiva montagem encontram-se

214 Cf. Pedro de Merelim, As 18 paróquias de Angra, p. 88. Ver também D. Machado e G. Doderer, op.

cit., 81. 215 Parece evidente que o órgão da Igreja da Conceição de Angra também seria encimado por um frontão,

tal como a Matriz da Horta, que deverá ter sido retirado devido à altura do tecto. 216 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 285, cx. 564.

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discriminadas no livro de contas do convento:217 “(...) uns ferros para o orgão (...)”, em

Maio de 1829, no valor de 1$920; “Por escrita da Reverenda Sr.ª paguei trinta e nove

mil e quatrocentos reis pelo frete, desembarque e carretos do orgão vindo de Lisboa

para o Mosteiro”, em Junho do mesmo ano; “Por escrito da Rev. Sr.ª abadessa paguei

cinquenta mil reis para o Pe Definidor fr. José do Amor Divino pela armação e afinação

do orgão e mais seis mil reis para o Me João [Marcineiro?] que trabalhou na armação do

mesmo instrumento”, também no mês de Junho. Presentemente, o órgão Machado e

Cerveira do convento de Santo André é o único instrumento nos Açores em estado

completamente original, podendo ser tocado através da acção manual do fole.

Representa, por isso, um valioso objecto de estudo no campo da análise organológica,

em particular da última fase de construção de Machado e Cerveira.

Segundo Ana Paula Tudela, à data da morte de Machado e Cerveira existiam na

sua oficina três instrumentos destinados aos Açores, cujos compromissos foram

assumidos pela sua viúva através da colaboração do oficial de Machado e Cerveira, José

Teodoro Correia de Andrade.218 A mesma autora refere que desses três instrumentos um

encontrava-se praticamente terminado, outro parcialmente e mais outro em início de

construção. Atendendo às datas inscritas nos instrumentos deduz-se que o órgão

praticamente concluído fosse o de Santo André, pois Machado e Cerveira morreu em

Setembro de 1828 e órgão foi despachado para os Açores em Março de 1829. Pela

mesma ordem de ideias, pensa-se que o órgão parcialmente construído seja o da Igreja

da Misericórdia de Angra (o segundo que se conhece adquirido por igrejas das

misericórdias),219 com o mesmo número de opus do convento de Santo André mas com

data de 1829. Aliás, a descrição encontrada no Resumo das despesas incertas,

calculadas pela media dos tres anos de 1827 a 1829, de Julho a Junho [da Misericórdia

217 P-PD, MON/Convento de Santo André de Ponta Delgada, Despesas (1822-1832), lv. 145, fls. 114 v.,

116 e 117. 218 Cf. Genealogia..., pp. 35 e 36. Segundo D. Machado e G. Doderer, a oficina de Machado e Cerveira

permaneceu aberta após a sua morte sob a responsabilidade da respectiva viúva e do discípulo José

Teodoro Correia de Andrade, que o substituiu no lugar de mestre organeiro da Santa Igreja Patriarcal. Cf.

Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 17. 219 O primeiro instrumento adquirido por igrejas de misericórdias no período aqui em estudo terá sido

para a Misericórdia de Ponta Delgada. Em 1791, nos livros de despesa dessa instituição, há indicação de

ferros para o órgão, o que pressupõe a chegada de um novo instrumento, tendo em conta que o mesmo

procedimento voltaria a ocorrer em 1829 para o novo órgão do convento feminino de Santo André, em

Ponta Delgada. Cf. ASCMPD, Livro da receita e despesa da Sta Caza (1787-1814), fl. 118. Todavia, dado

o desaparecimento da igreja e a ausência de vestígios do órgão, desconhece-se o seu construtor, sendo, no

entanto, admissível tratar-se de um instrumento de Peres Fontanes ou de Machado e Cerveira.

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de Angra], nomeadamente a alusão a circunstâncias que atrasaram a entrega do

instrumento, pode fundamentar aquela hipótese: “(...) em repairos da Igr.ª, ornatos,

roupas de altar /menos o Orgão grande, e cortinados, que o Sr. Prov.r, a pedimento da

Mesa mandou com o seu dinheiro, elhe consignou vendas p.ª seu pagamento, eq pelas

actuaes circunst.as ainda não vierão/...”.220 Ainda na mesma fonte, na rubrica Nota do

que devem, e do que são Credores a Misericordia, e seu Hospital d’Angra, em 18 de

Agosto de 1830, lê-se: "Ao provedor, pela despesa em L.x com hum Orgão grande, e

cortinados, de que a Mesa o imcumbio, elhe consignou Vendas p.r escrt. publica, mas

que ainda senão sabe a sua importancia p.r falta de comunicação".221 No ano de 1830 o

órgão já estaria instalado na Igreja da Misericórdia de Angra, pois há registo do

pagamento ao organista no valor de 4$000,222 acrescido de quinze moios de trigo para

tocar nas Festividades.223 De resto, não foram encontrados registos sobre o valor da

compra do instrumento, bem como outras questões contratuais.

O órgão apenas iniciado por Machado e Cerveira mencionado acima terá sido o

da Igreja Matriz de Santa Cruz na ilha Graciosa, sobre o qual se falará no contexto dos

órgãos adquiridos por igrejas paroquiais. Refira-se que os três instrumentos apresentam

muitas semelhanças não só ao nível da caixa como também da estrutura fónica (Fig.

2.8).224

Através do repertório sacro que sobrevive nos Açores (ao qual se dedica o cap.

V) depreende-se que existiram mais instrumentos da organaria portuguesa noutros

conventos de clarissas, nomeadamente no Convento de S. João Evangelista e da

Esperança em Ponta Delgada. Pese embora os instrumentos não terem sobrevivido, foi

localizado muito recentemente no arquivo do convento da Esperança um documento

intitulado “Plano por onde se devem seguir para armar o Orgão”, o qual sustenta aquela

hipótese (Anexo 3). Sem autoria e sem data, aquele documento descreve

220 P-Lant, Ministério do Reino, mç. 260, cx. 344. 221 Idem. 222 P-Lant, Ministério do Reino, mç. 260, cx. 344: Relação das Vendas da S.tª Casa da Mis. d’Angra, 9 de

Agosto de 1830. 223 P-Lant, Ministério do reino, mç. 260, cx. 344. 224 Plano fónico dos instrumentos:

Santo André (S. Miguel), n.º 104, 1828, Misericórdia (Terceira) n.º 104, 1828 Matriz de Santa Cruz (Graciosa), s/n.º, 1831

M. E. (C-c’) M. D. (c#’-g’’’) M. E. (C-c’) M. D. (c#’-f’’’) M. E. (C-c’) M. D. (c#’-g’’’)

Flautado 12 tap. Flautado 12 ab. Flautado 12 tap. Flautado 12 ab. Flautado 12 tap. Flautado 12 ab. Flautado 6 ab. Flauta em 12 Flautado 6 ab. Flauta Travessa Flautado 6 ab. Flauta em 12

Dozena e 19ª Flautim Compostas de 22ª Compostas de 15ª Compostas de 22ª Oitava real e 15ª

Quinzena Oitava real e 15ª Quinzena Voz Humana Quinzena Voz humana Clarão Corneta Clarão Corneta Clarão Corneta

Fagote Clarim Fagote Clarim Fagote Clarim

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pormenorizadamente todos os passos da montagem de um órgão com características

muito semelhantes às do órgão do Convento de Santo André. Seria um instrumento de

um único teclado com cinquenta e quatro notas (C-f’’’), cerca de doze meios registos e

pedais de tambores. Em termos fónicos dispunha na mão direita de um Flautado de 12

aberto, Flauta em 12 (cónica), Flautim (cónico), pelo menos dois registos de cheios com

poucas filas e duas repetições e um registo de palheta posicionado verticalmente na

rectaguarda da caixa. Na mão esquerda era constituído por um Flautado de 6 aberto,

Quinzena, igual número de registos de cheios e de palhetas da mão direita.

Convento de S. André (S. Miguel)

n.º 104, 1828

Igreja da Misericórdia

(Terceira) n.º 104, 1829

Igreja Matriz de S. Cruz

(Graciosa) s/n.º, 1831

Fig. – 2.8

A análise do escudo de armas redondo que o documento exibe aponta, por um

lado, para o ano de 1804 ou anterior, uma proposta pouco plausível atendendo à

extensão do teclado que, nessa época, não ultrapassava as cinquenta e três teclas (C-

e’’’), e, por outro, para uma data posterior a 1827, ano em que o papel selado foi

reintroduzido após a sua abolição em 1804. Assim, colocam-se as seguintes hipóteses: o

documento estaria anexado a um contrato (não encontrado), justificando-se assim o

facto de ser escrito em papel selado (neste caso, a datação provável seria 1803-1804); o

documento foi redigido em papel selado porque este já não tinha validade (neste caso, a

datação provável seria 1804-1827). Embora esta última hipótese pareça a mais

consentânea com o conteúdo, permanece ainda a possibilidade de ser um documento

posterior a 1827.

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Convento de origem Igreja paroquial actual

Convento de S. André (PD) Matriz de Santa Catarina

(Calheta - S. Jorge)

Nossa Senhora da Conceição (AH) Igreja de S. Bárbara (AH)

Convento de S. Tomás

(Praia da Vitória)

Igreja Matriz

(Praia da Vitória)

Convento da Graça225

(AH)

Igreja de N.ª Sr.ª do Carmo, vulgo

Colégio (AH)

Nossa Senhora da Conceição

(Lajes – Pico)

Igreja Matriz da Santíssima Trindade

(Lajes do Pico)

Convento da Glória

(Horta)

Igreja N.ª S.ª das Angústias

(Horta)

Convento da Luz

(Praia da Vitória)226

Igreja N.ª S.ª da Conceição

(AH)

Tabela 2.6 – Transferência de instrumentos de igrejas conventuais para paroquiais

Face aos dados apresentados, verifica-se que, dos doze instrumentos adquiridos

por igrejas conventuais, apenas seis se mantêm no espaço original e os restantes foram

transferidos para igrejas paroquiais, onde permanecem (Tabela 2.6). Todas as

transferências terão sido uma consequência das políticas liberais,227 independentemente

de se terem efectuado logo após os diplomas de Mouzinho da Silveira (1832) e de

Joaquim António de Aguiar (1834)228 ou em anos ulteriores. No entanto, algumas delas

carecem de confirmação documental, ou porque não foram localizadas as fontes

primárias ou, simplesmente, pela sua inexistência.

À luz do exposto na Tabela 2.6 constata-se que a maioria das transferências

decorreu na ilha Terceira, situação aparentemenre relacionada com dois factores: 1)

grande número de conventos localizados no centro de Angra do Heroísmo; 2) Angra ter

sido uma acérrima defensora dos ideais liberais.

225 Convento da ordem de Santo Agostinho. 226 Cf. Pedro de Merelim, op. cit., p. 88. 227 Excepção feita ao órgão que se encontra na Igreja Matriz da Calheta, em S. Jorge. 228 Ver Vítor Neto, O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa, Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 50. Ver também Maria Fernanda Enes, op. cit., p. 324.

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Um caso particular diz respeito ao órgão actualmente pertencente à Igreja de

Santo Antão, na ilha de S. Jorge. Identificado como sendo de 1790,229 o órgão de

Joaquim António Peres Fontanes não chegou aos Açores nessa data, pois, com base na

narrativa do historiador local Manuel d’Azevedo da Cunha,230 o órgão terá sido

adquirido já na segunda metade do século XIX a um convento feminino do continente,

entretanto extinto.

Dos instrumentos adquiridos originalmente por igrejas não conventuais

contabilizam-se apenas seis casos, o primeiro dos quais para a Igreja de São Mateus, na

ilha Graciosa, da autoria de António Xavier Machado e Cerveira (n.º 38) e datado de

1793, com doze meios registos, pedal anulador de cheios e extensão do teclado com

cinquenta e uma teclas (C-d’’’).

Com proporções relativamente maiores (dezoito meios registos) sobrevive o

órgão da Igreja Matriz da cidade da Horta (Faial), daquele mesmo construtor e com data

de 1815 (ver Fig. 2.6).231 Seis anos depois, em 1821, a Igreja de Nossa Senhora da

Apresentação, em Capelas (concelho de Ponta Delgada – S. Miguel), recebeu mais um

instrumento de Machado e Cerveira (n.º 94), também com doze meios registos e pedais

anuladores de cheios e de palhetas. Numa povoação relativamente próxima de Capelas,

Fenais da Luz (Igreja de Nossa Senhora da Luz), encontra-se mais um instrumento de

Machado e Cerveira, n.º 100, de 1826, também com doze meios registos, e três pedais,

um para anular os cheios, outro para as palhetas e mais um para o efeito de eco.

O instrumento de maiores dimensões desse grupo encontra-se na Igreja Matriz

de Ponta Delgada, da autoria de Machado e Cerveira, com data de 1828 e o n.º 102. Foi

encomendado pela confraria do Santíssimo Sacramento, em cuja escritura de contrato

(Anexo 4), celebrada em 2 de Maio de 1826, se estipula um instrumento com 1130

“vozes (4 dos tambores)” pelo valor de um conto e oitocentos mil reis, pagos em quatro

229 Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 107. Presentemente, o instrumento encontra-se parcialmente

desmontado, não tendo sido encontrada qualquer placa identificativa nem qualquer inscrição. No entanto,

as suas características, já estudadas por Dinarte Machado, são consentâneas com as de Joaquim António

Peres Fontanes. Cf. idem. 230 Op. cit., p. 463. Azevedo Cunha não esclarece a época da compra, mas denuncia a colaboração do

Vice Reitor do Seminário de Angra, Dr. João Paulino d’Azevedo e Castro, que viveu entre 1852 e 1918,

pelo que se deduz que o instrumento tenha sido adquirido na segunda metade do século XIX. 231 À época de aquisição do órgão, a Horta vivia um período especialmente próspero, desenvolvido

sobremodo pela presença do cônsul geral dos Estados Unidos no Faial, John Dabney, que lá fixou

residência e descendência, com forte acção na vida económica, social e cultural faialense. Consultar Paulo

Silveira e Sousa, “As elites insulares”, in História dos Açores, vol. I, p. 602.

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prestações, desde a data da escritura até à entrega do órgão, num prazo de dezoito

meses.232 A escritura teve lugar em Lisboa e foi assinada por um procurador em

representação da dita Confraria e pelo construtor António Xavier Machado e Cerveira,

sob as seguintes condições:

Que o Orgão será bem construido, e feito pelo Projecto por ambos assignado;

Que terá mil cento e trinta vozes incluidas nesta conta as quatro dos Tambores,

sendo em tudo o mais feito conforme o Plano igualmente assignado por ambos

elles Partes, cujo Plano, e Projecto que ficao fazendo parte desta Escriptura,

Conservará elle Bessone [Tomaz Maria Bessone – procurador] em seu poder

para no fim da obra se conhecer se elle Machado prehencheo a sua obrigação;

Que elle Machado se obriga a dár o Orgão prompto e acabado da sua mão

dentro de dezoito meses primeiros seguintes contados da ditta desta Escriptura

em diante; Que a pintura do Orgão no caso de que a Irmandade o queira

Pintado, será por conta da mesma Irmandade. Que a Irmandade fica obrigada a

dár pelo Orgão a quantia de hum conto e oito centos mil reis em metal; a saber

seis centos mil reis a factura desta Escriptura, os quaes logo neste acto na minha

prezença e das ditas Testemunhas elle Bessone deu e entregou a elle Machado, e

este contou e recebeu sem erro nem falta de que eu Tabellião dou minha Fé (...).

Segundo informações contidas na própria escritura houve uma troca prévia de

correspondência entre Machado e Cerveira e o prior da Igreja Matriz, Bernardo Faria e

Maia, no sentido de ajustar as características do instrumento, mas que, infelizmente, não

foi localizada no respectivo arquivo paroquial. Contudo, proliferam as indicações de

procedimentos tidos com o transporte e colocação do órgão na igreja no livro de Receita

& desp. Da Confra.ª Do Santissimo Sacrm.to Da Matriz:233

- Despesa entre 1825 e 1826 (fl. 79 v.): confirmação da quantia de dois contos e

cinquenta mil reis para o órgão, cujo valor foi ajustado em um conto e oitocentos mil

reis (metal), ao qual acresce o câmbio de 25%;

- Despesa em 1827 (fl. 93): pagamento ao capitão do patacho Audas pelos onze

caixões com o órgão; pagamento aos barcos que o transportaram para terra234; despesa

com o guindaste e os carretos para a igreja; despesa com o frete de três encerados que

cobriram três caixões que foram transportados no convés;

232 AIMPD, Títulos diversos Confraria do Sant. Sacramento, n.º 1 a 58. 233 AIMPD, idem. 234 A doca de Ponta Delgada começou a ser construída na década de sessenta do século XIX.

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- Despesa entre 1827 e 1828 (fl. 94): pagamento da factura do órgão remetido

em Lisboa por Tomás Maria de Bessone e transportado em Março de 1828; pagamento

da madeira para os caixões bem como de aparas; custo com o douramento dos tubos de

fachada e trombetas, e de sedas para as portas;

- Despesa entre 1828 e 1829: pagamento ao carpinteiro Manoel de Jesus

Pacheco e outros oficiais para montagem do órgão; pagamento ao padre João Hipólito

para afinar o órgão;

O último órgão para uma igreja não conventual foi para a Matriz de Santa Cruz,

na ilha Graciosa, também atribuído a Machado e Cerveira.235 Acerca deste instrumento,

Manuel Valença informa que, dada a inexistência de placa identificativa no instrumento,

supõe ter sido adquirido pela Igreja Matriz em 1832, na sequência do encerramento do

convento franciscano da Senhora dos Anjos de Porciúncula, extinto em 1832, onde

pertencia originalmente.236 Todavia, essa informação parece inconsistente considerando

a placa na consola do instrumento onde se lê: “Feito por Ordem do R.do Jozé Machado

Evangelho / Vigario desta Matriz, à custa das Confrarias: / Anno de 1831”. Além do

pormenor da data, acresce o facto de as igrejas conventuais não disporem de Confrarias,

pelo que tudo indica que o instrumento tenha sido adquirido para a referida Matriz.237

De acordo com os dados apresentados, verifica-se que os órgãos adquiridos por

igrejas não conventuais foram todos construídos por Machado e Cerveira (Tabela 2.7).

No âmbito geográfico da ilha de S. Miguel há registos de pagamentos a organistas e

outros cargos necessários à realização de música sacra, como mestre de capela e moços

de coro, em várias igrejas, presumivelmente colegiadas.238 As Tabelas 2.8 e 2.9

235 O instrumento não apresenta, no seu exterior, uma placa com identificação do construtor, talvez pelo

facto de não ter sido acabado por Machado e Cerveira, tal como foi mencionado anteriormente. No

entanto, dada a similaridade com outros instrumentos já referida anteriormente e a sua própria concepção,

trata-se, efectivamente, de um instrumento de Machado e Cerveira. Pese embora ter sido restaurado em

1989 pelo organeiro Dinarte Machado, já foi alvo da intervenção de alguém desconhecedor das suas

características, e que acabou por aniquilar, por exemplo, o efeito ondulante do registo da mão direita Voz

humana. 236 Cf. A arte organística em Portugal – depois de 1750, p. 269. Refira-se que, à data da publicação de

Manuel Valença, em 1995, o órgão em causa já tinha sido restaurado e inaugurado (1989). 237 A igreja dispõe de um pequeno arquivo numa divisão contígua. Embora não obedeça a qualquer

organização e, por isso, não tenha sido possível uma pesquisa exaustiva, não foram encontrados

documentos da época de aquisição do órgão. 238 Será por essa razão que não está mencionada a Igreja de Nossa Senhora da Apresentação (Capelas),

que recebeu um órgão de Machado e Cerveira em 1821, assim como dos Fenais da Luz, com um órgão

Machado e Cerveira datado de 1826.

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apresentam os pagamentos efectuados pela Alfândega de Ponta Delgada em 1797-1799

e 1830, sendo que nessa última data consta a identificação do nome dos organistas.

Ilha Igreja Construtor/ano Estado actual

Graciosa S. Mateus (Praia) António Xavier Machado e

Cerveira, n.º 38, 1793

Restaurado em 1989

Faial Matriz do Santíssimo

Salvador (Horta)

António Xavier Machado e

Cerveira, n.º 78, 1814

Restaurado em 1996

S. Miguel Igreja de S. Miguel

(Capelas)

António Xavier Machado e

Cerveira, n.º 94, 1821

Desmontado

S. Miguel N.ª Sr.ª da Luz

(Fenais da Luz)

António Xavier Machado e

Cerveira, n.º 100, 1826

Não restaurado

S. Miguel Matriz de S. Sebastião

(PD)

António Xavier Machado e

Cerveira, n.º 102, 1828

Restaurado em 1991

Graciosa Matriz (S. Cruz) António Xavier Machado e

Cerveira, s/ n.º, 1831

Restaurado em 1989

Tabela 2.7 – Instrumentos adquiridos por igrejas não conventuais dos Açores

1797-99 Funções Dinheiro (reis) Trigo (moios) Terra (alqueires)

Matriz (PD) Organista 4$000 2 25,5

Mestre de capela 6$000 5 2,5

Moços do coro 1$660 1 36

S. Pedro (PD) Organista 2$666 1 37

Mestre de capela ----- ----- -----

S. José (PD) Organista 2$670 1 37

Mestre de capela ----- ----- -----

St. Cruz (Lagoa) Organista 2$000 1 -----

Mestre de capela ----- ----- -----

N.ª S.ª Anjos

(Água Pau)

Organista 2$000 1 -----

Mestre de capela ----- ----- -----

S. Miguel (VFC) Organista 3$330 2 1 + 1 aro

Mestre de capela 3$330 2 1 + 1/8

S. Jorge (Nordeste) Organista 2$000 1 -----

Mestre de capela 1$333 ----- 48,5

Matriz (RG) Organista 4$000 3 25,5

Mestre de capela 4$000 3 -----

Tabela 2.8 – Despesa da Alfândega de Ponta Delgada com os “Ministros Ecleziasticos”

1797-1799239

Destacam-se os honorários mais elevados nas igrejas Matriz de Ponta Delgada,

Santa Cruz de Lagoa, S. Miguel de Vila Franca do Campo e Matriz de Ribeira Grande,

justamente as zonas mais habitadas e economicamente mais fortes da ilha de S. Miguel.

239 P-PD, Alfândega de Ponta Delgada, livro 345, fls. 19 v. a 51 v.

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Comparando os dados da Tabela 2.9, referente a 1830, com as datas dos órgãos

que hoje existem verifica-se a correspondência de apenas um instrumento: o órgão

Machado e Cerveira da Igreja Matriz de Ponta Delgada (Tabela 2.10).240 Esta é a prova

cabal não só da presença de outros instrumentos como da sua substituição ao longo do

século XIX, como se verá no capítulo seguinte.

1830 Funções Dinheiro

(reis)

Trigo

(moios)

Terra

(alqueires)

Matriz (PD) Organista (João Ricardo de Medeiros) 4$000 2 25,5

Mestre de capela (José Francisco Martins) 6$666 5 2,5

S. Pedro (PD) Organista (Manuel Francisco Carvalhal) 2$666 1 37

Mestre de capela ----- ----- -----

S. José (PD) Organista (Mariano Jacinto) 2$666 1 37

Mestre de capela ----- ----- -----

St. Cruz (Lagoa) Organista (Manuel Raposo da Câmara) 7$000 1 -----

Mestre de capela ----- ----- -----

N.ª S.ª Anjos

(Água Pau)

Organista (António Joaquim Ferreira) 2$000 1 -----

Mestre de capela ----- ----- -----

S. Miguel (VFC) Organista (Luis José Serrão) 3$330 2 1 + 1/8

Mestre de capela (Antonio Policarpo Rebelo

de Quental)

3$330 2 1 + 1/8

S. Jorge

(Nordeste)

Organista (Manuel de Brum Taveira) 2$000 1 -----

Mestre de capela (Francisco Felix Machado) 1$333 ----- 48,5

Matriz (RG) Organista (Francisco José Martins) 4$000 2 25 + 1/8

Mestre de capela (José Jacinto da Cunha) 4$000 3 -----

Tabela 2.9 – “Folha dos ordenados dos eclesiásticos pagos pela Alfândega de Ponta Delgada”241

Igreja 1797-99 1830 Data de construção do instrumento actual

Matriz (PD) • • 1828

S. Pedro (PD) • • 1858

S. José (PD) • • Igreja desaparecida

S. Cruz (Lagoa) • • 1892

N.ª S.ª dos Anjos

(Água de Pau)

• • Não tem instrumento

S. Miguel (VFC) • • 1900

S. Jorge (Nordeste) • • 1897

Matriz (Ribeira

Grande)

• • 1855

Tabela 2.10 - Órgãos mencionados nos mapas das Tabelas 2.8. e 2.9 vs. órgãos no presente

240 No que respeita à Igreja Matriz de Santa Cruz da Lagoa, há registo da despesa com o órgão no valor de

12$530 réis, em 30 de Dezembro de 1839. Cf. Arquivo da Igreja Matriz de Santa Cruz (Lagoa), Livro de

receita e despeza (1836-1853), fl. 30. Existe um relato dos irmãos Bullar de 1838 que assinala a presença

de um órgão na Igreja Matriz de São Miguel da Vila Franca do Campo. (ver cap. V. 2). 241 Arquivo dos Açores, vol. XI, pp. 314 a 324.

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III. Actividade organeira no período da Monarquia Constitucional

(1834-1892)

A implementação do regime liberal em Portugal, em 1834, abalou sobremaneira

a produção organeira em todo o território português, resultando num período de

verdadeiro declínio quando comparado com a elevada produção a partir do último

quartel do século XVIII. Pese embora a inexistência de um inventário dos órgãos em

Portugal, o qual permitiria uma visão global do cenário da organaria portuguesa, crê-se

que a construção de novos instrumentos segundo a concepção da organaria portuguesa

tardo-setecentista só se evidenciou de forma sistematizada no arquipélago dos

Açores.242

Com base nos dados expostos nos capítulos anteriores, podem delinear-se três

fases da história do órgão nos Açores: a primeira correspondente ao período entre a

fundação da diocese e o início da década de oitenta do século XVIII, a segunda marcada

pela importação dos instrumentos de Peres Fontanes e Machado e Cerveira no final do

Antigo Regime, e a terceira caracterizada pela construção de novos instrumentos após a

implantação do Liberalismo, concebidos segundo o modelo estabelecido por aqueles

dois organeiros. Tal como sucedeu entre a primeira e a segunda fases, os órgãos da

terceira fase surgem da necessidade de substituir outros mais antigos. Além do tipo de

concepção dos instrumentos, a especificidade desta terceira fase reside na actividade de

um número significativo de construtores autóctones.243

242 Refira-se a acção de António José dos Santos na segunda metade do século XIX no Porto, onde

interveio em inúmeros instrumentos, como por exemplo o órgão da Epístola da Sé do Porto (Cf. Marco

Brescia, “Manoel Lourenço da Conceição e os órgãos da Sé do Porto: rumo à plena afirmação do órgão

ibérico em Portugal”, in António Francisco dos Santos et al, Restauro dos Órgãos da Epístola e do

Evangelho da Sé Catedral do Porto, Cabido Portucalense, 2017, pp. 59 e 60). É da sua autoria o órgão da

Igreja Paroquial de Ribeirão (concelho de Vila Nova de Famalicão), datado de 1874, um instrumento que

congrega alguns dos princípios bases da organaria portuguesa de finais de setecentos. Saliente-se,

também, Manuel de Sá Couto, com actividade sobretudo no norte do país. Cf. Manuel Valença, A Arte

Organística em Portugal – depois de 1750, vol. II, pp. 336-338. 243 Tal como mencionado na introdução a este trabalho, o arquipélago detém instrumentos de diferentes

estéticas vindos do estrangeiro mas também construídos por açorianos, sendo o caso de Marcelino de

Lima e de Manuel Serpa da Silva que, não obstante a sua atividade se integrar nas balizas cronológicas

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52

Sobrevivem treze instrumentos desta terceira fase, localizados em quatro das

nove ilhas: S. Miguel, Santa Maria, S. Jorge e Pico (Gráfico 3.1). De acordo com as

informações extraídas das fontes locais e a numeração de alguns instrumentos, aquele

número ascenderia a vinte exemplares, abrangendo também a ilha Terceira.

Gráfico 3.1 – Produção organeira nos Açores entre 1848 e 1892

Enquanto construtores, destacam-se Sebastião Gomes de Lemos, Silvestre

Serrão e João Nicolau Ferreira, Tomé Gregório de Lacerda, Nicolau António Ferreira,

Francisco Botelho de Medeiros e Manuel de Sousa, todos residentes nos Açores, com

excepção de Sebastião Gomes de Lemos. À parte a disparidade de produção entre eles

(com inequívoca supremacia de Silvestre Serrão e de João Nicolau Ferreira) um dos

maiores obstáculos ao estudo da actividade organeira nos Açores na segunda metade

dos século XIX é a não existência – ou não localização até à data – de contratos para a

construção dos instrumentos. Através deles, poder-se-ia inferir mais facilmente as

razões para a adopção de um modelo de construção específico ou, até mesmo, para a

utilização de materiais de outros órgãos anteriores, situação particularmente perceptível

em alguns exemplares. É ainda notória a exiguidade de dados biográficos (sobretudo

relativos à actividade profissional) de grande parte daqueles construtores.

desse capítulo, não são alvo de estudo pelo facto de revelarem uma concepção distinta da organaria

portuguesa de Peres Fontanes e Machado e Cerveira. Sobre esses instrumentos, consultar D. Machado e

G. Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores.

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III. 1 Sebastião Gomes de Lemos

Nos Açores, há três instrumentos de dimensões diferentes assinados por

Sebastião Gomes de Lemos, sobre cuja vida e actividade se conhece muito pouco.244

Segundo o Inventário dos Órgãos dos Açores – única fonte que inclui uma curta

biografia de Gomes de Lemos –, este terá sido oficial de Machado e Cerveira. 245

De acordo com uma notícia da Gazeta de Lisboa em 25 de Agosto de 1829, onde

se lê que «Sua Magestade foi servido no dia 12 de Julho fazer mercê a Sebastião Gomes

de Lemos, empregado da Real Basilica de Mafra, de poder usar da Medalha de ouro da

Sua Real Effigie» (itálico do original), deduz-se que Gomes de Lemos tenha ficado

responsável pelos órgãos da Basílica de Mafra entre a morte de Machado e Cerveira, em

1828, e a extinção do convento, em 1834.246

Gomes de Lemos foi o autor do primeiro órgão que hoje se conhece nos Açores,

na vigência do regime liberal, quebrando assim o intervalo de dezassete anos desde o

último instrumento de Machado e Cerveira (1831). Dada a proximidade entre as datas

dos três instrumentos de Gomes de Lemos, 1848, 1851 e 1855, ponderou-se a

possibilidade de ter estabelecido residência nos Açores e de aqui ter falecido. Todavia,

244 José Nelson Cordeniz informa da existência de outro instrumento da autoria de Gomes de Lemos na

Lourinhã, distrito de Lisboa, com o n.º 30 (Cf. op.cit., p. 11). Além de não ter sido localizado na referida

igreja também não consta da biografia de Gomes de Lemos apresentada no Inventário dos Órgãos dos

Açores, p. 18. 245 Cf. idem, p. 18. Os instrumentos de Gomes de Lemos são constituídos por meios registos, com um

plano fónico muito próximo de Machado e Cerveira e todos integram um pedal anulador de cheios. No

entanto, tal como se verá no capítulo seguinte, o instrumento que reflecte um maior distanciamento das

características de Machado e Cerveira é o da Igreja Matriz da Ribeira Grande (1855). 246 Considerando os dados apresentados por Ana Paula Tudela, Machado e Cerveira foi director dos

órgãos de Mafra e Capelas Reais a partir de 1804, sendo que em 1824 ainda mantinha o mesmo cargo. Cf.

Geneologia socioprofissional de uma família de escultores e organeiros dos secs. XVIII e XIX: os

Machados - contributo para o estudo das Artes e Oficios em Portugal, p. 41. Considere-se igualmente a

informação contida numa etiqueta guardada num arquivo pessoal (Arquivo da Casa de Louriçal, s.c.), sem

data, a qual corrobora a função de Gomes de Lemos junto dos órgãos da Basílica do Convento de Mafra:

«SEBASTIÃO [G]OMES DE LEMOS / Antigo encarregado dos Orgãos do Real Convento / de Mafra, ao

presente morador nesta Cidade de Lis- / boa: Faz Orgãos e mais instrumentos de teclado. / Promptifica-se

[sic] a receber a importancia de qualquer obra de que fôr encarregado em prestações combi- / nadas em

tempo competente, precedendo as segu- / ranças necessarias. / Morada / Loja».

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não foram encontrados dados que sustentassem essa hipótese.247 Além disso,

equacionou-se ainda o contacto de Gomes de Lemos com Silvestre Serrão na ilha de S.

Miguel, situação não confirmada porque todas as fontes que se ocupam de Silvestre

Serrão são omissas quanto à figura de Gomes de Lemos (ver cap. V). Assim, supõe-se

que Gomes de Lemos terá enviado os seus órgãos para os Açores para serem montados

no local do destino por qualquer pessoa segundo as suas orientações, de acordo com o

processo habitual (comprovado pelas inúmeras situações descritas no capítulo anterior),

ou, em última análise, os tenha acompanhado até aos Açores e procedido ele próprio à

montagem. Considerando as várias inscrições encontradas no órgão da Igreja do

Espírito Santo, na freguesia da Maia, em S. Miguel – o seu primeiro instrumento datado

de 1848,248 – nomeadamente o discurso instrutivo duma etiqueta colada na tábua de

redução (Fig. 3.1 e 3.2), a primeira hipótese apresenta-se bastante verosímil.

Fig. 3.1 – Etiqueta colada na tábua de

redução: “lugar em q fica a chave com q se

suspende o te=clado as Varetas da=

redoção”

Fig. 3.2 – Sinalização da “Arca do

Vento”

No ano de 1851, Gomes de Lemos construiu outro instrumento para a Igreja de

Santa Bárbara, na freguesia de Manadas, na ilha de S. Jorge, o qual se conserva em

estado muito precário numa garagem próximo da igreja. Trata-se do exemplar mais

247 Foram consultados os registos paroquiais (óbitos) de diferentes localidades com o objetivo de

averiguar uma possível morte de Gomes de Lemos nos Açores. Registo de óbitos: S. Pedro (Ponta

Delgada) 1855-1890, Matriz (Ponta Delgada) 1855-1911, S. José (Ponta Delgada) 1855-1911, Conceição

(Ribeira Grande) 1872-1905, Maia (Ribeira Grande) 1856-1905, Matriz (Ribeira Grande) 1855 a 1905.

Foram ainda consultados os registos de casamentos da freguesia da Maia de 1845 a 1853. 248 Decorre actualmente o restauro desse instrumento, adjudicado à empresa Dinarte Machado – Atelier

Português de Organaria, Lda.

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pequeno, com oito meios registos. Nada se conseguiu apurar sobre a forma como foi

estabelecido o contacto de Gomes de Lemos com aquela freguesia de S. Jorge, sabendo-

se apenas que era uma localidade que dispunha, na época, de poder económico.249

O terceiro e último instrumento de Gomes de Lemos data de 1855 para a Igreja

Matriz de Nossa Senhora da Estrela na Ribeira Grande, ilha de S. Miguel, e foi

adquirido para substituir um órgão anterior. O facto de constar no livro dos inventários

da paróquia de Nossa Senhora da Estrela da Ribeira Grande a venda do órgão antigo,

registada em 1856, sugere a reutilização de materiais no novo órgão.250 Justifica-se

talvez, por isso, a concepção fónica menos consistente desse instrumento (ver cap.

IV.3).

III. 2 Joaquim Silvestre Serrão e João Nicolau Ferreira

Em 1841 chega a Ponta Delgada Joaquim Silvestre Serrão (1801-1877),251 freire

da ordem de Santigo da Espada no Convento de Palmela (Setúbal), onde assumira

funções de organista e compositor.252 Graças a esses requisitos e provavelmente à

relação de amizade que entretanto desenvolvera com o bispo da diocese de Angra, D.

Frei Estevam de Jesus Maria – por ocasião da passagem de ambos por Rilhafoles –,

Serrão ocupou o cargo de organista titular da Igreja Matriz de Ponta Delgada até ao

final da década de sessenta e, ao longo de quase quarenta anos (1841-1877), assumiu

um lugar cimeiro na paisagem musical sacra e profana dos Açores.

Também é provável que se tenha devido à relação próxima com o bispo de

Angra a construção do seu primeiro instrumento nos Açores, destinado à Sé de Angra,

ali colocado numa tribuna do lado do Evangelho e inaugurado em 1854, embora a

249 A referida igreja, apesar de dimensões reduzidas, encerra um importante património artístico.

Encontra-se actualmente em processo de restauro pelo Atelier de Conservação e Restauro de Obras de

Arte São Jorge Lda. 250 Cf. AMRG, Arquivo da Junta da Paróquia, Livro dos Inventários da Paróquia de Nossa Senhora da

Estrela na Ribeira Grande (1839-1866), fl. 91. 251 P-PD, Registo de Óbitos de 1877 – S. Pedro de Ponta Delgada, assento nº 13, fls. 15 v. e 16. 252 No cap. V.3.1 desta tese é apresentada uma síntese biográfica de Silvestre Serrão.

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imprensa coetânea não relate com pormenor esse acontecimento.253 Por oposição ao

outro órgão que a Sé já dispunha no lado da Epístola, atribuído a Peres Fontanes, o

órgão de Serrão era comummente designado de ‘pequeno’.254 Na década de sessenta,

mais concretamente em 1867, surge um pagamento “ao pintor q esta pintando o orgão

pequeno” no valor de 63$000.255

Antes desse instrumento, porém, há registo de um pagamento efectuado a

Silvestre Serrão, em Agosto de 1844, para “limpação do orgão” da Igreja Matriz de

Ponta Delgada.256

Visto que ambos os instrumentos da Sé de Angra foram destruídos por um

incêndio que ali ocorreu em 1983, os dados aqui apresentados baseiam-se nas duas

únicas fontes que, independentemente do nível de fiabilidade, descrevem as suas

características. A primeira é da autoria de António Teixeira de Macedo e, dado o nível

de descrição, é aqui transcrita na íntegra:

ORGÃO APERFEIÇOADO

Em 1850 o Reverendo Joaquim Silvestre Serrão, natural de Setubal tentou nesta

ilha alguns melhoramentos no mechanismo dos orgãos. Este profundo

compositor sagrado, e distincto organista, fez naquela epocha construir um

órgão de calibre 12, aberto, com grande prespectiva em grupos, batarias

dobradas; columnatas; ornatos etc. como se deparam em quasi todos deste

calibre, e dahi para cima. O plano, desta obra devido ao talento do Sr. Serrão,

foi plenamente executado pelo mestre João Nicoláo, desta cidade.

Tem este orgão 22 registos de mão; onze por cada lado; porem como 3 servem a

duas vozes de timbre, devem reputar-se 25, os quaes, quasi todos, são de

mechanismo dobrado, porque vão também a pedaes geraes, contendo quasi mil

vozes distribuídas pelos jogos seguintes.

253 Cf. Teófilo de Braga, “Joaquim Silvestre Serrão e a Música Religiosa em Portugal”, Arte Musical

(separata), Lisboa, Typographia do Annuario Commercial, 1906, p. 35. Uma notícia no período O

Angrense, em 25 de Janeiro 1855, informa da partida de Serrão para S. Miguel, “onde reside, distincto

organista, e organeiro e autor do novo órgão da sé desta cidade.” Segundo uma cronologia imprensa sob o

título “Algumas datas significativas da Sé de Angra”, exposta numa das salas da catedral, o órgão foi

inaugurado em 1854. Não foram localizadas informações sobre os procedimentos contratuais. 254 P-AN, Cartório da Mitra de Angra, Casa Forte, Livro n.º 40 (1853-1872), fl. 15 (1872): referência a

dois órgãos, um grande e outro pequeno. Também o padre Manuel d’Azevedo da Cunha identifica-o

como “pequeno”. Cf. op.cit., p. 272. 255 Cf. P-AN, Cartório da Mitra de Angra, Casa Forte, Livro n.º 65, Contas e despesas Sé 1864, fl. 15. Na

mesma fonte (fl. 15 v.) lê-se: “Ao pintor Marcellino Ivo Per.ª pr. Conta da pintura do orgão, mais 4$800”. 256 Cf. AIMPD, Ordem de Pagamentos da Confraria do Santíssimo Sacramento, mç. 2, documento

avulso onde se regista a quantia de 81.520 réis para a referida despesa, a qual parece exorbitante face ao

custo da construção do instrumento (ver cap. II).

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Quatro flautados na esquerda, e três na direita: três jogos de palhetarias na

esquerda, e três na direita: seis registos de cheios de cada lado: cinco pedaes

geraes para diversos usos, e um para o trémulo.

Apresenta este magnifico instrumento as inovações, e singularidades que

passamos a descrever.

Primeiro. – Um registo que, com summa facilidade, transporta a musica meio

ponto, e um ponto para cima, e o mesmo para baixo; podendo fazer diferença de

dous pontos. Esta notavel invenção consiste em um jogo dobrado, e fixo que

prende nas varetas da reducção, ficando o próprio teclado livre, para se mover

por meio de uma manivella.

Se outras bellezas não se admirassem no grandioso instrumento, de que nos

occupamos, bastaria só a invenção do transporte, para o tornar digno de singular

mensão, e para dar a seu autor a maior e mais bem merecida nomeada.

Segundo. – Um teclado de cinco oitavas completas, que, á maneira do pianos

verticaes, sahe á frente, ficando assim mais elegante, e commodo para tocador e

vozes.

Terceiro. – Doze pedaes, ou tastos para notas sustentadas, que ferem a primeira

oitava do orgão, podendo o organista fazer o baixo fundamental com os pés,

ficando dest’arte as mãos livres para o resto do teclado, de que se póde tirar não

pequeno partido. Consta-nos haverem orgãos em paizes estrangeiros com este

recurso, mas em Portugal não temos noticia de nenhum.

Quarto. – Toda a canaria de pau contendo, como já asseveramos, perto de mil

canudos, ou vozes. Advirta-se porem que constumando ter os orgãos alguns

flautados de pau, especialmente na esquerda, pôde o Sr. Serrão conseguir outro

tanto em quanto á direita.

Mais algumas inovações existem, em quanto aos cheios, que, por brevidade,

ommittimos, e que melhor se farão sensiveis ao homem intelligente, que as

examinar no instrumento.

Quem prestar verdadeiro valor a estes trabalhos, facilmente acreditará nos

muitos estorvos e dificuldades com que teve de luctar o autor, achando-se numa

terra onde tão escassos são os recursos, para levar a cabo a empreza que se

propoz, para provar que, bastará dizer-se que o mestre executor da obra, unico

que lhe poz mão, não obstante ser habil no seu officio, no que praticava era

inteiramente hóspede, pois nem sequer havia ainda aberto um orgão.

Se este orgão não excede os do seu calibre, e melhores da ilha em poder de

canaria, força de vozes metalicas, e em riqueza de ornatos, excede-os, sem

duvida, na doçura, e sonoridade de suas vozes, nos recursos, e invenções acima

designadas, e muito mais no diminuto do seu preço, estipulado em muito menos

de metade do valor em que teem importando os iguaes em calibre, e ainda

outros menores, que existem nesta ilha. 257

À parte o nível de precisão, reconhecem-se características da organaria

portuguesa, nomeadamente a existência de meios registos e registos inteiros (à

semelhança da concepção de Peres Fontanes), uma estrutura fónica baseada em registos

257 António Teixeira de Macedo, Breve Memoria sobre o Estado da Agricultura, Commercio e Industria

do Districto de Ponta Delgada offerecida Ao Exm.o Sr. Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello,

Ministro e Secretário d’Estado das Obras Publicas Commercio e Industria, Ponta Delgada, 1853, pp. 26 e

27.

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simples, compostos e de palhetas, pedais anuladores, e ainda uma pedaleira com doze

notas acopladas à primeira oitava do teclado, uma particularidade visível também no

órgão de Peres Fontanes da Igreja de S. José em Ponta Delgada, um instrumento

familiar a Silvestre Serrão (vide cap. V). Paralelamente, evidenciam-se inovações que

Silvestre Serrão entendeu integrar possivelmente para facilitar a execução das suas

próprias composições, como o sistema de transposição, e a ampliação do âmbito do

teclado.258

A segunda fonte que fornece dados sobre o órgão de Silvestre Serrão para a Sé

de Angra é da autoria de um estrangeiro (não identificado) que visitou os órgãos da Sé

em 1959, e apresenta uma descrição sucinta que não fornece muito mais indicações

morfológicas do que a anterior:

Contrary to Cerveira’s tradition, front of this “orgão pequeno”, as the people of

Angra call it, is filled with square wooden pipes, arranged in even flat surface,

although painted faces on each pipe seem to be a bold copy of Cerveira. “En

chamade” pipes are in double row and parallel to each other. The build-in

manual has the compass of 6 octaves, stops knobs are again placed on both

sides of the music rack and the accompanying pictures show well the

arrangement as well as the interesting pedalboard. Compass of the pedalboard

extends to 12 tones, unusual is the arrangement added to the lowest pedal:

something of a set screw, probably used to keep the pedal down while both feet

could be used for playing other pedal or operating “stirrup” couplers. These

couplers are more numerous than in Cerveira’s great organ, two of them work

vertically. 259

Deste texto sobressaem dois aspectos interessantes, ambos aparentemente pouco

fidedignos. Um deles tem a ver com a extensão de seis oitavas no teclado, o que se

258 Como se verá no capítulo dedicado ao repertório, as composições sacras de Silvestre Serrão não

ultrapassam o g’’’, pelo que a referência a cinco oitavas deve ser interpretada com reserva. Também com

base nas obras de Serrão, o pedal de trémulo mencionado na descrição deverá corresponder ao pedal de

tambores, outra característica muito presente nos órgãos de Peres Fontanes e Machado e Cerveira. 259 Cf. “Organs of two Islands”, p. 505. Tradução da autora: “Contrariamente à tradição de Cerveira, a

fachada deste “órgão pequeno”, como as pessoas de Angra lhe chamam, é composta por tubos de madeira

de secção quadrada, dispostos numa superfície plana, embora as caras pintadas em cada tubo pareçam ser

uma cópia atrevida do Cerveira. Há duas filas de tubos “en chamade” paralelas entre si. O teclado

integrado tem extensão de 6 oitavas. Os manípulos dos registos estão situados em ambos os lados da

estante e as imagens anexas mostram bem esse arranjo assim como a interessante pedaleira. A extensão

do pedal estende-se a 12 notas. Invulgar é o dispositivo adicionado ao pedal mais grave: alguma coisa

como um parafuso, provavelmente usado para manter o pedal em baixo enquanto ambos os pés podiam

ser usados para tocar outros pedais ou operar os acoplamentos em “estribo”. Estes acoplamentos são mais

numerosos do que no órgão grande de Cerveira, dois deles funcionam verticalmente.”

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afigura pouco provável tendo em conta que o órgão da Igreja de S. Pedro em Ponta

Delgada, construído quatro anos depois pela mesma dupla de organeiros (Silvestre

Serrão e João Nicolau Ferreira), apresenta uma extensão mais reduzida (cinquenta e seis

notas). O outro aspecto está relacionado com o material e configuração dos tubos da

fachada. A partir da única reprodução do órgão que se conhece, verifica-se

efectivamente a presença de caras pintadas nas bocas dos tubos de metal.

Fig. 3.3

Órgão da Sé de Angra260

Joaquim Silvestre Serrão / João Nicolau Ferreira, 1854

Por intermédio do protector de Silvestre Serrão na ilha de S. Miguel, o 1.º

Visconde da Praia – Duarte Borges de Medeiros Dias da Câmara (1799-1872),261 Serrão

260 Reprodução extraída do livro de Valdemar Mota, Santa Sé do Salvador – Igreja Catedral dos Açores,

Sé de Angra, Angra do Heroísmo, 2007, p. 39. 261 Teófilo de Braga descreve o seguinte: “Ainda conheci mestre Nicoláu, com a sua grande officina de

marcenaria; tinha aprendido na officina de mestre Kines, marceneiro holandez eximio, que o Visconde da

Praia trouxera para a ilha de S. Miguel, e occupara nos trabalhos do seu mobiliario. Mestre Kines levou a

um alto gráo de perfeição a marcenaria em Ponta Delgada, creando eximios officiaes que se

estabeleceram, como este mestre Nicoláu, Hortas, e alguns mais.” Cf. op.cit., p. 36, nota 1. Através dessa

afirmação e ainda de uma peça a dois pianos, composta por Serrão, e dedicada ao Visconde e Viscondessa

da Praia, cuja cópia impressa se encontra no Arquivo Paroquial da Igreja Matriz de Ponta Delgada,

confirma-se a ligação de João Nicolau Ferreira ao Visconde da Praia e não ao Barão da Fonte Bela, tal

como referem Dinarte Machado e Gerhard Doderer no Inventário dos Órgãos Açores, p. 18. Sendo

comum encontrar na bibliografia sobre Serrão a referência ao Visconde da Praia, e, tendo em conta o

tempo de vida do 1.º Visconde, Duarte Borges da Câmara e Medeiros (1799-1872), e do 2.º, António

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conheceu um carpinteiro que o auxiliou na construção dos órgãos, tornando-se depois

construtor independente: João Nicolau Ferreira (1820-1878).262 A sua identificação

consta em seis instrumentos (Tabela 3.1). O facto de ter numerado com o n.º 2 o

primeiro instrumento que se conhece com a sua assinatura (Igreja de S. Pedro em Ponta

Delgada) corrobora a colaboração no órgão da Sé de Angra e sugere a vontade de

Silvestre Serrão em omitir a sua própria identificação, que não consta em nenhum

instrumento.263

Número Igreja Data Extensão Palhetas Corneta Voz

humana

[1] Sé (AH – TER) 1854 C-g’’’ • • •

2 São Pedro (PD – SM) 1858 C-g’’’ • •

3 Santa Luzia

(Feteiras – SM)

1860 C-g’’’ •

4 Convento S. Francisco (RG –

SM)

1863 C-g’’’ •

5 ?

6 ?

7 N.ª Sr.ª das Vitórias (Vila

do Porto – S. Maria)

1867 C-g’’’

8 Santo António

(Capelas – SM)

1875 C-g’’’

9 N.ª Sr.ª da Ajuda (Bretanha –

SM)

1877 C-g’’’

Tabela 3.1 – Órgãos de Silvestre Serrão / João Nicolau Ferreira

Em acta de 18 de Fevereiro de 1863, a assembleia da Santa Casa da Misericórdia

da Ribeira Grande (S. Miguel), proprietária da Igreja do Convento de S. Francisco na

mesma cidade, delibera pagar metade das despesas necessárias à consolidação da

estrutura do coro alto para acolher o órgão (n.º 4) que estava em construção, sendo que a

outra metade ficaria a cargo da Ordem Terceira.264 De facto, o periódico A Estrella

Borges de Medeiros (1829-1913), seu filho, a ligação de Serrão terá sido certamente com o 1.º Visconde,

embora a faceta mecenática seja igualmente reconhecida ao filho. 262 P-PD, Registo de Óbitos de 1878 – Matriz de Ponta Delgada, assento nº 67, fls. 24 v. e 25. A profissão

registada na certidão é de carpinteiro. 263 Manuel d’Azevedo da Cunha também afirma a colaboração de João Nicolau Ferreira na construção do

órgão da Sé. Cf. op.cit., pp. 293 e 294. 264 Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Ribeira Grande (ASCMRG), Livro de Acordãos da Mesa

1863-1867, n.º de inventário 02G-294, fl. 88. Noutra ata, de 28 de Maio de 1863 (fl. 96), a mesa da

Irmandade delibera o pagamento de 30 mil réis a José Venâncio da Costa pela madeira de pinho para o

coro da igreja, a fim de ser colocado o órgão da Irmandade Terceira. A consulta deste arquivo, efectuada

no ano de 2011, foi-me gentilmente autorizada pelo então Provedor da Santa Casa da Misericórdia da

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Oriental, em notícia de 25 de Janeiro de 1863 refere: “A imagem do Senhor Sancto

Christo dos milagres tem sahido a tirar esmola para a compra de um orgão”, e descreve

os donativos angariados desde Dezembro de 1862, quer por particulares quer pela venda

de géneros oferecidos. Além disso, informa que o custo da construção do órgão

ascenderia a 700$000 réis.265 No entanto, não há referência ao nome do construtor nem

foi encontrada documentação contratual. O mesmo sucede, de resto, com todos os

outros instrumento, à excepção do n.º 8, para a paróquia de Santo António (Capelas). Na

deliberação da Junta dessa paróquia, em 1874, lê-se que a respectiva igreja tinha

necessidade de um órgão para as solenidades do culto divino, tendo sido adjudicada a

construção a João Nicolau Ferreira. Nessa mesma deliberação consta a entrega de um

órgão “velho arruinado” em troca de outro novo, por 550$ réis.266 Não obstante a

menção a um contrato, este não foi localizado.

Embora seja difícil determinar quais os órgãos construídos em parceria com

Joaquim Silvestre Serrão e quais os da exclusiva responsabilidade de João Nicolau

Ferreira,267 uma análise aos planos fónicos dos instrumentos evidencia o seguinte

(Tabela 3.1): a partir do n.º 2, inclusive, deixa de existir o registo de Voz humana; a

partir do n.º 3, década de 1860, não existe qualquer tipo de registo de palheta; o registo

de Corneta é excluído a partir do órgão n.º 7, na segunda metade da década de sessenta;

os três instrumentos dessa década são integralmente construídos com tubos de madeira.

Dado o estado de saúde de Silvestre Serrão a partir de 1866,268 depreende-se que

os instrumentos n.os 7, 8 e 9 tenham sido da exclusiva responsabilidade de João Nicolau

Ribeira Grande, João Cabral de Melo. O órgão de S. Francisco encontra-se presentemente em fase de

restauro, a cargo da empresa Dinarte Machado – Atelier Português de Organaria Lda, e, tal como o órgão

n.º 7 (Igreja de N.ª Sr.ª das Vitórias), foi adquirido pela Ordem Terceira, a qual, após a extinção dos

conventos masculinos, assumiu a administração de algumas igrejas. No rol de bens móveis e imóveis do

extinto Convento de Nossa Senhora da Vitória, em Santa Maria, datado de 1835, não existe órgão. Cf.

Arquivo dos Açores, vol. XV, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1983, p. 108. 265 A Estrella Oriental, 25 de Janeiro de 1863, n.º 345, ano VI. 266 P-PD, Governo Civil de Ponta Delgada, Lv. 558, Registo de Alvarás, fls. 56 e 56 v. Não foi possível

verificar a presença de tubos antigos porque o instrumento encontra-se encaixotado. No entanto, a

reutilização de tubos antigos é visível no órgão n.º 9 (N.ª Sr.ª da Ajuda – Bretanha), como se verá no

capítulo seguinte. 267 Segundo as informações de Teófilo de Braga, op. cit., p. 37, João Nicolau Ferreira já tinha construído

quatro órgãos em 1862, sendo que o Inventário dos Órgãos dos Açores indica três, todos em S. Miguel:

n.º 2, 1858 – Igreja de S. Pedro (Ponta Delgada); n.º 3, 1860 – Igreja de Santa Luzia (Feteiras); n.º 4,

1863 – Convento de São Francisco (Ribeira Grande). 268 Não obstante Ernesto Vieira referir o ano de 1868 (cf. op. cit., vol. II, Lisboa, Lambertini, 1900, p.

293) um periódico local anuncia, em 1866, que Silvestre Serrão se encontra doente. Cf. A Aurora dos

Açores, 10 de Março de 1866, ano 11, n.º 667.

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Ferreira. Considerando ainda o tipo de caixa, a composição fónica e o material dos

tubos (integralmente de madeira) dos instrumentos da década de sessenta, é igualmente

plausível que os órgãos n.os 3 e 4 também não tenham tido a colaboração de Serrão.

Assim, a parceria com Silvestre Serrão recai sobretudo nos dois primeiros instrumentos,

na década de cinquenta (Sé de Angra e S. Pedro de Ponta Delgada).

A numeração dos instrumentos sobreviventes revela a construção de outros dois

órgãos actualmente desconhecidos – números 5 e 6 – dos quais não restam vestígios

nem indicações sobre as igrejas onde foram instalados. Porém, atendendo a que a área

de acção de João Nicolau Ferreira se concentrou nas ilhas do grupo oriental, deduz-se

que aqueles instrumentos tenham sido construídos para as igrejas micaelenses ou

marienses.

Os instrumentos de João Nicolau Ferreira reflectem a tendência da organaria

insular nas décadas de 60 e 70: someiro duplo – principal e secundário – com o

respectivo sistema de pedais para anular o cheio, divisão do teclado entre o Dó e Dó#

centrais e a presença de meios registos, gradual exclusão do plano fónico dos registos de

palheta e dos registos solistas da mão direita Voz humana e Corneta, fixação da

extensão do teclado em cinquenta e seis notas (C-g’’’).

III. 3 Tomé Gregório de Lacerda

A ilha de S. Jorge,269 integrada no chamado triângulo do grupo central do

arquipélago, foi a que acolheu maior diversidade de construtores: Peres Fontanes,

Machado e Cerveira, Gomes de Lemos, Tomé Gregório de Lacerda, Marcelino de Lima

e Manuel Serpa da Silva. Pelas razões já apresentadas anteriormente, os dois últimos

construtores não são aqui contemplados.

269 Esta ilha gozou de particular prosperidade económica entre o final do século XVIII e início do século

XIX graças à exportação do vinho. Ver Paulo Silveira e Sousa, “As elites insulares”, in História dos

Açores..., vol. I, p. 609.

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Tomé Gregório de Lacerda (1832-1876) nasceu na freguesia de S. Tiago de

Ribeira Seca – Calheta, na ilha de S. Jorge, sendo tio do pianista e compositor Francisco

de Lacerda.270 Segundo as informações disponíveis, construiu os seguintes

instrumentos:271 o primeiro para a Igreja da Ribeira Seca (S. Jorge), em 1854/55,272 no

valor de 600 mil réis, o segundo para a Igreja da Calheta do Nesquim (Pico) em 1859, o

terceiro para a Igreja Matriz das Velas (S. Jorge), em 1865, e por último, em 1874 para

a Igreja de Nossa Senhora da Piedade nas Lajes do Pico (ou para a Igreja da Ponta dos

Rosais em S. Jorge).273 Desses, sobrevive apenas o órgão da Igreja Matriz das Velas.

Embora só tenha chegado ao presente este único instrumento, por sinal alvo de

profundas modificações sobre as quais se falará no capítulo seguinte, importa sublinhar

o contributo de Gregório de Lacerda na medida em que efectivamente incorpora

elementos da organaria portuguesa do final do século XVIII. Segundo Manuel

d’Azevedo da Cunha (1861-1937), nas suas Notas Históricas – Calheta de S. Jorge

(Açores), Gregório de Lacerda contactou directamente com Silvestre Serrão em S.

Miguel antes de 1859.274

270 Ver http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/FAL-HT-CONCEICAO-O-1875-1886/FAL-

HT-CONCEICAO-O-1875-1886_item1/P28.html, assento n.º 35, fl. 27 e 28 v. (última consulta em 26 de

Março de 2014). O parentesco com Francisco de Lacerda é mencionado pelo padre Manuel Garcia da

Silveira na brochura que acompanhou o concerto inaugural do restauro do órgão da Matriz das Velas, em

1994: “O Orgão Histórico de tubos da Matriz de S. Jorge em Velas, foi construído nesta ilha por um

ilustre jorgense, no ano de 1865, de nome Tomé Gregório de Lacerda, tio do maestro e compositor,

Francisco de Lacerda, figura que tanto honrou Portugal e os Açores, por terras eruditas da Europa, no

campo musical.” 271 Cf. Azevedo da Cunha, op. cit., pp. 272 e 273. Considere-se também um documento manuscrito avulso

encontrado no arquivo histórico da Igreja Matriz das Velas de S. Jorge, com informações extraídas dos

apontamentos de João Caetano de Sousa e Lacerda, pai de Francisco de Lacerda. Há uma compilação da

correspondência entre João Caetano de Sousa e Lacerda e o filho Francisco de Lacerda, entre os últimos

anos do século XIX e os primeiros do século XX, que retrata em traços gerais a vivência musical sacra da

zona da Calheta, na ilha de S. Jorge. Ver João Caetano de Sousa e Lacerda, Cartas a Francisco de

Lacerda, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1988. 272 Azevedo da Cunha afirma que este instrumento ficou na posse de Manuel Serpa da Silva em troca de

um novo instrumento por ele construído em 1892, para a mesma igreja. Cf. op. cit., p. 461. 273 Segundo D. Machado e G. Doderer, op. cit. p. 99. 274 Cf. op. cit., p. 272.

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III. 4 Nicolau António Ferreira

Após a morte de Silvestre Serrão, em 1877, e de João Nicolau Ferreira, no ano

de 1878, viveu-se o período menos fértil da construção de órgãos nos Açores segundo a

tradição de Peres Fontanes e Machado e Cerveira, o qual só viria a reactivar-se, embora

de forma gradual e muito menos intensa, a partir de 1884, com a construção de um

órgão para a Igreja de S. João Baptista, na freguesia de S. João na ilha do Pico, único

instrumento que se conhece de Nicolau António Ferreira.

A utilização do mesmo apelido sugere tratar-se de um filho de João Nicolau

Ferreira.275 De facto, a certidão de óbito de João Nicolau Ferreira indica dois

descendentes mas não os identifica. No entanto, Manuel d’Azevedo, contemporâneo do

órgão de S. João, assinala a existência de um grau de parentesco, mas não confirma a

relação pai/filho: “Havia em Ponta Delgada pessoa muito habil para a construção de tal

instrumento, por aparentada com um artista de merecimento, o mestre João Nicolau, que

dirigido pelo maestro Serrão, construira o orgam oferecido por este á Sé d’Angra

(...)”.276 Nos registos paroquiais das ilhas de S. Miguel e do Pico foi encontrado um

assento de baptismo de 1862, na paróquia de S. José (Ponta Delgada), apenas com o

nome de Nicolau, filho de José Cordeiro, marceneiro, sendo seu padrinho João Nicolau

Ferreira.277

Independentemente do grau de parentesco, o facto é que não foram localizados

indícios ou vestígios da actividade de Nicolau António Ferreira, surgindo três hipóteses

para justificar a simbólica produção: não ter querido adoptar a organaria como ofício,

ter embarcado nas rotas emigratórias dos açorianos de então, nomeadamente para a

América, ou ter falecido precocemente.

275 Esta hipótese é apresentada no Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 18. 276 Cf. op. cit., pp. 293 e 294. O referido instrumento era para a ermida de Nossa Senhora do Socorro

(Biscoitos – S. Jorge), e o processo ocorreu em 1889, sob os esforços do próprio Azevedo da Cunha,

então pároco da referida ermida. O mesmo autor acrescenta que o convite formulado ao tal construtor

aparentado com João Nicolau foi negado. Note-se que, em S. Miguel, existiria ainda Manuel de Sousa,

autor dos órgãos das igrejas de S. Pedro de Vila Franca do Campo e Santa Cruz, em 1891 e 1892,

respectivamente, mas a inexistência de qualquer indício de relações familiares com este último descarta a

hipótese de ser o organeiro da referida encomenda. 277 http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/SMG-PD-SAOJOSE-B-1860-1864/SMG-PD-

SAOJOSE-B-1860-1864_item1/P134.html

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Precisamente pela exígua produção, não deixa de ser surpreendente a concepção

do órgão da Igreja de S. João do Pico, a qual denota uma grande proximidade com a

organaria portuguesa tardo-setecentista, desde logo a combinação das palhetas Fagote e

Clarim, numa posição familiar a Machado e Cerveira, além da terminologia,

composição dos registos compostos e plano fónico.

A singularidade daquele instrumento reside ainda na sua aparência, por sinal

muito diferente do habitual até então, desconhecendo-se, por ora, se corresponde à

pintura original ou se resulta de uma das modas de restauro que se disseminou nas

igrejas de algumas ilhas no decorrer do século XX, e que se caracterizava pela

sobrecarga de cor. Apresenta uma caixa pintada de branco, com madeira escura somente

na consola. Faz ainda uso dos dourados e explora sobretudo os tons de azul (ver cap.

IV).

III. 5 Francisco Botelho de Medeiros

De acordo com as informações do Inventário dos Órgãos dos Açores, Francisco

Botelho de Medeiros278 é o autor do órgão da Igreja de S. Miguel da freguesia dos

Mosteiros, concelho de Ponta Delgada, construído em 1890, e que se encontra

actualmente desmontado. Aquela mesma fonte apresenta uma fotografia do instrumento

ainda no coro alto da referida igreja, tratando-se de um órgão de armário de pequenas

dimensões, com dez meios registos e um teclado com cinquenta e seis teclas (C-g’’’),

com pedal anulador de cheios. O plano fónico afigura-se inconsistente e ímpar no

contexto regional, evidenciando a falta de conhecimentos que o construtor teria na área.

Apesar dessa interpretação, interessa sinalizar mais esse construtor, com perfil

278 Cf. op. cit., pp. 73 e 74. Foi localizada uma certidão de nascimento que reúne elementos razoáveis para

se tratar do registo de Francisco Botelho de Medeiros: nasceu na vila das Capelas, em 23 de Setembro de

1845, sendo filho de João Jacinto Botelho, oficial de carpintaria, e de Maria Izabel, neto paterno de

António Botelho e de Mariana dos Anjos e materno de José de Medeiros e de Maria Ricarda. Cf.

http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/SMG-PD-CAPELAS-B-1841-1847/SMG-PD-

CAPELAS-B-1841-1847_item1/P177.html.

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aparentemente similar a outros, ainda desconhecidos, mas cuja acção traduz a dinâmica

em torno dos órgãos no término do século XIX.

III. 6 Manuel de Sousa

No decorrer deste trabalho de investigação detectou-se que a autoria do órgão da

Igreja Matriz de Santa Cruz de Lagoa (1894), na ilha de S. Miguel, atribuída no

Inventário dos Órgãos dos Açores a João Nicolau Ferreira, era uma inconsistência, uma

vez que aquele construtor falecera em 1878.279 Quer esse instrumento, quer o da Igreja

de S. Pedro em Vila Franca do Campo, não têm identificação de autoria nem data, e as

respectivas igrejas não possuem fontes documentais contemporâneas dos órgãos. Além

disso, a distribuição dos tubos no someiro, bem como alguns elementos do plano fónico,

são diferentes entre si, embora consubstanciados no paradigma de construção

portuguesa tardo-setecentista. Por sua vez, o facto de ambos os órgãos possuírem o

mesmo sistema de produção de vento (foles) – igual ao do órgão alemão adquirido para

a Igreja do Rosário,280 sita à Lagoa, construído pela empresa alemã Walker & Cia, op.

481, em 1886,281 – indiciava terem sido construídos depois de 1886 ou, pelo menos,

terem sofrido alterações após essa data.

Em Dezembro de 1891, a imprensa periódica local dá notícia de um novo órgão

para a Igreja de S. Pedro de Vila Franca do Campo, sem, no entanto, mencionar o nome

279 Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, pp. 45 e 49. 280 Idem. 281 Há notícia da sua chegada a S. Miguel no Diário dos Açores de 15 de Janeiro de 1887, onde se lê que

o instrumento foi encomendado por Abraham Bensliman, um comerciante judeu estabelecido em Ponta

Delgada que, segundo Fátima Sequeira Dias, se agregou à conhecida família Bensaúde através do

consórcio.. Cf. Inácio Steinhardt “O último judeu nos Açores” in WebMosaica Revista do Instituto

Cultural Judaico Marc Chagall, vol. 5, n.º 1, Jan.-Jun. 2013, pp. 110. a 121. O órgão da Igreja do Rosário

da Lagoa não consta da lista da empresa Walker & Cia por ser um instrumento de pequenas dimensões.

No contexto açoriano é o primeiro instrumento de factura alemã com um teclado manual (com cinquenta

e quatro notas) e uma pedaleira (C-d’), seis registos manuais, entre os quais quatro de 8’, e dois de pedal,

incluindo um de 16’, e dois acoplamentos. Tem ainda outro elemento pouco comum na produção da

empresa: a colocação da consola na lateral do instrumento.

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do construtor.282 No ano seguinte, a imprensa avança o nome de Manuel de Sousa como

sendo o construtor do novo órgão para a Igreja Matriz de Santa Cruz da Lagoa: “Está

sendo construído pelo Sr. Manuel de Souza, na egreja da Graça, d’esta cidade, um orgão

com destino a uma das egrejas da villa da lagoa. (...)”.283 Este instrumento foi ouvido

pela primeira vez em Setembro de 1892, por ocasião da festividade de Nossa Senhora

do Rosário, que ali se celebrava.284 A confirmação da autoria de Manuel de Sousa no

órgão da Igreja de S. Pedro de Vila Franca do Campo é obtida apenas em 1892,

curiosamente através da referência ao novo órgão para a Igreja Matriz de Santa Cruz da

Lagoa:

O habil organeiro michaelense, Sr. Manuel de Souza, que ha tempos fez um

orgão para a egreja de S. Pedro, de Villa Franca, acaba de construir outro para a

egreja de Santa Cruz, da Lagoa, que, segundo nos informam, é um dos melhores

que actualmente ficam existindo n’esta ilha.285

Confirma-se, assim, a autoria dos referidos instrumentos e a presença de mais

um construtor local, do qual só se conhecem esses dois exemplares. Manuel de Sousa

(1820 – 1893),286 de profissão marceneiro, era casado e natural da freguesia de S. Pedro

em Ponta Delgada, onde inclusivamente teria a sua oficina, no extinto Convento da

Graça, actual Academia das Artes. Sublinhe-se que João Nicolau Ferreira também

nasceu em 1820 e que o órgão da Igreja de S. Pedro em Ponta Delgada, freguesia onde

residia Manuel de Sousa, foi por ele construído em 1858. Além disso, o facto de um e

outro serem naturais de freguesias geograficamente contíguas, com profissões

artesanais, leva a crer que se tenham relacionado, e dada a idade avançada de Manuel de

Sousa quando fez os órgãos de S. Pedro da Vila Franca e Santa Cruz da Lagoa (71 e 72

anos, respectivamente), é muito provável que tenha contactado com o ofício antes de

1891, eventualmente como ajudante de João Nicolau Ferreira.

282 A Liberdade, de 5 de Dezembro de 1891, N.º 684, ano 13 e Diário dos Açores, 2 de Dezembro de

1891, n.º 270. 283 O Açoriano Oriental, 23 de Julho de 1892, n.º 2987, ano 58. 284 Cf. Diário dos Açores, 21 de Setembro de 1892, n.º 496, ano 22. 285 Diário dos Açores, 14 de Setembro de 1892, n.º 490, ano 22. 286 Cf. http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/SMG-PD-SAOPEDRO-O-1890-1899/SMG-

PD-SAOPEDRO-O-1890-1899_item1/P179.html.

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IV. Os instrumentos e as suas características

Em Portugal, os estudos dedicados à análise técnica dos órgãos históricos

portugueses de finais de setecentos e de oitocentos representam uma exígua parcela da

bibliografia organística. Registam-se os contributos de Gerhard Doderer, João Vaz,

Marco Brescia, João Paulo Janeiro, e, especificamente sobre os órgãos dos Açores, os

trabalhos de David Cranmer, Dinarte Machado, Gerhard Doderer e José Nelson

Cordeniz. O já mencionado Inventário dos Órgãos dos Açores destaca-se como o

trabalho mais completo no que concerne a questões técnicas, no qual se expõem os

planos fónicos com a respectiva composição dos registos compostos.

A idiossincrasia do património dos órgãos históricos portugueses dos Açores

reside na similaridade da concepção estética e sonora entre os exemplares importados de

Lisboa (1788-1831, correspondentes à segunda fase da história do órgãos nos Açores)287

– da autoria de Peres Fontanes e de Machado e Cerveira – e os instrumentos construídos

após a secularização (1848-1892, correspondentes à terceira fase). No presente capítulo

procura-se demonstrar aquela similaridade através da análise de aspectos visuais

(dimensão e tipos de caixa), e de aspectos técnicos relativos à concepção sonora de uma

amostra de instrumentos.

Por uma questão de coerência com a tipologia dos órgãos em estudo, a

referência directa aos registos (com a respectiva altura) utilizará a nomenclatura

original, excepto quando mencionados num contexto abstracto, onde se adoptará a

nomenclatura europeia, quer para a designação quer para a altura (ex. Flautado de 12

aberto = Principal de oito pés [8’]).

287 Essa similaridade já tinha sido notada por David Cranmer, quando contactou pela primeira vez com os

órgãos dos Açores, na década de oitenta do século XX. Cf. “Some organs of the Azores”, in Actas do IV

Encontro Nacional de Musicologia, Boletim 52, Associação Portuguesa de Educação Musical,

Janeiro/Março 1987, p. 88.

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IV.1 Dimensão

Ao observar os órgãos históricos portugueses da segunda e terceira fases da

história do órgão nos Açores, distinguem-se três dimensões: grande, média e pequena.

No entanto, até ao presente, essas dimensões não se encontram sistematizadas, na

medida em que não foram definidas segundo critérios organológicos inerentes à

tipologia dos instrumentos. Essa sistematização encerra uma importância bilateral: por

um lado, a confrontação das características da organaria portuguesa tardo-setecentista

com a organaria espanhola contemporânea partindo da obra do frade espanhol Pablo

Nassarre intitulada Escuela Musica segun la practica moderna288 – uma das obras de

referência no que diz respeito à classificação dos órgãos nos séculos XVII e início de

XVIII no espaço ibérico – e, por outro, as ilações que podem advir dessa classificação

no que respeita à relação entre dimensão do instrumento e a categoria da igreja que o

encomenda.

Na referida obra de Pablo Nassarre estabelecem-se quatro espécies (categorias)

definidas a partir do tubo de Flautado mais grave sobre o qual se processa a intonação

do instrumento:289

1ª) 26 palmos (24 palmos em Portugal);

2ª) 13 palmos (12 palmos em Portugal);

3ª) 6,5 palmos (6 palmos em Portugal);

288 Zaragoza, Herderos de Diego de Larumbe, 1724, vol. I, pp. 481-488. 289 Cf. pp. 481, 482, 483: “(...) Son de quatro especies distintas los que ay en magnitude; unos son de

entonacion de veinte y seis palmos, que llaman sus Artifices; outros de treze; outros de seis y medio; y

outros Portatiles. Llaman de entonacion de veinte y seis palmos à los mayores, porque tiene esta medida

el caño, ò flauta mayor del registro principal, que se llama flautado; y de treze, porque es esta la medida

de la flauta mayor de los de la segunda especie. Los de la tercera especie, tiene la mayor seis y medio. Y

aunque los Portatiles, que son de la quarta especie, està el tono en proporcion igual con los de la tercera,

pero se distingue en no tener tanto de longitud el flautado, por ser tapado, pues toda flauta tapada (como

dirè adelante) à menos longitud, tiene el tono mas baxo. (...)” Tradução da autora: “São de quatro

espécies distintas os que há, em dimensão: uns são de afinação de vinte e seis palmos, como chamam os

artífices, outros de treze, outros de seis e meio e outros portáteis. Chamam de afinação de vinte e seis

palmos aos maiores porque tem esta medida o tubo, ou flauta, maior do registo principal, que se chama

Flautado, e de treze porque esta é a medida da flauta maior dos da segunda espécie. Nos da terceira

espécie tem a maior seis e meio. E ainda nos portativos, que são da quarta espécie, está o tom em

proporção igual com os da terceira, mas distingue-se por o flautado não ter tanto comprimento, por ser

tapado, pois toda a flauta tapada (como direi adiante) com menor comprimento tem o tom mais baixo.”

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4ª) Portativo (mesma proporção sonora dos da 3.ª espécie mas sobre o flautado

tapado).

Com esta classificação os órgãos espanhóis ficavam agrupados em quatro

tamanhos: grande porte (26 palmos), médio, (13 palmos), pequeno (6,5 palmos) e

portativos. No caso dos órgãos portugueses de finais de setecentos e dos órgãos

construídos nos Açores na segunda metade do século XIX essa divisão não é tão linear.

Além da salvaguarda relativamente à diferença temporal entre os órgãos a que se dedica

a obra de Nassarre e os órgãos dos Açores, interessa considerar determinadas

idiossincrasias do órgão espanhol, não presentes nos órgãos aqui em estudo. Desde

logo, o facto de os meios registos terem, normalmente, correspondência entre as duas

mãos, o que não acontece na generalidade dos órgãos portugueses a partir de finais de

setecentos e de oitocentos, nos quais é muito comum encontrar como Flautado mais

grave da mão esquerda um registo de 6 aberto enquanto na mão direita existe um

Flautado de 12 aberto. Na Península Ibérica, à época a que se reporta Nassarre, todo o

complexo sonoro do instrumento era pensado a partir do tubo Flautado mais grave, pelo

que num órgão sustentado na Oitava real não existiam registos daquela família com

intervalos inferiores.290 Consequentemente, a construção dos cheios era normalmente

feita com base na altura do Flautado mais grave, procedimento que volta a não ser linear

nos órgãos portugueses de final do século XVIII, onde a fundamental pressuposta pelos

registos compostos frequentemente não está presente na família dos Flautados. Refira-

290 Refira-se como exemplo o órgão barroco da primeira metade do século XVIII da Igreja Paroquial de S.

João Baptista em Fuendejalon (Zaragoza), construído por Francisco Sesma em 1721. O principal mais

grave da mão esquerda é de 4’, pelo que a construção da mão direita se sustenta também num registo

principal de 4’.

M. E. (C-c’) M. D. (c#’-a’’)

Bajoncillo Clarín

Zímbala Docena

Lleno Lleno

Ventidozena Zímbala

Decisetena Tapadillo

Quincena Decisetena

Decinovena Corneta

Octava Decinovena

Violón Violón

Tapadillo Octava

A disposição aqui apresentada obedece à estrutura da fonte onde foi retirada: Jesus Gonzálo López e

Angela Orleans (coord.), Órganos Historicos Restaurados, Joyas de un patrimonio II, Catálogo,

Zaragoza, Tarazona, Diputación de Zaragoza, Arzobispado de Zaragoza, Arzobispado de Tarazona, 1991,

p. 84.

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se, como exemplo, o meio registo de Corneta do órgão da Igreja do Convento de Santo

André (AXMC, n.º 104, 1828) em Ponta Delgada, no qual algumas notas das duas

primeiras filas são baseadas num Flautado de 24 palmos que não existe no órgão

(Tabela 4.1). Situação idêntica ocorre também nos dois registos compostos da mão

direita no órgão da Igreja de S. João Baptista na ilha do Pico (Tabela 4.2).

Corneta (5v)

c#’ c#’’ c#’’’

8ª ------------------ 5ª----------------Fl.º 12 ab

12ª291 -------------- 8ª --------------- 5ª---------

15ª----------------- 12ª--------------- 8ª --------

17ª----------------- 15ª--------------- 12ª-------

22ª----------------- 17ª--------------- 12ª-------

Compostas de 12.ª e 19.ª (2 v)

c#’ c#’’ c#’’’

12ª------------------ 5ª------------------------

19ª------------------ 12ª----------- 5ª--------

Compostas de 15.ª e 22.ª (2 v)

c#’ c#’’ c#’’’

15ª ----------------- 8ª ----------- 12 ab-----

19ª------------------ 12ª----------- 5ª---------

Tabela 4.1 – Composição do meio registo de

Corneta do órgão do Convento de Santo André

(Ponta Delgada), António Xavier Machado e

Cerveira, n.º 104, 1828

Tabela 4.2 – Composição dos registos

compostos da mão direita do órgão de S.

João Baptista (Pico), Nicolau António

Ferreira, 1884

Independentemente da metodologia de Nassarre se apresentar como um sólido

critério organológico no que concerne à tipologia dos instrumentos ibéricos, não se

adapta ao núcleo dos órgãos históricos dos Açores, justamente pela assimetria entre os

registos de fundo das duas mãos (nomeadamente da família dos flautados ou principais),

cujo tubo mais grave da mão esquerda não define, necessariamente, a altura dos

restantes registos. Cada uma das partes do teclado (inferior e superior) assume-se como

um corpo ou estrutura própria.

Assim, atendendo às especificidades fónicas dos órgãos históricos dos Açores,

considera-se a seguinte possibilidade de classificação, de acordo com o principal mais

grave de ambas as mãos (Tabela 4.3): categoria A (grande) – órgãos com Flautado 12

aberto em toda a extensão do teclado; categoria B (média) – órgãos com Flautado 6

aberto na mão esquerda, tendo, no entanto, um Flautado de 12 tapado, e com Flautado

12 aberto na mão direita; categoria C (pequena) – órgãos com Quinzena na mão

esquerda tendo, também, um Flautado de 12 e 6 tapados, com uma das três

291 No Inventário dos Órgãos dos Açores esse harmónico corresponde à 15.ª Cf. p. 30.

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configurações na mão direita: 1) Quinzena, tendo, também, uma Flauta de 12 e outra de

6 palmos; 2) Oitava Real com Flautado 12 tapado; 3) Flautado 12 aberto.292

Categorias M. E. M. D.

A Flautado 12 aberto Flautado 12 aberto

B Flautado 6 aberto

[Flautado 12 tap.]

Flautado 12 aberto

C Quinzena

[Flautado 12 tap. e 6 tap.]

Flautado 12 aberto

Quinzena [Flauta 12 e Flauta 6 ]

Oitava real [Flautado 12 tap.]

Tabela 4.3 – Sistematização das dimensões dos órgãos históricos dos Açores

A Tabela 4.4 elenca todos os instrumentos históricos portugueses da segunda e

terceira fases com a indicação do registo mais grave (consoante a nomenclatura

adoptada em cada instrumento) de cada uma das mãos e respectiva altura (a abreviatura

“Fl.º” corresponde à família dos Flautados).293

Igreja / Construtor / Ilha N.º meios

registos

Registo mais grave Class.294

M. E M. D.

Convento de S. Francisco, AXMC,

1788 (TER)

22 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 1

Convento de S. Gonçalo, JAPF, 1793

(TER)

22 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 2

S. Bárbara, JAPF, 1793 (TER)a) 23 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 3

S. José, JAPF, 1797 (SM) 26 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 4

Colégio, AXMC, 1798 (TER) 20 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 5

Angústias, AJPF, 1805 (Faial)a) 22 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 6

Matriz de S. Sebastião, AXMC, 1828

(SM)

21 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 7

S. Pedro, JNF, 1858 (PD-SM) 18 Fl.º 12 ab. Fl.º 12 ab. A 8

Santo Antão, JAPF, 1790? (SJ)a) 10 Oitava real295

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 1

Matriz da Praia da Vitória, AXMC,

1793 (TER)

16 Oitava real

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 2

Matriz da Horta, AXMC, 1814 (Faial) 18 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 3

N.ª Sr.ª da Conceição, AXMC, 1815

(TER)

18 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 4

292 A Oitava real ou Quinzena podem surgir como registos simples ou como filas de um registo composto. 293 Dentro desta família serão igualmente incluídos os registos construídos com tubos da família dos

Bordões (tubos tapados). Em Espanha, a família que reúne Flautas e Bordões designa-se Nasardos. 294 Os números que acompanham as letras traduzem a ordem cronológica da construção dos instrumentos

dentro de cada categoria 295 Fila de um registo composto.

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Igreja / Construtor / Ilha N.º meios

registos

Registo mais grave Class.294

M. E M. D.

N.ª Sr.ª da Luz, AXMC, 1826 (SM) 12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 5

Convento de S. André, AXMC, 1828

(SM)

12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 6

Misericórdia, AXMC, 1829 (TER) 12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 7

S. Cruz, AXMC, 1831 (Graciosa) 12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 8

Espírito Santo, SGL, 1848

(Maia-SM)

12 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 9

N.ª Sr.ª da Estrela, SGL, 1855

(RG-SM)

16 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 10

Santa Luzia, JNF, 1860

(Feteiras-SM)a)

15 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 11

Convento de S. Francisco, JNF,1863

(RG-SM)

17 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 12

Matriz de S. Jorge, TGL, 1865

(Velas-SJ)

16 Oitava real

[Fl.º 12 tap]

Oitava real B 13

S. António, JNF,1875 (Capelas-SM)a) 14 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 14

N.ª Sr.ª da Ajuda, JNF, 1877

(Bretanha-SM)

13 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 15

S. João Baptista, NAF, 1884 (Pico) 14 Oitava real

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 16

S. Pedro, MS, 1891 (VFC-SM) 15 Fl.º 6 ab

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 17

Matriz S. Cruz, MS, 1892 (SM) 15 Oitava real

[Fl.º 12 tap]

Fl.º 12 ab. B 18

Matriz de S. Catarina, AXMC, 1790

(Calheta-SJ)

10 Quinzena

[Fl.º 12 tap]

[Fl.º 6 tap]

Oitava

real296

[F.ª 12]

[F.ª 6]

C 1

S. Mateus, AXMC, 1793 (Graciosa) 12 Quinzena

Fl.º 12 ab. C 2

Carmo, JAPF, 1794 (SM) 13 Quinzena

[Fl.º 12 tap]

[Fl.º 6 tap]

Fl.º 12 ab. C 3

Matriz das Lajes, AXMC, 1804 (Pico) 8 Quinzena

[Fl.º 12 tap]

[Fl.º 6 tap]

Fl.º 12 ab. C 4

N.ª Sr.ª da Apresentação, AXMC,

1821 (Capelas-SM)a)

12 Quinzena

[Fl.º 12 tap]

[Fl.º 6 tap]

Fl.º 12 ab. C 5

N.ª Sr.ª das Vitórias, JNF, 1867

(S. Maria)a)

8 Quinzena

[Fl.º 12 tap]

[Fl.º 6 tap]

Fl.º 12 ab. C 6

S. Miguel, FBM, 1890

(Mosteiros –SM)a)

10 Quinzena

[Fl.º 12 tap]

[Fl.º 6 tap]

Quinzena

[Flauta]

[Flautim]

C 7

a) Instrumentos cujos dados foram extraídos exclusivamente do Inventário dos Órgãos dos Açores por se encontrarem

em condições precárias de conservação ou encaixotados.

Tabela 4.4 – Dimensões dos órgãos históricos dos Açores (2.ª e 3.ª fases)

296 Fila de um registo composto.

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O órgão da Igreja de S. Bárbara das Manadas, na ilha de S. Jorge, é excluído da

Tabela 4.4 por não reunir os dados suficientes para a sua classificação, embora

visualmente se apresente com dimensões reduzidas.297

Dos trinta e três instrumentos contemplados na Tabela 4.4 apenas um evidencia

padrões pouco comuns. Trata-se do órgão da Igreja Matriz das Velas (1865) que, apesar

de não cumprir com os critérios relativamente à mão direita, fica assim mesmo

integrado na categoria B pelo facto de possuir um registo de 4’ principal na mão

esquerda (Oitava real).298

Gráfico 4.1 – Distribuição geográfica dos órgãos da 2.ª e 3.ª fases segundo as suas dimensões

De acordo com o Gráfico 4.1, os órgãos de grandes dimensões pertencem

maioritariamente à segunda fase, uma época marcada pela prosperidade económica

resultante dos lucros da exportação da laranja, e localizam-se nos principais pólos

urbanos: Ponta Delgada (S. Miguel), Angra (Terceira) e Horta (Faial). Em

contrapartida, proliferam os instrumentos de médias dimensões na terceira fase, durante

a qual, na década de sessenta, se começam a sentir os efeitos da queda da produção e

297 De acordo com as informações do Inventário dos Órgãos dos Açores (cf. p. 103), este instrumento

apresenta o seguinte plano fónico:

M. E. (C-c’) M. D. (c#’-g’’’)

Flautado 12 tapado Flautado 12 aberto

Flautado 6 tapado Flauta em 12

Compostas de 12.ª e 19.ª Corneta (3v)

Cheio (3v) Cheio (4v)

298 Tal como se verá mais adiante neste capítulo, este instrumento sofreu várias intervenções, pelo que não

se pode assegurar o seu estado de integridade.

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exportação da laranja (ver cap. I). O facto de a ilha Terceira abranger o maior número

de instrumentos de grandes dimensões e não registar instrumentos de pequenas

dimensões parece dever-se à situação privilegiada de ser a sede da diocese.299

IV. 2 Tipos de caixas

De acordo com Gerhard Doderer, a caixa de um órgão “costuma assumir duas

funções diferenciadas: abrigar o conjunto organológico formado pelos foles, pelas

mecânicas e pela tubagem, e ostentar elementos decorativos que se encontram reunidos,

principalmente, na sua fachada.”300 Apesar da sua importância, as caixas dos órgãos não

têm sido objecto de estudo sistemático. O primeiro trabalho sobre as caixas dos órgãos

históricos em Portugal, configurando-se uma importante compilação, deve-se a Carlos

de Azevedo e foi publicado nos anos setenta do século XX. Posteriormente, Gerhard

Doderer debruçou-se sobre a temática e demonstrou a existência de um desenho de

caixa comum a partir da segunda metade do século XVIII, para a qual convergiram as

influências dos inúmeros organeiros que trabalharam em Portugal no final do século

XVII e inícios de XVIII.301 Sob a perspectiva da simetria visual de alguns conjuntos de

órgãos em Portugal e Espanha destaca-se o contributo de Marco Brescia.302

Considerando que, ao longo da história, o desenho das caixas acompanhou o

desenvolvimento técnico dos próprios instrumentos (sendo, por isso, fácil reconhecer

um órgão barroco norte-alemão, ou um órgão italiano ou ainda um órgão ibérico de um

299 Sublinhe-se que os dois órgãos que se encontravam na Sé de Angra até à década de oitenta do século

XX e que ficaram destruídos por um incêndio, um atribuído a Peres Fontanes e outro de Silvestre Serrão

(1854), não estão contemplados nesta estatística, pois uma das condições consideradas para a inclusão

nesta amostra foi a existência física do instrumento. 300 “Portuguese Organ cases of the 18th century: outstanding synthesis of craftmanship and beauty” in

Struggle for Synthesis – The Total Work of Art in the 17th and 18th Centuries, Lisboa 1999, p. 45. A

mesma ideia é veiculada por Peter Williams, que considera que a caixa do órgão não constitui um mero

adereço ou ornamento exterior, antes uma parte integrante de toda uma estrutura sonante. Cf. A New

History of the Organ: From the Greeks to the Present Day, London, Faber and Faber, 1980, p. 190.

Também Stephen Bicknell se dedica ao estudo da função e importância da caixa do órgão. Consultar “The

organ case”, in Nicholas Thistlethwaite e Geoffrey Webber (eds.), The Cambridge Companion to the

Organ, Cambridge University Press, 1998, pp. 55-81. 301 Cf. op. cit. 302 Consultar “L’école Echevarría en Galice, et son rayonnement au Portugal”, Tese de Doutoramento,

Paris, Sorbonne, 2013, pp. 218-265.

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mesmo período),303 interessa, neste subcapítulo em particular, descrever a configuração

das caixas existentes nos órgãos dos Açores, e apontar os elementos decorativos que

integram.

No que diz respeito à estrutura da caixa existem dois tipos de órgãos nos Açores:

armário e fachada aberta. A designação de armário advém da existência de duas

portadas colocadas na parte da frente do instrumento.304 Enquanto nos órgãos de Peres

Fontanes que se conhecem é comum as portadas abrangerem não só a tubaria mas

também a consola (teclado e manípulos dos registos),305 em Machado e Cerveira tapam

exclusivamente a tubaria (Fig. 4.1 e 4.2). Este último modelo é replicado nos seis

órgãos de armário construídos nos Açores na terceira fase: Igreja do Espírito Santo

(Maia – S. Miguel), Igreja de Santa Luzia (Feteiras – S. Miguel), Igreja de S. Miguel

(Mosteiros – S. Miguel), Igreja de N. Sr.ª das Vitórias (Santa Maria), Igreja de S. João

(Pico) e Igreja de Santa Bárbara (Manadas – S. Jorge).

Fig. 4.1 – Órgão da Igreja do Carmo (Ponta Delgada) JAPF, 1794

Fig. 4.2 – Órgão do Convento de

Santo André (Ponta Delgada), AXMC, n.º 104, 1828

303 Michael I. Wilson em Organ Cases of Western Europe (London, C. Hurts and Company, 1979, pp. 9 a

15), compara sucintamente a evolução dos desenhos de caixas com as características técnicas dos

instrumentos de países com tradição organística, nomeadamente, Alemanha, Áustria, Suíça, Dinamarca,

Holanda, França, Itália, Península Ibérica e Ilhas Britânicas. 304 As portadas foram inicialmente introduzidas nos órgãos europeus como forma de ocultar o instrumento

quando não era usado, de modo a parecer um elemento decorativo, ao mesmo tempo que protegia a

tubaria e o mecanismo do pó e de outras impurezas. Ver Michael I. Wilson, op. cit., p. 10. 305 Além do órgão da Igreja do Carmo, o único outro órgão de armário de Peres Fontanes nos Açores –

Igreja de Santo Antão na ilha de S. Jorge (1790?) – também tem esta mesma característica. No continente,

o mesmo se verifica nos instrumentos das igrejas de Santiago de Tavira (1785), Piedade em Santarém

(1795) e do Museu da Música (década de oitenta do século XVIII).

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Fig. 4.3 – Órgão da Igreja de Nossa

Senhora da Luz (S. Miguel)

Fig. 4.4 – Órgão da Igreja Matriz da Calheta

(S. Jorge)

Os órgãos de armário podem ter ou não uma fachada, a qual consiste na

disposição de uma série de tubos alinhados no mesmo plano, normalmente

correspondentes ao registo mais grave da mão esquerda. Sem fachada significa que a

distribuição dos tubos em cima do someiro fica completamente exposta, como acontece

nos órgãos das igrejas Matriz da Calheta de S. Jorge (AXMC, n.º 29, 1790), Matriz das

Lajes do Pico (AXMC, n.º 66, 1804), N.ª Sr.ª da Luz nos Fenais da Luz, em Ponta

Delgada (AXMC, n.º 100, 1826)306 e S. João Baptista no Pico (NAF, 1884).

Verifica-se que nos instrumentos de armário sem fachada os adereços

escultóricos são praticamente inexistentes, ao contrário do que sucede nos órgãos com

fachada. Tendo em conta que os órgãos de armário sem fachada eram menos

dispendiosos, deduz-se que eram adquiridos por igrejas com menos potencial

económico.

As pinturas no interior das portadas da fachada, pensadas de modo a ficarem

visíveis com as portadas abertas, cedo se revelaram numa característica dos órgãos

306 Neste órgão existe uma espécie de cortina de fazenda que desce da parte superior da fachada em

direcção ao interior da caixa, ligeiramente inclinada, por cima dos tubos, e suportada numa estrutura de

madeira. Segundo Dinarte Machado (Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 57), este acessório, que

também se encontra no órgão da Igreja Matriz das Capelas (S. Miguel), presentemente desmontado, tinha

finalidades expressivas, embora não tenha sido ainda possível averiguar a respectiva originalidade, uma

vez que ambos os instrumentos não foram alvo de restauro e os seus materiais não foram estudados.

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europeus, surgindo frequentemente nos órgãos dos Açores.307 No órgão da Igreja Matriz

de Santa Cruz da Graciosa, também as portadas laterais são ornamentadas, um indício

de que deveriam estar abertas sempre que o órgão tocasse (Fig. 4.5).

Nos Açores, este pormenor decorativo é exclusivo dos órgãos de armário da

segunda fase. A sua inexistência nos órgãos de armário da terceira fase pode estar

associada a uma questão económica, pois seria um elemento que sobrecarregava o

orçamento. A única excepção encontra-se no órgão que marca o início da terceira fase,

da autoria de Sebastião Gomes de Lemos (Igreja do Espírito Santo na Maia, S. Miguel,

1848).

Fig. 4.5

Órgão da Igreja Matriz de Santa Cruz,

Graciosa

AXMC, s/n.º, 1831

(Pormenor das portadas laterais)

Todos os órgãos de armário de Machado e Cerveira têm o limite superior da

caixa rectilíneo, uns sem qualquer adorno (Igrejas Matriz de Santa Catarina – S. Jorge,

Matriz das Lajes – Pico, Convento de Santo André – S. Miguel, Misericórdia – Terceira

e Espírito Santo – S. Miguel), outros com um frontão, como o da Igreja de Nossa

Senhora da Luz nos Fenais da Luz em S. Miguel (Fig. 4.3). Por seu turno, os dois

órgãos de armário de Peres Fontanes apresentam um limite superior curvilíneo

encimado por elementos escultóricos (Fig. 4.1).308

Os órgãos de fachada aberta apresentam sempre uma divisão em três painéis

planos, em cuja secção central se dispõem os tubos maiores (normalmente

correspondentes ao registo mais grave da mão esquerda) e nas laterais os tubos mais

307 Ver Michael I. Wilson, op. cit., p. 10. 308 O órgão localizado na Igreja de Santo Antão na ilha de S. Jorge, que ainda se encontra por restaurar,

foi alvo de uma pintura descuidada e de má qualidade, que acabou por cobrir todos os elementos

anteriores. Também o frontão sofreu uma reconstrução desadequada.

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pequenos, configuração que confere uma imagem piramidal que se evidencia no

contorno da caixa.

Fig. 4.6 – Órgão da Igreja de S. José

(Ponta Delgada), JAPF, 1797

Fig. 4.7 – Órgão da Igreja Matriz de S. Sebastião

(Ponta Delgada), AXMC, n.º 102, 1828

O desfasamento cronológico encontrado entre as datas da placa do construtor

(1828) e da caixa (1830), no órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada, sugere que a

pintura da caixa terá sido efectuada após a conclusão do instrumento. Esta hipótese

confirma-se por uma das cláusulas do contrato de construção daquele órgão, onde se

estabelece que a pintura é da responsabilidade da entidade compradora (ver cap. II.2 e

Anexo 4). Outros elementos que sustentam a hipótese de as caixas serem pintadas nos

Açores são as referências a caixas de “madeira lisa” ou de “madeira de pinho”

encontradas nos despachos de transporte dos órgãos para a Igreja de N.ª Sr.ª da Luz (S.

Miguel), construído e enviado para os Açores em 1826 (Fig. 4.8),309 e para a Igreja do

Convento de Santo André, construído em 1828 e enviado para os Açores em 1829 (Fig.

4.9).310 Todavia, no Plano por onde se devem seguir para armar o órgão (ver Anexo 3),

documento assinalado no capítulo anterior (II.2) há um forte indício de que o órgão já

309 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 272, cx. 530. 310 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 285, cx. 564.

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estaria pintado quando chegou a S. Miguel: “(...) assim como tambem meter o Someiro,

porq. no cazo de se roçar alguma couza da Pintura não seja na frente aonde logo se

veja;”.311

Fig. 4.8 – Guia de transporte do órgão para a Igreja de N.ª Sr.ª da Luz

(Fenais da Luz – S. Miguel), 1826

Pela mesma ordem de ideias, é igualmente provável que a pintura dos tubos de

fachada presentes em alguns órgãos de Peres Fontanes e de Machado e Cerveira,

concretamente S. Francisco em Angra (Fig. 4.10), paroquial de Santa Bárbara na ilha

Terceira, Sé de Angra (Peres Fontanes e Joaquim Silvestre Serrão) e Matriz de Ponta

Delgada (Fig. 4.7), seria realizada no local a que se destinava o órgão. No continente,

esse tipo de ornamentação surge apenas em alguns instrumentos dos séculos XVII e

XVIII, sendo totalmente desconhecida em instrumentos dos referidos organeiros.312

311 P-Lant, Junta do Comércio, mç. 272, cx. 530. 312 Como por exemplo na Sé de Lamego e em S. Bento da Vitória, no Porto. Cf. Carlos Azevedo,

Baroque Organ-Cases of Portugal, Amsterdam, Frits Knuf, 1972, pp. 28-29 e 42-43. Em Espanha, esse

tipo de ornamentação encontra-se esporadicamente em órgãos do século XVIII da província de Aragão,

Consultar Jesus Gonzálo López e Angela Orleans, (coord.), op. cit., pp. 32-38.

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Fig. 4.9 – Guia de transporte do órgão para a Igreja do Convento de Santo André

(Ponta Delgada – S. Miguel), 1829

Fig. 4.10 – Órgão do Convento de S. Francisco, Angra do

Heroísmo (pormenor de um tubo com boca pintada)

Os instrumentos de fachada aberta adquiridos pelos conventos masculinos

franciscanos – órgãos da Igreja Paroquial de S. José (Fig. 4.6) e do Convento de S.

Francisco em Angra (Fig. 4.10) – ostentam o símbolo da ordem.

Verifica-se, portanto, que os instrumentos da segunda fase apresentam um nível

de decoração mais elaborado e rico do que os da terceira fase, sendo frequente naqueles

o uso de dourados e matizados e nestes menos policromia.313 A excepção cabe aos

313 Excepção encontrada nos órgãos da Igreja de N.ª Sr.ª da Apresentação nas Capelas (AXMC, n.º 94,

1821), em S. Miguel, e na Igreja do Colégio em Angra, em que as caixas têm muito pouca policromia. Cf.

Inventário dos Órgãos dos Açores, pp. 67 e 79.

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primeiros órgãos da terceira fase, nomeadamente da Igreja Matriz da Ribeira Grande

(1855) e de S. Pedro de Ponta Delgada (1858), cujo programa decorativo pode ser

entendido como reflexo da estabilidade económica que ainda se vivia nos Açores, ou,

em última análise, do reaproveitamento de uma caixa pré-existente (Fig. 4.11 e 4.12).

Fig. 4.11 – Órgão da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª

da Estrela (Ribeira Grande)

Sebastião Gomes de Lemos, 1855

Fig. 4.12 – Órgão da Igreja de S. Pedro

(Ponta Delgada)

João Nicolau Ferreira, n.º 2, 1858

O exemplo mais peculiar no âmbito da decoração encontra-se no único

instrumento de Nicolau António Ferreira (Igreja de S. João Baptista no Pico, 1884), cuja

opção decorativa é completamente diferente dos restantes instrumentos. Não sendo

conhecidas as razões que justifiquem a diferença, nem tampouco se se trata de um

procedimento original ou ulterior, pois ao longo do século XX muitas igrejas dos

Açores ficaram com o seu interior descaracterizado devido a intervenções desajustadas,

o facto é que o instrumento apresenta uma caixa pintada de branco, com madeira escura

apenas na consola, recorrendo aos dourados e explorando sobretudo os tons de azul,

sobre um fundo branco e conjugados com o dourado (Fig. 4.13).

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Fig. 4.13 – Órgão da Igreja de S. João Baptista (Pico), Nicolau António Ferreira, 1884

IV. 3 Aspectos técnicos: análise comparativa

Dada a proximidade temporal entre os órgãos da segunda e terceira fases e,

sobretudo, as suas similaridades, este subcapítulo analisa o grau de influência que os

primeiros exerceram sobre a concepção dos segundos. No entanto, devido ao elevado

número de órgãos criou-se uma amostra de catorze exemplares, com base nos seguintes

critérios:

1) representatividade de cada construtor (diferentes épocas de construção, quando

possível, e diferentes dimensões);

2) condições de conservação do instrumento por forma a facilitar os trabalhos de

medições e de registo de som (foram incluídos alguns órgãos inoperacionais, mas a sua

escolha deveu-se ao facto de serem exemplares únicos).

A Tabela 4.5 apresenta os órgãos da referida amostra, com a respectiva

identificação e as razões da selecção de acordo com os critérios acima expostos.

Abrangendo um período de aproximadamente cem anos (1788 a 1892), a amostra

contempla dois órgãos de Joaquim António Peres Fontanes (JAPF), quatro de António

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Xavier Machado e Cerveira (AXMC), dois de Sebastião Gomes de Lemos (SGL), dois

de João Nicolau Ferreira/Silvestre Serrão (JNF/SS), um de Nicolau António Ferreira

(NAF), um de Tomé Gregório de Lacerda (TGL) e dois de Manuel de Sousa (MS).

Construtor Data Igreja Observações

AXMC 1788,

n.º 22

Convento de S. Francisco

(AH-TER)

Primeiro órgão de fachada aberta de AXMC

nos Açores.

1790,

n.º 29

Matriz de Santa Catarina

(Calheta-SJ)

Primeiro órgão de armário de AXMC nos

Açores.

1828,

n.º 102

Matriz de S. Sebastião

(PD-SM)

Último órgão de fachada aberta de AXMC

nos Açores; Reflecte a 3.ª e última fase de

construção.

1828,

n.º 104

Convento de S. André

(PD-SM)

Encontra-se em estado original e

operacional.

JAPF 1794 Carmo (PD-SM) Único órgão de armário de Peres Fontanes

operacional;

1797 S. José (PD-SM) Maior órgão do construtor nos Açores.

Operacional e em óptimo estado de

conservação.

SGL 1848 Espírito Santo (Maia-SM) Único órgão de armário do construtor.

Actualmente em processo de restauro.

1855 Matriz de N.ª Sr.ª da

Estrela (RG-SM)

Único exemplar de fachada aberta

operacional.

JNF

1858 S. Pedro (PD-SM) Órgão construído em colaboração com o

Padre Silvestre Serrão.

1877,

n.º 9

N.ª Sr.ª da Ajuda

(Bretanha-SM)

Órgão construído sem a supervisão do Padre

Serrão, uma vez que corresponde ao ano da

sua morte.

TGL 1865 Matriz de S. Jorge

(Velas-SJ)

Exemplar único. Operacional.

NAF 1884 S. João Baptista (Pico) Exemplar único. Operacional.

MS 1891 S. Pedro (VFC-SM) Últimos dois instrumentos construídos nos

Açores com reminiscências da organaria

portuguesa tardo-setecentista. 1892 Matriz de S. Cruz

(Lagoa-SM)

Tabela 4.5 – Amostra organológica314

IV. 3. 1 Disposição fónica, nomenclatura e composição dos registos compostos

O plano fónico dos instrumentos em análise segue a estrutura de qualquer órgão:

registos simples (família dos Flautados junto com a das Flautas); registos compostos e

registos de palheta (ressoador longo ou curto), estes últimos posicionados verticalmente

314 A numeração anexa a alguns instrumentos corresponde à inscrição existente na placa identificativa de

cada instrumento.

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dentro do órgão e/ou dispostos horizontalmente na fachada.315 O plano fónico e a

respectiva nomenclatura são observáveis na parte exterior do instrumento, em ambos os

lados da consola, onde se encontram dispostos os manípulos dos registos.316 Por uma

questão de uniformização e sobretudo para uma leitura mais facilitada, a análise de cada

instrumento inclui o respectivo plano fónico, o qual obedece à nomenclatura original e

estrutura-se pela seguinte ordem:

Registos simples (famílias dos Flautados e das Flautas, do mais grave para o mais

agudo)

Registos compostos (do mais grave para o mais agudo, com indicação do número

de filas)

Registos solistas da mão direita (Voz humana e Corneta)317

Palhetas

Os instrumentos serão analisados pela ordem cronológica da sua construção, de

modo a serem comparados entre si. Para uma abordagem mais completa serão

igualmente apresentados os esquemas dos respectivos someiros (identificados com a

sigla ES), nos quais transparece a forma como cada construtor dispõe os jogos de tubos

no someiro.

Os órgãos das igrejas de S. Francisco (Angra) e de S. José (Ponta Delgada) são

aqui analisados em conjunto para facilitar a sua comparação, uma vez que ambos são de

grandes dimensões e construídos no século XVIII. Como foi referido anteriormente,

Peres Fontanes incorpora registos inteiros e meios registos, e Machado e Cerveira

apenas meios registos. Verifica-se que a correspondência entre os meios registos

homónimos das duas mãos é rigorosamente linear no órgão de Peres Fontanes, não

315 A disposição horizontal deve-se aos espanhóis, sendo por isso uma das idiossincrasias dos órgãos

ibéricos. Cf. Jesus Ángel de la Lama, “Principales características de los órganos renascentistas e barrocos

españoles”, Nassarre – Revista Aragonesa de Musicologia, XVIII, 1-2, Zaragoza, Institución «Fernando

El Católico», 2002, p. 22. 316 O órgão do Convento de Santo André é o único exemplar da amostra cujo plano fónico é identificado

exclusivamente pelo tipo de som produzido, dada a ausência de etiquetas junto aos manípulos dos

registos. 317 Por uma questão de uniformidade a Corneta foi transversalmente considerada registo solístico (como é

tradicional na organaria europeia), apesar de na maioria dos órgãos da amostra ser um registo de carácter

principalizante que se integra no cheio.

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sendo, pelo contrário, uma preocupação por parte de Machado e Cerveira.318 Atente-se

na forma como Peres Fontanes estrutura os registos da família dos Flautados em ambas

as mãos de acordo com os primeiros quatro harmónicos (fundamental – 8ª – 12ª – 15ª),

revelando uma preocupação acrescida na sustentação do instrumento, a qual, no caso do

órgão do convento de S. Francisco, só se manifesta na mão esquerda.

Igreja do Convento de S. Francisco, Angra do Heroísmo (Terceira)

António Xavier Machado e Cerveira, n.º 22, 1788

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-e’’’)

Flautado de 12 aberto Flautado de 12 aberto

Flautado de 12 tapado Flautado de 12 tapado

Flautado de 6 aberto Flauta em 12

Flautado de 6 tapado Flautim

Dozena Oitava e 12ª (3v)

Quinzena Dezanovena (4v)

Dezanovena (3v) Simbala (4v)

Vintedozena (5v) Resimbala (3v)

Símbala (4v) Voz humana

Resímbala (3v) Corneta (5v)

Trompa Clarim

Igreja paroquial de S. José, Ponta Delgada (S. Miguel)

Joaquim António Peres Fontanes, 1797

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’)

Flautado 12 aberto Flautado 12 aberto

Flautado 12 tapado Flauta travessa

Flautado 6 tapado Flauta em 6

Oitava real Oitava real

Dozena Dozena

Quinzena (2v) Quinzena (2v)

Dezanovena

Mistura (5v) Mistura (5v)

Símbala (4v)

Voz humana

Corneta ingleza (5v)

Trompa real Trombeta real

Trompa de batalha Clarim

Fagote Clarineta

No órgão da Igreja de S. José, o Flautado de 12 aberto da mão esquerda abrange

318 Este foi um aspecto mencionado por David Cranmer em “Organs in the Azorean Archipelago”, e em

“Some organs of the Azores”, pp. 86-90.

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toda a extensão do teclado, enquanto no órgão do Convento de S. Francisco surge

somente a partir de g, sendo constituído por tubos de madeira (tapados) até ao f#. Em

termos de organização dos registos simples, o órgão de S. José evidencia um maior

equilíbrio entre as duas mãos, graças à presença de registos de 8’ e 4’ em toda a

extensão do teclado, quer da família dos Flautados quer das Flautas (Tabela 4.6).

Convento de S. Francisco (AXMC)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

8’ 8’ 8’ 8’+ 8’

4’ 4’ - 4’

2’ ⅔ - - -

2’ - - -

Igreja de S. José (JAPF)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

8’ 8’ 8’ 8’

4’ 4’ 4’ 4’

2’⅔ - 2’⅔ -

2’ - 2’319 -

Tabela 4.6 – Organização dos registos simples nos órgãos do Convento de

S. Francisco e da Igreja de S. José

Convento de S. Francisco Igreja paroquial de S. José

Dezanovena,

3 v.

C c

22ª-------------- 19ª-------

26ª-------------- 19ª-------

29ª-------------- 22ª-------

Vintedozena,

5 v.

26ª-------------- 22ª-------

29ª-------------- 26ª-------

29ª-------------- 26ª-------

33ª-------------- 29ª-------

36ª-------------- 26ª320-----

Simbala, 4 v. 29ª-------------- 26ª-------

29ª-------------- 26ª-------

33ª-------------- 29ª-------

36ª-------------- 33ª------

Resimbala,

3 v.

29ª-------------- 26ª-------

29ª--------------------------

33ª-------------- 29ª-------

Dezanovena,

2 v.

C c c#’ c#’’ d’’’

19ª--------------------------------------------------

22ª-------------------------------- 15ª--------------

Mistura,

5 v.

22ª------- 15ª-------- 8ª----------------------------

26ª------- 19ª------- 12ª---------------------------

29ª------- 22ª------- 15ª---------------------------

33ª------- 26ª------- 19ª---------------------------

36ª------- 29ª------- 22ª---------------------------

Símbala,

4 v.

29ª------- 22ª------- 15ª-------- 8ª----------------

33ª------- 26ª------- 19ª-------- 15ª---------------

33ª------- 26ª------- 19ª-------- 15ª---------------

36ª------- 29ª------- 22ª-------- 19ª---------------

Tabela 4.7 – Composição dos registos compostos da mão esquerda do órgão do Convento de S.

Francisco e de ambas as mãos do órgão da Igreja de S. José321

319 Registo constituído por duas filas iguais, sem repetições. 320 No Inventário dos Órgãos dos Açores, este harmónico corresponde à 33ª. Cf. p. 86. 321 Os registos relativos ao órgão de S. José são registos inteiros.

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Convento de S. Francisco

Oitava e 12ª, 3 v.

c#’ a#’ c#’’ f#’’ a#’’

8ª -----------------------------------------------

12ª----------------------------------------------

15ª----------------------------------------------

Dezanovena, 4 v.

12ª----------------------------------------------

15ª----------------------------------------------

22ª----------------- 15ª------------------------

22ª---------------------------- 15ª-------------

Simbala, 4 v.

15ª-------------------- 8ª ----------------------

19ª-------------------- 15ª---------------------

19ª-------------------- 15ª---------------------

26ª322----- 19ª---------------------------- 15ª-

Resímbala, 3v. 15ª-------------------- 12ª---------------------

15ª----------------------------------------------

19ª-------------------- 15ª---------------------

Tabela 4.8 – Composição dos registos compostos da mão direita do órgão do

Convento de S. Francisco

No que diz respeito aos registos compostos, há vários indicadores que apontam

para o facto de Machado e Cerveira pretender uma sonoridade mais aguda (Tabelas 4.7

e 4.8). Desde logo, verifica-se a presença de harmónicos mais agudos do que no órgão

de Peres Fontanes. Para além disso, aqueles registos contêm um número de repetições

inferior ao órgão de Peres Fontanes, onde se parece evitar o uso dos harmónicos mais

agudos.

Os registos compostos em Peres Fontanes (Símbala e Mistura) integram a parte

inicial do someiro de cheios (mais próxima da fachada), enquanto nos órgãos de

Machado e Cerveira estão posicionados a partir do meio do someiro de cheios em

direcção à rectaguarda da caixa (ver ES 1 e 2).323

Clarim (MD)

Fl.º 6 aberto (ME)

Fl.º 12 aberto Fl.º 12 tapado

Voz humana

Flauta 12 Fl.º 6 tapado

Flautim

8.ª e 12.ª, 3v 12.ª

Dezanovena, 4v 15.ª

Corneta 19.ª, 3v

Símbala, 4v 22.ª, 5v

322 No Inventário dos Órgãos dos Açores, este harmónico corresponde à 22ª. Cf. p. 86 323 Nos esquemas dos someiros destes e dos restantes instrumentos os registos fora de linhas indicam as

palhetas horizontais, o sombreado a bege corresponde aos registos em fachada e o cinzento abrange os

registos integrados no someiro de cheios, por oposição ao someiro principal, sem qualquer sombreado.

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Resímbala, 3v Símbala, 4v

Fl.º 12 tapado Resímbala, 3v

Fl.º 12 aberto (ME)

Trompa (ME)

Esquema 1 – Someiro do órgão da Igreja do Convento de S. Francisco

Clarim Trompa de batalha Clarim

Clarineta Fagote Clarineta

Tro

mp

a d

e

bat

alha

Flautado 12 aberto (ME) Tro

mp

a de

batalh

a

Fl.º 12 ab (MD)

Fl.º 12 tap. (ME)

Fl.º 12 ab (MD)

Voz humana Voz humana

Fl. travessa Fl. travessa

Corneta, 5v Corneta, 5v

Símbala, 4v

Mistura, 5v (MD) Mistura, 5v (ME) Mistura, 5v (MD)

Dezanovena e 22.ª, 2v

Quinzena, 2v (MD) Quinzena (ME) Quinzena, 2v (MD)

Flauta em 6 (MD) Fl.º 6 tap. (ME) Flauta em 6 (MD)

Dozena (MD) Dozena (ME) Dozena (MD)

Oitava real (MD) Oitava real (ME) Oitava real (MD)

Trombeta real (MD) Trombeta real (ME) Trombeta real (MD)

Esquema 2 – Someiro do órgão da Igreja de S. José

Em termos de registos solísticos, refira-se a presença da Corneta na mão direita, a

qual, de acordo com Jesús de la Lama é o registo solista mais importante do órgão no

âmbito dos registos labiais.324 Segundo o mesmo autor, a Corneta inglesa nos órgãos

barrocos espanhóis tem normalmente quatro filas, sem a fundamental.325 Apesar de

Peres Fontanes ter optado pelo epíteto de “inglesa”, a composição base das cornetas dos

dois instrumentos aqui em análise é igual: ambas têm cinco filas, com o harmónico mais

agudo de 19ª e sem a fundamental, falta a que o organista teria de fazer substituir com

um registo simples de 8’.

Tal como se verá mais adiante neste capítulo (IV.3.2), as medidas dos tubos do

registo de Corneta diferem ligeiramente entre Machado e Cerveira e Peres Fontanes,

sendo que neste último apresentam dimensões maiores que apontam para um registo da

família das Flautas, de secção mais larga e menos principalizante, logo com perfil mais

solístico.

324 Cf. El Organo Barroco Español, Valladolid, Junta de Castilla y León, vol. II, 1995, pp. 402.

Independentemente das diferentes terminologias e do número de filas, a Corneta nos órgãos barrocos

espanhóis assume sempre uma função solística, estando normalmente colocada numa posição destacada

em relação ao someiro. Cf. op. cit., vol. I, p. 242. 325 Idem.

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Convento de S. Francisco Igreja de S. José

Corneta, 5v Corneta inglesa, 5v

c#’ c#’’ c#’’’

8ª ---------------------------------

12ª--------------------------------

15ª--------------------------------

17ª--------------------------------

19ª--------------------------------

c#’ f’’

8ª --------------------------------

12ª-------------------------------

15ª------------------ 12ª--------

17ª------------------ 15ª--------

19ª------------------ 17ª--------

Tabela 4.9 – Composição do registo de Corneta dos órgãos do Convento de

S. Francisco e da Igreja de S. José

A posição da Corneta no someiro dos dois instrumentos vem corroborar essa

hipótese, transmitindo, paralelamente, a visão dos construtores sobre a sua função no

complexo sonoro. Machado e Cerveira coloca o registo de Corneta no someiro de

cheios, sendo assim subtraído pelo pedal anulador de cheios. Peres Fontanes integra-o

no someiro principal, imediatamente atrás dos tubos de fachada e junto à Flauta

travessa, sugerindo deste modo que deve ser utilizado com a Flauta como suporte, num

ambiente inequivocamente solístico (ver ES 1 e 2).

O mesmo processo ocorre com a Voz humana, o outro registo solista da mão

direita, que, estando posicionado junto ao Flautado 12 aberto da mão direita, indica que

a sua utilização deve ser suportada por esse registo.

Pelo esquema dos someiros (ES 1 e 2) também se confere que Peres Fontanes

opta por dispor o duplo someiro de forma sequencial, primeiro o someiro principal e

depois o secundário, e Machado e Cerveira acaba por encaixar o someiro secundário no

meio do someiro principal. Uma outra divergência reside na forma como se organizam

os jogos em cima do someiro: Machado e Cerveira divide o someiro em esquerda e

direita (correspondendo à divisão do teclado), e Peres Fontanes distribui os jogos da

mão direita pelas duas extremidades, colocando os jogos da mão esquerda ao centro

(Fig. 4.14 e 4.15).

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Fig. 4.14 – Tubaria do órgão de S.

Francisco (com a fachada ao lado direito)

Fig. 4.15 – Tubaria do órgão de S. José

(com a fachada ao fundo)

De acordo com as Figuras 4.14 e 4.15, os tubos estão dispostos diatonicamente

no órgão de S. José, sendo que em S. Francisco têm a mesma disposição diatónica na

mão esquerda, mas na mão direita passa a ser cromática.

Estes dois instrumentos têm igualmente registos de palhetas, interiores e

exteriores, as primeiras dispostas verticalmente no interior da caixa (na rectaguarda) e

as segundas horizontalmente na fachada. O órgão de S. José exibe o maior conjunto de

palhetas no cômputo dos órgãos históricos nos Açores, apresentando, também, um

maior equilíbrio entre cada metade do teclado (Tabela 4.10).

Convento de S. Francisco Igreja Paroquial de S. José

M.E. M.D. M.E. M.D.

Trompa (8’ I) Clarim (8’ E) Trombeta real (8’ I) Trombeta real (8’ I)

Trompa de batalha (8’ E) Clarim (8’ E)

Fagote (8’ E) Clarineta (8’ E)

Tabela 4.10 – Registos de palhetas nos órgãos do Convento de

S. Francisco e da Igreja de S. José 326

326 As letras correspondem à localização no instrumento: “I” significa que a palheta se encontra no

interior da caixa (vertical) e a letra “E” que se encontra no exterior da caixa (horizontal).

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No âmbito da mão direita, destaca-se um dos registos mais característicos da

organaria ibérica desde final de seiscentos,327 o Clarim, com 8’ e ressoador longo,

disposto horizontalmente na fachada. A Clarineta – diminutivo de Clarim – é uma

idiossincrasia de Peres Fontanes, tratando-se de um registo também de 8’ mas com

ressoador curto que, no caso de S. José, está igualmente posicionado na fachada.328

A Trompa real ou Trombeta real é outro registo de palheta de 8’ com ressoador

longo muito comum na organaria ibérica dos séculos XVII e XVIII. De acordo com

Louis Jambou, constitui a base da bateria de palhetas e encontra-se na posição vertical

no interior da caixa, na sua parte traseira, a mesma posição que assume nos órgãos

portugueses.329 No órgão de S. Francisco, a Trombeta real surge sob a designação de

“Trompa” como meio registo da mão esquerda, enquanto no órgão de S. José abrange

toda a extensão do teclado sob a forma de dois meios registos designados Trombeta

real. Em ambos os instrumentos está localizada na rectaguarda da caixa (ver ES 1 e 2).

A Trompa de batalha, assim designada por se encontrar na fachada em posição

horizontal, é mais um meio registo de palheta oriundo da organaria ibérica.330 Apesar de

se apresentar com treze palmos na tradição ibérica, nos órgãos de Peres Fontanes e

Machado e Cerveira a sua medida varia entre os doze e seis palmos (8’ e 4’,

respectivamente). Em S. José apresenta-se com 8’, sendo que os tubos correspondentes

às notas mais graves estão dispostos nas laterais do órgão.331 Outro meio registo de

palheta da mão esquerda muito disseminado na organaria portuguesa de final de

setecentos é o Fagote, com 8’ e ressoador curto.332 Embora no conjunto de instrumentos

aqui em análise surja somente no órgão de Peres Fontanes, colocado na fachada, o

327 Segundo Jesús de la Lama, o primeiro meio registo de palheta da mão direita com ressoador longo a

ser colocado na fachada foi o Clarim. Cf. El Organo Barroco Español, vol I, p. 286. Também Marco

Brescia, baseado em larga medida nos estudos de Lama, analisa o surgimento e desenvolvimento das

palhetas horizontais em Espanha, particularmente na escola criada por Joseph de Echevarría. Consultar

“L’École Echevarría en Galice, et son rayonnement au Portugal”, vol. I, pp. 22-25. 328 Este registo consta igualmente do plano fónico do órgão da Igreja de Santa Bárbara (Peres Fontanes,

1793), na ilha Terceira, assim como no órgão da Epístola da Basílica de Mafra (Peres Fontanes, 1807). 329 Cf. Evolución del órgano español siglos XVI-XVIII, Ethos, Universidade de Oviedo, vol. I, 1988, p.

294-295. 330 Outro meio registo de palheta horizontal de treze palmos que integra o conjunto de palhetas em

Espanha a partir do final do século XVII. Cf. Jesús de la Lama, “Principales características de los

órganos renascentistas e barrocos españoles”, p. 25. 331 Esta disposição deve-se ao facto de o órgão ter sido instalado originalmente num dos arcos da nave

central, de onde terá sido removido nos anos quarenta do século XX para o coro alto. Cf. Inauguração do

Órgão de Tubos da Igreja de São José – Integrada na Semana de São José 1995, s/p. 332 Na organaria hispânica o Fagote surge somente em meados do século XVIII, normalmente para

combinar com o oboé da mão direita. Cf. Louis Jambou, op. cit., vol. I, p. 298.

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93

Fagote é muito comum nos órgãos dos Açores, tal como se verá ao longo deste capítulo.

No caso do órgão de S. José, a Trombeta real está inserida no someiro de cheios e

é anulada pelo pedal de cheios, enquanto as palhetas exteriores dependem da acção

manual, sistema pelo qual também funcionam os jogos de palheta do órgão de S.

Francisco.

Outra especificidade é a presença no órgão de Peres Fontanes de uma pedaleira

de doze notas (Dó1-Si1) acoplada à oitava grave (ver cap. VI, Fig. 6.7), situação única

nos Açores e pouco vulgar no continente,333 além de um acessório com efeito de

tambor, com as notas Ré e Lá.

Apesar de o órgão de S. Francisco ser anterior ao de S. José, apresenta uma

extensão do teclado superior, com cinquenta e três notas (C-e’’’), por oposição às

cinquenta e uma do órgão de S. José (C-d’’’).

Tal como estes dois últimos órgãos representam os instrumentos da amostra de

maiores dimensões do século XVIII, os órgãos da Igreja Matriz da Calheta (S. Jorge) e

da Igreja do Carmo (Ponta Delgada), de Machado e Cerveira e Peres Fontanes,

respectivamente, sintetizam os exemplares de pequenas dimensões do século XVIII

contemplados na amostra.

333 Segundo as fontes que fornecem dados sobre a morfologia dos órgãos da Sé de Angra (de Peres

Fontanes e de Joaquim Silvestre Serrão), estes instrumentos tinham uma pedaleira com doze notas. Cf.

António Teixeira de Macedo, Breve Memoria sobre o Estado da Agricultura, Commercio e Industria do

Districto de Ponta Delgada offerecida Ao Exm.o Sr. Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello, Ministro

e Secretário d’Estado das Obras Publicas Commercio e Industria, Ponta Delgada, 1853, pp. 26 e 27;

“Organs of two islands”, p. 495.

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Igreja Matriz de Santa Catarina, Calheta (S. Jorge)

António Xavier Machado e Cerveira, nº 29, 1790

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’)

Flautado de 12 tapado Flauta em 12

Flautado de 6 tapado Flauta em 6

Quinzena Compostas de 22.ª

Clarão Corneta

Fagote Oboé

Igreja do Carmo, Ponta Delgada (S. Miguel)

Joaquim António Peres Fontanes, 1794

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’)

Flautado 12 tap. Flautado 12 abert.

Flautado 6 tap. Flautado 6 tap.

Quinzena 8ª Real, 15ª, 19ª, 22ª

Dezanovena e 22ª

Mistura

Cornetilha

Voz humana

Fagote Clarineta

Também aqui Peres Fontanes apresenta meios registos e registos inteiros e

Machado e Cerveira exclusivamente meios registos. Não obstante a dimensão dos

instrumentos, dispõem de registos simples, compostos, solistas e de palheta, uma junção

de famílias que nem sempre estará presente nos órgãos da terceira fase.

Igreja Matriz de S. Catarina (Calheta)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ - 8’

- 4’ - 4’

- - - -

2’ - - -

Igreja do Carmo

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ 8’ -

- 4’ - 4’

- - - -

2’

Tabela 4.11 – Organização dos registos simples nos órgãos da Igreja Matriz da Calheta

e da Igreja do Carmo

Em ambos, o principal de 4’ da mão direita (Oitava real) não surge na versão

simples mas sim como uma fila de um registo composto, e o registo principal mais

grave da mão esquerda é uma Quinzena, aspectos que traduzem a intenção dos

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construtores em criar um instrumento de pequenas dimensões.334 No entanto, no órgão

da Igreja do Carmo, Peres Fontanes introduz um Flautado de 12 aberto na mão direita.

No contexto dos registos compostos destaque-se o meio registo de Clarão (m. e.) com

cinco filas no órgão de Machado e Cerveira e os dois meios registos de Mistura, com

três filas, no órgão de Peres Fontanes. A utilização destes registos, em concreto,

também revela a intenção dos respectivos construtores, pois a idiossincrasia do registo

de Clarão reside na integração de um intervalo de terceira (24ª), o qual se reflecte no

resultado sonoro, enquanto o registo de Mistura abrange apenas intervalos de oitava e de

quinta.

Tabela 4.12 – Composição dos registos compostos da mão esquerda dos órgãos da Igreja

Matriz da Calheta e da Igreja do Carmo

Igreja Matriz de

Santa Catarina

(Calheta)

Compostas de 22ª,

4 v.

c#’ c#’’

8ª ----------------------------------------------

12ª ---------------- 8ª -------------------------

15ª----------------- 12ª -----------------------

19ª ---------------- 15ª------------------------

Igreja do Carmo

(PD)

8ª Real, 15ª,19ª e 22ª,

4 v.

c#’ c#’’

8ª -----------------------------------------------

15ª ---------------------------------------------

19ª------------------ 15ª -----------------------

22ª ----------------- 19ª------------------------

Tabela 4.13 – Composição dos registos compostos da mão direita dos órgãos da Igreja Matriz

da Calheta e da Igreja do Carmo

A composição das Compostas de 22ª de Machado e Cerveira (m.d.) é muito

semelhante à composição do registo de 8ª Real, 15ª, 19ª e 22ª de Peres Fontanes

334 Recorde-se que estes instrumentos foram encomendados por igrejas conventuais femininas (ver cap. II.

2).

Igreja Matriz de Santa

Catarina

(Calheta)

Clarão, 5 v. C c# g#

19ª------------------ 15ª --------------------------------

22ª------------------ 19ª -------- 15ª--------------------

24ª------------------ 22ª -------- 19ª -------------------

26ª------------------ 24ª --------------------------------

29ª------------------ 26ª --------------------------------

Igreja do Carmo

(PD)

Mistura, 3 v.

(inteiro)

C c# c#’’

22ª------------------ 15ª ------------------------- 8ª----

26ª------------------ 19ª ------------------------- 12ª---

29ª------------------ 22ª ------------------------- 15ª --

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(m.d.). A tendência de Machado e Cerveira relativamente à presença de harmónicos

agudos, mencionada no contexto do órgão de S. Francisco, não se manifesta tão

explicitamente no órgão da Igreja Matriz da Calheta.

Ao nível dos jogos solísticos da mão direita nota-se a ausência da Voz humana

no órgão de Machado e Cerveira. O registo de Corneta, não obstante assumir a

designação de “Cornetilha” no órgão de Peres Fontanes, tem o mesmo número de

filas e a mesma composição nos dois órgãos, sem fundamental e sem oitava real. Na

tradição ibérica, a Cornetilha assume, regra geral, a designação de “Corneta

Tolosana”, e, ao longo do século XVIII, surge com três filas, tendencialmente 15ª, 17ª

e 19ª.335

Igreja Matriz de Santa Catarina (Calheta) Igreja do Carmo (Ponta Delgada)

c#’ c#’’ c#’’’

12ª-----------------------------------------------------

15ª-----------------------------------------------------

17ª-----------------------------------------------------

c#’ c#’’ c#’’’

12ª------------------------------------------------

15ª------------------------------------------------

17ª------------------------------------------------

Tabela 4.14 – Composição do registo de Corneta e de Cornetilha dos órgãos das

igrejas Matriz da Calheta e Carmo

Oboé Fagote

Compostas de 22.ª, 4v Clarão, 5v Fl.º 6

tap.

(ME

)

Corneta, 3v Quinzena

Flauta em 12 Flautado 6 tapado

Flauta em 6

Fl.º 12 tapado (ME)

Esquema 3 – Someiro do órgão da Igreja Matriz de Santa Catarina (Calheta)

Em ambos os instrumentos o registo de Corneta faz parte do someiro de

cheios, embora possa ser igualmente utilizado em intervenções solistas,

principalmente no órgão de Peres Fontanes, onde apresenta medidas claramente

maiores do que no órgão da Igreja Matriz da Calheta (ver cap. IV.3.2).

335 Sobre a Corneta na organaria ibérica consultar Louis Jambou, op. cit.,vol. I, 288-291 e Jesús Ángel de

Lama, El organo barroco español, vol. II, p. 402.

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Flautado 12 aberto (MD)

Clarim (MD) Fagote (ME) Clarim (MD)

Mistura (inteiro)

Cornetilha, 3v (MD) Dezanovena e 22.ª

(ME)

Cornetilha, 3v (MD)

8.ª real, 15.ª, 19.ª e 22.ª, 4v (MD) Quinzena (ME) 8.ª real, 15.ª, 19.ª e 22.ª, 4v (MD) F

l.º

12

tap

(ME

) Fl.º 6 tap. (MD) Fl.º 6 tap. (ME) Fl.º 6 tap. (MD)

Fl.º 1

2 tap

(ME

) Voz humana

Fl.º 12 tapado (ME)

Esquema 4 – Someiro do órgão da Igreja do Carmo (Ponta Delgada)

A disposição do someiro duplo, por comparação aos órgãos de grandes

dimensões de cada um dos construtores analisados anteriormente, apresenta soluções

diferentes. Machado e Cerveira, opta, neste pequeno órgão, por localizar o someiro de

cheios na parte junto à fachada, seguindo-se-lhe o someiro principal (ES 3). Tal como

no órgão de S. Francisco, alinha os registos na parte da caixa correspondente à secção

do teclado a que dizem respeito. Peres Fontanes parece apresentar um modelo muito

mais complexo comparativamente ao órgão de S. José, construído apenas três anos

depois, intercalando o someiro de cheios no someiro principal (ES 4). Permanece com

a organização dos registos da mão direita pelas extremidades do someiro e os da mão

esquerda ao centro. No entanto, ao invés do órgão de S. José, onde transparece uma

concepção cuidada e funcional, no órgão do Carmo assinala-se dois aspectos pouco

coerentes relativamente à disposição de registos no someiro: o primeiro prende-se

com a localização do registo da mão direita Voz humana, num plano totalmente

afastado do Flautado de 12 aberto que lhe serve de suporte; segundo, a presença dos

dois meios registos de Flautado de 6 tapado no someiro principal, tal como se verifica

em todos os instrumentos de Machado e Cerveira, mas diferentemente do que

acontece no órgão de S. José.336

Os registos de palhetas dos dois órgãos estão colocados como fachada ou

imediatamente atrás. Na mão esquerda apresentam o meio registo de Fagote, sendo que

na mão direita Peres Fontanes opta pelo meio registo de Clarineta, à semelhança de S.

336 A concepção do órgão da Igreja do Carmo é igualmente identificada no órgão de Peres Fontanes

(década de 1780) que se encontra no Museu da Música, em Lisboa. Agradeço reconhecidamente a

autorização cedida pela sua diretora, Dr.ª Graça Mendes Pinto, para observar o órgão. Não obstante as

intervenções a que este último instrumento foi sujeito, e com a salvaguarda das diferenças no plano

fónico, os esquemas dos someiros desses dois instrumentos reflectem a mesma concepção.

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José,337 e Machado e Cerveira apresenta um Oboé, um meio registo de 8’ com ressoador

semi-real338 que surge na organaria espanhola na primeira metade do século XVIII,

embora com pouca disseminação comparativamente a outros registos de palheta (Fig.

4.16 e 4.17).339 De facto, também em Portugal não se projectou tão intensamente como

o Clarim, por exemplo. Nos Açores, além do referido órgão da Igreja Matriz da Calheta,

surge apenas no órgão de Peres Fontanes para a Igreja do Convento de S. Gonçalo em

Angra do Heroísmo, datado de 1793.

Fig. 4.16 – Tubaria do órgão da Igreja Matriz

de Santa Catarina (Calheta)

Fig. 4.17 – Tubaria do órgão da Igreja do

Carmo (palhetas junto à fachada, à esquerda)

Peres Fontanes apresenta um teclado com cinquenta e uma notas (C-d’’’),

enquanto Machado e Cerveira, comparativamente ao órgão de S. Francisco, reduz a

tessitura aguda em duas notas (C-d’’’). No órgão de Peres Fontanes, destacam-se ainda

dois pedais para o efeito de tambor, inexistentes no órgão do Convento de S. Francisco.

À semelhança do órgão de S. Francisco, o Flautado de 12 aberto da mão

esquerda do órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada é tapado até ao F#. De entre os

registos simples, há visivelmente uma preocupação de correspondência entre os

337 Também se encontra este mesmo registo no órgão da Igreja Paroquial de Santa Bárbara, actualmente

desmontado, na ilha Terceira. Cf. Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 95. 338 Terminologia sugerida por Dinarte Machado por ocasião da prova de defesa desta tese. 339 Cf. Louis Jambou, op. cit., vol. I, p. 298.

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principais de 8’ e 4’ das duas mãos, o que já não acontece com a família das Flautas, na

qual volta a surgir a duplicação do registo de flauta de 8’ na mão direita, tal como no

órgão do convento de S. Francisco (Tabela 4.15).

Igreja Matriz de São Sebastião, Ponta Delgada (S. Miguel)

António Xavier Machado e Cerveira, nº 102, 1828

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado de 12 aberto Flautado de 12 aberto

Flautado de 6 aberto Flauta travessa

Flautado de 6 tapado Flauta de Écho

Dozena (3v) Oitava real (2v)

Dozena e 19.ª (3v) Dozena e 19.ª (5v)

Quinzena Quinzena (3v)

Vintedozena (4v) Vintedozena (4v)

Clarão (5v) Corneta de Cheio (5v )

Trombeta real Voz humana

Trompa de batalha Clarim de Écho

Clarim

M. E. M. D.

Principais Flautas Principais Flautas

8’ - 8’ 8’+8’

4’ 4’ 4’340 -

- - - -

2’ - - -

Tabela 4.15 – Organização dos registos simples do órgão da Igreja

Matriz de S. Sebastião (Ponta Delgada)

No que concerne aos registos compostos (Tabela 4.16), Cerveira recorre

novamente ao registo de Clarão na mão esquerda. No entanto, comparativamente ao

órgão da Igreja Matriz da Calheta (S. Jorge), a composição é menos aguda, o que resulta

na utilização do harmónico de 17ª, por oposição ao de 24ª utilizado naquele órgão.

Ainda na mão esquerda, o registo de Dozena e 19ª apresenta a mesma construção do

registo de Dezanovena do órgão do Convento de S. Francisco, embora com mais uma

repetição, o que faz com que a altura diminua na última oitava. Situação análoga ocorre

com o meio registo de Vintedozena da mão esquerda: no órgão da Igreja Matriz de

Ponta Delgada apresenta harmónicos menos agudos e realiza mais uma repetição do que

340 Este registo é constituído por duas filas de tubos com o mesmo harmónico de 8.ª, sem repetições,

sendo por isso considerado, neste contexto, como registo simples.

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no órgão do Convento de S. Francisco. No contexto da mão direita verifica-se o mesmo

processo, comparando o meio registo de Dozena e 19ª do órgão da Igreja Matriz de S.

Sebastião com o de Dezanovena do órgão do Convento de S. Francisco.

M. E. M. D.

Dozena, 3 v. C c# g#

19ª------------------------ 15ª----

22ª---------- 19ª------------------

26ª---------- 22ª-----------------

Quinzena,

3 v.

c#’ c#’’ g#’’

8ª --------------------------------

15ª--------- 8ª ------------------

15ª-------------------------------

Dozena e 19ª,

3 v.

22ª---------- 19ª--------- 15ª----

26ª---------- 22ª--------- 19ª----

29ª---------- 26ª---------- 22ª----

Dozena e 19ª,

5 v.

12ª--------- 8ª -------------------

15ª--------- 12ª-------- 8ª341----

15ª--------- 12ª------------------

19ª--------- 15ª------------------

19ª--------- 15ª------------------

Vinte Dozena,

4 v.

22ª--------- 19ª---------- 15ª----

26ª--------- 22ª---------- 19ª----

29ª--------- 26ª---------- 22ª----

33ª--------- 29ª---------- 26ª----

Vinte Dozena,

4 v.

12ª--------- 8ª -------------------

15ª--------- 12ª------------------

19ª--------- 12ª------------------

19ª--------- 15ª------------------

Clarão, 5 v. 15ª--------- 12ª---------- 8ª-----

17ª--------- 15ª---------- 12ª----

19ª--------- 17ª---------- 15ª----

22ª--------- 19ª---------- 17ª----

26ª--------- 22ª----------- 19ª---

Tabela 4.16 – Registos compostos do órgão da Igreja Matriz de S. Sebastião (Ponta Delgada)

Esta tendência para reduzir os intervalos agudos concretiza-se não só na

composição inicial de cada fila como também no recurso a um maior número de

repetições no órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada, e poderá ser entendida como

uma mudança conceptual de Machado e Cerveira ao longo do período de quarenta anos

que separa as datas de construção dos órgãos de S. Francisco de Angra (1788) e da

Matriz de Ponta Delgada (1828).

A disposição do someiro duplo segue a mesma estrutura do órgão de S.

Francisco (ES 5). O principal de 4’ da mão esquerda, neste caso, Flautado 6 aberto, faz

parte do someiro principal, ao contrário do que acontece no órgão de S. José (aqui

designado Oitava real), no qual integra o someiro de cheios. À semelhança de S. José, o

registo solista da mão direita, Voz humana, está posicionado junto ao Flautado de 12

aberto da mão direita.

341 Segundo a descrição técnica do Inventário dos Órgãos dos Açores, esta repetição ocorre no f#’’/g’’.

Cf. p. 42.

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Clarim (MD)

Trompa de batalha (ME)

Flautado 12 aberto (ME)

Fl.

º 12

ab

.

(ME

)

Flauta travessa Fl.º 6 aberto Fl.º 6 tapado

Fl.º 1

2 ab

.

(ME

)

Fl.º 12 aberto

Voz humana

Oitava real, 2v Quinzena, 3v

Dozena e 19ª, 5v

Vintedozena, 4v Corneta, 5v

Quinzena Dozena, 3v

Dozena e 19ª, 3v

Vintedozena, 4v Clarão, 5v

Flauta eco

Clarim Trombeta real

Esquema 5 – Someiro do órgão da Igreja Matriz de S. Sebastião (Ponta Delgada)

Neste órgão encontra-se uma “Corneta de Cheio”, uma designação ímpar no

contexto açoriano que remete explicitamente para a integração da Corneta no cheio

(Tabela 4.17). A única diferença relativamente às cornetas de S. Francisco e de S. José

reside nas medidas das suas secções, mais estreitas do que naqueles (ver subcapítulo

IV.3.2).

Corneta de Cheio, 5v

c#’ g#’’

8ª ------------------------------------------

12ª---------------------- 8ª ---------------

15ª---------------------- 12ª---------------

17ª---------------------- 15ª---------------

19ª---------------------- 17ª---------------

Tabela 4.17 – Composição do registo “Corneta de Cheio” do órgão da Igreja

Matriz de S. Sebastião (Ponta Delgada)

Outra particularidade deste órgão é a presença de dois meios registos de eco na

mão direita, sem paralelo nos Açores. Contrariamente aos registos de eco que surgem na

organaria espanhola desde a segunda metade de seiscentos, integrados em caixas

próprias ou correspondendo a secções dos instrumentos de maiores dimensões,342 os

ecos deste órgão – Clarim e Flauta343 – estão dispostos nas duas últimas tampas do

342 Cf. Jesús de Lama, “Principales características de los órganos renascentistas e barrocos españoles”, e

Marco Brescia, “L’école Echevarría en Galice, et son rayonnement au Portugal”, vol. I. 343 Quatro dos seis órgãos da Basílica de Mafra têm o registo de Clarim de eco sem ser numa caixa:

Evangelho (AXMC, 1807), Santa Bárbara (JAPF, 1806), Sacramento (AXMC, 1806) e S. Pedro de

Alcântara (JAPF, 1806). A Flauta de eco, assim como o Clarim de eco, também se encontram, por

exemplo, no órgão de S. Vicente de Fora, em Lisboa, mas inserida numa caixa dentro do instrumento.

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someiro principal (junto à rectaguarda da caixa), resultando uma projecção do som mais

distante e contrastante com o timbre incisivo do Clarim da fachada, num efeito de eco

(Fig. 4.18). A proximidade física daqueles dois registos indica que devem ser utilizados

em simultâneo. Além disso, têm uma corrediça ligada a um pedal, designado pedal de

ecos, exclusivamente destinado a accionar ou desactivar o seu funcionamento,

permitindo, assim, intervenções rápidas sem que o organista necessite de ajuda de

outrem.344

Fig. 4.18

Órgão da Igreja Matriz de S. Sebastião

AXMC, n.º 102, 1828

Tubaria do lado direito do someiro

(com a fachada à esquerda). Registos de

eco nas duas últimas tampas do someiro

(lado direito da imagem).

Além do Clarim de eco e do Clarim (posicionado na fachada) este órgão

apresenta mais dois jogos de palhetas na mão esquerda, um interior com 8’ e ressoador

longo – Trombeta real –, e outro na fachada com 4’, Trompa de batalha (Tabela 4.18).

Apesar da palheta interior estar incorporada no someiro principal, a sua utilização não

depende da acção manual, como se verifica em S. José, pois Machado e Cerveira

introduz um pedal para anular todas as palhetas, interiores e exteriores, facilitando

sobremodo a execução. Este recurso, tal como o do pedal de ecos, será explorado nas

composições de Silvestre Serrão, como se verá no capítulo VI.

Machado e Cerveira utiliza dois pisantes para efeito de tambor, correspondentes

às notas Sol e Ré. A extensão do teclado atinge as cinquenta e seis teclas (C-g’’’),

acompanhando assim as exigências do repertório da época. Os tubos estão dispostos em

344 O órgão da Igreja de N.ª Sr.ª da Luz (Fenais da Luz – Ponta Delgada), de AXMC (n.º 100, 1826),

incorpora um pedal para accionar o efeito de eco, o qual corresponde, possivelmente à cortina de pano

visível na fachada do instrumento, cujo movimento produziria o referido efeito.

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103

cima do someiro de forma diatónica.

M. E. M. D.

Trombeta real (8’ I) Clarim de Écho (8’ I)

Trompa de batalha (4’ E) Clarim (8’ E)

Tabela 4.18 – Registos de palheta no órgão da Igreja Matriz de S. Sebastião (Ponta Delgada)

Convento de Santo André, Ponta Delgada (S. Miguel)

António Xavier Machado e Cerveira, nº 104, 1828

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado 12 tap. Flautado 12 aberto

Flautado 6 aberto Flauta travessa

Dozena e 19.ª (3v) Flautim

Quinzena 8ª real e 15.ª (5v)

Clarão (5v) Corneta (5v)

Fagote Clarim

Igreja do Espírito Santo, Maia (S. Miguel)

Sebastião Gomes de Lemos, 1848

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado de 12 tapado Flautado de 12 aberto

Flautado 6 aberto Flauta em 12

Dozena e 19ª (3v) Flautim

Quinzena Oitava real e 15ª (5v)

Clarão (5v) Corneta (5v)

Fagote Clarim

Em termos historiográficos, estes dois instrumentos assumem um papel

significativo, porquanto o órgão do Convento de Santo André encerra a época marcada

pela importação dos instrumentos de AXMC e JAPF, e o órgão da Igreja do Espírito

Santo (Maia) é o primeiro instrumento que se conhece após a secularização, a partir do

qual se inicia uma nova fase na construção de órgãos nos Açores. Conceptualmente, têm

múltiplos aspectos em comum, facto que corrobora a ligação entre os seus construtores

(ver cap. III.1).

Em ambos os órgãos o Flautado de 12 tapado na mão esquerda passa a ser aberto

(de metal) a partir de g, tal como sucede no órgão de S. Francisco. Pese embora este

ponto em comum, por si só suficiente para pertencerem à categoria A, foram

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104

incorporados na categoria B (órgãos de médias dimensões) porque, comparativamente

ao órgão do Convento de S. Francisco, têm um plano fónico menos extenso.345 Com a

presença parcial de um Flautado de 12 aberto na mão esquerda, o plano fónico dessa

parte do teclado aproxima-se claramente da concepção de Machado e Cerveira no órgão

da Igreja Matriz de Ponta Delgada. Ainda no cenário dos registos simples (Tabela 4.19),

destacam-se duas flautas cónicas na mão direita, uma de 8’ e outra de 4’, uma estrutura

que não é estranha a Peres Fontanes mas não é linear em Machado e Cerveira.

Convento de Santo André

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

[8’] 8’ 8’ 8’

4’ - - 4’

- - - -

2’ - - -

Igreja do Espírito Santo (Maia)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

[8’] 8’ 8’ 8’

4’ - - 4’

- - - -

2’ - - -

Tabela 4.19 – Organização dos registos simples nos órgãos do Convento de Santo

André e da Igreja do Espírito Santo

Apesar de apresentarem apenas três meios registos compostos, por sinal com as

mesmas designações e o mesmo número de filas e harmónicos, a única diferença entre

eles reside na realização de uma segunda repetição no meio registo de Dozena da mão

esquerda no órgão de Gomes de Lemos. Na Tabela 4.20, os asteriscos indicados nesse

registo de Dozena significam que essa repetição não se efectua em Santo André.

Comparativamente aos órgãos das Igrejas Matriz da Calheta (S. Jorge) e Matriz de Ponta

Delgada, as filas do meio registo de Clarão da mão esquerda dos órgãos de Santo André

e da Maia apresentam harmónicos mais próximos do órgão da Igreja Matriz da Calheta,

retomando o harmónico de 24ª.

Refira-se a presença do registo de Corneta, no qual se encontra uma das

diferenças entre os dois instrumentos, pois no órgão do convento de Santo André tem

duas repetições, duas delas remetendo para um registo de 16’ (que não existe no plano

345 Nos órgãos do Convento de Santo André e da Igreja do Espírito Santo (Maia) não é possível perceber

a nomenclatura utilizada, dado o estado de deterioração das mesmas. No primeiro a confirmação do tipo e

altura dos diferentes registos foi possível graças à acção manual do fole. Não tendo sido possível o

mesmo procedimento no órgão da Igreja da Maia, devido à sua inoperacionalidade à época deste estudo,

os dados aqui apresentados resultam da observação do instrumento e das informações do Inventário dos

Órgãos dos Açores (Cf. p. 59).

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105

fónico), e no órgão da paroquial da Maia apenas uma repetição. O órgão do convento de

Santo André é o único da amostra de instrumentos aqui em análise que contempla uma

fila com o harmónio de 22ª no registo de Corneta (Tabela 4.21).

Tabela 4.20 – Composição dos registos compostos (mão direita e esquerda) nos órgãos

do Convento de Santo André e da Igreja do Espírito Santo (Maia)

Convento de Santo André Igreja do Espírito Santo (Maia)

Corneta

c# c#’’ c#’’’

8ª ----------- 5ª------------ Fl.º 12 ab-

12ª---------- 8ª------------ 5ª-----------

15ª----------12ª----------- 8ª----------

17ª----------15ª----------- 12ª---------

22ª----------17ª----------- 12ª--------

Corneta

c#’ c#’’ c#’’’

8ª ----------------------------------------------

12ª------------------------------------ 8ª -----

15ª------------------------------------ 12ª-----

17ª------------------------------------ 15ª-----

19ª------------------------------------ 17ª-----

Tabela 4.21 – Composição do registo de Corneta nos órgãos do Convento de Santo André e da

Igreja do Espírito Santo (Maia)

De acordo com a tendência já verificada em Machado e Cerveira, as medidas das

secções das cornetas desses dois instrumentos são ainda mais estreitas do que nos

órgãos anteriores e, a integração no someiro de cheios, confirma a sua presença no

cheio. O Flautado 6 aberto da mão esquerda faz parte do someiro principal. A

disposição do someiro duplo segue igualmente a estrutura típica de Machado e Cerveira.

A combinação dos meios registos de palheta Fagote (mão esquerda) e Clarim

(mão direita) permanece em ambos os instrumentos, com os respectivos tubos

posicionados na rectaguarda da caixa (ES 6 e 7), no someiro principal. Todavia,

enquanto no órgão de Santo André essas palhetas estão dispostas cromaticamente, no

órgão da Maia, organizam-se de forma diatónica (Fig. 4.19 e 4.20).

M. E. M. D.

Dozena, 3 v.

(composta de 12ª

e 19ª)

C c# g#

19ª-------------- 15ª ------------ 12ª*-

22ª-------------- 19ª ------------ 15ª*-

26ª-------------- 22ª ------------ 19ª*-

Oitava real e 15.ª, 5v

c#’ c#’’ c#’’’

8ª --------------------------------------

8ª ---------------------------------------

15ª-------------------------- 8ª --------

15ª-------------------------- 8ª --------

15ª-------------------------- 8ª --------

Clarão, 5 v. 19ª-------------- 15ª ------------ 12ª--

22ª-------------- 19ª ------------ 15ª--

24ª-------------- 22ª ------------ 19ª -

26ª-------------- 24ª ------------ 22ª--

29ª-------------- 26ª ------------ 24ª--

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106

Flautado 12 aberto (MD) + Flautado 6 aberto (ME)

Fl.º 12 aberto Fl.º 6 aberto

Flauta Travessa [Flauta em 12]346

Flautim Quinzena

Oitava real e 15., 5v Dozena e 19ª, 3v

Corneta, 5v Clarão, 5v

Flautado 12 tapado (ME-aberto a partir de g)

Clarim Fagote

Esquema 6 e 7 – Someiro dos órgãos do Convento de Santo André e da

Igreja do Espírito Santo (Maia)

Fig. 4.19 – Registo de Fagote do órgão

do Convento de S. André

Fig. 4.20 – Registo de Fagote do órgão da

Igreja do Espírito Santo

A restante tubaria está distribuída cromaticamente (Fig. 4.21 e 4.22). Ambos os

instrumentos dispõem de um pedal anulador de cheios e, no órgão de Santo André, há

também dois pisantes para o efeito de tambor.

346 Nomenclatura inserida no Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 29

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107

Fig. 4.21 – Tubaria do órgão do Convento

de S. André (fachada à esquerda)

Fig. 4.22 – Tubaria do órgão da Igreja

do Espírito Santo (fachada à esquerda)

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Estrela, Ribeira Grande (S. Miguel)

Sebastião Gomes de Lemos, 1855

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado de 12 tapado Flautado 12 aberto

Flautado 6 aberto Flautado de 12 tapado

Flautado 6 tapado Flauta travessa

Dozena (3v) Flautim

Quinzena Oitava real e 15ª (4v)

Vinte Dozena (3v) Dozena e 19ª (4v)

Clarão (4v) Corneta (4v)

Trompa Clarim

O órgão da Igreja Matriz da Ribeira Grande é o terceiro e último instrumento

nos Açores da autoria de Gomes de Lemos. Ao contrário dos outros dois (Maia e

Manadas de S. Jorge), apresenta uma caixa com fachada aberta, cuja estrutura, à partida,

comportaria um Flautado 12 aberto em toda a extensão, o qual só existe na mão direita.

Na ausência de contractos com as opções de construção, deduz-se que esse tipo de

situação tenha mais a ver com restrições orçamentais e até mesmo com a dificuldade no

acesso a tubos de metal (tendo em conta que não existia metal produzido nos Açores) do

que propriamente com uma opção estética.

No conjunto dos registos simples predominam os da família das Flautas. Com a

respectiva salvaguarda da mão esquerda, a sua estrutura é uma réplica do órgão do

Convento de S. Francisco (Tabela 4.22).

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108

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ 8’ 8’ + 8’

4’ 4’ - 4’

- - - -

2’ - - -

Tabela 4.22 – Organização dos registos simples no órgão da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Estrela

(Ribeira Grande)

Contudo, contrariamente ao que sucede nos órgãos que integram os meios

registos da mão direita Flauta (ou Flauta Travessa) e Flautim, neste instrumento, estes

registos não se encontram juntos, pois a Flauta travessa está posicionada no último

tabuão do someiro duplo. À semelhança dos órgãos de Machado e Cerveira, o registo

principal de 4’ – Flautado 6 aberto – integra o someiro principal (ES 8).

Trompa (ME) Clarim (MD)

Fl.º 6 aberto (ME)

Fl.

º 12

tap

ado (

ME

) Fl.º 12 aberto Fl.º 6 tapado

Fl.º 1

2 tap

ado (M

E)

Flautim

Fl.º 12 tap. Quinzena

Oitava real e 15ª Dozena, 3v

Dozena e 19ª Vintedozena, 3v

Corneta, 4v Clarão, 4v

Flauta travessa

Esquema 8 – Someiro do órgão da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Estrela (Ribeira Grande)

Quanto aos registos compostos, há efectivamente uma redução no número de filas

relativamente aos instrumentos anteriores (Tabela 4.23). Comparando o registo de

Clarão da mão esquerda do órgão da Igreja Matriz da Ribeira Grande com o registo

homólogo noutros instrumentos (nomeadamente Matriz da Calheta, Matriz de Ponta

Delgada, Santo André e Maia), verifica-se, antes de mais, que a primeira repetição se

realiza numa nota diferente, G# em vez de c#. Em termos de estrutura intervalar,

recupera os harmónicos agudos presentes nos órgãos das Igrejas Matriz de Santa

Catarina (Calheta), Convento de Santo André e Espírito Santo (Maia) e mantém-se na

última tampa do someiro dos cheios.

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109

M.E. M.D.

Dozena,

3 v.

C G# c# g#

19ª-------------- 15ª------ 12ª---

22ª-------------- 19ª------ 15ª---

26ª-------------- 22ª------ 19ª---

Oitava real

e 15ª, 4 v.

c#’ c#’’ c#’’’

8ª -----------------------------------

8ª -----------------------------------

15ª---------- 8ª---------------------

15ª---------- 8ª --------------------

Vinte

Dozena,

3 v.

22ª-------------- 19ª-------------

26ª-------------- 22ª-------------

29ª-------------- 26ª-------------

Dozena e

19ª, 4 v.

12ª --------- 8ª ---------------------

15ª---------- 12ª -------------------

19ª---------- 12ª -------------------

22ª---------- 15ª -------------------

Clarão, 4 v. 19ª--- 15ª------ 12ª--------------

22ª--- 19ª------ 15ª--------------

24ª--- 22ª------ 19ª--------------

26ª--- 24ª------ 19ª--------------

Tabela 4.23 – Composição dos registos compostos no órgão da

Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Estrela (Ribeira Grande)

O meio registo de Dozena da mão esquerda tem uma composição igual à do

registo homónimo do outro órgão construído por Gomes de Lemos para a Igreja do

Espírito Santo na Maia. Observam-se ainda outras características similares ao órgão da

Igreja Matriz de S. Sebastião de Machado e Cerveira: o meio registo de Vintedozena na

mão esquerda e o meio registo da mão direita Dozena e 19.ª

O registo de Corneta surge pela primeira vez nos instrumentos desta amostra

com quatro filas (8ª real–12ª–15ª–17ª), e igualmente sem fundamental (Tabela 4.24). 347

Está também posicionado no someiro dos cheios, e junto à Flauta travessa (rectaguarda

da caixa, Fig. 4.23). As suas medidas são muito mais próximas das de Peres Fontanes

no órgão de S. José do que em qualquer outro instrumento, pelo que se lhe atribui um

perfil claramente solístico.

O único par de meios registos de palheta encontra-se na fachada em posição

horizontal: uma Trompa de 4’ na mão esquerda e um Clarim de 8’ na mão direita, os

quais são accionados por um pedal próprio, mecanismo encontrado no órgão de

Machado e Cerveira da Igreja Matriz de Ponta Delgada.

347 Estas características são compatíveis com a Corneta inglesa descrita por Jesús de la Lama em El

Órgano Barroco Español, vol. II, p. 402.

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110

Corneta

c#’ c#’’ c#’’’

8ª ----------------------------------------------

12ª------------------ 8ª -----------------------

15ª------------------- 12ª---------------------

17ª------------------- 15ª----------------------

Tabela 4.24 – Composição do registo de Corneta no órgão da Igreja Matriz de

N.ª Sr.ª da Estrela (Ribeira Grande)

Fig. 4.23

Tubaria do órgão da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª

da Estrela (fachada ao fundo)

Igreja de São Pedro, Ponta Delgada (S. Miguel)

João Nicolau Ferreira [Joaquim Silvestre Serrão], 1858

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado 12 aberto Flautado 12 aberto

Flautado 12 tapado Flautado 12 tapado

Flautado 6 aberto Flauta

Dozena Oitava real

Quinzena Dozena

22ª Quinzena (2v)

Cheio (3v) Cheio (3v)

Clarão (4v) Corneta (4v)

Trombeta real Clarim

Este é o único instrumento de fachada aberta da terceira fase com um Flautado

aberto de 12 palmos em toda a extensão do teclado, embora seja tapado de madeira até

F#, tal como o órgão da Matriz de Ponta Delgada. No órgão da Igreja de S. Pedro de

Ponta Delgada verifica-se, pela primeira vez nos instrumentos do século XIX, uma

organização dos flautados de ambas as mãos aparentemente decalcada do órgão de S.

José, construído por Peres Fontanes (Tabela 4.24). A duplicação da flauta de 8’ na mão

direita (uma com configuração aberta e outra tapada) é um recurso recorrente em

Machado e Cerveira, em órgãos como S. Francisco e Matriz de Ponta Delgada, surgindo

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111

igualmente no órgão da Matriz da Ribeira Grande. Nota-se a ausência de uma Flauta de

4’ na mão direita, que também ocorre no órgão da Matriz de Ponta Delgada,

contrariando a tendência verificada em todos os outros instrumentos construídos até

1858, nos quais existe um meio registo da mão direita designado Flautim (terminologia

mais comum em Machado e Cerveira) ou Flauta em 6 (termo utilizado por Peres

Fontanes). O flautado de 4’ da mão esquerda, Flautado 6 aberto, encontra-se na mesma

posição de todos os instrumentos de Machado e Cerveira e Gomes de Lemos, na

primeira fila junto à fachada, apresentando-se assim como um reforço do Flautado de 12

aberto, principalmente na primeira oitava grave, onde existem alguns tubos de madeira

(tapados) com uma sonoridade obviamente mais velada.

Contrariamente a Peres Fontanes e na mesma linha de Machado e Cerveira,

Silvestre Serrão e João Nicolau Ferreira optam exclusivamente por registos divididos.

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

8’ 8’ 8’ 8’+8’

4’ - 4’ -

2’ ⅔ - 2’ ⅔ -

2’ - 2’348 -

1’ - - -

Tabela 4.24 – Organização dos registos simples no órgão da Igreja de S. Pedro

(Ponta Delgada)

O meio registo de Flauta da mão direita assume especial importância neste

órgão, não só pela sua sonoridade, particularmente doce, mas sobretudo por ser um jogo

de factura artesanal, em madeira e com configuração piramidal, inexistente noutros

instrumentos (Fig. 4.24 e 4.24 a). Tendo em conta o contributo de João Nicolau Ferreira

neste instrumento, carpinteiro de profissão, que aliás assina o instrumento, parece

incontestável que o jogo em causa tenha sido construído pelo próprio Nicolau Ferreira.

Esse registo de Flauta não só demonstra o recurso aos materiais disponíveis como revela

a versatilidade dos construtores locais, mesmo sem aparente formação organeira.

Ressalve-se o meio registo de Vigésima segunda da mão esquerda, que se

348 Este registo é constituído por duas filas iguais, sem repetição, sendo assim considerado, neste

contexto, como registo simples, tal como acontece no órgão da Igreja de S. José, em Ponta Delgada.

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112

apresenta pela primeira vez nos órgãos da amostra em versão simples.

Fig. 4.24 – Tubaria do órgão da Igreja de

S. Pedro (Ponta Delgada)

Fig. 4.24a – Tubo correspondente a c# do

registo de Flauta (mão direita) do órgão da

Igreja de S. Pedro (Ponta Delgada)

Os registos compostos são em menor número e com menos filas do que nos

instrumentos anteriores (Tabela 4.25). Da mão esquerda faz parte o registo de Clarão, já

usado por Machado e Cerveira e Gomes de Lemos, e surge, pela primeira vez no

panorama açoriano, um registo designado “Cheio”. Os harmónicos desses dois meios

registos compostos da mão esquerda tendem a ser mais agudos do que nos instrumentos

cronologicamente próximos, revelando uma concepção mais parecida com a dos órgãos

do Convento de S. Francisco e da Igreja de S. José.

M.E. M. D.

Cheio, 3 v. Clarão, 4 v. Cheio, 3 v. Quinzena, 2 v.

C

26ª------------------------

29ª------------------------

29ª------------------------

C

19ª--------------------------

22ª--------------------------

24ª--------------------------

29ª--------------------------

c#’ c#’’ g#’’

19ª-----------------12ª--

19ª-----------------15ª--

22ª-----------------19ª--

c#’ c#’’ g#’’

15ª-------------------8ª---

15ª------------------------

Tabela 4.25 – Composição dos registos compostos no órgão da Igreja de S. Pedro

(Ponta Delgada)

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113

Em termos de registos solísticos da mão direita salienta-se a Corneta, com a mesma

composição do órgão da Igreja Matriz da Ribeira Grande (Tabela 4.26). Em algumas

filas apresenta secções muito similares a esta última, inclusivamente. Sendo

ligeiramente mais largas do que Machado e Cerveira, as secções da Corneta do órgão da

Igreja de S. Pedro (Ponta Delgada) também não se equiparam às de Peres Fontanes.

Corneta, 4v

c#’ c#’’ g#’’ c#’’’

8ª ---------------------------------------------

12ª--------------------------------------------

15ª--------------------------------------------

17ª------------------------------------ 12ª----

Tabela 4.26 – Composição do registo de Corneta no órgão da Igreja de S. Pedro

(Ponta Delgada)

Apesar de se poder apresentar nas duas funções, solística ou integrada no cheio, os

construtores optaram por seguir o exemplo de Machado e Cerveira e posicionar a

Corneta na última tampa do someiro de cheios, sendo, assim, controlada pelo pedal de

cheios.

Trompa real (ME)

Clarim (MD)

Flautado 12 aberto (ME)

Fl.

º 12

aber

to

(ME

) Fl.º 12 aberto Fl.º 6 aberto Fl.º 1

2

aberto

(ME

)

Flauta Fl.º 12 tapado

Fl.º 12 tapado

Oitava real 12ª

15ª, 2v

Cheio, 3v Corneta, 4v

12ª 15ª

22ª

Cheio, 3v Clarão, 4v

Esquema 9 – Someiro do órgão da Igreja de S. Pedro (Ponta Delgada)

Não obstante a disposição de alguns jogos em cima do someiro ser muito

semelhante à do órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada (onde Silvestre Serrão era

organista), a organização do someiro duplo segue o modelo do órgão de S. José, ou seja,

depois do someiro de cheios não existem mais jogos do someiro principal (ES 9). A

distribuição dos tubos em cima do someiro é diatónica, tal como nos órgãos das Igrejas

de S. José e Matriz de Ponta Delgada (ver Fig. 4.24).

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114

Este instrumento só tem registos de palheta exteriores, um para cada parte do

teclado, sendo que a nomenclatura “Trompa Real”, regra geral aplicada à palheta

vertical interior (também designada por “Trombeta real”) significa, neste caso, uma

Trompa de batalha de 4’, como na Matriz de Ponta Delgada. Tal como esse instrumento,

o órgão de S. Pedro também dispõe de um pedal para anular as palhetas.

Igreja Matriz, Velas (S. Jorge)

Thomé Gregório de Lacerda, 1865

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)349

Flautado 12 tapado Flauta

Flautado 6 tapado Flautim

Oitava real Oitava real

Dozena Dozena

Quinzena Composto de 12ª e 15ª

Dezanovena e 22ª Quinzena

Vigesima quarta Dezassetena

Símbala Símbala

[Baixãozinho] [Clarim]

Este órgão de Tomé Gregório de Lacerda (único sobrevivente de um conjunto de

quatro) representa o exemplo de construção mais invulgar da organaria histórica insular,

ou, noutra perspectiva, é o reflexo de inúmeras intervenções. No “esboço histórico”

escrito pelo pároco em actividade na época do restauro, Manuel Garcia da Silveira,

informa-se que o instrumento tinha problemas técnicos derivados da sua concepção

original, e que foram resolvidos no restauro, realizado por Dinarte Machado entre 1990

e 1994. A igreja à qual pertence o instrumento dispõe de um pequeno portfolio com

fotografias do instrumento antes e depois do restauro (Fig. 4.26). Não obstante, há

determinadas situações pouco explícitas, nomeadamente a Flauta de 8’ da mão direita,

cuja configuração artesanal (parecida ao registo homónimo do órgão da Igreja de S.

Pedro, em Ponta Delgada) leva a supor tratar-se de um dos registos originais, não sendo

possível visualizá-la em nenhuma das imagens anteriores ao restauro.350

349 No Inventário dos Órgãos dos Açores, o plano fónico da mão direita contempla um Flautado de 12

aberto que, na realidade, não existe. Por sua vez, este instrumento tem uma Flautim na mão direita que

também não está mencionado no referido inventário. Cf. op. cit., p. 99. 350 Os tubos extraídos do instrumento por ocasião do restauro estão guardados numa vitrine junto ao

órgão.

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115

Fig. 4.26

Excerto do portfolio

existente na Igreja

Matriz das Velas

Não dispondo a igreja dos documentos técnicos do restauro que esclareçam o

âmbito da ampliação e remodelação do instrumento, o estudo técnico desse instrumento

impõe-se não pela sua integridade, mas sim pela representatividade do seu construtor e,

sobretudo, pelos indícios de uma concepção enformada na organaria tardo-setecentista

portuguesa.

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ - 8’

4’ 4’ 4’ 4’

2’ ⅔ - 2’ ⅔ -

2’ - 2’ - 45’ - 135’ -

Tabela 4.27 – Organização dos registos simples no órgão da Igreja Matriz das Velas

(S. Jorge)

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116

Nos registos simples verifica-se a ausência de um Flautado 12 aberto na mão

direita (Tabela 4.27). O Flautado de 6 aberto da mão esquerda, disposto na fachada, faz

parte do someiro principal, à semelhança de Machado e Cerveira. O meio registo de

Flautim (muito característico em Machado e Cerveira e Gomes de Lemos), surge no

plano fónico deste instrumento, localizado na tampa junto à Flauta de 8’ da mão direita

(Fig. 4.27).

Fig. 4.27 – Tubaria do órgão da

Igreja Matriz das Velas (S. Jorge):

lado direito do someiro com o

registo de Flauta ao fundo.

Uma das peculiaridades desse instrumento reside nos dois meios registos com

intervalo de terceira – Vigésima quarta na mão esquerda e Dezassetena na mão direita,

harmónicos totalmente desconhecidos nos órgãos de Peres Fontanes e Machado e

Cerveira, quer no continente, quer nos Açores, a não ser como parte dos registos de

Corneta e de Clarão. A probabilidade daqueles registos terem sido resultado de uma

intervenção posterior à construção do órgão parece transparecer no esquema do

someiro, onde se encontram na última tampa do someiro de cheios. Embora a

disposição do someiro duplo siga a lógica de Peres Fontanes no órgão da Igreja de S.

José, a distribuição dos jogos coaduna-se com o modelo de Machado e Cerveira, o qual

posiciona os registos compostos no término do someiro de cheios (junto às portadas

traseiras do instrumento). Sublinhe-se, porém, que este órgão, assim como o da Igreja

de Nossa Senhora da Ajuda (Bretanha – S. Miguel) são os únicos desta amostra de

instrumentos em que o meio registo de Oitava real da mão direita faz parte do someiro

principal (ES 10).

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[Clarim + Baixãozinho]

Oitava real (ME)

Oitava real Fl.º 12 tapado Fl.º 1

2 tap

ado (M

E)

Flauta

Flautim Fl.º 6 tapado

Dozena Dozena

Quinzena Quinzena

Símbala, 3v Símbala, 3v

Compostas de 12ª e 15ª, 2v Dezanovena e 22ª, 2v

Dezassetena Vigésima quarta

Esquema 10 – Someiro do órgão da Igreja Matriz das Velas (S. Jorge)

Contam-se dois meios registos compostos em cada metade do teclado, não

ultrapassando cada um as três filas (Tabela 4.28). A Símbala surge na forma de dois

meios registos, tal como no órgão do Convento de S. Francisco (no órgão da Igreja de S.

José surge como registo inteiro). Além de apresentar uma das repetições na nota Bb, o

que não se verifica em nenhum outro instrumento da amostra, a principal diferença entre

aqueles dois instrumentos, um de Peres Fontanes e outro Machado e Cerveira, e o de

Tomé Gregório de Lacerda, consiste nos harmónicos muito mais agudos da Símbala na

mão direita neste último.

M.E. M. D.

Dezanovena e 22ª,

2 v.

Símbala, 3 v. Compostas de 12.ª e

15.ª, 2 v.

Símbala, 3 v.

C

19ª------------------------

22ª------------------------

C Bb g#

29ª----- 26ª------------ 22ª

33ª----- 29ª------------ 26ª

36ª----- 33ª ----------- 29ª

c#’

12ª----------------------

15ª----------------------

c#’ e’ c#’’ a#’’

22ª--- 19ª---15ª------12ª-

26ª--- 22ª---19ª------15ª-

29ª--- 26ª---22ª------19ª-

Tabela 4.28 – Composição dos registos compostos no órgão da Igreja Matriz das Velas

(S. Jorge)

Os dois meios registos de palheta posicionados horizontalmente – Baixãozinho na

mão esquerda e Clarim na mão direita – não serão aqui analisados porque reflectem um

acrescento efectuado no instrumento muito depois da sua construção, como se

depreende através dos próprios manípulos na consola (Fig. 4.28). 351

351 Não foram encontrados quaisquer dados sobre a data e o responsável pela introdução dessas palhetas,

que ocorreu por ocasião de uma intervenção muito anterior ao restauro. No referido portfolio, guardado

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118

Fig. 4.28 – Manípulos dos meios registos de palheta: Baixãozinho (mão esquerda) e

Clarim (mão direita)

Este instrumento incorpora um pedal de cheios e apresenta uma extensão de

teclado com cinquenta e seis notas (C–g’’’).

Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, Bretanha (S. Miguel)

João Nicolau Ferreira, n.º 9, 1877

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado 12 tapado Flautado de 12 aberto

Flautado 6 aberto Flautim

Flautado 6 tapado Oitava real

Quinzena Oitava real e 15ª

Vinte dozena Dozena

Cheio Quinzena

Cheio

O nono instrumento de João Nicolau Ferreira foi seguramente construído sem a

supervisão de Silvestre Serrão, pois este falecera em Fevereiro de 1877, após doença

prolongada.

Da sua estrutura fónica realça-se a organização dos registos da família dos

flautados na mão direita (Tabela 4.29), idêntica à de Peres Fontanes no órgão de S. José

(fundamental–8ª–12ª–15ª) e única de entre os restantes instrumentos da amostra

construídos até àquela data.

na igreja, há referência ao facto de as palhetas serem um registo inteiro, que teve de ser dividido em dois

meios registos por questões técnicas na acção de restauro.

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119

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ 8’ -

4’ 4’ 4’ 4’

- - 2’ ⅔ -

2’ - 2’ -

1’ - - -

Tabela 4.29 – Organização dos registos simples no órgão da Igreja de N.ª Sr.ª da Ajuda

(Bretanha)

Um dos aspectos menos coerentes neste instrumento é a duplicação dos

harmónicos de oitava e décima quinta na mão direita, obtida pelo meio registo de Oitava

real e 15ª, numa estrutura que já incorpora os intervalos de 4’ e 2’ em registos simples.

Procedimento igual surge na mão direita do órgão de Tomé Gregório de Lacerda, onde

o meio registo de Compostas de 12ª e 15ª duplica os principais de décima segunda e

décima quinta já existentes como registos simples.

O tubo correspondente a “c” (Dó2) do meio registo de Quinzena é um forte

indicador da reutilização de materiais de outros órgãos: trata-se de um tubo que termina

num ângulo recto e com uma inscrição “d”, a qual sugere a sua função noutro órgão

com a nota Ré e não Dó. Neste órgão, em concreto, não há falta de espaço no interior da

caixa, pelo que não se justifica o formato em ângulo recto daquele tubo (Fig. 4.29).352

Outra prova é a presença, no interior da caixa, de alguns tubos com a boca dourada, os

quais, no seu instrumento de origem, fariam parte da fachada.

Tal como se verificou no órgão da Igreja de S. Pedro de Ponta Delgada, surge

igualmente neste órgão de João Nicolau Ferreira o meio registo de Vinte dozena na mão

esquerda em versão simples.

O único registo composto é o Cheio, presente em forma de meio registo em

ambas as mãos (recurso nesta amostra apenas encontrado no órgão de S. Pedro de Ponta

Delgada), com duas filas, e uma única repetição na segunda fila da mão direita.

Comparando a composição do registo de Cheio neste órgão de N.ª Sr.ª da Ajuda com o

da Igreja de S. Pedro de Ponta Delgada, verifica-se não só a redução do número de filas

como também dos harmónicos agudos, principalmente na mão direita, uma tendência já

352 Fotos gentilmente cedidas por Pedro Hilário.

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120

anunciada por Machado e Cerveira (Tabela 4.30).

S. Pedro PD (n.º 2)

Cheio, 3 v M. E. M. D.

C

26ª-----------------------------------

29ª-----------------------------------

29ª-----------------------------------

c#’ c#” g#’’ c#’’’

19ª------- 12ª------------------------

19ª------- 15ª------------------------

22ª------- 19ª------------------------

N.ª Sr.ª da Ajuda (n.º 9)

Cheio, 2 v M. E. M. D.

C c# g#

22ª-----------------------------------

29ª-----------------------------------

c#’ c#’’

15ª--------------------------------------

19ª--------- 15ª-------------------------

Tabela 4.30 – Composição dos registos compostos no órgão da Igreja de N.ª Sr.ª da Ajuda

(Bretanha)

À semelhança do órgão da Matriz das Velas, este órgão da Bretanha não

contempla os meios registos da mão direita Voz humana e Corneta, embora apresente

uma flauta de 4’, designada Flautim, que, quando suportada pela Flauta ou pelo

Flautado 12 tapado resulta num efeito solístico. A ausência de uma Flauta ou do

Flautado 12 tapado do plano fónico deste instrumento representa uma excepção no

âmbito dos instrumentos em análise.

Fig. 4.29 – Tubaria do órgão da Igreja de

N.ª Sr.ª da Ajuda: tubo com boca dourada

(ao fundo, à esquerda) e tubo com ângulo

recto (à direita).

A disposição do someiro duplo obedece à estrutura de Peres Fontanes no órgão da

Igreja de S. José, embora a distribuição dos registos prossiga a concepção de Machado e

Cerveira. Atendendo à referida duplicação de flautados na mão direita, o meio registo

de Oitava real integra o someiro principal, tal como acontece no órgão da Igreja Matriz

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121

das Velas, enquanto o registo na versão composta (também com a Oitava real), se insere

no someiro de cheios. O meio registo de Flautado 6 aberto da mão esquerda, disposto na

fachada, integra o someiro principal (ES 11), à semelhança de Machado e Cerveira.

Flautado 6 aberto (M.E.)

Fl.º 12 aberto Fl.º 12 tapado

Fl.º 6 tapado Flautim

Oitava real

Oitava real e 15.ª, 2v Quinzena

Vintedozena

Cheio, 2v

Fl.º 1

2 tap

.

(ME

)

Dozena

Quinzena

Cheio, 2v

Esquema 11 – Someiro do órgão da Igreja de N.ª Sr.ª da Ajuda (Bretanha)

Neste órgão existe um pedal para anular os cheios. A extensão do teclado

permanece com cinquenta e seis teclas (C-g’’’).

Igreja de S. João Baptista, S. João (Pico)

Nicolau António Ferreira, 1884

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado 12 tapado Flautado de 12 aberto

Flautado 6 tapado Flautado 12 tapado

Oitava real Flautim

Quinzena Oitava real

Dezanovena Comp. de 12ª e 19ª

Cheio (2v) Comp. de 15ª e 22ª

Fagote Clarim

Tal como já foi referido no capítulo III.3, não há provas das filiação directa de

Nicolau António Ferreira com João Nicolau Ferreira, nem tão pouco notícias ou

vestígios sobre a actividade organeira de Nicolau A. Ferreira, sendo este instrumento o

único exemplar da sua autoria. Todavia, é um instrumento assaz representativo no

conjunto dos instrumentos açorianos da segunda metade do século XIX pelos inúmeros

elementos inerentes à concepção de Peres Fontanes e de Machado e Cerveira.353 De

entre os vários órgãos que compõem a categoria B, este é o que apresenta maior simetria

dos registos simples entre as duas mãos, traduzindo a consistência da sua concepção

353 Segundo Dinarte Machado, responsável pelo seu restauro em 2008, o instrumento fora concebido para

uma sonoridade mais “romântica”, tendo sido rearmonizado por ocasião do seu restauro em 2008. Cf. D.

Machado e G. Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, p. 127.

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(Tabela 4.31), não obstante a ausência de um principal de 8’ na mão esquerda. É o

primeiro instrumento da amostra que usa um meio registo de Dezanovena na mão

esquerda em versão simples.

M. E. M. D.

Principais Flautas Principais Flautas

- 8’ 8’ 8’

4’ 4’ 4’ 4’

- - - -

2’ - - -

113’

Tabela 4.31 – Organização dos registos simples no órgão da Igreja de S. João (Pico)

Nos únicos dois registos compostos da mão direita destaca-se uma fundamental

de 16’ inserida no registo Compostas de 12ª e 19ª, a qual remete para uma fundamental

de 16’ que não existe no órgão (Tabela 4.32), tal como sucede com a Corneta no órgão

da Igreja do Convento de Santo André.

M.E. M. D.

Cheio, 2 v. Compostas de 12ª e 19ª, 2 v. Composta de 15ª e 22ª, 2 v.

C c# g#

22ª---------- 15ª -------------

26ª---------- 19ª -------------

c#’ c#’’ c#’’’

12ª--------- 5ª-------------------

19ª-------- 12ª------------- 5ª--

c#’ c#’’ c#’’’

15ª ------- 8ª ------------ 12 ab-

19ª-------- 12ª----------- 5ª-----

Tabela 4.32 – Composição dos registos compostos no órgão da Igreja de S. João (Pico)

Na mão esquerda mantém-se a tendência para registos simples, sendo única

excepção o Cheio com 2 filas (Tabela 4.32). Confrontando a composição deste meio

registo com o homónimo dos órgãos de N.ª Sr.ª da Ajuda (Bretanha) e de S. Pedro de

Ponta Delgada, verifica-se uma clara redução dos intervalos agudos.

A disposição do someiro duplo respeita a concepção de Peres Fontanes no órgão

de S. José e a distribuição dos jogos segue a estrutura de Machado e Cerveira (ES 12).

Tal como este, a Oitava real da mão esquerda faz parte do someiro principal. A

organização dos tubos é feita de forma cromática.

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123

Clarim Fagote

Fl.º 12 aberto Oitava real

Fl.º 12 tapado Fl.º 12 tapado

Flautim

Oitava real Quinzena

Compostas de 12.ª e 19.ª, 2v Dezanovena

Compostas de 15.ª e 22.ª, 2v Cheio, 2v

Esquema 12 – Someiro do órgão da Igreja de S. João (Pico)

Surge o par de meios registos de palheta mais comuns nos órgãos de Peres

Fontanes e Machado e Cerveira, Fagote e Clarim, ausentes desde o órgão de Gomes de

Lemos para a Igreja do Espírito Santo (Maia), em 1848. Encontram-se dispostos na

parte da frente da caixa, mesmo por cima da consola (Fig. 4.30), tal como nos primeiros

órgãos de armário de Peres Fontanes (Carmo, 1794) e Machado e Cerveira (Matriz da

Calheta, 1790) vindos para os Açores.

Fig. 4.30 – Tubaria do órgão da Igreja de S. João Baptista (Pico): fachada e interior

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Igreja de S. Pedro, Vila Franca do Campo (S. Miguel)

Manuel de Sousa, 1891

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado 12 tapado Flautado 12 aberto

Flautado 6 aberto Flauta

Flautado 6 tapado Oitava real

Oitava real [Quinzena] Dozena

Dozena [Dezanovena] Quinzena

Quinzena [Vigésima segunda] Voz humana354

Cheio (3v) Corneta (3v)

Trompas Cheio (3v)

Matriz de Santa Cruz, Lagoa (S. Miguel)

Manuel de Sousa, 1892

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c”’-g’’’)

Flautado 12 tapado Flautado 12 aberto

Flautado 6 tapado Flauta em 12

Oitava real Flautim

Quinzena Oitava real

Dezanovena Dozena

Vintedozena Oitava real e 15ª

Cheio Quinzena

Cheio

Estes dois órgãos construídos por Manuel de Sousa adquirem particular

significado porque traduzem a conciliação da influência de Peres Fontanes e Machado e

Cerveira com elementos que a organaria insular foi adoptando ao longo da segunda

metade do século XIX. São, além disso, os derradeiros exemplares da organaria

portuguesa nos Açores.

Apesar de estarem identificados com o mesmo construtor, revelam concepções

díspares no que respeita à forma de disposição dos tubos de ambas as mãos no someiro.

O órgão da Igreja de S. Pedro de Vila Franca do Campo adopta o sistema de Machado e

Cerveira, com a divisão do someiro em dois lados, correspondentes a cada parte do

teclado, enquanto o órgão da Igreja Matriz de Santa Cruz prossegue o sistema de Peres

Fontanes, que coloca os tubos correspondentes à mão direita nas laterais e os da mão

esquerda ao centro. É, pois, o único instrumento da terceira fase que apresenta a

concepção de Peres Fontanes.

354 Este registo não consta do plano fónico deste instrumento no Inventário dos órgãos dos Açores, p.

494.

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125

No contexto dos registos simples (Tabela 4.33) verifica-se a habitual ausência do

Flautado 12 aberto da mão esquerda nos dois instrumentos. O órgão da Igreja de S.

Pedro incorpora, na mão direita, a mesma estrutura de flautados dos órgãos de S. José e

de N.ª Sr.ª da Ajuda (fundamental–8ª–12ª–15ª), enquanto o de Santa Cruz, à semelhança

do órgão de S. Pedro de Ponta Delgada, já não contempla o principal em décima quinta.

Igreja de S. Pedro (VFC)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ 8’ 8’

4’ 4’ 4’ -

- - 2’ ⅔ -

2’ - 2’ -

113’ - - -

1’ - - -

Igreja de S. Cruz (Lagoa)

M. E. M. D.

Flautados Flautas Flautados Flautas

- 8’ 8’ 8’

4’ 4’ 4’ 4’

- - 2’ ⅔ -

2’ - - -

Tabela 4.33 – Organização dos registos simples nos órgãos das igrejas de S. Pedro (Vila Franca

do Campo) e de S. Cruz (Lagoa)

No órgão da Igreja de S. Pedro, a nomenclatura das etiquetas dos registos da

mão esquerda não corresponde à respectiva tubaria, porquanto a Oitava real equivale a

uma Quinzena, a Dozena a uma Dezanovena e a Quinzena a uma Vigésima segunda, o

que significa que a organização fónica da mão esquerda foi construída sobre uma base

de 4’, nomeadamente do registo de Flautado 6 aberto que se encontra na fachada (por

este motivo existem na consola duas etiquetas que sugerem dois registos da mesma

altura e da mesma família: o Flautado 6 aberto e a Oitava real).

Na família das Flautas, a presença de um Flautim na mão direita do órgão de

Santa Cruz remete para uma reminiscência de Machado e Cerveira que acabou por

estabelecer-se nos construtores autóctones. A localização da Flauta e do Flautim da mão

direita no órgão de Santa Cruz, próximo da fachada, é idêntica à de Machado e Cerveira

nos órgãos dos conventos de S. Francisco e de Santo André, assim como de Gomes de

Lemos no órgão da Igreja do Espírito Santo (Maia) e de Tomé Gregório de Lacerda no

órgão da Igreja Matriz das Velas. Outro elemento comum a Machado e Cerveira é o

facto de o registo principal de 4’ da mão esquerda (Oitava real /Flautado 6 aberto) estar

colocado sobre o someiro principal (ES 13).

No órgão da Igreja de S. Pedro de Vila Franca do Campo surgem os harmónicos

de 19ª e 22ª em forma de registos simples.

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126

Oitava Real (ME)

Fla

uta

do

12 t

apad

o

(ME

)

Fl.º 12 aberto (MD) Fl.º 12 aberto (MD) Flau

tado

12

tapad

o

(ME

) Flauta em 12 (MD) Flauta em 12 (MD)

Flautim (MD) Flautim (MD)

Oitava real e 15.ª (MD) Flautado 6 tapado (ME) Oitava real e 15.ª (MD)

Oitava real (MD) Quinzena (ME) Oitava real (MD)

Dozena (MD) Dezanovena (ME) Dozena (MD)

Quinzena (MD) Vintedozena (ME) Quinzena (MD)

Cheio, 3 v (MD) Cheio, 3 v (ME) Cheio, 3 v (MD)

Esquema 13 – Someiro do órgão da Igreja Matriz de Santa Cruz (Lagoa)

A disposição do someiro duplo volta a ser uma réplica do órgão de Peres

Fontanes para a Igreja de S. José (ES 14) e a distribuição dos registos de cheio no

respectivo someiro segue a tendência de Machado e Cerveira: primeiro os registos

simples e depois os compostos (na parte do someiro que fica junto às portadas traseiras

dos instrumentos). Sublinhe-se, todavia, a excepção encontrada no órgão de Santa Cruz:

o registo de Oitava real e 15ª da mão direita faz parte do someiro principal, o que parece

ter a ver com uma questão de simetria do someiro duplo.

Flautado 6 aberto (ME)

Fl.º 12 aberto Fl.º 12 tapado

Flauta

Voz humana

Corneta, 3v Fl.º 6 tapado

Oitava real Quinzena

Dozena Dezanovena

Quinzena Vigésima segunda

Cheio, 3v Cheio, 3v

Esquema 14 – Someiro do órgão da Igreja de S. Pedro em Vila Franca do Campo

No órgão da Igreja de S. Pedro existem tubos antigos (ou seja, provenientes de

um instrumento anterior) nos jogos de Flautado 12 aberto (mão direita), Dozena (em

ambas as mãos), Quinzena (em ambas as mãos) e Vigésima segunda (na mão esquerda

parcialmente e na mão direita integralmente).

No âmbito dos registos compostos confirma-se a tendência para a sua redução. O

meio registo de Cheio integra cada uma das partes do teclado, à semelhança do órgão de

N.ª Sr.ª da Ajuda e de S. Pedro em Ponta Delgada (3 v). No entanto, comparativamente

a este último instrumento, os órgãos das igrejas de S. Pedro de Vila Franca do Campo e

Santa Cruz de Lagoa têm mais uma fila e os harmónicos tendem a ser menos agudos,

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127

sobretudo na mão direita do órgão da Igreja de Santa Cruz. O registo de Cheio em

ambas as mãos apresenta uma estrutura intervalar consentânea com a tendência

verificada nos instrumentos da terceira fase, ou seja, não ultrapassa o harmónico de 29ª

na mão esquerda e de 22ª na mão direita (Tabela 4.34).

M.E. M.D.

S. Pedro VFC Cheio, 3 v. Cheio, 3 v.

C c#

22ª-----------------------------------

29ª----------------- 22ª--------------

29ª----------------- 22ª--------------

c#’ c#’’ c#’’’

15ª--------------------------------------

19ª----------- 12ª---------------------

19ª----------- 15ª---------------------

Santa Cruz C c#

22ª------------------------------------

26ª---------------- 19ª--------------

29ª---------------- 22ª--------------

c#’ c#’’ c#’’’

15ª----------- 8ª ------------------------

19ª---------- 12ª------------------------

22ª----------- 8ª ------------------------

Oitava real e 15.ª

15ª----------- 8ª ------------------------

Tabela 4.34 – Composição dos registos compostos nos órgãos das igrejas de S. Pedro de Vila

Franca do Campo e da Matriz de Santa Cruz (Lagoa)

Os registos solísticos surgem somente no órgão de S. Pedro, onde reaparece a

Voz humana,355 afastada dos planos fónicos desde o órgão da Igreja Matriz de Ponta

Delgada, em 1828. Por norma, Peres Fontanes e Machado e Cerveira posicionam este

registo no someiro principal, junto ao Flautado 12 aberto da mão direita e próximo da

fachada (a única excepção encontra-se no órgão da Igreja do Carmo). Neste órgão de S.

Pedro de Vila Franca do Campo permanece no someiro principal, entre o registo de

Flauta e o Flautado 12 aberto.

Destaque-se também neste órgão da Igreja de S. Pedro a presença na mão direita

do registo solístico Corneta – ausente dos planos fónicos dos órgãos açorianos desde a

década de sessenta356–, a qual é constituída maioritariamente por tubos mais antigos do

que o instrumento. A sua composição, com três filas sem fundamental e sem Oitava real

355 Na acção de restauro a que o órgão foi submetido em 2006, Dinarte Machado teve de substituir os

tubos da Voz humana, uma vez que, de acordo com as suas informações, uma intervenção posterior à

construção, provavelmente da autoria de Manuel Serpa da Silva, em 1904, colocou tubos muito estreitos

naquele registo, não ajustados ao contexto do instrumento. Aquando do restauro, Dinarte Machado repôs

as medidas originais com novos tubos. 356 Embora não faça parte desta amostra, o órgão n.º 4 de João Nicolau Ferreira, construído em 1863 para

a Igreja da Guadalupe do Convento de S. Francisco (Ribeira Grande – S. Miguel) contempla uma Corneta

de duas filas em ambas as mãos (feita de madeira), seguramente para integrar o cheio do instrumento.

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128

(12ª–15ª–17ª),357 encontra paralelo no órgão da Igreja do Carmo, onde é designada por

“Cornetilha”, e também no órgão da Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge. No entanto,

ao invés desses e de todos os restantes órgãos de Machado e Cerveira e Gomes de

Lemos com o registo de Corneta, neste órgão de S. Pedro de Vila Franca do Campo a

Corneta faz parte do someiro principal, posição exclusivamente assumida por Peres

Fontanes no órgão da Igreja de S. José. Com efeito, as dimensões do diâmetro dos tubos

correspondentes ao c# da Corneta358 são superiores às de todos os jogos de Corneta dos

instrumentos de Machado e Cerveira e de Gomes de Lemos e aproximam-se mais das

medidas adoptadas por Peres Fontanes (ver cap. IV.3.2). Assim, a presença da Corneta

no órgão da Igreja de S. Pedro de Vila Franca do Campo deve-se ao aproveitamento de

um jogo de outro instrumento mais antigo, situação que justifica o seu perfil totalmente

solístico, ímpar no contexto da organaria autóctone da segunda metade do século XIX.

Fig. 4.31

Tubaria do órgão da Igreja de Santa Cruz

Manuel de Sousa, 1892

No órgão de Santa Cruz, tal como no da Igreja de S. José, os tubos

correspondentes aos registos da mão direita estão divididos diatonicamente pelos dois

extremos laterais do someiro, sendo que ao centro se encontram os tubos dos jogos da

mão esquerda, organizados também de forma diatónica (Fig. 4.31)

O registo de palheta de 4’ do órgão de S. Pedro de Vila Franca do Campo, cujos

tubos estão colocados nas laterais (Fig. 4.32), é seguramente resultado de uma

357 Pelo restauro, a terceira fila da Corneta (correspondente à 17ª) teve de ser substituída por novos tubos.

As restantes permanecem com tubos antigos. 358 Os tubos relativos a c#’ da primeira e segunda filas têm uma letra gravada que não corresponde à nota

actual.

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129

intervenção posterior.359 Além de não constar a sua identificação nos manípulos dos

registos dispostos na consola, tem uma extensão pouco convencional, abrangendo

apenas as duas oitavas centrais do teclado (c-c’’).

Fig. 4.32 – Órgão da Igreja de S. Pedro

(Vila Franca do Campo)

Fig. 4.32a – Tubaria do órgão da Igreja de

S. Pedro (Vila Franca do Campo)

Os dois instrumentos possuem pedal anulador de cheios e um teclado com

cinquenta e seis teclas (C-g’’’).

Com base na análise de todos os instrumentos da amostra, extraem-se as seguintes

considerações:

a) Todos os órgãos da amostra têm someiro duplo e pedal de cheios. A extensão

do teclado, dividido entre c’ e c#’, vai aumentando progressivamente, de acordo com a

data de construção, desde as cinquenta e uma teclas (C-d’’’) no final do século XVIII às

cinquenta e seis teclas (C-g’’’), estabelecidas a partir da década de vinte do século XIX.

b) Peres Fontanes é o único construtor que apresenta registos inteiros, e todos os

restantes optam exclusivamente por meios registos.

359 Atribuída a Manuel Serpa da Silva. Cf. D. Machado e G. Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores,

p. 49.

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130

c) Relativamente à organização do someiro duplo, a modalidade predominante

segue a estrutura sequencial apresentada por Peres Fontanes no órgão de S. José, ou

seja, o someiro principal junto à fachada seguindo-se-lhe o someiro secundário (Fig.

4.33). A outra modalidade, reconhecida exclusivamente nos exemplares de Machado e

Cerveira e de Sebastião Gomes de Lemos, assim como também no órgão de pequenas

dimensões de Peres Fontanes (Carmo), consiste em encaixar o someiro secundário no

meio do someiro principal (Fig.4.34).

Someiro principal

Someiro principal

Someiro secundário

Someiro secundário

Someiro principal

Fig. 4.33 – Organização do

someiro duplo

Fig. 4.34 – Organização do

someiro duplo

d) Em termos de correspondência entre os meios registos de cada parte do

teclado (inferior e superior), o exemplo de linearidade total é representado no órgão da

Igreja de S. José (JAPF). No que respeita aos registos simples (Tabela 4.35), o órgão da

Igreja de S. Pedro em Ponta Delgada (SS/JNF) afigura-se o mais linear. No entanto, o

órgão de Manuel de Sousa para a Igreja de Santa Cruz também apresenta alguma

preocupação nesse sentido, assim como Nicolau António Ferreira (S. João do Pico) e

também Tomé Gregório de Lacerda (Matriz das Velas de S. Jorge).

e) É também no órgão da Igreja de S. José que se encontra o único Flautado de

12 aberto com tubos de metal em toda a extensão da mão esquerda. Talvez pela

existência desse suporte à mão esquerda, Peres Fontanes não integra o principal de 4’ da

mão esquerda – Oitava real – no someiro principal, tal como se verifica em Machado e

Cerveira e em todos os restantes construtores. Quando integrado no someiro principal,

aquele meio registo posiciona-se junto ao Flautado 12 aberto ou, na ausência deste, do

Flautado 12 tapado, numa clara indicação da sua utilização como suporte.

Ainda no âmbito da mão esquerda, assiste-se ao desaparecimento do Flautado 12

aberto (8’) e da Dozena (2’⅔) ao longo da segunda metade do século XIX,

permanecendo a Quinzena um recurso transversal a todos os instrumentos da amostra.

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131

Por outro lado, a partir de 1858, surge regularmente a Dezanovena e/ou Vintedozena na

sua versão simples (Tabela 4.38).

Instrumentos

Flautados360 Flautas

Mão esquerda Mão direita Mão

esquerda

Mão

direita

Convento de S. Francisco

(AH-TER)

8’, 4’, 2⅔’, 2’ 8’ 8’, 4’ 8’, 8’, 4’

Matriz de Santa Catarina

(Calheta-SJ)

2’ - 8’, 4’ 8’, 4’

Carmo (PD-SM) 2’ 8’ 8’, 4’ 4’

S. José (PD-SM) 8’, 4’, 2⅔’, 2’+2’ 8’, 4’, 2⅔’, 2’ 8’, 4’ 8’, 4’

Matriz S. Sebastião (PD-SM) 8’, 4’, 2’ 8’, 4’+ 4’ 4’ 8’, 8’

Convento Santo André

(PD-SM)

8’, 4’, 2’ 8’ 8’ 8’, 4’

Espírito Santo (Maia-SM) 8’, 4’, 2’ 8’ 8’ 8’, 4’

Matriz N.ª Sr.ª da Estrela

(RG-SM)

4’, 2’ 8’ 8’, 4’ 8’, 8’, 4’

S. Pedro (PD-SM) 8’, 4’, 2⅔’, 2’, 1’ 8’, 4’, 2⅔’, 2’+2’ 8’ 8’, 8’

Matriz das Velas (Velas-SJ) 4’, 2⅔’, 2’, 4/5’ 4’, 2⅔’, 2’, 135’ 8’, 4’ 8’, 4’

N.ª Sr. da Ajuda

(Bretanha-SM)

4’, 2’, 1’ 8’, 4’, 2⅔’, 2’ 8’, 4’ 4’

S. João (Pico) 4’, 2’, 113’ 8’, 4’ 8’, 4’ 8’, 4’

S. Pedro (VFC-SM) 4’, 2’, 113’, 1’ 8’, 4’, 2⅔’, 2’ 8’, 4’ 8’

S. Cruz (Lagoa-SM) 4’, 2’ 8’, 4’, 2⅔’ 8’, 4’ 8’, 4’

Tabela 4.35 – Registos simples nos órgãos da amostra

f) No contexto da mão direita, a Oitava real nem sempre se apresenta na versão

simples nos instrumentos anteriores a 1855, passando a ser um elemento comum nesta

versão a partir de então, assim como a Dozena e Quinzena (Tabela 4.39). Todos esses

registos integram o someiro de cheios, à excepção da Oitava real no órgão da Igreja de

N.ª Sr.ª da Ajuda (JNF) e da Igreja Matriz das Velas (TGL), que faz parte do someiro

principal.

g) Assiste-se a ao aumento dos registos simples a partir de finais da década de

1850, em detrimento dos registos compostos, muito presentes nos órgãos da segunda

fase.

360 O sinal “+” significa que o harmónico faz parte de um registo com duas filas iguais.

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132

h) Quanto aos registos da família das Flautas, verifica-se que todos os

instrumentos possuem um registo de Flauta de 8’ na mão esquerda – o Flautado 12

tapado – com excepção do órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada. A Flauta de 4’ da

mão esquerda – Flautado 6 tapado – é excluída apenas nos órgãos do Convento de Santo

André, Espírito Santo (Maia) e S. Pedro em Ponta Delgada. O meio registo de Flautado

12 tapado da mão esquerda surge sempre no someiro principal. Machado e Cerveira,

bem como Sebastião Gomes de Lemos no órgão da Igreja do Espírito Santo, e Peres

Fontanes no órgão da Igreja do Carmo colocam-no na rectaguarda da caixa. Contudo,

no órgão da Igreja de S. José encontra-se no início do someiro principal, junto à

fachada, posição esta reproduzida por João Nicolau Ferreira no órgão da Igreja de S.

Pedro de Ponta Delgada, Nicolau António Ferreira no órgão de S. João do Pico e

Manuel de Sousa no órgão de Santa Cruz. Em alguns instrumentos da terceira fase,

nomeadamente nos das igrejas Matriz da Ribeira Grande (SGL), N.ª Sr.ª da Ajuda

(JNF), Matriz das Velas (TGL) e S. Pedro de Vila Franca do Campo (MS), o Flautado

de 12 tapado da mão esquerda posiciona-se junto às paredes laterais do instrumento.

O meio registo Flautado 6 tapado da mão esquerda integra o someiro principal,

com excepção do maior órgão de Peres Fontanes (S. José). Surge, regra geral, no início

do someiro principal, junto à fachada (órgãos do Convento de S. Francisco, Igreja

Matriz da Ribeira Grande, Matriz das Velas, N.ª Sr.ª da Ajuda, S. Pedro de Vila Franca

do Campo e Santa Cruz), sendo que a sua posição na rectaguarda da caixa verifica-se

apenas nos exemplares mais pequenos de Peres Fontanes (Carmo) e Machado e

Cerveira (Matriz da Calheta). Assim, de entre os órgãos que contemplam os registos de

Flautado 12 tapado e 6 tapado no seu plano fónico, os únicos que os colocam em tampas

seguidas são os das igrejas da Matriz da Calheta,361 Carmo e S. Pedro de Vila Franca.

Na mão direita, a Flauta de 8’ (Flauta, Flauta em 12 ou Flauta travessa) perpassa

toda a amostra, não estando presente em apenas três instrumentos: Carmo, N.ª Sr.ª da

Ajuda e S. João (Tabela 4.39). A Flauta de 4’ (Flauta em 6 ou Flautim), utilizada por

Peres Fontanes e Machado e Cerveira, é um recurso habitual nos órgãos da terceira fase,

com excepção dos órgãos das igrejas de S. Pedro de Ponta Delgada e de Vila Franca do

361 Neste órgão, os tubos maiores do meio registo de Flautado 6 tapado da mão esquerda encontram-se

junto à parede lateral esquerda da caixa. Também no órgão da Igreja do Carmo o Flautado 12 tapado tem

parte dos tubos juntos às laterais.

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133

Campo. Esses registos apresentam frequentemente uma configuração cónica. Por

norma, encontram-se lado a lado no someiro principal (junto à fachada),362 sendo

excepção o órgão da Igreja Matriz da Ribeira Grande. Por sua vez, o órgão da Igreja de

S. José é o único que integra a Flauta de 4’ no someiro de cheios. Com a gradual

ausência de registos solistas, o Flautim poderia assumir essa função, sobretudo se

acompanhado pelo Flautado 12 tapado na mão esquerda, o qual existe em todos os

instrumentos da terceira fase.

i) O número de registos compostos diminui consideravelmente à medida que se

avança no século XIX, sobretudo na mão esquerda, sendo também notória a redução na

quantidade de filas que os constituem nos instrumentos de médias dimensões da terceira

fase, quando comparados com os instrumentos similares de Machado e Cerveira e

Gomes de Lemos. Assiste-se igualmente a uma progressiva eliminação dos harmónicos

agudos que compõem aqueles registos. Na Tabela 4.36 elena-se o número de meios

registos compostos em cada órgão da amostra, nos quais se inclui o registo de Corneta

da mão direita.

Instrumento N.º de filas M. E. M. D. Total

Convento de S. Francisco (AH-TER) 3 a 5 4 5 9

Matriz de Santa Catarina (Calheta-SJ) 3 a 5 1 2 3

Carmo (PD-SM) 2 a 4 2 2 4

S. José (PD-SM) 2 a 5 3 4 7

Matriz S. Sebastião (PD-SM) 2 a 5 4 4 8

Convento Santo André (PD-SM) 3 a 5 2 2 4

Espírito Santo (Maia-SM) 3 a 5 2 2 4

Matriz N.ª Sr.ª da Estrela (RG-SM) 3 a 4 3 3 6

S. Pedro (PD-SM) 2 a 4 2 2 4

Matriz das Velas (Velas-SJ) 2 a 3 2 2 4

N.ª Sr. da Ajuda (Bretanha-SM) 2 1 1 2

S. João (Pico) 2 1 2 3

S. Pedro (VFC-SM) 3 1 2 3

S. Cruz (Lagoa-SM) 1 a 3 1 2 3

Tabela 4.36 – Número de registos compostos nos órgãos da amostra

O registo de Clarão na mão esquerda restringe-se aos órgãos de Machado e

Cerveira, Gomes de Lemos e Silvestre Serrão/João Nicolau Ferreira. Contempla cinco

362 Nos modelos mais pequenos de Peres Fontanes e Machado e Cerveira (Carmo e Matriz da Calheta,

respectivamente), estes registos estão posicionados na rectaguarda.

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134

filas baseadas nos intervalos de 19ª, 22ª, 24ª, 26ª e 29ª, uma constituição que é replicada

em todos os instrumentos posteriores àqueles, com excepção do órgão da Igreja de S.

Pedro em Ponta Delgada, onde o intervalo de 26ª é preterido a favor de uma 29ª.

O registo de Cheio é somente utilizado a partir de 1858, tornando-se um

elemento recorrente nos construtores autóctones, com excepção do órgão da Igreja

Matriz das Velas de S. Jorge.

O registo de Mistura é exclusivamente apresentado como registo inteiro por

Peres Fontanes, e o de Simbala (meio registo ou inteiro) é pontualmente partilhado por

Peres Fontanes, Machado e Cerveira e Tomé Gregório de Lacerda. A Resímbala surge

unicamente no órgão do Convento de S. Francisco em Angra, de Machado e Cerveira,

em ambas as mãos (Tabelas 4.38 e 4.39).

j) Todos os órgãos da terceira fase dispõem os registos compostos na parte final

do someiro de cheios (rectaguarda da caixa), seguindo a concepção de Machado e

Cerveira, ao invés de Peres Fontanes, que os coloca na parte inicial do someiro de

cheios.

k) Os órgãos dos Açores demonstram que o registo de Corneta, presente em dez

dos catorze órgãos da amostra (Tabela 4.39), perde o carácter solístico que detinha no

século XVIII e assume-se cada vez mais como elemento do cheio. Localiza-se sempre

no someiro de cheios, tendo como única excepção os órgãos de S. José de Ponta

Delgada e de São Pedro de Vila Franca do Campo, onde as medidas evidenciam o seu

carácter solístico. Nenhum dos instrumentos da amostra tem uma Corneta sustentada na

fundamental, sendo construída a partir do harmónico de 8ª. A sua estrutura com cinco

filas (órgãos de S. Francisco, S. José, Matriz de Ponta Delgada, Santo André e Espírito

Santo – Maia) corresponde à sequência harmónica de 8ª – 12ª – 15ª – 17ª – 19ª. A

mesma sequência é adaptada aos modelos com quatro filas mas com exclusão do

harmónico de 19.ª (Matriz de Ribeira Grande e S. Pedro de Ponta Delgada). Em alguns

órgãos, como por exemplo o da Igreja do Carmo (onde é designada por “Cornetilha”),

Matriz da Calheta de S. Jorge e S. Pedro de Vila Franca do Campo, a Corneta tem três

filas correspondentes aos harmónicos de 12ª – 15ª – 17ª.

l) Também o registo solista Voz humana, largamente utilizado nos órgãos de

Peres Fontanes e Machado e Cerveira, desaparece na segunda metade do século XIX

(Tabela 4.39), provavelmente como consequência da falta de repertório que o

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135

incorporasse como elemento solístico,363 sendo retomado apenas no órgão de S. Pedro

de Vila Franca do Campo (Manuel de Sousa, 1891).

m) Os registos de palheta, presença habitual nos instrumentos até 1858, deixam

de constar dos planos fónicos, tendo como única excepção o órgão de S. João do Pico

(Tabela 4.37).

As Tabelas 4.38 (registos da mão esquerda) e 4.39 (registos da mão direita)

apresentam todos os registos integrados nos planos fónicos dos instrumentos da amostra

e o respectivo nível de utilização.364

Instrumentos M. E. M. D. Totais

Convento de S. Francisco (AH-TER) 1 1 2

Matriz de Santa Catarina (Calheta-SJ) 1 1 2

Carmo (PD-SM) 1 1 2

S. José (PD-SM) 3 3 6

Matriz S. Sebastião (PD-SM) 2 1 4

Convento Santo André (PD-SM) 1 1 2

Espírito Santo (Maia-SM) 1 1 2

Matriz N.ª Sr.ª da Estrela (RG-SM) 1 1 2

S. Pedro (PD-SM) 1 1 2

Matriz das Velas (Velas-SJ) - - -

N.ª Sr. da Ajuda (Bretanha-SM) - - -

S. João (Pico) 1 1 2

S. Pedro (VFC-SM) - - -

S. Cruz (Lagoa-SM) - - -

Tabela 4.37 – Número dos registos de palheta nos instrumentos da amostra

363 O órgão do Convento de Santo André não tem o registo de Voz Humana, mas os seus congéneres da

Misericórdia de Angra e Matriz de Santa Cruz da Graciosa, ambos construídos na oficina de Machado e

Cerveira mas com datas posteriores à sua morte, 1829 e 1831, respectivamente, integram aquele mesmo

registo. Segundo o levantamento das indicações de registação de Frei José Marques e Silva nas suas obras

para órgão e vozes, realizado por João Vaz, a Voz humana surge somente nos Responsórios dos Reis,

datados de 1818. Cf. “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva...”, vol. I, pp. 177 e 178. 364 Destas tabelas excluem-se os registos de palhetas que foram adicionados posteriormente aos órgãos da

Igreja Matriz das Velas e de S. Pedro de Vila Franca do Campo.

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136

Tabela 4.38 – Registos da mão esquerda dos órgãos da amostra

Conven

to d

e S

ão F

ranci

sco (

AH

-TE

R),

AX

MC

,

1788

Mat

riz

de

San

ta C

atar

ina

(Cal

het

a-S

J),

AX

MC

,

1790

Car

mo (

PD

-SM

), J

AP

F,

1794

São

José

(P

D-S

M),

JA

PF

, 1797

Mat

riz

de

S.

Seb

asti

ão

(PD

-SM

), A

XM

C,

1828

Conven

to S

. A

ndré

(PD

-SM

), A

XM

C,

1828

Esp

írit

o S

anto

(Mai

a-S

M),

SG

L,

1848

Mat

riz

de

N.ª

Sr.

ª da

Est

rela

(R

G-S

M),

SG

L,

1855

São

Ped

ro (

PD

-SM

), J

NF

, 1858

Mat

riz

das

Vel

as (

Vel

as-S

J),

TG

L,

1865

N.ª

Sr.

ª da

Aju

da

(Bre

tanha-

SM

), J

NF

, 1877

São

João

(P

ico),

NA

F,

1884

S.

Ped

ro (

VF

C-S

M),

MS

, 1891

San

ta C

ruz

(Lag

oa-S

M),

MS

, 1892

Flautado 12 aberto • • • •

Flautado 12 tapado • • • • • • • • • • • • •

Oitava Real • • • •

Flautado 6 aberto • • • • • • • •

Flautado 6 tapado • • • • • • • • • • •

Dozena • • • • • • •

Dozena e 19ª • •

Quinzena • • • • • • • • • • • • • •

Dezanovena • • • • •

Dezanovena e 22ª • •

Vinte Dozena • • • • • • •

Vigésima quarta •

Clarão • • • • • •

Cheio • • • • •

Mistura • •

Símbala • • •

Resímbala •

Fagote • • • • • •

Trombeta real • •

Trompa de Batalha • •

Trompa • •

Trompa Real •

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137

Tabela 4.39 – Registos da mão direita nos órgãos da amostra

Conven

to d

e S

ão F

ranci

sco (

AH

-TE

R),

AX

MC

,

1788

Mat

riz

de

San

ta C

atar

ina

(Cal

het

a-S

J),

AX

MC

,

1790

Car

mo (

PD

-SM

), J

AP

F,

1794

São

José

(P

D-S

M),

JA

PF

, 1797

Mat

riz

de

S.

Seb

asti

ão

(PD

-SM

), A

XM

C,

1828

Conven

to S

. A

ndré

(PD

-SM

), A

XM

C,

1828

Esp

írit

o S

anto

(Mai

a-S

M),

SG

L,

1848

Mat

riz

de

N.ª

Sr.

ª da

Est

rela

(R

G-S

M),

SG

L,

1855

São

Ped

ro (

PD

-SM

), J

NF

, 1858

Mat

riz

das

Vel

as (

Vel

as-S

J),

TG

L,

1865

N.ª

Sr.

ª da

Aju

da

(Bre

tanha-

SM

), J

NF

, 1877

São

João

(P

ico),

NA

F,

1884

S.

Ped

ro (

VF

C-S

M),

MS

, 1891

San

ta C

ruz

(Lag

oa-S

M),

MS

, 1892

Flautado 12 aberto • • • • • • • • • • • •

Flautado 12 tapado • • • •

Oitava Real • • • • • • • •

Flautado 6 aberto

Flautado 6 tapado •

Flauta • • •

Flauta em 12 • • • •

Flauta em 6 • •

Flauta Travessa • • • •

Flauta d’echo •

Flautim • • • • • • • •

Voz Humana • • • • •

Oitava real e 12ª •

Oitava real e 15ª • • • • •

8ª real, 15ª, 19 e 22ª •

Dozena • • • • • •

Comp. de 12ª e 15ª •

Dozena e 19ª • • •

Quinzena • • • • • • •

Comp.15ª e 22ª •

Dezassetena •

Dezanovena • •

Dezanovena e 22ª

Vinte Dozena •

Comp. 22ª •

Vigésima quarta

Cheio • • • •

Mistura •

Símbala • •

Resímbala •

Corneta • • • • • • •

Cornetilha •

Corneta de Cheio •

Trombeta real •

Clarim • • • • • • • •

Clarim d’echo •

Clarineta • •

Oboé

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138

IV. 3. 2 Medição dos tubos labiais

O processo de medição dos tubos labiais foi efectuado em todos os órgãos da

amostra, incidindo sobre o diâmetro (designado secção), largura e altura da boca dos

tubos dos registos abertos (Flautados e Flautas de 8’ e 4’ [C, c e c’#], nestes últimas

somente na mão direita [c#’], uma vez que não existem na mão esquerda). Foram

igualmente considerados os registos simples de Dozena e Quinzena relativos a C e c#’

(Tabela 4.40). Na Tabela 4.41 apresentam-se as medidas da secção dos tubos

correspondentes a c#’ do registo de Corneta.

Os números da Tabela 4.40 não permitem uma leitura objectiva nem indicam

uma tendência linear. Verifica-se, efectivamente, que as medidas de Peres Fontanes são

mais largas do que as de Machado e Cerveira, tal como se evidencia uma redução das

medidas entre os primeiros e os últimos instrumentos de Machado e Cerveira. Nota-se,

ainda que de forma pouco uniforme, uma certa diminuição das medidas até ao órgão de

Gomes de Lemos para a Igreja do Espírito Santo na Maia (1848). Depois disso, surge

uma grande arbitrariedade, existindo, por vezes, medidas próximas de Peres Fontanes,

de Machado e Cerveira e até mesmo de Gomes de Lemos.

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139

Conven

to d

e S

. F

ranci

sco (

AH

-TE

R)

AX

MC

,

1788 (

a =

424 H

z)

Mat

riz

de

S.

Cat

arin

a (C

alhet

a-S

J)

AX

MC

, 1790 (

a =

439,9

Hz)

Car

mo (

PD

-SM

)

JAP

F,

1794 (

a =

424,6

Hz)

São

José

(P

D-S

M)

JAP

F,

1797 (

a =

415,2

Hz)

Mat

riz

de

S.

Seb

asti

ão (

PD

-SM

)

AX

MC

, 1828 (

a =

431,6

Hz)

Conven

to S

. A

ndré

(P

D-S

M)

AX

MC

, 1828 (

a =

429,1

Hz)

Esp

írit

o S

anto

(M

aia-S

M)

SG

L,

1848

(dia

pas

ão i

ndet

erm

inável

)

Mat

riz

de

N.ª

Sr.

ª da

Est

rela

(R

G-S

M)

SG

L,

1855 (

a =

446,1

Hz)

S.

Ped

ro (

PD

-SM

)

JNF

, 1858 (

a =

442

Hz)

Mat

riz

das

Vel

as (

Vel

as-S

J)

TG

L,

1865 (

a= 4

35,2

Hz)

N.ª

Sr.

ª da

Aju

da

(Bre

tanha-

SM

)

JNF

, 1877

(a

= 4

15 H

z)

S.

João

(P

ico)

NA

F,

1884 (

a =

415,2

Hz)

S.

Ped

ro (

VF

C-S

M)

MS

, 1891 (

a =

426 H

z)

S.

Cru

z (L

agoa-

SM

)

MS

, 1892 (

a =

434,3

Hz)

M.E

.

Fl.º 12 ab. C a) c) c) 152,4 a) c) c) c) c) c) c) a) c) c)

c a) c) c) 86,2 83,3 c) c) c) c) c) c) 93,2 c) c)

8ª C 86,2 c) c) 86,2 84,3 84,4 80,1 82,8 80,2 c) 87,5 86,1 80,9 83,0

c 47,6 c) c) 53,4 45,4 46,1 44,1 47,2 55,0 45,8 45,2 48,4 47,5 53,4

12ª C 33,3 c) c) 61,4 b) b) b) b) b) 61,5 c) c) c) c)

15ª C 42,3 48,1 46,2 45,5 45,4 46,2 44,8 54,1 45,1 46,2 42,8 49,6 44,6 52,2

M.D

.

Fl.º 12 ab. c#' 44,1 c) 46,5 43,5 42,9 43,6 43,7 49,7 44,4 47,4 c) 46,4 41,8 53,4

8ª c#' b) c) b) 25,6 b) b) b) b) 28,0 25,2 24,4 27,1 26,9 21,6

12ª c#’ b) c) c) 20,2 b) c) c) b) 23,3 23,0 26,4 b) 22,5 21,5

15ª c#' c) c) b) 17,0 b) b) b) b) 17,0 b) 16,1 b) 17,4 b)

Fl.ª em 12 c#' 53,5 51,5 T 73,3 71,5 49,0 46,2 59,5 * * c) c) 56,3 T

Fl.ª em 6 c#' 45,4 44,9 T 43,8 c) 42,9 42,2 T c) c) T T c) T

a) – tubos em madeira

b) – jogo composto

c) – não incluído no plano fónico T – tubos tapados

* – Flauta de madeira piramidal

Tabela 4.40 – Comparação da secção (diâmetro) em milímetros dos tubos dos registos de fundos

(Flautados [C, c e c’#] e Flautas [abertas] de 8’ e 4’[c#’], e dos registos simples de Dozena e

Quinzena (C e c#’)

No que respeita ao registo de Corneta (Tabela 4.41) é especialmente notória a

diminuição do diâmetro nos instrumentos de Machado e Cerveira, entre o órgão do

Convento de S. Francisco (1788) até ao do Convento de Santo André (1828), a qual se

consolida no primeiro órgão de Gomes de Lemos (1848). Por seu turno, os instrumentos

de Peres Fontanes apresentam secções bastante uniformes entre si mas

consideravelmente mais largas do que Machado e Cerveira, sugerindo uma relação mais

próxima da configuração das Flautas (de secção mais larga) do que dos principais, o que

se traduz na potencialidade solística da Corneta.

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140

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AXMC AXMC JAPF JAPF AXMC AXMC SGL SGL JNF MS

8ª 27,8 - - 30,0 25,1 24,3 23,8 29,9 27,8 -

12ª 19,9 18,3 22,6 22,1 18,4 18,3 18,2 20,4 21,3 27,9

15ª 16,7 16,5 18,4 18,2 15,4 15,6 14,6 17,0 17,7 18,3

17ª 14,3 13,9 15,7 15,2 13,3 13,5 12,8 14,6 14,6 16,1

19ª 12,4 - - 13,8 12,3 - 10,0 - - -

22ª - - - - - 11,0 - - - -

Tabela 4.41 – Comparação das secções em milímetros (c#’) do registo de Corneta

Harmónicos

8.ª 12.ª 15.ª

S. José Corneta 30,0 22,1 18,2

Principal 25,5 20,2 17,0

Flauta 43,8 - -

S. Pedro

(PD)

Corneta 27,8 21,3 17,7

Principal 28,0 23,3 17,0

S. Pedro

(VFC)

Corneta - 27,9 18,3

Principal 26,9 22,5 17,4

Tabela 4.42 – Comparação entre o diâmetro (mm) dos tubos dos registos simples de 4’,

2’⅔ e 2’ (c’#) da mão direita e os tubos dos harmónicos homónimos do registo de Corneta

Essa tendência é igualmente visível no órgão da Igreja Matriz da Ribeira Grande

(SGL) e de S. Pedro de Vila Franca do Campo, onde a Corneta faz parte do someiro

principal. A Tabela 4.42 compara as secções dos harmónicos da Corneta com as secções

dos harmónicos homónimos dos registos simples, nos órgãos que dispõem desses

recursos (S. José, S. Pedro de Ponta Delgada e S. Pedro de Vila Franca do Campo).

De facto, as secções do registo de Corneta no órgão da Igreja de S. José e de S.

Pedro de Vila Franca do Campo são ligeiramente maiores do que as secções do registo

pincipal homónimo, o que já não se verifica, por exemplo no órgão da Igreja de S.

Pedro em Ponta Delgada. Os dados da Tabela 4.41 apontam, no entanto, para a

dimensão principalizante que o registo de Corneta assumiu nos órgãos dos Açores,

sobretudo após a utilização de uma “Corneta de cheio” no órgão da Igreja Matriz de

Ponta Delgada (AXMC, 1828).

Grande parte dos órgãos da amostra foram alvo de uma acção de restauro nos

últimos vinte e cinco anos, excepto o do Convento de Santo André, que se encontra em

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141

estado original, e o da Igreja do Espírito Santo (Maia) que, presentemente, está a ser

restaurado. Assim, não há segurança de que os diapasões descritos na Tabela 4.40

correspondam aos originais. No entanto, com base nas referências actuais, reconhece-se

a divisão em três segmentos: 1) nos instrumentos construídos entre 1788 e 1848,

inclusive, a frequência do Lá (a’) varia aproximadamente entre 415 e 439 Hz; 2) os

instrumentos construídos nas décadas de cinquenta e sessenta do século XIX têm uma

frequência variável entre 434 Hz e 446 Hz; c) os instrumentos construídos a partir da

década de setenta retomam os padrões utilizados no segmento 1).

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142

V. O órgão na prática musical religiosa: função e repertório

Até ao século XIX, a Igreja Católica difundiu as suas directivas sobre a música

sacra e o papel do órgão em documentos de grande amplitude, como os decretos do

Concílio de Trento, o Caeremoniale Episcoporum (ordenado por Clemente VIII em

1600 e comummente designado por “Cerimonial dos Bispos”), e a encíclica Annus qui

de Bento XIV (1749). Tendo sido a instituição que mais se ressentiu e que maior golpe

sofreu no século XIX com as inúmeras mudanças que se foram concretizando na Europa

relativamente à laicização da sociedade, acabou por perder a posição hegemónica que

detivera até então. Consequentemente, a música sacra deixou de ser uma prioridade e o

seu controlo ficou comprometido, sobretudo nas igrejas mais longínquas das

metrópoles.365

Em Portugal, o processo de secularização tardou e, a par da ópera, a música

sacra continuou a ser o género mais admirado pelo público português, concebido ainda

nos moldes barrocos.366 Essa proeminência viria, no entanto, a diluir-se com a mudança

política que culminou em 1834 a favor do regime liberal e que, como sintetiza Paulo

Ferreira de Castro, provocou a “derrocada do sistema estético e funcional de uma

cultura de corte e eclesiástica, e a alteração drástica das condições de exercício da

365 Cf. Paulo Castagna, Prescriciones tridentinas para la utilizacion del Estilo Antiguo y del Estilo

Moderno en la música religiosa católica (1570-1903), Primer Congresso Internacional de Musicología,

Buenos Aires (Argentina): Instituto Nacional de Musicología “Carlos Vega”, 19 - 22 Outubro de 2000.

Santiago do Chile: Instituto de História/Pontifícia Universidad Católica do Chile, 2002, pp. 20 3 24.

Disponível em http://www.hist.puc.cl/programa/documentos/Castagna.pt. Também se encontra uma breve

análise sobre as consequências das directivas da igreja na intervenção do órgão no contexto do repertório

europeu para órgão, no texto de Edward Higginbottom, “Organ music and the liturgy”, in Nicholas

Thistlethwaite e Geoffrey Webber (eds.), The Cambridge Companion to the Organ, Cambridge

University Press, 1998, pp. 130-147. 366 Cf. Paulo Ferreira de Castro, in Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, História da Música –

Sínteses da Cultura Portuguesa, Lisboa, Europália '91, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991, p.

124.

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143

profissão de músico.”367 Nos Açores, porém, a religião católica continuou a ser um dos

pilares da sociedade civil.368

De entre os estudos basilares sobre a função do órgão na liturgia portuguesa que

se ocupam, em particular, da segunda metade do século XVIII e do século XIX,

nomeiam-se os trabalhos de Gerhard Doderer e de João Vaz. O primeiro oferece uma

panorâmica historiográfica sistematizada e abrangente (desde o século XVI ao século

XIX) baseada, sobretudo, na análise de fontes de cariz regulamentar ou normativos –

como cerimoniais e regulamentos –, com a respectiva analogia com o repertório.369 O

segundo, por seu turno, centra-se primordialmente nas fontes musicais com órgão do

final do Antigo Regime, analisando-as à luz do contexto musical e das idiossincrasias

dos instrumentos da época.370

Nos Açores, há duas espécies de fontes que informam sobre a prática musical

sacra com órgão no período entre as últimas décadas do século XVIII e o final do século

XIX. A primeira é um documento normativo da Igreja açoriana, os Estatutos da Sé de

Angra (outorgados em 1797), no qual se fixam as orientações relativas à intervenção do

órgão na liturgia daquela catedral. A segunda corresponde ao corpus de manuscritos

musicais que se conserva nos arquivos musicais insulares e que reflecte a presença do

órgão em contexto sacro.

367 Idem, p. 118. 368 Segundo o censo de 1900, 99,8% da população açoriana era católica. Cf. Susana G. Costa, “Igreja,

religiosidade e Estado”, in História dos Açores..., vol. II, p. 360. A autora acrescenta: “Estes quantitativos

ilustram bem o modo como as críticas liberais à Igreja, que geraram o enquadramento legal da década de

1830, tinham perdido muito do seu vigor inicial.” Cf. idem. 369 Considere-se o mais recente trabalho do autor sobre a temática: “A presença do órgão na liturgia

portuguesa entre o Concílio Tridentino e a Secularização”, in Manuel Pedro Ferreira e Teresa Cascudo

(coord.), Música e história: estudos em homenagem a Manuel Carlos de Brito, Lisboa, Edições Colibri /

Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2017, pp. 77-142. 370 “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva...”, vol. I, 2010. Refira-se também o artigo “The

Celebration of St. Francis in the Monastery of Mafra and the Six Organs in the Basilica”, Itinerarium:

Revista Quadrimestral de Cultura, ano LX, n.º 209, 2014, pp. 493-506.

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144

V. 1 Os Estatutos da Sé de Angra (1797)

Os Estatutos da Sé de Angra371 constituem o único documento que regulamenta

a participação do órgão na liturgia da Sé de Angra. Aprovados em 1797 no prelado de

D. Frei José de Avé Maria Leite da Costa e Silva (em funções entre 1783 e 1799),372 os

referidos Estatutos terão permanecido em vigor ao longo do século XIX, uma vez que

não sofreram actualizações durante esse período.

As inúmeras notas à margem comprovam que foram redigidos a partir das

prescrições da Igreja até então, acrescendo determinações de carácter mais específico,

como as visitas, e os alvarás, em casos de estabelecimento de funções. Tal como já era

hábito nos normativos da Igreja, as circunstâncias associadas a cortejos dentro da igreja,

recepção do novo prelado, visita do prelado ou de entidades locais, eram acompanhadas

pelo som do órgão.373 Assim, os Estatutos definem:

Em preciza atenção e obzequio ao mesmo Procurador, e aos mais corpos

ilustres, que hão de assistir neste acto [tomada de posse do Prelado]; será o

Organista obrigado tocar plausivelmente o órgão mayor por todo o tempo da

sua chegada á porta athe a sua retirada, ou conclusão do acto, sem outra

algu[m]a interrupção, que a dos intervalos, que requerem silencio: no que será

371 P-AN, Secção 6, Divisão Mitra, Colecção Casa Forte, Lv. 37. Os Estatutos estão organizados em três

partes, a primeira “Da Vida, honestidade, habito, e culto externo dos Rdos. Capitulares, Menistros, Ecc.ºs

e Officiaes Seculares da Nossa Sé”, a segunda “Menistros e Subalternos do Coro, e dos que por qualquer

modo lhe dizem respeito”, e a terceira e última parte, “Do Regimento do Coro e Altar”. 372 A inscrição no frontispício “Novamente feitos e Ordenados” sugere a existência de um documento

anterior, sobre o qual não há qualquer registo. Pressupõe-se, no entanto, que a carta de visitação à Igreja

de S. José (Ponta Delgada) datada de 1730 (Cf. AIPSJ, n.º 1 do inventário, Livro da Vesita de Santa

Clara da Parochia de S. Jozé) e que se estrutura num modelo estatutário, se tenha baseado num

normativo da Sé de Angra. 373 Considere-se, a título de exemplo, o regimento do mestre de órgão integrado nos Estatutos da Sé

Catedral de Elvas, redigidos em data posterior a 1571: (...) dia de Corpo de D. s qd.o sahe a procissão até

sahir o santíssimo sacramento da porta principal, e assim, quando tornar a entrar (...); (...) nas festas

principais, quando entrar o Prellado na Igr.ª, e quando celebrar, também à sahida; vindo algum Prellado a

quem o Bispo queira onrar sera obrigado a tanger emquanto estiverem orando; e no pontifical sera

obrigado a tanger a terça emquanto o Bispo se revestir, e assim mais todas as vezes q. Por nos ou pello

Cabb.º lhe for ordenado (...). Cf. Santiago kastner, Três compositores Lusitanos para Tecla – Séculos XVI

e XVII, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 38. De acordo com Filipe Mesquita de Oliveira, a

deslocação do clero durante as cerimónias religiosas era também acompanhada por música instrumental,

nomeadamente o órgão. Cf. “A génese do tento no testemunho dos manuscritos P-Cug MM 48 e MM

242 (com uma edição crítica dos ricercari de Jacques Buus e das suas versões recompostas)”, tese de

Doutoramento em Música e Musicologia, Universidade de Évora, 2011, pp. 48-49.

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145

vigilante o Prezidente, e nos termos de qualquer falta emultará em dous mil

reis.374

Em todas as occazioens, em que Nós houvermos de hir a Igreja, ou para

celebramos, ou para assistirmos aos officios divinos, tem o Organista obrigação

de tocar orgão assim na entrada, como na sahida; e do mesmo modo na entrada,

e sahida do Governador e Capitam General desta Provincia, e senado da Camera

desta Cidade, o que tudo procede com a exceição do tempo, em que não he

permetido pulsar-se o Orgão, ou do em que se estiverem celebrando os officios

divinos.375

O coro, do qual se ocupa a segunda parte dos Estatutos, era constituído por

moços e dez capelães preferencialmente eclesiásticos, de entre os quais quatro

assumiam as funções de subchantre, mestre-de-capela, mestre-de-cerimónias e

organista, por falta de pessoal apto.376 As funções responsáveis pela música cabiam ao

subchantre e ao mestre de capela.

No capítulo destinado às obrigações do organista lê-se que o órgão era o único

instrumento em uso naquela catedral:

Procedendo os nossos Augustos Monarchas com mãos sempre providentes para

o culto divino instituirão taõbem na nossa Cathedral hum Organista, a quem

para o officio de tocar orgaõ unico instromento, de que nella se uza establecerão

ordenado, que de facto recebe pela ordem da folha como dicemos assima.377

Essa exclusividade, porém, deve ser entendida no âmbito do pessoal efectivo ao

serviço da catedral, pois sobrevivem partes instrumentais coetâneas dos Estatutos que

indicam a participação de instrumentos de cordas.378

À época dos Estatutos a Sé dispunha de dois órgãos,379 colocados frente a frente

em coretos na nave central, e cuja manutenção e zelo cabia, por inerência, ao organista

responsável:

374 Cf. parte I, cap. 2.º, §14, fl. 5. 375 Cf. parte II, cap. 9.º, §6, fl. 37v. 376 “Convem, que este Menistro [organista] seja como he actualmente Eccleziastico, para que exercitando

em habitos clericaes o seu officio, o haja de obrar assim com a modéstia, e decência, que devem sempre

distinguirse em todos os Menistros, e officiaes da Igreja.” Cf. §2, cap. 9, Parte II, fl. 37. 377 Cf. parte II, cap. 9.º,§1, fl. 37. 378 Não obstante as partes instrumentais encontradas em P-AHc serem maioritariamente cópias do século

XIX, foram localizadas algumas partes de violoncelo da centúria anterior, como suporte do baixo

contínuo.

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146

E para que os Orgãos desta Igreja se disponhão, e estejão sempre promptos para

as diarias precizoens, que se tem delles, deve o mesmo Organista trazelos

sempre afinados, e fechados, sem que jamais haja de abrilos, que nos actos em

que for exercitar nelles o seu ministerio e deve igualmente telos limpos de pó e

theas de aranha para os fins sobreditos, para o da sua precisa conservação, e por

se evitar o escandalo, que em muitas occazioens tem chegado aos nossos

ouvidos em razão da immundice, e ditas theas de aranha, com que o grande se

tem exposto aos olhos do povo.380

Entende-se que a actuação simultânea de ambos os instrumentos estava

reservada exclusivamente às festas e solenidades mais importantes do calendário

litúrgico. No caso da Sé de Angra, o órgão maior serviria nos dias santos e clássicos,

enquanto o mais pequeno cumpria o serviço dos dias ordinários, restando a dúvida sobre

qual dos dois órgãos seria o maior ou o mais pequeno, o de Peres Fontanes ou o outro

de autoria desconhecida: “(...) E como se dão nesta Igreja dous Orgãos será decente, que

ambos officiem nas festas, e solemnidades principaes do anno; e rezervando-se para os

dias ordinarios o uzo do pequeno, se tocará sempre o grande nos domingos dias Santos,

e classicos.”.381

Para tal, o organista devia ter um assistente (denominado “coadjutor”), não só

para o substituir nas ausências mas também para o acompanhar num dos órgãos nas

ocasiões previstas para tal. Competia também ao organista assegurar quem manuseasse

os foles, evitando o recurso aos moços do coro.

(...) será portanto o Organista obrigado a ter hum coadjutor do seu mesmo

officio, que possa não só suprir as suas faltas, mas acompanha-lo em hum dos

orgãos nas funcçõens em que persuadimos o uzo de ambos, para cujos foles terá

servos competentes, sem que possa para este fim occupar algum dos Moços do

Coro, que sendo destinados para outros serviços não devem preterir estes da sua

obrigação, para satisfazer o dos foles, proprio do mesmo Organista. Todo o

exposto cumprirá individualmente o Organista debaxo das penas, e multas

abaxo declaradas.382

379 Um destes instrumentos seria de Joaquim António Peres Fontanes, de acordo com o descrito no

capítulo II. No entanto, não foram encontrados quaisquer dados sobre o outro instrumento. 380 Cf. parte II, cap. 9.º, §7, fl. 37v. 381 Cf. parte II, cap. 9.º, §7, fl. 37v. 382 Cf. parte II, cap. 9.º, §10, fl. 38.

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147

O calendário de festas e solenidades da Igreja Católica era organizado por

ordens hierarquicamente definidas pela relevância e significado do acontecimento a

celebrar, consoante as quais variava a participação do órgão. Contrariamente às cinco

ordens prescritas nos Estatutos da Patriarcal de Lisboa, publicados em 1781, os

Estatutos da Sé de Angra descrevem três ordens: Festas clássicas de primeira e segunda

ordem e outras solenidades.383 Em todo o caso, requeria-se do organista uma presença

diária:

Deve portanto aprezentar-se com vestes clericaes, e cota limpa, e como todos os

dias se canta a Missa Conventual, e na forma das Vezitas de nossos

Antecessores devem cantar-se todas as Vesporas per annum; elle por isso

mesmo deve ter rezidencia efectiva na mesma Igreja, porque em todos os dias,

em que nella há Canto deve este assestir-se competentemente com

acompanhamento de orgão.384

Esta obrigação corrobora a prática desenvolvida na segunda metade do século

XVIII, quando as partes executadas em cantochão e canto de órgão das festas e

solenidades mais emblemáticas do calendário litúrgico eram integralmente

acompanhadas pelo órgão, com excepção das seculares restrições nos tempos de

Advento e Quaresma:

Da primeira regra que damos no §3, e procede geral, se lemita todo o tempo do

Advento, em que senão toca o Orgam, a exceição da Dominga = Gaudete =

terceira do mesmo advento, em que deve tocarse á Missa Conventual; e do

mesmo modo no tempo da Quaresma a exceição da Dominga = Laetare = e dos

dias duplices e semiduplices de hum, e outro tempo; como tãobem na Missa de

383 Cristina Fernandes alerta para a multiplicidade de variantes de acordo com as tradições locais. Cf. “O

sistema produtivo da Música sacra em Portugal no final do Antigo Regime: a Capela Real e a Patriarcal

entre 1750 e 1807”, Tese de Doutoramento, Universidade de Évora, 2 vols., 2010, vol. I, p. 416. Paulo

Castagna também aborda com profundidade a questão da hierarquização do calendário litúrgico. Ver “O

Estilo Antigo na prática musical religiosa paulista e mineira dos séculos XVIII e XIX”, Tese de

Doutoramento, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, vol. I,

2000, p. 101. A sobrecarga de festividades mencionada por Cristina Fernandes (op. cit., p. 426) é

igualmente assinalada pelo estrangeiro John Webster, que esteve nos Açores nos anos de 1817 e 1818:

(...) Every day in the year is dedicated to some saint and on many saints’s day no work is done (...). It is

customary to give a child the name of that saint, on whose day it is born (...). Cf. A Description of the

Island of St. Michael, Boston, 1821. 384 Cf. parte II, cap. 9.º, §3, fl. 37

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148

Quinta feira maior athe o fim do Gloria; e na do Sabado santo continua sempre

desde o principio do dito hymno. 385

Ao organista da Sé de Angra competia acompanhar ao órgão os cantores em

todas as festas solenes e clássicas, com primeiras e segundas Vésperas, Matinas ou

Laudes, assim como as Completas nas funções de primeira ordem, as festividades

dedicadas a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e nas Vésperas dos dias dúplices e

semidúplices da Quaresma:

Alem destas diarias tem todas as festas solemnes, e classicas, q costumão

solemnizar-se nesta Igreja com primeiras, e segu[n]das Vesporas, Matinas, ou

Laudes cantadas: bem assim, como Completas em todas as funcçoens da

primeira Classe; de N. Senhor; de N. Senhora; e nas dos dias duplices, e

semidupleces da Quaresma, quando as Vesporas se rezão de manhan; e em

todas as outras, que se offerecem na mesma Igreja, nas quaes deve ele

igualmente officiar, acompanhando com o Orgão ao Mestre da Capella, e

Cantores, na muzica, que se lhe destinar: e a tercia quando Nos celebramos

Missa Ponti[fi]cal, e em quanto nos revestimos.386

Não obstante as múltiplas referências a géneros e subgéneros musicais387

encontradas nos Estatutos, não há alusões explícitas à função concreta do órgão, a qual

se depreende através das inúmeras referências a práticas genéricas de execução como

“cantochão” ou “canto firme”, ou simplesmente “canto”, “musica”, “canto d’orgão” ou

“figurado” e, também a “canto d’orgão ao livro” ou “canto de órgão alternado pelo livro

à estante”, uma prática de contraponto improvisado à primeira vista utilizada, por

exemplo, nas primeiras vésperas das festas de segunda ordem, tornando-se frequente no

reinado de D. João V devido à ligação com Roma.388

385 Cf. parte II, Cap. 9.º, §5, fl.37. 386 Cap. 9.º, §4, fl. 37. 387 Considera-se como subgénero a indicação de determinados títulos pertencentes a géneros musicais, por

exemplo, os hinos Te Deum e Tantum ergo ou o Salmo Miserere. 388 Cf. Cristina Fernandes, op. cit., vol. I, 2010, p. 439. As diferentes terminologias encontradas nos

Estatutos da Sé de Angra correspondem ao vocabulário utilizado na esfera da música sacra setecentista,

usado por exemplo no Breve Rezume de tudo o que se canta em cantochão, e canto de orgão pellos

cantores na Santa Igreja Patriarchal, um tipo de diário do ceremonial litúrgico escrito provavelmente

entre 1722 e 1724. Cf. João Pedro d’Alvarenga, An edition of P-La Ms 49-i-59, Breve Rezume de tudo o

que se canta em cantochão, e canto de orgão pellos cantores na Santa Igreja Patriarchal,

em https://www.academia.edu/13692405/.

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149

A incipiência do discurso no que respeita a aspectos musicais e a utilização de

um discurso com expressões que remetem para uma acção habitual, como “na forma do

costume” ou “regularidade da praxe”, leva a supor que algumas das directivas

resultavam de uma prática já generalizada no meio musical da Sé, prescindindo de

explicações pormenorizadas. Contrariamente ao que se verifica relativamente ao Ofício

Divino, onde surgem várias alusões ao órgão e ao canto, as indicações relativamente à

Missa são muito vagas.389 A este propósito, as cartas pastorais dos prelados angrenses,

transcritas por Susana Goulart, acrescentam dados sobre alguns dos problemas com os

quais se deparava a execução da música sacra nos Açores na segunda metade do século

XVIII.390 Por exemplo, uma das circulares do bispo D. João Marcelino dos Santos

Homem Aparício, datada de 26 de Fevereiro de 1778, condena a ausência dos cantores

nas secções que lhes estão designadas e sublinha que o órgão sem ser acompanhado das

vozes dos ministros não é suficiente para cumprir as obrigações do coro e louvar a

Deus.391 Do seu conteúdo deduz-se ainda que o órgão tocava a solo em determinadas

partes, nomeadamente no intróito da missa solene.392 O mesmo sucedia na Missa do

Ofício, quando os cantores não cantavam todos os “Chirios, o Gloria, o Credo, todos os

versos dos Santos, Gradual, Ofertorio, e finalmente o Deo gracias depois do Ite missa

est (...)”, incumprimentos que ofendiam “com escândalo de todos os fieis todas as

rubricas preseptivas e directivas da Santa Igreja”.393 Aquela mesma circular contesta

também a execução de árias profanas “e outras solfas com letra que so serve para o

389 O Ceremonial Ecclesiastico de Mathias de Santa Ana, publicado em Lisboa no ano de 1743 e

destinado a uma comunidade conventual, descreve minuciosamente os procedimentos da Missa (pp. 180-

184). Cf. P-Ln R. 6633 A., Fr. Mathias de S.ta Anna, Ceremonial Ecclesiastico, segundo o Rito Romano,

para o uso dos religiosos Eremitas descalços da Ordem de Santo Agostinho da Real Congregação de

Portugal, e para os mais eclesiásticos, que seguem o mesmo Rito Romano, distribuído em sinco tratados

de coro, e Altar, e de algumas acções particulares da mesma ordem, Lisboa, Officina de Miguel

Manescal da Costa, 1743. 390 Consultar Susana Goulart Costa, A Diocese de Angra nas cartas dos seus Prelados 1695-1812,

Boletim Eclesiástico Açoriano, vol. 62 (suplemento), Angra do Heroísmo, 2012. Na pastoral n.º 16,

datada de 9 de Novembro de 1741, D. Frei Valério do Sacramento adverte para a necessidade das igrejas

colegiadas do bispado não se descuidarem quanto aos ministros instruídos no cantochão, sob pena de os

Ofícios Divinos não se celebrarem com a devida decência. Cf. op. cit., p. 59. 391 Idem, p. 168. 392 Idem. Tal como já foi mencionado anteriormente, a presença do órgão a solo nas deslocações dentro da

liturgia é registada desde o século XVI. 393 Cf. Susana G. Costa, op. cit., p. 168.

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150

teatro, e não para a caza de Deos (...)”.394 Todavia, esse tipo de repertório não foi

encontrado em nenhum dos arquivos musicais consultados.395

A Tabela 5.1 sumariza as indicações dos Estatutos relativas às práticas

interpretativas no Ofício Divino da Sé de Angra nas festividades e solenidades.

Cantochão Canto de órgão Alternância entre cantochão e canto

de órgão

Matinas das Festas de 1.ª ordem Missa das Festas de 1.ª e 2.ª

ordem

1. as e 2. as Vésperas e 1. as

Completas das festas de 1.ª ordem

Laudes das Festas de 1.ª ordem

(nem sempre)

Matinas e Laudes do Domingo

de Páscoa

Matinas de Natal

2. as Vésperas das Festas de 1.ª e

2.ª ordem

Matinas e Laudes do Espírito

Santo e do Titular da Catedral

Matinas e Laudes do Tríduo Pascal

Laudes do Natal Missa do Natal 1. as e 2. as Vésperas e Completas do

Espírito Santo e Titular da Catedral

2. as Vésperas do Natal Missa do Espírito Santo 1. as Vésperas aquando da visita do

cabido Missa com a presença do cabido

Tabela 5.1 – Síntese das práticas interpretativas no Ofício Divino e Missas

da Sé de Angra

Sem prejuízo do volume e profundidade das informações, as indicações de

execução implícitas nos Estatutos prosseguem a prática da época. Considerando que o

papel do órgão se encontrava numa fase de mudança, por inerência à respectiva

394 Idem, p. 169. Cristina Fernandes refere que esse tipo de repertório era utilizado como ferramenta de

trabalho no Seminário da Patriarcal, tanto para instrumentistas e cantores como para compositores. Cf. op.

cit., pp. 398-399. 395 As poucas evidências que existem sobre repertório profano conservam-se em P-PD (colmsm)

sobretudo concertos para cravo ou piano forte compostos por Maddalena Laura Sirmen, adaptados ao

cravo por Sig.r Giordani (Cf. P-PD, colmsm, cx. 8 [impresso não datado] e trios de Luigi Boccherini para

dois violinos e baixo obrigado (cx.06/07, 06/15 e 06/15, Trio em Dó maior, em Fá maior e em Mi bemol

maior, respectivamente). Existem também dois relatos de estrangeiros que passaram pelos Açores no

primeiro quartel do século XIX e que registaram a interpretação de repertório profano vocal e

instrumental em espaço sacro, ambos em contexto conventual: “(...) Numerous spectators occupied the

chapel, and the orchestra of the performers was in front of the large hall on study of the nuns, raised about

20 feet above the level of the chapel, and separated from it, but not obscured, by a range of iron bars. The

performers consisted eclusively of nuns. They were thirty in number, and besides the instruments

common to their sex, they played on violins, French horns, and flutes. The instrumental was judiciously

supported by vocal music; and were it not that the general effect was somewhat injured to an English eye

by the appearance of flutes and violins in female hands, the concert might be said to be enchanting (...)”

Cf. Thomas Ashe, History of the Azores or Western Islands, Londres, 1813, p. 189. Considere-se ainda

um outro relato de John Webster, op.cit., p. 80: “During Lent crowds are attracted to the convents by the

vocal and instrumental music of the nuns, which is performed in the upper part of their chapel, and is

continued almost uninterruptedly from Ash Wednesday, to Easter Sunday. During this time, the greatest

exertions are made by the sisters of each convent to surpass all the others. They do not confine themselves

to sacred music, nor to those instruments only, which, in most other countries, are seen in the hands of

females, but perform with rapidity and taste on all that usually compose a full orchestra.”

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151

transformação da música sacra, profusamente influenciada pelos modelos italianos, a

sua execução passa a ser conduzida por uma linha obrigada que o remete ora para o

papel de acompanhador ora para uma função concertante.396

Uma das provas cabais daquela transformação é a obra de Frei José de Santo

António para a Basílica de Mafra, datada de 1761 – Acompanhamentos de Missas,

Sequências, Hymnos, e mais Cantochão, que he uso, e costume acompanharem os

Orgaõs da Real Basilica de Nossa Senhora e Santo Antonio, Junto á Villa de Mafra,

com os transportes, e armonia, pelo modo mais conveniente, para o côro da mesma

Real Basilica –, na qual se apresenta o cerimonial dos frades seráficos do convento de

Mafra com cantochão cifrado.397

Tratando-se de uma valiosa ferramenta de trabalho para os organistas

setecentistas e posteriores, pois foi única até ao século XX,398 é provável que se tenha

disseminado pelos circuitos musicais sacros, ainda que concebida para o culto da

comunidade franciscana da Basílica de Mafra. Nos arquivos da Igreja Matriz de Ponta

Delgada e da Biblioteca Pública e Arquivo Regional da mesma cidade foram

encontrados alguns manuscritos decalcados da obra de frei José de Santo António, pelo

que se deduz que a prática de acompanhar o cantochão permanecia nas igrejas seculares

dos Açores no início do século XIX. No primeiro arquivo consta uma compilação

396 Cf. Gerhard Doderer, “A presença do órgão na liturgia portuguesa”, op. cit, p. 98. Ver também João

Vaz, “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva...”, vol. I, 2010, p. 124. Acerca da utilização do

baixo contínuo na primeira metade do século XIX, nomeadamente como material didáctico utilizado no

Conservatório de Música de Lisboa, Mário Trilha Neto refere não tratar-se de uma “ressurreição do baixo

contínuo como fenómeno musical vivo, já que o objetivo do estudo passou a ser a composição, pois a arte

do acompanhamento a partir do baixo, há muito desaparecera da prática musical”. Cf. “Teoria e Prática

do Baixo Contínuo em Portugal (1735-1820)”, Tese de Doutoramento, Universidade de Aveiro, 2011, p.

98. 397 Impresso em Lisboa. Estão explícitas, na secção inicial das Advertências, as convencionais restrições

de participação do órgão no Tempo do Advento e da Quaresma e ainda a sua intervenção a solo em

determinadas ocasiões: “Em Noite de Natal (...) e acabadas as Matinas, o tempo que restar até sahir a

Missa, tocaraõ os Orgaõs algum concerto, como pede o dia.” (Secção das Advertências, XVI); “(...) em

dia de S. Silvestre, depois de Completas, tócaõ seis Orgaõs em quanto se junta a Communidade (...) e

depois em quanto se dá a Bençaõ com o Sacramento ao Pôvo, tóca hum Orgaõ.” (Secção das

Advertências, XVII). 398 Outras publicações de teor instrutivo ou pedagógico foram surgindo, mas sempre fundamentadas num

pressuposto diferente, por exemplo Francisco Ignacio Solano, Novo Tratato de Musica Metrica e

Rythmica, Lisboa, Régia Oficina, 1779; Frei Domingos do Rosário, Theatro Ecclesiastico, em que se

achaõ muitos documentos de canto-chaõ para qualquer peffoa dedicada ao Culto Divino nos Officios do

Coro e Altar, Lisboa, Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1786; Frei Domingos de São José Varella,

Compendio de Muzica Theorica e Pratica, Porto, tipografia de Antonio Alvarez Ribeiro, 1806. Este

último integra inclusivamente algumas secções destinadas a componentes teóricas do órgão,

nomeadamente os procedimentos básicos para medição dos tubos.

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manuscrita copiada antes da implantação do Liberalismo com acompanhamentos de

cantochão referentes a quase todas as horas do Ofício, especificamente Hinos

(predominantemente Te Deum), Salmos (nos oito tons), Missas e Sequências.399

Verificam-se algumas alterações formais relativamente à obra de Frei José de Santo

António, resultado de adaptações a uma igreja não conventual, sendo excluídas algumas

festividades atinentes ao ritual dos franciscanos de Mafra, como a Festa de S. Francisco

e a Trezena de Santo António. Por sua vez, encontram-se algumas festas associadas à

Igreja Matriz de Ponta Delgada, como a de São Sebastião, seu patrono.

Ex. 5.1 Hino de Vésperas, Laudes e Noa da Festa da Ascensão de Nosso Senhor

(Frei José de Santo António, op. cit., p. 63)

Ex. 5.2 Hino de Vésperas, Laudes e Noa da Festa da Ascensão de Nosso Senhor (compilação

manuscrita de acompanhamentos, fl. 27, Arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada)

399 Pasta 3. Esta compilação não possui frontispício nem data.

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153

Na colecção de manuscritos musicais da Biblioteca Pública e Arquivo Regional

de Ponta Delgada foram localizados manuscritos avulsos com conteúdos iguais aos da

compilação do arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada (Ex. 5.2), entre eles o Hino de

Vésperas, Laudes e Noa da Festa da Ascensão de Nosso Senhor (Ex. 5.3). De entre os

restantes, enumeram-se as harmonizações dos Hinos das Vésperas de S. Francisco e do

Hino de Matinas, Laudes e Vésperas de Santa Clara (patronos da primeira e segunda

ordem de S. Francisco), material que não se encontra na compilação da Igreja Matriz de

Ponta Delgada e que confirma, definitivamente, que os manuscritos daquela biblioteca

são maioritariamente provenientes dos conventos micaelenses.400

Ex. 5.3 Hino de Vésperas, Laudes e Noa da Festa da Ascensão de Nosso Senhor

(P-PD, colmsm, mç. 13)

Esses acompanhamentos correspondem às duas formas de acompanhar o

cantochão propostas por Frei José de Santo António:401 cantochão como linha de baixo

figurado com cifras (Ex. 5.1 e 5.3), ou cantochão como uma melodia suportada por uma

linha de baixo original (Ex. 5.2).

Da análise das partes de órgão dos materiais musicais dos arquivos dos Açores

depreende-se que o acompanhamento do cantochão foi sendo cada vez mais preterido

em favor da presença concertante. No entanto, ainda no final do ano de 1865, o hino Te

Deum de Acção de Graças de final do ano foi executado a cantochão na Igreja Matriz e

400 Não foi possível, no âmbito desta tese, indagar a função do órgão no contexto conventual. Apesar de

terem sido consultados alguns fundos monásticos dos Açores, em particular os das igrejas com órgãos,

não foram encontrados normativos que sustentassem uma análise consistente. Além disso, a falta de

inventariação e organização da colecção de manuscritos musicais em P-PD ditou a exclusão dessa área na

presente investigação. 401 Consultar João Vaz, The Celebration of St. Francis in the Monastery of Mafra and the Six Organs in

the Basilica”, Itinerarium – Revista Quadrimestral de Cultura, ano LX, n.º 209, 2014, pp. 493-506.

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154

no Convento da Esperança, ambos em Ponta Delgada, sendo que nos Ofícios da Semana

Santa do ano seguinte, naquela igreja matriz, se interpretaram as Matinas de Silvestre

Serrão, num estilo declaradamente operático. 402

V. 2 O repertório

Considerando a componente utilitária da música sacra de setecentos e

oitocentos,403 todos os manuscritos musicais do período homólogo encontrados nos

arquivos dos Açores foram, à partida, interpretados nas igrejas açorianas.404 No entanto,

dada a inviabilidade de abarcar o vastíssimo corpus de manuscritos, elaborou-se uma

amostra (Tabela 5.2) baseada nos géneros e subgéneros musicais mencionados nos

Estatutos e respectiva representatividade nos arquivos: Tantum Ergo, Te Deum

laudamus, Magnificat, Responsórios, Lições e Lamentações da Semana Santa, Salmos e

Missas. Para a referida amostra foram considerados os materiais identificados com

autoria e com parte de órgão, datados entre o final do século XVIII e o final do século

XIX. Contudo, há uma larga parcela sem indicação de data, tendo sido assumido, em

alguns casos, o âmbito do século XIX devido às características do material,

nomeadamente o tipo de grafia, estilo da obra ou identificação do copista.405

Outros subgéneros músico-litúrgicos como Sequências, Litanias, Antífonas, Veni

Creator Spiritus e cânticos diversos dedicados a Nossa Senhora, encontram-se

402 Cf. A Persuasão, 5 de Janeiro de 1866, ano 5, n.º 210. Há igualmente notícia de cantochão na missa de

Pentecostes na Igreja Paroquial das Candeias, na Candelária, uma pequena freguesia localizada na costa

sudoeste da ilha de S. Miguel (Cf. A Voz da Verdade, 21 de Junho de 1873, ano 6, n.º 33). 403 Esta dimensão utilitária está particularmente explícita no estudo de Cristina Fernandes sobre “A

Música Sacra no Período Pombalino”, Revista Camões n.º 15-15, Janeiro a Junho, 2003, p. 90: “Durante

o século XVIII, tal como nas épocas anteriores, a música sacra gozava de uma existência relativamente

breve. Tratava-se de um repertório de circunstância que fazia parte do quotidiano das diversas instituições

religiosas, tendo como principal objectivo garantir a música nas cerimónias de culto de acordo com as

convenções impostas pela liturgia. A produção e circulação de partituras eram ditadas por imperativos de

consumo imediato que visavam situações concretas. A música que ia sendo concebida era divulgada

através de cópias manuscritas, mas raramente era editada.” 404 Arquivos institucionais: P-PD (colmsm), Museu Carlos Machado (MCM), Seminário de Angra (SA).

Arquivos Paroquiais: P-AHc, Matriz de Ponta Delgada (AIMPD), S. José (AIPSJ), Matriz da Calheta

(AIMCSJ) e Matriz das Velas em S. Jorge (AIMVSJ). 405 Esse tipo de situação surge maioritariamente no arquivo da Sé de Angra, sobre o qual trabalhou Luís

Henriques, que o catalogou na íntegra: Arquivo Capitular da Sé de Angra: Catálogo do Fundo Musical,

Angra do Heroísmo, Sé de Angra, 2012.

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155

igualmente nos arquivos, embora em quantidade menos expressiva e com inúmeras

cópias anónimas, pelo que não são contemplados na referida amostra. Na Tabela 5.2, as

partes de órgão com sistema de cifras estão sinalizadas a negrito.

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

Tantum ergo

Posse do prelado –

incensação do

Santíssimo

(Parte I, cap. 2,

§11, fl. 5

António da Silva Leite

(1759-1833)

P-AHc (MM190) Composto ca. 1815.

Algumas partes

instrumentais copiadas em

1896.

João José de Paiva

(séc. XIX)

P-AHc (MM189) Cópia séc. XIX. Algumas

partes instrumentais datadas

de 1900.

Manuel Gomes Ribeiro

(?)

P-AHc (MM35) Cópia séc. XIX

Te Deum laudamus

Posse do prelado (Parte

I, cap. 2, §8, fl. 3 v.)

Horas canónicas (parte

III, cap. 18, §4, fl. 64v)

Acção de graças no

último dia do ano (parte

III, cap. 19, §2, fl. 65v).

Laudes, Prima e Tertia

João José Baldi

(1770-1816)

P-AHc (MM53) Cópia séc. XIX. Parte do

órgão copiada por Manuel

Machado Dinis.

P-AHc (MM244) Cópia séc. XIX.

(2 coros e 2 órgãos)

P-AHc (MM243) Cópia de 1812 (parte de

órgão com posse de Mateus

Pereira de Lacerda e de

Basílio Ferreira Mendes e

autor da cópia Mateus

Pereira de Lacerda).

AIMCSJ Cópia séc. XIX/XX

Manuel Couto

Benevides

(2.ª metade séc. XIX)

AIMCSJ Cópia de 1893.

João Evangelista

Pereira da Costa

(1798-1832)

P-AHc (MM249) Cópia séc. XIX. Marca de

posse da parte de órgão: Pe :

Ant.º [ilegível] e Pe José

Maria Sousa.

José Maria Beckner

Franchi (1776-1832)

P-AHc (MM44) Cópia de 1823 de Basílio

Ferreira Mendes. Marca de

Posse “Mendes” [Basílio

Ferreira]

Eusébio Tavares le Roy

(2.ª metade século

XVIII)

P-PD /colmsm

cx.07/08/01

Identificação de posse:

Jacinto Inácio Cabral (2.ª

metade séc. XIX). Org (bc)

José Marques e Silva

(1782-1837)

AIMCSJ Cópia séc. XIX/XX

SA Cópia séc. XIX

António José Soares

(1783-1865)

AIMCSJ Cópia séc. XIX/XX.

Jácome de Sousa

[Ribeiro] (1862 -?)

AIMCSJ Cópia séc. XIX.

Júlio António [Avelino]

Soares (1846 – 1888)

AIMCSJ Cópia séc. XIX.

João Jordani

(1777-1860)

SA Cópia séc. XIX

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156

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

Frei Marcelino de Santo

António (séc. XVIII)

P-AHc (MM8) Cópia de 1792.

Org (bc)

Ângelo do Rego

Quintanilha (padre

açoriano, séc. XIX)

P-AHc (MM180) Cópia séc. XIX. Indicação de

que foi oferecido ao

Seminário de Angra.

António Leal Moreira

(1758-1819)

P-AHc (MM247) Cópia séc. XIX.

Magnificat

Vésperas (parte III, cap.

17, §3, fl. 63)

João J. Baldi P-AHc (MM2) Cópia de 1810 e marca de

posse de Mateus Pereira de

Lacerda

P-AHc (MM361) Partitura e partes copiadas

em 1846. Org (bc)

Luciano Xavier dos

Santos (1734-1808)

P-PD /colmsm

cx. 09/18/01 e

09/19

Cópia de 1793. Org (bc)

João Cordeiro da Silva

(final séc. XVIII)

P-AHc (MM91) Parte de órgão séc. XIX,

copista Mateus Pereira de

Lacerda. Org (bc)

Mateus Pereira de

Lacerda

(2.ª metade séc. XVIII)

P-AHc (MM360) Parte de órgão cópia de

1785, Mateus Pereira de

Lacerda. Parte de vlc séc.

XIX.

Org (bc)

Giuseppe [José] de

Porcaris

(2.ª metade séc. XVIII)

P-AHc (MM 92) Séc. XVIII

Lamentação

Tríduo Pascal (parte III,

cap. 19, §6, fl. 65v)

Manuel Elias, Frei

(2.ª metade do séc.

XVIII)

P-AHc (MM 25) Cópia de 1784. Marca de

posse Manuel Machado

Dinis. Org (bc)

José Joaquim de

Oliveira Paixão

(1770-1810)

P-AHc (MM32) Cópia séc. XIX. Lamentação

1.ª de 5.ªf . Org (bc)

P-AHc (MM33) Cópia séc. XIX. Org (bc)

P-AHc (MM34) Cópia séc. XIX Lamentação

1.ª de Sábado Santo. Org

(bc)

José Joaquim dos

Santos

(1748? – 1801)

P-AHc (MM27) Cópia séc. XIX. Lamentação

1.ª de 6.ª Feira Santa. Marca

de posse de Mateus Pereira

de Lacerda. Org (bc)

P-AHc (MM28) Cópia séc. XIX. Lamentação

1.ª de 6.ª Feira Santa. Marca

de posse de Mateus P. de

Lacerda. Org (bc)

P-AHc (MM29) Cópia séc. XIX. Marca de

posse de Mateus P. de

Lacerda. Org (bc)

P-AHc (MM30) Cópia séc. XIX. Lamentação

1.ª de 6.ª feira Santa. Org

(bc)

P-AHc (MM31) Cópia séc. XIX. Lamentação

1.ª de Sábado Santo. Org

(bc)

Luciano X. dos Santos P-AHc (MM26) Cópia séc. XIX. Lamentação

de 5.ª f.ª. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx. 04/09/01

1803. 2.ª Lamentação de

Quinta-Feira Santa

Joaquim Silvestre AIMPD 5.ª Feira Santa

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157

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

Serrão (1801-1877) AIMCSJ 5.ª Feira Santa

Frei Manuel Gaspar

Berlarmino (séc.

XVIII/XIX)

P-PD /colmsm

cx.06/18/03

1816 (Para o Mosteiro de S.

João Evangelista da cidade

de Ponta Delgada, Ilha de S.

Miguel)

Francisco Xavier

Fontes (padre açoriano,

séc. XVIII/XIX)

P-PD /colmsm

cx.06/11/01

1801. Org. bc e ob.

Responsórios do Tríduo

Pascal

João J. Baldi AIMVSJ 1.º nocturno dos responsórios

de 5.ª Feira Santa.

P-AHc (MM341) Cópia séc. XIX.

Responsórios que se cantam

na 5.ª feira Santa. Org (bc)

Manuel Patrício Bastos

(+1856)

AIMPD 1813. Acompanhamento

responsórios de Sexta-feira

Santa. Posse de Jacinto I.

Brandão

AIMCSJ Cópia séc. XIX. Matinas de

5.ª feira Santa

Francisco A. Norberto

dos Santos Pinto

(1815-1860)

P-AHc (MM342 e

343)

Cópia séc. XIX.

Responsórios de Quinta-

Feira e Sexta-Feira Santas

Manuel do Couto

Benevides

(2.ª metade do século

XIX)

AIMCSJ 1893 - Matinas de 5.ª Feira

Santa. Matinas de Sábado

Santo (séc. XIX)

AIPSJ Séc. XIX. Matinas de 5.ª

Feira Santa

Joaquim S. Serrão Ver Tabela 5.6

António José Soares AIMCSJ Matinas de Sexta-Feira e

Sábado Santo

AIMVSJ Responsórios de Sexta-Feira

Santa

José do Espírito Santo

Oliveira

(+ 1819)

P-AHc (MM287) 1802. Responsório Primeiro

e segundo | da gloriosa

ressurreição de N. Sr. Jesu

Christo. (Indicação que foi

oferecido ao mestre de

capela da Sé Manuel

Machado Dinis em 1802).

Org (bc)

José Joaquim dos

Santos

P-AHc (MM285) Cópia séc. XIX.

Responsórios a 4 concertato

| Para se cantar na Quarta |

feira de Trevas. Marca de

posse da parte de órgão:

Mateus Pereira de Lacerda e

Basílio Ferreira Mendes.

Org (bc)

Lições da Semana

Santa

Tríduo Pascal

João J. Baldi P-PD /colmsm

cx. 06/20/01

Antigo Regime. Lectio

Prima a Duo da Sesta Feira

Sancta

José J. Oliveira Paixão P-PD /colmsm

cx. 07/02/01

Antigo Regime. Lição 4.ª a 4

vozes da Sexta-Feira Santa.

Org (bc)

Luciano X. dos Santos P-PD /colmsm

cx.09/03/01

1794. Lição 4.ª de 5.ª Feira-

Santa

P-PD /colmsm

cx. 09/04/01

1794. Lição 7.ª das Matinas

de Sábado Santo

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158

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

P-PD /colmsm

cx.09/12/01

1794. Lição 7.ª das Matinas

de 6.ª Feira Santa

P-PD /colmsm

cx.09/15/01

1795. Lição 3.ª de 6.ª Feira

Santa

P-PD /colmsm

cx.09/11/01

1794. Lição 8.ª das Matinas

de Sábado Santo

Responsórios do Natal Carlos Maria Machado

(1814-1865)

P-AHc (MM275) Cópia séc. XIX.

David Perez

(1711-1778)

P-AHc (MM278) Cópia de 1838: Basílio

Ferreira Mendes. Org (bc)

Luciano X. dos Santos P-AHc (MM46) Séc. XVIII (marca de posse

de Manoel Machado Deniz;

Matheus Per.ª; Pe Basílio

Ferreira Mendes. Org (bc)

José Marques e Silva AIMVSJ Cópia séc. XIX. Excertos

Mateus Pereira de

Lacerda

P-AHc (MM54) 1810. Copista: Mateus

Pereira de Lacerda. Marca de

posse: Pe. Basílio Ferreira

Mendes, Pe. Matheus Per.ª

de Lacerda. Org (bc)

J. J. Baldi P-AHc (MM274) 1858 – Matinas “passadas da

letra da conceição para a do

Natal pelo Pe. Diogo de

Barcellos Machado Mestre

de Capella da Sé, no anno de

1858.” Copista: M.F:

Peixoto. Org (bc)

Responsórios Epifania Eleutério Franco Leal

(+1839)

P-AHc

(MM 99)

Cópia entre 1790-1810. Org

(bc)

Responsórios

Transfiguração do

Senhor Jesus Cristo

José do Espírito Santo

Oliveira

P-AHc

(MM 98)

Cópia de 1796. Parte de

órgão oferecida à Sé de

Angra pelo mestre de Capela

da mesma Sé, Manoel

Machado Diniz em 1802.

Org (bc)

Responsórios

Pentecostes

José Alves Mosca

(+ década de 1830)

P-AHc (MM100) Parte de órgão oferecida à Sé

de Angra pelo mestre de

Capela da mesma Sé,

Manoel Machado Diniz em

1802.

Org (bc)

Responsórios

Espírito Santo

J. S. Serrão Ver Tabela 5.6

Responsórios

Santíssimo

Sacramento

José Marques e Silva AIPSJ Partes séc. XIX

P-AHc (MM083) Cópia séc. XIX. Copista José

Maria do Nascimento

(1874-1924)

Responsórios

S. Sebastião

J. Silvestre Serrão AIMCSJ “Seminário de Angra, 1881”.

Responsórios N.ª Sr.ª

da Conceição

J. Silvestre Serrão Ver Tabela 5.6

Marcos Portugal

(1762 – 1830)

P-AHc (MM301) Cópia séc. XIX.

8 responsórios

P-AHc (MM302) Cópia séc. XIX. Org (bc)

José Joaquim dos

Santos

P-AHc (MM285) Cópia séc. XIX. Org (bc)

Missa J. J. Baldi P-AHc (MM186) Cópia séc. XIX.

(2 coros e 2 órgãos)

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159

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

V. Bellini (1801-1835) P-AHc (MM317) 1852

AIMCSJ Séc. XIX

Alexandre Ferreira

(2.ª metade séc. XIX)

P-AHc (MM184) Arranjada para órgão por

Pedro Machado de Alcântara

(2.ª metade séc. XIX)

Francisco Xavier

Fontes (séc.

XVIII/XIX)

P-AHc (MM120) Cópia séc. XIX. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.06/11/01

1801 (indicação de posse:

Do uzo da R.ma Sra Thereza

Michelina de Sta Clara

Convto de Sto André / Org bc

e ob.

AIPSJ Cópia séc. XIX (Fá maior)

Eleutério Franco Leal P-AHc (MM113) 1816. Copista e posse de

Mateus Pereira de Lacerda.

Org (bc)

José Maurício

(1752-1815)?

P-AHc (MM121) Cópia séc. XIX. Org (bc)

Gio Pedro Matta

(séc. XVIII/XIX)

P-AHc (MM69) 1782. Marca de posse do Pe.

Basílio Ferreira Mendes.

Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.07/05/01

Antigo Regime (indicação de

posse: Do uzo da R.ma Sra

Thereza Ma de Jesus. Org

(bc)

Fortunato Mazziotti

(início séc. XIX)

P-AHc

(MM 125)

A parte de órgão está datada

de 1827 (marca de posse de

Basílio Ferreira Mendes).

Org (bc)

AIMCSJ Credo

João Jordani

(1793-1860)

AIMCSJ

Coelho (?) P-AHc

(MM 22)

Cópia séc. XIX. Missa a 4

“A Piquena”

Francisco José

Fernandes

P-AHc (MM111) Cópia séc. XIX.

Saverio Mercadante

(1795-1870)

P-AHc (MM225) Cópia séc. XIX. Credo (em

Mi bemol)

AIMPD 3.ª Missa. P. F. Horta

AIPSJ Cópia séc. XIX

António Leal Moreira P-AHc (MM75) Cópia séc. XIX. Org (bc)

P-AHc (MM71) Cópia séc. XIX. Marca de

pertença: da Matriz da Praia

da Vitória. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.06/08/01

Antigo Regime (indicação de

posse: Da R.ma Sra Thereza

Maria de Jezus). Org (bc)

Francisco Norberto dos

Santos Pinto

P-AHc (MM227) Cópia de 1858

AIMCSJ Cópia séc. XIX. Posse de

Manuel Azevedo da Cunha

AIMVSJ Cópia de 1849. Credo.

Copiado por José Lourenço,

Lisboa, Rua de S. Tomé, n.º

22 B, 1.º andar.

Marcos Portugal P-AHc (MM126) Parte de órgão séc. XIX.

Copista Francisco José da

Silveira. Org (bc)

P-AHc (MM230) Cópia séc. XIX. Org (bc)

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160

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

P-AHc (MM231) Cópia séc. XIX

P-PD /colmsm

cx.07/01/01 e 02

Antigo Regime. Org (bc)

AIMPD Cópia séc. XIX

José Joaquim dos

Santos

P-AHc (MM112) Cópia séc. XIX

P-PD /colmsm

cx.08/05/01

Antigo Regime (indicação de

posse: Do uzo da R.ma Sra

Thereza Ma de Jesus. Org

(bc)

António Joaquim dos

Santos (séc. XVIII ?)

P-PD /colmsm

cx.09/02/01

Antigo Regime. Org (bc)

Luciano Xavier dos

Santos

P-AHc (MM45) Cópia séc. XIX. Marca de

posse: M. Silva. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.09/16/10

Cópia de 1794

P-PD /colmsm

mç.11/128/01

Antigo Regime (indicação de

posse: R.ma Sra Thereza

Maria de Jezus). Org (bc)

Joaquim Silvestre

Serrão

Ver Tabela 5.6

Manuel Azevedo Cunha

(1861-1937)

SA Cópia início séc. XX

Giovanni [João]

Cordeiro [da Silva]

P-PD /colmsm

cx.06/14/01

Antigo Regime (indicação de

posse: Do uzo da R.ma Sra

Thereza Ma de Jesus

Niccolò Piccinni

(1728-1800)

P-PD /colmsm

cx.08/03/01

Antigo Regime (indicação de

posse: R.ma Sra Thereza Ma de

Jesus. Org (bc)

José Marques e Silva P-AHc (MM66) Cópia de 1836.

P-AHc (MM213) Cópia séc. XIX. Credo

P-AHc (MM214) Instrumentação e

propriedade de Pedro

Machado de Alcântara

P-AHc (MM215) Cópia séc. XIX. Org (bc)

P-AHc (MM216) Cópia séc. XIX

P-AHc (MM217) Cópia séc. XIX.

AIMCSJ Cópia de 1900

AIMCSJ Séc. XIX

P-PD /colmsm

cx.07/07/01

1836 (cópia também na Sé

MM 66)

AIPSJ Séc. XIX

António José Soares P-AHc (MM106) Cópia séc. XIX

P-AHc (MM185) Cópia séc. XIX.

P-AHc (MM115) Cópia séc. XIX

AIMCSJ Cópia séc. XIX. Missa a 4.

Posse de João Forjaz

Pacheco.

AIMCSJ Cópia séc. XIX. 2.ª Missa a 4

concertada. Oferecida à

Matriz de Santa Catarina por

Azevedo da Cunha em 1922

AIMPD Credo da Missa a 4

concertada “composta para

orchestra e arranjada para

órgão”

SA Credo. Cópia de 1855

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161

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

José Maria Beckner

Franchi

P-AHc (MM123) Existe igualmente uma parte

de rabecão. Esta e a de órgão

têm a data de 1823.

Inscrição: “compozitor da

capela real, cidade de Lisbôa

Em 1823”.

P-AHc (MM124) Parte de órgão copiada em

1879 com marca de posse de

Pe António Corrêa da Silva,

oferecido em 3 de Junho de

1879 p. A.C. de M.A

D. José de Ataíde (?) P-AHc (MM67) Cópia séc. XIX. Org (bc)

José Rodrigues Palma

(?)

P-AHc (MM238) 1837

P-AHc (MM89) Cópia séc. XIX. Marca de

posse de Basílio Ferreira

Mendes

José Coelho da Silva (?) P-AHc (MM119) Cópia séc. XIX. Org (bc)

Salmos

Horas canónicas

João de Sousa Carvalho

(+1798)

P-AHc (MM3) Séc. XVIII. Org (bc)

P-AHc (MM5) Séc. XVIII. Org (bc)

Giovanni Giorgi

(+1762)

P-AHc (MM1) Séc. XVIII. Org (bc)

P-AHc (MM16) Séc. XVIII. Org (bc)

Manuel Machado Dinis

(?)

P-AHc (MM9) Cópia de 1798. Contém a

seguinte anotação: Feito p.ª o

Rd.º Snr Manoel M.do Diniz

M.e da Capella da Se

d’Angra 1798. Org (bc)

José Maria Beckner

Franchi

P-AHc (MM21) Cópia séc. XIX

Jerónimo Francisco de

Lima (1743-1822)

P-AHc (MM10) Séc. XVIII. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.06/04/01

Antigo Regime (indicação de

posse: Convento de Santo

André). Org (bc)

José Joaquim dos

Santos (1748?-1801)

P-AHc (MM19) Séc. XVIII. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.09/17/01

Antigo Regime (indicação de

posse: Do uzo da R.ma Sra

Thereza Ma de Jesus). Org

(bc)

Joaquim Galão

Cordeiro

(séc. XVIII)

P-AHc (MM14) Cópia de Manuel Machado

Dinis. Org (bc)

Eleutério Franco Leal

(+1839)

P-AHc (MM18) Antigo Regime (indicação

cópia de Manuel Machado

Dinis – mestre de capela da

Sé no séc. XVIII). Org (bc)

António Leal Moreira

(1758-1819)

P-AHc

(MM59 e 60)

Parte de órgão do século

XVIII. Parte de vlc séc. XIX.

Org (bc)

P-AHc (MM70) 1802. Indicação de que foi

oferecido para a Sé de Angra

pelo mestre de Capela da

mesma Sé Manoel Machado

Diniz em 1802. Org (bc)

P-AHc (MM76) Parte de órgão e das vozes do

século XVIII. Org (bc)

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162

Género/subgénero/

contexto

Compositor Fonte/arquivo Outras informações

P-PD /colmsm

cx.06/05/01

Antigo Regime. Só

encontrada parte de órgão

(indicação de posse: Do uzo

da R.ma Sra Thereza Ma de

Jesus). Org (bc)

P-AHc (MM73) Cópia de 1810 – Mateus

Pererira de Lacerda. Marca

de posse do Padre Basílio

Ferreira Mendes – 1837.

Org (bc)

P-AHc (MM72) Séc. XVIII. Org (bc)

P-AHc (MM77) Cópia do séc. XVIII.

Indicação de que foi

oferecido à Sé de Angra pelo

mestre de Capela da mesma

Sé, Manoel Machado Diniz

em 1802.

Org (bc)

P-AHc (MM78)

salmo de vésperas

Cópia séc. XIX. Org (bc)

Mariano José Silva (?) P-AHc (MM109) 1822. Org (bc)

[João da Silva]

Cordeiro

P-PD /colmsm

cx.06/12/01

1788, Org (bc)

João Cordeiro da Silva P-PD /colmsm

cx.06/13/09

Antigo Regime. Org (bc)

Luciano Xavier dos

Santos

(1734-1808)

P-PD /colmsm

cx.09/07/01

1793. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.09/08/01

1793. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.09/09/01

1793. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.09/10/01

1793. Org (bc)

P-PD /colmsm

cx.09/20

1793. Org (bc)

Manuel Francisco

Velozo

(séc. XVIII)

P-AHc

(MM40)

Cópia séc. XIX, copista:

Carvalho

José Maria do

Nascimento

(1874-1924)

P-AHc (MM96) Séc. XIX.

João Jordani P-AHc (MM15) 1848. Cópia de Alexandre

Belo de Almeida

P-AHc (MM17) 1800-1850, cópia de

Alexandre Belo de Almeida

J. J. Baldi P-AHc (MM55) Cópia de 1846

Salmo Miserere

Depois de Laudes

(parte III, cap. 19, §7,

fl. 65v)

João José Baldi AIMVSJ Cópia de 1881

João E. Pereira da

Costa

AIPSJ Séc. XIX

José Maurício

(1752-1815)

P-PD /colmsm

cx. 07/03/01

Inscrição: Coimbra, 1813.

Org (bc e ob)

Luciano X. dos Santos P-PD /colmsm

cx. 09/13/03

Antigo Regime (armazém de

Paulo Zancla, travessa de Sta

Justa, 37, Lx)

Tabela 5.2 – Amostra do repertório com órgão dos arquivos musicais dos Açores

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163

Verifica-se, pois, a existência de uma plêiade de compositores portugueses e

estrangeiros, a maioria residentes em Portugal nos séculos XVIII e XIX, com maior ou

menor representatividade na paisagem musical sacra continental (e também operática,

visto que o limiar entre as duas funções era praticamente nulo):406 João de Sousa

Carvalho, João Cordeiro da Silva, Jerónimo Francisco de Lima, Luciano Xavier dos

Santos (organista da Capela da Bemposta e com uma acentuada presença nas igrejas

seculares e conventuais açorianas), Giovanni Giorgi, José Joaquim dos Santos, Manuel

Francisco Velozo, João Pedro da [Matta], David Perez, Giuseppe de Porcaris, António

Leal Moreira, Eusébio Tavares le Roy, José do Espírito Santo [Oliveira], Frei Manuel

Elias, Joaquim Galão Cordeiro, António da Silva Leite, João José Baldi, Marcos

Portugal, António Leal Moreira, José Marques e Silva, José Maria Beckner Franchi,

Eleutério Franco Leal, João Evangelista Pereira da Costa, Fortunatto Mazziotti, António

José Soares, Manuel Patrício Bastos, Joaquim Casimiro Júnior, Saverio Mercadante,

Francisco A. Norberto dos Santos Pinto. De entre os compositores residentes nos

Açores destacam-se Silvestre Serrão e Manuel do Couto Benevides.

A predominância de cópias de compositores associados ao Seminário da

Patriarcal significa que, paralelamente aos instrumentos de Peres Fontanes e Machado e

Cerveira, as igrejas dos Açores importaram o repertório sacro com órgão executado nas

igrejas da capital. Parte deste sistema de circulação terá sido incrementado por alguns

dos antístites que passaram pela Mitra de Angra entre a década de oitenta do século

XVIII e o final da centúria de oitocentos, nomeadamente D. Frei José da Avé-Maria

Leite da Costa e Silva (1783-1799), ao qual se devem os Estatutos da Sé de Angra e o

pedido a D. Maria I para a cedência àquela catedral do órgão atribuído a Peres Fontanes;

D. José Pegado de Azevedo (1802-1812), melómano;407 D. Frei Estevam de Jesus Maria

(1827-1870), a quem se deve a criação do Seminário de Angra, além de ter sido aluno

de José Marques e Silva, organista e compositor, de acordo com as notas de Azevedo da

Cunha;408 D. João Maria Pereira de Amaral e Pimentel (1872-1889), também

melómano.

406 Cf. Cristina Fernandes, “A Música Sacra no Período Pombalino”, p. 93. 407 Francisco Ferreira Drumond aborda a importância desse bispo na vivência musical sacra açoriana. Cf.

Annaes da Ilha Terceira, vol. III, Angra do Heroísmo, Imprensa do Governo, 1850, pp.128 a 131. 408 Cf. op.cit., p. 445.

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164

Sendo todos eles oriundos de território continental, é perfeitamente natural que

transportassem para a Sé de Angra a vivência musical dos locais por onde passaram, por

sinal relevantes no contexto musical da época, como Coimbra, Lisboa, Mafra e Leiria.

Reflexo disso é, por exemplo, a encomenda a Francisco A. Norberto dos Santos Pinto

dos Responsórios de Quinta-Feira Santa e Sexta-Feira Santa, os quais se conservam em

cópias não datadas no arquivo daquela mesma Sé (P-AHc MM342 e 343).409 Também

na segunda metade do século XIX, em 1872, o então bispo da diocese de Angra, D.

João Maria Pereira de Amaral Pimentel, propôs oferecer para execução na Sé de Angra

os Ofícios da Semana Santa de Joaquim Casimiro Júnior (1808-1862), justificando a

oferta pela reconhecida qualidade musical e proliferação da obra por todo o país. O

mestre de capela da Sé opôs-se à sugestão alegando que a música de Silvestre Serrão era

muito superior à de Casimiro Júnior.410 De facto, não há vestígios daqueles Ofícios nos

repositórios dos Açores, nem tampouco da sua execução.

Ainda no cômputo dos compositores há um grupo que se evidencia não só pela

diversidade de géneros mas também pela quantidade de cópias, elementos que traduzem

a sua proeminência no contexto sacro das igrejas dos Açores. Daquele grupo constam os

nomes de referência da música sacra portuguesa da segunda metade do século XVIII e

primeira metade do século XIX: Luciano Xavier dos Santos, José Joaquim dos Santos,

João José Baldi, António Leal Moreira, Marcos Portugal, José Marques e Silva e

António José Soares.

Os dados da Tabela 5.2 realçam a desigual quantidade de manuscritos por

géneros músico-litúrgicos, o que indica que existiam uns mais interpretados do que

outros. Estatisticamente, as Missas ou partes delas representam a maior percentagem,

seguindo-se as composições destinadas à Semana Santa (Lições, Lamentações, Salmo

Miserere e responsórios de Matinas), os Salmos do Ofício Divino e, por último, os

hinos Te Deum e Tantum ergo e o cântico Magnificat.

409 Idem. Azevedo da Cunha afirma que a encomenda foi efectuada pelo Deão José Maria Bettencourt de

Vasconcelos e resultou numa composição a três vozes (STB) e orquestra, no valor de quatrocentos réis

fortes. 410 Idem, p. 446 e 447. Por volta de 1857, Casimiro foi nomeado organista efectivo da Sé Patriarcal de

Lisboa e, em 1860, promovido a mestre de capela. Muitas das suas obras sacras passaram a fazer parte do

repertório de inúmeras igrejas em Portugal e no Brasil, e entraram no ciclo anual das festas religiosas,

perdurando além da sua morte e até aos primeiros anos do século XX. Cf. Isabel Novais Gonçalves,

“Joaquim Casimiro Júnior”, Glosas, n.º 6, 2012, p. 62.

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165

Na composição musical de partes do ordinário da Missa destaca-se o contributo

de compositores do Antigo Regime como Gio Pedro Matta, António Leal Moreira,

Marcos Portugal, José Joaquim dos Santos, Luciano Xavier dos Santos, José Maria

Beckner Franchi, José Marques e Silva e António José Soares. A proliferação de cópias

desses compositores ao longo do século XIX, em paralelo com o surgimento de cópias

de compositores posteriores, como por exemplo, Francisco A. Norberto dos Santos

Pinto, Joaquim Silvestre Serrão e Manuel Azevedo da Cunha (estes dois últimos

residentes nos Açores), denota o intenso uso daquele género ao longo do período aqui

em estudo.

A celebração da Semana Santa também se realizava com particular solenidade

nos Açores. As Lições da Semana Santa detêm o maior número de apógrafos do século

XVIII, particularmente de Luciano Xavier dos Santos (Fig. 5.1), uns com parte de órgão

obrigada e outros com baixo cifrado. Tratando-se de uma componente das Horas

canónicas, que se realizavam com especial rigor nas igrejas conventuais, perderam,

consequentemente, a sua utilidade com a extinção das ordens religiosas em 1834. Esta

será, de resto, a justificação para a ausência de cópias de Lições após 1834, e,

paralelamente, de outros géneros não exclusivos mas também integrados no ritual

musical conventual, como os Salmos.

Fig. 5.1 – Lição n.º 7 das Matinas de Sexta-Feira Santa de Luciano Xavier dos Santos

(partitura, 1794): P-PD / colmsm cx.09/12/01

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166

Por sua vez, sobrevive uma Lamentação copiada nos finais de setecentos de Frei

Manuel Elias, e várias cópias efectuadas ao longo do século XIX, nomeadamente das

composições de José Joaquim dos Santos. Os apógrafos do Salmo Miserere, apesar de

não serem quantitativamente representativos, reflectem a sua execução quer no Antigo

Regime quer na vigência da monarquia constitucional, existindo inclusivamente uma

cópia da parte de órgão do Miserere de J. J. Baldi para órgão e quatro vozes, datada de

1881.411

Os Responsórios do Tríduo Pascal surgem somente em cópias do século XIX de

compositores como João José Baldi, António José Soares, e Manuel Patrício Bastos,412

assistindo-se, no entanto, a uma forte actualização desse género a partir da segunda

metade do século XIX através das novas composições de Silvestre Serrão. A “moda”

das Matinas que se espalhou no continente nas primeiras décadas de oitocentos,413

subsistiu nos Açores ao longo de todo o século XIX, não só para a Semana Santa mas

também para outras festividades de relevo, como o Natal e Nossa Senhora da

Conceição, para as quais há cópias de David Perez, José Joaquim dos Santos, Marcos

Portugal, José Marques e Silva e Silvestre Serrão. Infere-se, portanto, que de entre o

repertório para a Semana Santa, somente as Lições da Semana Santa não foram alvo de

renovação ao longo dos anos de oitocentos.

Os Salmos do Ofício Divino (com excepção do Salmo Miserere) representam

um dos géneros músico-litúrgicos mais emblemáticos do Antigo Regime, com uma

ampla produção visível nos catálogos ou inventários de qualquer estrutura religiosa

portuguesa setecentista.414 Nos Açores sobrevivem maioritariamente Salmos copiados

no século XVIII, de compositores em actividade no Antigo Regime como António Leal

Moreira e Luciano Xavier dos Santos. As cópias do século XIX não ultrapassam o ano

411 AIMCSJ. 412 Sobre as composições de Manuel Patrício Bastos, Ernesto Vieira refere que eram de estilo italiano,

com “certa habilidade mas nenhuma intuição artística; compunha pela obrigação de fornecer musica para

as festividades que o incumbiam de dirigir, e procura satisfazer os festeiros apresentando-lhes musica

aparatosa e extensa. As suas composições era banaes e sem o menor valor.” Cf. op. cit., vol. I, Lisboa,

Lambertini, 1900, p. 99. 413 Ver Paulo Ferreira de Castro, in Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, op. cit, p. 124. 414 O “Inventário preliminar dos livros de Música do Seminário da Patriarcal”, realizado por Rui Cabral

em 1999 (Biblioteca Nacional – Centro de Estudos Musicológicos), espelha essa preponderância dos

Salmos no contexto musical sacro português do Antigo Regime.

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167

de 1848, resultado, também aqui, das repercussões políticas do regime Liberal.415 A

mesma leitura se aplica ao cântico Magnificat, executado na hora de Vésperas, e do qual

sobrevivem maioritariamente apógrafos do século XVIII, com apenas um apógrafo no

século XIX de João José Baldi (datado de 1846).

O Hino Te Deum corresponde um dos subgéneros mais interpretado nas igrejas

açorianas no período em análise, com apógrafos do século XVIII mas também do século

seguinte, incluindo novas composições de António José Soares e do açoriano Ângelo do

Rego Quintanilha, cuja biografia se desconhece. Era executado no último dia do ano,

como Acção de Graças, mas também em todas as comemorações onomásticas e ainda

em momentos de relevância histórica, social e religiosa (ver Tabela 5.3).

Contrariamente à falta de renovação dos Salmos e Magnificat, o hino Tantum

ergo, interpretado no momento da incensação do Santíssimo, surge novamente em

1896, num apógrafo de António da Silva Leite (1759-1833), músico portuense com uma

considerável produção sacra.416

Em termos gerais, verifica-se que a maioria dos Salmos, o cântico Magnificat e

as Lições da Semana Santa deixaram de ser renovados (por meio de cópia ou de novas

composições), ao invés dos hinos Te Deum e Tantum ergo, das Missas, Responsórios da

Semana Santa e de outras festividades, cuja presença perdura ao longo da centúria de

oitocentos, quer pela renovação de cópias, quer pela composição de novas peças. Este

contraste entre renovação ou ausência de fontes musicais deve ser interpretado à luz das

características dos próprios arquivos musicais, pois se a existência de novas cópias é

sintomática de uma actualização do repertório, o contrário já não é tão linear, na medida

em que a inexistência de fontes pode estar associada ao extravio das mesmas. Contudo,

é natural que os géneros mais associados à prática musical conventual não se tenham

reproduzido de forma regular após a extinçãoo dos conventos.

O segundo segmento deste subcapítulo baseia-se fundamentalmente nas

informações fornecidas pela imprensa regional a partir de 1835, com indicação de

415 Paulo Castagna aprofunda a questão da renovação de cópias no contexto da Catedral de Mariana em

Minas Gerais. Consultar “O som na Catedral de Mariana nos séculos XVIII e XIX”, in Júnia Ferreira

Furtado (org.), Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas e África.

São Paulo, Annablume, Belo Horizonte, Fapemig, PPG-UFMG, 2008, p. 105. 416 Algumas peças do seu repertório litúrgico foram gravadas em CD por Marco Brescia (órgão) e Rosana

Orsini (soprano): Angels and Mermaids, Arkhé Music /SPA 2016001, 2016.

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168

compositores e/ou géneros.417 Com base nos relatos da imprensa micaelense e

terceirense,418 aos quais se junta o importante testemunho do padre, músico e pedagogo

açoriano Manuel d’Azevedo da Cunha (1861-1937) através das suas Notas Históricas –

Calheta de S. Jorge,419 apresenta-se uma perspectiva sobre a vivência musical das

festividades religiosas mais significativas no contexto regional, nomeadamente o

repertório que nelas se interpretava (Tabela 5.3).

Ano Festividade Igreja /Ilha Repertório Compositor Fonte

1844 S. Sebastião Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão O Monitor, 24 de

Janeiro

1846 S. Sebastião Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão O Açoriano Oriental,

24 de Janeiro

Santa

Filomena

Convento Santo

André (PD-SM)

Responsórios

[das Virgens]

S. Serrão O Açoriano Oriental,

15 Agosto

1849 Semana Santa Matriz (PD-SM) Matinas de

Sexta-Feira

Santa

S. Serrão O Açoriano Oriental,

12 e 19 de Maio

1851 Natal e Fim de

Ano

S. José,

Convento da

Esperança,

S. Pedro e

Matriz (PD-SM)

Matinas de

Natal e Te

Deum de Acção

de Graças

A. José Soares

(Te Deum na

Matriz de PD)

Revista Michaelense,

n.º 1, 1 de Janeiro de

1852

1854 Natal Sé (AH-TER) Matinas - O Angrense,

28 de Dezembro

1855 Aniversário

natalício de D.

Pedro V

Matriz

(Horta-Faial)

Te Deum - O Angrense,

25 de Outubro

1856 Imaculada

Conceição

S. José

(PD-SM)

Missa A. J. Soares A Aurora dos Açores,

Janeiro

Hino S. Serrão A Aurora dos Açores,

Janeiro

Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão O Templo,

7 de Dezembro

1857 Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Matinas J. Marques e

Silva

O Templo,

21 de Julho

417 A imprensa chegou aos Açores com os exilados liberais em 1829 e cresceu a partir da década de trinta,

com especial intensidade na segunda metade do século. Segundo os dados de Maria Isabel João, entre

1830 e 1899 criaram-se 415 periódicos nos Açores, com excepção da ilha do Corvo. Tornou-se assim

num importantíssimo veículo de informação, de conhecimento, de debate, mas sobretudo de afirmação da

identidade insular. Cf. “O ensino, a cultura e as artes num processo de laicização”, in História dos Açores

– Do Descobrimento ao século XX, vol II, p. 138. Ver também José Guilherme Reis Leite “A

consciencialização de uma identidade própria”, in História dos Açores – Do Descobrimento ao século

XX, vol II, p. 153. 418 Os periódicos publicados nestas duas cidades escreviam também sobre os acontecimentos mais

importantes das restantes ilhas, nomeadamente Faial e S. Jorge. 419 Universidade dos Açores, 1981.

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169

Ano Festividade Igreja /Ilha Repertório Compositor Fonte

Invitatorio,

salmo Venite

hino

(“cantochão e

música”)

S. Serrão

Missa

(“a grande”)

A. J. Soares

1858 Visita de D.

Luiz a PD

Matriz (PD-SM) Te Deum - O Açoriano Oriental,

4 de Dezembro

Imaculada

Conceição

Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão O Açoriano Oriental,

4 de Dezembro

1859 Natal Sé e Conceição

(AH-TER)

Matinas - O Angrense,

31 de Dezembro

1860 Santíssimo

Sacramento

Conceição

(AH-TER)

Solo de tenor S. Serrão A Terceira,

23 de Junho

Imaculada

Conceição

Sé (AH-TER) Matinas S. Serrão A Terceira,

15 de Dezembro

Convento S.

Gonçalo

(AH-TER)

Te Deum - A Terceira,

22 de Dezembro Tota pulchra S. Serrão

Subtuum

Praesidium

S. Serrão

1862 Semana Santa Matriz (PD-SM) Matinas de

Quarta, Quinta e

Sexta-Feira

Santas

S. Serrão A Persuasão,

23 de Abril

Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Missa A. J. Soares e

S. Mercadanti

A Persuasão,

9 de Julho Matinas

Consórcio e

aniversário do

Rei D. Luís

Matriz (PD-SM) Te Deum - A Persuasão,

29 de Outubro

Imaculada

Conceição

Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão A Persuasão,

3 de Dezembro

1863 Imaculada

Conceição

Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão A Persuasão,

16 de Dezembro

1864 N.ª Sr.ª das

Dores

Ermida contígua

à Igreja de S.

José (PD-SM)

Stabat Mater G. Rossini A Persuasão,

23 de Março Missa -

Stabat Mater M. P. Bastos

Semana Santa Matriz (PD-SM) Matinas de

Quarta, Quinta e

Sexta-Feira

Santas

S. Serrão A Persuasão,

30 de Março

Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Matinas - A Persuasão,

15 de Junho Missa -

1865 S. Sebastião Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão A Aurora dos Açores,

21 Janeiro

N.ª Sr.ª das

Dores

Ermida contígua

à Igreja de S.

José (PD-SM)

Stabat Mater M. P. Bastos A Persuasão,

5 de Abril

Semana Santa Matriz (PD-SM) Matinas de

Quarta, Quinta e

Sexta-Feira

Santas

S. Serrão A Persuasão,

12 de Abril

Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Matinas - A Aurora dos Açores,

1 de Julho

Maia (RG-SM) Matinas e Missa - A Estrella Oriental,

5 de Setembro

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170

Ano Festividade Igreja /Ilha Repertório Compositor Fonte

Imaculada

Conceição

Matriz

(RG-SM)

Matinas S. Serrão A Persuasão,

15 de Dezembro

Acção de

Graças (Final

do Ano)

Matriz e

Convento da

Esperança

(PD-SM)

Te Deum - A Persuasão,

5 de Janeiro de 1866

1866 N.ª Sr.ª das

Dores

Igreja de S. José

(PD-SM)

Stabat Mater G. Rossini A Persuasão,

21 de Março Missa A. J. Soares

Stabat Mater M. P. Bastos

Semana Santa Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão A Persuasão,

28 de Março

1867 Semana Santa Sé (AH-TER) Matinas S. Serrão A Trombeta Açoriana,

30 de Abril A. J. Soares

Santíssimo

Sacramento

Sé (AH-TER) Matinas S. Serrão A Trombeta Açoriana,

18 de Junho

Natal Matriz, S. José e

Convento da

Esperança

(PD-SM)

Matinas

- A Voz da Verdade,

4 Janeiro de 1868

Missa -

1868 Natal S. José

(PD-SM)

Missa e Matinas - A Persuasão,

30 de Dezembro

Acção de

Graças (Final

do Ano)

Matriz (PD-SM) Te Deum Marcos

Portugal

A Persuasão,

6 de Janeiro de 1869

1869 S. Sebastião Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão A Persuasão,

27 de Janeiro

N.ª Sr.ª da

Estrela

Matriz

(RG-SM)

Matinas Carlos

Botelho

A Persuasão,

10 de Fevereiro

1870 Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas S. Serrão Diário dos Açores,

21 de Abril

1871 Coração de

Jesus

S. José

(PD-SM)

Missa A. Ferreira A Persuasão,

28 de Junho

1872

Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas S. Serrão A Persuasão,

27 de Março

Sé (AH-TER) Matinas S. Serrão Azevedo da Cunha,

op. cit., p. 447

Santa Cecília S. José

(PD-SM)

Motete S. Serrão A Persuasão,

27 de Novembro

Imaculada

Conceição

Sé (AH-TER) Matinas S. Serrão A Persuasão

Natal Matriz

(Lagoa-SM)

Matinas - A Voz da Verdade,

18 de Janeiro de 1873

1873 Imaculada

Conceição

Igreja de S.

Francisco

(S. Maria)

Matinas - A Voz da Verdade,

20 de Dezembro

1874 Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Matinas - A Persuasão,

1 de Julho Missa G. Rossini

1875 S. Sebastião Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão A Persuasão,

23 de Janeiro

Semana Santa Matriz

(Nordeste- SM)

Matinas M. P. Bastos A Persuasão,

10 de Abril

Pentecostes Convento da

Esperança

(PD-SM)

Matinas S. Serrão A Persuasão,

19 de Maio

Aniversário de

D. Luís I

Matriz

(Lagoa-SM)

Te Deum A. J. Soares A Persuasão,

3 de Novembro

Natal Misericórdia e Matinas - A Persuasão,

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171

Ano Festividade Igreja /Ilha Repertório Compositor Fonte

Acção de

Graças (Final

do Ano)

Matriz

(S. Maria)

Te Deum - 12 de Janeiro de 1876

1877 Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas S. Serrão A Persuasão,

4 de Abril

Sé (AH-TER) Matinas - O Catholico,

3 de Abril

Beato João

Baptista

Machado

Igreja Colégio

(AH-TER)

Matinas S. Serrão O Catholico,

10 de Agosto

Acção de

Graças

(Final do Ano)

Sé, Convento S.

Gonçalo e

S. Bento

(AH-TER)

Te Deum Marcos

Portugal

O Catholico,

5 de Janeiro de 1878

1878 Exéquias Conceição

(AH-TER)

- Frei Estevam

de Jesus Maria

(bispo de

Angra entre

1827 e 1870)

O Catholico,

23 de Março

1883 Semana Santa Sé (AH-TER) Matinas - O Catholico,

30 de Março

São José Igreja do

Seminário

(AH-TER)

Missa S. Serrão O Catholico,

20 de Abril

Santíssima

Trindade

(Pentecostes)

Convento S.

Gonçalo

(AH-TER)

Gloria Pedro M.

d’Alcântara

O Catholico,

30 de Maio

Imaculada

Conceição

Sé (AH-TER) Matinas Marcos

Portugal

O Catholico,

10 de Dezembro

Conceição

(AH-TER)

Missa Pedro M.

d’Alcântara

Te Deum Jácome de

Sousa

1884 Semana Santa Sé (AH-TER) Missa - O Catholico,

20 de Abril Conceição

(AH-TER)

Matinas de

Quinta-Feira

Santa

-

Matriz

(Calheta-SJ)

Matinas de

Sexta-Feira

Santa

S. Serrão Azevedo da Cunha,

op. cit., pp. 450-455

Miserere J. Evangelista

P. da Costa

Matriz

(Horta-Faial)

Matinas S. Serrão O Catholico,

28 de Abril

1885 Santíssimo

Sacramento

S. Pedro

(PD-SM)

Matinas e Te

Deum

José Marques

e Silva

O Açoriano Oriental,

20 de Junho

São Pedro S. Pedro

(PD-SM)

Missa J. J. Baldi

Aniversário de

D. Luís I

Matriz (PD-SM) Te Deum - O Açoriano Oriental,

31 de Outubro

1887 Santa Cecília - Missa A. J. Soares O Açoriano Oriental,

19 de Novembro

1890 Fieis Defuntos S. José

(PD-SM)

Benedictus M. C.

Benevides

O Açoriano Oriental,

1 de Novembro

1891 S. Sebastião Matriz (PD-SM) Matinas S. Serrão O Açoriano Oriental,

24 de Janeiro

N.ª Sr.ª das

Dores

S. José

(PD-SM)

Stabat Mater G. Rossini A Persuasão,

18 de Março Missa L. F. Rosé

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172

Ano Festividade Igreja /Ilha Repertório Compositor Fonte

Stabat Mater J. C. Júnior

Visita do

Prelado

S. José

(PD-SM)

Te Deum J. Evangelista

[P. da Costa]

A Persuasão,

13 de Maio

Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Credo S. Mercadanti Diário dos Açores,

3 de Julho

S. Luiz

Gonzaga

S. Francisco

(AH-TER)

Missa A. J. Soares O Açoriano Oriental,

4 de Julho

S. José S. José

(PD-SM)

Missa G. Rossini O Açoriano Oriental,

11 de Julho

Fiéis Defuntos S. José

(PD-SM)

Benedictus M. C.

Benevides

A Persuasão,

12 de Novembro

1892 N.ª Sr.ª das

Dores

S. José

(PD-SM)

Stabat Mater M. P. Bastos A Persuasão,

6 de Abril

Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas de

Quinta-Feira

Santa

M. P. Bastos

Matinas de

Sexta-Feira

Santa

A. J. Soares

Imaculada

Conceição

Matriz (PD-SM) Matinas Silvestre

Serrão

Diário dos Açores, 7

de Dezembro

Natal Matriz

(Nordeste-SM)

Missa (?) e

Te Deum

G. Donizetti

(partes)

Diário dos Açores, 3

de Janeiro de 1893

1893 Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Te Deum - A Persuasão,

27 de Setembro Missa -

Matriz

(RG-SM)

Missa G. Rossini Diário dos Açores,

30 de Maio

Imaculada

Conceição

Matriz (PD-SM) Missa S. Mercadanti O Açoriano Oriental,

25 de Novembro

1894 Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas - A Persuasão,

28 de Março

Santíssimo

Sacramento

S. José

(PD-SM)

Missa S. Mercadante

[3.ª Missa]

A Persuasão,

13 de Junho

O Açoriano Oriental,

2 de Junho

1895 N.ª Sr.ª das

Dores

S. José

(PD-SM)

Stabat Mater - O Açoriano Oriental,

30 de Março

Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas - O Açoriano Oriental,

8 de Abril

Natal Matriz, S. José e

Convento da

Esperança

(PD-SM)

Matinas - A Voz da Verdade,

21 de Dezembro

1897 Coração de

Jesus

S. José

(PD-SM)

Missa - O Açoriano Oriental,

28 de Agosto

Acção de

Graças

(Final do Ano)

- Te Deum João Maria

Sequeira

Diário dos Açores,

3 de Janeiro de 1898

1899 Semana Santa S. José

(PD-SM)

Matinas S. Serrão Diário dos Açores,

5 de Abril

Tabela 5.3 – Repertório das festividades religiosas dos Açores (1844-1899)

A principal festa do calendário litúrgico a partir do final da primeira metade de

oitocentos era inequivocamente a Semana Santa, na qual se executavam as Matinas de

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173

Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado Santo de Silvestre Serrão, assim como

as composições de António José Soares (no ano de 1867) e as de Manuel Patrício

Bastos (em 1875).

O teor das notícias sobre as celebrações daquela semana evidencia uma certa

atitude de concorrência entre as diferentes igrejas. Destacam-se, inclusivamente,

aspectos como o volume da assistência, a ornamentação da igreja e os coros que nelas

participavam:

“Endoenças - Celebraram-se com pompa e luzimento todas as ceremonias das

endoenças nas egrejas das freguezias Matriz, S. José e S. Pedro [PDL]. Foi

extraordinaria a concorrencia a todos estes actos, e principalmente na Matriz,

por senhoras em corpo, quinta e sexta-feira. O Throno da egreja de S. José para

a exposição do Santissimo Sacramento, sobresahia a todos pela elegancia e

esmerado gosto. (...) Os coros de musica em todas as egrejas eram os melhores

de que se podia lançar mão n’esta cidade. A Matriz leva sempre a primazia,

pelas bellas matinas de quarta, quinta e sexta-feira expressamente compostas

para estas solemnidades pelo insigne revd.º sr. Joaquim Silvestre Serrão. (...)420

Outro comentário, desta feita numa coluna não de índole noticiosa mas sim de

carácter crítico, retrata com subtil humor a mencionada concorrência, atribuindo

créditos ao desempenho musical da Igreja Matriz da Ribeira Grande (em S. Miguel)

face às igrejas da cidade de Ponta Delgada: “Fui à Estrela; a festa esteve deliciosa,

n’aquella igreja não há quinta voz do compaço como cá na cidade [Ponta Delgada], que

muitas vezes a sua bulha não deixa distinguir as vozes.(...)”.421

Manuel d’Azevedo da Cunha também transmite a vivência da Semana Santa e

do Natal na Sé de Angra, na década de setenta do século XIX, fornecendo elementos

acerca de compositores e do repertório em estilo concertado:

(...) No ano de 1874, e seguintes, pelas Endoenças, ou Natal, a que assistia na

Sé toda a corporação seminarística, apenas acabada a primeira lição, todos

dirigiam ansiosos seu olhar para o cónego Domingues, a ver se deixava sua

cadeira de Capitular, e subia ao coreto do grande Orgam. Quando tal acontecia,

e que ele ao entrar pedia licença ao mestre de capela, o inteligente Beneficiado

Padre Manuel Zeferino da Silveira (...) – e soltava as primeiras notas daqueles

420 A Persuasão, 30 de Março de 1864, ano 3, n.º 118. 421 O Açoriano Oriental, 6 de Fevereiro de 1847, nº 628.

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174

tão magníficos solos ou duetos, de Serrão, Soares, Fr. José Marques, ou João

Evangelista, toda a Sé, então apinhada de assistentes, homens e senhoras,

fixavam, enlevados, seu olhar no distintíssimo cantor, que além disso era

fisicamente um belo homem (...).422

Da celebração do Natal constavam Matinas, Missa da Meia-Noite e, na Sé de

Angra, também Laudes.423 A utilização do substantivo “costume” em alguns relatos da

imprensa, especificamente referentes à Sé de Angra,424 pressupõe a execução de umas

Matinas já conhecidas do público, hipoteticamente de David Perez (com uma cópia de

1838 em P-AHc MM 278), ou de Marcos Portugal (com um apógrafo para vozes e

orquestra no arquivo da Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge), compositores cujas peças

permaneceram nos cânones musicais sacros muito para além da sua morte.

A forma como o forasteiro John Webster descreve a celebração do Natal nos

conventos femininos micaelenses durante os anos em que viveu nos Açores, 1817 e

1818, reflecte não só o espírito de competição que as freiras alimentavam pela

celebração mais esplendorosa, mas também a proeminência daquela festa dentro da

malha conventual açoriana: “(...) The convents are the great centres of attraction at this

time [Christmas], as the nuns of each exert themselves, with a spirit of rivalry, to excel

in the splendours of their chapels, and in their musical performances. (...)”.425

Outro relato sobre a Véspera do Natal de 1838 na Igreja Matriz de Vila Franca

do Campo, na ilha de S. Miguel, é da autoria dos irmãos Bullar, ingleses que visitaram

os Açores durante oito meses naquele ano. Com um refinado humor inglês, acabam por

caracterizar a prestação das igrejas fora dos centros urbanos, cuja parte musical era

assegurada pelo órgão, vozes e alguns instrumentos, nomeadamente o violino:

(...) Às dez horas, pirâmides de longas velas iluminavam brilhantemente o

templo, de cujos altares, bem como do púlpito, pendiam tapeçarias de musselina

e de rica seda; um órgão asmático gemia e fungava e uma capela de músicos,

tocava, e cantava música religiosa, ilustrando os rostos pueris e achinezados dos

422 Op. cit., pp. 406 e 407. 423 Cf. A Terceira, 29 de Dezembro de 1860, ano II, n.º 104. 424 Cf. O Angrense, 28 de Dezembro de 1854 e 31 de Dezembro de 1859. 425 Cf. John Webster, op. cit., p. 73. Tradução da autora: “(...) Os conventos são os grandes centros de

atracção durante este período [Natal], uma vez que as freiras de cada um se esforçam com espírito de

rivalidade para se excederem no esplendor das suas capelas, e das suas interpretações musicais. (...)”.

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seus componentes, o provérbio: «a alguns homens foi dada a sabedoria e o

entendimento, e a outros a arte de tocar rabeca».426

A importância da festa do Natal é atestada pela actuação dos dois órgãos da Sé

de Angra, situação que, segundo os Estatutos, estava reservada às festas mais

relevantes: “(...) matinas do costume mas por um modo se não inteiramente novo, pelo

menos não usado há muitos anos. Foram a dous coros, tocando os dous órgãos, dos

quaes o antigo, reparado ultimamente pelo Sr. Serrão, se acha consideravelmente

melhorado. (...)”.427

Em Dezembro de 1854, época a que se reporta a notícia, a Sé de Angra já

dispunha do órgão construído por Silvestre Serrão, e que fora colocado naquele mesmo

ano numa tribuna em frente ao já existente órgão atribuído a Peres Fontanes. Com o

efectivo descrito não foram encontradas Matinas mas sim uma Missa e um Te Deum,

ambos de João José Baldi (P-AHc MM186 e MM244, respectivamente).

A festa dedicada a Nossa Senhora da Conceição é a segunda com maior atenção

por parte dos periódicos, paralelamente à do Santíssimo Sacramento. Da primeira há

notícia da execução das Matinas de António José Soares, Marcos Portugal e Silvestre

Serrão. Além das Matinas, há referência ao hino dedicado a Nossa Senhora composto

por Silvestre Serrão, assim como as antífonas Tota pulchra e Sub tuum praesidium

também da sua autoria, Missas de Pedro Machado de Alcântara (músico residente nos

Açores com actividade na segunda metade do século XIX),428 de António José Soares,

de Saverio Mercadanti, e ainda um Te Deum também de um açoriano, Jácome de Sousa

Ribeiro.429

Na festa do Santíssimo Sacramento,430 particularmente noticiada pelos

periódicos micaelenses, interpretavam-se as Matinas de Frei José Marques e Silva,

426 Joseph e Henry Bullar, Um Invernos nos Açores e um Verão no Vale das Furnas, Ponta Delgada,

Instituto Cultural de Ponta Delgada, 3.ª edição, 2001, p. 46. 427 O Angrense, 28 de Dezembro de 1854. 428 O contributo deste compositor no âmbito da música sacra autóctone será abordado na parte final deste

capítulo. 429 Segundo Alfredo Luís Campos, Jácome de Sousa Ribeiro era jornalista, músico e compositor natural

de S. Jorge (1862-?), com actividade na ilha Terceira. Cf. Memória da Visita Régia à Ilha Terceira,

Angra do Heroísmo, Imprensa Municipal, 1903. 430 Esta festa era igualmente solenizada com algum aparato: “(...) effectuaram-se com o maior explendor

as festas do Santíssimo Sacramento nas tres freguezias d’esta cidade. A da freguezia de San-José, que foi

a ultima, constou de matinas no sabbado á noite, e missa, sermão e procissão no domingo. O grande côro

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Silvestre Serrão e A. J. Soares. A Missa da Festa contava com música de S. Mercadanti

– nomeadamente a Missa intitulada “Terceira” (que se encontra no arquivo da Igreja

Matriz de Ponta Delgada) –, de A. J. Soares (designada a “grande”, conservada no

arquivo da Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge) –, e de G. Rossini,431 do qual não

restam vestígios nos arquivos. O Te Deum da festa era de José Marques e Silva.432

No último dia do ano era comum ouvir-se em Acção de Graças a “grande

composição”433 Te Deum de Marcos Portugal, uma das três obras que António José

Marques classifica como paradigmáticas do século XIX português. Atendendo ao

epíteto da imprensa, aquele Te Deum seria o emblemático Te Deum em Ré maior (para

vozes e órgão), a obra religiosa mais internacionalizada do compositor, que perdurou

nos circuitos musicais durante mais de um século e da qual se conserva uma cópia em

P-AHc (MM245).434 Também as Matinas da Conceição do mesmo compositor,435 foram

interpretadas na festa de Nossa da Conceição na Sé de Angra, em 1883,436 sobrevivendo

uma cópia truncada em P-AHc (MM 301 e 302). Além do Te Deum de Marcos Portugal,

há também notícia da execução do Te Deum de António José Soares e de José Maria

Sequeira, sobre o qual não se conhece a biografia.437

de musica, tanto nas matinas como na missa, constava dos melhores executores tanto de canto como

instrumentistas, sendo a musica escolhida dos authores como Soares, e Mercadanti. (...)”. Cf. A

Persuasão, 9 de Julho de 1862, ano 1, n.º 28 431 Sobre a festa do Santíssimo na Igreja de S. José em Ponta Delgada no ano de 1874, a imprensa faz a

seguinte observação relativamente à Missa de G. Rossini: “(...) teve matinas na véspera e música de

Rossini na missa que pela primeira vez foi cantada nesta ilha e que em tudo condiz com a grande

celebridade do maestro.” Cf. A Persuasão, 1 de Julho de 1874, ano 13, n.º 650. 432 No arquivo da Sé de Angra existem dois Te Deum de Marques e Silva (MM251 e 252), ambos para

orquestra e coro, em Dó maior, dos quais restam apenas as respectivas partes do baixo. Segundo o

catálogo das obras de José Marques e Silva elaborado por João Vaz, não foi encontrado o autógrafo da

cópia do manuscrito P-AHc MM251 (para orquestra, SATB e órgão). No entanto, o manuscrito 252 é um

apógrafo do Te Deum escrito em 1812 para três cantores, coro e dois órgãos obrigados, feito para a

Basílica de Mafra. Cf. “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva”..., vol. II, p. 257. 433 A Persuasão, 6 de Janeiro de 1869, ano 8, n.º 366. 434 António José Marques refere que foram efectuadas inúmeras versões, incluindo com formações

filarmónicas. Cf. A obra religiosa de Marcos António Portugal (1762-1830) – Catálogo temático, crítica

de fontes e de texto, proposta de cronologia, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2012, p. 619. 435 P-AHc MM 301 e 302. Segundo António José Marques, estas Matinas foram originalmente escritas

para vozes e orquestra mas surgiram várias versões. Cf. op. cit., p. 517. 436 O Catholico, 10 de Dezembro de 1883, ano V, n.º 144. 437 A única informação obtida respeita à composição de uma Serenata, Canção Açoriana, em conjunto

com João Bernardo Rodrigues e letra de Antero de Quental, em 1887, para voz e piano. Cf.

http://guitarrasdecoimbra2.blogspot.pt/2011/04/serenata-cancao-acoriana.html (última consulta em 28 de

Dezembro de 2016).

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Tal como observara o viajante John Webster,438 todos os dias do ano eram

dedicados a algum santo. Em Ponta Delgada, as festas dedicadas a S. Sebastião e a

Nossa Senhora das Dores, realizadas nas igrejas de Matriz e de S. José,

respectivamente, encerram o panorama das celebrações religiosas mais documentadas

na imprensa. A primeira era exclusivamente preenchida com as Matinas de Silvestre

Serrão compostas para o efeito, e a segunda contava com a interpretação do Stabat

Mater de G. Rossini, de Manuel Patrício Bastos ou ainda de Joaquim Casimiro

Júnior,439 e Missa de António José Soares.

A execução da componente musical das igrejas mais importantes dos Açores

ficava a cargo do organista, dos cantores e dos instrumentistas, proliferando na

imprensa da época notícias com a menção a esta formação.440 À medida que avança o

século XIX a função de organista deixa de estar confinada aos eclesiásticos, tal como

previsto nos Estatutos da Sé de Angra, e passa a ser cada vez mais assumida por leigos,

alguns deles pianistas micaelenses e alunos de Serrão.441 A Tabela 5.4 expõe os nomes

dos que assumiram esta função em diferentes igrejas a partir da década de quarenta do

século XIX, de acordo com as informações das diferentes fontes.

O efectivo vocal era, portanto, presença obrigatória em qualquer festividade e

assumia, por parte da imprensa, a designação de “Capela”, tendo inclusivamente um

carácter itinerante para assegurar a devida solenização nas diferentes igrejas.

438 John Webster, op. cit., p. 86. 439 Este Stabat Mater é mencionado por Paulo Ferreira de Castro em Sínteses da Cultura Portuguesa –

História da Música, como fazendo parte de um corpus de obras sacras de Casimiro que se interpretaram

nas igrejas portuguesa por muito tempo. Cf. op. cit., p. 145. Segundo José Pedro Bruto da Costa, trata-se

da peça que melhor representa o ecletismo de Casimiro Júnior. Cf. “Joaquim Casimiro Júnior: Música

Sacra, Coro Gulbenkian dir. Jorge Matta”, Revista Portuguesa de Musicologia, n.º 10, Lisboa, 2000, p.

283. 440 O Catholico, 30 de Março de 1883, ano V, n.º 119: “(...) [Semana Santa na Sé de Angra] matinas de

instrumental e órgão, executadas pela respectiva capela e outros amadores seculares (...)”; A Persuasão, 3

de Dezembro de 1862, ano 1, n.º 49: “Matinas da Conceição – Domingo á noite, véspera de Nossa

Senhora da Conceição, canta-se na Matriz [PD] esta mimosa composição musical do insigne author o

revd.º Serrão. Sabemos que tomam parte na execução os melhores cantores e instrumentistas da ilha, e

que os ensaios dão lisonjeira esperança de uma bella e completa execução. (...)”. 441 Em 1858 foi fundada uma escola de música vocal sob a iniciativa da Sociedade Propagadora de

Música Vocal, na qual Serrão também terá feito parte do corpo docente. Cf. Francisco Maria Supico, As

“Escavações”, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. II, 1995, p. 443.

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Nome Igreja / Ilha Fontes Espaço temporal

[?] Caldeira Matriz (PD)

A Persuasão, 7 de Março

de 1877

Ca. 1840

Joaquim Silvestre

Serrão

S. José (PD) 1841-1843

Joaquim Silvestre

Serrão

Matriz (PD) 1843

Jacinto Inácio de Sousa

(padre)

Matriz (PD) e N.ª Sr.ª

do Rosário (Lagoa)

As “Escavações”

(vol. II, p. 591)

1854

José Heliodoro de

Vargas Júnior

Matriz (RG) A Estrella Oriental, 6 de

Fevereiro de 1864

1864

João Bernardo

Rodrigues Júnior442

Matriz (PD)

S. José (PD)

A Aurora dos Açores, 24 de

Março de 1866

A partir de 1866

Jacinto da Ponte

(padre)

Matriz (PD) A Persuasão, 27 de Janeiro

de 1869

A partir de 1869

Manuel Victorino

Muniz Junior

S. José (PD) Diário dos Açores, 21 de

Abril de 1870

1870

Francisco Peixoto S. José (PD) A Persuasão, 5 de Abril de

1871

1871

Joaquim Barbosa S. José (PD) A Persuasão, 5 de Abril de

1871

1871

Manuel Azevedo

Cunha (padre)

Sé de Angra (AH) O Catholico, 30 de Março

de 1883

1883

Luís Xavier S. José (PD) A Persuasão, 27 de

Setembro de 1893

1893

Tabela 5.4 – Organistas na segunda metade do séc. XIX

A publicação na imprensa local do elenco de músicos que participaram nas

exéquias da rainha D. Maria II em 1854, na Igreja Matriz de Ponta Delgada,443 permite

ter a noção do tipo de estrutura vocal que teria uma ocasião de grande solenidade, no

caso dezoito cantores, entre eles alguns nomes de destaque no panorama musical sacro

regional, como João Bernardo Rodrigues (pianista e organista), Januário Filomeno

Veloza (padre e cantor a quem fora confiada a direcção da escola de música vocal,

iniciativa da Sociedade Propagadora de Música Vocal)444 e Jacinto Inácio Cabral

442 A Aurora dos Açores, 24 de Março de 1866, ano 11, n.º 669: “Endoenças – terão lugar na egreja

Matriz, com a pompa do costume. Os incommodos de saúde que ultimamente tem sofrido o sr. Padre

Serrão, privam-o d’abrilhantar estas solemnidades como organista; porem n’esta parte sera dignamente

substituido pelo sympathico e distincto professor de piano, o sr. João Bernardo Rodrigues Junior.” Este,

por sua vez, viria a ser organista titular da Igreja Matriz de Ponta Delgada em 1892. Cf. O Açoriano

Oriental, 6 de Fevereiro de 1892, n.º 2963, ano 57. 443 Francisco Maria Supico, “Escavações”, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, vol. II,

1995, p. 591. 444 A actividade da escola não terá ultrapassado o ano de 1860. Cf. Francisco Maria Supico, op. cit., vol.

II, p. 443.

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179

(mestre de capela da Igreja Matriz de Ponta Delgada na segunda metade do século

XIX).

Também os cantores das companhias de zarzuela contratadas pelo Teatro

Micaelense integravam o efectivo vocal das festividades religiosas, situação que

concorria, desde logo, para um maior esplendor da festa:

Sabbado cantar-se-hão na Matriz as matinas de S. Sebastião, havendo no domingo festa

solemne ao invicto martyr padroeiro d’esta cidade. Dizendo-se que tomarão parte no

desempenho de música os srs. Castillo e Ortiz, conculir-se-ha que se promove todo os

esplendor da festividade.445

Natal – O nascimento do Salvador foi festejado em todas as egrejas da cidade, cantando

nas matinas e missa em S. José, o sr. Castilho, festejado tenor da companhia de

zarzuela, e o sr. Placido, magnifico baixo, natural d’Agoa de Pau, que em Lisboa tem

feito a sua educação artística, a expensas do nobre Visconde da Praia. Por este motivo

attrahiu muita concorrência a festividade em S. José, sendo muito admirada a voz do sr.

Placido. A do sr. Castilho é sobejamente conhecida. Cabe muito louvor a quem com a

acquisição d’este e outros artistas, e reunião d’um brilhante côro de música, solemnisou

esplendidamente tão festivo natal.446

As festividades contemplavam ainda um efectivo instrumental, raramente

especificado pela imprensa, que utiliza de forma aleatória os termos “instrumental” ou

“orquestra”, dificultando assim uma análise sobre o tipo de formação associada a

determinada festividade. Sobrevivem, de facto, algumas obras escritas originalmente

para orquestra ou grupos instrumentais (que se conservam sobretudo no arquivo musical

da Sé de Angra), as quais representam, no entanto, uma minoria face ao grande volume

de obras para vozes e órgão. Assim, deduz-se que o efectivo instrumental executava

primordialmente arranjos para instrumentos, grande parte das vezes realizados pelos

próprios maestros das bandas filarmónicas,447 um organismo musical laico

preponderante no contexto regional.

445 A Persuasão, 20 de Janeiro de 1869, ano 8, n.º 366. André Ortiz foi barítono e Castillo foi tenor nas

Companhias de Zarzuela do Teatro Micaelense (temporadas 1868/1869 e 1869/70, respectivamente). Cf.

Isabel Albergaria, “O Teatro Micaelense e a sua actividade musico-teatral entre 1864 e 1898”,

Dissertação de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,

2006, anexo 5 (s/paginação). 446 A Persuasão, 30 de Dezembro de 1868, n.º 363, ano 7. 447 Festa do Santíssimo Sacramento na Igreja de S. Pedro em Ponta Delgada, em 1885: “As matinas e Te-

Deum com acompanhamento de orchestra satisfizeram plenamente, pelo que se torna digno de louvor o

sr. Joaquim de Lima, musico de caçadores 11, que accomodou com muito trabalho e gosto a brilhante

composição do maestro José Marques.” Cf. O Açoriano Oriental, 20 de Junho de 1885, ano 51, nº 2618.

Outra notícia no periódico A Persuasão de 6 de Abril de 1892, sobre a Festa de Nossa Senhora das Dores

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Interessa notar que a apresentação das filarmónicas não se restringia ao espaço

exterior à igreja, existindo dados que apontam para a sua participação na liturgia em

inúmeras circunstâncias e em várias ilhas, merecendo maior atenção o caso da Sé de

Angra, no Sábado de Aleluia, no ano de 1870:

Fizeram-se na Sé com a costumada solemnidade com que sempre alli fazem

todas as festividades; com e o órgão foi reforçado com alguns instrumentos de

corda e de vento (...). Na aparição d’Aleluia houve uma cousa completamente

nova n’esta ilha, e que bastante agradou a quem a gosou, que foi: as duas

harmonias d’uma banda militar composta d’uma novíssima harmónica que se

achava colocada n’um dos coretos. (...).448

A Tabela 5.5 reúne as notícias onde se identificam alguns dos elementos das

formações instrumentais, supondo-se que haveria uma forte colaboração entre os

músicos filarmónicos e os músicos das orquestras dos teatros Angrense e Micaelense.

De entre os vários instrumentos, sobressai a presença do “rabecão” – termo que na

época definia violoncelo ou contrabaixo,449 – do violino (também designado por

“rabeca”)450 e da flauta.

em S. José (Ponta Delgada), refere que as matinas de António José Soares contaram com um arranjo

instrumental do maestro Joaquim de Lima. Sobre este sabe-se que era maestro de bandas filarmónicas na

ilha de S. Miguel e que uma das suas peças foi adoptada como Hino da Região Autónoma dos Açores

com um arranjo de Teófilo Frazão pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 13/79/A de 18 de Maio. Seria

igualmente comum os maestros das bandas filarmónicas e autores dos arranjos para instrumentos

dirigirem em contexto litúrgico: [Semana Santa na Igreja de S. Pedro em Ponta Delgada, 1866] “(...) S.

Pedro será mais brilhante do que o costume por ter alguma musica de acompanhamento, desempenhada

por bom instrumental, escripta e dirigida pelo sr. Martinho de Campos, mestre da banda de caçadores

nº.11”. Cf. A Persuasão, 28 de Março de 1866, ano 5, nº 222; [Festa de S. Luiz Gonzaga na igreja de S.

Francisco em Angra] “(...) missa de Soares, que foi executada a grande instrumental sob a regência do

mestre da banda de infantaria 7, sr. Taborda, que aqui tem estado de visita.” Cf. O Açoriano Oriental, 4

de Julho de 1891, ano 57, n.º 2932. 448 O Angrense, 21 de Abril de 1870, n.º 1520, 34.º ano. Também no Faial há notícia da participação de

uma filarmónica no Sábado Santo nas igrejas da Matriz e da Conceição. Cf. A Persuasão, 7 de Maio de

1873, ano 12, n.º 590. Na Igreja do Colégio, em Angra do Heroísmo, a imprensa relata: “No domingo da

Ressurreição, a nossa sociedade harmónica, de que é director o sr. João Alberto Rebello, foi assistir a uma

missa que mandou celebrar na igreja do Colegio, e capela do Senhor Jesus dos Passos, (...) Durante a

missa a banda de música composta por aquella sociedade, e dirigida pelo Sr. Innocencio Chaves, tocou o

seu hymno e um bocado da opera Anna Bolena, cujo desempenho muito agradou ao grande número de

espectadores.... Depois do Evangelho o rev.º F. Rogério da Costa fez uma breve oração alusiva ao dia... e

por essa ocasião dirigio áquella sociedade as bem merecidas felicitações (...)”. Cf. O Angrense, 16 Abril

de 1857. 449 CF. Tomás de Borba e Fernando Lopes Graça, Dicionário de Música, vol. II, Mário Figueirinhas

Editor, 1996, p. 428. 450 Idem, p. 427.

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Tabela 5.5 – Notícias que especificam o efectivo instrumental das festividades

religiosas na ilha de S. Miguel

Verifica-se assim o uso dos instrumentos de cordas de tessitura grave e aguda,

sem recurso à viola, aos quais se podia juntar uma flauta (situação mais comum), um

clarinete ou uma trompa. Nas já referidas exéquias da rainha D. Maria II, o conjunto

instrumental era composto por órgão, fagote e rabecão, justamente a formação que

451 Todas as indicações de instrumentos entre parêntesis rectos foram extraídas da estrutura de orquestra

que se apresentou no Teatro Micaelense na temporada de ópera italiana de 1878/79. Cf. Isabel Albergaria,

op. cit., p. 104. 452 João José Tavares refere: “Quando se celebraram, na matriz de Ponta Delgada, as exéquias por alma

de D. Maria II, organizaram-se dois coros de músicos, tocando no órgão da mesma igreja o Padre Serrão e

num outro corêto, tocou o padre Jacinto Inácio de Sousa que, nesse tempo ainda não era sacerdote. Não

foi apenas um bom organista e um digno discípulo do Padre Serrão, mas também um apreciável

compositor.” Cf. A vila da Lagoa e o seu concelho, S. Miguel – Açores, Câmara Municipal de Lagoa,

1985, p. 268.

Fonte Referência451 Festa /Igreja /ilha

As “Escavações”

(vol. II, p. 591),

1854

Padre Joaquim Silvestre Serrão, órgão;

Padre Jacinto Inácio de Sousa, piano;452

João Baptista Pereira, fagote;

Padre António Egídio de Sousa, rabecão;

Exéquias da Rainha

D. Maria II

Matriz (PD)

A Persuasão, 23

de Abril de 1862

“A musica de canto foi desempenhada por excellentes

vozes, e o instrumental, além do orgão, compunha-se

de seis rabecas, dous rabecões, uma flauta e um

fagote.”

Páscoa

S. Pedro (PD)

A Estrella

Oriental, 5 de

Setembro de

1865

“Houveram tres coros , um de catorze músicos dos

melhores, outro de duas rabecas, violoncelo, rabecão e

orgão; outro com a filarmónica do Nordeste, composto

de vinte e tantas pessoas”

Santíssimo

Sacramento

Maia (RG)

A Persuasão, 9 de

Abril de 1873

“(...) e da parte instrumental, farão parte os srs. João

Bernardo Rodrigues [órgão], [Alexandre] Madureira

[flauta], [Francisco, Joaquim e Aníbal] Barbozas

[violino, violoncelo e contrabaixo] e José Miranda

[contrabaixo]

Semana Santa

S. José (PD)

A Persuasão, 10

de Abril de 1875

“(...) as matinas de Bastos, sob a regência do revd. J.M.

de Medeiros, com acompanhamento d’orgão, violino e

rabecão, que produziu brilhante efeito.”

Semana Santa

Matriz de Nordeste

A Persuasão, 13

de Maio de 1891

“(...) O instrumental terá por executantes J. R.

Rodrigues [órgão], Alexandre Madureira [flauta],

Aníbal [contrabaixo] e Joaquim Barbosa [violoncelo],

Pereira Baptista [violino] e Guilherme Matos [trompa]

Visita do prelado

S. José (PD)

A Persuasão, 27

de Setembro de

1893

“(...) Te Deum e uma belíssima missa pelas melhores

vozes sob a regência do hábil Joaquim Inácio Cabral. O

órgão foi tocado pelo Sr. Luís Xavier e acompanhado à

flauta pelo Sr. Quintiliano e pelo rabecão do Sr. Matos.

(...)”

Santíssimo

Sacramento

S. José (PD)

O Açoriano

Oriental, 8 de

Abril de 1895

“(...) além do órgão, tocará uma orquestra composta

pelos srs. Diogo Chaves [clarinete], Pereira Baptista

[violino], Quintiliano Furtado [(?)], Guilherme Matos

[trompa], José Duarte [(?)] e Correia Machado

[violino].

Semana Santa

S. José (PD)

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182

Cristina Fernandes aponta como efectivo de um repertório específico da Capela Real e

Patriarcal na segunda metade dos século XVIII, interpretado no Ofício dos Defuntos,

em algumas cerimónias da Semana Santa, Vésperas, Matinas e Missas de festividades

de 2.ª e 3.ª ordem da Patriarcal.453

Ainda contexto instrumental, a situação mais peculiar foi a participação do

inovador saxofone na Semana Santa da Sé de Angra em 1859:

A música foi muito bem executada, notando-se já mui sensíveis progressos no

desempenho da cantoria, devidos sem duvida à reconhecida habilidade do rd.º

beneficiado Diogo Machado, mestre de capela. Foram acompanhadas pelo

exímio mestre de música d’Infantaria n.º 18, o sr. Castilho, no novo instrumento

saxofonium, cujas deliciosas harmonias também se casao com os sons do

órgão.454

Em linhas gerais, o efectivo instrumental que acompanhava o órgão nas festas

religiosas açorianas na segunda metade do século XIX variava entre:

grupo de três elementos órgão, flauta e rabecão

órgão, violino e rabecão

órgão, fagote e rabecão

grupo de quatro elementos órgão, violino, violoncelo e contrabaixo [rabecão]

grupo de seis elementos órgão, flauta, violino, violoncelo, contrabaixo (2)

órgão, flauta, trompa, violino, violoncelo, contrabaixo

grupo de onze elementos órgão, flauta, fagote, violinos (6), rabecões (2)

Na missa em honra de Santa Cecília, realizada na Igreja Matriz de Ponta

Delgada em 1887, a imprensa refere a participação de uma orquestra de vinte e dois

elementos para a execução da Missa de António José Soares,455 transmitindo assim o

aparato desta festividade no contexto micaelense.

453 Cf. op. cit., pp. 453-462. 454 A Terceira, 23 de Abril de 1859, n.º16 455 Cf. Açoriano Oriental, 19 de Novembro de 1887, n.º 2744, ano 53.

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A existência de um efectivo instrumental pressupõe a execução por partes cavas,

as quais, na maioria dos casos, ficavam em posse dos instrumentistas, justificando-se,

deste modo, o défice de partes instrumentais nos arquivos.

Verifica-se, portanto, que a componente musical das grandes festividades nos

Açores entre o final do século XVIII e as derradeiras décadas de oitocentos contava

amiúde com uma formação instrumental que se juntava ao órgão, composta por

instrumentos de sopro e de corda, cuja quantidade variava consoante a relevância da

festa e da igreja onde se realizava.

V. 3 A composição autóctone após o final do Antigo Regime: Joaquim

Silvestre Serrão (1801-1877)

Ao contrário do que aconteceu até 1834, em que o Seminário da Patriarcal

funcionou como modelo central da produção musical sacra com órgão, após o final do

do Antigo Regime e consequente encerramento daquela instituição, o cenário alterou-se

e a composição sacra ressentiu-se fortemente.

Nos Açores, a partir do final da primeira metade do século XIX, emergiram, de

forma sistemática, composições autóctones estilisticamente influenciadas pelo

repertório outrora importado e que ainda continuava a ser interpretado. A razão

primordial para a permanência de um contexto musical sacro assaz activo nos Açores, a

partir de 1841, deve-se à acção do padre setubalense Joaquim Silvestre Serrão. Nos

trinta e seis anos que viveu em S. Miguel, Silvestre Serrão prestou um importantíssimo

contributo como organista e compositor, mas também no campo da organaria e do

ensino. O contacto de Silvestre Serrão com o prior da Igreja Matriz de Ponta Delgada,

Bernardo Machado de Faria e Maia, e ainda a proximidade com o bispo de Angra, D.

Frei Estevão de Jesus Maria, iniciada em Lisboa e consolidada durante o período em

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que o bispo residiu em Ponta Delgada (1840 a 1859),456 terão sido os motivos pelos

quais Serrão escolheu a ilha S. Miguel para fixar residência. Além disso, foram factores

que facultaram a integração de Serrão na esfera eclesiástica açoriana e nos circuitos

sociais e musicais micaelenses, potenciando, simultaneamente, o fausto das festas

religiosas nas principais igrejas de Ponta Delgada, nomeadamente Matriz, S. José e S.

Pedro.

V. 3. 1 Síntese biográfica de Silvestre Serrão

As informações biográficas de Silvestre Serrão são exclusivamente extraídas de

fontes secundárias, porquanto não foram encontrados quaisquer registos pessoais ou

contratuais originais, nem tão-pouco as notas autobiográficas457 e o catálogo de obras

que, segundo alguns autores, terão sido deixados pelo compositor. Estas fontes

consistem em artigos de imprensa e de revista e opúsculos, cada qual com as suas

incongruências, mas todos construídos com um discurso de júbilo e de reconhecimento

e com um forte acento patriótico, o que de resto é uma idiossincrasia da historiografia

oitocentista e novecentista. Atendendo à diversidade das fontes e, concomitantemente, à

divergência de alguns dados, considera-se pertinente confrontar os seus conteúdos e,

com base nos pontos em comum, apresentar uma biografia (isenta de hiperbolismos) da

figura cimeira da música sacra nos Açores de oitocentos.

Todas as fontes produzidas após a morte de Silvestre Serrão, em 20 de Fevereiro

de 1877, são baseadas na notícia que ocupou três edições do periódico A Persuasão,

logo após a sua morte, 28 de Fevereiro, 7 de Março e 21 de Março de 1877.458 Aquela

notícia inclui uma extensa biografia e uma listagem de todas as composições sacras e

456 Ver Valdemar Mota, Santa Sé do Salvador – Igreja Catedral dos Açores, Angra do Heroísmo, 2007, p.

156. 457 Teófilo de Braga é bem claro quanto à existência de uma autobiografia que Serrão entregou a uma

amigo antes de morrer. Cf. “Joaquim Silvestre Serrão e a Música Religiosa em Portugal”, Arte Musical

(separata), Lisboa, Typographia do Annuario Commercial, 1906, p. 16. 458 Ano 16, n.os 789, 790 e 792, respectivamente.

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profanas de Silvestre Serrão, feitas no continente e nos Açores, reconhecendo-se-lhe

ainda o talento musical, o contributo na área da organaria, e também no progresso da

música sacra nos Açores, cuja comparação com G. Rossini relativamente ao género

dramático em Itália e na Europa, expressa a alta admiração que os açorianos tinham por

Silvestre Serrão:

O reverendo Serrão, profundo sabedor da arte que mais falla ao coração, foi um

poeta musical, e ao seu talento privilegiado deve a ilha de S. Miguel o notável

adiantamento, em que se acha, na cultura da arte que tem conferido corôas de

imortalidade a grande numero de génios.

(A Persuasão, 28 de Fevereiro de 1877)

Todavia, pode dizer-se, sem hyperbole, que representara em S. Miguel e nos

Açores, na música sacra, o mesmo papel, que Rossini desempenhou na Italia e

em toda a Europa, no género dramático.

(A Persuasão, 7 de Março de 1877)

Em Maio de 1877 foi publicada no periódico mensal angrense Gabinete de

Estudos a tradução de um artigo escrito por Martin Roeder,459 primeiro concertino da

orquestra da companhia de ópera italiana que se apresentou no Teatro Micaelense na

temporada de 1875/76.460 Na sequência do contacto com Silvestre Serrão aquando da

sua passagem por S. Miguel, Roeder fez uso do facto de ser correspondente do

periódico milanês Gazzetta musicale di Milano e aí publicou um artigo exclusivamente

sobre Silvestre Serrão no início do ano de 1877,461 onde enfatiza a questão dos “talentos

de mérito não vulgar” esquecidos, regozijando-se, em certa medida, pela própria

descoberta.462

Além de uma sintética biografia, onde Roeder apresenta Serrão como organista

da catedral, referindo-se certamente à Igreja Matriz de Ponta Delgada e não à Sé de

459 A referida tradução foi feita por Francisco Maria Supico, editor do periódico A Persuasão, e enviada

pelo próprio para publicação no Gabinete de Estudos em 25 de Abril de 1877, pois segundo as palavras

de Supico que acompanham a tradução, era o jornal mais adequado por se dedicar à arte. 460 Cf. Isabel Albergaria Sousa, op.cit., p. 102. A função de colaborador do periódico em causa é

confirmada através da sua referência no trabalho de Marcello Conati, Gazzetta musicale di Milano,

Copyright, The RIPM Consortium, Ltd, 2008, p. xxiii. Ver:

http://www.ripm.org/pdf/Introductions/GMM1866-1902introor.pdf (última consulta em 7 de Janeiro de

2017). As fontes portuguesas indicam que o artigo foi publicado nos números 4 e 8, mas não foi possível

consultar as respectivas edições. 461 Cf. Gabinete de Estudos, 25 de Abril de 1877, 1.º ano, Angra do Heroísmo, pp. 19-21. 462 Idem, p. 19.

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Angra, o texto tende a colocar Serrão nos modelos canónicos de Palestrina e de Bach:

“Serrão, por exemplo, não tem o talento extraordinario de Palestrina, ou de Back [sic], e

mesmo d’alguns outros entre os mais distinctos das escholas recentes, mas a sua

maneira de sentir e de exprimir aproxima-se muito d’aquelles modelos.”463

Foi justamente contra essa analogia que se manifestou Ernesto Vieira na sua

entrada do Diccionario sobre Silvestre Serrão:

Pela analyse d’essas partituras reconheci que Serrão tinha merecimento real,

mas que os elogios hyperbolicos feitos por Martin Roeder eram uma verdadeira

mystificação. Nenhuma, absolutamente nenhuma analogia existe entre o estylo

seguido por Serrão e as obras de Bach, Pergolese, Astorga, Jomelli e Durante,

nomes que o musico allemão enfeixou com disparatada promiscuidade e grave

prejuizo para a seriedade que geralmente se attribue ao caracter dos alemães.464

Relativamente às Matinas da Semana Santa, Roeder considera que Serrão foi dos

poucos da sua época que conseguiu traduzir o “estylo sacro como elle deve ser”:

Se um compositor moderno nos quisesse narrar e descrever a historia da paixão

de Jesus com a mais bella musica, julgal-o-hieis talves cheio da fé ingenua que

desejasse inspirar com a sua peça. Não penseis nisto. Poucos hoje em dia,

pouquissimos mesmo, são os que sabem seguir o estylo sacro como ele deve

ser: - pureza de conducta musical, pureza da fé religiosa, e pureza de coração!

Rara Avis!465

A crítica de Roeder inclui ainda uma análise resumida de alguns trechos das

Matinas de Sábado Santo, cujos responsórios considerava sublimes e “uma das mais

bellas coisas artísticas da arte moderna”,466 e também das Matinas de Quinta-Feira

Santa, terminando com uma lista das principais obras do género sacro: Ofícios

completos da Semana Santa, Moteto a Santa Cecília (para dois coros e orquestra),

Responsórios de São Sebastião, de Nossa Senhora da Conceição e do Espírito Santo.

463 Idem. 464 Cf. Diccionario Biographico dos Musicos Portuguezes,vol. II, p. 294. 465 Cf. Gabinete de Estudos, 25 de Abril de 1877, p. 20. 466 Idem.

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Em 1900, Ernesto Vieira considerou Serrão um “Homem serio e honesto se bem

que ríspido, hábil organista, compositor bastante inspirado e possuindo a sciencia

musical suficiente para o meio em que se achava (...)”.467 Defendia, portanto, que o

talento de Serrão era sobrestimado pelas circunstâncias do próprio meio: “Era-o, com

efeito, mas no pequeno circuito da ilha de S. Miguel, onde a música é cultivada com

muito amor e singular exito, mas onde os profissionais de superior mérito rareiam

extremamente”.468 A fim de apurar as informações de Martino Roeder relativamente à

música de Serrão, Ernesto Vieira procurou ter em mãos as partituras de Serrão e acabou

por obter os autógrafos das Matinas da Semana Santa, constatando os créditos de Serrão

mas refutando taxativamente os hiperbolismos de Roeder. No entender de Vieira, a

forma empolada com que Roeder retratara a música de Serrão advinha do facto de

querer agradar ao Visconde da Praia, grande protector de Serrão e figura influente no

meio cultural micaelense. Em termos estilísticos, Vieira refere que “O Padre portuguez

não fez mais, nas suas producções musicais, do que seguir o gosto italiano da sua época

– ou antes, da época em que recebeu a primeira educação artística (...)”.469

Quanto à análise das Matinas apresentada por Roeder, Vieira acusa-o de não ter

visto as partituras, desde logo pela referência a orquestra quando todas foram escritas

para vozes e órgão, e aponta ainda outras incongruências como secções a duas vozes

quando na prática se destinavam a quatro vozes. Com efeito, Roeder menciona a

presença de “trompas” na presa Ponentes milites do 9.º Responsório, referindo-se

certamente a um tipo de registação que é comum em Silvestre Serrão (ver cap. VI) e não

ao instrumento de sopro propriamente dito. Ao contrário de Roeder, Ernesto Vieira só

menciona a composição das Matinas da Semana Santa, omitindo todas as restantes

obras sacras de Serrão. Por seu turno, alude ao contributo de Serrão na área da organaria

insular e acresce um pormenor interessante, igualmente partilhado por outro fonte, a

Revista Michaelense, em 1921, e que se prende com o facto de ter ingressado no

Convento de Palmela para o cargo de organista.470

Visão similar à de Roeder e oposta a Vieira transmite Teófilo de Braga (político,

escritor e ensaísta natural de S. Miguel) no artigo intitulado “Joaquim Silvestre Serrão e

467 Cf. op. cit., vol. II, pp. 292-295. 468 Idem, p. 292. 469 Idem, p. 294. 470 Cf. op. cit., p. 292.

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a música religiosa em Portugal” publicado na separata da revista Arte Musical em 1906,

onde eleva Silvestre Serrão a uma referência incontornável na música sacra portuguesa

da sua época:

(...) mas é condição suprema do género a sinceridade, Isto falta em geral aos

compositores que fazem música religiosa imitativa, por processos de habil technica;

assim este imperio da mediocridade desacredita bastante a Musica religiosa, pelo

exagero e exclusivo artificio ou pela confusão dos recursos da música dramatica. Raro é

o compositor que desde o fim do seculo XVIII foi sincero, n’essa crise de negativismo

que ainda domina em muitos espiritos.

Um compositor portuguez se destacou n’esta geração de impotentes; ele possuiu a

crença, confinado no seu mundo subjectivo, e exprimiu-a com sinceridade: é o padre

Joaquim Silvestre Serrão (...).471

No seu entender, a música religiosa ao tempo de Serrão estava “em geral em

uma calamitosa decadência”, pelo que o compositor se lhe afigura como o restaurador

de uma tradição: “(...) sabendo-se que entre os artistas portugueses, um tentou restaurar

uma tradição que se perdia. É este o lugar que compete a Joaquim Silvestre Serrão na

história da Musica em Portugal.”472

O texto de Teófilo de Braga é constituído por uma série de citações da crítica de

Roeder, incluindo a transcrição da análise das Matinas de Sábado Santo e de Quinta-

Feira Santa e revela um novo dado: o facto de Silvestre Serrão ter oferecido ao Padre

Jacinto da Ponte, cantor e organista que o substitui como organista na Igreja Matriz

quando adoecera no final da década de sessenta, uma autobiografia e uma catálogo das

suas obras. Atendendo a que a lista de obras apresentada por Teófilo de Braga é idêntica

à publicada pelo periódico A Persuasão aquando da morte de Serrão e praticamente

replicada pela Revista Michaelense em 1921,473 supõe-se que o Padre Jacinto da Ponte

terá fornecido a Francisco Maria Supico, figura conceituada no meio micaelense e

editor daquele periódico, os materiais originais de Serrão, que foram sendo

sucessivamente copiados pelos diferentes interessados. Teófilo de Braga apresenta ainda

uma análise realizada pelo Padre Jacinto da Ponte às Matinas de Quinta-Feira Santa e

Sexta-Feira Santa, cujos títulos ora não correspondem às partes constituintes dos

471 Cf. “Joaquim Silvestre Serrão e a Música Religiosa em Portugal”, p. 10. 472 Idem, p. 13. 473 Ver Ayres Jácome Corrêa (dir.), “O Padre Joaquim Silvestre Serrão e a Semana Santa”, Revista

Michaelense, ano IV, n.º 2, Ponta Delgada, Junho de 1921, pp. 1135-1152.

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responsórios daqueles dias, ora se misturam aleatoriamente com os responsórios de

Sábado Santo.474 Relativamente à inconsistência dessa análise, ponderam-se duas

justificações: ou Teófilo de Braga não foi cuidadoso na transcrição, ou o autor da

análise não foi rigoroso, o que à partida não parece viável por se tratar de um padre que

contactou directamente com Serrão.

A referida autobiografia indica as personalidades açorianas com as quais Serrão

já tinha contactado no continente e que de alguma forma pesaram na sua escolha pelos

Açores:

Por vários náuticos de Setubal e pessoas do Exercito liberal tinha noticias dos Açôres

muito mais vantajosas, claras e circumstanciadas, que geralmente se têm em Portugal;

sabendo que o exm.º Bispo tinha vindo para San Miguel, e conhecendo já d’antes varios

cavalheiros d’essa terra, como eram os srs. Antonio Borges da Camara Dias de

Medeiros475, o muito insigne flautista e diletante de música Alexandre Madureira Cyrne,

official maior do governo civil (hoje reformado), o Prior da Matriz e comendador

Bernardo Machado de Faria e Maia, e outros muitos, determinou visitar os Açôres, esta

grande porção da monarchia portuguesa, e vir até San Miguel.476

O contributo de Teófilo Braga torna-se interessante na medida em que introduz

no seu texto testemunhos pessoais da vivência musical sacra micaelense: “Eu tinha

ouvido cantar todas as Matinas de Serrão, desde 1854 a 1860, dos meus onze aos

dezassete annos. Estava em um estado de espirito, sob a pressão de uma madrasta que

me brutalizava, e a forçada concentração subjectiva fazia-me sentir o encanto

consolador d’aquella musica.”.477 Aborda igualmente a prestação de Serrão no campo

da organaria insular e assinala a presença de João Nicolau Ferreira como seu discípulo.

474 Tenha-se como exemplos: o solo de tenor Tamquam agnus, indicado como pertencendo às Matinas de

Sexta-Feira Santa, corresponde ao verso do 6.º responsório de Sábado Santo. O mesmo sucede com a

indicação de “Surge, Jerusalem; exue vestibus jocunditatis” (leia-se Jerusalem, surge, et exue te vestibus

jucunditatis), que também corresponde ao 2.º responsório de Sábado Santo. Cf. Teófilo de Braga, op. cit.,

p. 49. 475 Não deixa de ser estranha a incorrecta menção a António Borges da Câmara Dias de Medeiros, 2.º

Visconde da Praia, que nascera em 1829 e que, na época em que Serrão ainda estava no continente não

teria atingido sequer os dez anos de idade. A referência reporta-se naturalmente ao 1.º Visconde da Praia,

seu pai, Duarte Borges da Câmara e Medeiros (1799-1872) e a confusão terá origem na forma como eram

indistintamente conhecidos: por Visconde sem indicação numérica. O próprio Teófilo de Braga refere

mais adiante que Serrão foi professor das filhas do Visconde da Praia – Duarte Borges de Medeiros Dias

da Câmara. Cf. op. cit., p. 31 e 32. 476 Cf. Teófilo de Braga, op. cit., p. 25. 477 Idem, p. 40.

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O seu artigo termina com a listagem da obra completa de Serrão, tal como já tinha

surgido no artigo de A Persuasão.

Na década de vinte do século XX a Revista Michaelense dedica um longo texto

ao padre Silvestre Serrão, o qual, a par de muitas alusões históricas e empolamentos,

apresenta alguns aspectos nunca antes abordados. Desde logo a caracterização do estilo

de composição de Serrão, que Vieira já resumira, mas que agora surge numa visão mais

enquadrada:

A cadencia d’essa música [de Serrão] é tão desprendida do canto-chão e das normas dos

velhos ritos da egreja que já a tenho ouvido comparar á musica de Verdi e de Rossini.

Ha um pouco de verdade n’esta apreciação e aquelle que se não compenetrar bem da

musica de Serrão e não lhe procurar as intenções musicaes deixar-se-ha envolver por

essa generalização. Não admira que haja muito profano na eschola de Serrão como

adeante se verá: a música sacra decahiu com a extincção do Seminario Patriarchal e a

passagem da Côrte para o Brazil, com a abertura da eschola de canto e conservatorio de

música, com os sucessos na opera de Miró e Marcos Portugal, e com os ultimos 50

annos de via lyrica nas operas de Lisboa, que D. José e o povo da Capital apreciavam de

preferencia á música da egreja. Se os grandes talentos assumem a missão de levantar a

arte, dar-lhe uma feição, leval-a ao gosto da sociedade e formar uma eschola; não é

menos uma verdade dificilmente alterada, que as massas influem no estro e no

temperamento geral do individuo. Por isso não é d’extranhar a influencia de rythmos e

de harmonias profanas na música sacra de Serrão. D’ahi também o seu valor particular,

a sua originalidade, a sua belleza própria.478

Outro pormenor interessante consiste no enquadramento das influências

musicais de Serrão, cujo ascendente remonta a João José Baldi, professor de Frei José

Marques e Silva, por sua vez mestre de Silvestre Serrão:

Temos pois Leal Moreira com quem António José Soares apprendeu e a eschola de

Baldi na qual se filiou o mesmo Antonio José Soares, Francisco Migone, Miró, Joaquim

Casimiro, João Fradesso Bello e Ricardo Porphirio da Fonseca.

Foi n’essa eschola de Baldi que Serrão se aperfeiçoou recebendo grande influencia dos

seus processos e da inspiração dos mestres, não só dando lições com eles como

frequentando-os na intimidade e formando o seu caracter musical na sua convivência.479

Outros aspectos originais dizem respeito à transcrição de um texto sobre as

características do órgão construído por Serrão para a Sé de Angra na década de

478 Cf. Ayres Jácome Corrêa (dir.), op. cit., p. 1136. 479 Cf. Idem, p. 1138.

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cinquenta do século XIX (ver cap. III.2), e ainda de uma carta que Serrão escreveu ao

reitor do Liceu de Ponta Delgada, André António Avelino, por ocasião do início do ano

lectivo de 1859, no qual transmite a importância da música na sociedade, provavelmente

com o intuito de justificar uma aula de música naquele estabelecimento de ensino, que

não existia e parece ter continuado a não existir.480

As fontes secundárias do século XX sobre Silvestre Serrão esgotam-se em 1963

com um artigo escrito por Óscar Paxeco, seu conterrâneo, na revista micaelense

Insulana.481 Na verdade, este artigo resulta do ensejo do autor em reunir a obra de

Silvestre Serrão, tendo-se deslocado à ilha de S. Miguel para o efeito. Todavia,

apresenta um conteúdo bastante abstracto em termos de dados, denotando uma maior

preocupação em descrever a sua visita a Ponta Delgada e exaltar o mérito do seu

conterrâneo do que propriamente fornecer os resultados da sua pesquisa. Além da

informação errónea sobre o facto de ter sido Serrão o construtor do órgão da Igreja

Matriz de Ponta Delgada, a única observação de Oscar Paxeco digna de menção

prende-se com a indicação de que as obras de Silvestre Serrão continuaram a ser

executadas mesmo depois do Motu Proprio de Pio X “Tra le sollecitudine”, em

1903.482

Enquanto figura incontornável da organaria nos Açores, Silvestre Serrão é

também contemplado no Inventário dos órgãos dos Açores, publicado em 2012.483 Os

autores dedicam-lhe uma curta biografia onde afirmam que Serrão chegou

primeiramente à ilha Terceira e só depois se instalou em S. Miguel, dado não

mencionado em nenhuma das restantes fontes. No campo da organaria, acrescentam que

Serrão contactou com Machado e Cerveira através do órgão do mosteiro dos

Jerónimos.484

Com base nas informações comuns às várias fontes é possível traçar uma síntese

do percurso de Silvestre Serrão até chegar aos Açores. Nasceu em Setúbal, em 1801, no

seio de uma família burguesa, onde recebeu as suas primeiras lições de música com

480 Cf. op. cit., p. 1146. 481 “O Padre Joaquim Silvestre Serrão e Ponta Delgada”, Insulana, vol. XIX, Instituto Cultural de Ponta

Delgada, 1963, pp. 166-176. 482 Op. cit., p. 169. 483 Dinarte Machado e Gerhard Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores, pp. 17 e 18. 484 Cf. idem, p. 17.

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músicos particulares, cujas biografias são totalmente desconhecidas da musicologia

portuguesa hodierna: José Lino de Almeida (mestre de capela) e Athanazio José da

Fonseca (contrapontista e harmonista). Terá estudado também piano com algum mestre

que não consta em nenhuma das fontes. As suas aptidões musicais desenvolveram-se

precocemente e, graças a elas e a alguns contactos privilegiados, conseguiu integrar-se

nos circuitos da alta burguesia setubalense e lisboeta. Silvestre Serrão ingressou na

Ordem militar de São Tiago da Espada, no Convento de Palmela, concorrendo à vaga de

organista. Realizou as provas de acesso à ordem e, enquanto aguardava a autorização do

rei D. João VI, vinda do Rio de Janeiro e que só chegou em 1819 (quando ainda nem

completara os dezoito anos de idade), ter-se-á deslocado várias vezes a Lisboa, onde

terá contactado com o organeiro António Xavier Machado e Cerveira e onde trabalhou

com José Marques e Silva.

Já no Convento de Palmela, professou no ano de 1820, ordenou-se presbítero em

1824 e, dois anos depois, ascendeu ao cargo de capitular. Com a ocupação do convento

pelas tropas constitucionais, os freires foram obrigados a mudar-se para o mosteiro dos

Jerónimos em Lisboa. A partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, os freires

foram transferidos para o antigo convento de Rilhafoles, onde Serrão terá conhecido o

então bispo de Angra, D. Frei Estevam de Jesus Maria, contacto que certamente

influenciou a sua mudança para os Açores. A partir de 1835, com o encerramento de

todas as casas conventuais masculinas, Silvestre Serrão permaneceu em Lisboa,

sobrevivendo de aulas particulares, até decidir viajar para os Açores, em 1841. A

origem dessa decisão é normalmente associada a motivos de saúde,485 mas duas das

fontes acima descritas indicam dissidências políticas.486 Em Teófilo de Braga constam

as duas hipóteses:

Resolveu retirar-se para os Açores, escolhendo, precisando a ilha maior, a de S:

Miguel. Disseram-me alguns que esta viagem foi determinada por sofrer do

estômago, e por isso aconselhado pelos medicos para mais brando clima do que

o de Lisboa. Outros afirmam que o P.e Serrão tomara parte (publica ou

secretamente, não o sei bem) n’uma conspiração contra o rei, por ser miguelista,

485 Cf. idem. 486 Na Revista Michaelense, por exemplo, é assumida a questão política: “Todos os seus professores

affeiçoados a D. João VI e que tinham ainda vivido na intimidade de D. Miguel afastavam-se da côrte de

D. Pedro e o P.e Serrão com quasi todos os musicos de valor, evitava o contacto com os elementos

officiaes que constitui o Governo e a admistração de D. Pedro.” Cf., op. cit., p. 1141.

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e que foi mandado exilado para os Açôres, cujas ilhas já tinham servido para

logar de deportação aos criminosos politicos.487

V. 3. 2 Produção musical sacra

A reconstrução do percurso de Silvestre Serrão nos Açores na área da

composição sacra com órgão resulta do cruzamento de três elementos: indicações nas

fontes documentais atrás analisadas, referências na imprensa periódica da época e

materiais musicais. A Tabela 5.6 apresenta a listagem da produção sacra de Serrão de

acordo com as fontes existentes. Sublinhe-se que há algumas indicações de peças nas

fontes documentais cujos materiais musicais não foram encontrados nos arquivos

consultados.

Fontes

Género

Obra A Persuasão, 21 de Março de 1877,

e Teófilo de Braga

Gabinete de Estudos,

Maio de 1877

Revista Michaelense,

1921

Manuscritos musicais (arquivos/materiais)

Ofí

cio

s d

a S

eman

a S

anta

Responsórios de Quinta-Feira

Santa

AIMCSJ – partes apógrafas: órgão e vozes (SATB). Parte de órgão

oferecida à Matriz da Calheta de S.

Jorge em 1917;

Responsórios de Sexta-Feira

Santa

Esta fonte anuncia em três partes

diferentes os

Responsórios de Quinta-Feira

Santa, o que se

entende ser uma gralha. Considera-

se os responsórios

de Sexta-feira Santa.

P-PD 37 e 38 RES – partitura apógrafa de 1917: órgão e vozes

(SATB);

AIMPD – partitura alógrafa de 1849: órgão e vozes (SATB);

partitura apógrafa: órgão e vozes

(SATB); MCM (Reg. n.º 4624) – partitura

apógrafa: órgão e vozes (SATB);

AIPSJ – partes apógrafas: órgão, vozes (SATB) e instrumentos (vl 1

e 2, vlc, cornetim, cl 2.º, fl, sax sop);

P-AHc (MM 284) – partes

apógrafas de algumas vozes (sem órgão);

AIMCSJ – partes apógrafas: órgão

e vozes (SATB);

487 Cf. op. cit., p. 30.

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194

Fontes

Género

Obra A Persuasão, 21 de

Março de 1877, e Teófilo de Braga

Gabinete de

Estudos, Maio de 1877

Revista

Michaelense, 1921

Manuscritos musicais

(arquivos/materiais)

Responsórios de

Sábado Santo

----

P-PD – parte apógrafa: órgão;

AIMPD – partes apógrafas: vozes (sem órgão);

AIPSJ – partes apógrafas: órgão,

vozes (SATB) e instrumentos (vl 1 e 2, vlc, cl 1 e 2, ctb);

P-AHc (MM286) – partes

apógrafas: órgão e vozes (SATB); AIMCSJ – partes apógrafas: vozes

(SATB);

Lamentação 1.ª de Quinta-Feira

Santa

7.ª lição de Quinta-Feira Santa

(solo de soprano)

---- 4.ª lição de Quinta-Feira

Santa

(solo de soprano)

AIMPD – partitura autógrafa truncada: órgão e voz solista (Alto)

[Lamentação para ser cantada antes

das matinas de 6.ª feira Santa (1.ª Lição)];

AIMCSJ – parte apógrafa: órgão,

1880;

Res

pon

sóri

os

par

a ou

tras

Fes

tivid

ades

Responsórios de

Santa Filomena

---- AIMCSJ – partitura apógrafa:

órgão e vozes (SATB) [Matinas das

Virgens]. Copista: P.e José

Pacheco Alfinete, 1919

Matinas de S.

Sebastião

(1844)

----

AIMCSJ – Partes apógrafas: órgão

e vozes (SATB), Manuel da Cunha,

1881; SA – Partes apógrafas: vozes (A,T

I e II, B) e flauta;

Responsórios

do Espírito Santo

----

AIMCSJ – parte apógrafa: órgão

Responsórios

para os Espinhos

----

Azevedo da Cunha refer dois solos

e um dueto. Cf. op.cit, 448

Matinas de

Nossa Senhora da Conceição

---- ---- Antes do Dogma:

MCM – partitura apógrafa: órgão e vozes (SATB). Copista: Manuel

Coelho de Barros, 1904;

AIMCSJ – partitura apógrafa: órgão e vozes (SATB)

Depois do Dogma:

AIMPD – partes apógrafas: órgão e vozes (SATB)

Matinas da

Transfiguração (coros e dois

órgãos). Feitas

para a Sé de Angra e

dedicadas ao

Deão)

----

----

Mote

te

Moteto de Santa

Cecília

(dois coros e

instrumental)

(dois coros e

instrumental)

(dois coros e

orquestra)

AIMPD – autógrafo de um excerto

a dois coros; AIMCSJ – partitura

apógrafa: órgão e 2 coros (SATB). Copista: José Pacheco Alfinete,

1919;

Motete do Santíssimo

Sacramento

----

----

Motete de S. José

---- ---- ----

Motete de Santa

Bárbara

---- AIMPD – parte autógrafa: órgão;

partes apógrafas: vozes (SATB);

An

tífo

na

Tota Pulchra (a pedido do bispo

para a

publicação do dogma da

Conceição)

----

AIPSJ – partes apógrafas: órgão e vozes (SATB);

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195

Fontes

Género

Obra A Persuasão, 21 de

Março de 1877, e Teófilo de Braga

Gabinete de

Estudos, Maio de 1877

Revista

Michaelense, 1921

Manuscritos musicais

(arquivos/materiais)

Sub tuum

praesidium

---- ---- SA – partes apógrafas: órgão e

vozes (SATB). Cópia e posse de José Silveira d’Avila, 1911

Seq

uên

cia

Espírito Santo

---- ---- ---- AIMPD – parte autógrafa: órgão;

partes apógrafas: vozes (SATB) e

instrumentos (vl 1 e 2, cl, e trb)

Corpo de Deus

---- ---- ---- AIMPD – partitura apógrafa:

órgão e vozes (SATB)

Mis

sa

Missa ---- ---- ---- SA – partes apógrafas: órgão e

vozes (SATB)

Intr

oit

o

Versículo do

Introito para a

missa de um

mártir não

pontífice

---- ---- ---- AIMPD – partitura apógrafa:

órgão, solista (tenor) e coro

(SATB)

Invit

ató

rio

e

Sal

mo

Salmo “Venite”

Referência à sua execução na imprensa: O Templo, 21 de Julho de 1857, n.º 14.

----

Ou

tros

Calenda de

Natal

---- ----

Hino para publicação do

dogma da

imaculada Conceição

----

----

Tabela 5. 6 – Listagem da produção sacra de Silvestre Serrão

Silvestre Serrão chegou a Ponta Delgada no ano de 1841, prosseguindo com a

sua actividade de compositor e organista, inicialmente na Igreja de S. José daquela

cidade e depois na Igreja Matriz de S. Sebastião, para onde fora convidado na sequência

da saída do seu antecessor:

Por algum tempo acompanhou, na egreja de S. José, a música das pomposas

solemnidades que ali promovia o zeloso parocho revd.º José de Medeiros e Sousa;

porem deixando o organista da matriz Caldeira este emprego, para sair para o Brazil, foi

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196

o revd.º Serrão chamado pelo exm.º bispo para ocupar aquelle logar. Ninguem mais

competente para desempenhl-o.488

As funções de organista na Igreja de S. José prolongaram-se até ao ano de 1843,

uma vez que em Janeiro de 1844, em jeito de boas-vindas, Serrão apresentou as Matinas

de S. Sebastião, dedicadas ao orago da Igreja Matriz: “Succedeu que sendo este Mestre

convidado para organista da Matriz de Ponta Delgada, mimosiou aquella Igreja com a

nova composição das Matinas de Sam Sebastião, orago da cidade, e festa da mesma,

feita pela Camara Municipal, nas quaes respira o génio.”,489 acolhendo uma crítica

muito positiva:

Aproveitâmos a ocasião presente para fazermos menção honrosa do grande

fundo d’erudição musica, que, na rica Nova Composição das Matinas para esta

Festividade [S. Sebastião], desenvolveu o Illustre Musico, Reverendo Joaquim

Silvestre Serrão; e que pela vez primeira, com feliz desempenho se-cantarão, na

véspera da mesma: sendo por ele compostas a pedido do seu Amigo o Sr. José

Corrêa Pinto, a quem, segundo nos-consta, as-offereceu. E no em quanto mais

hábeis, e inteligentes mãos, lhe não tecem o merecido elogio, ousâmos dedicar a

tão Nobre Compositor o seguinte: (...).490

Segundo os dados apresentados na Tabela 5.6, aquelas matinas conservam-se

exclusivamente em apógrafos (partes separadas de vozes SATB e órgão obrigado)

copiados por Manuel Azevedo da Cunha em 1881, no arquivo da Igreja Matriz da

Calheta (S. Jorge).

488 A Persuasão, 7 de Março de 1877, 16.º ano, n.º 790 489 O Açoriano Oriental, 12 de Maio de 1849, ano 41, n.º 745. 490 O Monitor, 24 de Janeiro de 1844, n.º 260

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197

Fig. 5.2 Frontíspício do apógrafo da

parte de órgão das Matinas de

São Sebastião de Joaquim

Silvestre Serrão (1881) Arquivo da Igreja Matriz da

Calheta (S. Jorge)

Outra crítica às Matinas de S. Sebastião, desta feita no terceiro ano sobre a sua

primeira execução, surge no periódico O Açoriano Oriental:491 “Toda esta composição

é aprimorada, e não se lhe nota frieza tão comum na musica d’egreja, os seus motivos

são mui vivos e agradáveis; (...) o acompanhamento finalmente é deleitavel e rico,

porque é elaborado com o melhor gosto e estudo.” A referência ao acompanhamento

“finalmente é deleitavel e rico” subentende uma diferença entre o que os micaelenses

estavam habituados a ouvir e a nova música de Serrão. A Revista Michaelense também

aborda essa mudança operada pela chegada de Serrão no que respeita ao repertório

interpretado na Igreja Matriz de Ponta Delgada:

A musica sacra que se tocava nas egrejas de S. Miguel antes de Serrão entrar para

Organista da Matriz de Ponta Delgada era de preferencia a de Antonio José Soares,

n’um estylo arrastado e pesado, d’uma harmonia sombria nos moldes clássicos. As

preocupações de contraponto e as dificuldade de harmonia sacrificavam muitas vezes o

livre exercício da inspiração e muitas das composições d’essa eschola ressentiam-se da

falta de belleza e de gosto. Eram bellas obras na sua estrutura geral, apreciadas, cheias

de qualidades, mas o rythmo muito conchegado ás tradições musicaes dos mestres das

escholas florescentes passadas, repetia-se assaz fora do colorido e do brilho devido a

essa musica que se ouviam nas egrejas nas festividades religiosas.492

De 1846 data a notícia da execução de alguns responsórios das Virgens, os quais

terão sido compostos propositadamente por Serrão para a Festa de Santa Filomena que

491 24 de Janeiro de 1846, n.º 562 492 Cf. op. cit., p. 1138.

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198

se realizava no Convento de Santo André, actual Museu Carlos Machado (MCM), em

Ponta Delgada.493 Sob aquele título sobrevive apenas a parte de órgão do 5.º

Responsório (e verso), num apógrafo do Pe. José Pacheco Alfinete, datado de 1919, no

arquivo da Igreja Matriz da Calheta em S. Jorge. As fontes são todas omissas quanto à

composição daqueles responsórios, existindo, porém, referências várias aos

responsórios de Santa Filomena, de “grandes dimensões, dedicados ao Vigário Geral

Ferreira e Sousa”,494 pelo que se conclui que os referidos responsórios das Virgens

poderão corresponder aos de Santa Filomena, tratando-se certamente de uma falha do

copista do apógrafo que se encontra em S. Jorge. Verifica-se que Serrão estava a par dos

novos cultos da Igreja Católica, pois a veneração de Santa Filomena na Europa Católica

despoletou somente no século XIX.

Para a festividade de uma outra santa virgem e mártir da Igreja, Santa Bárbara,

em cujo Recolhimento era capelão,495 Serrão compôs o Motêtto / Prª se cantar na

Festividade / De Sancta Barbara /Extrahido do Resp.º de S.ª Filomena, autógrafo

preservado no arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada (para vozes SATB e órgão

obrigado) sem indicação de data. A letra desse moteto é extraída do Gradual da Missa

das Virgens e Mártires “Dilexisti justitiam”.

Outro exemplo de composição dedicada às virgens mártires surge no moteto de

Santa Cecília, à volta do qual permanece a dúvida sobre o efectivo instrumental. Por um

lado, a maioria das fontes secundárias menciona dois coros e orquestra. Por outro, o

apógrafo localizado no arquivo da Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge com data de

1919, apresenta uma partitura para dois coros iguais e órgão obrigado. Conserva-se no

arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada uma única folha do autógrafo dessa peça,

com um excerto para dois coros, na qual Serrão introduziu, a posteriori (já quando

estava sem mobilidade do lado direito do corpo), a seguinte nota: “Não sam a 8

rigorosos; mas como pode ser pq a musica tinha sido p.ª um coro” (Fig. 5.3).

493 Ver O Açoriano Oriental, 15 de Agosto de 1846, n.º 603. A festividade de Santa Filomena era

celebrada no dia 10 de Agosto. 494 Cf. Ayres Jácome Corrêa (dir.), “O Padre Joaquim Silvestre Serrão e a Semana Santa”, p. 1145,

Teófilo de Braga, op. cit., p. 58 e A Persuasão, 21 de Março de 1877, 16.º ano, n.º 792. 495 Cf. Revista Michaelense, p. 1151; Teófilo de Braga, op. cit ., p. 34.

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199

Fig. 5.3 – Motete de Santa Cecília: autógrafo de Silvestre Serrão (AIMPD)

Sob estes dados, deduz-se que Serrão terá inicialmente escrito o Motete para um

coro e órgão obrigado, adaptando-o depois para dois coros e órgão ou mesmo para dois

coros e orquestra, ainda antes de ficar hemiplégico em 1869. O número de compassos

de espera no início do autógrafo parece indicar a intervenção da orquestra, ou mesmo do

órgão, pois nas obras de Serrão é comum o órgão executar longas intervenções a solo.

Há uma notícia da execução do Motete de Santa Cecília na Igreja de S. José em Ponta

Delgada no ano de 1872,496 onde se alude à presença de instrumental. À luz do que se

verificou no subcapítulo imediatamente anterior, essa apresentação poderia resultar de

um arranjo para instrumentos, uma das características do repertório apresentado ao

longo da segunda metade do século XIX escrito originalmente para vozes e órgão. A

localização das restantes partes daquele autógrafo permitiria certamente confirmar

algumas das conjecturas aqui apresentadas.

De acordo com as fontes, Serrão terá composto um outro Motete dedicado a S.

José, desconhecendo-se a data da sua composição. Surge igualmente a notícia de um

Motete do Santíssimo Sacramento, que poderá corresponder à peça para solo de tenor

com coros e órgão, interpretada na festa do Santíssimo Sacramento da Igreja paroquial

da Conceição em Angra do Heroísmo, no ano de 1860.497

496 Cf. A Persuasão, 27 de Novembro de 1872, ano 11, n.º 567. 497 Cf. A Terceira, 23 de Junho, ano II, n.º 77.

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200

No final da década de quarenta, em 1848, Serrão compôs as Matinas de Sexta-

Feira Santa, na sequência da encomenda que o provedor da Confraria do Santíssimo

Sacramento da Igreja Matriz de Ponta Delgada, Manuel Teixeira Soares, lhe fizera para

compor música para os Ofícios da Semana Santa:

Foi por então que a confraria do S. S. da Matriz de Ponta Delgada, sendo seu

provedor o Illm.º Sr. Manuel Teixeira Soares, se dirigiu por carta ao Sr. Serrão e

lhe pediu com delicadeza e muita urbanidade, em nome de toda a Meza, a

composição de Muzicas novas para quarta, quinta e xesta feira maior, começou

aquelle Sr. a dar execução áquelle pedido, e este anno ficou concluida a

composição da Muzica das Matinas de 5.ª feira Santa (...).498

No alógrafo guardado no arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada (Anexo 5)

há uma “Advertência” inicial, onde Serrão contextualiza a composição, a estrutura da

obra e ainda os recursos necessários à sua execução, referindo que começou por compor

as Matinas de Sexta-Feira Santa por serem as que se realizavam com maior pompa. Em

todos os frontispícios dos responsórios daquele alógrafo está indicada a data de

composição (1848), e na folha de rosto a data em que a partitura foi copiada (1849).499

Relativamente aos responsórios das Matinas dos restantes dias do Tríduo Pascal,

o único dado sobre possíveis datas de composição é uma notícia no periódico

micaelense A Persuasão, no ano de 1862, onde se informa que as Matinas de Quinta-

Feira Santa foram executadas pela primeira vez, na Igreja Matriz de Ponta Delgada,

recebendo críticas positivas:

(...) Na matriz cantaram-se excelentes matinas na quarta, quinta e sexta feira, todas

compostas pelo notavel compositor o sr. padre Serrão. As de quarta feira, que este anno

se cantaram pela primeira vez, na opinião de pessoas competentes, em cousa alguma

498 O Açoriano Oriental, 19 de Maio de 1849, n.º 746. 499 Na escritura de cessão da partitura para a dita confraria, realizada em 17 de Janeiro de 1875, na

presença de Serrão e do representante da Confraria, Serrão declara erradamente o ano de 1849 como

sendo o ano da encomenda: “E sendo assim todos presentes, pelo primeiro outorgante, reverendo Joaquim

Silvestre Serrão foi declarado que em mil oitocentos quarenta e nove, pela confraria do Santissimo

sacramento, sendo então Provedor Manuel Teixeira Soares, lhe fora pedido a composição de músicas

novas para a quarta, quinta e sexta feira santa; e que acedendo a este pedido compojera os Responsorios

das Matinas de Sexta feira Santa, que se cantam em quinta feira maior e que desde então ofereceu á

mesma confraria a partitura.” Cf. AIMPD, s/c.

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201

desmerecem da grande reputação do seu author. Há n’ellas um dueto de tanto efeito,

que bastaria para revelar o grande génio e sciencia do excelente compositor.500

Sabendo, à partida, que as Matinas de Sexta-Feira Santa foram compostas em

1848, assim como as de Quinta-feira na década de sessenta, é viável equacionar a

composição das Matinas de Sábado Santo na década de cinquenta. Infelizmente, não

sobrevivem autógrafos das restantes matinas, proliferando, no entanto, apógrafos pelas

diferentes ilhas, alguns dos quais em circulação ainda na segunda década do século XX,

como é o caso do único apógrafo das Matinas de Quinta-Feira Santa, conservado no

arquivo da Igreja Matriz da Calheta de São Jorge, e que para aqui foi oferecido no ano

de 1917.

As Matinas da Semana Santa de Silvestre Serrão fazem parte do leque de obras

mais anunciadas na imprensa ao longo de toda a segunda metade do século XIX. A

multiplicidade de notícias sobre a sua execução nas principais cidades do arquipélago,

Ponta Delgada (embora também haja referências à sua execução na Ribeira Grande,

então vila), Angra (na catedral e noutras igrejas) e Horta (Igreja Matriz), leva a crer que

se tratava de repertório obrigatório na Semana Santa e que a sua execução demonstrava

um certo status da igreja onde se realizava. Segundo o periódico Diário dos Açores, as

cerimónias da Semana Santa na Igreja de S. José em Ponta Delgada, no ano de 1899,

foram as que contaram com mais adesão do público, justamente porque foi a única

igreja onde se cantaram as matinas do “imortal Serrão”.501

O arquivo musical dessa igreja foi desmantelado entre o final do século XX e

início de XXI, sobrevivendo alguns materiais musicais em posse de particulares,

nomeadamente os apógrafos das Matinas de Sexta-Feira Santa e Sábado Santo, com

partes instrumentais. Do primeiro existem as partes de violino (1.º e 2.º), violoncelo,

cornetim, 2.º clarinete, flauta e saxofone soprano. Do segundo subsistem as partes de

violino (1.º e 2.º), violoncelo, 2.º clarinete, flauta e contrabaixo, sendo que a parte de

violoncelo está assinalada como sendo da posse da Igreja de S. José, no ano de 1913. A

existência dessas partes confirma a circulação de partes instrumentais que se

compunham a partir do original, questão abordada no subcapítulo anterior. A data de

500 A Persuasão, 23 de Abril de 1862, ano 1, n.º 17. 501 Cf. 5 de Abril, ano 29, n.º 2:406.

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202

1913 corrobora a afirmação de Oscar Paxeco, quando refere que mesmo depois do Motu

Proprio “Tra le sollecitudine” de 1903, se ouvia Serrão nas igrejas açorianas.

Ainda no que concerne ao repertório da Semana Santa, Serrão escreveu uma

Lamentação para ser cantada na Quinta-Feira Santa. Pelo texto do autógrafo truncado

que se conserva no arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada, para voz solista (Alto) e

órgão obrigado, trata-se da primeira Lamentação (que corresponde à primeira lição, no

caso da Quinta-Feira Santa) daquele dia “De Lamentatione Jeremiae Prophetae”.502 No

entanto, as fontes documentais não são unânimes quanto ao número da lição, numas

indicada como sendo a 7.º e noutras como 4.ª (cf. Tabela 5.5), o que poderá reflectir, por

um lado, uma incongruência que se justifica pela eventual falta de rigor, ou, por outro

lado, a hipótese de Serrão ter escrito três lamentações de Quinta-Feira Santa: a primeira,

a quarta e a sétima. Segundo aquelas mesmas fontes, foi escrita para as freiras clarissas

do Convento da Esperança.

A Igreja Católica portuguesa consagrou uma forte devoção a Nossa Senhora da

Conceição, integrando-a como solenidade a partir do momento em que D. João IV

coroou-A como Rainha de Portugal em 1646. Após a proclamação do dogma da

Imaculada Conceição pelo Papa Pio IX, em 1854, assiste-se ao recrudescimento do seu

culto. Para a cerimónia onde se festejou aquela proclamação, realizada na Sé de Angra,

o bispo da época, D. Frei Estevam de Jesus Maria, terá solicitado a Silvestre Serrão

novas composições para a ocasião:503 Antífona Tota pulchra “a grandes dimensões e

aparatosa”504 e um hino que, segundo Teófilo de Braga, se cantou no trajecto da

procissão.505 Deste último não sobrevivem quaisquer materiais, apenas uma nota da

imprensa que regista a interpretação do “bello hymno da Conceição” de Silvestre Serrão

na Festa da Imaculada Conceição realizada na Igreja de S. José em Ponta Delgada, no

ano de 1856.506 Da antífona resta um apógrafo incompleto com parte de órgão e partes

vocais (SATB) que se encontrava no arquivo da Igreja de S. José, agora em mãos de

particulares. Há inclusivamente uma notícia da sua execução na festa da Imaculada

502 Um apógrafo da parte de órgão, com data de 1880, encontra-se no arquivo da Igreja Matriz da Calheta

de S. Jorge. 503 Cf. Teófilo de Braga, op. cit., p. 59. 504 Cf. Revista Michaelense, p. 1145. 505 Cf. op. cit, p. 59. 506 A Aurora dos Açores, 19 de Dezembro de 1855, n.º 77.

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203

Conceição no Convento de S. Gonçalo na ilha Terceira, em 1860.507 Nessa mesma

ocasião, foi interpretada uma outra antífona da sua autoria, Sub tuum praesidium, sobre

a qual as fontes não se manifestam, embora exista um apógrafo da parte de órgão

(datado de 1911) e das partes vocais (1914) no arquivo do Seminário de Angra. Uma

vez mais, a data das cópias é sintomática da sua interpretação.

À produção musical mariana de Silvestre Serrão acrescem duas versões

diferentes das Matinas de Nossa Senhora da Conceição, com letra anterior e posterior à

proclamação do dogma da Imaculada Conceição. Nos arquivos da Igreja Matriz da

Calheta de S. Jorge (sem data) e do actual Museu Carlos Machado (MCM, cópia de

1904) preservam-se os apógrafos de uma mesma partitura, por sinal extensa, para órgão

obrigado e quatro vozes (SATB), sob o título “Responsórios da Imaculada Conceição”,

Por seu turno, no arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada conserva-se um manuscrito

apógrafo da parte de órgão obrigado que ostenta o seguinte título: Responsorios / Do /

officio novo da Immaculada Conceição / A Supranos; Altos; Tenores; e Baixos; e

Orgão Obrigado / Composição / Do / Ill.mo e R.mo Snr. Joaquim Silvestre Serrão, com

música diferente dos restantes apógrafos referidos acima. Considere-se igualmente as

observações das únicas duas fontes que mencionam a composição dessas matinas: A

Persuasão (1877) indica “Responsorios das matinas novas da Conceição, são de

grandes dimensões. Foram dedicados a sua ex.ª revd.mo o sr. bispo D. Frei Estevam, para

a festividade da publicação do dogma referido”; Teófilo de Braga (1906) anuncia:

“Responsorios grandes, para as Matinas novas da Senhora da Conceição. Dedicado a D.

Fr. Estevam de Jesus Maria, bispo dos Açores”. Se na primeira observação está

explícita uma composição mais antiga, na segunda deduz-se a existência de outros

responsórios mais pequenos. Em Janeiro de 1869, o jornal A Persuasão anuncia que

Silvestre Serrão estava a terminar as novas Matinas da Conceição: “NOVAS

MATINAS – O illustre compositor o sr. padre Serrão, tem quasi completas umas novas

matinas de Nossa Senhora da Conceição, e ouvimos a pessoas competentes que são a

obra prima d’aquelle grande talento músico”.508

507 A Terceira, 22 de Dezembro, ano II, n.º 103. 508 A Persuasão, 20 de Janeiro de 1869, ano 8, n.º 367.

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Os dados apresentados apontam para duas composição sobre as Matinas de

Nossa Senhora da Conceição, uma delas feita nos anos de 1855/56509 a pedido do bispo

para a comemoração da proclamação do dogma, onde Silvestre Serrão usou a letra dos

responsórios em vigor até então, e uma outra terminada em 1869, com letra posterior ao

dogma.

Permanecendo no âmbito das Matinas, Serrão escreveu as Matinas da

Transfiguração para a Sé de Angra, orago da catedral, para coro e dois órgãos. Assim,

aquelas matinas terão sido compostas em data posterior a 1854, quando o órgão de

Serrão foi ali instalado. Não restam quaisquer vestígios da sua existência. O mesmo

sucede com outras peças, como por exemplo os Responsórios dos Espinhos para o

Convento da Esperança, que terão sido feitos para a grande Festividade do Ecce Homo,

que ali se realizava (e que até hoje acolhe uma multidão de fiéis), no quinto domingo

após a Páscoa.

Para uma outra festividade de grande relevância no contexto açoriano, o Espírito

Santo, divindade à qual os açorianos dedicam especial devoção desde o século XVI,

Silvestre Serrão compôs os Responsórios do Espírito Santo. Apesar de serem citados em

todas as fontes, sobrevive apenas uma apógrafo da parte de órgão no arquivo da Igreja

Matriz da Calheta em S. Jorge. No entanto, a imprensa relata a sua execução no

Convento da Esperança, em Ponta Delgada, tecendo largos elogios à composição e às

intérpretes e sublinhando que já não eram tocados há algum tempo:

Pentecostes – Teve domingo logar esta festividade com bastante pompa no

mosteiro da Esperança, sendo orador o reverendo Frazão. Na véspera á noite

cantaram-se as lindas matinas do nosso inspirado compositor o reverendo

Joaquim Sylvestre Serrão, matinas, que ha muitos anos se não faziam ouvir.

O desempenho da musica pelas exm.as educandas nada deixou a desejar, porque

cantaram aquella excellente partitura com grande esmero gosto e afinação,

sobressaindo no 1.º responsorio o brilhante solo a córos – Dum ergo – da exm.ª

sr.ª D. Maria Augusta Pererira, no 2.º o mimoso dueto – Loquebantur – das

exm.as sr. as D. Maria do Carmo Raposo e D. Maria Carolina Pereira, e no

acompanhamento a distincta pianista a exm.ª sr.ª D. Maria Guilhermina

Carvalho Arruda.510

509 Foram executadas na Matriz de Ponta Delgada, em 1856. Cf. O Templo, 15 de Dezembro de 1856, n.º

7 (P-PD, JC PP 784). Notícia da sua execução também na Sé de Angra em 1860 (Cf. A Terceira, 15 de

Dezembro, ano II, n.º 102) 510 A Persuasão, 19 de Maio de 1875, ano 14, n.º 696.

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Também para esta festividade Serrão escreveu uma Sequência para vozes e

órgão obrigado, cujo autógrafo de ambas as partes permanece no arquivo da Igreja

Matriz de Ponta Delgada.

Outra Sequência para quatro vozes e órgão obrigado foi escrita para a solenidade

do Corpo de Deus, omitida nas fontes. A única cópia do século XX (o penúltimo

número da data é ilegível: 1913 ou 1943) está guardada no arquivo da Igreja Matriz de

Ponta Delgada. Para a mesma festividade, Serrão compôs ainda o Invitatório e o Salmo

“Venite, exultemos Domino” da hora de Matinas, interpretados na Igreja de S. José em

Ponta Delgada, no ano de 1857.511

Dos restantes contributos de Serrão para a música sacra, igualmente omitidos

nas fontes, mas presentes nos arquivos ou indicados pela imprensa, enumeram-se: uma

Missa, composta por Kyrie e Gloria, para quatro vozes e órgão obrigado que se

conserva numa cópia de 1883 no arquivo do Seminário de Angra, cópia esta

possivelmente feita para ser utilizada naquele mesmo ano, na Festa de S. José, na Igreja

de Nossa Senhora da Guia do Convento de S. Francisco (actual Museu de Angra do

Heroísmo);512 Versículo do Intróito para a Missa de uma mártir não Pontífice “Quoniam

praevenisti”, para solista (tenor), coro e órgão obrigado, que se preserva no arquivo da

Igreja Matriz de Ponta Delgada.

Após ter ficado hemiplégico, no final da década de sessenta, Serrão não se terá

dedicado a nenhuma nova composição, procedendo apenas à rectificação de alguns

pormenores em partituras antigas, como acontece amiúde nas Matinas de Sexta-Feira

Santa, onde se identifica a adição de dinâmicas com uma grafia tremida (Anexo 5).

Verifica-se que o compositor teve uma actividade compositiva intensa em cada

uma das três décadas que viveu em S. Miguel, escrevendo Matinas (nove), Motetes

(quatro), Antífonas (duas), Sequências (duas), Missas (uma), Calendas (uma), Hinos

(um), Salmos (um) e Intróitos (um), sendo que grande parte delas foi escrita para um

determinado contexto e, segundo as fontes secundárias, para uma determinada igreja,

destacando-se as Igrejas Matriz e S. José em Ponta Delgada, o Convento da Esperança

na mesma cidade e Sé de Angra.

511 O Templo, 21 de Julho de 1857. 512 O Catholico, 20 de Abril, ano V, n.º 121.

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Embora a produção sacra autóctone se concentre fundamentalmente em obras de

Serrão, existiram outros contributos, com diferentes níveis de proficiência, que também

circularam nas igrejas açorianas. É o caso das Matinas de Sexta-Feira Santa de Manuel

do Couto Benevides. Os únicos dados biográficos deste compositor constam numa

inscrição de Manuel d’Azevedo da Cunha (em 1920), no apógrafo daquela partitura que

subsiste no arquivo da Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge.513 Manuel do Couto

Benevides era natural da ilha de S. Miguel e ordenou-se em Angra no ano de 1872.514

Desempenhou as funções de cura na freguesia das Sete Cidades, em S. Miguel, onde

escreveu as referidas Matinas em 1893, e emigrou para os Estados Unidos da América,

falecendo em Newport (Rhode Island), por volta de 1912.

As Matinas de Sexta-Feira Santa foram escritas para três vozes (STB) e órgão

obrigado, e apresentam oito responsórios.515 Na mencionada inscrição lê-se: “Esta

musica é em muitos trechos decalcada na partitura de Serrão”. Na verdade, não se

encontraram decalques no sentido literal do termo, no entanto, é admissível que

qualquer candidato à composição no meio açoriano daquela época tivesse contactado

com a música de Serrão. Neste sentido, reconhecem-se alguns pontos em comum com

as Matinas homónimas de Serrão, que reflectem a influência desse mestre, embora com

efeito substancialmente mais pobre.

O uso de sesquiálteras em Serrão é muito habitual, e Benevides utiliza-as no

início do 1.º Responsório, tal como fez Serrão no início das suas Matinas (Ex. 5.4).

Resp. 1 – Matinas de Sexta-Feira

Santa de Silvestre Serrão

(alógrafo – 1849, AIMPD)

513 Um outro apógrafo das referidas Matinas fazia parte do arquivo da Igreja paroquial de S. José. 514 Foi solicitado aos serviços administrativos do Seminário de Angra o registo da sua ordenação, não

tendo sido encontrado. A sua missa nova teve lugar na igreja da freguesia onde nascera, Água de Pau, em

1873. Cf. A Voz da Verdade, 2 de Agosto de 1873, ano 6, n.º 39. 515 A ausência do 9.ª responsório é comum fora do contexto do Tríduo Pascal, onde é substituído pelo Te

Deum.

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Resp. 1 – Matinas de Sexta-Feira

Santa de M. Couto Benevides

(apógrafo, AIMCSJ)

Ex. 5.4 – Modelos rítmicos nas Matinas de Sexta-Feira Santa de Silvestre Serrão e

de Manuel do Couto Benevides

Outro ponto de contacto em termos rítmicos encontra-se na Presa do 2.º

Responsório, onde Serrão optou por introduzir séries sucessivas de quatro semicolcheias

sobre uma nota pedal, traduzindo o efeito do texto: “Et omnis terra tremuit”. Benevides,

por seu turno, replicou o mesmo modelo mas sem a nota pedal (Ex.5.5 e 5.5a).

Ex. 5.5 – Presa do 2.ª responsório das Matinas de Sexta-Feira Santa de Silvestre Serrão

Ex. 5.5a – Presa do 2.º Responsório das Matinas de Sexta-Feira Santa de Manuel do Couto Benevides

De resto, toda a figuração rítmica utilizada por Manuel do Couto Benevides é

incomparavelmente menos eficaz e complexa do que a de Silvestre Serrão. Há, ainda,

outro elemento em comum, que consiste na presença do órgão a solo, principalmente na

parte introdutória de alguns responsórios. Em Serrão notam-se também muitas

intervenções ao longo das peças, o que já não se verifica em Benevides.

A questão da registação, que se revela particularmente cuidada nas Matinas de

Serrão, em Benevides recebe um tratamento bastante secundário e frequentemente

desadequado ao contexto. O exemplo mais evidente é o início do 5.º Responsório, no

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qual Serrão opta por uma sonoridade soturna decorrente do texto “Tenebrae”, realizada

com Flautado brando (ver cap. VI, Ex. 6.5), enquanto Benevides introduz uma textura

muito densa com a indicação de “F” (forte) e “Cheio” (Ex. 5.6).

Fig. 5.6 5.º Responsório das

Matinas de Sexta-

Feira Santa de

Manuel Couto

Benevides (apógrafo,

AIMCSJ, cc.1-10)

Segundo as já mencionadas anotações de Manuel d’Azevedo da Cunha no verso

do frontispício do apógrafo das Matinas de Sexta-Feira Santa, Benevides escreveu

muitas outras peças mas não gozou de fama:

O P.e Benevides que já não apanhei em Angra, pois entrei no seminário (S.

Francisco) em 1874, compoz hinos para o Mês de Maria: Tu cujo amor em

cânticos (letra de Teofilo Braga ou Castilho), Ave, oh! Cecem mimosa = Ave

oh! Cheia de graça. = Nesse trono do universo. = Celebremos, devotos, as

graças. = Formosa flor de Jessé. = Si queris miracula. = Ó Sacrum convivium –

cuja musica faz lembrar o Duetto da Favorita de Donizeti. = Todas estas

músicas, e bem assim – Veni Sante Spiritu, Sub tuum praesidium, Ave Maria, e

Jaculatorias, estavam no arquivo da musica do Seminario. Compoz uma missa a

três vozes e orgam. Cantou-se na egreja da Conceição. E o Vig.º Conego Fran.co

Rogerio da Costa, pregando nesse mesmo dia dirigiu do púlpito ao Benevides

algumas palavras elogiosas com respeito à musica cantada n’aquele dia, que

honrava seu autor. – Mais compoz em Angra o seu bonito Tantum ergo; e o

Psalmo Beatus vir, e Ave Maria – Invitatorio da novena de N.ª S.ª da Guia no

Seminario. = Em S. Miguel entre varias coisas compoz, aproquiando nas Sete

Cidades, estas Matinas, e as de 6.ª feira [que se cantam em 6.ª feira] até ao 5.º

Responsório. O P.e Benevides não foi feliz em sua carreira. Bastava ser artista

para não ser bafejado pela felicidade: a nervose do talento produz desequilíbrios

na lucta da vida, onde só triunfam os equilibrados, os manhosos, e os imbecis. –

Indo para os Estados Unidos lá morreu ha poucos ãnos aquele tão talentoso

como desditoso padre.

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Algumas das peças mencionadas foram localizadas no arquivo do Seminário de

Angra, nomeadamente O sacrum convivium para dueto de barítono e baixo e órgão

obrigado (cópia e posse da parte de órgão “Silveira”, 1913), e uma compilação de

pequenas peças, todas com órgão obrigado, intitulada Flôres a Maria, que integra os

seguintes títulos: Invocação a Deus (cujo autógrafo também se guarda no arquivo da

Igreja Matriz da Calheta em S. Jorge, copiado por Manuel Azevedo da Cunha em 1879),

Invitatório, Veni Sancte Spiritus, Ave Maria, Salve Rainha, Ladainha, e Jaculatória.

Relativamente à peça Sacrum convivium, não deixa de ser curioso notar a

veracidade da analogia apresentada por Manuel Azevedo da Cunha com o dueto da

ópera Favorita de Gaetano Donizetti, e que é, aliás, mais um exemplo da absorção do

repertório operático italiano na música sacra. O dueto que refere Azevedo da Cunha é

em concreto o Larghetto do dueto entre Leonora e Alfonso do 2.º acto, onde não só o

efeito rítmico do acompanhamento de Benevides é igual ao utilizado por Donizetti,

como também o da melodia confinada a Leonora.

A interpretação do repertório de Benevides não se circunscreveu à Igreja do

Seminário, na época Igreja de Nossa Senhora da Guia do Convento dos Franciscanos

(actual Museu de Angra do Heroísmo), mas também à Igreja paroquial da Conceição da

mesma cidade, a qual está registada como marca de posse da compilação Flôres a

Maria, e onde foi executado um Gloria da sua autoria, por ocasião da festa do Sagrado

Coração de Jesus em 1872, dispensando a imprensa os respectivos louvores:

De manhã cantou-se missa, cuja musica foi habilmente executada por alguns

seminaristas, cabendo os maiores elogios ao talentoso seminarista do 3º anno,

Manuel do Couto Benevides, natural d’agua de Pau, pela maneira feliz com que

se houve na composição do Gloria in excelsis; promette um futuro esperançoso

na arte da musica, em que é muito habil. (...)516

Em 1890, o periódico Açoriano Oriental alude novamente à habilidade artística

de Benevides na sequência da execução de um Benedictus da sua autoria na Igreja de S.

José em Ponta Delgada, peça que não consta da descrição de Manuel Azevedo da Cunha

nem dos arquivos:

516 A Voz da Verdade, 13 de Julho de 1872, ano 5, n.º 37.

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Foi ouvida com agrado, e justamente louvada, a composição do revd.º Manoel

do Couto Benevides, capellão no logar das Sette Cidades, denominada

“Benedictus”, que se cantou sexta feira da semana passada, na egreja de S. José,

sob a regencia do nosso amigo revd.º Januario Philomeno Velloza. É um

trabalho que revela um talento e aptidão para a música sacra. Ao auctor da

composição e ao esclarecido regente, as nossas felicitações pelo bom exito que

ella teve.517

No panorama da composição sacra autóctone na segunda metade do século XIX

a imprensa regista ainda outros subsídios, dos quais se destacam Alexandre Ferreira e

Pedro Machado de Alcântara. São efectivamente nomes associados a uma produção

notavelmente inferior a Silvestre Serrão, todavia relevantes na dinamização da música

sacra oitocentista nos Açores. Não se pretende aqui dedicar-lhes um estudo exaustivo,

nem tampouco uma análise da sua música, mas importa assinalar o seu contributo e os

materiais musicais sobreviventes dentro do contexto da música sacra com órgão.

Alexandre Alcântara Ferreira era natural de Lisboa, onde nasceu em 1842, e aí

estudou violino.518 Em Abril de 1869 encontrava-se a dirigir a orquestra que tocou na

Semana Santa na Sé de Angra.519 Da sua autoria sobrevive exclusivamente uma Missa

para três vozes (STB), coro, órgão e orquestra, que terá sido ouvida na Sé de Angra,

onde se conserva o único apógrafo (P-AHc MM184). O único sinal da imprensa, surge

na sequência da sua execução na Festa do Sagrado Coração de Jesus em S. José, Ponta

Delgada, em 1871.520 A parte de órgão denota uma escrita concertante bem mais

elaborada do que a de Manuel do Couto Benevides, e com inúmeras indicações de

registação.

517 O Açoriano Oriental, 13 de Novembro de 1890, ano 56, n.º 2899. Esta peça foi novamente tocada no

ano seguinte, e sobre ela um outro periódico, A Persuasão (12 de Novembro de 1891) escreve: “Sendo

apenas um artista amador, o sr. MC Benevides, revelou grande aptidão, podendo até ser um compositor

de primeira plaina.”. 518 Cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa-Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia

Limitada, s.d., vol. 11, pp. 158 e 159. Segundo a mesma fonte, em 1868 Alexandre Ferreira viajou para S.

Miguel para assumir o cargo de director da orquestra do Teatro Micaelense. Contudo, o seu nome não

consta do elenco da companhia que se apresentou naquele teatro na temporada de 1868/69, surgindo

somente nas temporadas de 1890/91 e 1892. Cf. Isabel Albergaria Sousa, op.cit., anexo 5 e 6 (s/

paginação). 519 A Terceira, 10 de Abril de 1869, XI ano, n.º 528. 520 A Persuasão, 5 de Abril de 1871.

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Pedro Machado de Alcântara nasceu e morreu em Angra (1849-1895), onde

desempenhou funções musicais não só no contexto da Sé de Angra mas também nas

filarmónicas. Por questões associadas à sua profissão enquanto funcionário da Fazenda

de Angra, Pedro M. de Alcântara foi transferido para Ponta Delgada, onde foi mestre de

capela na Igreja Matriz de Ponta Delgada em 1891.521 Manuel d’Azevedo da Cunha

refere que foi professor de música e um “compositor inspirado, embora não tenha

recebido o justo valor.522 Além de uma Missa executada nas igrejas do Convento de S.

Gonçalo em Angra e de Nossa Senhora da Conceição da mesma cidade, no ano de

1883,523 da qual não restam vestígios, compôs algumas antífonas e outras peças diversas

que terão sido apresentadas em Ponta Delgada, Angra (na Sé e no arquivo do Seminário

guardam-se materiais da sua autoria) e também na Matriz da Calheta de S. Jorge. No

arquivo desta última conserva-se Te Matrem Dei, que, segundo Azevedo da Cunha, foi

cantado pela primeira vez na Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Angra, no ano

de 1875.524

521 Cf. http://seangra.blogspot.pt/2010/09/pedro-machado-de-alcantara.html (última consulta em 2 de

Janeiro de 2017). A função de mestre de capela na Igreja Matriz de Ponta Delgada é transmitida pela

imprensa: O Açoriano Oriental, 21 de Março de 1891, ano 56, n.º 2916. 522 Cf. op. cit., p. 458. 523 O Catholico, 10 de Dezembro de 1883, ano V, n.º 144. 524 Cf. op. cit., p. 458.

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VI. Relação do repertório com os órgãos

Enquanto instrumento integrado no espaço sacro, a morfologia do órgão alterou-

se ao longo dos tempos de acordo com a sua função na liturgia.525 Tal como se observou

no capítulo anterior, ao longo do século XVIII assiste-se à mudança da função do órgão

na liturgia católica em Portugal, resultando no progressivo abandono da sua participação

no tradicional sistema de alternatim, no qual variava a registação consoante as

rubricas,526 para se assumir como acompanhador efectivo do coro, posição esta

confirmada no capítulo X do Ceremonial monastico reformado da Congregação de S.

Bento de Portugal, publicado em Lisboa no ano de 1820.527 De acordo com Gerhard

Doderer, a crescente autonomia no acompanhamento das vozes ditou uma maior

liberdade de execução e interpretação, dando margem ao organista para explorar

diferentes dimensões tímbricas, através dos recursos técnicos e sonoros que os

organeiros entretanto foram introduzindo. 528

O único documento conhecido em Portugal com referências pormenorizadas a

combinações tímbricas é o M[appa de registar o] órgão, do final do século XVIII.529

525 Edward Higginbottom refere que grande parte da literatura organística se deve justamente à construção

de órgãos para a igreja cristã ocidental e à sua participação na liturgia. Cf. op.cit., p. 130. No contexto

litúrgico português de finais do século XVIII, G. Doderer sublinha a correlação entre a nova função do

órgão e as “propriedades e qualidades técnicas e tímbricas” dos órgãos de Peres Fontanes e Machado e

Cerveira. Cf. “A presença do órgão na liturgia portuguesa”, p. 97 526 Esta diferenciação de planos sonoros relativa aos níveis dinâmicos de forte e piano já era descrita nos

cerimoniais franciscanos pelo menos desde 1730. No Ceremonial seráfico, e romano para toda a Ordem

Franciscana, de Frei Manuel da Conceição lê-se: (...) mas sempre se tangerá o Orgão flautado com muita

suavidade sobre o mesmo cantochão do Tantum Ergo (...) em cujo tempo [Adoração ao Santíssimo

Sacramento] o Orgão abrindo o flautado com o cheyo todo tocará alegre, e festivamente (...). Cf. Cristina

Cota, «O Cerimonial Seráfico para toda a ordem franciscana de frei Manuel da Conceição (1730)»,

Congresso Internacional "Os Franciscanos no Mundo Luso-Hispânico: História, Arte e Património",

Sociedade de Geografia de Lisboa, 24-28.07.2012 (no prelo). A referida mudança seria obtida por um

processo manual, sem auxílio de mecanismos que permitissem a mudança rápida, tal como viria a

acontecer com o sistema de pedais anuladores instituídos por Peres Fontanes e Machado e Cerveira. 527 Cf. Gerhard Doderer, “A presença do órgão na liturgia portuguesa entre o Concílio Tridentino e a

Secularização”, p. 92. 528 Op. cit., p. 97. 529 P-Ln s.c. O conteúdo do documento foi alvo de análise por parte de João Vaz (Cf. “A obra para órgão

de Fr. José Marques e Silva ...”, vol. I, pp. 155-158) e de Marco Brescia (“Quis audivit unquam tale?

Modos de registrar el órgano en España y Portugal en el siglo XVIII”, Dissertação de Mestrado, Escola

Superior de Música de Catalunya, vol. I, 2012/2013, pp. 47-52). Este último, por sua vez, acresce

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Nesse documento encontra-se a disposição de um órgão a partir do qual se descrevem

diferentes tipos de registação. São apresentadas quatro possibilidades de Cheio e

algumas indicações para solos, destacando-se a referência aos meios registos de Voz

humana e Clarineta, assim como a possibilidade de alternância rápida entre forte e piano

(“cheio” e “solo” [sic]) através da acção de um pedal.530

A este propósito, registe-se mais uma outra fonte localizada recentemente,

provavelmente também do final do século XVIII e com autoria desconhecida. Na

Instrução p.º o Organista Conforme os Ritos e Costumes dos Conegos R.es da

Congregação de S.ta Cruz de Coimbra estão descritas todas as intervenções do órgão no

cerimonial daquela comunidade, executado em sistema de alternatim, com indicações

de registação como “cheio”, “flautado”, “flauta” e “trombetas”. Encontra-se, ainda, a

referência genérica ao uso de algum “registo particular.”531

Como referido por João Vaz, as indicações de registação nas partes de órgão do

repertório produzido em Portugal surgem de forma sistemática a partir do final do

século XVIII.532

O presente capítulo concentra-se na análise das indicações de registação de

alguns dos manuscritos musicais dos arquivos dos Açores e na forma como seriam

realizadas nos órgãos das igrejas aos quais estão anexos os arquivos, dedicando-se

especial atenção à obra mais conhecida de Silvestre Serrão: as Matinas de Sexta-Feira

Santa.

esclarecimentos sobre a origem do documento, que terá vindo do Convento de S. Bento de Avé Maria, no

Porto. 530 Cf. João Vaz, op. cit., p. 157. 531 A informação sobre a existência dessa fonte manuscrita foi cedida por Cristina Fernandes: P-Lant,

Real Mesa Censória (Biblioteca – Música), Cx. 422 (7637). A Festa do Coração de Jesus – instituída em

Portugal em 1777 pelo Papa Pio VI, a pedido da Rainha D. Maria – já é contemplada no documento, pelo

que se supõe tratar-se de um documento do final do século XVIII. 532 Consultar “Dynamics and Orchestral Effects in Late Eighteenth-century Portuguese Organ Music: The

Works of José Marques e Silva (1782-1837) and the Organs of António Xavier Machado e Cerveira

(1756-1828)” in Interpreting Historical Keyboard Music, John Kitchen e Andrew Woolley (eds.),

Ashgate, 2013, pp. 157-172.

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214

VI. 1 Aspectos de registação

Nos arquivos musicais insulares proliferam obras cuja registação se circunscreve

aos dois planos sonoros de forte (cheio) e piano (Flautado), também grafados como “f”

e “p”, estabelecidos no Mapa de registar o órgão, por vezes exigindo uma mudança

rápida e noutras com interposição de pausas. Considere-se, por exemplo, a Missa a 4

vozes e órgão do Padre Francisco Xavier de Fontes,533 datada em 1801 (Fig. 6.1),

propriedade da reverenda Tereza Michelina de Santa Clara (professa do Convento de

Santo André, em Ponta Delgada), em que a alternância indicada pelas siglas “P” e “F”

se processa muito rapidamente, exequível apenas num instrumento com pedal anulador

de cheios.

Fig. 6.1 - Frontispício e excerto do Kyrie da Missa a 4 vozes da autoria do Padre Francisco Xavier de Fontes (1801)

De facto, em 1801, o Convento de Santo André em Ponta Delgada dispunha do

órgão que actualmente se encontra na Igreja Matriz da Calheta de S. Jorge (ver cap. II.2)

um instrumento de armário da autoria de Machado e Cerveira, n.º 29, datado de 1790,

com dez meios registos, pedal anulador de cheios e um teclado com cinquenta e uma

notas (C-d’’’). Não obstante tratar-se de uma instrumento de pequenas dimensões, sem

um Flautado de 12 aberto em ambas as mãos, há possibilidade de realizar a maioria das

533 P-PD, colmsm, cx. 06/11/01. Não foi encontrado qualquer dado biográfico sobre o compositor.

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combinações sugeridas no mencionado Mapa de registar o órgão, nomeadamente a

hipótese de um registo de palheta na mão direita (neste caso, o oboé) acompanhado por

um registo suave (neste caso, o Flautado 12 tapado), ou vice-versa, e a passagem rápida

entre os planos dinâmicos de piano-forte-piano (ou flautado-cheio-flautado), graças ao

pedal anulador de cheios. A Tabela 6.1 apresenta o plano fónico do órgão da Igreja

Matriz da Calheta de S. Jorge, bem como as possíveis combinações (os números

indicados na coluna da esquerda referem-se a cada linha, cumulativamente) e o

respectivo resultado em termos de planos dinâmicos (coluna da direita).

Plano fónico

Combinações534 Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-d’’’) Planos dinâmicos

1 Flautado de 12 tap. Flauta em 12 Flautado/piano

(suave)

1+2 Flautado de 6 tap. Flauta em 6 Flautado/piano

1+2+3 Quinzena Compostas de 22.ª Cheio (menos forte)

1+2+3+4 Clarão Corneta Cheio (forte)

1+2+3+4+5 Fagote Oboé Cheio com palhetas

(Fortíssimo)

Tabela 6.1 – Plano fónico e possíveis combinações no órgão da Igreja Matriz da Calheta

de S. Jorge, AXMC, n.º 29, 1790

O recurso à referida alternância dinâmica também se encontra em repertório

executado no Convento de S. João Evangelista em Ponta Delgada, entretanto

desaparecido,535 desconhecendo-se a existência e tipologia do órgão que lá existia no

final da centúria de setecentos e ao longo de oitocentos. Contudo, a Lamentação a Duo

de Soprano e Contralto de frei Manoel Gaspar Berlarmino,536 com data de 1816, seria

exequível somente num órgão com o mecanismo do pedal anulador de cheios, devido à

rapidez exigida na mudança (Fig. 6.2).

534 As combinações 1 e 1+2 obtêm igualmente correspondência com o Mapa de registar o orgão, onde se

lê: “P.ª flauta” Flautado de 12 tapado em ambas as mãos, aqui substituído na mão direita pela Flauta 12, e

“P.ª flauta mais forte” acrescentar aos anteriores o Flautado de 6 tapado em ambas as mãos, aqui

substituído na mão direita pela Flauta em 6. Cf. P-Ln s.c 535 Em 1951 foi construído o Teatro Micaelense nas ruínas do referido convento, sito ao Largo de S. João,

em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel. 536 P-PD, colmsm cx. 06/18/03. Não foram encontrados quaisquer dados biográficos sobre o compositor.

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Fig. 6.2 – Lamentação a Duo de Manoel Gaspar Berlarmino, frontispício da parte de órgão

De acordo com a análise apresentada no cap. V, Luciano Xavier dos Santos

(1734-1808) foi um dos compositores do Antigo Regime mais executado nos Açores,

sobretudo no contexto musical conventual.537 Nas suas obras, a maioria das quais

copiada na última década do século XVIII – época em que as mais importantes igrejas

conventuais de Ponta Delgada tinham órgãos de tipologia portuguesa tardo-setecentista

(ver cap. II.2), – está igualmente muito presente a alternância entre dois planos

dinâmicos distintos.

O único compositor e organista português do final Antigo Regime que até então

possui um estudo aprofundado sobre o uso da registação na sua obra para órgão foi José

Marques e Silva.538 A sua produção circulou nos Açores pelo menos até 1900, data que

consta num apógrafo da Missa em Si bemol maior para três vozes (TBB) e órgão

obrigado, guardado no arquivo da Igreja Matriz da Calheta em S. Jorge. 539 Também da

sua autoria conservam-se duas versões da Missa em Fá maior para quatro vozes (SATB)

537 Sobrevivem numerosos materiais da sua autoria em P-PD, colmsm, pelo que se depreende que era

executado nos conventos femininos de Ponta Delgada. 538 Ver João Vaz, “A obra para órgão...”, 2 vls., 2010 e do mesmo autor “Dynamics and Orchestral

Effects in Late Eighteenth-century Portuguese Organ Music: The Works of José Marques e Silva (1782-

1837) and the Organs of António Xavier Machado e Cerveira (1756-1828)”, pp. 157-172. 539 Neste apógrafo surgem exclusivamente as indicações de “F”, “P e “FF”. Segundo o catálogo das obras

de Frei José Marques e Silva anexo à tese de João Vaz as cópias dessa Missa incluem referências a

“Flautado”, “Cheio” e “Oboé”. Cf. op. cit., vol II,, p. 221.

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e órgão:540 P-PD (colmsm cx. 07/07/01) – em cujo frontispício da parte de órgão há

indicação do ano de 1836 e inscrições adicionadas a lápis que revelam a propriedade

(Confraria do Santíssimo da Igreja Matriz de Ponta Delgada e Jacinto Ignacio

Cabral),541 – e P-AHc (MM66),542 sem qualquer indicação adicional. Ambas estão

escritas para dois tenores, dois baixos e órgão, um efectivo não encontrado nas cópias

citadas por João Vaz.543

Além da habitual alternância entre forte e piano ou cheio e flautado, evidenciam-

se outras indicações de pormenor544 que merecem atenção precisamente porque são

recorrentes em apógrafos de outros compositores activos no final do Antigo Regime,

nomeadamente Marcos Portugal (1762-1830).545

M. E. M. D.

P[iano] Rabecão ou Oboé

Fagote Rabecão ou Oboé

Trompa Clarim

No caso concreto da Missa de Frei José Marques e Silva, deduz-se que tenha

sido executada nos órgãos da Igreja Matriz de Ponta Delgada e na Sé de Angra, dada a

localização dos apógrafos. Assumindo, de acordo com a data inserida num dos

apógrafos, que a sua execução nos Açores terá ocorrido a partir da década de quarenta

540 Cf. João Vaz, “A obra para órgão...”, vol. II, p. 216. 541 Não foram localizados os seus dados biográficos. No entanto, a sua identificação em alguns materiais

musicais, bem como algumas notas da imprensa, informam ter sido mestre de capela da Igreja Matriz de

Ponta Delgada entre aproximadamente as décadas de 1830 e 1870. 542 O facto dos dois apógrafos incluírem as mesmas indicações de registação leva a crer que um tenha

servido de base ao outro. 543 Cf. op. cit.,p. 216. Comparativamente ao apógrafo guardado em P-Ln FCR 198//35 verifica-se que os

materiais dos Açores apresentam maior número e rigor de indicações de registação, divergindo, no

entanto, na escrita de inúmeras partes, nomeadamente ao nível da posição de acordes. 544 Consideram-se registações de pormenor as não circunscritas à designação genérica de Cheio e Flautado,

e que indicam o nome específico do registo ou da família de registos a utilizar, como Fagote, oboé, Flauta,

Palhetas, entre outros. 545 Trata-se de outro compositor que faz parte dos cânones da música sacra nos Açores no final do século

XVIII e na centúria seguinte. Além do Te Deum em Ré maior já apontado no capítulo anterior, sobrevive

uma cópia da Missa em Fá maior para quatro vozes de Baixo e órgão (AIMPD, pasta 3), desta feita para

dois tenores, dois baixos e órgão, onde se multiplicam indicações de registação com combinações como

Flautado-Oboé, Trompas-Clarim, Flautado-Voz humana, Fagote-Voz humana, além das referências mais

comuns como Flautado, Cheio e Cheio com trombetaria. Verifica-se um vasto leque de diferenças ao

nível das indicações de registação desse apógrafo, quando comparado com o que se conserva em P-Ln

MM//240 (também disponível no endereço http://purl.pt.804), propriedade de Francisco António Norberto

dos Santos Pinto). Enquanto neste último se inclui apenas Kyrie e Gloria, no AIMPD sobrevivem as

restantes partes da Missa.

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do século XIX, o órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada era o que actualmente lá se

encontra (Machado e Cerveira, n.º 102, 1828) e o da Sé de Angra seria o já mencionado

instrumento de Peres Fontanes. Deste instrumento conhece-se apenas uma única

descrição feita com base na observação do instrumento em 1958 e que, justamente pelo

fraco domínio da organaria portuguesa por parte do seu autor, é aqui apresentada com a

respectiva salvaguarda.546 A mesma reserva adapta-se a outra descrição do mesmo

viajante, desta feita ao segundo órgão adquirido pela Sé de Angra em 1854, da autoria

de Silvestre Serrão e João Nicolau Ferreira e colocado no lado do Evangelho (ver cap.

III.2), onde seria igualmente viável a execução da Missa. Os planos fónicos destes

últimos dois instrumentos, ainda que não totalmente fidedignos, são aqui transcritos da

referida fonte (1 e 3), acrescentando-se o plano fónico do órgão da Igreja Matriz de

Ponta Delgada (2), a fim de sustentar as hipóteses apresentadas no decorrer deste

capítulo relativamente à realização de determinadas registações.

1. Igreja do Santíssimo Salvador do Mundo (Sé), Angra – Terceira

Joaquim António Peres Fontanes (atr.), s/d

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-?)

Flautado de 12 aberto

Flautado 12 tapado

Flautado de 12 aberto

Flautado 12 tapado

Flautado de 6 tapado Flautado de 6 tapado

Oitava real Oitava real

Dozena 12.ª

15 e 19.ª 15.ª, 19.ª e 22.ª

22.ª (?) Mistura imperial

Mistura imperial Vintedozena

Subsímbala Subsímbala

Símbala Símbala

Clarão Corneta real

Trombeta real Voz humana

Trompa de batalha

Fagote

Clarim

Clarineta

Acessórios: anulador de cheios + anulador de palhetas (?); Pedal com 12 ou 18 notas (?)

546 O próprio autor refere que algumas das etiquetas dos registos estavam praticamente ilegíveis dado o

seu estado de degradação. Cf. “Organs of two islands”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira,

Angra do Heroísmo, n.os 27 e 28, 1969-1970, p. 497. O autor descreve ainda outras características que não

são se coadunam com as dos órgãos de Peres Fontanes, e que são resultado de intervenções posteriores,

das quais se falará mais adiante.

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2. Igreja Matriz de São Sebastião, Ponta Delgada – S. Miguel

António Xavier Machado e Cerveira, nº 102, 1828,

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’)

Flautado de 12 aberto Flautado de 12 aberto

Flautado de 6 aberto Flauta travessa

Flautado de 6 tapado Flauta de Écho

Dozena (3v) Oitava real (2v)

Dozena e 19.ª (3v) Dozena e 19.ª (5v)

Quinzena Quinzena (3v)

Vintedozena (4v) Vintedozena (4v)

Clarão (5v) Corneta de cheio (5v )

Trombeta real Voz humana

Trompa de batalha Clarim de Écho

Clarim

Acessórios: anulador de cheios, anulador de palhetas e anulador de ecos

3. Igreja do Santíssimo Salvador do Mundo (Sé), Angra – Terceira

Joaquim Silvestre Serrão/João Nicolau Ferreira, 1854

Mão esquerda (C-c’) Mão direita (c#’-g’’’?)

Flautado de 12 aberto

Flautado 6 aberto

Flautado de 12 aberto

Flauta

Flautado 12 tapado Oitava real

Flautado de 6 tapado Dozena

Dozena Quinzena

Quinzena Dezanovena

Dezanovena Vintedozena

Vintedozena Cornetilha

Mistura Voz humana

Trompa real Oboé e trompeta (?)

Fagote/trombone (?)

[Trompa de batalha]

Clarim

Acessórios: não especificados; pedal com 12 notas

Acerca da descrição do plano fónico do órgão de Silvestre Serrão e João Nicolau

Ferreira convém clarificar algumas incongruências, a primeira das quais relativa à dupla

designação com que o autor descreve os registos de palheta (assinalados com um ponto

de interrogação). Os registos de palheta designados Trombone ou Trompeta são

desconhecidos nos órgãos de Peres Fontanes e Machado e Cerveira, quer no continente

quer nos Açores, tratando-se provavelmente das designações de Fagote para a mão

esquerda e Oboé para a mão direita, os quais configuram em repertório escrito para a Sé

de Angra, como se verá mais adiante. A segunda incongruência é a omissão de um

registo de Trompa de batalha (4') na mão esquerda (indicado com parêntesis recto),

cujos ressoadores são visíveis num dos registos fotográficos do instrumento (ver

capítulo II.2).

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Relativamente à Missa em Fá maior de Frei José Marque e Silva (Fig. 6.3),

sobressai primeiramente a ausência do registo de Rabecão ou Oboé nos órgãos acima

apresentados como 1 e 2. O tipo de frase onde se propõe o uso desses registos, logo no

início do Kyrie, ainda que curta, revela claramente a intenção de uma introdução

realizada pelo órgão com a melodia da mão direita destacada, à qual se segue a entrada

das vozes no terceiro compasso, precisamente onde há a indicação de Flautado, numa

textura acórdica associada ao acompanhamento das vozes.

Fig. 6.3 – Excerto do

Kyrie da Missa em Fá

maior de Frei José

Marques e Silva (P-PD colmsm, cx.

07/07/01)

Com base na análise da obra para órgão de Frei José Marques e Silva, João Vaz

sugere que o registo de Rabecão seja um registo de palheta da mão direita com função

solística, provavelmente de 24 palmos, embora não subsista com esse perfil em nenhum

dos instrumentos do século XVIII. 547 O facto de surgir na referida obra como opção

relativamente ao Oboé (um registo de ressoador curto normalmente de 12 palmos,

também com função solística), tende a confirmar o seu carácter solístico,

independentemente de ter 24 ou 12 palmos. Nos órgãos 1 e 2, quer o Rabecão quer o

Oboé seriam substituídos pelo Clarim de eco548 (Matriz de Ponta Delgada) e pela

Clarineta (Sé de Angra). A mesma indicação de Rabecão ou Oboé repete-se nos

compassos 12 a 14, desta feita com Fagote na mão esquerda, cuja ausência no órgão 2

547 Cf. op. cit., vol. I, p. 172. 548 Esta hipótese é corroborada por uma indicação de Silvestre Serrão no apógrafo da Antífona Tota

Pulchra (AIPSJ), onde aponta “oboé ou clarim d’eco”, tal como se verá adiante.

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deveria ser contornada com a presença da Trombeta real (palheta interior de 8’) por

duas razões: a única palheta exterior referente à mão esquerda no órgão da Matriz de

Ponta Delgada é uma Trompa de Batalha de 4’ que, além de fazer soar numa oitava

mais aguda da nota escrita – sobrepondo, assim, a linha da mão esquerda à melodia da

mão direita– detém um volume sonoro superior ao Clarim de eco.

No final do Gloria da mesma Missa há a indicação de “Trompa” para a mão

esquerda e de “Clarim” para a mão direita, uma combinação frequentemente encontrada

nos apógrafos existentes nos Açores e que, não obstante a generalidade das trompas

exteriores serem de 4' (o que não acontece no órgão da Igreja de S. José, por exemplo),

são registos timbricamente próximos. Nos instrumentos apresentados, a combinação

seria realizada com Trompa de batalha à esquerda e Clarim à direita, além dos registos

simples de 12 palmos. A entrada do “Cheio” (Fig. 6.4, 2.º sistema), com uma figuração

que insinua a permanência das palhetas, seria confortavelmente conseguida em todos os

instrumentos através do pedal de cheios. Esse mecanismo que anula as palhetas faz

parte da concepção original do órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada, e

provavelmente do órgão de Silvestre Serrão para a Sé de Angra, sendo que nos restantes

terá sido uma adição posterior.

Fig. 6.4 – Excerto do

Gloria da Missa em

Fá Maior de Frei José

Marques e Silva (P-PD colmsm, cx.

07/07/01)

A passagem do “Cheio” com palhetas para “Flautado”, que ocorre no 3.º

sistema, seria exequível exclusivamente no órgão 2, pelo menos até à década de

cinquenta do século XIX, devido não só ao pedal de cheios mas também ao pedal que

interfere com a corrediça das palhetas horizontais, nomeadamente Trompa e Clarim. No

esquema apresentado na Fig. 6.5, referente ao órgão do lado da Epístola da Sé de Angra

(plano fónico sinalizado com o n.º 1), consta um pedal para cada uma das palhetas

horizontais, além de dois pedais para tambores (não identificados como tal pelo autor do

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esquema) e o pedal anulador de cheios (que o autor identifica como “Mixtura imperial

& Oitava Real”).

Fig. 6.5 – Esquema de pedais do

órgão atribuído a Peres Fontanes

(Sé de Angra)549

Sistema similar foi introduzido no órgão da Igreja S. José, sendo registado por

David Cranmer por ocasião da sua visita ao órgão na década de oitenta (Fig. 6.6). 550

Fig. 6.6 – Esquema de

pedais do órgão de Peres

Fontanes, 1797 (S. José) Trompa de batalha Fagote Clarim Clarineta

Os pedais do lado direito anulavam as palhetas horizontais da mão direita,

Clarim e Clarineta, assim como os da esquerda actuavam sobre as palhetas horizontais

549 Esquema extraído do relato “Organs of two islands”, p. 496. 550 “Organs in the Azorean Archipelago”, Revista Arquipélago, Universidade dos Açores, 1988, pp. 149-

163. A imagem da figura 6.6 foi-me gentilmente cedida pelo Prof. Doutor David Cranmer.

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do lado esquerdo do teclado, Trompa de batalha e Fagote.551 Os pedais deslizantes

centrais (originais) destinam-se à anulação dos cheios (à direita) e ao efeito de tambor (à

esquerda). Através desses mecanismos e da própria estrutura do someiro, todas as

palhetas desse instrumento eram manuseadas por pedais, uma vez que a Trombeta real

faz parte do someiro de cheios e, como tal, depende do pedal de cheios.

Fig. 6.7 – Aspecto actual da consola do órgão

da Igreja de S. José (Ponta Delgada) Peres Fontanes, 1797

Na descrição de David Cranmer verifica-se que o órgão da Igreja de S. José

contemplava 56 notas (C-g’’’), a extensão do teclado exigida nas peças de Silvestre

Serrão. De acordo com o organeiro responsável pelo restauro do instrumento, realizado

em 1995, Dinarte Machado, as adições aqui elencadas reportam-se a uma intervenção de

Silvestre Serrão e de João Nicolau Ferreira no ano de 1856552 e, entendendo tratarem-se

de adaptações às exigências da época que não favoreciam o instrumento, o organeiro

551 O órgão da Epístola, na Basílica de Mafra, da autoria de Peres Fontanes (1807), tem também um

mecanismo para anular as palhetas horizontais, cuja introdução se deve, provavelmente, à intervenção

profunda que Machado e Cerveira efectuou em 1820. Cf. João Vaz, "The Six Organs in the Basilica of

Mafra: History, Restoration and Repertoire", in The Organ Yearbook, n.º 44, 2015, pp. 85-103. Os

restantes órgãos de grandes dimensões de Peres Fontanes nos Açores que aparentemente não sofreram

intervenções posteriores não contemplam esse mecanismo. 552 Cf. Inauguração do Órgão de Tubos da Igreja de São José – Integrada na Semana de São José 1995.

No livro de conta e despesa da Confraria do Santíssimo da paróquia de S. José (1840-1841) há registo de

uma afinação do órgão, no valor de 64$800, com data de 20 de Abril de 1866. Mesmo não tendo sido

encontrada prova documental da data avançada por Dinarte Machado, a sua proposta parece mais

verosímil.

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optou por eliminá-las por ocasião do restauro,553 devolvendo-o ao seu estado original.

Na Figura 6.7 apresenta-se a configuração actual da consola do órgão da Igreja de S.

José, onde são visíveis as emendas originadas pela supressão dos pedais, bem como a

redução da tessitura aguda do teclado segundo a concepção de Peres Fontanes, até ao Ré

sobreagudo.

Tendo em conta que Silvestre Serrão era organista da Igreja Matriz de Ponta

Delgada e que as suas composições eram igualmente executadas nas igrejas de S. José e

de S. Pedro em Ponta Delgada,554 assim como na Sé de Angra, é legítimo ponderar que

interveio nos instrumentos a que tinha fácil acesso com a intenção de os apetrechar com

os recursos que facilitassem a execução do seu repertório.

De acordo com os exemplos já descritos e também com os que se seguem

relativamente às Matinas de Sexta-Feira Santa, a presença desses pedais era fulcral para

uma execução íntegra da obra de Serrão.

Não obstante o registo de Voz humana surgir numa das possibilidades

apresentadas no Mapa de registar o orgão, juntamente com o Flautado 12 aberto da

mão direita e acompanhado pelos Flautados de 12 aberto e 12 tapado na mão esquerda,

a sua indicação no repertório em análise é esporádica, apresentando-se como solista

numa Missa de Marcos Portugal guardada no arquivo da Igreja Matriz de Ponta

Delgada. Surge igualmente com o Fagote à mão esquerda, um tipo de combinação

553 Cf. idem. Este é um exemplo da constante actualização do conceito de “património”, que depende do

grupo que o classifica e da sociedade onde se integra. Assim, as acções concernentes ao património

oscilam consoante o paradigma vigente. Cf. William Weber, “The History of Musical Canon” in Nicholas

Cook e Mark Everist (eds.), Rethinking Music, New York, Oxford University Press, 1999, p. 351. Na

perspectiva hodierna, onde a noção de património como preservação da concepção original está

totalmente obsoleta, os elementos resultantes da intervenção de Serrão seriam tomados como expressão

da identidade de uma época, coexistindo os elementos originais com os adicionados posteriormente. Seria

um exemplo de interferência na tradição, tal como aconteceu, por exemplo, com a intervenção de Pascoal

Oldovini no órgão da Sé de Faro, que foi preservada no restauro a que o instrumento foi sujeito na década

de sessenta do século XX. De acordo com a acepção de “tradição” de E. Shils, o processo desenvolvido

em torno dos órgãos portugueses nos Açores entre a década de oitenta do século XVIII e o final do século

XIX, afigura-se como uma tradição, na medida em que conjuga elementos essenciais com outros

elementos que se foram alterando. Cf. Edward Shils, Tradition, Chicago, The University of Chicago

Press, 1981, p. 14. Esta concepção aproxima-se da de Taruskin, o qual considera que as tradições

modificam, por natureza, o que transmitem, não tanto por intervenção da faculdade crítica mas por

interferência. Cf. Richard Taruskin, Text and Act: Essays on Music and Performance, Oxford, 1995, p.

182. 554 Sublinhe-se que esse instrumento da autoria de Silvestre Serrão e João Nicolau Ferreira (1858)

também integra um pedal para palhetas.

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225

desconhecida em Frei José Marques e Silva,555 por exemplo, mas cuja utilização é

corroborada por uma peça de autor anónimo guardada na BNP556 de finais do século

XVIII, e outra conservada P-PD (colmsm, cx. 10/127/03), também de autor anónimo,

intitulada “Intertenimto”.

Estes e outros exemplos corroboram uma prática de registação enformada no

Mapa de registar o órgão e exequível nos instrumentos de Peres Fontanes e Machado e

Cerveira. Aliás, a necessidade de se proceder a ligeiras adaptações consoante o órgão

pressupõe que os compositores escreviam para um determinado instrumento, regra geral

onde eram organistas. O mesmo já não se verifica, por exemplo, com Francisco

Norberto dos Santos Pinto (1815-1860), em cujo apógrafo do Credo, Agnus Dei e

Sanctus em Fá maior, que se conserva no arquivo da Igreja Matriz das Velas em S.

Jorge com data de cópia de 1849, constam apenas indicações de forte (“f”) e piano

(“p”).557 Paradoxalmente, António José Soares (1783-1865), um dos últimos mestres do

Seminário da Patriarcal, com ampla produção sacra que também circulou nos Açores até

à última década do século XIX, tem alguns apógrafos com indicações de pormenor e

outros onde se fixam apenas os tradicionais dois planos sonoros de forte e piano.558

A progressiva ausência de registações de pormenor no repertório para órgão ao

longo do século XIX pode ter a ver com a diminuição de organistas/compositores

555 Ver J. Vaz, op. cit., pp. 168 e 169. 556 Cf. idem. 557 As mesmas indicações surgem em P-Ln MM 223//5. 558 No arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada encontra-se um apógrafo do Credo a 4 concertado com

acompto de Orgaõ, título consoante a cópia de P-Ln (cota M.M. 323//7), no qual surgem registações de

pormenor como Clarineta e Fagote. Por seu turno, na Missa “4 vozes concertada” em Si bemol maior que

se conserva no arquivo IMCSJ, as sugestões de registação resumem-se aos planos dinâmicos de forte e

piano. No autógrafo consultado em P-Ln (M.M. 345//1) surgem as indicações de Flauta, Cheio e

Flaut[ado] e constata-se que aquela versão da Calheta de S. Jorge não respeita todas as mudanças de

registação. Este último procedimento é igualmente visível numa cópia de 1855 do Credo em Mi bemol

maior (Ver P-Ln “Credo /Sanctus e Agnus Dei / a 4 vozes, orgão e pequeno / instrumental /Do Snr.

Antonio José Soares”, cota: CN 261) depositada no arquivo do Seminário de Angra. Ainda no arquivo

IMCSJ sobrevive mais uma outra Missa de Soares, em Lá maior, identificada no frontispício com

anotações de diferentes punhos como sendo “2.ª Missa a 4 Concertada (Missa grande)” Esta missa terá

sido executada por ocasião da Festividade de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de S. José em Ponta

Delgada, no ano de 1855 (Cf. A Aurora dos Açores, 19 de Dezembro de 1855, n.º 77), onde seria possível

concretizar todas as indicações de registação grafadas no apógrafo (iguais, por seu turno, ao apógrafo P-

Ln M.M. 281): Cheio, Flautado, Flautado-Clarineta, Fagote-Clarinetta, Fagote-Corneta (apesar do registo

de Corneta proliferar na organaria portuguesa de finais de setecentos, existindo inclusivamente obras que

atestam a sua utilização no término daquela centúria, não é comum encontrar-se a sua utilização nas obras

para órgão e vozes no séulo XIX, sendo o referido exemplo uma excepção). Cf. João Vaz, “A obra para

órgão...”, vol. I, p. 171. Com os respectivos ajustes, a referida Missa de António José Soares também

seria exequível no órgão da Igreja Matriz da Calheta, embora o âmbito exigido ultrapasse o do teclado.

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profissionais originada pelo encerramento do Seminário da Patriarcal e pela extinção

das ordens religiosas, dois importantíssimos centros pedagógicos no domínio

organístico. Com o gradual desaparecimento da função de organista titular de

determinado instrumento, a composição passou a destinar-se a qualquer órgão.559

Neste sentido, Joaquim Silvestre Serrão é uma referência paradigmática porque

as registações da sua produção sacra para órgão e vozes foram pensadas para

instrumentos específicos. No repertório que sobrevive da sua autoria, seja apógrafo ou

autógrafo, é comum o uso de dois níveis sonoros contrastantes, umas vezes descrito

como “Flautado” e “Cheio” e outras como “p” e “f”, obtido através da acção do pedal

de cheios.

Fig. 6.8 – Autógrafo da Lamentação de Sexta-Feira Santa (Alto e Órgão) de Silvestre Serrão

(AIMPD)

A “Lamentação” da Fig. 6.8 terá sido escrita para uma das professas do

Convento da Esperança em Ponta Delgada (ver cap. V.3.2). De acordo com o Plano por

onde se devem seguir para armar o Orgão (Anexo 3), o referido convento dispunha de

um instrumento com pedal anulador de cheios à época da composição daquela

Lamentação.

559 Indique-se como exemplo a “Fantasia para Órgão” de Joaquim Casimiro Júnior (P-Ln/A.M. 441),

editada por José Lourenço em Ava Musical Editions, 2011, na qual não consta qualquer indicação de

registação.

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Na já mencionada descrição dos órgãos da Sé de Angra, o plano fónico do órgão

de Silvestre Serrão inclui a indicação de cinco níveis dinâmicos (Tabela 6.2):560

Nív

eis

din

âmic

os

Mão esquerda Mão direita

Flautados 12 aberto + 6 tapado + 12 tapado 12 aberto + Flauta

Meio Cheio 12 aberto + 6 tapado + 12 tapado

+ 6 aberto + 12.ª + 15ª

12 aberto + Flauta + oitava real

+ 12ª + 15ª

Todo o Cheio 12 aberto + 6 tapado + 12 tapado

+ 6 aberto +12ª + 15ª + 19ª + 22ª

+ Mistura

12 aberto + Flauta + oitava real

+ 12ª + 15ª + 19ª + 22ª

+ Cornetilha

Palhetarias Flautados + Trompa real + Fagote Flautados + Clarim + Oboé

Tabela 6.2 – Níveis dinâmicos projectados por Silvestre Serrão no órgão da Sé de Angra

O Flautado proposto por Serrão abrange todos os registos simples existentes no

órgão. Apesar de apresentar dois tipos de cheios, essa indicação não se traduz nas suas

obras, pelo que se entende que o tipo de cheio ficaria ao critério do organista consoante

a circunstância e a textura das vozes. Além disso, a mudança entre um e outro cheio só

seria possível através de um processo manual, o que implicaria ter tempo suficiente para

puxar três registos de cada lado da consola, ou então dispor de ajudantes para o fazer.

Na antífona Tota Pulchra, escrita para a cerimónia de celebração do dogma da

Imaculada Conceição, na Sé de Angra, é interessante verificar a opção de “oboé ou

clarim d’ecos”, evidenciando-se a preocupação de Serrão em contemplar as

características dos instrumentos onde seria interpretada: o da Matriz de Ponta Delgada,

que dispunha do registo de Clarim d’eco, e o órgão da sua autoria para a Sé de Angra,

que aparentemente integrava o registo de oboé. No órgão de S. José, por exemplo, seria

substituído pelo registo de Clarineta, também um registo de ressoador curto,

posicionado na fachada. Outro dado adicional de relevo é o facto daquela mesma

Antífona ter sido interpretada no órgão Peres Fontanes da igreja do Convento de S.

Gonçalo (Angra), que também possui um registo de oboé na mão direita.561

Outro exemplo da relação entre registação e instrumento reside nas Matinas da

Imaculada Conceição (novo ofício),562 também escritas para a Sé de Angra, onde

560 “Flautados”, “Meio Cheio”, “Aumentos do Cheio”, “Todo o Cheio” e “Palhetarias”. Analisado o

esquema, constatou-se que a indicação de “Aumentos do Cheio” corresponde a “Todo o Cheio”, pelo que

se optou por eliminar a primeira. Cf. “Organs of two islands”, p. 506. 561 A Terceira, 22 de Dezembro de 1860. 562 AIMPD.

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constam registações de pormenor como Trompas, Clarins, Fagote e Oboé, registos

existentes no órgão de Silvestre Serrão daquela catedral e perfeitamente ajustáveis ao

outro órgão lá existente (utilizando a Clarineta em substituição do Oboé).

Todavia, a indicação de um registo de Rabecão no apógrafo das Matinas de S.

Sebastião, inexistente nos planos fónicos dos órgãos que se conhece, coloca em causa,

por um lado, a possibilidade de a partitura ter sido integralmente composta para o orago

da Igreja Matriz de Ponta Delgada (tal como mencionado no capítulo V.3.2), e

corrobora, por outro, a afirmação avançada pela imprensa periódica563 de que alguns

responsórios seriam arranjos de peças de José Marques e Silva, um compositor que,

como visto anteriormente, utilizava amiúde o registo de Rabecão.

Numa outra obra para solista e coro (Ex. 6.1) Serrão define três níveis sonoros

distintos e sucessivos num curto espaço, “Palhetarias e cheio”, “cheio só” e “flautado

brando”, os quais remetem, à partida, para fortíssimo, forte e pianíssimo,

respectivamente, embora se verifique apenas um “F” junto à indicação de “Palhetarias e

cheio”.

Ex. 6.1 – Pe. Silvestre Serrão, Versículo para o Intróito da Missa de um mártir não Pontífice

(solo de tenor, coros e órgão obrigado, apógrafo)

563 A Persuasão, 21 de Março de 1877, n.º 792, ano 16. A mesma informação consta em Ayres Jácome

Corrêa (dir.), “O Padre Joaquim Silvestre Serrão e a Semana Santa”, p. 1145, e ainda em Teófilo de

Braga, “Joaquim Silvestre Serrão e a Música Religiosa em Portugal”, p. 58.

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Assumindo que a peça apresentada no Ex. 6.1 tenha sido executada na Igreja

Matriz de Ponta Delgada, na Sé de Angra ou em S. José, a mudança entre aqueles três

planos seria obtida através dos passos seguintes, de acordo com os níveis dinâmicos

projectados por Serrão e as características daqueles órgãos (Tabela 6.3).

Palhetarias e cheio Palhetas interiores e exteriores + Cheio + fundos (Flautado de 12 aberto em

ambas as mãos + 6 aberto na mão esquerda (ou 12 tapado no caso de existir) e

Flauta Travessa na mão direita;

Cheio só Accionar o pedal que anula as palhetas horizontais;

Flautado brando564 Accionar o pedal que anula os cheios, retirar os Flautados de 12 aberto nas

duas mãos e permanecer apenas com a Flauta travessa na mão direita e o

Flautado 12 tapado na mão esquerda.565

Tabela 6.3 – Realização de planos de registação

A indicação de “Palhetarias e cheio” pressupõe, portanto, o uso do Tutti do

órgão (com excepção da Flauta de eco, no caso do órgão da Igreja Matriz de Ponta

Delgada). Tratando-se de uma introdução para órgão, o cheio indicado poderia

corresponder a “Todo o Cheio” descrito na Tabela 6.2. Note-se que a mudança para o

Flautado brando é precedida de pausas, de forma a que o organista consiga fechar os

registos de 12 aberto nas duas mãos. Neste caso, ficaria apenas a Flauta travessa na mão

direita acompanhada pelo Flautado 12 tapado na mão esquerda (que teria de ser

substituído pelo Flautado 12 aberto no órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada). Para a

mudança entre “Palhetarias e cheio” e “Cheio só” bastaria accionar o pedal anulador de

palhetas, sem auxílio das mãos do organista.

564 Este nível dinâmico surge igualmente nas Matinas de Sexta-Feira Santa da autoria de Silvestre Serrão,

como se verá mais adiante. 565 A realização do Flautado brando será aprofundada no sub-capítulo seguinte.

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VI. 1. 2 As Matinas de Sexta-Feira Santa de Silvestre Serrão

Segundo a informação contida na advertência que acompanha a partitura dos

Responsórios de Sexta-Feira Santa de Joaquim Silvestre Serrão (Anexo 5), o

compositor foi incumbido pela Confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de

Ponta Delgada de fazer música para os responsórios dos Ofícios Divinos do Tríduo

Pascal: Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira Santa e Sábado Santo. As Matinas de Sexta-

Feira Santa, que se cantam em Quinta-feira Santa, foram as primeiras a serem escritas,

em 1848, e a sua partitura alógrafa566 foi feita em 1849. O tipo de papel da partitura

(ostentando a marca de água GRILLO: G P P) foi utilizado entre 1836 e 1854,

precisamente o período em que Serrão as compôs.567 No final da partitura encontram-se

alguns fólios em branco, sendo que um deles está preenchido com uma adenda feita por

Silvestre Serrão (anexo) quando já se encontrava doente. Consta de uma introdução com

órgão às Matinas quando estas não eram precedidas pela Lamentação cantada.

A escolha desta obra como paradigma da música sacra açoriana prende-se

essencialmente com a proeminência que a envolve, desde logo porque foi uma obra

encomendada para a Semana Santa, festa de destaque no calendário da Igreja Católica,

resultando uma partitura de grandes dimensões; depois devido às notícias sobre a sua

recorrente execução em inúmeras igrejas açorianas; por último devido à multiplicidade

de indicações de registação que contém.

566 Esta constatação resultou da análise dos manuscritos assinados por Silvestre Serrão (indicados abaixo

com as letras A, B, C e D), na qual se consideraram como elementos de comparação o grafismo das

claves, a posição das hastes, desenho das notas, das pausas e dos acidentes, assim como de algumas letras

(r, p, m, s, b, F e). A – Lamentação para voz solista (Alto) e órgão a ser cantada imediatamente antes do

primeiro responsório das Matinas de Sexta-Feira Santa (correspondente à primeira lição do ofício de

Matinas) – partitura truncada com identificação no centro superior de J. S. Serrão; B – Sequencia do

Espírito Sancto a 4tro/Por / J. S. Serrão – partes de vozes (SATB), partes instrumentais (Trombone,

clarinetes, violino I e II), parte de órgão obrigado com uma caligrafia distinta das restantes partes; C –

Para um Martyr / Solo de Tenor, Coros e / Orgão obrigado / por Joaquim Silvestre Serrão – partitura

com secções rasuradas; D – Motêtto / Prª se cantar na Festividade / De Sancta Barbara /Extrahido do

Resp.º de S.ª Filomena / Por seu autor / Joaqm Silvestre Serrão – partes de vozes (SATB) com

identificação de “Por J. S. Serrão” no canto superior direito em cada primeira folha das partes, parte de

órgão obrigado, manuscrito com muitas manchas de humidade. 567 Cf. António José Marques, A obra religiosa de Marcos António Portugal (1762-1830): catálogo

temático, crítica de fontes e de texto, proposta de cronologia, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal,

Cento de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2012, p. 971 (apêndice B – CD ROM).

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Trata-se de uma obra prolixa para SATB, coro e órgão obrigado e

estruturalmente obedece aos cânones litúrgicos: três nocturnos com três responsórios

para cada um (total de nove responsórios), sendo que cada um dos responsórios é

constituído por três partes – corpo, presa e verso. Nos responsórios n.º 3, 6 e 9 há lugar

à repetição do corpo do responsório. No aditamento que Serrão apresenta no final da

partitura, consta uma breve explicação àquelas três partes: “As três divisões de que se

compõem cada hum dos Resp.os que saõ; Resp.º ou Entrada; Asterisco ou Preza; e

Verso, e que servem, a 1.ª como de Introducção, a 2.ª como de Final, e a 3.ª para se

fazerem as Peças mais concertantes, e aonde de ordinário se fazem brilhar qualquer voz,

ou vozes em Solo, Duetto, Tercetto (...)”.

Fig. 6.9 – Matinas de São Sebastião: excerto do 1.º Responsório (AIMCSJ, apógrafo de

Manuel Cunha Azevedo, 1881)

Fig. 6.10 – Matinas de Quinta-Feira Santa: excerto do 1.º Responsório

(AIMCSJ, apógrafo de 1917)

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Fig. 6.11 – Matinas de Sábado Santo (P-PD 39 RES)

Reconhecendo, à partida, a dificuldade em reunir os meios necessários para a

sua interpretação integral – quer pela morosidade, quer pelos recursos técnicos que

exige –, Serrão sugere na advertência inicial a omissão de inúmeras secções através de

um sistema de sinalização na própria partitura. Ou seja, cria uma segunda versão da

mesma partitura, onde elimina todos os solos de órgão, secções do corpo dos

responsórios, das presas e dos versos, reduzindo substancialmente a dimensão da obra.

Esta metodologia de abreviamento nem sempre resulta numa simplificação para os

intérpretes, pois no caso do organista, cuja parte exige grande agilidade técnica, a

supressão dos solos e de outras secções reduz somente a quantidade de música a

executar, permanecendo o mesmo nível de dificuldade.

Deduz-se que a concepção de uma obra nesses moldes, ímpar no contexto

açoriano, prende-se exclusivamente com o facto de ter sido uma encomenda feita

directamente a Serrão, por detrás da qual se pretendia que mostrasse um nível de

proficiência que atraísse o público açoriano, e que justificasse o seu lugar como

compositor e organista ao serviço da segunda mais importante igreja dos Açores, a

Matriz de S. Sebastião em Ponta Delgada.

Ao comparar a dificuldade técnica das partes iniciais do órgão nos primeiros

responsórios das Matinas de S. Sebastião (Fig. 6.9), apresentados pela primeira vez na

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Igreja Matriz de Ponta Delgada em 1844,568 das Matinas de Quinta-Feira Santa (Fig.

6.10) e de Sábado Santo (Fig. 6.11) com a parte homóloga das Matinas de Sexta-Feira

Santa, é notória não só um tipo de escrita diferente entre as Matinas de S. Sebastião e as

do Tríduo Pascal, como é evidente a sobrecarga técnica depositada nestas últimas.

568 O Monitor, 24 de Janeiro de 1844.

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Ex. 6.2 – Matinas de Sexta-Feira Santa:

Presa do 2.º Responsório “Et omnis terra” (fl. 31, cc. 51-59)

A convencional alternância entre dois planos dinâmicos contrastantes, “Forte” e

“Piano” (Cheio e Flautado), é uma constante nas Matinas de Sexta-Feira Santa, que

corresponde às cambiantes dinâmicas das vozes. Veja-se o Ex. 6.2, onde o órgão

acompanha com o Cheio a entrada em forte do coro (cc. 51) que canta “et omnis terra”

numa textura homofónica e em valores longos, passando depois para piano (cc. 54) no

texto “tremuit”, com a execução de um mordente reiterado escrito por extenso e

reiterado por todos os intervenientes – um recurso ao efeito de tremolo para transmitir a

sensação física de “tremer”. Aliás, esse efeito é anunciado desde o início da secção

(presa do 2.º responsório) num ambiente especialmente sombrio, com o órgão a solo na

tessitura mais grave do teclado e ainda com a presença dos tambores a que Serrão

designou de “Pedal do Zabumba, ou Timbáles”.

Após a entrada sucessiva de cada uma das quatro vozes (Ex. 6.2), sinalizada com

“piano”, surge novamente o tutti sobre o texto “et omnis terra” com indicação de “forte”

(cc. 58), tendo o órgão de proceder à alteração dinâmica no espaço entre duas colcheias,

através do pedal anulador de cheios. Esta alternância é igualmente utilizada em secções

solísticas do órgão, para produzir o efeito orquestral entre o tutti da orquestra e o

instrumento solista, numa linguagem declaradamente concertante (Ex. 6.3).

Nas Matinas de Sexta-Feira também surgem os três níveis dinâmicos distintos já

sinalizados no Versículo para o Intróito da missa de um mártir não pontífice: “Cheio”

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para o coro em Tutti, “Flaut[ado]” para o órgão solo e “Flau.do brando” para a entrada do

solista (Ex. 6.4).

Ex. 6.3 – Verso do 2.º Responsório “Petrae scissae” (fl. 38, cc. 1-3)

Ex. 6.4 – Corpo do 1.º Responsório “Omnis amici mei” (fl. 2, cc. 3-5)

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Ex. 6.5 – Corpo do 5.º Responsório “Tenebrae factae sunt” (fl. 120, cc.1-2)

No órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada, o Flautado brando seria obtido

através da Flauta travessa na mão direita e do Flautado 12 aberto à esquerda (que se

apresenta com tubos tapados até ao F#). Segundo a imprensa da época, as Matinas

foram também executadas no órgão Peres Fontanes da Igreja de S. José, onde o

Flautado brando seria obtido através da Flauta travessa da mão direita e do Flautado 12

tapado à mão esquerda. Há também notícia da sua execução no órgão da Igreja Matriz

da Calheta de S. Jorge,569 no qual, dada a exiguidade de registos, a única forma de

diferenciar o Flautado do Flautado brando – tendo em conta que o instrumento não

possui registos principais de 8’ – seria excluir a Flauta em 6 da mão direita e o Flautado

6 tapado da mão esquerda, permanecendo a Flauta em 12 (mão direita) e flautado 12

tapado (mão esquerda). Note-se, porém, que todas as indicações de Flautado brando são

precedidas ou sucedidas por pausas, permitindo ao organista ter o tempo necessário para

acrescentar ou retirar os restantes registos de fundo.

No Ex. 6.5 transparece a intenção de Serrão em criar o ambiente tenebroso

adequado ao texto Tenebrae factae sunt, para o qual contribuem outros elementos como

a tonalidade de Fá menor, o andamento Grave, o trilo longo sobre o acorde inicial do

órgão e a tessitura da escrita do órgão na região média e grave do teclado.

569 No ano de 1884. Cf. Azevedo da Cunha, op. cit., pp. 453-455.

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Ex. 6.6 – Verso do 1.º Responsório “Inter inimiquos” (fl. 12, cc.1-4)

Segundo o Mapa de registar o orgão, o registo de Flauta assumia também uma

função solística,570 surgindo nos órgãos dos Açores frequentemente sob diferentes

designações. Na obra em análise, a Flauta surge como acompanhamento ao Fagote, em

secções sem intervenção vocal ou com apenas duas vozes. No Ex. 6.6 o Fagote executa

acordes arpejados que fixam a harmonia do trecho, sem nunca ultrapassar o Dó central

(a partir do qual já passaria a soar somente a Flauta graças ao sistema de teclado

partido).

No entanto, nas secções com o mesmo tipo de escrita por parte do Fagote mas

com a presença das vozes, a Flauta é substituída pelo Flautado no acompanhamento do

Fagote, um registo com mais corpo (Ex. 6.7).

Ex. 6.7 – Corpo do 3.º Responsório (fl. 54, cc. 10-14)

O Flautado surge ainda como acompanhador de uma linha mais melódica por

parte do Fagote (Ex. 6.8), pelo que a escolha entre o registo de Flauta e Flautado parece

570 Cf. João Vaz, “A obra para órgão...”, vol, I, p. 167.

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depender exclusivamente da presença ou não das vozes, e, por inerência da função

solística assumida pela mão direita.

Ex. 6.8 – Verso do 2.º Responsório “Sepivi te et lapides” (fl. 76, cc. 110-114)

Estranhamente, o registo de Fagote – quase sempre presente nos instrumentos da

segunda fase – não faz parte do plano fónico do órgão de Machado e Cerveira da Igreja

Matriz de Ponta Delgada (assim como do órgão do Convento de S. Francisco, em

Angra, de 1788). Das múltiplas justificações para Silvestre Serrão o ter incluído numa

partitura destinada a um órgão que não dispõe do registo, a que se afigura mais óbvia

parece ter a ver com o hábito de escrever para Fagote, o qual existia em todos os outros

órgãos que Serrão contactava. Acreditando que a sua partitura seria executada em várias

igrejas, Serrão terá optado por deixar registada a indicação de Fagote.

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Ex. 6.9 – Corpo do 1.º Responsório “ Omnes amici mei” (fl. 2, cc.12-13)

Silvestre Serrão utiliza pontualmente os registos de eco que, nos Açores, são

uma característica exclusiva do órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada: Flauta de eco

e Clarim de eco. Quando assinala “ecos” parece significar o uso simultâneo daqueles

dois registos, porquanto a linha melódica surge sozinha, com um tipo de figuração

rítmica que remete para uma sonoridade em segundo plano, como um som limpo,

incisivo mas distante, justamente com efeito de eco, obtido pela localização da tubaria

na rectaguarda da caixa (Ex. 6.9).

Por outro lado, a indicação de “Flautado nos ecos” sugere a utilização da Flauta

de eco. Tendo em conta o carácter de efeito que esse registo detém, o compositor

escreve a parte de órgão explorando sobretudo a tessitura mais aguda do teclado,

invocando um ambiente etéreo e delicado para iniciar a presa do 5.º Responsório (Ex.

6.10). Nesta mesma secção destaca-se a forma como se desenvolve o texto “Et inclinato

capite, emisit spiritum”, numa textura polifónica exclusivamente vocal, cabendo ao

órgão a introdução inicial e uma curta intervenção a solo com as mesmas características

no final da presa.

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Ex. 6.10 – Presa do 5.º Responsório “Et inclinato capite” (fl. 124, cc. 1-5)

Da mesma forma, a referência a “Clarim nos ecos” reporta-se ao uso do “Clarim

de Écho”. O Ex. 6.11 é ilustrativo da variedade de efeitos que se podem obter em

apenas quatro compassos, conseguidos sem qualquer esforço adicional do organista: à

registação inicial de Fagote com Clarim, acciona-se o pedal de cheios no segundo tempo

do segundo compasso, sendo que na pausa imediatamente a seguir o organista torna a

fechar o pedal de cheios e acciona o pedal de ecos, voltando a abrir o pedal de cheios no

último compasso.

Ex. 6.11 – Verso do 4.º Responsório “Tamquam ad Latronem” (fl. 111, cc. 82-85)

Os registos de palhetas são um recurso muito comum nestas Matinas de Sexta-

Feira Santa, utilizados em diferentes combinações consoante o efeito pretendido. A

terminologia “trombetas” está normalmente associada ao uso das palhetas dispostas na

fachada em posição horizontal, pelo que a indicação de “Trombetas”571 para uma

intervenção a solo do órgão incluiria os registos de Trompa de batalha à esquerda e do

Clarim na mão direita (Ex. 6.12).

571 Surge igualmente a indicação de “Trombetarias” (ver início do 3.º Responsório), remetendo para a

utilização dos registos já mencionados.

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241

Ex. 6.12 – Presa do 2.º Responsório “Et omnis terra tremuit” (fl. 29, cc. 26-28)

Aqui se nota o propósito de criar o efeito de uma chamada militar feita por

instrumentos de sopro de metal, através de uma textura homorrítmica com oitavas

paralelas, que exploram as quatro oitavas e meia do âmbito do teclado.

Dado o tipo de escrita que acompanha a referência “Trompas e Clarins” no

início do 4.º Responsório, e com base numa análise semântica das designações e

respectivas circunstâncias da sua aplicação, parece evidente que se propõe o uso de

todos os registos de palheta disponíveis no órgão da Igreja Matriz de Ponta Delgada:

Trompa de batalha e Trombeta real na mão esquerda, Clarim e Clarim de eco na mão

direita (Ex. 6.13).

Ex. 6.13 – Corpo do 4.º Responsório “Tamquam ad Latronem” (fl. 86 cc. 1-6)

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242

Por sua vez, no órgão da Igreja de S. José, utilizar-se-iam todas as palhetas da

mão esquerda excepto o Fagote, enquanto na mão direita se integrariam as três palhetas

existentes: Trombeta real (interior), Clarim e Clarineta (exteriores).

Outra passagem que explora a combinação entre registos de palheta e cheios,

também numa textura acórdica e vertical muito associada ao uso de palhetas, é o início

do verso do 4.º Responsório (Ex. 6.14), onde as palhetas horizontais se juntam ao

“Cheio” criando um ambiente de invocação militar. Aqui torna-se evidente que o termo

"Trombetaria" alude aos registos de palheta exteriores, já utilizadas nos compassos

imediatamente anteriores.

A entrada do Cheio na última semicolcheia do primeiro tempo dos compassos 2

e 4 (Ex. 6.14) é obtida através da acção do pedal de cheios para reforçar o efeito de

fortíssimo no acorde de quatro sons sobre a dominante. A esta exuberante introdução do

órgão sucede a entrada dos sopranos, para a qual o organista recorre não só ao pedal

anulador de cheios mas também ao das palhetas (horizontais) para acompanhar apenas

com o Flautado. A interposição do “Cheio” nas sonoridades com palhetas é uma prática

usual pelo menos desde os finais do século XVIII.572 Nesta obra, esse tipo de

combinação ocorre múltiplas vezes, predominantemente em momentos onde o órgão se

apresenta a solo, transparecendo assim o efeito orquestral.

Ex. 6.14 – Verso do 4.º Responsório (fl. 106, cc. 1-5)

572 Cf. João Vaz, “A obra para órgão de Fr. José Marques e Silva...”, vol. I, p. 164.

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243

Todas as obras de Silvestre Serrão denotam a importância que o compositor

atribui ao órgão, confiando-lhe inúmeras passagens a solo, com especial cuidado na

exploração tímbrica e dinâmica através do uso da registação, o recurso idiossincrático

do órgão enquanto elemento concertante. Serrão utiliza todo o potencial sonoro de cada

instrumento, com excepção do registo de Voz humana, que nunca surge mencionado na

sua obra, assim como o de Corneta.

A dimensão concertante perpassa toda a produção sacra de Silvestre Serrão,

numa constante alternância entre o Tutti de orquestra e a intervenção do instrumento

solista, com a respectiva adequação do tipo de textura, articulação e dinâmica. Estes

recursos/mecanismos emergem com maior ou menor ênfase consoante o significado do

texto interpretado pelas vozes, pelo que se nota a preocupação do compositor com a

relação entre o texto e a música. Estas Matinas de Silvestre Serrão reflectem claramente

a influência musical que recebera na sua formação, com figuras como José Marques e

Silva, Marcos Portugal, João José Baldi e António José Soares. O seu estilo musical

assume um forte pendor operático, por isso Serrão se afigura como um epígono da

escola que caracterizou a música no Portugal de oitocentos, sacra e profana.

Estilisticamente, as obras de Serrão baseiam-se no estilo operático italiano, e

estruturalmente obedecem aos cânones litúrgicos, reflectindo, simultaneamente, a

influência do piano na formação dos organistas da época. Elementos característicos do

idioma pianístico, como movimentos de escalas extensas e rápidas, intervalos melódicos

paralelos de terceira, sexta e oitava, saltos melódicos, acordes repetidos ou quebrados,

fazem parte de uma escrita tendencialmente complexa utilizada por Serrão. Na verdade,

a conciliação das técnicas de piano e órgão era uma prática comum na formação dos

organistas do século XIX, graças à importância que o primeiro assumiu no século XVIII

e que acabou por influenciar a escrita para órgão. Portugal não seria excepção, tal como

explica João Vaz acerca da obra para órgão de Frei José Marques e Silva, pois, de uma

forma mais ou menos acentuada, a literatura para órgão em toda a Europa do século

XIX transparece aquela dupla formação.573

573 Cf. op. cit., pp. 78 a 80. Aquela dupla formação transparece em inúmeros compositores, como por

exemplo, F. Mendelssohn Bartholdy (nas suas seis sonatas para órgão), Franz Liszt (ex. Prelúdio e Fuga

BACH) e diversos compositores franceses, particularmente César Franck.

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244

Considerações finais

Nos Açores, a presença do órgão remonta ao século XVI, sempre e

exclusivamente no contexto sacro. As casas monásticas assumiram, desde então, uma

sólida função na sociedade açoriana e contribuíram sobremaneira para a aquisição de

instrumentos e respectiva actividade organística. A par delas, a Sé de Angra, sede da

diocese, e as igrejas matriciais das várias ilhas, às quais se juntariam as restantes igrejas,

também promoveram activamente a presença do órgão. As múltiplas notícias sobre

órgãos desde o século XVI até ao final do século XVIII, e a presença de um

representativo núcleo de instrumentos construídos entre os finais do século XVIII e o

final do século XIX, são indícios inequívocos de constantes transformações quer ao

nível da música sacra quer no contexto da própria organaria. Essa actividade adveio da

importância que a Igreja açoriana atribuía ao órgão, a mesma que se verificou no

continente até à secularização. A circulação de elementos da Igreja, quer seculares quer

regulares, entre os Açores e o continente, terá sido um dos aspectos promotores da

instalação de órgãos no arquipélago. Além disso, a posição geográfica dos Açores

permitia um acompanhamento próximo às tendências ideológicas e culturais do século

XIX.

A importação de órgãos dos dois maiores organeiros portugueses no final de

setecentos – Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira –

traduz simultaneamente a importância da Igreja nos Açores e a proximidade às

tendências estético-musicais do continente, e surge numa época economicamente

favorável nos Açores. Os lucros do “ciclo da laranja” (1780-1880) proporcionaram um

maior poder de compra aos patronos das igrejas, conventos, irmandades e confrarias,

que se repercutiu na aquisição de inúmeros instrumentos, alguns deles de grandes

dimensões e com uma linguagem decorativa rica.

Mesmo após a secularização, a Igreja Católica continuou a ser um dos pilares da

sociedade açoriana. No período da monarquia constitucional, o arquipélago foi a única

região do país que prosseguiu com a construção regular de novos instrumentos. No

entanto, dada a ausência de construtores de referência no continente, aqueles novos

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245

instrumentos resultaram do trabalho de construtores maioritariamente residentes nas

ilhas (na maioria dos casos sem formação específica no campo da organaria), tendo

como modelo os exemplares de Peres Fontanes e de Machado e Cerveira. A figura

basilar deste processo foi Joaquim Silvestre Serrão, em cujo percurso no continente

contactou com organistas e compositores de relevo no panorama organístico do final do

Antigo Regime, nomeadamente o organista e compositor Frei José Marques e Silva ou o

organeiro António Xavier Machado e Cerveira. Além de ter sido o grande dinamizador

da música sacra nos Açores, Silvestre Serrão foi organista e, com a colaboração de um

carpinteiro local, João Nicolau Ferreira, dedicou-se igualmente à actividade organeira.

Silvestre Serrão foi o mestre de João Nicolau Ferreira e, directa ou indirectamente, o

estímulo para Tomé Gregório de Lacerda, Nicolau António Ferreira, Francisco Botelho

de Medeiros e Manuel de Sousa se dedicarem à arte da construção de órgãos.

Não obstante o cenário económico se ter degradado a partir da década de

sessenta do século XIX, na sequência do decréscimo da cultura e exportação da laranja

– resultando em instrumentos de dimensões e decoração mais modestas do que os de

Peres Fontanes e Machado e Cerveira – a nova vaga de instrumentos prova, uma vez

mais, a forte presença da Igreja no arquipélago e, concomitantemente, a importância que

esta dedicava ao órgão. Os dados permitem inferir a presença regular do organista em

inúmeras igrejas da região, através da remuneração do cargo. A participação do órgão

nas festividades do calendário litúrgico das igrejas regulares e seculares era

absolutamente indispensável no período aqui em estudo, o que já não é possível afirmar

relativamente à prática litúrgica quotidiana, pelo menos nas igrejas seculares.

Sendo que o repertório interpretado nas igrejas açorianas era maioritariamente

importado do continente, a função do órgão no contexto sacro insular surge

essencialmente com um perfil concertante. Permanecem, grosso modo, os mesmos

géneros do final do Antigo Regime, com clara preponderância de Matinas e Missas.

Também na área da composição, Silvestre Serrão foi o promotor de uma actividade

regular que incluía o órgão, compondo para as grandes festividades dos Açores, nas

quais se juntava ao órgão um efectivo vocal e instrumental variável consoante a

dimensão da solenidade e o status da igreja.

Morfologicamente, os órgãos construídos depois da implantação do Liberalismo

(correspondentes àquela que se pode considerar a terceira fase da história do órgão nos

Açores), reflectem uma concepção totalmente enformada nos exemplares de Peres

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Fontanes e de Machado e Cerveira. A gradual ausência do registo de Voz humana, que

se assumira como solista a partir da segunda metade do século XVIII, é uma

consequência natural da alteração dos padrões estilísticos do repertório oitocentista, o

mesmo sucedendo com o registo de Corneta, que se transformou num registo de cheio, e

ainda com os registos de palhetas. O afastamento desta última família dos planos

fónicos dos instrumentos construídos nos Açores a partir da década de sessenta do

século XIX pode, efectivamente, dever-se a questões estilísticas, embora a razão

económica se afigure a mais verosímil, atendendo à subsistência de características

tardo-setecentistas em todos os instrumentos daquela época, nomeadamente o pedal

anulador de cheios.

Os órgãos históricos dos Açores são testemunho da actividade organeira e da

vivência musical sacra do final de setecentos e do século XIX. Considerando-os

portadores da dimensão histórica e estética da época em que foram concebidos,574

traduzem, concomitantemente, uma tradição organística ímpar no contexto português.

Neste sentido, o conjunto de órgãos históricos portugueses existente nos Açores

constitui um património de indiscutível valor artístico que ainda se encontra em estado

embrionário de classificação.

574 Ver kerala J. Snyder, ed. The Organ as a mirror of its time, Oxford, University Press, 2002, pp. 1-21.

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247

Fontes e Bibliografia

Fontes Manuscritas

Arquivo Capitular da Sé de Angra (P-AHc)

Fundo Musical

Arquivo da Igreja Matriz de Ponta Delgada (AIMPD)

Correspondência 1828-1860 e 1880 a 1889

Fundo Musical

Livro dos Acórdãos da Confraria do S. Sacramento (1770-1854)

L.º de Rec.ª e Des.ª do Smo. Sacra.to d M. de S. S.ao (1688)

Ordem de Pagamento da Conferência do Sant. Sacramento

Ordem de Pagamentos da Confraria do Santíssimo Sacramento, mç. 2

Títulos diversos da Confraria do Sant. Sacramento, n.º 1 a 58

Arquivo da Igreja Matriz de Santa Cruz na Lagoa (AIMSCL)

Livro de receita e despeza (1836-1853)

Arquivo da Igreja Matriz das Velas, S. Jorge (AIMVSJ)

Livro de Tombo Matriz das Velas – 1676

Livro Tombo n.º 2 Matriz das Velas – 1732

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248

Arquivo da Igreja Paroquial de São José (AIPSJ)

Inventário dos vasos sagrados, Paramentos e mais objectos existentes na Igreja dos

extintos egressos franciscanos, desta dita Cidade, hoje pertencendo à referida

Paroquial São José da mesma, feito no dia 5 de Outubro de 1837

Livro da conta e despesa da Confraria do Sr. Santíssimo da Parochia desta cidade de

Ponta Delgada (1840-1841)

Livro de inventário n.º 1

Livro da Receita e Despesa da Confraria de S. José (1727-1845)

Livro da Vesita de Santa Clara da Parochia de S. Joze (1581-1798)

Sermão d’Acção de Graças pella fellis chegada do Orgão, q recitou Fr. Jozé do Mons

Serrate neste Conv.to de S. Fran. de P.ta Delg.da, à face de toda a Nobreza della, no dia

25 de Dezb.ro de 1799

Arquivo Municipal da Ribeira Grande (AMRG)

Arquivo da Junta da Paróquia

Confraria do Santíssimo Sacramento da Matriz da Ribeira Grande (1628-1946)

Livro dos Inventários da Paróquia de Nossa Senhora da Estrela na Ribeira Grande

(1839-1866)

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (P-Lant)

Junta do Comércio

Mç. 285 cx. 564

Mç. 272 cx. 530 e 531,

Mç. 270 cx. 524, 525, 526

Ministério das Finanças

Cx. 2077: Inventário da extinção do Convento de Nossa Senhora da Glória da Horta

Ministério do Reino

Mç. 260, cx. 344

Real Mesa Censória

Biblioteca – Música, cx. 422, doc. 7637 – Instrução p.º o Organista Conforme os Ritos

e Costumes dos Conegos R.es da Congregação de S.ta Cruz de Coimbra

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249

Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada (ASCMPD)

Livro de Acórdãos desta Santa Caza de Ponta Delgada (n.º 401 de inventário)

Livro da Capela da Misericordia (1664-1669), (n.º 49 de Inventário)

Livro de Contas 3.º (1792)

Livro da receita e despesa da Sta Caza (1787-1814)

Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Ribeira Grande

Livro de Acordãos da Mesa 1863-1867, (n.º 02G-294 de inventário)

Biblioteca Nacional de Portugal (P-Ln)

Credo a 4 concertado com acompto de Orgaõ, M.M. 323//7

Credo / Sanctus e Agnus Dei / a 4 vozes, orgão e pequeno / instrumental /Do Snr.

Antonio José Soares CN 261

Mappa de registar o orgão, s.c.

Missa “4 vozes concertada” M.M. 345//1

Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça (BPARJJG)

Colecção João Thiers de Lemos

Série 1, 2, 3, 4, 5, cx. 1: Relação dos Títulos e Documentos pertencentes aos Extintos

Conventos

Monásticos

Convento do Carmo e Convento da Glória (Horta)

Livro do arquivo para os assentos da saída do dinheiro 1790-1827

Convento Franciscano de S. Pedro de Alcântara do Cais do Pico

Livro do merecido e da despesa 1797-1800

Receitas e despesas 1804-1809

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250

Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís Ribeiro Silva (P-AN)

Alfândega de Angra do Heroísmo

Livros de entradas de navios e barcos no Porto de Angra, lvs. 1-5

Cartório da Mitra de Angra

Livros 65 e 69

Monásticos

Convento de S. Francisco de Angra do Heroísmo

Livro do Tombo

Convento de S. Gonçalo

Livros de contas

Livros 56 e 57

Bula da criação do bispado de Angra: RES/Cabido da Sé de Angra do

Heroísmo/Documentos avulso –154

Carta de D. Sebastião de 26 de Maio de 1563, Mitra de Angra, pasta 1, doc. 5.

Compra o Bispo D. Manuel de Gouveia uns orgãos para uso da igreja da Se a Nicolau

de Reisende (1586) – Cabido da Sé – Mitra de Angra, Casa Forte, pasta 2, doc. 48

Confraria de Nossa Senhora da Guia

Mç. 12

Estatutos da Sé de Angra: secção 6, Divisão Mitra, Colecção Casa Forte, lv. 37

Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (P-PD)

Alfândega de Ponta Delgada

Livro 0004

Livro 27

Livro 64

Livro 175

Livro 177

Livro 345

Livro 442

Livro 443

Livro 793

Cartório de Ponta Delgada

Livro 113, mç. 21

Livro 120, mç. 23

Livro 260, mç. 45

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251

Livro 276, mç. 48

Livro 288, mç. 50

Livro 294, mç. 51

Livro 308, mç. 53

Livro 318, mç. 55

Livro 388, mç. 68

Livro 390, mç. 68

Livro 436, mç. 77

Livro 464, mç. 84

Colecção José António B. Velho Arruda

Confrarias, Irmandades, Ermidas (mçs. 1, 3, 4, 5)

Cópia de documentos existentes no Arquivo da Câmara Municipal e em arquivos de

Igrejas e casas particulares (n.º 68)

Cópia de visitas e de pastorais (n.º 56)

Cópias e extractos de documentos relativos às igrejas da ilha de St.ª Maria (n.º 65)

Documentos avulso (n.º 72)

Documentos diversos séc. XIX (mç. 9)

Livro da fábrica menor da Igreja Matriz de N.ª Sr.ª da Assunção (n.º 57)

Misericórdia (mç. 3 e 5)

Colecção de Manuscritos Musicais

Fundo Ernesto do Canto

Convento de S. Francisco

Livro de registo e obrigação perpétuas – Convento de S. Francisco de Ponta

Delgada (EC 148 2/354/5)

EC 42 / lv 107

Governo Civil de Ponta Delgada

Lv. 558, Registo de Alvarás

Monásticos (1539-1903)

Convento da Esperança

Mç. 2 (1543-1839), doc. 136

Livro de contas gerais (1755-1772)

Livros 151, 163, 148

Livro de despesa diária do Convento da Esperança (1821), lv. 147

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252

Convento de Santo André de Ponta Delgada

Despesas (1822-1832), lv. 145

Contas gerais, livros 41, 165

Livro do Tombo Velho (1581 a 1654), lv. 134

Convento de S. Francisco de Ponta Delgada

Mç. 41, lv. 109 (1799-1834)

Convento de S. Francisco da Vila do Porto

Mç. 42

Inventário de Bens dos conventos suprimidos, mç. 087

Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição

Entradas e saídas de dinheiro do arquivo 1758-1832, lv. 129;

Livro do arquivo dos mosteiros de N.ª Sr.ª da Conceição

Registos Paroquiais

Casamentos (Maia): 1845-1853

Óbitos (Matriz – Ribeira Grande): 1855-1905

Óbitos (Conceição – Ribeira Grande): 1855-1905

Óbitos (Maia – Ribeira Grande): 1856-1905

Óbitos (S. José – Ponta Delgada): 1855-1911

Óbitos (Matriz – Ponta Delgada): 1855-1911

Óbitos (S. Pedro – Ponta Delgada): 1855-1908

Óbitos (S. Cruz – Lagoa): 1901-1905

Óbitos (Bretanha – Ponta Delgada): 1713-1912

Instituto Cultural de Ponta Delgada

[Extractos dos Livros da Misericórdia de Ponta Delgada] efectuados por Rodrigo

Rodrigues (colecção particular).

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ANA, Fr. Mathias de Santa, Ceremonial Ecclesiastico, segundo o Rito Romano, para o

uso dos religiosos Eremitas descalços da Ordem de Santo Agostinho da Real

Congregação de Portugal, e para os mais eclesiásticos, que seguem o mesmo Rito

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particulares da mesma ordem, Lisboa, Officina de Miguel Manescal da Costa, 1743.

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SANTO ANTÓNIO, Frei José de, Acompanhamentos de Missas, Sequências, Hymnos,

e mais Cantochão, que he uso, e costume acompanharem os Orgaõs da Real Basilica de

Nossa Senhora e Santo Antonio, Junto á Villa de Mafra, com os transportes, e armonia,

pelo modo mais conveniente, para o côro da mesma Real Basilica, Lisboa, 1761.

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ASHE, Thomas, History of the Azores or Western Islands. Londres, 1813.

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