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Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara

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Os quilombolas e a Base de

lançamento de foguetes

de Alcântara

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República Federativa do Brasil

Presidente - Luiz Inácio Lula da Silva

Vice-Presidente - José Alencar Gomes da Silva

Ministério do Meio Ambiente - MMA

Ministra - Marina Silva

Secretário Executivo - Claudio Langone

TAL Ambiental - Fabrício Amilívia Barreto (coordenador)

Secretária de Coordenação da Amazônia - Muriel Saragoussi

Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Basil - Nazaré Soares (coordenadora)

Secretário de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável - Gilney Amorim Viana

Diretor de Agroextrativismo - Jorg Zimmermann

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS

Ministro - Patrus Ananias de Sousa

Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA

Ministro - Miguel Soldatelli Rossetto

Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR

Ministra - Matilde Ribeiro

Edições Ibama

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

Centro Nacional de Informação, Tecnologias Ambientais e Editoração

SCEN - Trecho 2 - Bloco B

Cep: 70818-900 - Brasília-DF

Telefone: (61) 3316-1065

Fax: (61) 3316-1189

E-mail: [email protected]

Brasília

2006

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

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Os quilombolas e a Base de

lançamento de foguetes

de Alcântara

laudo antropológico

Volume 1

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Brasília, 2006

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Grupo Executivo Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara

Coordenador: Adelmar de Miranda Torres (Casa Civil da Presidência da República)

Carlos Eduardo Trindade Santos (SEPPIR)

Isabella Fagundes Braga Ferreira (MMA)

Milton Nascimento (MDS)

Mozar Artur Dietrich (MDA)

Paulo César Spyer Resende (MMA)

Thelma Santos de Melo (MMA)

Zorilda Gomes de Araújo (MDS)

______________________________

Coordenação Editorial: Projeto de Apoio ao Monitoramento e Análise (AMA) do Programa Piloto

para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (vinculado à Secretaria de

Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente) e TAL Ambiental

Coordenadora do Projeto AMA – Onice Dall’Oglio

Coordenadora Adjunta do TAL Ambiental – Fernanda Costa Corezola

Cooperação Técnica Alemã – Petra Ascher (GTZ)

Responsável por esta edição – Kelerson Semerene Costa

Editoração: Edições Ibama

Projeto Gráfico e Diagramação: Carlos José e Paulo Luna

Capa: Denys Márcio

Normalização Bibliográfica: Helionídia C. Oliveira

Fotos: Alfredo Wagner Berno de Almeida (exceto naquelas em que outro autor estiver indicado)

Digitalização das fotos e preparação do mapa: Design [Casa 8]

Conceitos emitidos e informações prestadas nesta publicação são de inteira responsabilidade do autor

Direitos reservados ao autorDistribuição dirigida

Tiragem: 2.000 exemplares

Catalogação na Fonte

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

A447q Almeida, Alfredo Wagner Berno de.

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara:

laudo antropológico / Alfredo Wagner Berno de Almeida. – Brasília:

MMA, 2006.

2 v. : il.; 24cm

Bibliografia

ISBN 85-7300-198-4

1. Grupo étnico. 2. Quilombo. 3. Antropologia. 4. Alcântara (cidade).

I. Ministério do Meio Ambiente. II. Secretaria de Coordenação da Amazônia.

III. Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. IV. Título.

CDU 39 (812.1)

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Apresentação

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Sr. Pedro Sá

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A presente obra reflete a luta travada pelas comunidades remanescentes dequilombos do município de Alcântara, estado do Maranhão, por seus direitos ao territórioe à autodeterminação étnico-racial. Trata-se do resultado de uma perícia antropológicaencomendada pelo Ministério Público Federal para subsidiar ação civil pública ambiental eétnica em prol do reconhecimento dos direitos destas comunidades.

A publicação desta peça acadêmico-jurídica traz ao público a batalha determinadae contínua, ainda na contemporaneidade, de várias comunidades que ousaram, nos anos 80,ainda em plena ditadura militar, questionar a lógica arbitrária e intervencionista da instalaçãode um grande projeto desenvolvimentista de caráter tecnológico e militar em seus territórios,o Centro de Lançamento de Alcântara - CLA.

Os oito mil e setecentos hectares já desocupados para instalação da primeirafase do Programa Nacional de Atividades Espaciais, onde está o CLA, correspondem aparte significativa das terras tradicionais das comunidades quilombolas do município deAlcântara. Dali foram retiradas 32 comunidades, realocadas em sete agrovilas, num formatoque tem comprometido a lógica tradicional a partir da qual estruturam suas relações sociais,produtivas e ambientais e, por conseqüência, as relações entre as comunidades realocadas eas demais, com as quais mantêm laços de parentesco e forte relação de interdependência.

A mobilização social dessas comunidades tem na perícia antropológica umde seus principais trunfos, símbolo da conquista do direito à justiça, ao território tradicional,à visibilidade pública de sua realidade e de suas visões de mundo. A saga das comunidadesnegras rurais de Alcântara traduz, num outro espectro, a luta de várias minorias e movimentossociais para transpor as fronteiras das injustiças e desigualdades que assolavam e, em algunscasos, ainda assolam o país, impondo aos seus protagonistas um isolamento da realidadenacional. Essas minorias e movimentos sociais começam a ter destaque a partir dos anos90, quando o Brasil passa a experimentar os frutos de um novo Estado de direito, advindoda Constituição Cidadã de 1988 e do fortalecimento das instituições democráticas.

Nos anos 90, e em especial com a chegada do século XXI, o caso de Alcântaraganha novos matizes. Além da acolhida de suas reivindicações pelo Ministério PúblicoFederal, obtendo seu reconhecimento étnico-racial e, apesar de faltar ainda a regularizaçãofundiária do seu território, essas comunidades apelaram para a Corte Interamericana deDireitos Humanos, em 2003, contra o Estado Brasileiro, por crime de genocídio étnico-racial.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva herda, portanto, um quadrodramático no município de Alcântara, exacerbado pela aparente contradição entredesenvolvimento tecnológico e desenvolvimento das comunidades locais. No campo daspolíticas públicas estratégicas, para o desenvolvimento tecnológico e para a segurança

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nacional, persiste e é reforçada a relevância da continuidade do Programa Nacional deAtividades Espaciais. Por outro lado, orientado pelas diretrizes de defesa dos direitoshumanos e de inclusão social, há a determinação de reconhecer o direito das comunidadestradicionais, representadas neste caso pelos quilombolas de Alcântara.

Buscando equacionar o problema e encontrar soluções, em 27 de agosto de2004, o Governo Federal instituiu, por decreto, o Grupo Executivo Interministerial para oDesenvolvimento Sustentável de Alcântara. Seu objetivo central é "articular, viabilizar, propor,acompanhar ações para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, visando eficientecondução do programa nacional de atividades espaciais e o desenvolvimento dascomunidades locais, respeitando suas particularidades étnicas e sócio-culturais, em especial,a questão quilombola".

Participam do GEI vários ministérios, entre os quais o Ministério do MeioAmbiente - MMA, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial -SEPPIR, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS e o Ministériode Desenvolvimento Agrário - MDA, que apresentam ações de várias ordens, sobretudoaquelas referentes ao desenvolvimento sustentável, à segurança alimentar e nutricional, àregularização fundiária, ao empoderamento das comunidades quilombolas e à valorizaçãodos seus conhecimentos.

É nesse contexto que se insere a publicação conjunta deste laudo antropológicode autoria do professor Alfredo Wagner Berno de Almeida: uma ação que cumpre o papelde lançar a pedra fundamental do reconhecimento dos direitos constitucionais destascomunidades, trazendo à luz do conhecimento sua história, seus costumes, sua cultura, suaspráticas produtivas e suas relações com a natureza.

Brasília, dezembro de 2005.

Marina Silva

Ministra do Meio Ambiente

Patrus Ananias de Sousa

Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

Miguel RossettoMinistro do Desenvolvimento Agrário

Matilde RibeiroMinistra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

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Teria sido impossível produzir este laudo no prazo formalmente definidose não fosse a dedicação de mais de uma centena de pessoas, que não se importaram empassar horas dando entrevistas, discutindo, participando de oficinas de elaboração demapas, levando-me para visitar ruínas, antigos esconderijos e terrenos de cultivo e deextração vegetal. Quero agradecer a todos eles e aos demais moradores dos povoadosmencionados neste laudo antropológico. O Sr. Samuel Moraes, então presidente doSindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, STTR, prestou uma contribuiçãoinestimável, acompanhando todas as etapas do trabalho de campo. Infelizmente, muitosdos que contribuíram encontram-se enfermos, como o Sr. Benedito Basson, ou faleceram,como o Sr. João Canela de Pau, o Sr. Manuelão, de Santa Maria, e Dona Estela com seus115 anos. Agradeço também aos pesquisadores que me ajudaram a coligir os dados e aosadvogados da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos, SMDH, que atodo momento se mostraram solícitos a prestar esclarecimentos: Dr. Domingos Dutra eDr. Luiz Antonio Pedrosa.

O autor

Agradecimentos

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Tabelas, gráficos e quadrosdemonstrativos

Povoados onde foram assinaladas ruínas de "casarões" e/ou moendas .......................... 65

Alcântara , 1861 - senhores de engenho de açúcar .................................................................. 68

Povoados onde foram assinaladas ruínas de "engenhos" e"casas-grandes" ou "casarões" ................................................................................................ 66

"Senhores de engenhos", "Fazendeiros e escravos": Alcântara, 1860-61 ......................... 75

Terra de Santo, Terra de Santa e Terra de Santíssimo ........................................................ 81

Registro de cartas de datas e sesmarias (1777-1816) ............................................................... 107

Registro de demarcação de sesmarias (1816) ............................................................................ 108

Quilombos em Alcântara (1701-1788) ........................................................................................ 119

Quilombos em Alcântara (1800-1886) ........................................................................................ 126

Registro de terras segundo declaração do possuidor - Alcântara,(1854-1857): Registros paroquiais ................................................................................................. 132

Territórios de parentesco ................................................................................................................. 151

Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriadapara instalação da base de lançamento de foguetes ................................................................. 159

Povoados referidos às comunidades que se localizam fora da área desapropriadapara instalação da base de lançamento de foguetes ............................................................... 162

Cemitérios ............................................................................................................................................172

Calendário de festas religiosas ....................................................................................................... 174

Delegaciais sindicais .......................................................................................................................... 178

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ABA Associação Brasileira de AntropologiaACONERUQ Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão

AEB Agência Espacial BrasileiraADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

AN Arquivo NacionalAPEM Arquivo Público do Estado do Maranhão

CCN-MA Centro de Cultura Negra do MaranhãoCf. Conforme

CLA Centro de Lançamento de AlcântaraCNPACNRQ Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras

Rurais QuilombolasCOBAE Comissão Brasileira de Atividades Espaciais

COLONE Companhia de Colonização do NordesteCONAQ Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais

QuilombolasCONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

DEPED Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento - Ministério da AeronáticaDSG Diretoria do Serviço Geográfico - Ministério do Exército

EMFA Estado Maior das Forças ArmadasFCP Fundação Cultural Palmares

FETAEMA Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do MaranhãoFUNASA Fundação Nacional de Saúde

GICLA Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de AlcântaraG.N. Grifo nossoGPS Global Position System (Sistema de Posicionamento Global)

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos NaturaisRenováveis

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaIHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

IHGEB Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do BrasilINCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INFRAERO Empresa Brasileira de Infra-estrutura AeroportuáriaIPEI Instituto de Pesquisas Econômico-Sociais e Informática

ITERMA Instituto de Terras do Estado do Maranhão

Siglas e Abreviaturas

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MAER Ministério da AeronáuticaMCT Ministério da Ciência e Tecnologia

MEAF Ministério Extraordinário de Assuntos FundiáriosMECB Missão Espacial Completa Brasileira

MinC Ministério da CulturaMIRAD Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário

MMA Ministério do Meio AmbienteMOMTRA Movimento das Mulheres Trabalhadoras RuraisMONAPE Movimento Nacional dos PescadoresMOPEMA Movimento dos Pescadores do Maranhão

MPP Mestrado em Políticas PúblicasN. E Nota do EditorPVN Projeto Vida de Negro

SMDH Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos HumanosSUCAM Superintendência de Campanhas de Saúde Pública - Ministério da Saúde

SUDENE Superintendência de Desenvolvimento do NordesteSTTR Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais

TC Terra de CabocloTP Terra de Preto

TPo Terra da PobrezaTS Terra de Santo

TSa Terra de SantaTSi Terra de Santíssimo

TSia Terra de SantíssimaUFMA Universidade Federal do Maranhão

UFRJ Universidade Federal do Rio de JaneiroUnB Universidade de Brasília

UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e CulturaVLS Veículo Lançador de Satélite

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VOLUME 1

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 19

O OBJETO DA PERÍCIA E OS PROCEDIMENTOS DE OBTENÇÃO

DE INFORMAÇÕES ......................................................................................... 27

Os arquivos como discurso de legitimação ................................................................ 35

Os mediadores e o discurso da mobilização .............................................................. 39

PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES

DE QUILOMBOS ............................................................................................. 43

Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual

dos conflitos .............................................................................................. 47

Sumário geral

Muralhas e Paredões: as ruínas das casas-grandes e dos engenhos como

fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos ...... 59

Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas ............................................................. 61

O mapeamento das ruínas ............................................................................................... 63

A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela .............................................. 70

As ruínas e o tempo livre ............................................................................................ 72

A datação da fuga e das ruínas ................................................................................... 74

A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas ....................................... 76

Companhia de Jesus ............................................................................................... 76

Ordem dos Carmelitas Descalços ....................................................................... 78

Ordem de Nossa Senhora das Mercês ............................................................... 78

Irmandade do Santíssimo Sacramento ............................................................... 79

Territorialidades específicas ......................................................................................... 80

As diferenças culturais e as premissas étnicas ........................................................... 82

O domínio "original": as "terras de índio" como "terras de preto" ............. 87

As "terras de preto" e as "terras de caboclo": a construção do território pelosfatores estigmatizantes .................................................................................................. 91

Área decretada e territorialidades específicas .............................................................. 53

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Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas ............................ 95

A "modificação da fisionomia étnica" ........................................................................... 100

Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio daCompanhia Geral do Comércio ........................................................................................ 103

A derrocada da economia algodoeira............................................................................ 108

Os quilombos em Alcântara ............................................................................................. 115

Os quilombos e a governação pombalina .................................................................... 117A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX .................................. 123

Os territórios de parentesco ............................................................................................. 141As doações de terras ............................................................................................................. 141As terras da pobreza ............................................................................................................. 143As compras de terras ............................................................................................................. 144Os territórios de parentesco ............................................................................................... 149

O território das comunidades remanescentes de quilombos ............................... 153

A interseção dos planos de organização social .......................................................... 165A interdependência econômica e ecológica dos povoados........................................ 165

As "circunscrições" religiosas ............................................................................................. 170

Os cemitérios e as tensões sociais em face da interdição de uso, pelo

CLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá .......................................................... 171

A festas religiosas ............................................................................................................. 173

As instâncias políticas de mediação. ................................................................................. 176

NOTAS ................................................................................................................................................ 181

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 201

ANEXO ............................................................................................................................................... 207

"Terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade, uso dos recursosnaturais, sítios históricos e conflitos sociais" (mapa e memorial descritivo)

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VOLUME 2

RESPOSTAS AOS QUESITOS

Quesito 1 ...................................................................................................................................... 17

Quesito 2 ...................................................................................................................................... 25

Quesito 3 ...................................................................................................................................... 73

Quesito 4 ...................................................................................................................................... 81

Quesito 5 ...................................................................................................................................... 87

Quesito 6 ...................................................................................................................................... 89

Quesito 7 ...................................................................................................................................... 93

Quesito 8 ...................................................................................................................................... 95

Quesito 9 ...................................................................................................................................... 97

Quesito 10 ................................................................................................................................... 99

Quesito 11 ....................................................................................................................................... 101

NOTAS ................................................................................................................................................ 103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 109

ANEXOS ............................................................................................................................................... 115

Fontes documentais e arquivísticas: transcrição de documentos que registram, diretaou indiretamente, quilombos em Alcântara (1702-1886)

Certidão referente à terra da pobreza

Registro fotográfico

Calendário agrícola e extrativo

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Introdução

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O povoado de São João de Cortes

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O laudo antropológico a seguir apresentado foi produzido por determinaçãoda Procuradoria Geral da República consoante os termos da Portaria nº 007, de 07 dejulho de 1999, do Ministério Público Federal no Maranhão. Foi instaurado o Inquérito CivilPúblico nº 08.109.000324/99-28 com o objetivo de apurar possíveis irregularidadesverificadas na implantação da Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara. Ao considerarque as ações de deslocamento compulsório denominadas de "remanejamento" afetam "ascomunidades negras rurais, remanescentes de quilombos", essa Portaria preconizaprovidências no sentido de "verificar a existência de estudos relativos às comunidades quese encontram nas áreas destinadas ao Centro de Lançamento de Alcântara, máxime notocante ao componente étnico". Após audiências públicas realizadas em Alcântara e SãoLuís que assinalaram inconsistências no EIA-Rima, sobretudo aquelas relativas às relaçõesantrópicas e à recusa em incorporar fatores étnicos, e mediante a possibilidade de novosremanejamentos, o Ministério Público Federal autorizou perícia antropológica no interesseda instrução do inquérito civil público. A partir de indicação de antropólogo pela AssociaçãoBrasileira de Antropologia, ABA, então presidida pelo Dr. Ruben George Oliven, oProcurador da República no Maranhão, Dr. Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, assimse manifestou em Despacho de 12 de abril de 2002: "Tendo em vista a indicação doProfessor Alfredo Wagner Berno de Almeida, conforme solicitação às fls.440, nomeio-opara proceder à perícia antropológica, no interesse da instrução do inquérito civil público".No mesmo Despacho, o mencionado Procurador delineou os onze quesitos a seremdesenvolvidos pelo perito.

Cabe registrar que a Procuradoria Geral da República, desde antes damencionada Portaria, já acompanhava de maneira direta o desenrolar dos conflitos sociaisem Alcântara através da Dra. Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira. Importa sublinhartambém que os aspectos ambientais do projeto de expansão do Centro de Lançamento deAlcântara são objeto de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, tombadasob o nº 1999.37.00.007382-0, a qual tem curso perante a 3ª Vara da Seção Judiciária doMaranhão, “remanescendo para análise suas implicações sobre as seculares comunidadesquilombolas de Alcântara”.

No que concerne à execução da perícia ora apresentada, quero informar aindaque os trabalhos de pesquisa e a elaboração dos argumentos para responder aos quesitosque a orientaram foram produzidos no prazo previsto, entre abril e julho de 2002, e entreguesà Procuradoria Geral da República em setembro do mesmo ano.

O trabalho de campo pericial, envolvendo consultas a fontes secundárias,produção de mapas e obtenção de dados in loco, se estendeu de 05 de abril a 11 de junho. Asvisitas aos povoados ocorreram entre 12 de abril e 02 de maio e entre 07 e 09 de junho de

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

2002. Foram visitados 53 povoados e obtidas informações sobre duas centenas deles. Em17 deles, tive como assistente de pesquisa Patrícia Portela Nunes, doutoranda do Programade Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federaldo Rio de Janeiro, que além de permanecer por uma semana em Canelatiua e lá retornarvárias vezes no decorrer de junho e julho, produziu para fins da perícia um relatório sobreos impactos sociais da implantação da base de lançamentos no processo de ocupação doperímetro urbano de Alcântara, focalizando a migração de membros das comunidadesremanescentes de quilombos. Em nove deles, fui acompanhado por Aniceto CantanhedeFilho, mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, que já havia produzido,em 1997 e 1998, relatórios preliminares de identificação sobre os povoados de Samucangaua,Iririzal, Ladeira e São Raimundo. Em outros oito povoados, fui acompanhado por CynthiaCarvalho Martins e Silvianete Matos Carvalho, mestras em Políticas Públicas pela UniversidadeFederal do Maranhão, que já haviam produzido, em 1997 e 1998, relatórios preliminares deidentificação relativos aos povoados de Itapuaua e Ladeira. Cynthia C. Martins produziutambém, em 1994, monografia de conclusão do curso de ciências sociais focalizando aagrovila de Cajueiro. No levantamento de dados sobre as desapropriações realizadas peloInnstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, no município, casos de Ibitubae Portugal, e na elaboração de séries estatísticas sobre a produção agrícola de Alcântara, nasúltimas décadas, contei com a colaboração do economista Wilson de Barros Bello Filho,mestre em Políticas Públicas, que produziu, em 1999, comentários críticos ao EIA-Rima doCLA.*

* * *

Este laudo antropológico foi subdividido, para efeitos de ordem de exposição,em duas partes: a primeira atendo-se à relação entre os princípios elementares de investigaçãocientífica e os procedimentos necessários à produção das chamadas provas periciais; e asegunda consistindo numa resposta aplicada e mais direta aos quesitos propriamente ditos,formulados pelos procuradores. Numa parte, reuni os trabalhos de pesquisa quefundamentam e subsidiam as conclusões; na outra, tomei esse esforço analítico comopressuposto imediato para as argumentações respondentes. A razão desta distinção, emboraformal, concerne ao entendimento da perícia enquanto uma forma particular de produçãode conhecimento, inclusive para que o antropólogo não esteja tão-somente reconhecendo"problemas oficiais" tal como colocados pelo campo jurídico, através da demanda intrínsecaa processos e inquéritos sob responsabilidade de operadores do direito. Ademais, o lugarde onde é produzida a perícia expressa um modo peculiar de ligação entre teoria eintervenção, evitando uma relação mecânica entre instrumentos teóricos de sentido universal

* Em sua versão original, o laudo antropológico consta de três volumes. O terceiro volume, onde se encontram os

"Anexos", reúne um vasto repertório de documentos, entre os quais se incluem fotos, estudos produzidos

especialmente para apoio à perícia e a transcrição das numerosas fontes documentais dos séculos XVIII e XIX que

fudamentaram parte da pesquisa. O material que compõe a presente edição, em dois volumes, difere da versão

original apenas por uma seleção dos anexos, procedida pelo autor, publicando-se tão-somente aqueles considerados

essenciais para o público mais amplo ao qual ela se destina. (n.e)

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

e problemas concretos referidos a realidades localizadas. Os conceitos teóricos, não podendoser aplicados mecanicamente, demandam aproximações sucessivas e estratégias de pesquisapróprias coadunadas com cada situação examinada. No presente caso, considerei apropriado,sem qualquer pretensão de realizar uma etnografia, descrever as condições de obtençãodos dados, os critérios de seleção dos entrevistados e demais escolhas metodológicas efetuadasdurante o trabalho de campo pericial.

Um discernimento preliminar, entre a região onde ocorre a investigação e o"problema" em pauta, se impõe, posto que a perícia não se reduz a um "estudo de área" etampouco se restringe aos seus contornos geográficos, mais se tratando de um argumentode autoridade científica mediante uma questão específica. Tal argumento pode esclarecerou dirimir dúvidas a partir do exame detido de um determinado "problema", qual seja, nopresente caso, a identificação étnica, tendo como referência empírica as comunidades

remanescentes de quilombos do município de Alcântara, estado do Maranhão.

Enquanto "problema" localizado, concernente a agentes sociais determinadoscom seus sistemas de representação, compreendendo categorias classificatórias e respectivascondições de existência coletiva, a identificação mostra-se indissociável do processo deterritorialização das mencionadas comunidades e dos elementos identitários de que se achaminvestidos seus integrantes. Pode-se adiantar que a situação social designada como comunidadenão se constitui espontaneamente e tampouco pode ser interpretada como "natural", já quese estrutura segundo diferentes planos de organização social e consoante ações conjuntas deprodutores diretos que historicamente lograram autonomia em face do domínio das grandesplantações. Através dos povoados distribuídos pelo que hoje corresponde ao município deAlcântara, elas se tornam empiricamente observáveis. O laudo, nessa ordem, já exprimiria anecessidade de reconhecimento jurídico-formal dessas comunidades para fins de titulaçãodefinitiva das terras que lhes correspondem, preconizada pelo artigo 68 do Ato dasDisposições Constitucionais Transitórias, ADCT, da Constituição Federal de 1998*, comoresposta a uma controvérsia. A iniciativa por si só torna evidente uma situação de antagonismode interesses, que contrapõe as referidas comunidades às medidas oficiais que afetam seumodo de fazer e viver. Essas medidas concernem à implantação da base de lançamento defoguetes pelo Ministério da Aeronáutica, que tem como ato inicial, datado de 1980, adesapropriação por utilidade pública de uma área de 52.000 hectares, ampliada posteriormentepara 62.000 hectares, ou seja, que compreende mais da metade da superfície do municípiode Alcântara1. A multiplicidade de órgãos governamentais envolvidos (Ministério da Ciênciae Tecnologia, MCT; Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, MinC-FCP; Institutodo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan; Ministério do Meio Ambiente/InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, MMA-Ibama; Ministériodo Desenvolvimento Agrário/Incra e Governo do Maranhão) exprime a relevânciaoficialmente atribuída ao "problema".

Com base nessa premissa relacional é que fui balizando os procedimentosinerentes à perícia, com execução de trabalho de campo e verificações in loco nos povoados,

* “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade

definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (Constituição Federal, ADCT, art. 68) (n.e)

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utilizando técnicas de observação direta e de história oral e mapeando interesses em pauta,de igual modo que compulsando fontes documentais e arquivísticas.

A imperatividade do aprofundamento das questões me levou, inclusive, aacionar assistentes técnicos, tanto para avaliar os impactos da implantação do CLA e dosdeslocamentos compulsórios sobre a economia agrícola das unidades familiares dessespovoados – organizada em torno da produção de gêneros alimentícios e notadamente damandioca e do arroz – quanto para examinar as novas tendências migratórias no município,caracterizadas pela intensa pressão demográfica sobre a estrutura urbana da sede municipal.

Instituída a equipe, percorremos os povoados da área desapropriada, elegendocomo pontos de observação: a área de influência de São João de Cortes, ao norte, e aquelacentralizada por Canelatiua, e por Brito, na denominada "área de segurança da base", quecorresponde a 30.000 hectares, ou seja, quase a metade da área desapropriada*. No limiteda "área de segurança", elegemos Santa Maria e, descendo na direção sul, alcançamos asagrovilas, tomando como referência Só Assim, Peru, Espera e Cajueiro. A noroeste domunicípio, principiamos por Itapuaua com ramificações para as margens do rio Periaçu, deum lado, e alcançando Esperança e povoados que ladeiam a Baia de Cumã, de outro. Naestrada, que liga o noroeste à rodovia MA-106, os povoados de Engenho, Flórida, Forquilhae Vai com Deus, fazendo de Peroba de Cima um ponto de apoio. Deste ponto, dobrandono sentido leste, atingimos Peroba do Meio e Peroba de Baixo. Retornando à estrada e nosdirigindo ao sentido oposto, alcançamos Ladeira, Samucangaua e Iririzal já nas nascentesdo Periaçu e adjacências. Daí, retomando novamente a estrada, visitamos Pavão e depoisSão Raimundo I, Mocajubal e Centro da Vovó.

A partir de Baixa Grande, percorremos povoados cujas terras confrontamcom a área desapropriada para instalação da Base. Fomos ganhando o sentido sul, visitandoos povoados logo abaixo do limite da área desapropriada, que consiste na própria rodoviaMA-106. Castelo e Santo Inácio foram assim alcançados. Retomando a rodovia,privilegiamos os povoados que a margeiam até o cruzamento para Cujupe e daí nosdividimos, tanto seguindo para o extremo sul do município já na área de influência deItamatatiua, quanto virando no sentido leste, abrangendo São Mauricio, Arenhengaua edemais povoados circunvizinhos. Detivemo-nos, a partir do próprio resultado da análisedas informações que orientaram nossos itinerários, nas áreas desapropriadas por interessesocial para fins de reforma agrária pelo MDA-Incra, em 1994 e 1996, denominadas Portugale Ibituba, localizadas ao sul do município, e naquelas em torno de Itamatatiua e de SãoRaimundo II, onde o Iterma procede, desde 1997, ao reconhecimento de comunidadesremanescentes de quilombo. Embora tenhamos percorrido além do igarapé Tiquara e dolocal Pedra Grande, para efeitos de pesquisa exploratória, em verdade nos detivemos defato em São Raimundo, apontado desde as entrevistas realizadas nos povoados a noroestee nos demais a seguir como limite de uma complexa rede de relações sociais e de intercâmbiode bens e serviços interpovoados. Nesses percursos sucessivos, visitamos 53 povoados,entrevistamos 70 pessoas, contatamos pessoas de mais de uma centena de povoados ecoletamos, enfim, informações sobre quase duas centenas deles.

* A consultar, neste volume, o mapa “Alcântara: terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade,

uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos sociais”. (n.e)

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Para além dessas visitas, vale acrescentar que, no decorrer do trabalho decampo realizado em abril e maio, a estação chuvosa não trouxe somente dificuldades. Pelocontrário, esse tempo mostrou-se bastante adequado para a consecução de entrevistas maisdetidas e recapituladas e também para a realização de reuniões amplas nos povoados. Asatividades de perícia coincidiram com a segunda capina do arroz, que não exige toda aforça de trabalho das unidades familiares, e, por outro lado, coincidiram também com asfarinhadas, que é como designam o conjunto das atividades finais de transformação ebeneficiamento da mandioca. Isso facilitou enormemente a ampliação dos contatos, umavez que muitas famílias encontravam-se, nas denominadas casas de forno, trabalhandosob forma de cooperação simples, desmanchando juntas a mandioca e produzindo a farinhae demais derivados; enquanto que outras encontravam-se retirando o carvão das caieiras eempilhando os cestos na beira da rodovia para serem transportados para o porto. Orepertório fotográfico em anexo permite uma visão ampla dessas atividades. Também nosempenhamos, juntamente com assistentes técnicos com competência em agronomia eagrimensura, em produzir bases cartográficas que facultassem uma delimitação das extensõescontroladas efetivamente pelas citadas comunidades e que, por pelo menos dois séculos,têm assegurado a sua reprodução física e social. Buscamos superar as imprecisões e equívocosverificados nos mapas disponíveis, em especial as cartas da Diretoria do Serviço Geográficodo Ministério do Exército, DSG-ME*, que apresentam povoados plotados erroneamente,e acrescentar elementos de conhecimento da área indicados pelos próprios entrevistados, asaber: recursos naturais estratégicos para os povoados, incluindo-se os juçarais, os babaçuais,os mangues e os igarapés; locais de fabricação de redes de pesca, embarcações, tipitis eadobe; povoados localizados na "área de segurança" e ameaçados de deslocamentocompulsório; povoados já deslocados pela base de lançamento e as agrovilas; povoadoscom energia elétrica e com estabelecimentos de ensino; e ainda a localização de diferentestipos de ruínas (engenhos, casas-grandes, sumidouros) e dos antigos quilombos. De certomodo, essa modalidade de trabalho de campo pericial consistiu num meio de conferirvisibilidade a situações que permanecem socialmente invisíveis, não obstante as contínuasreferências oficiais à abolição da escravatura. Como corolário dessa etapa, a equipe técnicafez uso de GPS para amarrar pontos e produzir um memorial descritivo correspondenteao território das comunidades remanescentes de quilombo.

Os trabalhos de levantamento de fontes secundárias, incluindo-se os mapascompulsados, ocorreram em São Luís, no Arquivo Público do Estado do Maranhão, naBiblioteca Pública Benedito Leite, nas bibliotecas do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatísitica, IBGE, e da antiga Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, Sudene,nas sedes do Incra e do Instituto de Terras do Estado do Maranhão, Iterma, e nos arquivosdo Projeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos,SMDH, e do Centro de Cultura Negra. Aconteceram também no Rio de Janeiro – naBiblioteca Nacional, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Arquivo Nacional.Em Alcântara, os levantamentos ocorreram no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras

* O autor reporta-se, com freqüência, a fatos anteriores à criação do Ministério da Defesa, que, a partir de 1999, passou a

reunir a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, forças antes representadas por seus respectivos ministérios. (n.e)

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Rurais, STTR, no escritório da antiga Superintendência de Campanhas de Saúde Pública –Sucam, incorporada pela Fundação Nacional de Saúde, Funasa – e nos dois cartórios,valendo-me de informações já levantadas anteriormente pelo doutorando em Direito daUniversidade Federal do Paraná Joaquim Shiraishi Neto.

A coleta de copiosa documentação alusiva a sesmarias, entre 1777 e 1816, aos"registros paroquiais", entre 1854 e 1857, e a imóveis rurais demarcados a partir de 1891,ateve-se ao fato de as obras de referência da história regional sempre indicarem implicitamenteuma dicotomia entre formalização da propriedade e ocupação efetiva das terras. Foramdetectadas inúmeras informações concernentes a uma certa autonomia dos povoados deproduzir e viver livremente em diferentes situações históricas, sendo que uns desde pelomenos 1760, quando da expulsão dos jesuítas de Alcântara; outros, desde a derrocada daeconomia algodoeira, entre 1812 e 1819; e outros, ainda, desde a falência dos engenhos deaçúcar imediatamente após 1870. Tais registros corroboraram genealogias e narrativas dereconstituição histórica propiciadas pelos entrevistados. O conjunto dessas informaçõespermite assinalar que Alcântara usufrui de uma situação singular, posto que vastas extensõesterritoriais, da superfície atual do município, ficaram praticamente dois séculos sem umapresença efetiva dos "senhores" e sem maiores pressões sobre a terra, que não fossemtentativas pontuais de aforamento. Com os atos desapropriatórios para instalação da basede lançamentos, em 1980, as tensões sociais afloraram. Da mesma maneira, assistiu-se aoadvento de uma identidade étnica mantida sob invisibilidade social com suas respectivasterritorialidades cognominadas terras de preto, terras de caboclo e terras de santo, atéentão reconhecidas apenas no plano local, mas não necessariamente registradas. Ao considerarque a noção de etnicidade abrange também uma interação com uma certa maneira deproduzir e de relacionar-se com a natureza, identificamos essas territorialidades verificandoque agrupam uma vasta rede de povoados e convergem para um território étnicodeterminado, cujos contornos foram objeto do trabalho de delimitação consistindo numdos resultados finais da perícia.

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O objeto da perícia e osprocedimentos de obtenção de

informações

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Moradores de Santo Inácio

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No decorrer do trabalho de campo, realizado no âmbito desta períciaantropológica, quando visitava os povoados1– que representam as principais unidades deagrupamento dos agentes sociais observados – e apresentava o objetivo da pesquisa, emtorno da identificação das comunidades remanescentes de quilombo, invariavelmente mesugeriam, quaisquer que fossem os interlocutores, contatar os que detinham a autoridade dereconstituir a história do lugar. Antes mesmo que qualquer interrogação pudesse ser feita,adiantavam-se nessa indicação. Mediante essa maneira de proceder, a minha primeiraimpressão foi que, por um lado, os informantes estabeleciam uma relação necessária entrefato histórico e identidade coletiva, expressa num plano comunitário pelas suas demandasjunto aos órgãos competentes de reconhecimento oficial como remanescentes de quilombo,enquanto, por outro, individualizavam o portador de uma forma de saber que eu supunhamais difuso e de sentido coletivo. Nesse sentido, a situação de conflito em face da instalaçãoda base de lançamento de foguetes leva à história. O passado é acionado como argumentoe arquivo contrapondo-se às pretensões dos decretos desapropriatórios. A fala dosentrevistados deixa entrever que os anos não são medidos da mesma maneira pelas partesem confronto, porque são vividos de modo desigual. Há, em decorrência, uma politizaçãoda história que traz o passado para o presente através de uma atitude que leva à história dogrupo, enquanto fundamento das pretensões de direito, e que leva o pesquisador justamenteàqueles que dela podem falar. No primeiro momento do trabalho de campo, vi-meconduzido, desse modo, não necessariamente aos lugares institucionais dos mediadores oulideranças de natureza política ou econômica, que inclusive haviam me introduzido na área,mas a pessoas mais idosas, sejam homens ou mulheres, referidas a uma posição socialsingular. Tal posição não reflete um confronto entre gerontocracia e mediação política,sindical ou religiosa, porquanto não estão em jogo quaisquer disputas por instrumentosdiretos de mediação. É bem verdade que os idosos, que usufruem de aposentadorias,atualmente são vistos num patamar superior de possibilidades econômicas, com papel dedestaque, seja na manutenção de seus grupos familiares, devido aos percebimentos mensaisregulares, seja no âmbito da própria entidade sindical dos trabalhadores rurais2, em virtudede suas contribuições sindicais voluntárias. Embora não tenham qualquer obrigatoriedadelegal em recolhê-las, cerca de 900 aposentados têm contribuído generosa e espontaneamentepara o STTR de Alcântara. Trata-se de um número significativo, uma vez que, conforme osdados do Censo Demográfico de 2000 do IBGE, a população residente do município deAlcântara corresponde a 21.291 habitantes, sendo que 73,3% encontram-se na área ruraldistribuídos por mais de duas centenas e meia de povoados, e os que se encontram numafaixa etária igual ou superior a 60 anos correspondem a 1.833 habitantes, ou seja, poucomais de 8,0% da população residente.

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Os aposentados são vistos nos povoados segundo uma interpretação positivaao injetarem permanentemente recursos para o consumo básico e garantirem a provisãode bens essenciais, mesmo nos períodos mais críticos, intermédios entre uma colheita eoutra. Suas remunerações não são apropriadas individualmente. Os entrevistados ponderamque a quantia recebida pelos aposentados, mesmo quando não são mais cabeça de famíliae nem administram a unidade de trabalho familiar, é utilizada nas despesas domésticas eserve para ajudar filhos e demais parentes. O volume de recursos das unidades familiares,tradicionalmente concentrado no período das colheitas de arroz e de mandioca para opreparo da farinha e variando em conformidade com as fases dos ciclos agrícola e extrativoe com as intempéries climáticas, passa a ter nas aposentadorias, percebidas mensalmente,uma receita regular com distribuição temporalmente mais curta, significando um fator defortalecimento constante de sua renda monetária. Situação análoga foi verificada com asunidades familiares que vivem principalmente da pesca3. Ainda que afastados do processode produção, os aposentados representam, portanto, um arrimo tanto para as famílias quetêm na agricultura sua atividade principal, quanto para aquelas que se concentram mais napesca e no extrativismo. Tal função econômica dos idosos, embora seja mais recente, perpetuaa posição de relevância tradicionalmente assumida por eles, consistindo ademais numafonte do tipo de autoridade efetiva que atualmente detêm.

O fato de terem idade avançada e essa condição econômica de destaque nãose revelam, no entanto, suficientes para lhes assegurar a aludida competência, qual seja, aindicação de narradores da história do grupo. A singularidade mencionada tanto concerneao fato de tais pessoas acharem-se dispostas numa linha de descendência direta, porconsangüinidade ou afinidade, de ancestrais que são apontados como tendo assegurado olivre acesso dos grupos familiares à terra, quanto ao fato de possuírem responsabilidadessimbolicamente definidas em face de antigas famílias de proprietários ou diante de divindades(santos, santas) e instituições pias e religiosas (irmandades, ordens), que igualmente sãorepresentadas como tendo facultado o acesso à terra.

O critério de ancianidade não funciona, pois, isoladamente, aparecendo semprecombinado com fatores genealógicos e de patronagem. Sobre a noção de genealogia, cabesalientar que a convergência para um informante dos registros de conexão da trajetória doconjunto das unidades familiares em face dos recursos básicos pode transcender às relaçõesde consangüinidade entre elas. Em outras palavras, pode-se dizer que há pessoas consideradaslocalmente como unidas por relações de parentesco, como foi possível constatar no decorrerdo trabalho de campo, embora não se verifique entre elas, estrito senso, qualquer laço deconsangüinidade ou vínculo genealógico real. Mesmo que não haja formas legais de reconhecero contrato que as aproxima, há rituais de coesão social que ultrapassam uma simples redede parentesco e amizade, fortalecendo uma idéia de comunidade apoiada em critériospolítico-organizativos, que, inclusive, constrói socialmente o seu território.

No que tange ao conceito de patronagem, recorri ao sentido que lhe confereG. Foster de uma relação contratual, informal e assimétrica, entre "pessoas" de status epoder diferentes, que trocam bens e serviços distintos. Essas trocas podem ser simbólicase estabelecidas entre moradores de um mesmo povoado ou entre estes e não-moradores,incluindo divindades (santos, santas) e seres sobrenaturais (Foster,1967:221)4.

Os fatores genealógicos e de patronagem, assim conceituados, atualizam-sena perspectiva dos informantes através de doações, aquisições, heranças, autorizações

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informais de livre uso, aforamento, ocupações e conflitos com antagonistas históricos quepretendiam usurpar seus domínios efetivos. Tais meios asseguraram centenariamente atransmissão da terra, com suas denominações específicas referidas a cada situação, e de umsistema de uso comum dos recursos fundamentais à reprodução física e social do conjuntode famílias.

O que mais realça as narrativas sobre esses meios, quando contrastados com adocumentação oficial, concerne ao fato de os registros cartoriais serem formalmentecentralizados na "pessoa" – seja um sesmeiro, uma divindade ou um adquirente, a partir de1850 – e não nas terras, isto é, no imóvel rural (Shiraishi,1999:04) e naqueles de posiçãosubordinada (escravos e alforriados) que efetivamente o controlam5. Além disso, no plano deidentificação da "pessoa", faz-se mister considerar que são por demais conhecidas as dificuldadesde registros documentais sobre idade, etnia e famílias de escravos6. Mesmo após a Lei deTerras de 1850 e as exigências de registro paroquial, perdura o problema. Os termos darelação entre a condição de escravo e aquela de proprietário de terra, ainda que se admitindoa possibilidade de pecúlio pelo escravo, mostram-se excludentes, como sublinha PerdigãoMalheiro em 1864 ( Malheiro, 1976: 63, 96). O mesmo não sucederia com escravos alforriados,cujas ocorrências de aquisição não conseguimos, entretanto, detectar em Alcântara7. Levandoem conta essas impossibilidades, as lacunas acima assinaladas e a ressalva feita por Shiraishi,acresce a importância da história oral e das técnicas de entrevistas abertas acionadas no trabalhode campo, posto que somente elas podem facultar o acesso às genealogias das famílias escravasque de fato possuíam controle sobre os recursos naturais, a seu sistema de apropriação dessesrecursos e às extensões de terra correspondentes.

As narrativas, em decorrência, facultam a compreensão antropológica dasrelações com a natureza, do sistema de sucessão legítima e dos elementos identitários e derepresentação da vida social, incluindo-se as categorias de autodefinição coletivas, que foramhistoricamente construídas, tais como pretos e caboclos, os atributos respectivos que tantoas diferenciam quanto as aproximam, e as territorialidades que lhes são referidas.

As regras de uso comum, que disciplinam a apropriação dos recursos, sãoindissociáveis dessas formas de domínio e teriam sido historicamente instituídas, objetivandotambém superar os limites do ecossistema local8, que se tornou mais fragilizado a partir daação predatória e da devastação das matas pelas grandes plantações de algodão e cana-de-açúcar, na segunda metade do século XVIII e no início do século XIX. Autoridades doperíodo colonial, como o engenheiro militar B. Pereira do Lago e o grande proprietário deterras e "economista" R. Gaioso, sublinham solos exauridos, terrenos arenosos e áreasinteiramente devastadas em Alcântara (Pereira do Lago,1872:388). Do prisma das figurasancestrais citadas nas entrevistas, a manutenção de uma sustentabilidade elementar àreprodução coadunada com solos fracos tornou-se tributária de práticas de preservaçãode recursos naturais e de direitos comuns sobre pastagens, praias, mangues, apicuns, cocais,juçarais e aglomerados de mangueiras, indicadores das antigas benfeitorias das fazendas.Peixes, frutos silvestres, óleos vegetais (de carrapato, de babaçu) e diferentes ervas compropriedades medicinais passaram a compor uma pauta de produtos de autoconsumo dasunidades familiares, impondo a preservação de espécies várias, impedindo a devastação equebrando a monotonia dos grandes plantios de algodão e de cana. Em razão disso é quea caça, a pesca e a coleta de produtos florestais – inclusive para fabricação de óleos vegetais

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e resinas –, tanto quanto a retirada de palha das reservas e a escolha do local de plantio,prosseguem passando por um crivo ecológico e de responsabilidade comunitária. Nessa

ordem, a natureza pode ser entendida como produto de um repertório de práticas

centenárias de uso comum, encetadas em Alcântara por unidades de trabalho familiar

organizadas em povoados a partir da desagregação das fazendas.

O pano de fundo dessa interpretação reflete uma maneira de entender esse tipode sucessão de bens por várias gerações como uma transmissão de direitos e como adstritoa um princípio de preservação ambiental. As práticas agrícolas e extrativas, mantendo umarelação relativamente equilibrada com recursos escassos e com um ecossistema frágil, durantedois séculos consecutivos, reforçaram a necessidade de manter em reserva áreas com coberturaflorestal permanente, de conservar as palmáceas nos terrenos mais baixos e de efetuar umrodízio das terras cultivadas, com intervalos de descanso sempre superiores a três anos oucapoeiras de curta duração. A recomendação principal para as terras cultivadas é que nãosejam colocadas próximas às nascentes ou margens de rios e igarapés. Já as reservas ou áreasmais preservadas recebem nos povoados de Flórida, Forquilha e Peroba de Cima adenominação de ponta de mato (Linhares,1999:60). Em São Raimundo e Itaperaí, registreia expressão uma bola de mato, cuja finalidade consiste em suprir necessidades comuns àsfamílias em momentos de extrema precisão. Quanto às áreas de conservação ou sujeitas aregras de manejo, que asseguram uma produção permanente, localizamos entre Peroba deCima e Peroba de Baixo duas áreas criteriosamente conservadas, separadas por uma campina,que são as chamadas baixas ou zonas de várzeas onde predominam juçarais. Os moradoresdesses povoados não proibem ninguém de tirar a juçara, mas há uma regra de uso que nãopode ser violada: só podem coletar a juçara madura e interditam que seja coletada aindaverde. Os referidos moradores proíbem também a derrubada da juçareira. Regras de usosimilares, com proibição de cortar o cacho de coco e de extrair o coco verde, foramverificadas nas áreas de ocorrência de babaçuais, que se distribuem por praticamente todoo município de Alcântara.

Em Baixa Grande, a expressão "Terras de Seu Pedro" foi registrada por L.Galvão como sendo utilizada para designar tais áreas reservadas (Galvão, 1998:13). Nesteúltimo caso, além de herdeiro, o Sr. Pedro detém poderes9 para negociações com o Ministérioda Aeronáutica, respondendo formalmente pelas terras do povoado, localizadas límitrofesà área pretendida pela base militar. As chamadas terras de herdeiros aqui referidasacabam se confundindo parcialmente com um determinado imóvel rural cadastrado.Podem ser destacadas, a propósito dessas práticas preservacionistas e de conservaçãodos recursos naturais, aquelas que, implicitamente, deixam entrever uma preocupaçãoe um certo controle da pressão demográfica sobre o estoque de recursos disponíveis.A despeito de essas práticas observadas não poderem ser convertidas em norma, pode-se adiantar que há situações em que a força de trabalho familiar ultrapassaria o potencialdos terrenos de cultivo disponíveis ao grupo. Mediante fatos dessa ordem, o própriogrupo familiar é levado a estimular a saída de alguns de seus membros para centrosurbanos e regiões de fronteira agrícola, vinculando-os à receita familiar pelo trabalhoassalariado e acionando-os eventualmente em etapas do processo de trabalho agrícola,que requerem uma maior concentração de atividades, tais como as colheitas de arroz ede mandioca. Outro componente dessa estratégia familiar e comunitária implica na

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mudança geográfica do local de residência e de cultivo do próprio grupo domésticoou mesmo do próprio conjunto de famílias que constituem o núcleo central do povoado.Escassez de recursos essenciais nas proximidades do povoado, maior distância entreterrenos de cultivo e locais de moradia e brigas de famílias também concorrem paratanto. Isso explica por que certos povoados são abandonados e novos núcleos residenciaisvão sendo criados. Aru, por exemplo, em 1854 constituia-se no povoado central deuma rede de povoados e, em 2002, a última família que nele permanecera estava semudando para outro povoado. Situação semelhante foi observada, no decorrer dotrabalho de campo, com respeito a São Lourenço. Não se trata propriamente de umaitinerância, uma vez que as mudanças geográficas ocorrem dentro dos limites de umamesma territorialidade específica ou de uma mesma região socialmente delimitada,como veremos adiante.

Impõe-se uma distinção entre essa prática, que denota uma dinâmica dospovoados em relação ao potencial dos recursos naturais, e os impactos sociaisprovocados pela implantação da base. Apropriando-se de grande extensão de terra,deslocando compulsoriamente povoados inteiros para agrovilas, comprimindo-os emáreas tradicionalmente ocupadas por outros povoados e restringindo o estoque derecursos naturais ao alcance das demais famílias, a implantação da base militar provocouuma migração forçada e uma catástrofe natural. Ao localizar as agrovilas junto àsnascentes dos cursos d'água, os responsáveis pela implantação da base comprometeramrios e igarapés. O exemplo mais flagrante concerne ao rio do Pepital, que abastece asede municipal, cuja redução do volume d'água mostra-se drástica. Quanto à migraçãoforçada, foi registrada no trabalho de campo a célere ocupação de áreas da periferiada sede municipal por famílias procedentes de povoados com sua reprodução físicacomprometida. No perímetro urbano de Alcântara, acentuam-se tensões sociais,envolvendo centenas de famílias das comunidades remanescentes de quilombos e asdelimitações preconizadas pelo zoneamento definido pela Lei Municipal nº 224, de 10de outubro de 1997. Essas tensões envolvem também o Iphan. Foi possível constatar,inclusive, uma interpenetração entre as ruínas do casario assobradado e terrenos deplantio de mandioca e fruteiras, reatualizando no perímetro urbano relações de trabalhoe de uso comum de terrenos vagos características dos povoados10.

A história oral, ao registrar o reconhecimento social desse costume11 deapropriação, permanente e comum, do conjunto de recursos naturais imprescindíveisà existência das comunidades remanescentes de quilombo e do elenco de medidastransmissíveis, que disciplinam o seu uso, concorre para definir e consolidar direitos.Na mesma direção podem ser entendidas as iniciativas dos entrevistados deacrescentarem comprovantes à sua narrativa, recorrendo a croquis, plantas e basescartográficas. Em pelo menos três contatos, os entrevistados nos exibiram mapas,elaborados por agrimensores, assinalando as áreas de seus respectivos povoados –quais sejam, Arenhengaua, Canelatiua e Santo Inácio – e de povoados circundantes.Em quatro outros povoados, como São Raimundo, Itapuaua, Baixa Grande e SãoJoão de Cortes, apenas mencionaram que possuíam os documentos sem, no entanto,exibí-los. Em Ladeira, Iririzal e Samucangaua, a discussão ocorreu em cima de umesboço de mapa desenhado com carvão no piso de chão batido da chamada tribuna,

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que é a edificação que serve para a realização das reuniões. Em quase todos eles,indicaram-nos os marcos de pedra, denominados de pedras de rumo, que delimitam,desde a segunda metade do século XVIII, antigas concessões de terras a sesmeiros eque hoje correspondem aproximadamente às áreas que são reconhecidas comoconcernentes aos povoados.

Os próprios mediadores, porta-vozes das demandas do grupo, emboramuitas vezes também portassem mapas e documentos das áreas referidas e dispusessemde informações sobre a cadeia dominial – que, inclusive, subsidiam as reivindicações –e bem soubessem narrar as condições de apropriação dos recursos naturais, declinavamem favor desses mais velhos e passavam a ouvir atentamente os seus relatos12.Valorizavam tais narrativas, procurando coaduná-las com as reivindicações. Seusdepoimentos, nesse sentido, secundaram aqueles.

Os arquivos como discurso de legitimação

Foram realizadas, no decorrer das visitas aos povoados, entrevistas e conversasinformais com 31 pessoas numa faixa etária igual ou superior a 60 anos, correspondendo a 26homens e cinco mulheres. Elas distribuem-se por 25 povoados. Dezessete entre elas têm maisde 70 anos. Dez situam-se acima de 75 anos. Os entrevistados invariavelmente se autodefinemcomo pretos e assim são representados por aqueles com quem interagem socialmente, alémde terem nessa categoria uma manifestação de identidade coletiva refletida na designação daterritorialidade correspondente, ou seja, terra de preto.

A relação com esses agentes sociais13, que detêm a autoridade da memóriacoletiva, requer maneiras estandardizadas de agir, que denotam respeito profundo aos anciãos,como saudar com deferência ou pedir a benção. Expressam, de igual modo, formas deafinidade, compreendendo dezenas de afilhados14 e de conhecidos que guardam certafidelidade à amizade recíproca entre seus antecessores, numa vasta rede de relações sociaisevidenciando, também, que os povoados de Alcântara podem ser interpretados como seestruturando enquanto "entidades afetivas" (Prado, 1974:64) com hierarquias dadas peloparentesco e pelo compadrio, como já chamava a atenção R. Prado, em observaçãoetnográfica de 1972. Tais maneiras de agir vão, entretanto, além dessas reverências.Registramos pessoas solicitando dos entrevistados autorização para a retirada de madeira ede palha das reservas ou para utilizar um terreno para plantio, porquanto seriam eles,simbolicamente, os responsáveis pela administração do estoque de recursos disponíveis aouso comum de um grupo de famílias ou de um povoado como um todo. São relaçõesritualizadas ainda que se possa dizer que sua eficácia hoje é relativa, em virtude sobretudoda ação desapropriatória15 de 1980. Tal instrumento jurídico, que passou as terras para ocontrole formal do Estado com finalidade de implantação da base de lançamento defoguetes, desautorizou16 a ação reguladora desses agentes sociais. Foi possível constatar,entretanto, que tal autoridade está sendo reativada num contexto dramático e conflitivo emque percebem riscos de usurpação de seus domínios e de deslegitimação de seu modoespecífico de produzir, de fazer e de viver. A função do narrador, que relata a legitimidade

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das vias de acesso à terra e aos recursos básicos e a dinâmica de construção da territorialidadepelo grupo como um todo, torna-se vital numa situação de tensão social e conflito. Descrevê-la para quem realiza a perícia, que é um instrumento científico que contribui para respondera questionamentos sobre expectativas de direitos, significa um ato demonstrativo deafirmação de diferenças culturais, que os agentes sociais pretendem sejam reconhecidasjuridicamente. O reverenciamento ao narrador, nesse contexto, significaria também umaforma ritual de o grupo destacar a maneira de acessar o seu arquivo ou conhecimentosacumulados sobre a trajetória do conjunto de famílias que estruturam o povoado.

A descendência evidencia, ademais, um tempo histórico e um processo deprodução permanente, comprovado pela distribuição das atividades econômicas das famíliasem terrenos não-contíguos, distribuídos ao longo de uma extensa área, e pela residênciaduradoura. O ato de me levarem à casa das pessoas indicadas já representava, pois, umaevidência comprobatória acerca da ancianidade do lugar, porquanto propiciava o acessodireto às fontes de referência constitutivas dos arquivos do grupo focalizado, dando umaexistência física à história. Tanto a descendência, símbolo de um passado distante, quanto aresidência, que no presente expressa uma idéia de continuidade, estão relacionadas de modocomplexo à ecologia, ao conhecimento profundo do ecossistema e ao controle permanentede bens econômicos que traduzem as condições de possibilidade da reprodução física esocial. Considerando esta relação entre tempo e espaço, não é difícil perceber a lógica daseleção de quem deveria falar antes que qualquer outro.

Encontrei-me, portanto, diante de uma certa divisão do trabalho dereconstituição histórica que transcendia aos esquemas práticos dos mediadores e de liderançassindicais, religiosas e políticas, os quais sintetizam o projeto coletivo do grupo e atuam emfunção de suas necessidades frente ao Estado e aos demais poderes instituídos. Ademonstração, pelos entrevistados, de um certo conhecimento factual, intrínseco ao grupo,de uma extensa nominata de ancestrais, de uma extrema familiaridade com o meio biológico,descrevendo caracteres genéricos da flora e da fauna locais, de um repertório de informaçõessobre a piscosidade dos igarapés e dos meios lingüísticos para descrever confrontantes elindeiros, utilizando um conjunto de termos próprios da documentação cartorial de registrode terras dos séculos XVIII e XIX17, consiste em etapa preliminar de uma confrontaçãomaior. Ao elegerem para narrar os que detêm esse saber genuíno e são dotados de umacompetência e de uma habilidade legítimas, que nem sempre se restringem a acontecimentosdiretamente úteis, os agentes sociais afirmam um ponto de vista criteriosamente articuladoe bastante denso, desautorizando outras possíveis versões. A história oral do grupo,transmitida de maneira detalhada e geograficamente precisa pelos responsáveis em preservara memória coletiva, expressa, desse modo, uma modalidade afirmativa de interlocução,como se a própria perícia estivesse enredada numa polêmica e pudesse assim ir dirimindoelementos possíveis de dúvidas.

A seleção desses entrevistados pelos agentes sociais, eles mesmos,exprime por si só um ato de delegação que, em certa medida, contém uma percepçãode direitos coletivos e uma expectativa de que a perícia tenha como resultante oesclarecimento. Quem é instado a falar o faz com a autoridade de um "documentovivo" e de referências cartográficas irretorquíveis em oposição aberta às pretensõesde antagonistas que porventura pretendam seus domínios territoriais, suas terras e

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demais recursos básicos. As entrevistas, nesse sentido, podem ser assemelhadas a umdiscurso de legitimação, sancionado, seja pelos mediadores, seja pelo próprio grupo.Através dessa modalidade discursiva, colocam suas tradições, seus elementosidentitários e suas formas de controle e de uso dos recursos naturais em consonânciacom as disposições jurídicas, refutando implicitamente qualquer interpretação contrária.

Nas narrativas dos entrevistados, após asseverarem que essas terras pertenciamoriginalmente aos índios, retrocedem a um número determinado de gerações, condicionadosempre por aquele ancestral ou pelo grupo de parentes que facultou o livre acesso aosrecursos naturais. O quadro genealógico dos antepassados tem sua origem na geração ouna pessoa que assegurou o controle da terra, de maneira autônoma, para o grupo doméstico.A narrativa memorialística, mesmo variando o número de gerações citadas pelos diferentesentrevistados, retrocede até a situação em que ocorre o mencionado acesso à terra. A regrade descendência, que filia o entrevistado àquele ancestral ou grupo de parentes, provê tantodireitos permanentes quanto obrigações concernentes à garantia de reprodução dos recursosessenciais ao grupo. São esses os fundamentos dos laços solidários que consolidam a coesãosocial na organização dos povoados e na interligação que historicamente passam a manterentre si.

As entrevistas podem propiciar informações que, ao pesquisador, não épossível checar inteiramente, como genealogias de famílias escravas e atos de divindades,mas, enquanto representações significantes para os entrevistados, não constituem verdadeou mentira, sendo tão-somente o que vivem, acreditam e enfatizam como dando sentido àsua organização social. Podem ser lidos dessa maneira os acontecimentos pertinentes àsdivindades. A menção explícita aos santos, às santas e às irmandades é igualmente posteriorà referência aos índios, circunscrevendo os atos de sucessão das famílias responsáveis pelamanutenção do sacro patrimônio e suas respectivas relações contratuais com as divindades.

A divindade é registrada formalmente como proprietária do imóvel, comoseria o caso de Nossa Senhora do Livramento18. De igual modo sucede com a Irmandadedo Santíssimo Sacramento19. Santa Teresa, por sua vez, é representada como uma santaviva, que inclusive teria uma irmã igualmente santa, que caminha à vista de muitos,percorrendo seus domínios, assim como São João Batista e Nossa Senhora do Livramentoem suas respectivas terras. Uma vez encontrados nos campos, rios e matos, são semprerecolhidos pelos fiéis e levados às suas respectivas capelas em forma de imagem. As portasdos templos são cerradas para evitar que saiam outra vez. Ocorre, entretanto, queinvariavelmente escapam, sem que se saiba como e para onde. Quando as capelas sãoabertas, eles já se foram. "Nada consegue detê-los", de acordo com as assertivas dosentrevistados. Nas terras de Santa Teresa, registra-se ainda uma variação: existem três imagensde tamanho diferente, mas apenas uma delas é apontada como santa viva e milagrosa, quejá foi levada várias vezes para Alcântara e sempre escapa de lá, retornando para sua capelaem Itamatatiua. Para Lopes, referindo-se a N. S. do Livramento, seriam "imagens migradorascomo referem os folcloristas" (Lopes, 1957:302). Do ponto de vista da presenteinterpretação, seriam relações próprias de contratos diádicos firmados para legitimar o usocontinuado de recursos. Santos e santas são representados como fiscalizando seus patrimônios.Santa Teresa é vista percorrendo os campos e olhando os terrenos de plantio e seus rebanhosao sul do município de Alcântara. Do prisma de quem narra, ela estaria cumprindo as

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expectativas de sua posição assimétrica numa relação contratual efetiva. E tanto assim é queum dos entrevistados relata que presenciou a conversa de uma senhora com a imagem dasanta, tratando-a por "Sinhá" (H.M. 26/04/2002 ENT. 25)*. De modo similar, São JoãoBatista era visto com uma vara de pesca na beira de lagos e igarapés a noroeste do municípiomas, consoante os entrevistados, ele teria sido levado para outras terras e substituído naigreja de São João de Cortes por uma simples imagem que, como tal, se mantém imóvel20.Esses episódios de antropomorfismo ou que atribuem às divindades comportamentoscaracterísticos de seres humanos não transformam exatamente os santos em "patrões",uma vez que, historicamente, o ato de fugir para as terras sob proteção divina significouuma via de acesso à liberdade e à consolidação dos quilombos em Alcântara. Os registrosde sucessivas ocorrências de quilombos nessas terras, entre 1837 e 1868, bem ilustram suadiferença em face da severidade dos mecanismos escravistas dos engenhos. Para além dosregistros de terras e das narrativas míticas, está-se diante de contratos firmados entre asdivindades e os moradores das áreas, que são operacionalizados através de um corpoadministrativo de funcionários religiosos, denominados encarregados da terra ou aindaencarregados da santa, que zelam pela capela, organizam os rituais religiosos e coletamdonativos, designados localmente como jóia, caso das terras de Santa Teresa, emItamatatiua21. Tais funcionários integram também as chamadas comissões, como no casodo patrimônio de São João Batista, em São João de Cortes, como arrecadadores eadministradores de um fundo cerimonial para realização periódica das festas e demaisrituais religiosos.

Para dar conta dessas variações, os agentes sociais reconstituem as vias deacesso aos recursos naturais e a consolidação de seu domínio com um repertório deexpressões e categorias peculiares que se distinguem das disposições jurídico-formais depropriedade e de titulação privada, evidenciando territorialidades específicas que contrastamcom a estrutura agrária de Alcântara, tal como oficialmente descrita, e lhe conferemparticularidades. Há uma contradição flagrante entre a difusão e a persistência dessascategorias na vida social dos povoados e a noção comumente difundida de que agoratrata-se de "terras da base". A colisão de classificações evidencia a profundeza dosantagonismos e possibilita uma interpretação do conflito a partir de formas diferenciadasde representação da terra, que evidenciam, por um lado, uma noção geográfica e mercantil,enquanto bem físico passível de indenização, e que manifestam, do lado oposto, um processode construção de territorialidades, resultante da mobilização de comunidades estruturadassocialmente em povoados. Para efeito de apresentação e síntese do significado dessascategorias, pode-se adiantar, grosso modo, que: no contexto da descendência e dos atributospelos quais se auto-representam e são vistos, os entrevistados mencionam as denominadasterras de preto e terras de caboclo; no contrato com as divindades, referem-se às terras

de santo, terras de santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras santistas

e designações aproximadas como irmandade; no contexto de regras de sucessão etransmissão de patrimônio, falam de terras de herdeiros e terras de parentes.

* Entre parênteses, a forma padrão de referência às entrevistas realizadas durante a perícia, da qual constam: iniciais do

entrevistado, data e número de ordem. (n.e)

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Consoante os termos documentais de registros do período colonial, falam dedatas e sesmarias. De acordo com termo de doação específico, firmado em cartório,referem-se a terras da pobreza. Nos registros paroquiais, encontramos menção a terras deirmandades religiosas e das próprias divindades. No contexto de transferência de imóveisrurais adquiridos e registrados em cartório, mesmo que sem formais de partilha efetivados,falam também de terras de herdeiros. Sobre as terras devolutas municipais, mencionamas chamadas terras da Câmara. Perpassando todos os diferentes planos formais einformais, da identidade coletiva e dos contratos diádicos, falam de terra de índios,quando tratam da referência original ao domínio das áreas, e de terra comum, no quetange à relação antrópica e às regras de uso dos recursos naturais. Estas duas últimasdesignações perpassam todas as outras situações mencionadas. Quanto aos denominadosbrancos, as narrativas memorialísticas jamais falam em terras ou recursos naturais, senãocom referência a um passado remoto, cingindo-se a mencionar tão-somente as ruínas doque teriam sido suas moradias, classificadas como taperas de branco.

Adiantando na análise das interrelações, pode-se asseverar que taisterritorialidades específicas se interpenetram simbolicamente, consoante o tipo de critérioque possibilita sua delimitação em diferentes planos organizativos, fazendo, por exemplo,com que as intituladas terras de preto ou as terras de caboclos se imbriquem com asterras de santo e com as chamadas terras de herdeiros sem se imbricarem necessariamenteentre si. Nessa ordem, elas não seriam redutíveis a uma noção de terra, enquanto recursobásico, ou a uma distinção de domínio, quer dizer, entre posse e propriedade. Em verdade,constituem territórios construídos historicamente e legitimados por um sistema de relaçõessociais intrínseco a cada uma das situações em jogo.

A multiplicidade das formas de propriedade e de apossamento e acomplexidade das relações entre elas, que concernem a tais territorialidades, por si sóscontrariam a homogeneização oficialmente imposta pelo aparato administrativo do Estado.Através das estatísticas cadastrais do Incra, que utilizam a categoria "imóvel rural", e docenso agropecuário do IBGE, que utiliza a categoria "estabelecimento", tem-se a sínteseda classificação oficial adotada pelo Estado em termos de estrutura fundiária. Apropriedade privada e a posse, com suas variações, enquadrariam qualquer modalidade dedomínio e de uso da terra. Os procedimentos censitários e de cadastramento elidem ofator étnico, excetuando-se os casos de tutela, tal como sucede com os povos indígenas, ereprimem toda diferenciação no interesse da uniformidade. As situações peculiaresempiricamente constatadas têm que se conformar necessariamente à padronização instituídaou correm o risco de não existirem enquanto realidades censitárias e cadastrais, isto é, nãoterem existência legal.

Em Alcântara, há formas de apropriação dos recursos da natureza que nãosão individualizadas – como no caso de "imóvel rural", baseado na noção de propriedadeprivada – e nem estão apoiadas na noção de unidade de exploração, independente dadominialidade, tal como o IBGE define "estabelecimento". Combinando-se essas formasintrínsecas com a mencionada elisão do fator étnico, resulta que são mantidas sob umainvisibilidade social, não obstante serem legítimas e efetivas. As múltiplas formas de

apropriação e uso da natureza, designando territorialidades específicas, convergem

para o processo de construção do território étnico das comunidades remanescentes

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de quilombos. Além de requererem novos procedimentos de classificação oficial,

elas consistem numa conquista efetiva, historicamente consolidada, que não pode

mais ser ignorada técnica e juridicamente e por si mesma perfila-se em face do

conflito em jogo.

Pode-se asseverar, portanto, que quem fala, nas entrevistas, já faz da narrativaum argumento. Está-se diante de uma fala que enuncia uma percepção de diferenças culturaisem face da representação e uso dos recursos da natureza e que, de maneira implícita,demanda reconhecimento formal como remanescente de quilombos.

Ao considerar que nos trabalhos de perícia há características de identificaçãoque não podem ser conhecidas discursivamente e demandam atos de pesquisa e deobservação in loco, pode-se dizer também que foram tornados argumentos os própriosroteiros e itinerários de visitas quase imperceptivelmente impostos ao perito. Transcendendoàs narrativas, cabe observar que, nos povoados visitados, sempre me instavam a caminharaté seus terrenos de cultivo e até os escombros ruiniformes que são designados indistintamentecomo muralhas e paredões ou, quando há referências mais específicas, como engenhos

e, ainda, quando há referencias explícitas a moradias ou antigas sedes de fazendas, comotaperas de branco e sítio velho. Incentivaram-me também a percorrer as linhas delineadaspelos marcos de pedra enterrados nas extremidades das áreas, que remontam ao períodocolonial e são chamados pedras de rumo. Ainda que localizados muitas vezes em lugaresdistantes e encapoeirados, que demandavam mais de hora de caminhada por trilhas nãonecessariamente livres de matos, como no caso dos limites entre São Raimundo, Cajiba eTimbotiua22, havia insistência para tanto. Mostrando-me as letras, que afirmavam serem asiniciais do nome dos povoados limítrofes, e os sinais gráficos gravados na face superior daspedras de rumo, era como se estivessem me apresentando a territórios específicos dedelimitação indiscutível com as evidências letradas próprias dos registros escritos, quesimbolizaram a dominação colonial sobre sociedades ágrafas.

Os mediadores e o discurso da mobilização

Os contatos mais detidos e entrevistas com lideranças de povoados emediadores que exercem o trabalho de delegação, incluindo-se representantes de entidadesde representação e movimentos23, compreenderam 31 pessoas e um número pelo menoscinco vezes superior se totalizarmos os que participaram de reuniões ocorridas no decorrerdo trabalho de campo. Outros contatos detidos foram realizados com associações voluntáriasda sociedade civil, entidades confessionais e entidades de apoio24, que atualmente integramas mobilizações pelo reconhecimento dos direitos dos remanescentes de quilombos.

Não constitui, por conseguinte, qualquer redundância reiterar que os trabalhosrelativos à perícia foram realizados numa situação de antagonismos latentes e que as narrativasdos entrevistados, quaisquer que sejam, refletem de modo explícito a agudez desses conflitos.Eles vivem a ameaça constante de perder bens essenciais. Consideram que suas característicasculturais mais antigas e contrastantes mostram-se abaladas por circunstâncias recentes, externasà sua dinâmica histórica. Referem-se mais diretamente à implantação da base de foguetesdo Centro de Lançamento de Alcântara que, desde 1980, vem limitando drasticamente a

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sua sobrevivência física, sobretudo ao desapropriar extensa área, ao deslocarcompulsoriamente povoados centenários, afetando a reprodução das famílias, como ocorreuem 1987, e ao ameaçar deslocar outros. Ressentem-se de uma total indefinição quanto aofuturo. Evidenciam isso ao sublinhar que os responsáveis pela implantação do CLA, nesses22 anos, desde a decretação da área, jamais lhes apresentaram publicamente um cronogramade execução das atividades previstas referentes a deslocamentos de famílias, para que possamter conhecimento das operações de que são objeto. Em certa medida, externam umapercepção crítica quanto à maneira de serem tratados como se não existissem enquantosujeitos ou como se fossem "coisa", associando a ação do CLA, nesse contexto, a umaespécie de volta a um passado remoto que intitulam "tempo de escravidão" ou "antesdos brancos irem embora". Interdições à pesca e à coleta e ao livre deslocamento pelaspraias e caminhos, agora controlados pela base militar, reforçam esse sentimento. Oestado permanente de precariedade e de incerteza sobre o futuro próximo e quanto aoslocais de moradia, de cultivo e da realização de atividades extrativas, vivido há mais deduas décadas, abala as condições elementares de reprodução social. A sensação oprimidade não controlar o presente produz uma incapacidade de fazer planos e de segui-los. Opânico e o medo diante de uma ordem superior que poderá, a qualquer momento, determinaro deslocamento geográfico não se sabe para onde inibe a ação dos que administram osrecursos naturais disponíveis aos grupos familiares que constituem os povoados. A honra ea dignidade dos chefes de família acham-se seriamente afetadas diante da insegurançacontinuada. Acontecimentos dessa ordem, que serão analisados adiante, levaram osentrevistados a ativar a memória de maneira seletiva, além de provocar impactos sobre suapercepção de si mesmos diante dos direitos coletivos instituídos juridicamente para assegurara persistência de diferenças culturais e étnicas.

Em virtude disso é que se pode destacar previamente que o conflito social emAlcântara institui uma forma de presencialidade do passado, levando os procedimentos detrabalho de campo relativos ao laudo pericial a discutirem fatos de uma memória oculta ehistoricamente reprimida25. Esse tipo de memória é provocada por uma situação limiteque, ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentesacontecimentos, representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidossegundo uma invisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade paraque venha à tona o ideal de autonomia e de trabalho livre, por conta própria. Constata-sea emergência de novas formas organizativas e de uma mobilização constante de resistênciados entrevistados a formas de imobilização da força de trabalho, a deslocamentoscompulsórios e a outras medidas repressoras que reatualizam cotidianamente práticas deum regime escravista. Nesse contexto é que representam como submissão e que é vividacomo rebaixamento moral a situação dos que foram deslocados para as agrovilas e queforam desprovidos dos meios de se manterem por conta própria. Em contrapartida,ganham visibilidade antigas práticas clandestinas, ocultas, que permitem mapear Alcântarapelas traços contrastantes em face de um sistema escravista que ainda na vigência daadministração colonial não conseguiu manter imobilizada de maneira plena a força detrabalho. Multiplicam-se marcas evidentes dessa resistência, dispersas em designações docotidiano que reativam a memória coletiva. Designam, por exemplo, como mocambo26,consoante a toponímia local, um lago localizado próximo ao povoado de Peru, ou um

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outeiro em Castelo, ou um grupo de casas no antigo Jarucaia ou, ainda, os denominadospalheiros, edificações cobertas e revestidas nas laterais somente com folhas de pindova,como foi possível observar em Rio do Pau. Podem ser ressaltadas também as referênciasconstantes a locais de refúgio, em trechos de capoeiras mais densas, onde há menções avelhas trilhas de escravos, como em Esperança e Itapuaua. E as menções a lugares ondepernoitavam escondidos ou onde diziam haver ossadas de gado roubado, pedaços de tirasde couro esgarçadas ou ainda onde diziam haver restos de ostras acumulados, que seriamvestígios do comer às escondidas, como em Brito, Itapera e Itapuaua. Embora não tenhahavido menções explícitas a terrenos de cultivo nesses lugares, sempre enfatizam que haviamuita farinha e que nas farinhadas se comia à vontade. Uma das qualidades de mandiocamais plantada é denominada "Joana Forra". O nome, reverenciando uma escrava liberta,evidencia autonomia e o fato de que a origem da espécie nada tem a ver com a grandeplantação. Há ainda um povoado cujo nome encerra este sentido simbólico: "Fora Cativeiro".Utilizam o termo cativeiro para designar o regime de trabalho forçado no período coloniale hoje. Todos esses locativos constituem de maneira idealizada lugares de liberdade queexprimem um viver livre e por conta própria, seja no processo de produção, seja na esferado consumo, fora do alcance da ação coercitiva de outrem. Entre eles, importa destacar osque são conhecidos localmente como toca, que é um sinônimo de esconderijo27.

São freqüentes também casos referidos à fuga ou pegação, que é comonomeiam as formas de recrutamento obrigatório para prestar serviços guerreiros ou militares.Narram casos das andanças na beira-campo de Santo Antonio e Almas do "bandido" que,fugindo da prisão, buscava vingança e "matava feitores", lembrado pelos mais velhos como"negro Tito"28. Relatam situações passadas em que todos os homens dos povoadospermaneciam escondidos nas matas ou em que adolescentes ficavam escondidos sob assaias das mães para não serem levados29. Para onde seriam levados, nunca se sabe ao certo,mas os entrevistados sempre fazem menção a guerras e as especificações circunscrevem-se,no mais das vezes, à mencionada "guerra paraguaia". Esses depoimentos foram coletadosem São Raimundo II, Canelatiua, São João de Cortes e Baixa Grande. Enquanto narrativas,para além da questão da fidedignidade dos fatos, podem ser lidas como míticas ou comorelatos simbólicos da recriação constante da sua condição de "libertos". Elas privilegiam,nesse sentido, atos de resistência a medidas de constrangimento, as quais sempre parecempretender reinstaurar o que classificam de "tempo da escravidão". Tais atos são vividoscomo elementares para revigorar a coesão entre os grupos familiares e manter os planosorganizativos que estruturam socialmente os povoados.

Transcendendo a um mero léxico, tem-se um repertório de ações que negamdisposições impositivas, capazes de cercear seus movimentos ou ainda de subordiná-lospela força bruta. Essas ações, embora à margem do ordenamento jurídico colonial, nãosão vividas necessariamente como transgressões. Ao contrário, são narradas como legítimase tanto mais pelos mediadores do grupo – líderes sindicais, representantes de povoados,mandatários municipais, militantes do Movimento Negro – cujos depoimentos dereinterpretação dessa ordem de fatos são relevantes30. Além disso, aquelas práticas deresistência resultam por convergir para uma categoria construída simultaneamente: tanto apartir de um critério político-organizativo, que contesta a subordinação com a afirmaçãode uma identidade étnica, quanto de uma autonomia no processo produtivo e na esfera deconsumo. A combinação de ambas corresponde à noção ressemantizada de quilombo31.

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O significado de quilombo compreende um processo de trabalho autônomo,que por atos deliberados recusa a submissão forçada a terceiros, e as respectivas práticas deuso comum dos recursos e de livre comercialização de sua produção agrícola e extrativa.Compreende formas de cooperação simples e práticas de reciprocidade positivas entre asunidades familiares que se agrupam sob uma mesma identidade diante dos mesmos antagonistas.Tem-se, aqui, uma afirmação, simultaneamente étnica e econômica, de produzir para circuitosde mercado e de reverter domínios fundiários reconhecidos pela legislação colonial, em virtudede os grandes proprietários terem perdido o seu poder de coerção, como no caso de Alcântara,e buscado acordos verbais prometendo alforria e terras, ante a incapacidade de saldarem suasdívidas com comerciantes e de proverem os recursos para a "escravaria" se alimentar e produzir.Nesse sentido, vale repetir: não importa tanto se o quilombo acha-se localizado distante oupróximo das casas-grandes ou os demais aspectos formais da definição do período colonial,mais valendo o grau de autonomia que os membros das comunidades remanescentes dequilombos historicamente adquiriram e a territorialidade específica que socialmente construíramem sucessivos atos de resistência, que resultaram numa identidade coletiva consolidada e nagarantia da persistência de suas fronteiras.

A transição do léxico de rotina e de ações de resistência atomizadas eindividuais para uma identidade que expressa uma existência coletiva não é simples, e sóse mostra factível, no caso analisado, mediante uma mobilização étnica, entendendo-se ogrupo étnico como tipo organizacional (Barth, 2000:11), isto é, o grupo passa a ser vistocomo uma forma de organização social. Enquanto há grupos que não se mobilizam

em torno de seu pertencimento étnico que sugere auto-evidente, há outros que,

diante da invisibilidade social prevalecente, como no caso de Alcântara, têm que

construí-lo. A vicissitude dessa construção implica em se fazer conhecido em face dosoutros de uma maneira distinta, através de atos que expressem uma existência coletiva.As formas de organização e as estratégias de mobilização continuada contra circunstanciaisantagonistas significam instrumentos que tornam factível esta passagem. Detectá-las edescrevê-las torna-se uma condição essencial na identificação das comunidadesremanescentes de quilombos e consiste justamente no objeto desta perícia.

A partir dessas narrativas, relativas aos arquivos e aos mediadores, dasobservações diretas realizadas no decorrer do trabalho de campo e ainda da consulta às fontesdocumentais32 e arquivísticas, passarei a seguir à análise do processo de territorialização, deslocandoo foco da pesquisa da constituição interna do grupo e de sua história para as fronteiras étnicas esua persistência através de conflitos e de constantes mobilizações (Barth; 2000:27).

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Processo deterritorialização das

comunidades remanescentesde quilombos

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Moradias

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O processo de territorialização ora em pauta não pode ser pensado consoanteum desenvolvimento linear, evolutivo e contínuo, incorporando gradativamente novas árease sempre tendendo a fortalecer, de modo ascencional, uma determinada identidade étnicaou regional. Somente uma interpretação historicista e acrítica poderia estabelecer umacontinuidade e um sentido uniforme na formação desses territórios de quilombos. Não setrata, pois, de privilegiar uma reconstituição histórica sem fim em busca de precursoresoriginais, traçando a partir daí as recorrências e as tendências constantes até alcançar asreferidas comunidades. Ao contrário, conforme se pode perceber no caso de Alcântara,com apoio em copiosas referências bibliográficas,1 prevalecem descontinuidades. Assim,desde 1755, com a "abolição da escravatura indígena", a criação da Companhia Geral doGrão-Pará e Maranhão e o confisco das fazendas da Companhia de Jesus2, até 1888, coma "abolição da escravatura pela Lei Áurea", e daí até a Constituição de 1988, esse processoapresenta-se marcado por rupturas e intermitências, delineando uma diversidade de situaçõescom temporalidades distintas. Tais situações mostram-se bastante heterogêneas econdicionadas por transformações políticas e econômicas relativas aos mecanismosrepressores da força de trabalho tanto no período colonial, quanto no republicano. Dosconflitos a que estão referidas, resulta uma diversidade de formas de apropriação da terra,cada uma com sua especificidade, cada uma com suas características peculiares. Oconhecimento concreto dessas situações concretas consiste numa via de acesso às vicissitudesdo processo de territorialização, evitando simplificações e reducionismos. Para distinguí-lasde modo mais detido, designei-as como territorialidades específicas, mantendo seus traçosintrínsecos. Correspondem a elas as denominadas terras de preto, terras de caboclos eterras de santo, tal como representadas pelos agentes sociais, isto é, pelos sujeitosresponsáveis pelo seu advento. Com suas respectivas variações, elas convergemdiferenciadamente para a formação de um território étnico, que é a expressão maior, emAlcântara, do processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos,evidenciando sua extrema complexidade.

Mediante esse enfoque, não há qualquer consistência na suposição de que aautonomia produtiva, característica dos quilombos, foi aumentando, aumentando eincorporando extensões cada vez maiores ou que o tempo livre para os escravostrabalharem por conta própria, dentro das fazendas, a partir da queda do preço doalgodão, foi dilatando, dilatando até que passassem a trabalhar somente para si mesmosem virtude da ausência dos senhores ou pelo seu completo abandono das terras. Adinâmica da construção da territorialidade mostra-se, sobretudo, relacional e disruptiva,caracterizada por antagonismos que tanto fazem avançar rapidamente a citada autonomia,quanto geram refluxos e contramarchas. Enquanto processo social, tal dinâmica não pode

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ser reduzida a um mero componente fundiário ou a um elemento da estrutura agrária,embora esteja referida a conflitos que se manifestam nas relações com os meios de produção.Ainda que não se restrinja à terra, ela a tem como referência empírica, objeto de conflitosabertos e de diferentes modalidades de apropriação que podem, em dado momento,constituir particularidades. As clivagens decorrentes dessa dinâmica representam, inclusive,marcos significantes para os membros daquelas comunidades, os quais se mobilizamcoletivamente ao perceberem a movimentação de seus antagonistas históricos e,coextensivamente, as alterações porque passam os instrumentos de imobilização da forçade trabalho a as demais medidas que impedem seu livre acesso aos recursos naturais. Essesinstrumentos, característicos de sociedades autoritárias fundadas em princípios escravistas,permanecem sendo constantemente redefinidos e reativados, principalmente através dedispositivos jurídicos e de atos que perpetuam o monopólio da terra e formas deendividamento com propósito de imobilizar a força de trabalho. Uma ilustração disso seriaa retomada sucessiva de aparatos de dominação circunstancialmente debilitados através denovos instrumentos repressivos instituídos pela legislação provincial do Maranhão diantedos quilombos, em 1835, antes da guerra da Balaiada; em 1839-1841, durante a Balaiada;em 1847, com as medidas modernizadoras de reorganização dos engenhos de açúcar; em1867, sob a pressão da Guerra do Paraguai, e em 1878, com as discussões públicas sobrea exportação de escravos das províncias do Norte e Nordeste para o Sul do Império.Após a campanha abolicionista, os atos efetivos, objetivando instituir aforamentos e"cobranças de renda", em fins do século XIX e meados do século XX, bem ilustram aregularidade de adoção de mecanismos repressivos da força de trabalho. Todos essesmomentos críticos expressam antagonismos sociais profundos e um quadro de tensõesque não foi e nem poderia ser suprimido por uma disposição jurídico-formal.

De igual modo podem ser pensados os conflitos sociais decorrentes das açõesdesapropriatórias de 1980 e 1991 que recolocam a questão do estatuto jurídico das terrasdo município de Alcântara e, de maneira contrastante, trazem a público a discussão sobre oterritório das comunidades remanescentes de quilombo, fundada no que preconiza aConstituição Federal, promulgada em outubro de 1988, notadamente no Art. 68 do ADCT.Mesmo considerando que a noção de território não se atém necessariamente a um sentidogeográfico e nem corresponde de maneira estrita ao sentido jurídico de propriedade deterras, descortina-se um novo significado dessas situações focalizadas, que manifesta arelevância dos fatores étnicos no sistema de relações sociais que concerne à estrutura agrária.

O referido processo de territorialização, nessa ordem, torna-se mais factívelde ser analisado pelas rupturas, como aquelas resultantes da desagregação das fazendas dealgodão, desde fins do século XVIII, simbolizadas pelas ruínas das casas-grandes e engenhos.Pode ser analisado, também, pela intensidade dos conflitos, mediante o reposicionamentodas forças de dominação escravistas, no decorrer do século XIX, com a tentativa"modernizadora" dos engenhos, e mais recentemente, em 1980, com o início da implantaçãode um grande projeto governamental. Na análise a seguir apresentada, incluiremos ainda osatos de mobilização e de afirmação étnica dos membros das comunidades remanescentesde quilombos com as respectivas respostas dos aparatos de poder. Incluiremos,principalmente, os fatos significantes na própria forma de eles representarem os meandrosdessa construção social do território.

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Consoante estudos anteriormente realizados, pode-se asseverar, para efeitosde introdução, que o conhecimento da estrutura agrária de Alcântara aponta paraparticularidades históricas e de natureza étnica que a distinguem de outras regiões da Amazôniae do Nordeste.

O intenso movimento de concessão de terras em Alcântara com grandesestabelecimentos agrícolas, apoiados no trabalho escravo e na monocultura de algodão,beneficiados por vantagens financeiras e mercantis propiciadas pela Companhia Geraldo Grão-Pará e Maranhão, a partir de 1755, teve duração efêmera. As concessões desesmarias foram articuladas com a desativação das capitanias e com o confisco das terrasde ordens religiosas e a expulsão dos jesuítas, ampliando os estabelecimentos de agriculturatropical. Embora essas medidas pombalinas tivessem dinamizado o processo produtivoe colocado os produtos do Maranhão e, notadamente, de Alcântara – que era considerada,em 1760, a vila mais próspera da região – no mercado internacional, seus resultados nãoforam duradouros. Diferentemente da costa nordestina, em que as grandes plantaçõesde açúcar mantiveram-se, durante o período colonial, como o centro dominante maisestável da economia brasileira (Velho,1976:115), em Alcântara ocorreu um abrupto declíniodos estabelecimentos agrícolas dedicados ao cultivo do algodão a partir da extinção daCompanhia Geral, em 1778, e do fim de seu monopólio comercial. A alta dos preços noúltimo quartel do século XVIII, propiciada pela expansão da indústria têxtil britânica epela independência das colônias inglesas que vieram a formar os Estados Unidos, mesmotendo gerado divisas e caracterizado um período de "prosperidade no Maranhão"(Furtado, 1975:90), não foi suficiente para assegurar um desenvolvimento constantedaqueles empreendimentos agrícolas. Enquanto no Nordeste os estabelecimentosaçucareiros incorporaram tecnologia e se transformaram em plantations1 não obstante atendência secular a uma decadência gradativa – em virtude, sobretudo, da competição,na segunda metade do século XVII, das plantações das Antilhas –, em Alcântara osestabelecimentos agrícolas não lograram estabilidade nem desenvolveram uma parteindustrial para beneficiamento do algodão, e desagregaram-se vertiginosamente. Após osefeitos da guerra de independência, entre 1776 e 1778, os Estados Unidos organizaramsua economia de plantations no Sul, passando a produzir algodão em maior quantidade,com fibra de qualidade superior, e a controlar o mercado mundial do produto no iníciodo século XIX. A queda de preço do algodão, resultante dessa reorganização do mercado,chegou ao fundo do poço em 1819 e acentuou o endividamento dos fazendeiros junto

Territorialidades específicas,estrutura agrária e situação

atual dos conflitos

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às casas comerciais portuguesas e inglesas de São Luís2, apressando o abandono dasfazendas em Alcântara.

As limitações ecológicas, de solos frágeis e arenosos, e o uso predatório dosrecursos naturais com queimada das matas para plantio de algodão e de cana-de- açúcar,durante mais de quarenta anos consecutivos, numa área não superior a 120 mil hectares,também teriam contribuído para o célere declínio da economia algodoeira. A devastaçãodessa área foi registrada a partir de observação direta feita pelo coronel engenheiro Pereirado Lago, em janeiro de 1820, quando de sua passagem pela estrada do Pirau-açu (Periaçu),que alcançava o Grão-Pará, passando pelas fazendas entre a cidade de Alcântara e o portode São João de Cortes (Pereira do Lago, 1872:388). A expansão das fazendas de algodãoteria se defrontado com limites insuperáveis, ocasionando uma derrocada em Alcântaraprofundamente devastadora e distinta daquela do Vale do Itapecuru, que tanto no períododa Guerra de Secessão norte-americana (1860-1865), quanto no final do século XIX,conheceu inclusive uma reativação do plantio de algodão consolidado até a década de1950-60 pelas indústrias têxteis de Codó, Caxias e Coroatá.

Em conformidade com a formulação teórica de Wolf e Mintz, pode-seasseverar que em Alcântara não teriam ocorrido plantations, mas tão-somente fazendas.Ademais, ocorreu uma absoluta desagregação dessas fazendas, que, pelas exigências régiasde confirmação, não eram propriamente propriedades privadas, senão concessões desesmarias realizadas pela Casa Real. Num tempo historicamente curto, elas simplesmentedeixaram de existir. Não houve qualquer transição para trabalho assalariado, nem tampoucoocorreu um desmembramento dos grandes estabelecimentos com a formação de umcampesinato parcelar individualizado em pequenas glebas, que posteriormente foramreconhecidas como propriedade privada.

O processo de desagregação dessas fazendas de algodão levou inicialmenteao advento de uma pequena agricultura subordinada, correspondente a uma situaçãoincipiente e intermediária entre escravo e camponês ou ainda a um "protocampesinatoescravo", caso se considere a interpretação de Mintz, relativa às plantations de sociedadescaribenhas (Haiti, Cuba, Santa Lucia, São Vicente)3, como fenômeno aproximável. Adesorganização da produção algodoeira em Alcântara foi, entretanto, de tal ordem etão completo foi o abandono das fazendas pelos senhores – vendendo telhas, baldramesde casas-grandes destruídas, desmontando meios de trabalho e demais benfeitorias –,que tão logo resultou só em ruínas, como se poderá constatar no tópico desta períciaintitulado "Muralhas e paredões: as ruínas das casas grandes e dos engenhos comofator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos". Semelhantedesmonte viabilizou o surgimento de uma camada de pequenos produtores agrícolascom autonomia no processo produtivo, desenvolvendo práticas de uso comum derecursos naturais bastante exauridos, e relativamente livres da dominação senhorial. Aautoridade senhorial nessas fazendas tornou-se mais simbólica, tal como já sucederacom o senhorio eclesiástico nas terras da Companhia de Jesus, desde 1760, e das demaisordens religiosas (carmelitas, mercedários), a partir de 1821. Ela se manifestava, sejaatravés de prepostos e das tentativas jurídico-formais de validar as cartas de datas e desesmarias, entre 1777 e 1816, ou de reconfirmá-las, entre 1854 e 1857, consoante asexigências da Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850; seja através de termosde doação aos escravos ou do simples abandono das fazendas.

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Escravos, cuja aquisição havia sido facilitada pela Companhia Geral deComércio, índios desaldeados e que se mantinham livres nas antigas fazendas das ordensreligiosas, ex-escravos e alforriados e também escravos fugidos compunham essa camadade pequenos produtores agrícolas em formação. O elemento mais contrastante nesseprocesso de completa derrocada é a debilidade econômica dos sesmeiros em manter, demaneira plena, uma produção permanente e sua incapacidade de acionar mecanismos derepressão da força de trabalho capazes de inibir os desdobramentos daquela autonomia.Quer dizer, não há registros de tentativas de reorganização da produção e nem há, tampouco,informações de que tenham conseguido mobilizar efetivos militares suficientes para revertertal quadro. Sublinhe-se que esses acontecimentos coincidem com um período históricoatribulado que se inicia com conflitos políticos em Portugal, que levaram a família real adeslocar-se para a colônia, culminando com as lutas pela independência em 1822 e 1823.Coincidem, de igual modo, com o colapso do mercantilismo e do monopólio das grandescompanhias de comércio, mediante a prevalência dos princípios liberais que inspiraram adecisão real de abertura dos portos, em 1808, e de tratados de comércio e amizade com aInglaterra, em 1810.

A partir desse início do século XIX, os registros administrativos sobrequilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam desde o início doséculo XVIII, aumentam significativamente. As articulações entre os quilombolas e osescravos das fazendas arruinadas tornam-se mais orgânicas e consolidadas, tornando-se quase impossível distinguí-los com exatidão. Tal como os escravos, os quilombostambém passam a ser designados pelas fazendas nas quais se manifestam, tornandoindubitável que sua localização geográfica não se encontrava fora dos limites físicosdos grandes estabelecimentos de agricultura tropical. Em decorrência, as campanhasarmadas contra os quilombos são parcialmente reeditadas e se voltam também paraessas fazendas em desagregação, conforme noticia o coronel Pereira do Lago, em1820, ao mencionar o "quilombo dos pretos de Viveiro" e aquele "da Fazenda dasMercês"(Pereira do Lago, 2001:28). Os registros constatam que os quilombos mantêmuma produção regular e contatos sistemáticos com comerciantes, concorrendo para oabastecimento de farinha e arroz das fazendas de gado da beira-campo, dos núcleosurbanos regionais e da capital São Luís. Transcendendo àquela situação de"protocampesinato escravo", constata-se que, tanto dentro quanto fora dos domíniosfísicos das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, esses produtores autônomos foramse consolidando enquanto um campesinato, trabalhando a terra com suas unidadesfamiliares e vendendo livremente sua produção agrícola nos circuitos de mercadorelativos aos gêneros básicos, coletando especiarias da floresta, extraindo amêndoas decoco babaçu e dedicando-se à pesca marítima e nos rios e igarapés. O instituto dasCartas Régias não resistiu, em Alcântara, a essa trajetória ascendente dos grupos sociaisestruturados em povoados que, para além de uma simples figura jurídica deapossamento, consolidaram direitos étnicos através da emergência das territorialidadesespecíficas, tais como as intituladas terras de preto, terras de caboclo e terras de

santo. Essa dinâmica de estabilização e de autonomia resultou por fortalecer umaidentidade própria, articulando atividades agrícolas e extrativas, e por favorecer umadelimitação bastante sólida das territorialidades específicas de acordo com a forma de

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desintegração de cada uma das fazendas, seja de algodão ou de cana-de-açúcar, seja desesmeiros ou de ordens religiosas. São essas delimitações que vigem hoje, passadosdois séculos. Isso, não obstante acentuados conflitos, em virtude sobretudo das medidasrepressivas adotadas pelo governo provincial a partir de 1835, quando detém o governoda província um membro da "aristocracia alcantarense"(Viveiros, 1975:109) referidoàs fazendas da beira-campo, no Tubarão, Antônio Pedro da Costa Ferreira, Barão dePindaré. Através da Lei nº 5, de 23 de abril de 1835, instituiu um corpo de polícia ruralvoltado para a vigilância do campo, "onde se açoitavam os escravos que fugiam dodomínio de seus senhores, e os malfeitores que depredavam os gados"(Leal,1873:254,255). Por intermédio da Lei nº 21, de 17 de junho de 1836, criou ademais ocorpo de polícia da província. Os efeitos dessas medidas se fizeram sentir em Alcântaraapenas episodicamente, em 1837-38, no caso dos quilombos de Itamatatiua, antigafazenda da Ordem do Carmo. Com a guerra da Balaiada, entre 1839 e 1841, os efetivosmilitares foram concentrados nos Vales do Itapecuru e do Parnaíba e o aparatorepressivo foi inteiramente redefinido na província do Maranhão.

Após a guerra, objetivando reinstaurar a disciplina do trabalho nas fazendas,novas medidas foram instituídas pela legislação provincial. Quando da tentativa oficial,também malograda, de implantação de engenhos de açúcar no Maranhão e principalmenteem Alcântara – que começou em 1847, no governo de outro membro da "aristocraciaalcantarense" (Viveiros, 1975:109), o senador Joaquim Franco de Sá, genro do Barão dePindaré –, foi promulgada uma lei específica para combater os quilombos: a Lei nº 236, de20 de agosto de 1847, conforme se poderá observar adiante no tópico dedicado aosquilombos em Alcântara. As iniciativas subsequentes e episódicas, que sempre intentaraminstituir o aforamento, só lograram êxito, imobilizando a força de trabalho, por curtosperíodos de tempo sem conseguirem afetar profundamente a autonomia conquistada porescravos e ex-escravos nas terras das antigas sesmarias. A um malogro econômico sucederamoutros, tal como a falência dos engenhos de açúcar, resultando numa nova campanhamilitar contra os quilombos. Foi encetada no início de 1878 pelo vice-presidente da província,Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, também da nobreza alcantarense, proprietáriodo maior engenho da província, o Engenho Gerijó, e ex-secretário de governo domencionado senador Franco de Sá. Embora estivesse debilitada a autoridade senhorial,pelos repetidos insucessos econômicos, foi empreendida uma ação militar ampla que levouà destruição do quilombo do Limoeiro, tornando-o uma presa de guerra para instalaçãodas colônias agrícolas com famílias cearenses, que foram trazidas pelos vapores imperiaispara o Maranhão em virtude da grande seca que afetou o Nordeste em 1877. Às ruínas dasfazendas de algodão acrescentavam-se, portanto, aquelas dos engenhos.

Abriu-se um novo capítulo de abandono das fazendas, de vendas deequipamentos e bens móveis, de doações de terras a escravos e de instituição do aforamento.Os senhores de engenho remanescentes haviam se tornado absenteístas, residindo fora desuas terras e mantendo com elas uma relação intermediada por prepostos, escolhidos entre aspróprias famílias de escravos, principalmente entre os escravos domésticos. Essa ausênciaacabou se tornando permanente, como já ocorrera com os fazendeiros de algodão no iníciodo século XIX, as benfeitorias se aluíram e não há registros de retornos efetivos ao controledas antigas fazendas, senão numa única situação4.

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Semelhante derrocada econômica, que desde 1850 já fazia de Alcântara umacidade em abandono, propiciou condições para que se tornasse estável uma vasta redesocial, com mais de duas centenas de povoados, que foram sendo erigidos sobre essasruínas das fazendas, numa extensão em torno de 150.000 hectares, abrangendo, durante operíodo imperial, pelo menos três freguesias (São João de Cortes, Apóstolo São Matias eSanto Antonio e Almas)5 e criando um complexo sistema de trocas e de solidariedade,marcado por formas de ajuda mútua e reciprocidade positiva entre diferentes gruposfamiliares. Para definir esse sistema, os entrevistados usualmente definem sua forma deutilização dos recursos naturais como "em comum". A relação com o ecossistema,preservando cocais, juçarais, manguezais e terras agriculturáveis, disciplinando o uso deinstrumentos de pesca e mantendo reservas de matas para extração de madeira (bacurijuba,paparaúba) para construções de casas, embarcações e benfeitorias, tornou-se gradativamentemais equilibrada, além de atentamente acompanhada por determinadas famílias e/ou pessoas,cuja autoridade para tanto era reconhecida no plano comunitário.

A autonomia de decisão no que produzir, como e onde, lançando mão deque recursos naturais, aproxima tanto os denominados índios e pretos, quanto os chamadoscaboclos, fixando um padrão cultural apoiado num repertório de práticas correspondenteao que designam de roça. Essa designação polissêmica, mais que uma referência aos tratosculturais ou, num sentido restrito, ao plantio de mandioca e, ainda, a uma divisão sexual eetária do trabalho, expressa uma certa maneira de viver e de ser. Mais que um modelo derelação antrópica com recursos escassos, a denominada roça compreende um estilo devida que vai desde a definição do lugar dos povoados, passando pela escolha dos terrenosagriculturáveis, e dos locais de coleta, de caça e de pesca, até os rituais de passagem queasseguram a coesão social em festas religiosas (tambor de crioula, procissões e demaiscerimônias), em bailes ("radiolas de reggae"), em funerais e batizados. Essa designaçãoexpressa, ademais, uma representação particular do tempo, como pode ser visto no tópicosobre os ciclos produtivos, traduzida por intrincados calendários agrícolas e extrativos, euma noção de espaço muito peculiar orientando o uso simultâneo, para cada unidadefamiliar, de diversas áreas de cultivo não necessariamente contíguas. A composição daunidade de trabalho para realização desses mencionados tratos culturais é absolutamentefamiliar e articulada por fora das exigências intrínsecas ao processo de produção. Ela épré-definida no plano das relações de parentesco e de afinidade, refletindo a própriacomposição da família e suas interações mais diretas, consubstanciando a idéia do povoadocomo uma vigorosa rede social de serviços mútuos e recíprocos. Pode-se asseverar que achamada roça trata-se de uma referência essencial que sedimenta as relações

intrafamiliares e entre os diferentes grupos familiares, além de assegurar um caráter

sistêmico à interligação entre os povoados. Ela consiste, além disso, num traço invariantee no símbolo exponencial da conquista de autonomia e, em decorrência, da identidade quelhe corresponde. Não há unidade familiar que não se estruture a partir das atividades essenciaisa ela referidas, seja assegurando o autoconsumo ou obtendo, a partir da colocação daprodução no mercado, a receita imprescindível para atender às necessidades básicas e dereprodução social. Essa reprodução evidencia que o fim econômico estaria além da produçãode valores de uso, dependendo da inserção familiar e comunitária nos sistemas de troca noconjunto de comunidades semelhantes. Os agentes sociais avaliam capacidades pessoais e

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se reconhecem uns aos outros a partir dessas atividades referidas direta ou indiretamente àchamada roça. Nesse sentido é que se pode asseverar que a etnicidade entra também eminteração com uma certa maneira de produzir, de se relacionar com os recursos naturais, deagir segundo uma temporalidade própria, de delimitar grupos sociais interagindo comoutros e estabelecendo os fundamentos de uma ação coletiva.

Um dos resultados da persistência desses elementos de identidade étnicatem sido a certeza da viabilidade, já quase bi-centenária, dessa pequena agricultura autônoma,baseada num sistema de uso comum, numa área onde a grande exploração, além defalir, acarretou o rápido esgotamento do solo e o uso predatório dos recursos. Essasinstituições sociais peculiares, que compõem o sistema de uso comum dos recursos6,ligando os grupos aos circuitos de mercados e rompendo com qualquer noção deisolamento, mostram-se informais e de certo modo invisíveis em termos jurídicos. Adespeito de qualquer tipo de reconhecimento formal, consolidaram efetivamente diferentesdomínios com seus respectivos planos organizativos de relações sociais, cada um delesagrupando inúmeros povoados, designados localmente, consoante o contexto, comoterras de santo, terras da santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras

santistas, terras de caboclo e terras de preto, compreendendo as antigas terras deinstituições pias e religiosas, as antigas sesmarias e posses centenárias. Por constituíremterritorialidades específicas, suas fronteiras não correspondem exatamente à fixidez doslimites físicos das fazendas, ou seja, não se esgotam necessariamente na correspondênciaao perímetro de imóveis rurais. Observa-se uma interpenetração entre elas com asdenominadas terras de preto se atualizando e sobrepondo-se às terras de santo, domesmo modo que as chamadas terras de caboclo se dispõem em face das terras de

santíssimo. Enquanto territorialidades específicas, cujos planos organizativos seinterseccionam de maneira articulada, elas convergem para a estruturação de um territórioétnico, distinguindo-se da noção estrita de terra, considerada como recurso básicofisicamente delimitado, conforme se pode constatar adiante no tópico que enfoca ainterligação entre os povoados. Assim, pode-se afirmar que as denominações adotadaspara nomear essas territorialidades específicas, mais que meros termos ou expressões,consistem em categorias classificatórias que apontam para as características intrínsecas eplurais da identidade étnica dos agentes sociais em questão. Eles se autodenominam e sãodenominados por aqueles com os quais interagem, consoante a situação específica, comopretos e/ou caboclos. Não se observam diferenças sensíveis entre as categoriasreivindicadas por eles próprios e aquelas que lhes são atribuídas por outros. Pretos ecaboclos consistiriam em categorias de pertencimento referidas a comunidades etnicamentedistintas que foram aproximadas, por oposição aos denominados índios, pelasclassificações estigmatizantes do período pombalino, e distinguiram-se posteriormenteem oposições sucessivas, mostrando-se aproximáveis agora, numa situação dramática deconflito em que se confrontam com a implantação da base. Remetem, pois, antes detudo, a "comunidades dinâmicas" que se organizam temporalmente de modo variável,assegurando a todo custo sua reprodução social em contraposição a antagonistascircunstancialmente mais poderosos. Esse fator de dinamismo explica a gama depossibilidades de interpenetração entre as diversas territorialidades específicas mencionadas,afastando as interpretações oficiosas de que bastam a si próprias e podem ser consideradascomo "isolados negros" ou "isolados caboclos".

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Na medida em que esses agentes sociais se investem de identidades étnicaspara categorizarem-se a si mesmos e às terras que historicamente ocupam, mobilizando-secoletivamente para fins de interação e manutenção dos recursos necessários para suareprodução física e social, eles compõem grupos étnicos no sentido organizacional7, quetransitam entre diferentes modalidades de domínio e de planos organizativos, construindocoletiva e socialmente o seu território.

Área decretada e territorialidades específicas

Durante quase dois séculos, esse sistema e as respectivas territorialidadesespecíficas não conheceram maiores pressões de novos grupos interessados nas terras.As ocorrências de antagonismos e tensões sociais foram sempre localizadas e de curtaduração. As iniciativas de colonização do governo estadual, em 1975-76, insistindo nodesmembramento das territorialidades específicas consideradas como terras devolutas edisponíveis, e as tentativas de grilagem, em 1978-79, das terras de Santa Teresa foramepisódicas e se esgotaram na própria circunstância. O cercamento de áreas localizadas nasterras da santa, nos confrontantes municipais de Alcântara e Bequimão, foi o estopimpara intensas mobilizações, que provocaram a destruição pelos moradores dos povoadosde vários quilômetros de cercas de arame farpado ilegalmente construídas.

Cabe sublinhar aqui que jamais houve uma pressão constante e em blocoafetando com igual intensidade e concomitantemente as diversas territorialidades mencionadase os respectivos povoados que as compõem. Isso, até que, em setembro de 1980, o governodo Maranhão procedeu à desapropriação por utilidade pública de 52.000 hectares, atravésdo Decreto nº 7.320, objetivando a implantação de uma base de lançamento de foguetesno município de Alcântara8. A medida abrangeu quase 46% da superfície municipal, atingindomais de 2.000 famílias distribuídas por mais de uma centena daqueles povoados já referidos.A partir daí, num curtíssimo período de tempo, foram intensificadas as formas de intervençãogovernamental na área e aceleradas as ações fundiárias, sem quaisquer estudos prévios relativosàs particularidades da estrutura agrária ou à identificação étnica das famílias atingidas. Em1982, foi firmado Protocolo de Cooperação entre o Ministério da Aeronáutica, o estadodo Maranhão e o município de Alcântara, objetivando a implantação do Centro deLançamento de Alcântara. Na divisão de responsabilidades, coube ao estado do Maranhãoo deslocamento das "populações da área" compreendida pelo decreto desapropriatório.Em suma, o resultado mais evidente é que uma situação conflitiva e tensões latentes ecotidianas persistem na região afetada, após 22 anos do decreto desapropriatório.

Para sumariar esse período mais recente, no que tange principalmente a fatospertinentes à relação entre estrutura agrária e o processo de territorialização das comunidadesremanescentes de quilombo, importa sublinhar que, em junho de 1983, sob a coordenação doSindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara, as famílias atingidas reivindicaram do Ministérioda Aeronáutica, responsável pela implantação da base, através de abaixo-assinado, o seguinte:

"terra boa e suficiente, acesso à praia, permanecerem juntas, água suficiente,

lugar para pasto de animais, não dependência de agrovilas, casa própria,

títulos definitivos de terra, escola primária completa, posto de saúde com

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representante do povoado, casa de forno, luz elétrica, mudas na quantidade

suficiente para substituir as fruteiras, igreja, cemitério, tribuna, campo de

futebol e assistência técnica".

No mês seguinte, foi assinado um Acordo em que as autoridades militares9 secomprometeram a observar tais reivindicações. Segundo os entrevistados, o Acordo não foicumprido, instaurando um clima de desconfiança. A região se tornou, a partir daí, uma zonacrítica de tensão social e conflito, constituindo-se em objeto de ação da Coordenadoria deConflitos Agrários do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, Mirad-Incra,em março de 1985, quando as famílias afetadas pela base bloquearam a rodovia que dáacesso ao CLA, impedindo o acesso de ministros de Estado – do Estado Maior das ForçasArmadas, EMFA, da Aeronáutica e do Mirad – que visitavam a área10. Em outubro de 1985,a referida Coordenadoria realizou um primeiro levantamento, focalizando uma caracterizaçãosociológica, em que chamava a atenção para as chamadas terras de preto, para a modalidadede uso comum dos recursos e para os problemas agrários da região. Os resultados levadosao ministro do Mirad e comunicados aos demais ministérios pertinentes, através de umaseqüência de reuniões, não foram acatados pelo EMFA e pelo Ministério da Aeronáutica. Asinstituições militares responsáveis diretas pela implantação do centro de lançamento de fogueteschamaram a si a responsabilidade pelas medidas de reassentamento das famílias afetadas. Aodesprezarem as vicissitudes do processo centenário de territorialização, consideraram estarlidando com um campesinato parcelar e suas glebas individualizadas. Induzidas ao erro, asmedidas oficiais subseqüentes foram adotadas nesse sentido. Em 18 de abril de 1986, oDecreto nº 72.571, da Presidência da República, reduziu o módulo rural de Alcântara de 35para 15 hectares apenas na área relativa à base, permanecendo o restante do município coma fração mínima de parcelamento já instituída. Em 1987, foram compulsoriamente deslocadasde 23 povoados11 centenários 312 famílias, e agrupadas em sete agrovilas, agravando a crisecom indenizações não pagas após dez anos, direitos de posse desrespeitados e criação deagrovilas com lotes para cultivo de dimensão inferior aos critérios técnicos definidores dosmódulos rurais para a região. Quase onze anos depois do primeiro decreto, em 08 de agostode 1991, um novo decreto da Presidência da República ampliou a área da base, passando-apara 62.000 hectares.

A área decretada, reforçada pelos deslocamentos compulsórios e pela divisãode lotes das agrovilas, instaura uma certa dissociação, que se manifesta através da colisãoentre as medidas que tornam a terra individualizada e transferível versus o sistema de usocomum dos recursos que suporta as territorialidades específicas, com seus princípios deindivisibilidade das terras e da manutenção de limites fixos e intransferíveis. A separaçãoimposta pelos deslocamentos menospreza a persistência histórica das fronteiras quemantêm as territorialidades, refletindo sobre a posição de cada um dos diferentes agentessociais na organização social das denominadas terras de preto, das terras de santo esuas variações, das terras de caboclo e das terras da pobreza. A área decretada, aoseparar o que sustenta a unidade dos diferentes elementos identitários e ao contrapor-seà lógica do processo produtivo, quebra com os povoados, enquanto organização socialapoiada em relações de reciprocidade, e com suas hierarquias, enquanto territórios deparentesco, terminando por instituir outros critérios de autoridade local e por colidircom os princípios formadores do território étnico. Das formas de resistência a essa

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intervenção é que foram emergindo critérios político-organizativos e uma percepçãoaguçada de direitos étnicos concernentes às comunidades remanescentes de quilombo.

No plano da economia, ou mais exatamente da agricultura familiar, osimpactos se fizeram sentir com o declínio abrupto da produção de farinha, com o rápidoesgotamento dos solos nos lotes delimitados para as famílias deslocadas para as agrovilase com uma intensa migração de famílias para a sede municipal e para a capital São Luís.Cotejando-se os dados estatísticos dos Censos Agropecuários de 1985 e de 1996, constata-se que nesses onze anos a lavoura temporária no município de Alcântara sofreu umaredução de 45% da área destinada ao cultivo de seus dois principais produtos, o arroz ea mandioca. Consoante o estudo elaborado para este laudo pericial pelo economistaWilson de Barros Bello Filho:

"Este fato revela-se particularmente relevante quando se constata,

tomando por referência o valor da produção registrado no Censo

Agropecuário de 1996, que estes dois produtos são responsáveis por

cerca de 80% da lavoura temporária do Município, o que corresponde

a mais de 40% de toda a lavoura alcantarense (lavoura temporária

mais lavoura permanente)." (Barros Bello, 2002:01)

No caso da mandioca, o Censo de 1996 registra uma produção de apenas4.907 toneladas, contra 8.139 toneladas em 1985, o que corresponde a uma queda de 40%na produção. Ainda com Barros Bello:

"A redução e estagnação da produção de mandioca em Alcântara

revelam-se particularmente preocupantes quando, além da significância

do produto na lavoura do Município, se considera também que,

segundo a Contagem da População de 1996, 74% dos seus habitantes

(14.050 pessoas) vivem na zona rural."(Barros Bello, 2002:01)

Em 1997, sem que fosse realizada qualquer avaliação dos resultados de seu"Plano de Reassentamento" e a despeito de a base não ter sequer licenciamento ambiental,foram anunciados pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, Infraero12, novosdeslocamentos de famílias13. Nesse mesmo ano, foi aprovado pela Câmara Municipal esancionado pelo prefeito o "Plano de Preservação da Cidade de Alcântara", através da Leinº 224, de 10 de outubro de 1997, com o Instituto do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional, definindo usos e ocupações do perímetro urbano. A delimitação de zonas de"preservação rigorosa" defronta-se com a expansão da ocupação provocada pelocrescimento da migração dos povoados para a sede do município, gerando tensões entreos ocupantes e o Iphan. Ainda nesse ano, a Fundação Cultural Palmares, atendendo aopleito das famílias atingidas, autorizara os levantamentos preliminares para identificação dascomunidades remanescentes de quilombo, consoante o Art. 68 do ADCT. Em 1998, oMestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão divulgou os primeirosresultados dos mencionados levantamentos que assinalaram 26 povoados compreendidospor essas comunidades e alertavam para dezenas de outros povoados em situação similar.A este tempo, já havia explícita recusa das famílias atingidas em aceitar novos deslocamentos.

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Entre 11 e 14 de maio de 1999, foram realizadas na Câmara Municipal deAlcântara discussões públicas com ampla participação de autoridades, associações voluntáriasda sociedade civil e atingidos, alertando para os riscos dos deslocamentos compulsóriose para seus impactos sociais14. Esse evento, denominado "Seminário Alcântara: A BaseEspacial e os Impasses Sociais", foi uma iniciativa do STTR de facultar aos representantesdos povoados acessos aos direitos elementares sobre suas terras, sobre suas práticas deuso dos recursos e sobre suas formas de organização social contempladas inclusive peloArt. 68 do ADCT. É apontado em inúmeras entrevistas dos mediadores como umdivisor de águas, que marcou a retomada da mobilização dos agentes sociais afetadosnão mais como trabalhadores rurais, mas também como remanescentes de quilomboque ocupam efetivamente as terras correspondentes às territorialidades específicas. Oselementos de identidade étnica até então mantidos em estado latente, sob certa invisibilidadesocial e desprezados pela ação fundiária oficial, tornaram-se públicos, denotando que osremanescentes de quilombos manifestavam-se segundo uma existência coletiva. A conduçãoformal das mobilizações pelo STTR não foi vista como contradizendo a afirmação públicae coletiva das comunidades remanescentes de quilombos. Nos meandros da ação sindical,estaria implícita uma distinção entre identidade e ocupação, que não é vivida comocontraditória ou como incongruência, uma vez que ambas são referidas praticamente àsmesmas pessoas, sendo a primeira concernente aos quilombolas e a outra aos trabalhadoresrurais. Um dos resultados mais imediatos da emergência dessa nova forma de mobilizaçãofoi a recusa conjunta dos povoados de receberem visitas dos técnicos do CLA paraoperacionalizar medidas de deslocamento. A equipe técnica encarregada dos trabalhosde "transferência e assentamento", que realizou visitas aos povoados no decorrer de1998, era composta de dois veterinários, uma pedagoga e dois técnicos agrícolas, ou seja,critérios de competência e saber considerados insuficientes e inadequados pelas operaçõesdiretivas de reassentamento elaboradas por agências multilaterais e universalmente acatadas.Em decorrência, os povoados de Mamuna, Brito, Itapera, Baracatatiua e Caiuaua nãoaceitaram os termos da propalada "transferência" e os povoados de Itapuaua, Murari,Esperança e Cajitiua recusaram que os recursos naturais sob seu controle, consideradosescassos para o atual contingente demográfico, servissem de área de destino ou deassentamento para as centenas de famílias com deslocamento compulsório previsto.

No final desse mesmo maio, a empresa Kohän-Saagoyen Consultoria &Sistemas apresentou, por solicitação da Infraero, um Relatório de Impacto Ambiental doCentro de Lançamento de Alcântara. Várias entidades e associações voluntárias dasociedade civil questionaram os resultados, porquanto a área era tratada praticamentecomo vazio demográfico15.

Em 07 de junho de 1999, a Portaria nº 007 do Ministério Público Federalinstaurou Inquérito Civil Público para o fim de apurar possíveis irregularidades verificadasna implantação do CLA. Ao considerar que as ações de remanejamento afetam "ascomunidades negras rurais, remanescentes de quilombo", essa Portaria preconiza providênciasno sentido de "verificar a existência de estudos relativos às comunidades que se encontramnas áreas destinadas ao CLA, máxime no tocante ao componente étnico".

Foram agendadas para fim de julho as primeiras audiências públicas a seremrealizadas em Alcântara e São Luís. O Ministério Público Estadual, o Iphan e o MPP-

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UFMA assinalaram, entretanto, inconsistências no EIA/Rima, sobretudo aquelas relativasàs relações antrópicas e à recusa em incorporar os fatores étnicos. O Ibama agendou, então,para 18 e 19 de novembro, as novas datas para as audiências públicas. No dia 10 denovembro, no entanto, foi ajuizada Ação Civil Pública pela Procuradoria Geral da República,atendendo ao pleito de entidades como o STTR de Alcântara e a Federação dosTrabalhadores na Agriculutra no Estado do Maranhão, Fetaema, objetivando suspender oprocesso de licenciamento ambiental do projeto do CLA. Em seguida, uma liminar expedidapor Juiz Federal da Seção Judiciária do Maranhão suspendeu as audiências públicas jáagendadas. Em dezembro, uma reunião da Infraero com os representantes dos povoadosdos atingidos pelo CLA concluiu pela realização de novas pesquisas para caracterizar ascomunidades remanescentes de quilombos16.

Os antagonismos em pauta foram ganhando novos contornos e o grau decontrastividade étnica parece estar aumentando com os desdobramentos do conflito. Oprocesso de territorialização, mantido sob uma invisibilidade jurídico-formal, tornou-sepúblico em polêmicas que se sucedem, ressaltando os elementos de identidade étnica emjogo e envolvendo a aplicação do Art. 68 do ADCT. A identidade de remanescentes dequilombos passou a caracterizar a interlocução com os organismos governamentais,demonstrando outras dimensões assumidas pelo conflito.

Em 16 de agosto de 2001, tendo o Centro de Justiça Global como peticionárioprincipal, foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada emWashington, D.C., EUA, denúncia de "desestruturação sociocultural e violação ao direitode propriedade e ao direito à terra" de comunidades remanescentes de quilombos, atribuindoresponsabilidades aos Estados brasileiro e norte-americano signatários do Acordo deSalvaguarda Tecnológica17, que prevê o uso do CLA, firmado entre estes dois países em 18de abril de 2000 e ora em tramitação no Congresso Nacional para fins de apreciação eposterior votação em plenário. Os peticionários, referidos às comunidades de Samucangaua,Iririzal, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, entre outras, se apresentamnessa petição como referidos a "um mesmo território étnico". Nessa mesma data, em queapresentaram denúncia contra o Estado brasileiro, encaminharam também outra petiçãobaseada nos mesmos fatos contra o governo dos Estados Unidos da América18.

Ao adensamento dos conflitos sociais em Alcântara, acrescente-se umaintensificação das intervenções na estrutura fundiária, provocando em uma décadatransformações que têm afetado radicalmente a estabilidade que aquelas mencionadasterritorialidades específicas lograram alcançar em quase dois séculos de existência.

Num breve retrospecto dessas ações fundiárias oficiais da última década, pode-se adiantar que quase 66% do município de Alcântara foram alcançados por elas. Além daação desapropriatória por utilidade pública, de 1991, compreendendo 62.000 hectares,registram-se duas ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária:a primeira, decretada em 10 de junho de 1996, incidindo sobre o imóvel denominadoPortugal e abrangendo 2.025 hectares; e a outra, decretada em 20 de janeiro de 1994,compreendendo os imóveis denominados Bituba, Chapada, São Francisco, Santa Maria ePerimirim, com área de 4.111,6080 hectares 19. O Incra procedeu a levantamentos numaterceira área correspondente ao que denomina de Gleba Santo Inácio, com 1.534 hectares,mas o processo deixou de tramitar e teria sido arquivado.

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Vale acrescentar ainda as duas áreas sob atuação direta do Iterma, desde 1996,para fins de regularização enquanto comunidades remanescentes de quilombos: uma, naregião de Itamatatiua, abarcando pelo menos 5.191 hectares, e a segunda em São Raimundo,correspondente a 547,42 hectares20. Cabe mencionar, finalmente, as ações discriminatóriasem curso. Considerando que a superfície de Alcântara equivale a aproximadamente 1.114km2, tem-se o percentual acima mencionado.

A intensificação de sucessivas intervenções na estrutura fundiária, num breveperíodo de tempo, faz com que os fatores étnicos, elididos historicamente nas intervençõesgovernamentais, comecem a ser ressaltados na imediaticidade das tensões e dos conflitosdiante da ação do Estado. A memória de uma situação comum, ligada a territorialidadesbem delimitadas e a certas tradições e modos de vida simbolizados pela alusão freqüente àschamadas roças, surge reatualizada nos atos afirmativos de elementos identitários quepersistem por longo tempo na consciência coletiva. A etnicidade se expressa também peloconjunto de estratégias voltadas para a manutenção do território, incluindo-se a defesa doestoque de recursos naturais imprescindíveis para a reprodução física e social das comunidadesremanescentes de quilombos. Expressa-se ainda pela recusa explícita dos deslocamentoscompulsórios, que prenunciam uma desestruturação das comunidades e desse sistema deuso comum secularmente engendrado, porquanto referidos a recursos escassos que umavez afetados inviabilizam a mencionada reprodução física e social.

A perícia antropológica ora apresentada foi produzida no bojo desse conflitomanifesto e deriva de providências decorrentes das medidas adotadas pela ProcuradoriaGeral da República a partir da Portaria nº 007, focalizando o processo de territorializaçãoque consubstancia a citada mobilização étnica e suas vicissitudes.

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"Estão os paredões mesmo lá. Quando os brancos foram embora

deixaram os paredões. Não puderam levar. Eu acho que outra coisa não

tem mais e os pretos velhos ficaram trabalhando pelas terras, espalhados

pelos matos." (L.A. 20/04/2002-ENT. 21-referência a Camarajó)

O que se observa de mais peculiar e aparentemente mais paradoxal noprocesso de territorialização ora examinado é que a análise explicativa da afirmaçãodas características das comunidades remanescentes de quilombo passa pelo seucontrário, através da arqueologia das fazendas de algodão e dos engenhos. Tomadaa M. Foucault, essa modalidade de descrição arqueológica (Foucault, 1972:167)reinterpreta os métodos usuais de investigação científica, deslocando a análise para oque ficou à margem da história político-administrativa, para o que foi consideradoresidual e para o que contrariou disposições jurídico-formais. Para tanto, relativiza opeso das fontes documentais e arquivísticas oficiais e recusa uma interpretaçãohistoricista que se desenvolva linearmente do passado para o presente, explicando-o.Refuta, nesse sentido, a monotonia da historiografia oficial e os esquemasinterpretativos dos comentadores regionais, que consagraram a opulência das casas-grandes e dos engenhos de Alcântara, perpetuando-a, através da monumentalidadedas ruínas, para além das contingências de sua existência efetiva. Consoante essadescrição arqueológica, as ruínas dessas fazendas podem ser lidas sociologicamentecomo resultado da contradição entre quilombo – enquanto processo de trabalho ede moradia absolutamente autônomo, livre de qualquer submissão e sustentadofundamentalmente por unidades de trabalho familiar que cultivam principalmentegêneros alimentícios – e a economia escravista de agricultura tropical, com grandesestabelecimentos apoiados no trabalho escravo, no monopólio da terra e namonocultura. Nos seus desdobramentos, essa abordagem privilegia uma análise críticadas representações, discursos e práticas produzidas por membros das comunidadesremanescentes de quilombo, bem como possibilita uma reinterpretação de seu campode relações simbólicas. Está-se diante de uma aparente inversão, que focalizaempiricamente as ruínas das fazendas como concorrendo de maneira positiva para acoesão social dessas mencionadas comunidades, cuja trajetória histórica consistejustamente na negação da economia escravista, seu oposto simétrico. Diferentementede outras regiões, a noção de monumento1 aqui é inteiramente revista e não se atém

Muralhas e paredõesAs ruínas das casas-grandes e dos engenhos

como fator de identificação das comunidadesremanescentes de quilombos

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ao que seriam as ruínas de possíveis edificações relativas aos próprios quilombos,porquanto são outras as ruínas que estão em jogo. Isso certamente consiste numaespecificidade da situação de Alcântara, na qual a noção de monumento escapa dasauto-evidências, que envolvem o patrimônio material, e, desdizendo-as de maneiraradical, estabelece uma conexão algo invertida entre as ruínas dos grandes estabelecimentosagrícolas e a consolidação das comunidades remanescentes de quilombo. A ênfase nessaconexão ultrapassa os procedimentos usuais de perícias que giram em torno de "provasmateriais" e "evidências", direcionando as observações para os aspectos relacionais. Ultrapassatambém a forma de colocação dos problemas pela abordagem historicista, para a qualpareceria um absurdo considerar "ruínas de casas-grandes" como elemento do processode consolidação das comunidades remanescentes de quilombo, já que uma suposta "alteraçãoda seqüência dos fatos objetivos" conspurcaria o sentido histórico-monumental das ruínas.Ora, na situação examinada, está-se diante de uma contradição mais aparente que real.Assim, a relação privilegiada nesta perícia, através da descrição arqueológica, recoloca ostermos do problema e parte do tempo presente em que tais comunidades fixam, inclusive,estratégias para preservar o que aparentemente seria o resíduo do patrimônio materialedificado originalmente por seus antagonistas históricos.

Em outras palavras, pode-se asseverar que um dos componentes da gênesedo processo social de construção da identidade quilombola em Alcântara estaria nas ruínasdas casas-grandes e dos engenhos. Essas ruínas das benfeitorias das fazendas, bem como asterras e o próprio nome das famílias dos antigos senhores ou da "aristocracia rural", comodefine Lopes (1957:18), ou ainda da "aristocracia alcantarense"2, como classificaria Viveiros(1975:109), permanecem hoje sob controle absoluto de descendentes de famílias de escravos.Araújo, Araújo Cerveira, Sá, Ribeiro, Cerveira, Coelho, Viegas, Morais, Ferreira, Diniz,Serejo e Silva, antes de designarem a nobreza3 e os sesmeiros, tal como consagrados nadocumentação do período colonial, designam hoje as famílias dos povoados de descendentesde escravos que se consolidaram com a derrocada econômica e a desagregação dos diferentesestabelecimentos rurais4 (algodão, cana-de-açúcar, gado). A onomástica dos moradoresdos povoados revela que os antigos senhores de escravos tiveram seus nomes de famíliaarrebatados pelos seus ex-escravos. Os patronímios aristocráticos, tal como as terras e asruínas, foram conquistados pelos moradores dos povoados nessa situação conflitiva dedesagregação das fazendas, em que se afirmaram antes como unidades de mobilização doque como unidades afetivas. Nesses agrupamentos, estruturaram-se relações de parentesco,de afinidade, de amizade e de vizinhança, em torno da distribuição e do uso comum dosrecursos, resultando em vínculos solidários coextensivos à formação do povoado, enquantouma comunidade potencialmente política que transcende, em certa medida, o grupo localde descendência de três ou quatro gerações.

De igual modo, as antigas denominações das fazendas, registradas inclusivenas expedições e solicitações de confirmação de datas de sesmarias, nos registrosparoquiais, após a Lei de Terras no 601, de 18 de setembro de 1850, e na documentaçãocartorial, correspondem, no momento atual, tão-somente àqueles povoados. Ascomunidades remanescentes de quilombo aí constituídas compreendem territórios deparentesco5, intrínsecamente articulados, que foram erigidos nessa dinâmica de múltiplasconquistas: das terras, dos nomes de família, das denominações das fazendas e dos

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símbolos ruiniformes do que outrora estava sob o poder dos senhores de escravos, deplantações e de engenhos. Os pertencimentos familiares conquistados e a construção derelações solidárias em terras de livre acesso funcionaram como fatores de consolidaçãodo ideal de autonomia subjacente à identidade quilombola. As terras das antigas fazendas,suas denominações, os nomes de família dos antigos senhores de escravos e as ruínasconvergem, cada um a seu modo, para o processo de territorialização étnica.

Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas

A dicotomização entre a civilização e os selvagens ou entre os denominadosbrancos e os chamados negros6, considerando indissociável a relação entre raça e cultura,tão cara ao pensamento colonialista e justificada através das ideologias do racismo e doprogresso material das metrópoles, foi deslocada nesse processo e perdeu sua força explicativano tempo. A tendência continuamente expansionista, inerente à idéia de civilização doscolonizadores – manifesta principalmente pelas inovações tecnológicas em engenhos(hidráulicos, a vapor), nas máquinas de descaroçamento de algodão e nas máquinas dedescascar o arroz – foi abrupta e duramente interrompida em Alcântara. As técnicas deprodução em larga escala, que inovavam os empreendimentos monocultores, e que vinhamacompanhadas do conhecimento botânico das novas espécies e da capacidade de transferirsementes7, não foram aplicadas em toda sua extensão e profundidade. A descontinuidade,em fins do século XVIII e início do XIX, atribuída à extinção da Companhia Geral doGrão-Pará e Maranhão e à flutuação dos preços do algodão, acarretou a derrocada dosgrandes estabelecimentos agrários e criou condições objetivas para a emergência de umaeconomia camponesa. A expansão dessa economia de base familiar foi interpretada como"decadência" e "regressão" pelos comentadores regionais, já que invertia a tendênciaexpansionista dominante. O evolucionismo implícito nessa interpretação enfoca as ruínasde Alcântara como símbolos do que chamam de "idade de ouro do Maranhão" (Almeida,1983:61-70). Assim, de acordo com a explicação evolucionista, enquanto a ideologia doprogresso assinalava os primeiros passos em direção a uma economia de transição para otrabalho assalariado, em Alcântara teria ocorrido uma "regressão". A emergência dasterritorialidades específicas antes citadas com a consolidação das comunidades remanescentesde quilombo seria vista, desse prisma, como produto de uma involução.

As próprias narrativas míticas dos entrevistados, no decorrer dos trabalhosde perícia, invertem, entretanto, os termos daquela dicotomização ao acionarem, de maneirapositiva, como fator de legitimidade de seu modo de viver e produzir, essas mesmas ruínasdos engenhos e casas-grandes e os demais destroços das fazendas abandonadas. Trata-sede uma disputa pelos elementos simbólicos, que quebra o corte simplificador da coleta devestígios da cultura material. O poder de se apropriar das vantagens simbólicas associadasà posse das ruínas legitima o oposto simétrico das grandes plantações monocultoras baseadasno trabalho escravo, isto é, as comunidades remanescentes de quilombos, cuja forma deutilização da terra baseada em unidades familiares autônomas, livres e praticando um sistemade uso comum dos recursos naturais, passa a articular os diversos povoados. Antes deserem um vestígio do passado ou uma forma de retorno a uma economia natural, tais

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características passam a representar no presente uma perspectiva de futuro com liberdadede decidir não apenas sobre o processo produtivo, mas também sobre seu destino. Aposse das ruínas, pelos remanescentes quilombolas, torna-as um marco distintivo daautonomia de seus povoados, porque representa a evidência de que as fazendas não têmmais "condições de possibilidade" (Bourdieu, 1992) de efetivamente existirem8, ao mesmotempo que comprova a rede de relações dos quilombolas que aí decidiram ficar. Aforma esqueletal do que foram as edificações elementares das fazendas, publicamente expostae constatável por uma arqueologia de superfície, sem qualquer necessidade de escavação,concorre para atestar isso. Lado a lado com a vida cotidiana dos povoados, essas ossaturasdas fazendas certificam o longo tempo de existência deles. A datação das ruínas aquiequivale ao reconhecimento da "idade" das comunidades remanescentes de quilombo econsiste no correspondente ideal de sua certidão de nascimento. Torna-se quase impossíveldistinguí-los temporalmente. Nas próprias narrativas dos entrevistados, a referência maisrecuada concerne ao tempo em que, segundo eles, "os brancos foram embora". A identidadequilombola se afirma nesse processo de negação do seu antagonista histórico e as ruínastornam-se auto-explicativas em face das fazendas que não mais existem no município deAlcântara.

Os entrevistados sublinham, em repetidos depoimentos, que os "brancos

foram embora" e descrevem essa partida sem qualquer eufemização dos efeitos de umafuga. Com a deserção, entretanto, os antigos senhores perderam, de modo efetivo, mas nãosimbolicamente, o monopólio da identidade regional, que foi cristalizado pelos historiadoresconsagrados e perdura nos seus compêndios. Certamente que esse monopólio dificulta oadvento de outras identidades concorrentes, porque as mantém sob um tipo de invisibilidadesocial, característica de sociedades escravistas, e consiste num obstáculo ao prontoreconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo. Os comentadores regionaisfocalizam tão-somente as ruínas, não se detendo naqueles agentes sociais e seus gruposfamiliares que há pelo menos um século e meio constituíram povoados no seu entorno eque delas não podem mais ser dissociados. Reconhecendo, implicitamente, que a "aristocraciarural" se foi das fazendas, os comentadores resultam por desumanizar as ruínas, como sepessoa alguma ali tivesse ficado. Redundante dizer que o fundamento dessa interpretaçãoreproduz o princípio de que o escravo considerado como "coisa" deve, como tal, estar sobo domínio de alguém, sem direito a uma existência em separado. A invisibilidade, urdidanos fundamentos racistas dessa interpretação, nega a possibilidade de existência, seja doindivíduo, seja do grupo; como se aqueles que se autodefinem como pretos ainda nãoestivessem no uso de sua liberdade plena, a despeito de ela já estar assegurada em termosjurídico-formais desde o final do século XIX. Prepondera, sob todos os aspectos, a ideologiada tutela. O fato de esta liberdade já estar reconhecida pelo Estado e gerar direitos parecenão ter sido incorporado pela historiografia oficiosa regional, que dobra a cerviz ao pesode uma tradição aristocrática e de cunho escravista. Esse esquema interpretativo se insinuanos meandros de uma luta simbólica de todo modo constantemente repetida e de difícilsuperação. Entrementes, cabe considerar, e isto é o que se constata com o trabalho decampo pericial, que as ruínas permanecem socialmente reapropriadas, e de maneira efetiva

pelas comunidades remanescentes de quilombo. Constituem um símbolo da ancianidadedo seu ideal de autonomia, e passam a figurar, juntamente com outros elementos identitários,

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alusivos às relações antrópicas, às transações comerciais e simbólicas com outros grupossociais e às mobilizações político-organizativas como meios de garantia da persistência dasfronteiras étnicas, que consolidaram e fazem vigir as comunidades remanescentes de quilomboem Alcântara.

O mapeamento das ruínas

Os resultados do malogro da economia escravista de agricultura tropicalevidenciam-se, pois, na paisagem rural de Alcântara onde se agigantam ruínas velhas emdemasia, escalavradas pela ação do tempo, e não se encontra uma sede sequer das antigasfazendas de algodão, nem das casas de vivenda assobradadas dos estabelecimentos dasordens religiosas, nem tampouco qualquer casa-grande restaurada que seja dos engenhosde açúcar. Das antigas sedes de fazendas e das soberbas casas de engenho restamescombros, escavações ruiniformes e pedras lavradas com vegetação revestindo quasetudo onde outrora se assentavam os alicerces. Parafraseando Gilberto Freyre, no prefácioà primeira edição de Casa-Grande & Senzala, com relação a casas-grandes do Nordeste,pode-se asseverar que também em Alcântara casas enormes edificadas para atravessarséculos começaram a esfarelar-se de podres por abandono e todo o fausto e toda aglória, traduzidos pela ostentação de uma arquitetura arrogante e sólida, virou monturo(Freyre, 1992:vii). Tais ruínas recebem a designação local atribuída às casas abandonadase em destroços, acompanhada pela categoria que designa os "senhores", qual seja: tapera

de branco. A expressão, no sistema de representação dos entrevistados, pode ser traduzidaliteralmente como: vestígio de uma dominação que já acabou e que foi transformado emsímbolo legitimador dos povoados e das terras que lhes são correspondentes9.

Dos equipamentos das engrenagens dos engenhos restam fragmentos de tachasde ferro fundido, de moendas, de caldeiras, de rodas hidráulicas e de tanques para depósito.Ferros torcidos, cilindros quebrados, elos de correntes, bocas de caldeiras avariadasmisturam-se a cacos de cerâmica e de louças dispersos pela superfície, junto a muros depedra em desmoronamento. Entrelaçados pela vegetação densa e pelos cipós rasteiros,jazem colunas de pedras das soleiras e pedregulhos dos alicerces. Esses vestígios dasengrenagens dos engenhos e do casario assobradado recebem a denominação genérica de"ferros". Tudo mal ajustado ao avanço da natureza, aluindo-se.

Para ilustrar de maneira precisa a dispersão desses escombros e sua distribuiçãopelo município de Alcântara, procedi, no decorrer do trabalho de campo, ao seumapeamento. Quando visitava os povoados, os moradores sempre me instavam a caminharaté os escombros ruiniformes, que são denominados genericamente de muralhas e paredões.Incentivavam-me também a percorrer as linhas delineadas pelas chamadas pedras de rumo,mostrando-me as letras gravadas na sua face superior, como se estivessem me apresentandoa territórios específicos de delimitação indiscutível. De fato, elas balizam extensõescorrespondentes às antigas fazendas e estão a pelo menos mais de século e meio controladasefetivamente por um ou mais povoados de descendentes de escravos. Em virtude disso éque a memória de sua localização exata é atributo, hoje, dos membros das comunidadesremanescentes de quilombo, não obstante não terem necessariamente em mãos a

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

documentação cartorial que delineava confrontantes e lindeiros. Eles, e somente eles, sãocapazes de distinguir as pedras e recitá-las de cor, na seqüência devida, tecendo as relaçõescom o mundo circundante. Considerando os instrumentos críticos de observação etnográfica,pode-se aduzir que esse tipo de conhecimento, antes que geográfico ou que uma memóriada "terra do outro", expressa um sentido de pertencimento, isto é, de narrar uma delimitaçãofísica que hoje é coextensiva à sua maneira de existir socialmente. Quanto a isso, a antropologiareflexiva permite asseverar que os limites empíricos das comunidades podem ser isoladosem sua descrição, representando traços distintivos da identidade e da regra de unidade dogrupo ao definí-lo de fora para dentro, isto é, a partir de suas divisões (Bourdieu, 1989:113) e das relações nas fronteiras.

Em decorrência da aplicação desse preceito teórico, a partir das visitas àsruínas, com as anotações respectivas, e com as informações obtidas em reuniões eassembléias ocorridas nos povoados, durante o trabalho de campo pericial, montei doisquadros demonstrativos. Um deles arrolando os povoados onde as ruínas referem-seprincipalmente às fazendas de algodão e às fazendas que possuíam moendas, seja deferro, seja de madeira. Constata-se uma vasta rede de povoados referidos a tais ruínas,abrangendo tanto o noroeste do município, com Itapuaua, Esperança e adjacências,passando pelo nordeste, como Mato Grosso e suas pressões constantes sobre os povoadosdas chamadas terras da pobreza, quais sejam Canelatiua, Retiro, Bom Viver e Uru-Mirim, até alcançar Timbotuba (Timbotiua) mais no sentido centro-sul do município, nocoração da área privilegiada em fins da década de 1840-50 para a implantação de engenhos.

Incluí nesta listagem, dentre as denominadas taperas de branco, uma dedatação mais recente, a de Janã, que foi também utilizada como entreposto de compra deamêndoas de babaçu e como local que centralizava a cobrança de aforamentos no breveperíodo em que ocorreu uma parcial retomada de terras encetada por um comerciante deAlcântara e de Bequimão, o Sr. Antonino da Silva Guimarães10, sucedido por seu genroMarcial Ramalho Marques.

Notas ao Quadro da página 65:

(1) Para um aprofundamento, consulte-se: Linhares, L.F. do R. Terra de Preto, Terra de Santíssima: da desagregação

dos engenhos à formação do campesinato e suas novas frentes de luta. Dissertação (Mestrado) - MPP-UFMA, São Luís,

1999. p 40-42.

(2) Para maiores informações, consulte-se: Cantanhede, A. Ladeira, Iririzal e Samucangaua: relatório de identificação.

Cadernos de Prática de Pesquisa. São Luís, MPP-UFMA, 1998. p. 15.

(3) Para outros esclarecimentos, consulte-se: Carvalho, S. M. O povoado Ladeira:uma situação de terra de preto. São

Luís, UFMA-GERU, 1998. p. 14-46.

(4) Expressão também registrada comumente no Jornal da Lavoura, que circulou em São Luís (MA) nos anos de 1875

e 1876, para se referir aos estabelecimentos também chamados “engenhos de açúcar”.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Povoados onde foram assinaladas ruínas

de "casarões" e/ou moendas

Cujupe

Engenho

Esperança

Flórida

Iririzal

Janã

Ladeira

Mato Grosso

Murari

Tajurará

Timbotuba

Timbu

“paredões de pedra”

“tapera de branco”

“tapera de branco”

“paredão”

“apera de branco”

“sítio velho”

“tapera de branco”

“casa do branco”

“antigo comércio”

“a casa acabou e foi feita

uma casinha em cima da

tapera"

“tapera de branco”

“cemitério velho”

“paredões”

“tapera de branco”

“sítio velho”

“sítio velho”

“casa de engenho” (4)

“paredões”, “muralhas”

poço, “sumidouro”

“peças de ferro”, “cilindros

de ferro das moendas”

tanque, “sumidouro”

mangueiral.

“enormes pedras delineam o

que seria o alicerce” (1)

“pedras de rumo”

Alicerces, mangueiral, “restos

de paredes de pedras

existiam até alguns anos atrás”

(2)

sempre apontada como lugar

onde morava Marcial Marques

Ramalho, genro do grande

proprietário Antonio

Guimarães. Entre Janã e Rio

Grande há pedra de rumo.

Mangueiral (3)

“cacos de pratos, pedaços de

caldeirões de ferro, poço”

-

Alicerce

-

As ruínas desmoronaram

perto do lugar onde os

moradores de “Só Assim”

faziam seus cultivos.

Relato de moradores de Arenhengaua,

quando da reunião em que foram

discutidos os trabalhos relativos à

perícia.

Relato de moradores em reunião

realizada em Peroba de Cima e em

Ladeira.

Relato de moradores de Itapuaua,

quando mencionaram os chamados

“caminhos de escravos” e as “tocas”.

Relato de moradores de Flórida que

participaram de reunião em Peroba de

Cima no início dos trabalhos no

âmbito da perícia.

Relato de moradores de Ladeira, que

participaram de reunião em que foram

discutidos os trabalhos relativos à

perícia.

Relato de moradores de Peroba de

Cima, Itapuaua, Ladeira e Vai com

Deus.

Relato dos moradores de Ladeira em

reunião realizada em abril de 2002.

Relato de moradores de Mato Grosso e

de Canelatiua em reunião realizada no

decorrer dos trabalhos de perícia, no

pequeno próprio de Canelatiua.

Relato de moradores de Itapuaua e de

Samucangaua em reuniões para discutir

os trabalhos relativos à perícia.

Relato de participantes de

Samucangaua na segunda reunião em

Ladeira, em 08 e 09 de junho de 2002.

Referência assinalada por moradores de

Castelo, quando foram solicitados pelos

trabalhos de perícia a procederem a uma

reconstituição histórica da área.

Relato dos moradores da agrovila de "Só

Assim" referindo-se aos locais onde

plantavam antes de serem

compulsoriamente deslocados.

Quem fala sobre asruínas e quandoEspecificações

Denominações

locais das ruínasPovoados

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Povoados onde foram assinaladas ruínas

de "engenhos" e "casas-grandes" ou "casarões"

Belém (Bethlen)

Cajiba

(Cajuhyba)

Camarajó

Castelo

Itapiranga

Jacaré

Jerijó (Jirijó)

Marmorana

(Tapera)

Mutiti

São Maurício

Santa Rita

Traquaí

(Novo Belém)

"paredões de pedra"

"paredão velho"

"paredão"

"já teve paredões,

mas foram

destruídos."

"paredão"

"grande muralha"

"muralha",

"tapera de branco"

e "sítio velho"

"tapera de branco"

"paredão de pedra"

e"tapera de branco"

"paredão"

"paredão"

"muralha"

"engenho" e "casa grande"

"casa de engenho"

"ruína de engenho grande

com um pé de piquizeiro"

"alicerces de sobrado",

"poço de pedra"

"desmoronaram

as paredes grossas e

retiraram as pedras"

"perto da Norcasa estão

as paredes grossas"

"já tiraram muita coisa,

escavando e procurando

tesouros enterrados, mas

tem uma parte da muralha em

pé", "ferros"

"engenho"

"engenho", "alicerces",

peças de ferro,

Mangueiral(2)

"na construção da estrada

tiraram quase tudo", "ferros"(3)

"derrubaram paredão

para vender as pedras"

Derrubaram para vender

as pedras em Bequimão

Relatos memorialísticos dos que

hoje vivem na Agrovila Cajueiro,

referindo-se às marcas ruiniformes

da área onde viviam plantando e

pescando.

Referência dos moradores de Cajiba,

quando descrevem traços distintivos

do povoado.

Relatos memorialísticos dos que hoje

vivem na agrovila de Novo Peru,

referindo-se à área onde viviam antes

do deslocamento compulsório.

Referência dos moradores de

Castelo ao relatar as evidências de sua

antiga ocupação.

Referência dos moradores de Baixa

Grande, Mutiti e Itapiranga à predação

das ruínas por estranhos ao povoado.

Referência dos moradores de Jacaré,

também mencionadas por diretores

do STR de Alcântara.

Referência dos moradores de Baixa

Grande, Santo Inácio, Pavão, Jarucaia

e Conceição enfatizando a violação

das ruínas por pessoas alheias aos

povoados na busca de jóias e potes

de ouro supostamente enterrados.

Referência dos moradores de São

Raimundo I e Marmorana.

Referência dos moradores de Baixa

Grande, Itapiranga, Ladeira e Mutiti,

que também narraram estórias de

"potes de ouro", "baú de jóias" e

outros "tesouros" aí enterrados.

Referência dos moradores de São

Maurício, São Raimundo,

Arenhengaua.

Referência dos moradores de Santa

Rita.

Informação de moradores de Oitiua.

PovoadosQuem fala sobre aancianidade dos povoados (1)

Especificaçõese estado atual

Denominaçõeslocais das ruínas

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

No segundo quadro, concentrei as ruínas dos engenhos e compulsei, para efeitode verificação da fidedignidade das informações coletadas, as edições de 1858 a 1861 doAlmanack Administrativo, Mercantil e Industrial editado por Belarmino de Mattos, queapresenta uma relação de todos os 13 engenhos que então ainda existiam em Alcântara e seusrespectivos proprietários. Todos esses engenhos que foram incentivados pela política desoerguimento das plantações de cana-de-açúcar, no decorrer do governo provincial do alcantarenseJoaquim Franco de Sá, em 1846-47, localizam-se preferencialmente na freguesia do ApóstoloSão Matias, não se constatando um sequer na freguesia de São João de Cortes. Na freguesia deSanto Antonio e Almas, cuja área correspondente foi desmembrada definitivamente de Alcântaraem 1935 e equivale ao atual município de Bequimão, há também cinco outros engenhos, quenão foram arrolados nos quadros demonstrativos, posto que se referem à situação das fazendasda beira-campo, que se encontram fora do município de Alcântara e que passaram portransformações sócio-econômicas não exatamente as mesmas. Dos 54 fazendeiros arroladosnessa freguesia, tem-se que a metade era constituída de criadores. O total da populaçãocorrespondia a 6.000 pessoas, sendo que 1/3 foram classificados como escravos. A proximidadedos campos naturais e de áreas de maior densidade de cocais propiciou aos estabelecimentosdessa freguesia um certo tipo de desdobramento para as atividades de pecuária extensiva,conjugadas com aforamento e extração da amêndoa do babaçu (Almeida e Mourão, 1975:12).

Notas ao Quadro da página 66:

(1) Excertos das entrevistas realizadas durante a consecução da perícia serão acrescentados às observações diretas no

transcorrer da análise, completando com maior rigor as menções ora apresentadas.

(2) O mangueiral, também chamado de "mangal", designa um conjunto de mangueiras centenárias que caracterizavam

a sede do engenho Mutiti. O mesmo termo aparece nas entrevistas com os moradores de Ladeira realizadas por

Aniceto Cantanhede (Cantanhede, 1998:12).

(3) Os "ferros" concernem a fragmentos e vestígios de objetos e instrumentos utilizados na transformação da cana-de-

açúcar: tachas esféricas de ferro fundido, tachas de ferro estanhado, rodas hidráulicas, caldeiras, cilindros etc.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Nome do proprietário Denominação do engenho

Notas:

(1) O referido Comendador era casado com Francisca Isabel de Viveiros, irmã do senador Jerônimo José de Viveirosque, por sua vez, era pai do Barão de São Bento, Francisco Mariano Viveiros Sobrinho, que contraiu matrimônio comsua prima Mariana Francisca Correia de Souza, filha do Comendador, e passou a controlar o Engenho Piabitá. Alémdesse engenho, possuía também o Kadoz, localizado em Viana, mais exatamente no Quarto Distrito de São José dePenalva, que hoje corresponde aproximadamente a Cajari, que aparece na listagem de B. de Mattos e era consideradoum dos mais completos da região da Baixada.(2) A propriedade dos engenhos parece acompanhar a divisão político-partidária em Alcântara, que separava, de umlado, os pertencentes ao Partido Liberal (famílias Ribeiro, Franco de Sá e Araújo) e, de outro, aqueles vinculados aoPartido Conservador (Viveiros, Gomes de Souza e Correia de Souza).(3) Na freguesia de Sant'Antonio e Almas, o Almanack do Maranhão de 1863, editado por Belarmino de Mattos,assinala os seguintes engenhos: Cajuiba, que só produzia aguardente e pertencia ao Comendador Alexandre José deViveiros; San Vicente do Centro, do tenente José João de Macedo; Igarapé-assú, do major João Duarte Alves; Pontal,do Comendador José Ascenço Costa Ferreira; e San'Joaquim, de Luiz Ramos de Azevedo.

Alcântara, 1861

Senhores de engenhos de açúcar

Fonte: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. Ed. B. de Mattos. 1861

Dr. Alexandre José de Viveiros São Maurício e Santa Rita

Comendador José Maria Correia de Souza (1) Piahuitá

Tenente José Mariano de Mello Pery-mirim

Comendador Manoel João Ribeiro (Cajuhiba)

Cap. Raymundo Marianno de Araújo Cerveira e sua mãe (Tapera)

Coronel Severo Antonio d'Araújo Cerveira Filho Castello

Dr. Carlos Fernando Ribeiro (2) Gerijó

Capitão Euzébio Antonio Marques Santa Filomena

Dr. João Franco de Sá e Major Thomaz Ferreira Guterrez (arrendatários de Bethlem)

J. Baptista Gomes de Oliveira (Cajual) (Cajual)

Tenente-Cel. Manoel Gonçalves de Sá (Mutiti)

D. Rosa Estella Ribeiro Jacaré (3)

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

As informações utilizadas para a montagem destes quadros demonstrativosforam também plotadas na base cartográfica11 anexa a este laudo, permitindo uma visãomais completa de sua distribuição geográfica e dos contornos de sua posição em termostopográficos. A localização sempre próxima a rios e igarapés ampara as referências constantesde que a cada engenho correspondia um porto e contribui para reforçar o argumento deque as comunidades remanescentes de quilombo, que passaram a desfrutar dessa posiçãogeográfica, viabilizaram-se economicamente nesses dois séculos com intensas transaçõescomerciais, abastecendo com farinha, arroz, carvão, peixes, frutas (murici, babaçu, bacuri...)e óleos vegetais a capital São Luís.

Procedi à consulta de viajantes, naturalistas e engenheiros que estiveram emAlcântara nesse período e apresento suas observações. Raimundo Gaioso, em fins do séculoXVIII e início do XIX, já ressalta a produção de farinha em Alcântara diante dos demaisprodutos: "a sua produção consiste em arroz, algodão e muita farinha" (Gaioso, 1970:162).Henry Koster, o viajante inglês, em 1810, quando seu veleiro fez uma longa escala em SãoLuís indo para a Inglaterra, visitou Alcântara. Suas impressões sobre o Maranhão ressaltamque "o progresso aí foi menos rápido do que o de outro centros civilizados..."(Koster apudMello Leitão, 1937:53) e que a terra é extremamente concentrada. O coronel engenheiroPereira do Lago, visitando Alcântara, em 1819, chama a atenção para o fato de São João deCortes produzir exclusivamente farinha (Pereira do Lago, 1872:388). Em julho de 1819, omédico e botânico K. F. P. von Martius e o zóologo J. B. von Spix, que integravam o séquitocientífico da arquiduquesa austríaca D. Leopoldina, estiveram rapidamente em Alcântara.Visitaram fazendas de Francisco Manuel Alves Caldas e mencionaram a produção das salinase a exuberância da vegetação no sul de Alcântara, no porto do Carvalho. Nem uma palavrasobre a monocultura do algodão (Spix e Martius, 1973:250-251).

Não foram incluídas nestes quadros as ruínas menores, dispersas e fragmentadas,complementares àquelas das sedes das velhas fazendas, mas que jazem isoladas e que sereferem a: uma "boca de poço em pedra", no caso de Marudá; um "cemitério dos brancos

que foi abandonado", no caso de área próxima a Ladeira; um poço de pedra de bordaarredondada, no caso de Frade; e aos currais de bois, que são laterais aos caminhos deboiada que, indo para a beira-campo em Santo Antonio e Almas, passavam perto dePavão, Baixa Grande e Itaperaí. Pereira do Lago, em 1819, menciona as estradas reais, quecortavam Alcântara, e J. de Viveiros, em 1954, recupera criteriosamente os caminhos daboiada e aqueles dos correios, indicando que havia uma malha de ramais que eram extensõesdas fazendas, ligando-as às áreas de pastagens e aos principais portos.

No mapa elaborado para fins desta perícia, para facilitar a leitura e oentendimento da posição geográfica, procedi à classificação das ruinarias com trêsreferências elementares: ruínas de casas-grandes sem registros de engenhos ou moendas,ruínas de engenhos de açúcar e ruínas de moendas conjugadas com casas-grandes.Realizei uma distinção entre grandes plantações de algodão e de-cana-de açúcar e,quanto a estas, entre os engenhos e as moendas. A leitura do mapa, conjugada com osquadros acima apresentados, propicia a percepção das áreas onde se concentram osengenhos e de forma coextensiva os povoados que se consolidaram a partir de suadesagregação.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela

"Até porque além das famílias serem mesmo negras, a grande maioria

tem descendência até dos escravos, como foi uma avó que morreu

com cento e treze anos. E as terras ficaram aí, os brancos foram

embora." (G.C. 19/04/2002 - ENT.16 - referência a São Maurício).

"Justamente nós temos ali os engenhos, já existem ali só os paredões

grandes. Eu trabalho e passo por lá este paredão chama de Timbu.

Está na beira do rio, está lá. Tem dois paredões medonhos lá. Todos

dois. Este paredão foi até encancelado pelo pessoal, que tinha gente

que queria esbandalhar, tirar pedra." (I.O. 16/04/2002 - ENT.12)

Na representação dos moradores dos povoados, não se percebe qualquernostalgia da proteção dos antigos senhores de escravos que abandonaram a região e que sãoreferidos por eles como os brancos. O sentimento de autonomia, que construíram no decorrerdos últimos dois séculos e meio, dissocia radicalmente "cativeiro" e "proteção", ao contráriodo que sempre imaginaram os legisladores do período imperial partidários de uma aboliçãogradual da escravatura (Viotti da Costa, 1998) como forma iludida de proteger os libertos12.Pelas entrevistas, é possível perceber que recusam a "tutela benéfica" dos antigos senhores eque alguns, inclusive, traçam historicamente a trajetória familiar sem referência exponencial àescravidão. Não se vêem como órfãos de senhores que se foram, mas como sujeitos da açãoque os tornou livres, sem qualquer manifestação de vontade de que necessariamente estivessempresentes os senhores.

O aquilombamento das ruínas significa, nesse sentido, uma ruptura radicalcom a ideologia da tutela, ressaltando um processo de autonomia. Este é expressoeconomicamente pela condição de libertos, entregues a si mesmos, vivendo e trabalhandopor conta própria. Autônomos nas decisões de como, onde e o que cultivar sem apretendida "capacidade administrativa" de senhores e feitores. Autônomos na esfera dacirculação, transportando diretamente em barcos à vela, que denominam bianas, suaprodução para o mercado consumidor da capital, sem a intermediação de companhiasde comércio que já não mais existiam desde 1778. Aliás, o trabalho por conta próprianão consistia numa prática desconhecida daqueles escravos que mantinham terrenos decultivo para o sustento de suas famílias. Autônomos em termos das festas religiosas ousem a presença de clérigos, cujas ordens foram expulsas desde 1759-60. Mediante essamaneira de agir e de se verem a si mesmos sob uma aura de autonomia, colocam-se,portanto, para além de qualquer tutela, seja do Estado, seja da Igreja, seja de senhores deengenhos.

Mesmo nas situações concernentes à doação de terras a escravos e ex-escravos,como foi possível observar noutra parte desta perícia, em que as narrativas míticas recuperamaparentemente o mito do "bom senhor", o ideal de autonomia e não-submissão é sempreenfatizado. Relativizam as doações que a historiografia regional acriticamente considera umato de benevolência do senhor bondoso e indulgente. Com base nesse princípio, eles vãoreescrevendo, com suas narrativas memorialísticas, a ruinaria e o abandono das fazendas de

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algodão e dos engenhos. Deixam entrever uma ação senhorial descontínua, contingente,além de devastadora e predatória, quase impossível de transmitir qualquer sensação deamparo, de reprodução simples ou de atividade produtiva permanente. São muitodifundidas também, e vão reaparecer na análise das doações de terras a ex-escravos, asmenções ao endividamento dos senhores como uma das causas do abandono das fazendas13.

Ao reiterarem que os antigos senhores "não puderam levar" os paredões e asmuralhas, os entrevistados deixam transparecer episódios que a historiografia regional, noseu fascínio não-disfarçado pelas "ruínas que atestam a extinta opulência" (Raposo, 1944:258),acabou por desprezar. Em verdade, de certo modo, as ruínas teriam sido produzidas poratos deliberados resultantes dos endividamentos contraídos pelos senhores e da baixa dopreço do algodão e depois do açúcar no mercado mundial. Elas evidenciam o malogro deuma economia escravista baseada em grandes estabelecimentos agrícolas, dedicados àmonocultura, nessa região dos trópicos. Os depoimentos alusivos a como os "brancos

foram embora" fazem referências ao destelhamento das casas-grande e à sua demolição,com as vigas do barroteamento dos soalhos e dos baldrames e demais peças de madeirade lei sendo levadas pelos senhores, quando de sua retirada de Alcântara. O mesmo destinoteriam tido oratórios, imagens de santos, como no caso de São João Batista14, esculturas demármore, louças inglesas, livros que compunham pequenas bibliotecas dos membros dasordens religiosas e o mobiliário colonial do casario assobradado das fazendas. As narrativasindicam também que partes das engrenagens dos engenhos, como as caldeiras e demaisutensílios complementares (rodas hidráulicas, tachas de ferro estanhado e rodas de ferroinglesas) foram desmontadas e vendidas para o Ceará e outros estados do Nordeste.

Os entrevistados, entretanto, alertam notadamente para o que não pôde sermaterialmente levado nessa dramática retirada, cuja descrição tem conotações aproximáveisdo saque e da pilhagem. Nos depoimentos coletados, tudo se assemelha a despojos de umaação espoliadora que objetivava não deixar nada para trás, senão pedra sobre pedra15.Mencionam os bens imóveis em desmoronamento, tais como: as paredes de pedra –excedendo a um metro de largura, que se erguem sobranceiras nos outeiros e naspequenas elevações não alcançáveis pelos terrenos alagadiços, designadas localmentecomo muralhas e paredões –, os poços de pedra lavrada, os tanques e os alicerces.

Assinalam ainda elementos paisagísticos das sedes das fazendas, que tornamos lugares onde se erguiam mais facilmente distinguíveis. A pretensão de nobreza desseslugares é traduzida por plantas ornamentais da família das palmas, de estipe ereto, colunar,que chegam a atingir 40 metros, e que simbolizavam o poder senhorial na Colônia edurante o Império. Um exemplo seria a denominada "palmeira imperial" encontradajunto às ruínas do Engenho Gerijó:

"...ainda existe uma palmeira imperial que era a planta lá do senhor.

Acho que ela tem uns vinte ou mais de vinte metros de altura. Ainda

existe lá no Gerijó." (V. 18/04/2002-ENT.14).

Outro desses elementos característicos da paisagem que envolvem as sedesdas fazendas são os mangueirais, conhecidos localmente também como mangais, quepodem ser encontrados junto a quase todos os chamados sítios velhos e taperas de

branco do município de Alcântara (Cantanhede, 1998:12,13).

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Referem-se ainda os entrevistados às chamadas pedras de rumo ou marcosde pedra de cantaria, com inscrições e/ou letras na sua face superior, delimitando osconfrontantes das datas de sesmarias a serem confirmadas ou já concedidas pelo poderreal a nobres, fidalgos, cavaleiros de ordens e "homens de posse"16. As terras correspondentesa cada imóvel rural eram delimitadas com esses marcos ou pedras de rumo, que definiamângulos, limites tríplices e pertencimentos. Elas foram igualmente reapropriadas e hoje balizamas delimitações dos povoados, podendo incluir um ou vários deles consoante aparticularidade da desagregação da referida fazenda e da formação dos laços comunitários.Importa frisar que as pedras de rumo originalmente delimitavam terras e que nesta dinâmicade reapropriação pelas comunidades remanescentes de quilombo passam também a servirde referências para a construção social do território. Nesse sentido é que foi afirmadoanteriormente que o processo de territorialização abrange múltiplas territorialidadesespecíficas que foram se constituindo segundo temporalidades próprias e diferentes, masconvergindo, através de intensas conexões, para um território étnico.

Os detalhes dessas descrições e a habilidade em discernir os diversos tipos deformas ruiniformes evidenciam a força da transmissão dessa versão nativa que, num debateideal, se contrapõe à história oficial, recolocando o sentido efetivo das ruínas. Ao coonestaremesse tipo de saber histórico, as comunidades de cada povoado deslegitimam, de maneiraimplícita, os antigos senhores como detentores do monopólio da identidade regional easseveram que têm mantido ininterruptamente sob seu controle absoluto, durante quasedois séculos, vastas extensões de terras que somente por algumas décadas tiveram suaexploração organizada pelos denominados brancos. Nessa ordem é que a versão dosdescendentes dos ex-escravos, circunstanciando de maneira pormenorizada a "fuga" dossenhores, paradoxalmente nos autoriza a falar em aquilombamento das ruínas das casas-grande e dos engenhos.

As ruínas e o tempo livre

"Este era o paredão. Casa-grande, sim senhor. Casa-grande do feitor, o

preto apanhava aí, não tinha direito quase nem de comer. Quando a

sineta batia, cada um com sua colher ia caçar o que comer, se perder essa

hora, só de noite, batia a sineta... Belmiro, Francisco, Antonio, Pedro cada

um com sua cuínha, pegava aí, não tinha tempo de fazer nada, só

mesmo da carroça buscar madeira, mandioca aqui neste centro..." (U.A.S.-

19/04/2002-ENT.18)

Mostrando-me as ruínas do Engenho São Maurício, o entrevistadosublinha a impossibilidade do tempo livre no regime escravista. Deixa transparecer umapercepção de que a severidade da disciplina rotineira e a intensidade das tarefas impediam osescravos de fazer alguma coisa para si mesmos e para os seus. Essa representação da escravidãopela noção de tempo é resultado de uma longa experiência de aprendizagem em administrar,através de longas jornadas de trabalho, a produção de bens essenciais e a distribuição social doque for necessário à sobrevivência e à reprodução social.

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Através da categoria tempo livre (Elias et Dunning, 1994:129) é possívelcompreender o processo de trabalho nas comunidades remanescentes de quilombo, bemcomo suas representações sobre a vida social. Além de ser interpretada de maneira positiva, acategoria tempo livre, realçando uma posição de liberdade e independência, representa umtraço distintivo em face da subordinação escravista de épocas pretéritas. O equilíbrio entre otrabalho por conta própria e as atividades de lazer, numa ruptura com a noção de "coisa"imposta ao escravo, resulta por reforçar no entrevistado a sua condição de sujeito e suasformas de existência coletiva. Como sugere Elias, uma das determinações do tempo seriaa que faz dele um "símbolo social, cujo desenvolvimento acompanha o da vida coletiva"(Elias, 1998:31). À desintegração progressiva da autoridade dos senhores de escravos e deseus prepostos, corresponde a emergência de uma representação do trabalho, pelos membrosdas famílias de ex-escravos, desvinculada de qualquer forma de subordinação. Os ex-escravospassam a se constituir em indivíduos que governam a si mesmos, resistindo aos que insistemem subordiná-los. Sua liberdade repousa em sua possibilidade de controlar de maneirasdiversas o acesso aos meios de produção, os seus meios de trabalho e o tempo equilibradoentre o trabalho para si e as formas de entretenimento. A identidade quilombola é construídasobre esse equilíbrio, redefinindo a geografia da dominação, articulando tempo e espaçocomo livres do controle de terceiros. Assim, o campo de futebol localizado em meio àsruínas evidencia um uso social determinado, simbolizando o lazer na área da antiga casa-grande. Reagrupa as pessoas de uma forma distinta daquela das atividades produtivas.Todavia, reforça os laços de solidariedade e de coesão social da comunidade por igual.Percebe-se uma apropriação coletiva do espaço adjacente às ruínas, antigo lugar de trabalhocompulsório, para o exercício destas atividades de entretenimento dos moradores dospovoados. Jogo de futebol, algazarra e batuque, quebrando com a rigidez do silêncioimposto às senzalas, rompem com os gestos comedidos e com o falar baixo de quemestava sendo sempre vigiado. Aqui também se constata a aludida inversão: o antigo espaçofísico da casa-grande sendo incorporado ao lazer dos descendentes dos escravos e tornando-se um indicativo da autonomia de decisão que socialmente construíram. A rigor, aqueleespaço físico foi transformado numa característica do processo de territorialização étnica.

Mas não se deve confundir essa noção de tempo com sequências temporaisintegradas num fluxo contínuo, como se as transformações fossem temporalmente lineares.Há outros fatores que entram em consideração. Não são somente a idade de uma ruína,a idade de um povoado ou a duração de certos processos sociais, como esse daterritorialização das comunidades remanescentes de quilombos, que devem ser levadosem conta. A percepção dos direitos étnicos, combinada com a conquista do tempo livre,e a disponibilidade para consolidar os elementos identitários, que autorizam a identificaçãoétnica e justificam os direitos derivados, seja no lazer ou no trabalho, devem serconsiderados.

Os critérios político-organizativos e de mobilização, coextensivos à identidadeétnica e às reivindicações de titulação definitiva das terras das comunidades remanescentesde quilombo, reconhecida pelo Art. 68 do ADCT da Constituição de outubro de 1988,atualizam-se também nesses domínios de trabalho e lazer, consubstanciando a plenitudeda condição de sujeito conquistada pelos quilombolas.

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A datação da fuga e das ruínas

"...dos brancos não sobrou nada, só os ferros velhos"(U.A.S.19/04/

2002 - ENT.18)

São várias as datas e diferentes as temporalidades que registram a saída de Alcântarados donos dos grandes empreendimentos agrícolas e os primórdios do desmoronamento dassuas respectivas benfeitorias. O tempo mais recuado concerne às ordens religiosas. Elas tiveramseus bens confiscados e/ou transferidos ao Estado a partir de 1759, com os jesuítas, ecompletando-se em termos jurídicos em1891, com os carmelitas.

A derrocada total das fazendas de algodão, a partir dos efeitos tardios da extinçãoda Companhia Geral de Comércio, em 1778, se completa em 1819, com os preços do produtoindo ao fundo do poço no mercado internacional e com o agravamento dos débitos contraídospelos sesmeiros junto a comerciantes, na compra de escravos.

Os engenhos de açúcar com inovações tecnológicas, que foram incentivadospelo governo provincial em 1847, não lograram êxito. No final da década 1860-70, jáestavam praticamente falidos, restando tão somente em Alcântara moendas de pequenoporte. Tais engenhos jamais chegaram a engenhos centrais. Usinas, com índice deindustrialização semelhante àqueles da costa nordestina, não houve. Os engenhos seconcentravam na freguesia do Apóstolo São Matias.

Os criadores de gado que usavam os campos naturais do Tubarão e de SantoAntonio e Almas (Bequimão) sempre estiveram ligados às grandes fazendas, abastecendo-as, sobretudo quando o peixe escasseava, e fornecendo os animais-de-tiro para movimentaras moendas e engenhos ou para o transporte das cargas. Ainda há vestígios próximos aJarucaia dos chamados caminhos da boiada, que constituíam as vias de comunicação doscampos com os engenhos por onde eram conduzidos os rebanhos. Em Pavão e Itaperaí,há evidências dos denominados currais de bois, caminhos estreitos de beiradas elevadasde ambos os lados, cujas extremidades eram fechadas com porteiras, mantendo presas asreses até o abate. Nas áreas próximas às fazendas, conforme os entrevistados de BaixaGrande e Itapiranga, só existem poucas manchas de um tipo de pastagem, chamada paturá,que não comporta rebanhos. Seriam pastagens fracas, suficientes se tanto para os animaisde tração das antigas fazendas e que hoje são utilizadas pelos bois-cavalos, de cada uma dasfamílias dos povoados. Com a destruição das fazendas, essa articulação entre monoculturae pecuária perdeu sua razão econômica. O criatório extensivo dos campos da Baixadaredirecionou seus rebanhos para as feiras de gado e para o abastecimento de núcleos urbanose principalmente da capital. Por outro lado, a atividade pecuária foi, de certo modo, redefinida.Vaqueiros, que eram escravos domésticos das antigas fazendas ou que haviam sido alforriados,passaram a cuidar, nos campos naturais, tradicionalmente abertos, do gado pertencente àsfamílias de escravos e ex-escravos dos povoados recém-formados. Praticavam o sistemachamado de sorte, ficando com percentuais das crias que variavam entre um quinto e umquarto. Todas as informações disponíveis indicam que os escravos podiam possuir umpecúlio17. Cada animal desse "novo" rebanho pertencia, pois, a uma família de escravos18,daquelas que permaneceram – cultivando de maneira autônoma e residindo – nos povoados

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que sucederam às fazendas. Os vaqueiros prestavam um serviço às famílias como um todoe, no final do século XIX, há registros de que vieram a adquirir terras de seus antigossenhores, no Engenho Mutiti (cf. P.S.-15/04/2002 - ENT.10), enquanto que famílias decomunidades remanescentes de quilombo adquiriram posteriormente terras para seu gadona beira-campo, mais exatamente em Boa Vista (Cantanhede,1998).

Diante desse quadro, percebe-se que os mecanismos repressores da força detrabalho, desde fins do século XVIII, estavam fragilizados por demais nas fazendas, nãoobstante as tentativas dos legisladores provinciais de reativá-los. Isso, em certa medida, respondeà pergunta de por que os senhores foram embora e não levaram ou venderam seus escravos,inclusive para saldar seus débitos. Não o podiam mais. Isso distingue Alcântara de outrasregiões do Maranhão. Milhares de escravos foram vendidos e transportados do Vale doItapecuru para as fazendas de café do centro-sul do país19. Deve-se destacar que nesses diferentesmomentos de abandono das fazendas e da chamada "fuga" dos senhores, os quilombos jáusufruíam de um grau de consolidação razoável em Alcântara, debalde os esforços das tropasde linha em combatê-los, e já era bastante elevado o número de escravos, produzindo porconta própria e fora do alcance pleno dos mecanismos de imobilização. Certamente que nãohá dados estatísticos oficiais disponíveis para corroborar isso, entretanto, compulsando asinformações arroladas no Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial, de 1861 –editado por Belarmino de Mattos, que contava com colaboradores diretos em Alcântara –,pode-se destacar que na freguesia do Apóstolo São Matias, incluindo a cidade de Alcântara,assinalada por Mattos com visíveis sinais de abandono, os escravos constituíam mais de 55 %da população, perfazendo 4.500 de um total de 8.000 habitantes. Na freguesia de São João deCortes, de 2.800 habitantes, tem-se que 800 são arrolados como escravos.

Município Freguesias*

Total

8000

3600

11600

Total

Apóstolo São Matias

São João de Cortes

Alcântara

NOTAS:( * ) As freguesias de Santo Antonio e Almas, de São Bento dos Perizes e São Vicente Ferrer de Cajapió tambémpertenciam à comarca de Alcântara, mas não foram aqui incluídas por referirem-se a uma área geográfica quetranscende aos objetivos do presente trabalho de perícia.( ** ) Não houve qualquer registro de produção no Almanack de referência. O único registro sobre a produção que

foi detectado refere-se a 20.000 arrobas de açúcar na freguesia de São Matias.

FONTE: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. 1861. Editor Belarmino de Mattos.

"Senhores de Engenhos", "Fazendeiros e Escravos": Alcântara 1860-61

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Os registros de produção assinalados referem-se tão-somente ao açúcar dos13 engenhos antes citados. Nada há sobre os 50 "fazendeiros" e as demais informaçõesdisponíveis no mencionado Almanack enfatizam tão-somente os plantios de mandioca eo fabrico de farinha em todo o município. Na área de Raimundo Sú, a exemplo de SãoJoão de Cortes, "quase que cultivam exclusivamente a mandioca e exportam alguma farinha"(Mattos, 1861:34). Quanto à cidade, registra o seguinte:

"Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e as ruas nuas de

viandantes. Só nos dias festivos é que se lhe nota vida e animação." (Mattos,

1861:24) (g.n.)

A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas

No caso das ordens religiosas, há copiosa documentação em virtude dequestões judiciais entre a Igreja e o Estado desde 1759 até o fim do padroado, em 1883.Para efeito de síntese, realizei uma reconstituição concisa sem qualquer pretensão deestabelecer periodizações. A despeito da abundância das fontes documentais e arquivísticas,não consegui obter maiores dados sobre a fazenda da ordem religiosa chamada Terra Santa,cujo arrolamento de 1877 dizia tão-somente: "huma fazenda na paróquia de São Matias emAlcântara" (P. Silva, 1922:419), consoante registro do Bispo do Maranhão D. Francisco Paulae Silva, publicado em 1922. Sobre ela também não consegui informações locais através detécnicas de história oral e de entrevistas provocadas.

Coligi dados, principalmente, sobre as fazendas das ordens religiosas eirmandades e passo a descrevê-los numa sequência cronológica.

Companhia de Jesus

Os jesuítas tiveram seus bens confiscados na governação pombalina20 eabandonaram seus estabelecimentos agrícolas em Alcântara em 17 de junho de 1760(Viveiros, 1977:41). Nem bem tinham saído e o desmonte de suas benfeitorias foi iniciado.Joaquim de Mello e Póvoas, governador e capitão-geral do Maranhão, propôs à metrópole,em 1761, que da casa da Companhia de Jesus em Alcântara se procedesse ao

"aproveitamento da telha e mais alguma coisa nas obras do paço

governamental de São Luis, que ele remodelou e proveu de mobília e

algumas alfaias." (Lopes, l957:285).

Quanto às fazendas, cabe assinalar que os mordomos régios tiveramdificuldades de vender o Engenho São Bonifácio. A Fazenda Pericumã, segundo Lopes,“deu origem ao povoado de São Lourenço" (Lopes, 1957:286). A Fazenda Gerijó, aindasegundo Lopes:

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"foi passando de mão em mão até chegar à do dr. Carlos Fernando

Ribeiro, Barão de Grajaú, que lá instalou uma usina de açúcar das mais

adiantadas do seu tempo, mas obcecado pela política, nesta dissipou

grande parte de sua fortuna. Dia chegou em que se viu na contingência

de desmontar o belo e rico engenho para com uma parte do

maquinário montar em São Luis uma fábrica destinada a descaroçar

algodão e pilar arroz."(Lopes, 1957:286).

Numa mesma fazenda, cada ruína se ergueu sobre a anterior, encadeandouma série de sucessivos malogros econômicos, tanto com o algodão21 e as moendas demadeira em finais do século XVIII, quanto na produção de açúcar bruto através dosengenhos, no último quartel do século XIX. Numa arqueologia de superfície, tem-sereatualizados os símbolos correspondentes na diversidade do que chamam de "cacos"(louças, cerâmicas, vidros) e "ferros" (caldeiras, rodas, tachas).

Os entrevistados de Pavão, Santo Inácio e Baixa Grande descrevem o estadoatual destas ruínas:

"No Gerijó os alicerces ainda tem, ainda existe alicerce, ainda tem o

poço, um poço muito grande também aí que entupido, mas ainda

tem uma fundura boa e ainda se encontra algum material por lá, ferro

de engenho. Pelo menos umas bocas de baixo das caldeiras que tinha,

isto aí ainda se encontra ainda por lá." (V. 18/04/2002 - ENT.14)

"...a fazenda dele era ali no Gerijó onde tem hoje as muralhas... os

marcos estão lá, os casarões acabaram." (P.F.C. 12/04/2002 - ENT.

01 - referência a Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú) (g.n.)

Em São João de Cortes, além de um colégio, os jesuítas mantinham umaunidade de produção de anil. Obtinham uma matéria corante de cor azul violácea fornecidapelo indigueiro, um arbusto tropical22. A fábrica tratava-se de uma manufatura onde seproduzia uma substancia corante extraída das folhas e chamada anil. Ela tinha aplicaçãonas artes para tingir de azul. O azul índigo era por demais apreciado então na Europapela sua tonalidade forte, muito semelhante ao azul-violeta, o que facilitava sua exportação.Os jesuítas treinaram escravos africanos e índios nas técnicas de processamento.

As benfeitorias dos jesuítas em São João de Cortes ficaram desde 1760 sob ocontrole dos índios, abrigando inclusive escravos fugidos, dedicando-se principalmente àprodução de alimentos, sobretudo farinha, sob uma economia de base familiar. Os entrevistadosnarram que os índios teriam doado as terras a São João Batista, que deixou livre o acesso aquem delas necessitasse (M.L. 20/04/2002 - ENT. 22.2).

Os relatos do coronel engenheiro Pereira do Lago, visitando a região em1819, reforçam este argumento da prevalência da pequena produção, invocando, entretanto,as condições do solo e não exatamente as unidades de trabalho familiar:

"Esta povoação de índios é muito antiga, constava de 22 fogos e cousa de

90 a 100 almas; tem capela, mas não sacerdote, e o comandante é um

sargento. Plantam só mandioca, porque para mais nada serve o terreno."

(Pereira do Lago, 1872:388) (g.n.).

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Ordem dos Carmelitas Descalços

Embora franciscanos, carmelitas e mercedários tenham tido um tratamentodistinto daquele dado por Pombal à Companhia de Jesus (Mourão Sá, 1975), seus imóveisrurais decaíram por igual século XIX adentro. O Convento da Ordem dos CarmelitasDescalços, com suas três fazendas, incluindo-se Itamatatiua, uma olaria e muitas terras, apartir de 1821, segundo A. Pratt, não teve mais condições materiais para manter seupatrimônio. De acordo com a interpretação de Pratt:

"Desligada como se achava a Vigairaria Carmelitana do Maranhão do

seu tronco vital (...), sem meios para soerguer-se, só podia esperar

o seu extermínio". (Pratt, 1941:188).

Nas chamadas terras de Santa Teresa, centralizadas em Itamatatiua, ondeexiste a capela da santa, foram registrados inúmeros quilombos, desde meados do séculoXIX. Eles foram severamente reprimidos em 1837, mas não destruídos. As fazendas degado de Piracumã (Pericumã), do Tubarão e do Suassíu Cumã soçobraram lentamente eforam desmembradas. A Ordem Carmelitana de Alcântara, em 1835, quando já não maiscontrolava efetivamente suas fazendas, todas elas pontilhadas de povoados, doou seusbens ao governo da província do Maranhão, conforme Anais da Assembléia Legislativa doMaranhão em sessão de 23 de março de 1835.

Atendendo à determinação de Circular de D. Luís da Conceição Saraiva,Bispo Diocesano e Visitador da Ordem Carmelitana, de 17 de novembro de 1868, o FreiCaetano de Santa Rita Serejo procede a relatório circunstanciando os bens dos conventos e,entre eles, o de Alcântara. Registra que o convento possuía 160 escravos e diz que as terrasda fazenda "Tamatatuba"(Itamatatiua) pouco podem produzir. Menciona as terras aforadase, sabedor de que nenhum religioso permanecia na área e que os escravos produziamlivremente, completa:

"Os escravos deste convento que sempre foram insubordinados e

desmoralizados, acham-se moralizados, contentes e satisfeitos".

(Serejo, apud Paula e Silva,1922:468,469).

Ordem de Nossa Senhora das Mercês

O Convento da Ordem de Nossa Senhora das Mercês e suas duas fazendas,incluindo-se as terras de Sant'Ana23 e muito gado, viram tudo a perder durante asprimeiras décadas do século XIX. As terras onde foram erguidos o convento e a igrejaforam doadas aos mercedários pelo antigo donatário, Antonio Coelho de Carvalho. Oconvento foi fechado em 1850, data do falecimento de seu último administrador. Apartir daí, os relatórios e ofícios sempre frisam que não há mais religiosos em Alcântara,tendo sido a administração do convento entregue ao capitão João Vidal de Souza. Nasduas fazendas havia então o registro de 84 escravos, que desenvolviam agricultura debase familiar.

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A fazenda de Sant'Ana, "com uma légua de frente e meia de fundo noscentros de Santo Antonio e Alma", designada hoje como Terra de Sant'Ana, é limítrofecom a fazenda Tamatatiua (Itamatatiua) ou Terras de Santa Tereza, da Ordem doCarmo, e, de acordo com a "Relação de bens de raiz que possui a Ordem Mercedáriadesta Província do Maranhão", de 05 de outubro de 1870, assinada por Frei Caetanode S. Rita Serejo, administrador do patrimônio da Ordem, a outra fazenda trata-se de:"Meia légua de terra nas costas da baia de Alcântara comprada pelos religiosos, na qualtiveram eles uma olaria e hoje acham-se abandonadas". O referido administrador fazmenção a Alcântara, "cidade que a muitos anos decresce", ao "convento em ruínas" e àigreja na qual, devido a desmoronamentos e aos reparos no teto, "não há decência precisapara a celebração do culto divino"(sic).

No Parecer da Comissão do Convento das Mercês, datado de 12 de dezembrode 1862 , encontra-se registrado que: "os conventos estão em estado de ruínas pelo

abandono (...) em Alcântara (...) o convento está em terra".No que tange às fazendas, embora sem menção explícita a quilombos, como

no caso dos Carmelitas, cuja fazenda é limítrofe, os religiosos falam eufemisticamente em"indisciplina". Assinalam o seguinte:

"As suas fazendas estão abandonadas, e nem fazem para o sustento

diário dos próprios servos, que vivem sem disciplina e alguns

miseravelmente...".24

No Ofício de 30 de setembro de 1863, da mesma Comissão, há um alerta deque a igreja "de Alcântara está a desabar" e uma sugestão de que os escravos que estão noConvento de São Luís sejam levados de volta às antigas fazendas. Os superiores daOrdem, em portaria de 24 de janeiro de 1870, determinam que os escravos sejamincorporados às fazendas da Ordem do Carmo.

Irmandade do Santíssimo Sacramento

A Irmandade do Santíssimo Sacramento teve a expedição de seu registroparoquial, exigência da Lei de Terras de 1850, documentada no Livro de Registros no 20,folha 18v., e datada de 30 de junho de 1856. A este tempo, os povoados dentro dessasterras já se encontravam relativamente consolidados, muitos deles consistiam em quilombosde escravos fugidos dos engenhos Mutiti e Itapiranga, que foram se deslocando para asmargens dos igarapés das cabeceiras do rio de São João (Periaçu). A abundância de moluscos(caramujos, ostras e mariscos) e de diversas espécies de peixes propicia uma atividade depesca constante combinada com a agricultura familiar. Samucangaua, Aririzal (Iririzal), Itauaú,Panamirim, Ladeira, Santa dos Caboclos, Flórida e Forquilha são assinaladas pelosinformantes como estando localizadas integralmente dentro dessa área, denominada terra

de santíssima, terra da santa ou terra de santíssimo25, ou sendo alcançadas parcialmentepelos seus limites.

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Consoante observação de Shiraishi, construída a partir da leitura de Gaioso,as cartas de sesmarias não implicavam necessariamente em afirmar que as terras estavamefetivamente ocupadas e sob controle daquele que as requereu (Shiraishi, 1998b.:24). Assim,embora estivessem de fato abandonadas e sob efetivo aquilombamento – e os relatórios,ofícios e pareceres confirmam sobejamente isso –, as fazendas das ordens religiosascontinuam a ser objeto de inventariamento de bens e exame de comissões mais em virtudede pendências com o governo federal26. Do mesmo modo que os detentores de antigascartas de datas e sesmarias ou os que adquiriram esses títulos, sem ter efetivamente o controledas fazendas, à exceção dos engenhos beneficiados pela política de reativação das plantaçõesde cana do governo provincial de 1847, as ordens religiosas buscaram registrar suas terrasnos anos de 1854-57, atendendo tão-somente às disposições legais, sem ter em mira qualquerexploração agropecuária de fato.

Territorialidade específicas

Nas terras das antigas fazendas das ordens religiosas, através de sua ocupaçãoefetiva por ex-escravos e quilombolas, foram construídas complexas redes de relaçõessociais delimitando territorialidades específicas, que abrangem dezenas de povoados, e sãoreferidas tanto pelos que nelas vivem, quanto pelos circundantes, como terras de santo outerra santista, terras da santa, terras de santíssimo ou terras de santíssima. Essasdesignações, numa referência empírica às mesmas áreas e num contexto de fatores identitários,alusivo às auto-representações, coexistem com as denominadas terras de preto e terras

de caboclo. Antes mesmo de terem permanecido como patrimônios de ordens religiosas,elas constituem, portanto, terras que foram de fato ocupadas por escravos, alforriados,libertos pela lei de 1755 e escravos fugidos de fazendas, os quais, de maneira independenteou através de aforamentos simbólicos, como afirma B. de Mattos (1861:34), aí construíramsua autonomia social e econômica em face do poder senhorial.

Para efeito de ilustração, arrolei sete situações sociais27 hoje no município deAlcântara assim classificadas e que permanecem de fato ocupadas, integrando o territórioétnico reivindicado pelas comunidades remanescentes de quilombos.

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NOTAS:

(1) As benfeitorias dos jesuítas em São João de Cortes ficaram desde 1760 sob o controle dos índios. Os entrevistados

asseveram que os índios doaram a terra a São João Batista. (Cf. M.L. 20-04-2002. ENT. 22-2).

(2) Cf. Convento Nossa Senhora do Carmo. Tamatatiua. Registro Paroquial expedido em 1857, Livro 01, folha 56.

Localizado no Arquivo Público do Maranhão.

(3) Cf. Irmandade do Santíssimo Sacramento. Registro Paroquial expedido em 30 de Junho de 1856, Livro 20, folha 20.

Localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão.

(4) Cf. Registro Paroquial expedido em 1º de Março de 1856, Livro 20, folha 10. Localizado no Arquivo Público do

Estado do Maranhão.

(5) O Convento Nossa Senhora das Mercês possuía duas fazendas em Alcântara, a mais conhecida é esta de Sant'Ana,

limítrofe com a de Santa Teresa, da Ordem dos Carmelitas Descalços.

(6) Cf. J.M.S, em 15-04-2002. ENT. 08. Informação obtida através de entrevista. Como não foram registradas menções

explícitas durante o trabalho de campo pericial, não posso assegurar que essa área corresponda, não obstante

posição geográfica similar, a "meia légua de terras nas costas da baía de Alcântara comprada pelos mercedários

na qual tiveram eles uma olaria e hoje acham-se abandonadas". Cf. Relação dos bens de raiz que possui a Ordem

Mercedária desta Província do Maranhão, 05 de outubro de 1870, firmada por Frei Caetano de Santa Rita Serejo.

(7) Fazenda da Companhia de Jesus, que foi confiscada em 1760, cuja localização está referida a Guimarães. Não se

confunde com o povoado de São Lourenço, localizado em Alcântara , próximo à estrada real que conduzia a

Guimarães e, daí, ao Pará.

Terra de Santo, Terra de Santa e Terra de Santíssimo

A Noroeste do município de Alcântara

São João de Cortes como povoado

principal

Ao Sul do município de Alcântara

adentrando o município de Bequimão,

tendo como povoado principal Itamatatiua

numa rede que compreende mais de 30

povoados.

Santana dos Caboclos, Samucangaua,

Flórida

Ilha do Livramento

Barroso, Balandro, Juraraitá e mais uma dezena

de povoados no município de Bequimão,

fazendo limites com Terra de Santa Teresa

À Leste do município de Alcântara. Mamuna

Antiga Fazenda Pericumã. (7)

Terra de Santo

Terra Santista

Terra da Santa

Terra de Santíssimo

Terra de Santíssima

-

Terra da Santa

-

-

São João Batista (1)

Santa Tereza (2)

Nossa Senhora do

Livramento (4)

Sant'Ana (5)

Santa Rita (6)

São Lourenço

Companhia deJesus

Ordem do Carmo

Irmandade do

Santíssimo

Sacramento(3)

-

Ordem das Mercês

Ordem das Mercês

Companhia de Jesus

Denominaçãolocal

Divindade referida Instituiçãopia ou religiosa

Povoados

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Em suma, pode-se afirmar que uma datação das ruínas dispersas pelomunicípio de Alcântara poderia ser estimada entre quase um século e meio, considerandoo malogro dos engenhos, e dois séculos e meio, tomando como referência a expulsãodos jesuítas. As datas antecedem à abolição formal da escravatura, em até 129 anos, eassinalam uma característica econômica intrínseca a regiões periféricas, que mesmocom grandes plantações não lograram transformarem-se em complexos agrário-industriais como no caso da costa nordestina, em que se constituíram as usinas deaçúcar. Em Alcântara, ao contrário do Nordeste, com a desagregação das fazendas,prevalece um sistema econômico de pequenos produtores que incorporam a terra aoprocesso produtivo mediante o trabalho familiar e cuja trajetória, em termos históricos,remonta ao princípio de autonomia e às premissas étnicas dos quilombos. Esses marcostemporais, ora fixados, datam concomitantemente a desagregação das fazendas e aancianidade das comunidades remanescentes de quilombo, que se acham imbricadasnesta arqueologia das grandes plantações.

As diferenças culturais e as premissas étnicas

A despeito das relações de proximidade, inclusive geográfica, entre ospovoados onde se estruturam as comunidades remanescentes de quilombo e as ruínas,percebem-se também situações de afastamento que marcam profundas diferenças e denotamassimetrias.

Os povoados se constituem em terreno próprio, à meia distância das ruínas.Algumas ruínas encontram-se mais próximas das áreas de plantio ou localizadas nocaminho que leva às denominadas roças, de que seriam exemplos: Timbu, Esperança,São Maurício e Gerijó. Os moradores dos povoados não aproveitam paredes, muros,pedras ou qualquer fragmento das ruínas para erigirem suas habitações. Aos olhos dosmoradores, eles parecem envoltos em estigmas. Evitam construí-las excessivamentepróximas das chamadas taperas de branco e dos paredões por considerarem as ruínascomo um lugar desolado onde seres sobrenaturais se manifestam visivelmente. Atravésde ruídos estranhos, como o arrastar de correntes, sons de açoites, choro aflitivo decrianças e imagens fantasmagóricas, eles apareceriam nas horas de pouca luz e,principalmente, à noite. São considerados espíritos dos que já faleceram, que retornampara "atentar". Os moradores utilizam o termo visagens para designá-los e os consideramcomo podendo fazer o mal. Laís Mourão, que estudou mais detidamente esses fenômenos,na região entre Bequimão e Alcântara, considera que essas visagens, também chamadasvagantes ou assombrações, são atribuídas a espíritos ou "gente que morre e não vaipra bom lugar porque não presta, deixou alguma falta ou pecado para pagar". (MourãoSá, 1974:21). Nesse contexto, sempre associado às violências praticadas contra escravos,registrei repetidas referências a Ana Jansen que, nas narrativas populares do Maranhão,representa o símbolo dos maus tratos e das crueldades senhoriais contra escravos28.Considerei-as, porquanto os contos populares são também documentos históricos(Darnton, 1996:26) e constituem matéria-prima de investigações antropológicas.

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As taperas de branco constituem um domínio de transgressões onde asvisagens atentariam as pessoas para praticarem atos que violem as regras de convíviosocial, tais como: matar, roubar, destruir. Próximo a elas estaria o chamado sumidouro, doqual os entrevistados não apreciam falar. Trata-se de um instrumento de justiça privada, aoqual são referidas crônicas de horrores. Citam, entre outros, um que havia em Cujupe,outro na sede do município em Alcântara, ao lado da Prefeitura, e ainda outros em Esperança29

e no Engenho São Maurício. Quando os mencionam, fazem uso de meias-palavras, quasebaixando o tom de voz e deixando nos desvãos das entrelinhas possíveis explicações aduzidaspelos interlocutores.

U. – "Do outro lado lá tem o resto do sumidouro. Matava, malandro tá lá. Essas casas

tudinho tinha sumidouro na antiguidade, todo tinha sumidouro.

A. – E o que era este sumidouro?

U. – É um paredão medonho, feito quase um buraco com tampão, que a boca tem essa

cava, tá vendo? (Faz um gesto de concha com as mãos).

A. – E lá no fundo é água?

U. – É não senhor, é seco.

A. – Mas havia alguma coisa lá no fundo?

U. – Não, só apodrece alguma coisa não é. Aí levava até lá,quando chegava um tempo

tirava a boca, tirava aqueles ossos e botava fogo. É assim que era." (U.A. S.- 19/

04/2002 - ENT.18)

As visagens fazem com que todas essas estórias sejam revividas. Trazem-nascom seus horrores e inquietações.Todas as características atribuídas à figura do diabo, numplano mais global (Mourão, 1974), estariam ali manifestas, inclusive aquelas que acenam comriqueza fácil. Sim, todas as ruínas acham-se também envoltas em estórias de tesouros enterrados,buracos feitos ao pé de grandes árvores, potes cheios de ouro a serem descobertos, algibeirascom moedas reluzentes, caixas de jóias enfiadas nos paredões, arcas e baús repletos de prata,escondidos sob o piso. Em outros termos, tudo aquilo que teria sido obtido de modo escusoe que os brancos teriam esquecido de levar na pressa da partida. O esquecimento já é narradocomo uma espécie de punição.

Os entrevistados pontuam que o meio de recordar os atos sigilosos e dedescobrir os esconderijos vem através de uma forma inesperada, involuntária como arevelação em sonho. Quem se empenha em querer descobrir de maneira intencional nãologra êxito, dizem ainda os entrevistados. O merecimento é inerente à qualidade da pessoae não às habilidades e à sofisticação dos instrumentos para escavar e desvendar esconderijos.Nessas narrativas, quem quer e procura não acha:

"Tinha dois paus de arqueiro em frente assim da porta, que a porta era

esta (risca com o pataxo uma figura no chão batido da casa, indicando-

me a posição relativa da porta). Tinha mesmo dois paus de arqueiro,

não tem mais. E bem encostado da parede tinha um do lado de fora,

e tava lá, aquele pé de árvore, que eu não sei como foi aquilo ele botou

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uma raiz e passou para dentro da sala velha do engenho e a raiz era de

muita grossura. Eu fui lá, olhei, observei. Então aquilo foi pra dentro

da casa, pra dentro da sala, mas só que dentro da sala tinha uma

mangueira dessa grossura maior. Tinha não, tem. E a raiz entrava,

tem uma raiz que indicava, aquela raiz. Debaixo daquela raiz tinha

um cofre que tinha muito ouro, muito ouro. Essa notícia vem de

longe." (V. 18/04/2002 - ENT.14)

"...eles entraram assim para dentro do paredão, meteram o facão assim,

comprido. Ele pegou numa pedra no fundo. Eles bateram o facão

assim, aquilo falava... eles ficaram com medo e vieram embora, nunca

mais foram lá. Aí ficou passando esta informação. O C. disse: Que

nada! Isto tem ouro, ouro se tira com máquina, a máquina vai levando

tudo.

Foi e derrubou pedaço do muro que tinha. Nada. Mas não era para

ele." (M. 18/04/2002 - ENT.14.1)

Os episódios narrados, aparentemente seriam mais um capítulo da contradiçãoentre os escravos e os senhores. No entanto, no universo das representações religiosas dosmembros dessas comunidades remanescentes de quilombo, diferentemente de um prismacristão ou de uma mera oposição entre o bem e o mal, entre o positivo e o negativo, entrea ambição por riqueza e o desprendimento, entre a virtude e o pecado, haveria umaambigüidade nessas categorias, na qual as situações e pessoas só são definidas como boasou más contextualmente, existindo uma reversibilidade entre o bem e o mal (Mourão,1974).

As ruínas, desse modo, mostram-se sujeitas a representações diametralmenteopostas, mas que não são vividas como contraditórias pelos membros das comunidadesem questão. A suposta incoerência só seria construída por intermédio de uma posiçãoetnocêntrica, de quem se encontra fora da dinâmica desse processo de transformaçãosocial. Os moradores dos povoados temem os lugares visagentos, mas convivem com eles,posto que fazem parte de seu sistema de representações religiosas e, por extensão, de suacultura e de seu patrimônio imaterial.

Sob essa dimensão das ambigüidades e suas variações, conforme os contextos,haveria um outro ponto de convergência entre as ruínas e os lugares onde se escondiam osescravos fugidos em Alcântara, que recebem localmente a designação de toca e correspondeminteiramente ao significado de quilombo. As representações mágicas permitem associarsituações que tanto relativizam quanto podem estreitar os vínculos entre os opostos simétricos.Está em jogo, mais uma vez, a mencionada reversibilidade:

"Belém era do Sr.Marçal, lá que os escravos se escondiam. A toca era o

lugar dos que fugiam e era o lugar dos encantados também. Lá eu não

passava depois de seis horas. Muita gente dizia que aparecia um prato

cheio de ouro. Era uma mina de ouro dos escravos, hoje são os paredões.

No rio de Bonos Ares muita gente viu cavalo de ouro, cachorro cheio de

ouro..." (J.S.-23/04/2002-ENT.26)

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As narrativas míticas dos quilombos e das ruínas mantêm aproximações quenão são apenas simbólicas e religiosas, uma vez que podem ser traduzidas em medidasdelimitadoras de espaços simultaneamente históricos e sagrados, de todo modo essenciaispara a construção de uma identidade étnica.

Nada há de estranho, por conseguinte, no fato de as comunidades se mobilizarempara que as ruínas não sejam destruídas. Em verdade, as ruínas enfeixam um conjunto desímbolos diferenciados. Nesse contexto, que compreende os elementos relativos à identidade,as comunidades atuam para defender a preservação das ruínas e inibir os transgressores que,destruindo-as, destroem também um componente da memória do grupo.

"...bem ali é São Maurício que é a terra que domina todas estas terras aqui,

que estas terras são tudo nominada a fazenda São Maurício. Mas lá até casa

de engenho lá era usina São Maurício. Bem ali, pouco tempo depois

passou a estrada, desmancharam o paredão, levaram pedras para construir

casa em Bequimão, mas tinha ruínas lá até dez anos atrás aí no São Maurício

e aqui na Cajuiba, outro povoado logo depois,mais pra dentro...também

era casa de fazenda,lá ainda tem ruína, os pedregulhos ainda estão lá."(G.X.

19/04/2002 - ENT.16)

"...chegou na hora tinha justamente um paredão também que eu acho

que era uma coisa assim antigo, onde tinha essas coisas assim, e

justamente aqui gente t irou, vendeu as pedras antigas,

esbandalhou."(R.P.19/04/2002 - ENT- 19)

Sobretudo, nas últimas duas décadas, diante das tensões e conflitos com aimplantação da base de lançamento de foguetes, os moradores dos povoados têm passadoa perceber as ruínas como provas indubitáveis da ancianidade de sua presença. Falamabertamente das depredações, citando os infratores30. Esboçam uma defesa oral em faceda forte pressão dos comerciantes de pedras para a construção civil e dos demais predadores,que pode ser indicativa de um corolário dessa forma de percepção histórica, que estáganhando corpo no contexto dos antagonismos que ameaçam sua reprodução física esocial. Mostram-se como artífices de uma forma de defesa das ruínas que explicita umfator de etnicidade ou o sentimento positivo de pertencimento a um patrimônio culturaldeterminado, que está sendo socialmente reconstruído e conservado por eles.

A dispersão das ruínas pelo município de Alcântara faz com que estejamreferidas a mais de uma centena de povoados, constituindo-se num dos planos de interrelaçõesentre eles. Nos dois quadros demonstrativos apresentados, são citados nominalmente 45povoados como diretamente referidos às ruínas. Como os povoados se sucedem a pequenasdistâncias, por vezes inferiores a dois quilômetros uns dos outros, e o itinerário para oslocais de plantio e de coleta do babaçu distam um pouco mais, levando-os a transitarempelos caminhos e trilhas que ladeiam as ruínas, tem-se que o número mais que duplica.Nesse sentido, o papel das antigas sedes de fazendas como centralizador ou ponto deconvergência de percursos e vias de comunicação resulta por ser reeditado de algumaforma pela posição geográfica das ruínas e dos povoados formados em seu entorno. Elas

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significam, ademais, uma similaridade de condição que aproxima os povoados e que lhesconfere uma certa unidade, sobretudo quando mais de duas dezenas deles acham-se referidosàs mesmíssimas ruínas, como no caso de São Maurício ou de Gerijó ou de Mutiti. Nessaordem, elas concorrem para sedimentar a noção de territorialidade, apoiada em característicasvividas como comuns, senão iguais, ou que pelo menos os distinguem da mesma forma deseus antagonistas históricos. A série de ruínas propicia essa representação mais ampla, quetranscende os limites de um povoado ou da comunidade local, dispondo as comunidadesremanescentes de quilombo, todas elas, num quadro mais abrangente e de intensasolidariedade, semelhante a uma rede de relações sociais, que configura um aspectofundamental do processo de territorialização.

Os discursos e práticas relativos às ruínas concernem, sob esse aspecto, a umasituação de conflito social em que os moradores dos diferentes povoados afirmam demodo uníssono seu ideal de autonomia no processo produtivo, sua condição de ter otempo livre em oposição a quaisquer atos coercitivos e sua negação dos instrumentosescravistas. Devido ao fato de sempre serem classificados como descendentes de escravos,vêem-se compelidos a uma reexplicação contínua de sua condição e a uma relação estreitacom o passado e com os acontecimentos a ele referidos. A própria perícia consiste em maisuma dessas indagações com pretensão classificatória, que suscitam esse tipo de modalidadediscursiva, conforme já foi assinalado anteriormente.

O que importa focalizar aqui é que o sentimento mais difuso de controlesobre o que restou dos antagonistas históricos, como fato da vida cotidiana, ou seja, aexistência física das ruínas, é também uma forma de presencialidade do passado que agrupatodas as diferentes comunidades em jogo. Através dela, as comunidades remanescentes dequilombo são induzidas permanentemente a marcar diferenças diante de seus antagonistase a mobilizarem-se conjuntamente, reiterando suas premissas étnicas ou de grupo organizativo,que perpassam diferentes domínios da vida social, sejam econômicos, religiosos ou políticos.

Em suma, pode-se asseverar que tais acontecimentos, que resultam nessasruínas, e as novas formas de apropriação coletiva que simultaneamente as têm redefinido,constituem a pré-história do processo de territorialização das comunidades remanescentesde quilombos em Alcântara.

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Do que já foi sublinhado, cabe reiterar que a característica fundamental dospequenos produtores agrícolas, que habitam e cultivam na área declarada de utilidade públicapara a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara e no seu entorno, é queincorporam a terra ao processo produtivo mediante o trabalho familiar e se auto-representamde maneira distintiva. A especificidade dessa condição reside no fato de que, além dapropriedade ou posse familiar, registram-se formas de apropriação comum da terra e dosrecursos hídricos e florestais. A terra é representada como um recurso aberto, acessível emprincípio a todas as unidades familiares, mas como um bem limitado, cujo uso comum écontrolado nos planos organizativos de cada comunidade e nas interrelações entre elas. Otrabalho, por sua vez, é visto como necessariamente livre, sem estar sujeito a qualquerinstrumento de coerção. O acesso aos recursos é disciplinado por princípios de cunhopreservacionista que, reconhecendo a fragilidade do ecossistema e a relativa escassez dosrecursos, orientam o trabalho familiar nas etapas dos ciclos agrícolas e extrativos. Constata-se em todos os povoados visitados a prevalência de regras de rotatividade na utilização dasterras agriculturáveis. Os terrenos de cultivo são utilizados com no mínimo três anos deintervalo e sua reutilização, num novo ciclo agrícola, pode não ser feita pela mesma unidadefamiliar. Essas terras agriculturáveis, bem como os igarapés, os manguezais, os babaçuais,os juçarais, as pastagens naturais e as frutas silvestres, que ladeiam o cordão arenoso daspraias, são vistos por eles como bens não sujeitos à apropriação individual em caráterpermanente e a sua ocupação e coleta obedecem a um conjunto de regras, consoante umpatrimônio cultural determinado que prevê formas peculiares de utilização. Assim, desbastamos cocais, evitando destruí-los, ao procederem à queima dos restos vegetais nos terrenospreparados para plantio, do mesmo modo que evitam colocar tais plantios junto às margensdos igarapés e dos demais cursos d'água. Utilizam parcimoniosamente as reservas de matodos povoados, inibindo o desperdício e permitindo a retirada de madeira para construçãode embarcações e de casas e a retiradas de palha para cobri-las, bem como de mastros parafestas religiosas e de variadas ervas e plantas arbustivas com propriedades medicinais e parauso cerimonial ou em rituais de cura. Por meio da cooperação simples entre as unidadesfamiliares, limpam regularmente as trilhas e caminhos que ligam os povoados uns aosoutros, limpam os chamados sítios ou centros de povoados, assim como os poços eaguadas próximos. Conforme já foi assinalado, essas formas de uso combinam a apropriaçãoprivada com o usufruto comum dos recursos naturais. As benfeitorias produtos do trabalhofamiliar, como as edificações para moradia, os pomares e os diferentes cultivos, agrupados

O domínio "original"as terras de índio como terras de preto

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sob a designação de roça, são apropriados e pertencem às unidades familiares que osproduziram. As transações mercantis envolvem apenas os produtos do trabalho agrícola,do extrativismo, da caça, da pesca, da criação de gado para abate e das peças de artesanatofeitas com palha (cofos, abanos, piaçabas, meaçabas, cestos, tipitis), madeira (para esteiodas casas), barro (utensílios de cerâmica) e fios de algodão (redes), além do carvão produzidocom os restos vegetais dos terrenos de plantio. Os estoques de terras, correspondentes aospovoados, são mantidos indivisos e de uso comum, baseados no consenso sobre os limitese direitos do conjunto de famílias e de cada uma delas individualmente.

Tais características têm seus fundamentos mais nas interrelações do quepropriamente na formação histórica das territorialidades específicas, que compreendem aschamadas terras de preto, as terras de caboclo, as terras de santo e demais variaçõesanteriormente citadas. Não obstante as diferentes trajetórias, segundo as quais se constituíram,destaca-se o uso comum como uma invariante que vai passando por transformaçõesconsoante as relações que os agentes sociais referidos a tais territorialidades vão estabelecendoentre si, entre suas comunidades e destas com as igrejas e com o Estado. Semelhantestrajetórias, cujos primórdios são múltiplos e temporalmente distintos, podem ser descritasa partir da desagregação dos empreendimentos das ordens religiosas, entre 1758 e 1821,das fazendas de algodão, entre 1778 e 1819, dos engenhos de açúcar, entre 1870-1882, edos conflitos sociais dela derivados. Todas elas foram convergindo, pelo conflito constantecom os chamados brancos e pelas interligações estreitas que foram se estabelecendo entreos povoados tributários de cada uma delas, para um mesmo território étnico. Talconvergência se deu de modo desigual e vário. Todavia, diluiu, em certa medida, a forçacontrastante dos traços distintivos de uns em relação aos outros. Enquanto as chamadasterras de santo possuem uma periodicidade bem circunscrita, as denominadas terras de

preto se dispersam por vários períodos se formando antes e durante a desagregação sucessivados empreendimentos das ordens religiosas, das fazendas de algodão e dos engenhos deaçúcar.

Essas territorialidades convergentes não se agregam por adição nem constituemum território pela soma das extensões geográficas que porventura lhes correspondam. Elasse interpenetram em diferentes planos da vida social – religioso, econômico, político-organizativo – e os recursos naturais que lhes são referentes podem pertencersimultaneamente a mais de uma delas. As territorialidades recebem a denominação e sãoconhecidas pela auto-atribuição dos agentes sociais que lhes são diretamente referidos, noque concerne, por exemplo, às categorias pretos e caboclos. As representações que osagentes sociais dão a si mesmos expressam seu pertencimento simultâneo a um grupo e auma territorialidade específica. A expressão terra de preto refere-se ao mesmo tempo auma forma de produzir, a um espaço social e político e a uma identidade étnica. As situaçõessociais, objeto desta perícia, oferecem uma diversidade suficientemente grande deterritorialidades específicas em que a identidade étnica se encontra adequadamente circunscrita.Nesse sentido, elas transcendem ao recurso básico, a terra, e não se configuramnecessariamente enquanto "territorialidades vizinhas", uma vez que se distinguem e seentrelaçam simultaneamente, não se constituindo cada uma delas num todo auto-suficiente.Os planos sociais interpenetrantes consistem numa condição essencial de sua persistência.Em virtude disso, essas territorialidades não podem ser reduzidas à maneira usual e

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individualizante de pensarmos um imóvel rural e seus confrontantes, ou seja, não serestringem a um problema agrário. Por outro lado, o território étnico para o qual confluempode ser estritamente delimitado e há uma representação espacial através da qual os agentessociais marcam suas fronteiras físicas. A construção social do território étnico pressupõeinterrelações entre os povoados concernentes a essas territorialidades específicas, descrevendouma dinâmica de relações sociais que recusa desde o ponto de origem o isolamento ou ainsularidade como forma de manter a persistência das fronteiras.

Os depoimentos coletados no decorrer dos trabalhos de perícia permitemobservar, antes de tudo, que o domínio "original" das terras está associado a relaçõessociais e históricas e a uma identidade étnica construída de maneira plural, que transcendea qualquer traço racial e que se expressa num plano organizativo1. Para os instrumentosmais recentes de investigação antropológica, a identificação de grupos étnicos não implicaem relacionar caracteres biológicos predominantes transmitidos por via hereditária,tampouco implica em verificar quais seriam os meios linguísticos intrínsecos, ou emprocurar obstinadamente sinais e diferenças físicas ou, ainda, em catalogar auto-evidênciashistóricas. Ao contrário, trata-se de perceber como interagem socialmente e se organizampara manter as fronteiras que os distinguem enquanto grupo. Nesse caso de Alcântara, amanutenção de fronteiras étnicas por mais de dois séculos indica a afirmação de diferençasculturais persistentes e de elementos de identidade étnica e regional bastante consolidados.Através da organização e do conflito, os agentes sociais constróem o seu pertencimentoà rede de relações que estrutura o povoado, elegendo os vínculos com antecessores deautoridade irrefutável, que lhes asseguram legitimidade e dos quais todos acreditam e sevêem de fato como descendentes. Em segundo lugar, a noção de dominialidade e decontrole da terra que adotam implica em admitir os recursos como concomitantementeabertos e limitados, sem serem propriedade individual num sentido estrito. A aquisiçãoda terra, como justificativa de garantir o uso aberto, é representada de maneira positivasob a designação terra de herdeiros, e reforça laços de coesão social e político-organizativos como soa ser em Baixa Grande, em São Raimundo, em Itapuaua e emSanto Inácio. As lideranças, referidas a estas situações sociais, não se restringem aos limitesdos povoado, transcendendo-os na defesa de um território determinado. Emcontrapartida, a aquisição de terra, como justificativa de uso individual, e os mecanismosrepressivos da força de trabalho, que justificariam a individualização dos pretensos "donosda terra", são vistos como ilegítimos e constituindo usurpação de direitos que, a qualquertempo, impõem instrumentos de subordinação do trabalho, vividos como "escravidão"e que acarretam as "tocas" e os "esconderijos", que podem ser lidos como resistência,mas também como a imposição da invisibilidade social dos quilombos.

"Alcântara sempre eu dizia que era terra dos índios, aí nós tivemos este

conhecimento, diz que tinha sido encontrado documento de que as terras

era dos negros e não foi vendida para ninguém, só que de lá pra cá os ricos

criaram, apareceram donos os ricos. Você não viu aquela luta do Frechal.

Defenderam aquela pedra, tava escrito em cima; terra de preto. Os índios

e os negros... diga. E o negro vem da família dos índios, não é

isto?"(I.O.16/04/2002 - ENT.12 )

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"As terras de Alcântara era de preto e por prova que Alcântara

era terra de índio, quer dizer, não existia dono de terra, dono de

terra cresceu que os ricos foram reconhecendo, achando que eles

eram os poderosos, aí foram comprando e os pobres foram entrando

na taca. Aí a princesa Isabel fez aquela libertação e hoje ainda tem

pessoas que não reconhece que ele está liberto no Brasil e ele

está sempre se escondendo, não é?" (I.O. 16/4/2002 - ENT.12)

Os entrevistados não dissociam pretos e índios, no contexto de legitimaçãodo domínio da terra e em oposição àqueles que são definidos como usurpando seusterritórios. Utilizam essa forma complexa de classificação étnica para afirmar o livreacesso aos recursos básicos e se distinguirem de potenciais antagonistas, que são semprecaracterizados como brancos e fazendo uso de instrumentos de castigos corporais, comoa citada taca2. A categoria terra de preto, configurada como terra de índio, é vividapelos entrevistados como um direito originário, que prescinde de reconhecimento,porquanto seria um ato redundante declarar o que já existe. Ao traçarem uma linhatransversal de parentesco, em que descendem de um tronco comum, isto é, a "famíliados índios", os entrevistados representam sua posição diante dos empreendimentos doCLA, como um direito preexistente. O que se transmite de geração a geração é o poderde uso dos recursos naturais, numa situação em que a dominialidade é auto-evidente.Afinal, a sua territorialidade de referência primeira, sendo a mesma dos índios, consideradosseus ascendentes, ultrapassa quaisquer tentativas precisas de datação. É apresentada comoimemorial, já que se encontravam ali quando os colonizadores aportaram. Delineiam, pois,duas características de sua condição: a sua temporalidade é aparentemente atemporal, postoque imemorial, enquanto sua espacialidade é social e extremamente dinâmica acompanhandoa potencialidade dos recursos naturais disponíveis às práticas de uso comum. O fato de severem como descendentes dos índios e assim se apresentarem manifesta também a vigênciado princípio de que nessa descendência não se partilha a terra, mas se transmite o direito deusá-la permanentemente, segundo as normas acatadas pelos diferentes grupos. A terra é, pois,um legado comum e quem o recebe assume o compromisso de assim mantê-lo, fazendocom que seja revestido com a categoria de sua própria auto-atribuição. Por isso é que ondeaparentemente se imagina uma separação, em verdade há uma junção que é o princípio queorganiza a diferença entre as territorialidades e os respectivos agentes sociais.

A atualidade dessa forma de classificação revela o fundamento histórico deuma expectativa de direito e a persistência de uma identidade étnica específica, tanto quantoexpressa um sentido diametralmente oposto às disposições coloniais da "governação"pombalina.

A documentação histórica oficial, até a metade do século XVIII, evidenciaque os índios recebiam, no período colonial, a designação de negros e também assim seauto-designavam. Entretanto, isso veio a ser expressamente proibido pelo Directorio3

pombalino, cujo artigo décimo estabelece uma separação formal entre essas duas designaçõesmencionadas. Senão, vejamos:

"Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem

resultado nos Índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles a

injusta e escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo

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talvez, com a infâmia, e vileza deste nome persuadir-lhes, que a natureza

os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se

imagina a respeito dos Pretos da Costa da África.; E porque, além de ser

prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios este abominável abufo,

seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns

homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar isentos de

toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo emprego honorífico.

Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma

chame Negros aos Índios, nem que eles mesmo usem entre si deste

nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que

lhes não compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas

nobres idéias, que naturalmente infundem aos homens a estimação e a

honra." (Directorio...,1758:5-6) (g.n.).

A estratégia pombalina de separar nominalmente índios e pretos foiefetivamente contrariada no tempo por um processo de resistência que parece ter conseguidoeficácia justamente nas práticas de agrupamento e de aproximação, tanto quanto nadesignação das territorialidades. Mantendo a recusa à dissociação, os entrevistados expressamuma convergência, em termos de identidade étnica. As diferentes vias de acesso à terra sãoaproximadas na narrativa dos entrevistados, delineando a pluralidade de situações coextensivaà construção social do território. São elas que não permitem distinguir com exatidão aschamadas terras de índio daquelas nomeadas como terras de preto, ou estas dasdenominadas terras de santo, ou ainda, como no caso de São João de Cortes, entre asprimeiras e as últimas. Consoante as narrativas, os índios em São João de Cortes teriam idoembora e transmitido suas terras para o santo protetor do povoado, São João Batista, quepor sua vez abrigava os escravos fugidos. As narrativas míticas entrelaçam o que a legislaçãocolonial queria separar pela força e manifestam o quanto hoje esse entrelaçamento éindissociável da construção do território das comunidades remanescentes de quilombo.

As formas intrínsecas de classificação das territorialidades, produzidas a partirda própria autodefinição dos agentes sociais, que se apresentam como pretos, contradizema classificação externa imposta pelas autoridades coloniais, que chamavam a si o poder dedefinir o que os outros deveriam ser.

As terras de preto e as terras de cabloclo: a construção do territóriopelos fatores estigmatizantes

Outra dissociação produzida no período pombalino concerne ao Alvará deLei de 04 de abril de 1755, antes da própria criação da Companhia Geral do Grão-Pará eMaranhão, que visando uma estratégia de povoamento da colônia declara que os vassalosdo rei de Portugal

"que casassem com as índias desta (colônia), não ficariam com infâmia

alguma, muito pelo contrário, o mesmo aplicando às portuguesas que

casassem com índios, proibindo-se que tais vassalos ou seus

descendentes fossem tratados com o nome de ‘cabouclos’ " . (Falcon,

1982:397) (g.n.)

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Essa interpretação favorável aos índios teve como corolário a conhecida"Lei das Liberdades dos Indios", de 06 de junho de 1755, que aboliu a escravaturaindígena, na mesma data em que foi intensificada, pela Companhia Geral do Grão-Paráe Maranhão, a formação de fazendas a partir de doações régias e de incentivos paraintrodução de escravos africanos. Com essas medidas, Pombal possibilitou condiçõespara que posteriormente fossem expedidos registros de cartas de datas e de sesmariasem nome dos índios4. Ao fazê-lo, privilegiou os índios e instituiu, ao mesmo tempo,legalmente, uma visão estimagtizante dos pretos5 e dos caboclos, fazendo constar dadocumentação, de maneira explícita, os atributos definidores dessas denominações,todoseles ignominiosos, a saber : "vileza", "infâmia" e desonra. Na lógica dosadministradores coloniais, importava separar uns dos outros com objetivos depovoamento, ou de enfraquecer as ordens religiosas, ou de reorganizar a força de trabalhonecessária para implantação dos grandes estabelecimentos agrícolas de produtos tropicais.

Com a célere desagregação das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar,resultando na formação daquelas territorialidades e de seus respectivos povoados, asdissociações instituídas por Pombal ficaram, entretanto, no papel. As chamadas terras de

índio tornaram-se uma referência de origem para todos os povoados, porquanto somenteelas usufruíam de reconhecimento formal naquela derradeira quadra do período colonial.Enquanto as fazendas tiveram duração efêmera em Alcântara, as categorias estigmatizadas,quais sejam pretos e caboclos, aí se cristalizaram, sendo assumidas abertamente nadenominação das territorialidades específicas, que foram sendo historicamente construídas.Invertendo o sinal negativo, que oficialmente as contrapunha ao Estado e que as destituía dequalquer direito, passaram a assumir num sentido afirmativo as denominações estigmatizadas,batizando com elas suas próprias territorialidades. O que era considerado "infâmia", desonrae "vileza" pelas autoridades coloniais, tornou-se atributo de autodefinição dos agentes sociaise de seu território. No processo de territorialização em pauta, essa é uma característicadeterminante das chamadas terras de preto e das denominadas terras de caboclo, quenão se encontravam amparadas por qualquer instrumento jurídico-formal, diferentementedas intituladas terras de índio, terras de santo, terras da pobreza e daquelas das irmandadesreligiosas. As duas modalidades aqui destacadas, para efeito de explicação, tanto significaramuma modalidade de negação das fazendas, por intermédio de uma autonomia produtivaintrínseca aos processos de aquilombamento, quanto a afirmação étnica de uma identidade.A persistência dessas categorias de autodefinição em confronto manifesto com asdeterminações régias, mais que uma luta simbólica, expressa uma resistência que se mantématualizada em Alcântara, onde foram localizados, durante o trabalho de campo pericial,mais de cem povoados, interagindo social e economicamente, cobertos por essas mesmasdesignações.

Por outro lado, observa-se, nos estudos que privilegiaram o fenômeno dacaboclização (Wagley,1953 e Galvão,1957), uma leitura do cotidiano da vida social dospovoados da antiga região do Grão-Pará e Maranhão segundo uma dicotomia preto/

caboclo como vetor que orienta distinções auto-evidentes, amparadas em critérios raciaise na cor da pele. Certamente que tal oposição pode ser verificada empiricamente, é verossímil,ou seja, é o que parece não contrariar a verdade. A investigação científica, no entanto, para

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além dos fenômenos aparentes, não faz dessa dicotomização um padrão de explicação dasrelações sociais subjacentes ao processo de territorialização, tratando-a no contexto de choquesde interesses mais amplos.

O trabalho pericial, sem tornar objetivas as auto-evidências, permitiu verificarque em Alcântara há planos de oposição que deixaram de ser diferenciais no tempo. Numprimeiro momento, a designação caboclo sugere uma aproximação com a definiçãoconsiderada legítima, ou seja, branco e, por conseguinte, um afastamento de tudo quepossa reforçar ligações e analogias com escravos6. A própria denominação centenária dospovoados delimitava espaços socialmente distintos, tais como Santana dosCaboclos,localizado nas chamadas terras de santíssima, e Santana dos Pretos, na ilha doCajual, em terras de antigo engenho. Tais divisões eram vividas muitas vezes como posiçõesexcludentes, como nos relatos dos entrevistados em que os caboclos de Peroba de Cimanão autorizavam que os pretos de Ladeira e de Samucangaua entrassem nas suas festaspara dançar ou nos casos em que os caboclos do Cujupe não permitiam que suas filhascasassem com os pretos dos povoados vizinhos. Cantanhede destaca que, para os moradoresde Ladeira, aqueles de Terra Mole, Peroba e Prainha são classificados como "família decaboco" (Cantanhede, 1998:7) (sic) em oposição a Aririzal (Iririrzal), Baixa Grande,Samucangaua e Ladeira, que são vistos como "família de preto". A despeito dessas divisõesem duas metades, que por vezes perpassavam os povoados por dentro, como em Oitiua eem São João de Cortes, verifica-se um sentido afirmativo, quando os relatos confirmamque uns e outros sempre se mantiveram interligados, valendo-se dos recursos naturais comunse de práticas de cooperação simples no processo produtivo e na circulação de produtosagrícolas e extrativos. Isso é tanto mais verdadeiro quando se compulsa a documentaçãorelativa a foreiros em terras das antigas ordens religiosas e percebe-se que as categoriaspreto e caboclo funcionavam quase transitivamente no processo de produção e nas relaçõescontratuais com as divindades. Em ambas situações, verificam-se famílias cujos filhos foramdedicados à santa pelo batismo. Pela madrinha, todos se tornavam "parentes" ou se ligavampor afinidade, reforçando a idéia dos povoados enquanto "entidades afetivas" (Prado,1974:64). A trajetória dos chamados caboclos era a mesma descrita pelos chamados pretos,que insistiam em manter uma autonomia no processo produtivo, mobilizando-se para nãoficarem subordinados aos chamados brancos. A expressão "índios alforriados vadios",registrada entre 1751 e 1759, na correspondência do governador e capitão-geral do Grão-Pará e Maranhão para Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal,aproximava-os igualmente como à margem da disciplina do trabalho e numa situaçãocorrelata ao aquilombamento.

A dimensão organizativa, que articulava todos esses agentes sociais,intrafamiliarmente e entre famílias, inibiu as divisões e impeliu as metades, em face dosantagonismos continuados com o Estado, para uma convergência em um só grupo social.Desse modo, a perseguição aos quilombos entre 1834 e 1878 não parece ter logradodesorganizar o sistema de trocas estabelecido entre caboclos e pretos, entre quilombolase comerciantes ou entre moradores das denominadas terras de santo, dos patrimôniosdas irmandades e dos quilombos. Os instrumentos repressivos das fazendas dealgodãoestavam debilitados em demasia para fazer vigir as dissociações, que desde seunascedouro dependiam de mecanismos de coerção. No seio da sociedade escravista,

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moldou-se uma organização social distinta, segmentada e com partes diferenciadas, masmantidas de maneira indissociável naquelas territorialidades mencionadas. O grau decontrastividade entre elas atenuou-se ante a pressão de um antagonista maior, os chamadosbrancos, cujo sentido indica posição dominante que, além de exprimir discriminaçõessobre pretos e caboclos, sempre buscava pela força das armas recuperar uma posição demando que tinha sido irremediavelmente perdida no plano econômico. A ausência dossenhores seguramente fortaleceu isso, do mesmo modo que gravou como adágio namemória local o dito tornado sentença: "os brancos foram embora e não voltaram nuncamais"(A.M. 18/04/2002 ENT.15). Não terem voltado a Alcântara jamais, é o que se constataquase dois séculos e meio depois das decisões pombalinas.

Esses embates, conflitos e ameaças de eterno retorno marcam as tensões doprocesso de territorialização em curso. A autonomia de decisão sobre o que produzir,como, onde e quando, lançando mão de que recursos naturais, aproxima pretos e caboclos,fixa um estilo de vida que tem na denominada roça sua viga mestra e chega a absorver osprepostos dos proprietários absenteístas. Produzir e reproduzir esse sistema, mantendouma vida social há pelo menos dez gerações nas terras das ordens religiosas, ou sete nasantigas fazendas de algodão, ou quase cinco gerações nos antigos engenhos de açúcar, semsubordinação a terceiros, significa a consolidação, em datas diferentes, daquelas diversasterritorialidades mencionadas e, por extensão, do território das comunidades remanescentesde quilombo. Como resultante de mobilizações sucessivas, cada uma de suas partes foi seconstituindo e abrigando a outra, como no caso das terras de índios tornadas terras de

santo, segundo doações míticas, que, por sua vez, acolhiam escravos fugidos, servindo-lhes de degrau na construção de um patamar de autonomia e de trabalho livre designadocomo terras de preto.

O grau de distinção entre elas parece tender a diminuir quando os chamadoscaboclos, de povoados como Janã, Peroba de Baixo e Murari, entre outros, aparecematingidos pelos mesmos dispositivos jurídicos que afetam os demais agentes sociais:deslocamentos compulsórios, indenizações e "transferências e assentamentos". A ação doEstado nivela e homogeneiza os diferentes agrupamentos sociais ao submetê-los em conjunto.A imposição da área decretada para instalação da base de lançamento de foguetes resulta,nesse sentido, por aproximar o que o regimento colonial insistia em separar. Os denominadoscaboclos, hoje, tanto são aproximados quanto se aproximam da categoria preto, nutrindoinclusive comentários jocosos, tal como registrado em Peroba de Cima, onde um entrevistadoponderava que todos são descendentes de escravos sim, mas agora "todo mundo estáquerendo ser preto" (V.R. 14/04/2002 - ENT.5.1). Há vantagens simbólicas aparentes,sobretudo porquanto no caso dos chamados caboclos não se registra uma categoria deexistência coletiva traduzida por um movimento social dos caboclos, diferentemente docaso dos pretos, que usufruem inclusive da categoria negro para simbolizar uma açãopolítica maior.

As relações de estreitamento entre essas categorias de auto-atribuiçãomanifestam-se no âmbito político-organizativo e nas mobilizações étnicas que, invertendoos atributos estigmatizantes, defendem uma certa maneira de existir socialmente. Sob esseaspecto é que elas convergem para um mesmo território. A interlocucão entre as categorias

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remete a diferentes planos de abstração, que não representam obstáculos intransponíveispara uma aproximação entre elas. Certamente que essa aproximação se dá, no momentoatual, sob uma ação circunstancialmente hegemônica dos chamados pretos. O própriopeso relativo das denominadas terras de preto traduz, no momento atual, essa hegemonia.Pode-se acrescentar, por outro lado, que a categoria de representação trabalhadores rurais,que desde 1980 sintetiza o elenco de situações representadas, sinaliza para outras categoriascircunstancialmente mais amplas e de mobilização mais imediata, como seria o caso dos"atingidos pela base da Aeronáutica" – que agrupa indistintamente todos os grupos sociaisafetados pelos impactos derivados da implantação do CLA – e de quilombola, que expressaos fatores étnicos. O advento de uma categoria organizativa como quilombola designa,inclusive, uma entidade de representação articulada regional (Aconeruq) e nacionalmente(CNPACNRQ)7 em torno do pleito de reconhecimento das comunidades remanescentesde quilombo. A emergência dessas categorias de mobilização não é excludente, tanto que, adespeito de seu advento, o STTR de Alcântara mantém a condução da pauta reivindicatóriae dos atos de afirmação étnica.

O processo de territorialização revela uma dinâmica intrincada, sobencadeamento, que estabelece uma totalidade socialmente instituída, congregando umadiversidade de situações devidamente articuladas e uma multiplicidade de formas derepresentação. Em virtude disso é que se pode falar em diferenciações culturais e numacomposição heterogênea do território de remanescentes de quilombo sem negar o carátersistêmico da interligação entre os povoados.

Por mais de dois séculos, portanto, a manutenção de fronteiras étnicas indicadiferenças culturais persistentes em face dos instrumentos de dominação dos brancos,relativizando os sinais diacríticos e as desigualdades aparentes que distinguem os povoadosentre si. Essa dinâmica de afirmação étnica, relativizando diferenças auto-evidentes econgregando representações plurais, consiste num fator essencial da construção do territóriodas comunidades remanescentes de quilombo.

Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas

Antes mesmo das grandes transformações empreendidas pelo regimepombalino, entre 1755 e 1758, a Coroa portuguesa promulgou uma medida específicaconcernente a Alcântara. Por meio da Carta Régia de 1º de julho de 1754, determinou queretornassem à administração real as terras da capitania de Cumã, que haviam sido doadasoriginalmente ao donatário Antonio Coelho de Carvalho8, em 1624, e confirmadasrespectivamente em 1639 e 1646. Um dos centros de poder dessa capitania localizava-seem Alcântara, cujo reconhecimento oficial como vila data de 22 de dezembro de 1648, soba invocação do Apóstolo São Matias. A vila contava então com 300 moradores e já estavamerguidos os primeiros engenhos de cana-de-açúcar com moendas de madeira movidas àtração animal. Essas terras, em 1754, já haviam sido transmitidas a pelo menos três geraçõesda família Coelho de Carvalho, em linha masculina, e oficialmente reconhecidas. Com aextinção da doação, elas reverteram ao poder real e foi acordada uma permuta com afamília dos donatários, que recebeu terras em Portugal.

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Entre 1624 e 1754, portanto, as terras de Alcântara foram transmitidas emsucessão pela família Coelho de Carvalho e confirmadas pelo poder real, perfazendo umperíodo de 130 anos de registros de dominialidade garantidos pela administração colonial.Inclusive, em 02 de junho de 1742, foi instituído por carta de data e sesmaria firmada pelodonatário Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho o patrimônio da Câmara deAlcântara, correspondendo a uma légua de terras9. Esse neto do primeiro donatário haviarequerido, então, comenda de uma das três ordens militares do reino (Cristo, Avis e Santiago).Com foro de fidalgo da Casa Real, foi agraciado com a comenda da Ordem de Cristo,pela qual pagou 300 mil réis (Nizza da Silva, 2005:86).

O coronel B. Pereira do Lago, em 1820, registra a retomada dessas terras pelopoder real, cujo ato corresponde ao fim do primeiro período da cadeia dominial de umavasta área, que abrange hoje o município de Alcântara:

"Foi seu primeiro donatário o desembargador Antonio Coelho de

Carvalho, a quem, segundo o alvará de 19 de março de 1624, se concederam

50 léguas de costa, desde a baía do Cuman até o Rio Pindaré, ou o que se

achasse norte-sul; depois foi confirmado em 15 de março de 1639,

concedendo-se-lhe mais 16 léguas e tornando tudo a ser confirmado em

10 de janeiro de 1646.

Depois, pelo mesmo donatário, foi criada vila, em 22 de dezembro de

1648. Em 2 de novembro de 1722, foram as mesmas terras já com título

de Capitania de Cuman, dadas a Antonio d'Albuquerque Coelho de

Carvalho, que ainda passaram a seu filho Francisco d'Albuquerque Coelho

de Carvalho, até que, por Carta Régia de 1 de julho de 1754, se extinguiu

aquela doação, recompensou o donatário com terras em Portugal, e

daquelas tomou posse, em nome da Coroa, o ouvidor Manoel Sarmento,

que então era do Maranhão." (Pereira do Lago, 2001:35).10

Uma vez revertido efetivamente ao poder real, pelo ato de apossamento dogovernador da capitania do Maranhão Gonçalo Pereira Lobato e Souza, que se dirigiu aAlcântara em companhia do ouvidor geral (Lopes,1957:143), o estoque de terrascorrespondente à antiga capitania foi disponibilizado para as medidas político-administrativasda governação pombalina. Combinando os bens do Estado dinástico com recursos deempreendimento privados, tais medidas, de igual modo que nos demais domínios doGrão-Pará e do Maranhão, propiciaram a formação de grandes estabelecimentos agrícolastambém designados como "fazendas" pela documentação da burocracia e dos comentadoresdo período colonial. A "Lei das Liberdades dos Índios", de 06 de junho de 1755, a criaçãoda Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, também de junho de 1755, e as orientaçõesdo Directorio, de agosto de 1758, concorreram decisivamente para tanto. As principaisfontes de exploração de recursos da Coroa portuguesa, no Grão-Pará e Maranhão, até1755 achavam-se ancoradas no extrativismo e na coleta de especiarias, que eram controladaspelos seus empreendimentos mercantis. As madeiras de lei eram destinadas às embarcaçõesreais, consoante as cartas de sesmarias, e os demais produtos eram comercializados peloEstado, a saber: gengibre, cravo grosso e fino, extratos vegetais e resinas para uso emtinturas. Em São João de Cortes, localizado a noroeste da vila de Alcântara, os jesuítas

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dedicavam-se também à produção de anil. A produção de algodão, de cana-de-açúcar edo arroz vermelho era voltada principalmente para o autoconsumo e não tinha maiorexpressão comercial. Ao propiciar a formação de fazendas, o regime pombalino preconizavauma apropriação individual das terras que significasse uma ocupação efetiva em larga escala,ou seja, uma produção agrícola permanente e comercializável. Um dos primeiros passospara alcançar esses objetivos consistiu na concessão de datas e sesmarias àqueles que reunissemcondições para a implantação de grandes estabelecimentos de agricultura tropical voltadospara o mercado mundial ou mais exatamente para a metrópole. O benefício requeria quecada sesmeiro dispusesse de no mínimo seis escravos africanos para instalar as fazendas. Adiversificação da produção, o aumento do número de produtos exportados e a escolha deprodutos tropicais de elevada lucratividade completavam a ação da Companhia Geral. Oalgodão representava o principal produto tropical, cuja procura encontrava-se em tendênciaascendente em virtude do desenvolvimento da indústria têxtil inglesa11.

Com as concessões de sesmarias, foram montados estabelecimentosagrícolas dedicados à monocultura do algodão, fazendo uso massivo de escravos recrutadosna África, explorando grandes extensões de terras e amparados financeiramente por créditospara aquisição de escravos e por incentivos comerciais propiciados pela Companhia Geraldo Grão-Pará e do Maranhão. A Companhia, que monopolizava o comércio de escravos,concedia facilidades de pagamento do valor correspondente aos escravos num prazo dedois a três anos mediante a liquidação em gêneros (Carreira, 1988:60).

Além do algodão, foi também incentivado o cultivo de arroz. A introduçãode sementes de arroz da Carolina difundiu o plantio de arroz de terra firme em Alcântarae o produto foi se tornando, juntamente com a farinha, um componente básico da dietaalimentar de escravos e senhores. Como veremos no capítulo referente aos quilombos, taldecisão concorreu para manter a autonomia dos quilombolas, porquanto o arroz era deciclo curto e de beneficiamento mais simples do que a mandioca, permitindo mobilidade edeslocamentos sucessivos dos quilombolas quando das campanhas militares desferidas contraeles. O arroz nativo, de cutícula vermelha, brotava espontaneamente e de maneira abundante,mas não tinha boa aceitação nos mercados europeus (Carreira, 1988:222), não constituindoum gênero de exportação e, em virtude disso, foi substituído pelo "arroz branco" daCarolina (Barata, 1973:309). A obrigatoriedade do plantio de arroz da Carolina do Norte,então colônia britânica, foi imposta por decreto de 29 de novembro de 1772, assinadopelo governador Mello e Póvoas, no qual o regime pombalino instituía a condenação a umano de prisão e multa para "brancos" que plantassem o arroz vermelho, dois anos deprisão para índios e dois anos de prisão com "interpoladas surras" para escravos que fizessemo mesmo12 (Marques, 1970:92). Não obstante a repressão pombalina e as restrições demercado, o arroz nativo ainda é muito difundido no município de Alcântara, no momentoatual, e corresponde à espécie que recebe localmente a designação de "milindro".

O Estado dinástico, com a criação da Companhia Geral, organiza uma forteempresa mercantil, à qual se vinculam 144 acionistas, entre nobres, oficiais do exército e daarmada, autoridades eclesiásticas (padres, cônegos), grandes comerciantes e os denominados"lavradores". Entre as 1.164 ações, 29 foram adquiridas por cinco comerciantes que moravamna colônia, sendo dois deles do Maranhão detendo 15 ações, a saber: Domingos AntunesPereira e Lourenço Belfort (Carreira,1988:75). O governador da capitania do Maranhão,

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Gonçalo Pereira Lobato e Souza, em 15 de julho de 1957, também adquiriu duas ações.Além de se associar com interesses privados controlando a circulação de mercadorias, oEstado se posicionava como "autoridade fiscal arrecadadora de impostos" (Falcon,1982:155), aumentando consideravelmente sua receita.

O fortalecimento do Estado através de empreendimentos mercantismonopolistas e do aumento da arrecadação articula-se com as medidas adotadas contra asordens religiosas que controlavam parte significativa do comércio do Grão-Pará e Maranhãoe que também controlavam grandes extensões de terra, inclusive em Alcântara. A políticapombalina considerava que uma porção considerável das terras da colônia achava-se empoder da Igreja e de ordens, mosteiros e irmandades, bem como as atividades comerciaisisentas de taxas e o controle dos índios, enquanto força de trabalho. A política do Estadodinástico, com D. José I, visava impedir que esse patrimônio crescesse indefinidamenteatravés de novas doações de terras, de aquisições de terras e de vantagens comerciais. Daíresulta, primeiro, o confisco de terras e bens da Companhia de Jesus e a subordinação aosdesígnios de um Estado absolutista das demais ordens religiosas. A abolição da escravaturaindígena e a instituição do Directorio devem ser interpretados como debilitando o poderdo clero sobre as terras e sobre os índios, acusando-o de monopolizar a força de trabalhoindígena.

À época, Alcântara consistia numa região destacada na política pombalinaconsoante três fatores:

a) era "a melhor vila de todo o estado (do Maranhão) em comércio e riquezade seus habitantes" (Moraes, 1860:16), conforme descrição13 do PadreJosé de Moraes em julho de 1759;

b) aí se concentravam inúmeras ordens religiosas (jesuítas, carmelitas,mercedários e irmandades) com vastas extensões de terra e intensasatividades comerciais e de beneficiamento;

c) desde fins do século XVII, com a tentativa de implantação da Companhiade Comércio do Maranhão, em 1680, registravam-se em Alcântara acirradasdisputas entre as ordens religiosas e os chamados "colonos", co-extensivas àchamada Revolta de Beckman (Lisboa, 1865:181). Mesmo que hajainterpretações divergentes sobre a reação dos moradores quanto à partidados jesuítas de Alcântara, em 1760, pode-se assegurar que Pombal contavacom o apoio de colonos contra os clérigos. Enquanto para Viveiros osmoradores ressentiram da saída dos jesuítas, na interpretação do economistaCelso Furtado:

"os colonos do Maranhão eram adversários tradicionais dos jesuítas na

luta pela escravização dos índios. O Marquês de Pombal apoiou-os ao

criar a Companhia (Geral) de Comércio do Grão Pará e Maranhão e

confiscar os bens dos jesuítas expulsando-os da colônia." (Furtado,

1975:91).

A mudança da política colonial de doação de capitanias e de permissão para asordens religiosas manterem terras e os índios produzindo em estabelecimentos isentos de

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taxação para a concessão de datas e sesmarias, mesmo sem alterar substancialmente o regimejurídico da propriedade da terra como prerrogativa real, fortalecia o individualismo econômicoao propiciar meios de ocupação efetiva das terras, que resultando em produção comercializávelfavoreciam o Estado e, concomitantemente, consolidavam os sesmeiros, que passam a recebera designação de "lavradores".

O historiador econômico Caio Prado Jr. sintetiza essa transformação:

"Mas é no Maranhão que o progresso da cultura algodoeira é mais

interessante, porque ela parte aí do nada, de uma região pobre e

inexpressiva no conjunto da colônia. O algodão lhe dará vida e a

transformará, em poucos decênios, numa das mais ricas e destacadas

capitanias. Deveu-se isto em particular, à Companhia Geral do

Comércio do Grão-Pará e do Maranhão, concessionária desde 1756 do

monopólio deste comércio. É ela que fornecerá créditos, escravos e

ferramentas aos lavradores...."( Prado Jr.1963:144) (g.n.)

Com a concessão de sesmarias e com esse tipo de apoio da CompanhiaGeral, foram criadas condições para a formação de uma vigorosa categoria de "lavradores",termo que passou a designar na documentação colonial os fazendeiros de algodão, ossenhores de engenho e os que se dedicavam à criação de gado nos campos naturais. Distinguia-se da denominação "colonos", que se referia a unidades de exploração mais modestas, sememprego de recursos vultosos, que utilizavam principalmente força de trabalho indígena ecuja produção se voltava sobretudo para a praça de mercado local. Essas unidades produtivasdos colonos caracterizavam o período pré-pombalino, sobretudo a segunda metade doséculo XVIII, e sobressaíram historicamente a partir de 1680, que corresponde à data decriação da Companhia de Comércio do Maranhão14. A este tempo, Alcântara era vistacomo "celeiro do Maranhão" e só havia um navio por ano para transporte da produçãopara Portugal. A partir de 1755, com a Companhia Geral passa a haver uma frota anual eembarcações regulares no comércio de escravos. A Companhia dispunha de 42 navios devários tipos e tonelagens (Carreira, 1988:97), sendo que 27 faziam a ligação com a costaafricana.

O sistema de capitanias com "colonos" escravizando índios emestabelecimentos de pequena exploração, com fazendas de ordens religiosas e com asatividades comerciais controladas pelos clérigos, que caracterizava Alcântara até 1755, étransformado radicalmente pela governação pombalina. Financiando o tráfico de escravosda África, ampliando a capacidade produtiva e vinculando, através de frotas regulares, aregião ao mercado europeu, o regime pombalino cria condições de possibilidade para oadvento de uma camada de "lavradores".

A categoria "lavradores" passa a ser sinônima de brancos, que consiste notermo utilizado pelos entrevistados, e localmente difundido e acatado, para designar ossenhores de escravos e de terras. Ela designa ademais os que se beneficiaram das concessõesreais e das vantagens creditícias para se consolidar politicamente, enquanto classe dirigenteno Maranhão15, a despeito do endividamento e das dificuldades em administrar as fazendas.

O montante de recursos acumulado por essas famílias acha-se atreladonotadamente aos resultados do preço do algodão até 1817-19. Além do algodão em rama,

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

o arroz descascado, o cacau, os atanados (couros e solas), o cravo, a salsa e o açúcarcompletavam o quadro de exportações. Para a produção de gengibre e anil, havia isençãode direitos alfandegários. Recorde-se que em 1762 havia plantações para produção deanil em São João de Cortes. Havia também nesse povoado uma fábrica que preparava oproduto para a exportação (Pereira do Lago, 2001:36). Tal exportação, que se davainclusive com produtos em consignação, propiciou elevadas receitas aos chamados"lavradores" pelo menos até 1778, quando é extinta a Companhia Geral16. Com o fimdo monopólio, consoante Carreira, "as exportações decaíram bastante" (Carreira, 1988:205)e, não obstante as vantagens propiciadas à colocação do algodão no mercado europeu,em virtude da Guerra de Independência norte-americana, o endividamento dos"lavradores" se manteve crescente.

A "modificação da fisionomia étnica"

"Não é só economicamente que se transforma; a mudança é mais

profunda. Com o algodão vieram os escravos africanos - ou vice-versa

preferivelmente; modifica-se a feição étnica da região, até então

composta na sua quase totalidade, salvo a minoria de colonos brancos,

de índios e seus derivados mestiços. O algodão apesar de branco,

tornará preto o Maranhão." (Caio Prado Jr., 1963:144) (g.n.)

"A ajuda financeira (de Pombal) permitiu a importação em grande

escala de mão-de-obra africana, o que modificou totalmente a

fisionomia étnica da região." (Celso Furtado, 1975:91). (g.n.)17

Segundo Nunes Dias, antes da implantação da empresa pombalina "não haviaescravatura africana nas capitanias do Pará e do Maranhão" (Dias, 1970:461) e, em 20 anos,entre 1757 e 1777, "mais de 25 mil escravos foram introduzidos na região" pela CompanhiaGeral (Dias, 1970:465). Embora essa seja uma interpretação corrente dos estudiosos, caberelativizá-la, já que desde o fim da segunda metade do século XVII há indicações e registrosde quilombos nessa região da Baixada Maranhense em que se localiza Alcântara. Os númerosapurados por Carreira indicam cerca de 31 mil escravos adquiridos pela Companhia Geralem Bissau-Cacheu e em Angola, não estando incluídos aqueles que integravam as tripulaçõesdos barcos e executavam serviços regulares para a Companhia Geral, também conhecidoscomo "escravos grumetes". O autor busca quantificar os escravos embarcados segundo osportos da costa africana e seus respectivos destinos. Num primeiro levantamento, no quedenomina de setor Bissau-Cacheu, identifica a aquisição de 22.364 escravos, sublinhandoque não foram apenas esses os escravos adquiridos:

"Abatidos os 1.920 (8,1% dos comprados) falecidos nos barracões e

fugidos, em Bissau e em Cacheu, e os 2.216 (10,1% dos embarcados)

falecidos durante a viagem, temos 18.128 chegados ao destino,

acompanhados de 40 crias." (Carreira, 1988:112).

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Ao considerar os 20.339 escravos que foram embarcados em Bissau, Cacheue Serra Leoa, entre 1756 e 1789, tem-se que tiveram como destino o Maranhão 10.723escravos, isto é, 52,7% do contingente adquirido. Desse mesmo setor, foram embarcadospara o Maranhão, de 1788 a 1794, um total de 5.022 escravos. Do setor de Angola-Benguela,entre 1756 e 1758, foram embarcados, com o mesmo destino, apenas 1.944 escravos(Carreira, 122). No período imediatamente posterior, tendo como portos de embarqueLuanda e Benguela, foram embarcados, também para o Maranhão , 1.024 escravos, ouseja, 15,4% do total embarcado nesse setor. Consoante Carreira, o setor de Angola nãoteve destaque nos negócios da Companhia Geral, cuja ação foi mais concentrada em Bissau18.

Conforme já foi sublinhado, não há registros contábeis sobre idade, sexo eetnias dos escravos transportados. Carreira encontrou registros mais pormenorizados deapenas 128 escravos, "todos recebidos pela Companhia, em resultados de processos deexecução por dívidas" (Carreira, 127), com documentos de proveniência, que mesclamreferências étnicas com dados geográficos e de classificação com base em critérios raciais.Vejamos as referências a "etnias, regiões de origem e outras designações" (Carreira, 1988:127)arroladas por Carreira: da área sul do Equador (Angola, Bantu, Benguela, Congo e Rebolo),originários do Golfo da Guiné (Minas) e procedente da área do Senegal à Serra Leoa(Bujagós ou Bijagós, Mandingas, Nalu e Papéis). Quanto aos chamados Nohé, não seconseguiu identificar a etnia correspondente. Os demais foram classificados por critériosraciais: Cafuzo, Crioulo e Mulato. Um termo classificatório que também foi registrado nadocumentação refere-se à designação de Moleque. Dos 128, tem-se que 26 delesapresentavam apenas indicação de sexo.

Embora não se possa precisar quantos desses escravos relativos ao Maranhãotiveram Alcântara como destino, cabe frisar ainda que não há quaisquer registros dos queadentraram pelo porto clandestino de Turiaçu, que fica localizado na mesma região geográficade Alcântara. Provavelmente, os totais referidos ao Maranhão estariam subestimados. Asfontes documentais e arquivísticas que tratam dos quilombos desde 1702 sempre enfatizamque eles se expandem do Turiaçu em direção a Alcântara ou que os escravos fugidos deAlcântara procuram as matas do Turiaçu como abrigo. Um indicador de que pode terhavido subestimação refere-se aos registros oficiais de 1779 sobre escravos e alforriadosrelativos ao Maranhão que assinalam: 31.722 "pretos" e 18.573 "mulatos" (Goulart,1975:155). Em 1819, Pereira do Lago assevera que a vila de Alcântara tinha "8.000 almasno inverno, porque no verão, em que todos os lavradores vão para suas fazendas, regulaa população de 2.500 a 3.000 almas, e fogos, 1.223."(Pereira do Lago, 2001:35). O mesmoautor, transcrevendo dados demográficos do Maranhão, em 1821, assinala para a freguesiade São Matias d'Alcântara 12.904 almas (Pereira do Lago, 2001:88). Nesse mesmo ano, apopulação do Maranhão corresponde a 152.893 habitantes, sendo 84.434 escravos ou"pretos e mulatos cativos" – ou seja, em torno de 56% da população –, 25.111 "mulatoslivres", 9.308 "pretos livres", 9.687 índios e apenas 23.994 "brancos", isto é, cerca de 15%do total recenseado (Pereira do Lago, 2001:86-88).

Em 1774, terminara o prazo de 20 anos concedido à Companhia Geralpara o tráfico de escravos africanos. Nesse ano, o transporte de escravos iniciou umaretração geral, acarretando uma redução da oferta e uma elevação do preço dos escravosque, combinado com o endividamento progressivo dos "lavradores", assinalou oenfraquecimento dos mecanismos repressivos da força de trabalho no âmbito das fazendas.

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Registros de cartas de datas esesmarias e o fim do monopólio da

Companhia Geral de Comércio

Em julho de 1777, quatro meses após a demissão do Marquês de Pombal eum ano antes da extinção da Companhia Geral, os sesmeiros de Alcântara iniciaram assolicitações de registro das cartas de datas e de sesmarias. A pressão contrária ao monopóliocomercial aumentava e de algum modo os sesmeiros percebiam os riscos de as elevadasdívidas contraídas junto à Companhia Geral virem a ser executadas, caso não fosse concedidauma prorrogação de funcionamento para a mesma. De igual modo, com as mudanças naCasa Real desde a morte do rei D. José I, em fevereiro de 1777, e com as campanhascontra Pombal, que caracterizaram a chamada "viradeira" (Soares, 1983:222), havia apossibilidade de serem feitas novas concessões e de serem revistas outras. A formalizaçãodo domínio das terras, obtidas por concessão régia, configurava-se como uma necessidadenesse período de transição política e econômica em que o poder dos sesmeiros poderiasofrer revertério. Entre julho de 1777 e setembro de 1816, arrolei vinte e seis registrosexpedidos de sesmarias em Alcântara, sendo 20 deles entre 1777 e 1794 e os demais entre1809 e 18161. Dois registros correspondentes a 1816 referem-se somente a demarcações. Alacuna entre 1795 e 1808 deve-se ao fato de não terem sido assinalados registros paraAlcântara nesse intervalo, indicando uma possível limitação do próprio material disponível.

Todos os 26 registros expedidos referem-se, por linha direta ou transversal,às famílias classificadas por Viveiros como compondo a "aristocracia alcantarense"(Viveiros,1975:109). Seis deles concernem a membros da família Araújo (Araújo Cerveira,Araújo Borges e Araújo), dois à família Silva (Silva Leitão, Almeida e Silva), dois à famíliaPinheiro, dois à família Costa Ferreira e um registro corresponde a cada uma das seguintesfamílias: Viveiros, Ribeiro, Ferreira, Dias, Santos, Aroucha e Sampaio. Independente dotítulo de nobreza ou de Carta de Brasão e Armas, tem-se uma "nobreza da terra" que seapóia em critérios de riqueza e prestígio, expressos pelo número de escravos que alegavampossuir, pela quantidade de terras que diziam deter, pelo casario assobradado que possuíame pelas relações comerciais que mantinham com a Cia. Geral de Comércio e comcomerciantes da praça de São Luís. O enobrecimento de mercadores e comerciantes assinalanovos atributos de nobreza a partir de fins do século XVIII.

Ao considerar que os dois registros para demarcação, datados de 1816, nãopossuem referência a área, tem-se 24 expedições de registro totalizando em torno de162.000 hectares, assim distribuídos: sete deles têm seus registros correspondentes a 8.172hectares cada um; outros sete possuem 4.356 hectares cada; há seis com 13.068 hectarescada e os três restantes apresentam, respectivamente: 2.712, 2.178 e 1.089 hectares.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Há cinco registros de sesmarias, entre 1777 e 1787, cujas terras pretendidascomo "devolutas" incidem sobre áreas de quilombos, que aparecem designadas atravésde menção explícita a "mocambo", "enseada grande do lago dos fugidos", "lago domocambo" e "mocambo dos negros fugidos". Eles concorrem para evidenciar que asconcessões de sesmarias teriam ocorrido em áreas já ocupadas por quilombos.

Para efeitos de demonstrar essa modalidade de sobreposição, passo à citaçãodos registros. O primeiro deles trata-se de uma solicitação de registro de terras ditas"devolutas" feita em 1788 por José Alberto da Silva Leitão ao governador e capitão-geraldo estado do Maranhão Fernando Pereira Leyte de Foyos. No texto da carta de data esesmaria, o referido Governador assinala o seguinte:

"Fernando Pereira Leyte de Foyos, Comendador da Ordem de Nosso

Senhor Jezus Christo do Cons.º de S. Mag.º Fidelíssima Coronel de

Cavalaria de Seus Exércitos com o Governo de Castello de S. Felipe

da Barra de Setúbal, Gov. e Capitão General do Estado do Maranhão

Et.ª Faço Saber aos que esta minha Carta de Datta e Sesmaria Virem,

q' Jozé Alberto da Silva Leytão Morador na Villa de Santo Antonio

de Alcântara, Me reprezentou que elle Se achava com bastante

Escravatura, Sem ter terras próprias em que os aplicasse a lavoura, e

porque nas testadas de huma Sorte de terras do Capitão Manoel

Ferreira dos Santos as havia devolutas: Me pedia fosse Servido

conceder lhe em Nome de S. Magestade huma Legoa de terra de

Comprido beira Campo do Pericumã principiando das testadas do

dito Capitam Manoel Ferreira dos Santos Correndo para os Lados

do mocambo com duas Legoas de fundo, inteirando no

Comprimento o q' Faltasse no fundo, ou neste o que faltasse naquelle,

com todas as pontas abas, Enseadas, e logradouros que Se achasem:

A que attendendo, e ao que Sobre esta matéria Responderão o

Ouvidor Juiz das Sesmarias Officiais da Câmara do destricto que

forão ouvidos..." (sic) (cf. Reg. de Carta de Datta e Sesmaria passada

a José Alberto da Silva Leitão. São Luís do Maranhão, 15 de março

de 1787).

Nos livros de registros arrolados, a área atribuída ao capitão Manoel Ferreirados Santos, denominada Sítio Aurá, não contém menção explícita à extensão em hectares.Como os dados dos registros eram autodeclaratórios, torna-se difícil precisar os limitesda área em jogo, que são apenas descritos como : "uma légua de terra beira campo, comduas de fundo, na forma e parte que pede, com as confrontações que declara".

O segundo registro de sesmaria com menção explícita a "fugidos" refere-seà área concedida a Ignácio de Araújo Serveira nos seguintes termos:

"Joze de Telles da Silva do Conselho de S. Magestade Fidelíssima

Governador e Capitão General das Capitanias do Maranhão, e Piauhy

etc. Faço Saber aos que esta minha Carta /fl. 114/ de Datta, e Sesmaria

Virem, que Ignácio de Araújo Serveira Capitão de Auxilliares,

morador na Villa de Alcântara me reprezentou por Sua petição que

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Sendo hum dos mais opulentos Lavradores, e possuindo para Sima

de Cem Escravos de Serviço não tinha terra Suficientes para emprego

dos ditos Escravos, e por que nos Perizes da mesma Villa Suposto

que em parte longiqua nas Cabeceiras da Enseada chamada

Sapuja Correndo para a Enseada grande do lago dos fugidos,

nas testadas das que Se concederão ao defunto Francisco Amandio

Lansarote, hoje possuídas por João de Barros e Antonio de Barros,

e outros havia terras devolutas, Me pedia fosse Servido conceder lhe

em nome de S. Magestade, por Datta, e Sesmaria tres legoas de terra

de Comprido, huma de largo principiando das testadas das

Concedidas ao dito Amandio, Correndo o comprimento desta terra

para o lugar em que a houver devoluta, em que Se possa inteirar das

tres legoas, e huma legoa de largo para aquella parte em que tão bem

Se possa inteirar, de Sorte que não havendo comprimento Suficiente

de tres Legoas, Se possa inteirar na Largura, e Comprimento, o que

faltar nesta, com todas as pontas, abas, e logradouros que Se

comprehenderem na Medição da dita terra..." (sic) (cf. Registro de

Carta de Datta e Sesmaria passada a Ignácio de Araújo Serveira. São

Luís do Maranhão, 19 de maio de 1785).

A localização do dito "lago dos fugidos" aparece referida aqui a Perizes. Osnaturalistas Spix e Martius, quando visitaram Alcântara em 1819, detiveram suas observaçõesnessas Campinas, que recebiam a denominação indígena de peri (plural, perizes), e asdescreveram como conservando continuamente o "verdor seivoso". Assim as localizaramgeograficamente: "Os perizes estendem-se de Alcântara para o norte até às Vilas de SãoJoão de Cortes e Guimarães, e circundam a baia de Cumã, daí talvez a razão por que todoo distrito é designado pelo nome de Pericumã." (Spix e Martius, 1976:250).

Pelas modalidades de registro, percebe-se que há uma sinonímia entre"mocambo" e "fugidos". Tais termos são utilizados no texto como topônimos, ouseja, antes referem-se ao nome próprio de um lugar ou de um acidente geográfico quea um grupo social que esteja efetivamente ocupando as terras. A documentação fundiáriada burocracia colonial cinge-se a considerar as terras como da Casa Real e utilizadas pelosconcessionários por ela instituídos. Os antagonistas são invisibilizados ou só percebidosindiretamente ou nos desvãos das entrelinhas dessa documentação.

O terceiro registro é uma concessão de sesmaria passada ao capitão José deAraújo Serveira "do lado dos fundos nas testadas das terras concedidas ao seu irmão, ocapitão Ignácio de Araújo Serveira" (Cf. Registro de Data e Sesmaria passada ao capitãoJosé de Araújo Serveira. São Luís do Maranhão, 26 de setembro de 1787). Em certamedida, ela reproduz o "topônimo" anteriormente mencionado.

O quarto registro é de uma concessão de sesmaria ao capitão Manoel Ferreirados Santos elaborada nos seguintes termos:

"Jozé de Telles da Silva do Conselho de S. Magestade Fidelíssima Governador

e Capitão General das Capitanias do Maranhão, e Piauhy etc. Faço saber aos

que esta Mª. Carta de Data e Sesmaria virem que por parte do Capitão Manoel

Ferreira dos Santos morador na Villa de Alcântara me representou por sua

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Petição que elle se ocupava em Lavoiras com huma sorte de terras, que havia

comprado, e que se achavam já incapazes de dar [...] fructos e porque lhe

constava, que havia terras devolutas, e incultas, pegando no centro dos Mattos

do Aura, testadas do Capitão Roberto de Sá abeirando os campos do

Pericumã correndo para os lagos do Mocambo, Me pedia fosse servido

conceder-lhe em nome da Sua Magestade por Datta, e Sesmaria huma Legoa

de terra com todas as pontas, abas Sobras Logradouros e Enseadas onde

mais comodamente se podesse demarcar..." (sic) (Registro de Carta de Datta

e Sesmaria passada ao Capitão Manoel Ferreira dos Santos. São Luís do

Maranhão, 15 de março de 1787).

O quinto registro é uma data concedida a João de Carvalho Santos, cujadescrição dos limites aglutina os termos "mocambo" e "fugidos" no mesmo topônimo,nos seguintes termos:

"Dom Fernando Antonio de Noronha, Do Conselho de Sua Magestade

Fidellísima Tenente Coronel de Seos Exércitos, Governador, e Capitão

General das Cappitanias do Maranhão e Piauhy Ect.ª Faço Saber a todos os

que esta Minha Carta de Datta e Sesmaria Virem que João de Carva -/fl.

101v/ de Carvalho Santos morador e Cazado na Villa de Alcântara, Me

reprezentou que elle não tem terras Suas próprias em que possa lavrar com

Seus Escravos, e porque tem noticia que para a parte dos Perizes da dita

Villa, no Centro dos Mattos, nas partes, e Vizinhanças, onde foi o

Mocambo dos Negros Fugidos onde ultimamente deu o Capitão do

Matto Lourenço Gonçalves, junto com o Alferes Manoel Rodrigues

de Oliveira, há terras devolutas..." (sic) (Registro de Carta de Data e

Sesmaria concedida a João de Carvalho Santos. São Luís do Maranhão, 25

de abril de 1793).

A localização deste "Mocambo dos Negros Fugidos", considerando suaposição próxima ao rio Aurá, concerne ao sudeste do atual município de Alcântara. O fatode a atuação do capitão do mato ser recente, como reza o registro, evidencia que osquilombolas ainda se encontravam naquelas terras tidas como devolutas e sem qualquerocupação. Pode-se interpretar que a concessão de sesmarias oficialmente ignorava os conflitosque só aparecem de maneira indireta nos registros.

A localização do Lago do Mocambo, por sua vez, refere-se ainda a outrolugar geográfico, qual seja, próximo ao antigo povoado de Peru, à leste do município,assinalado pela memória oral dos entrevistados como quilombo2. A denominação, combinadacom os dados de história oral e com a documentação administrativa oficial, concorre paraevidenciar que antes mesmo da própria criação da Companhia Geral já havia registros dequilombos na região e que foram concedidas sesmarias em áreas que alguns delesefetivamente ocupavam. A concessão de sesmarias a partir de 1755 é posterior, portanto, àincidência de quilombos na região, cujos primeiros registros burocrático-administrativos,efetuados pelo governador geral do estado do Maranhão Fernão Carrilho, datam de 1701.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

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Registro de cartas de datas e sesmarias

Munícipio: Alcântara / 1777 - 1816

Joaquim Antonio de Launé

João Telles de Menezes

Felipe Curvelo

Ignácio de Araújo Borges

Francisco Ribeiro Grillo

Manoel Ferreira dos Santos

Euginei de Aroucha

José de Araújo Cerveira

L. Aires

José Alberto da Silva Leitão

Antonio José Rodrigues de Souza

Ignácio José Pinheiro

Antonio Soares de Araújo

Manoel Reis de Oliveira

João Diogo da Costa (sem efeito)

Alexandre José de Viveiros

Francisco Raimundo Dias

Antonio Cardoso Sampaio

João de Carvalho Santos

João Álvares Pinheiro

Ignácio Gabriel de Almeida e Silva

Severo Antonio de A.Cerveira

Ana Apolônia Heduviges

Joaquim Antonio da C. Ferreira

Inambú

Inambú

R. Pericumã

Quindiua

Inambú

Sítio Aurá

Pericumã

Perizes

-

Lago do Mocambo

Inambú

Peri-açu

Pericumã

Pericumã

Pericumã

Pericumã

Guarapiranga

Pericumã

Perizes

Perizes

R. Mariano

-

Pericumã

-

03.07.1777

30.12.1777

12.07.1779

07.07.1780

02.08.1780

15.05.1787

28.06.1787

26.09.1787

24.01.1788

26.02.1788

16.04.1788

26.04.1788

29.04.1788

11.08.1790

18.08.1790

21.06.1791

11.06.1792

06.09.1792

25.04.1793

07.02.1794

13.04.1809

09.10.1809

31.01.1811

10.09.1816

4.356,0000

4.356,0000

4.356,0000

2.178,0000

1.089,0000

-

4.356,0000

13.068,0000

13.068,0000

2.712,0000

4.356,0000

13.068,0000

13.068,0000

4.356,0000

8.712,0000

13.068,0000

13.068,0000

4.356,0000

8.712,0000

8.712,0000

8.712,0000

8.712,0000

8.712,0000

8.712,0000

02

02

02

02

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02

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172v

08

48v

75v

44

Nº de

OrdemSesmeiro Denominação

Data da

expediçãoÁrea - (ha) Livro Folha

FONTE: Livros de Registros nºs: 02, 04, 07 e 10. Arquivo Público do Estado do Maranhão.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Compulsando o gráfico e os quadros demonstrativos, constata-se que a chamadanobreza alcantarense descendia diretamente de sesmeiros, que tiveram expedidas suas cartas nasegunda metade do século XVIII. Nem todos eles são classificados, entretanto, como referidosa Alcântara. Caso o fossem, a listagem teria que ser necessariamente ampliada, incluindo pelomenos Guimarães, São Bento e Viana. Senão, vejamos: Theodoro Correa de Azevedo Coutinho,com fazenda no rio Pericumã, cuja extensão equivalia a 4.356 hectares, teve expedido seu registrode carta de sesmaria em 17 de abril de 17773. Já citado anteriormente como vendendo porconsignação em navios da Companhia Geral, este sesmeiro é pai do Barão de Mearim, brigadeiroJosé Teodoro Correa de Azevedo (Viveiros, 1975:100). Outro exemplo: Romualdo AntonioFranco de Sá, com Fazenda Chapada ou Caatingas, localizada em Guimarães, com 8.712 hectares,tem seu registro de carta de sesmaria expedido em 02 de junho de 17934. Trata-se do pai dosenador Joaquim Franco de Sá (Viveiros, 1975:109) e do avô do senador Felipe Franco de Sá(Viveiros, 1975:136). Joaquim Franco de Sá governou a província do Maranhão no período dereestruturação dos engenhos de açúcar em 1846-47 e da reorganização das campanhas militarescontra os quilombos. O referido senador era genro e foi secretário de governo de outro presidenteda província, o Barão de Pindaré, Antonio Pedro da Costa Ferreira, cuja família possuía fazendasem Alcântara na região do Tubarão, como o seu pai, Ascenso José da Costa Ferreira, e, emViana, como o Comendador José Ascenso da Costa Ferreira5. Nessas terras há menção explícitaa quilombos desde pelo menos 1837, data da autorização de repressão. Vale acrescentar aindaque o mencionado senador, que era do Partido Liberal, teve como secretário da presidênciaCarlos Fernando Ribeiro, mais tarde Barão do Grajaú e presidente da província, proprietário doEngenho Gerijó, que em 1760 fora confiscado dos jesuítas. Há registros de quilombos nessasterras desde pelo menos 1833 e até 1866, quando são mobilizadas tropas de linha para combateros quilombolas em Jarucaia6.

Um outro exemplo, incluído no quadro demonstrativo, seria Alexandre Joséde Viveiros, com fazenda no rio Pericumã, com 13.068 hectares, que tem expedido seuregistro de carta de sesmaria em 21 de junho de 1791. É pai do senador Jerônimo José deViveiros, que fundou a Fazenda São Maurício, e avô do Barão de São Bento, FranciscoMariano de Viveiros Sobrinho (Viveiros, 1975:116). Em 1819, Pereira do Lago anota comdetalhes a expansão dos quilombolas e o avanço de tropas por essa área, que ficou conhecidacomo de incidência do "quilombo dos Pretos de Viveiros" (Pereira do Lago, 2001:28).

A derrocada da economia algodoeira

O registro das sesmarias, conforme já foi sublinhado, ocorre num momentoem que está findando o prazo da concessão régia à Companhia Geral e em que esta, além

Severo Antonio de Araújo Cerveira Paragem Timbaúba 1816 demarcação 109,025A 01

Severo Antonio de Araújo Cerveira Guruapê 1816 demarcação 109,025B 01

Sesmeiro DenominaçãoData da

expediçãoNotação FolhaObjeto

Registro de demarcação de sesmarias

Munícipio: Alcântara / 1816

FONTE: Registros de Sesmarias. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

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de encontrar-se prestes a ser extinta, acha-se sob pressão de comerciantes, que reivindicamo fim do monopólio comercial, e de "lavradores" cujas dívidas acham-se acumuladas. Emrepresentação à rainha D. Maria I para que não persistisse por mais tempo a CompanhiaGeral, dois anos após a sua extinção formal, em 1780, inúmeros signatários, que se auto-intitulam "homens de negócios", manifestando-se a favor do livre comércio, asseveram oseguinte:

"... os habitantes do Pará e Maranhão devem o que nunca poderão

pagar, e a Companhia duplicou o fundo de seu capital e os acionistas,

além do dobro do valor com que entraram, tem percebido mais de outro

tanto; aqueles habitantes eram ricos porque não deviam quando era o

comércio livre; a Companhia, que prometeu aumentar a agricultura e o

Estado, o deixou destruído..." (Silva e Castro et al., 1780 apud Carreira,

1988:100) (g.n.)

Viveiros assinala que, em 1819, o preço do algodão baixou repentinamente

para menos da metade do preço antigo, levando à bancarrota fazendeiros, designadoscomo "lavradores", que se davam a um "luxo desmedido" e "que compraram grandeslotes de escravos a longos prazos, os quais não puderam pagar" (Viveiros, 1954:139)7.Com o preço do algodão despencando, o endividamento dos fazendeiros tornou-se pordemais acentuado. Eles, que estavam às voltas com dívidas junto às casas comerciais desde aextinção da Companhia Geral8, encontravam-se, duas décadas depois, numa situação limite.

As casas comerciais inglesas e portuguesas, sediadas em São Luís, acusadaspelos denominados "lavradores" de especularem no mercado algodoeiro, acumulavam omaior montante de bens e recursos então em circulação. Para Viveiros (1954:163), erambanqueiros, que concediam empréstimos e controlavam exportações, importações e até obeneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos. Dos três maiorescomerciantes portugueses no início do século XIX, citados por Viveiros, um deles possuíahum mil e quinhentos escravos, caso de José Gonçalves da Silva; o outro herdou hum mile oitocentos escravos, caso de Simplício Dias da Silva; e o terceiro trata-se de Antonio JoséMeirelles, que sucedeu a Gonçalves da Silva nos empréstimos a fazendeiros (Viveiros,1954:165-167).

Alcântara, que sempre se caracterizou mais como local de produção e deproeminência de fazendeiros, teve desestruturada sua produção e as fazendas passarampor um processo de completa desagregação. Ao contrário, em São Luís, onde estavam oscomerciantes, os exportadores e os financiadores das compras de escravos, consolidava-seo controle da circulação de mercadorias9.

Alcântara, que no período pombalino era um centro de atividades econômicas,ou seja, uma das áreas mais destacadas da política mercantilista, tornou-se gradativamente,a partir de fins do século XVIII e início do século XIX, uma região periférica e cada vezmais marginal economicamente. Antes mesmo do advento do Império, as fazendas deAlcântara, que vinham perdendo seu dinamismo econômico desde a extinção da CompanhiaGeral e da retomada do mercado algodoeiro pelas grandes plantações do Sul dos EstadosUnidos, entraram em desagregação. As fazendas começaram a ser abandonadas e forampassando às mãos de prepostos. A produção de algodão praticamente cessou, no decorrer

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da década de 1820-30, revertendo tão somente para as necessidades familiares e artesanais;a fábrica de beneficiamento de anil, que florescia em São João de Cortes em 1762, já nãomais existia e, segundo Pereira do Lago, naquela freguesia, no ano de 1820, "plantam sómandioca, porque para nada mais serve o terreno"(Pereira do Lago, 1872: 388). A agriculturade base familiar com escravos e alforriados ia se consolidando sobre as áreas das grandesplantações. De outra parte, a vila de Alcântara foi assim caracterizada por Pereira do Lago,em 1820:

"As suas ruas mal calçadas, ainda que se cuidava em emendar esse defeito,

assim como em fazer um chafariz; porém como as manilhas com que

formam o cano são de telhas, pode em pouco arruinar-se, e faltar então

a água: tem belos edifícios e, talvez dos que se chamam nobres 60, mas

só em parte do inverno são habitados, porque as famílias todas residem

quase sempre nas suas fazendas: há dois conventos, um do Carmo,

outro das Mercês, e uma freguesia de São Matias; duas praças, a da

matriz, e a do Carmo, e onze ruas. A sua população, de verão anda por

2.500 almas, e de inverno, por 8.000." (Pereira do Lago,1872:387).

A este tempo, as terras não eram passíveis de compra e venda, o regulamentodas sesmarias condicionava à autorização régia qualquer transferência, mesmo que porsucessão. Os atos de compra e venda incidiam sobre produtos e benfeitorias. As casas-grandes, que foram transformadas em bens móveis, já estavam sendo desmontadas,como já foi anteriormente examinado, e os sobrados na vila estavam sendo vendidospara saldar dívidas ou entregues à guarda provisória de prepostos e escravos domésticosmediante a partida dos senhores, seja para São Luís, seja para o Rio de Janeiro.

As interpretações econômicas usuais, prevalecentes na historiografia regional,que explicam o Maranhão pela teoria dos ciclos econômicos ou pela dicotomia prosperidade/decadência, são lacônicas e insuficientes quando se trata de analisar esta situação socialespecífica de Alcântara. Os marcos adotados para explicar o Maranhão mostram-seinapropriados quando se trata de Alcântara, cuja decadência abrupta é vista, peloscomentadores regionais, sob uma ótica catastrofista de esgotamento absoluto dos recursosnaturais. O menosprezo por uma análise concreta de uma situação concreta, privilegiandorealidades localizadas e processos reais, mantém Alcântara à margem das interpretaçõeseconômicas consagradas, cujo corte relativo ao Maranhão não lhe corresponde exatamenteenquanto padrão de explicação. Celso Furtado considera que, embora para a colônia oúltimo quartel do século XVIII tenha sido de retração econômica, o Maranhão constituiu-se numa exceção, posto que a economia algodoeira, a partir da Companhia Geral, possibilitouelevada lucratividade e intensa expansão. Nos termos de Furtado, teria ocorrido uma "falsaeuforia do fim da época colonial" (Furtado, 1975:89), à exceção do Maranhão, onde teriaocorrido de fato "prosperidade"10.

Em Alcântara, desde o início do século XIX a função urbana de tipoburocrático-administrativo prevalece e se mantém quando os senhores começam a abandonarsua fazendas, conservando o domínio formal das terras mas sem o controle efetivo delas.O domínio formal vai ser mantido durante todo o Império, porquanto só podiam votar eser eleitos aqueles que tivessem títulos e terras, ou seja, mantêm-se formalmente enquanto

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fazendeiros e assim são reconhecidos pelo poder imperial. Os direitos políticos eram restritose nas áreas rurais não havia possibilidade de qualquer proteção social senão através dossenhores de terras (Faoro, 1988). Havia uma tutela embutida no Estado dinástico quepropiciava o controle da força de trabalho pelos fazendeiros, mesmo quando os mecanismosrepressivos achavam-se debilitados. De outra parte, a terra era um recurso abundante, sobconcessão e confirmação régias, e não havia praticamente transações comerciais que asenvolvessem. A figura do aforamento foi sendo instituída pelos sesmeiros, quando elesdetinham tão-somente o controle formal das terras, também como estratégia que adiava oacesso livre e direto de escravos e alforriados à terra. Isso se manteve mesmo quandocomeçaram a pairar dúvidas sobre o destino das sesmarias, com alguns defendendo quefossem reduzidas, outros que revertessem à Coroa11. Essa situação se agravou com aIndependência.

A partir de 1822, consoante análise de J. Shiraishi, com a Resolução do Reino den° 76, que ordena a suspensão dos atos de concessão de sesmarias, até a Lei de Terras n° 601,de 18 de setembro de 1850, que reestrutura formalmente o domínio das terras, tem-se umperíodo classificado por juristas com a denominação de "posse das terras devolutas" (Sodero,1990:37-48). No decorrer desses 28 anos, "o domínio das terras se realiza pelo simples ato deposse" (Shiraishi, 1998:24), abrindo um capítulo de tensões permanentes, posto que osmecanismos repressivos da força de trabalho, ao alcance dos fazendeiros, encontravam-sedebilitados e os registros sobre os quilombos evidenciavam sua expansão. Um quadro detensões se instaura nas situações em que os atos de apossamento não estariam passandonecessariamente pelo controle dos antigos sesmeiros. A este tempo, já não mais havia grandesplantações em Alcântara. As grandes plantações de algodão e arroz cediam lugar aos plantiosde mandioca, de arroz e ao preparo de farinha levados a cabo por famílias de escravos,parcialmente controladas pelos prepostos, de um lado, e por alforriados, índios e quilombolas,de outro. Assiste-se a uma transição de escravo para camponês, produzindo com unidades detrabalho familiar autônomas em terrenos por eles escolhidos e num tempo por eles igualmenteadministrado. O marco divisório de Alcântara, de 1755, que deixara as terras a noroeste paraos índios e as demais para as grandes plantações, perdera a sua razão de ser perpassada denorte a sul pelas pequenas unidades de trabalho familiar que, estruturando sua vida social empovoados, iam impondo gradativamente um processo produtivo autônomo com relaçõesdiretas com os diferentes circuitos de mercado através de dezenas e dezenas de pequenosportos por onde era escoada a produção de farinha, pescado, carvão, arroz e produtosextrativos para a capital da província. As categorias instituídas pelos colonizadores, quais sejam:índios, pretos e caboclos, portadoras de atribuições estigmatizantes, foram sendo redefinidaspor aqueles que, tornando-as afirmativas, passaram a se autodefinir por elas, definindo deigual modo as terras que efetivamente controlavam. Os povoados que aí foram erigidos seorganizaram em torno do uso comum dos recursos naturais e dos mencionados portos, osquais facultaram condições de possibilidade para a livre comercialização dos produtos agrícolase extrativos desde a segunda metade do século XIX e, com determinadas variações, até omomento atual.

A consolidação política dos denominados "lavradores" de Alcântara baseia-se naimperatividade de fortalecimento do Estado no período imperial, que recruta membros dessacamada de "lavradores", que haviam adquirido "ilustração" e prestígio intelectual em universidades

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européias e que ainda detinham formalmente as terras, habilitando-a enquanto classe dirigente.O advento político-administrativo dessa elite universitária cosmopolita e que bem separava aação do Estado daquela da Igreja Católica contrapunha-se aos quadros intelectuais das ordensreligiosas, que buscavam recuperar seu poder, sobretudo na educação e na economia. Umaresultante desse embate refere-se às medidas do governo imperial diante das ordens religiosas,investindo duramente contra elas12.

Os cargos e funções, tais como: presidentes da província do Maranhão,senadores do Império, que representavam a província, e altos escalões da burocracia e dosserviços administrativos, eclesiásticos (através do Padroado) e militares serão ocupadospor membros dessa camada de "lavradores", sobretudo da região de Alcântara. Entre1834 e 1889, dela são provenientes mais de seis presidentes de província, pelo menos cincosenadores do Império13, mais de uma dezena de deputados da Assembléia LegislativaProvincial e da Assembléia Geral Legislativa, diversos oficiais militares e cavaleiros de ordense dezenas de funcionários do aparato administrativo imperial e de instâncias intelectuais ecientíficas14. Dispõem de um capital intelectual acumulado que propicia os recursos decompetência para a administração provincial, combinado com um capital simbólico derelações sociais que viabiliza a sedimentação de interesses através de políticas que reprimema força de trabalho, que incentivam, em 1846-47, a instalação de engenhos de açúcar e quemonopolizam formalmente a terra – por intermédio das confirmações de sesmarias e,depois, através dos registros paroquiais exigidos pela Lei de Terras de 1850. O baronatoalcantarense, do período imperial, composto de quatro Barões (Mearim, Pindaré, São Bentoe Grajaú), tem nessa condição original de "lavradores" e sesmeiros a fonte de sua forçapolítica durante todo o Império. Ela garante uma posição de destaque a esses políticosalcantarenses, mesmo quando a derrocada econômica já desagregara integralmente as suasfazendas em Alcântara e eles não mais tivessem grandes plantações, nem o controle absolutodas terras.

Não há correspondência entre a condição jurídica de sesmeiro, legítimo econfirmado, e aquela de apropriação real dos meios de produção, mesmo que se constateque os chamados "lavradores" sempre procurassem dissociar os escravos, os alforriados eos índios dos meios de produção. A organização das estruturas do poder provincial nãoreflete imediata e mecanicamente as transformações no processo produtivo. O poder político,nesse sentido, não é simples expressão da estrutura econômica. Em virtude disso é que sepode asseverar que as interpretações economicistas – que analisam a dominação política naprovíncia pelas modificações técnicas nos instrumentos de trabalho ou pelas estatísticas deprodução de matérias-primas para o desenvolvimento industrial – não têm força explicativasuficiente para demonstrar o poder político das famílias dos barões alcantarenses e afins,quais sejam: Azevedo Coutinho, Costa Ferreira, Franco de Sá, Viveiros, Gomes de Castro,Araújo e Ribeiro.

As fazendas de Alcântara, no decorrer do século XIX, consistem no maisdas vezes, em símbolos de um poder que efetivamente não mais se baseava nelas. Adespeito das aparências, dos registros formais de terras e das tentativas de recuperação –como no caso dos incentivos aos engenhos de açúcar em 1846-47, que levaram Alcântaraa possuir 13 engenhos nas duas décadas seguintes –, a estratégia efetiva das famílias defazendeiros baseava-se em cargos públicos e nas vicissitudes de uma carreira política, tendo

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suas residências consolidadas em São Luís e no Rio de Janeiro. Pode-se resumir, portanto,que as vicissitudes dessas estruturas de poder se referem, no caso de Alcântara, a relaçõessociais que se caracterizam por pelo menos duas modalidades de antagonismos: uma,concernente a conflitos latentes, intrínsecos ao processo de acamponesamento de escravosno âmbito das fazendas arruinadas, sob a autoridade combalida de prepostos; outra, que serefere a conflitos abertos, manifestos, e que envolve diretamente o combate aos quilombos,que representam um processo produtivo autônomo que se consolida sobre as ruínas dasfazendas e do poder senhorial.

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Pousada São Raimundo

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As ações dos quilombolas em Alcântara se intensificam a partir da primeiradécada do século XIX. Em razão inversa à desagregação das grandes plantações de algodãoe de cana-de-açúcar, os quilombos expandem seu processo produtivo e ampliam suasrelações em diferentes circuitos do mercado de produtos alimentares, marcando presençanos pequenos portos e nas vias de acesso às vilas de toda a região, sobretudo Alcântara,Guimarães, Turiaçu e Viana. Há copiosa documentação administrativa colonial a respeito,bem como interpretações de historiadores do século XIX que compulsaram fontesdocumentais hoje inexistentes. O historiador César Marques, em 1878, sublinha quanto aessa região que:

"desde 1811 principiaram a formar-se de novo alguns quilombos. (...)

Organizados ahi esses quilombos, estenderam seus domínios às comarcas

de Alcântara e Viana, pondo assim em risco a propriedade e segurança

individual dos seus habitantes tornando inacessíveis terrenos, aliás

fertilíssimos e apropriados a várias espécies de cultura." (Marques, 1878:14).

A fragilidade circunstancial dos instrumentos de coerção, em virtude daderrocada econômica dos fazendeiros e de sua gradual retirada de Alcântara, favoreceu talexpansão. A desorganização das grandes plantações, sem que houvesse um produto comercialpara substituí-las, acarretou uma relativa liberação da força de trabalho. Os mecanismos decontrole nas mãos de prepostos evidenciavam que a autoridade absoluta dos fazendeirosprincipiava a atenuar-se. Os designados pelos senhores para exercerem atos como seusfeitores, administradores e semelhantes, que, em Alcântara, recebem a designação deencarregados da terra, eram recrutados entre os próprios escravos mais próximos dascasas-grandes, que realizavam serviços domésticos e de criadagem mais afetos à vida privadada família dos senhores1.

Transcendendo a incursões guerreiras, comumente ressaltadas peloshistoriadores regionais como características dos quilombolas, tem-se que os quilombos emAlcântara foram, em verdade, consolidando um sistema produtivo relativamente autônomoe estabelecendo vínculos estreitos não só com os pequenos produtores livres e índios dasáreas das antigas reduções, mas também com os escravos e com a camada incipiente deforeiros das fazendas confiscadas das ordens religiosas e com os escravos que, com aretração do plantio de algodão, se voltaram para o cultivo de arroz e mandioca, para apesca e para as atividades extrativas, sob a direção dos prepostos dos fazendeiros. De outra

Os quilombos em Alcântara

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parte, com a revogação do Directório2, em 1798, os índios, nas antigas terras das ordensreligiosas, tornaram-se livres da autoridade de diretores e soldados, instituída no regimepombalino, que os faziam pagar além do dízimo o chamado "sexto", e também passarama produzir para si e a comercializarem seus produtos diretamente. Nas fazendas de algodão,a queda vertiginosa dos preços no mercado, desorganizando as grandes plantações, levou aque os escravos fossem reorientados para os cultivos de gêneros de primeira necessidade,que nos períodos de alta do algodão eram adquiridos pelos fazendeiros nas áreas periféricasàs fazendas, mais próximas de São João de Cortes, controladas pelos índios, para abastecera escravaria. Tal reorientação tanto resolvia o problema de manutenção da força de trabalho– considerando que aos senhores competia dar a seus escravos o necessário à vida para sealimentarem e vestirem – quanto assegurava aos senhores receitas substanciais através dacomercialização nas praças de mercado de São Luís dos gêneros alimentícios que lhes eramenviados pelos prepostos. Embora nenhuma lei garantisse aos escravos o pecúlio e vigisseo princípio de que o escravo nada podia adquirir para si , sendo todo o produto de seutrabalho obrigatoriamente destinado ao senhor, constata-se que, nesta situação examinada,foi facultado aos escravos tempo de trabalharem para si e para seu próprio sustento. Esseembrião de autonomia produtiva foi se consolidando nas décadas seguintes, erigindo aschamadas terras de preto e convergindo para uma situação de aquilombamento, ou seja,uma autonomia absoluta em relação aos senhores. Essa situação de aquilombamento abarcatambém os próprios índios que, com o afastamento dos diretores em 1798, construíramsua própria autoridade, independentemente de tutelas, sobre as chamadas terras de santo3

e terras de caboclos e estabeleceram relações sociais comunitárias e associativas (Weber,1999:161) com escravos fugidos das fazendas, refugiados em seus domínios, e com ospovoados que foram sendo formados com a derrocada das fazendas de algodão. Semelhanteação social baseia-se numa necessária aproximação de interesses e de autodefesa de áreasde algum modo delimitáveis, num momento em que os fazendeiros, seus antagonistashistóricos, achavam-se circunstancialmente por demais debilitados economicamente parareprimir duramente essa forma de autonomia. O sentimento de índios e escravos depertencerem afetiva e economicamente a territorialidades que controlavam efetivamente,viviam como suas e às quais emprestavam suas próprias auto-atribuições, num momento emque não lhes era permitido por lei ter quaisquer propriedades e pecúlios, evidencia umaafirmação étnica. Ao afirmarem implicitamente direitos pessoais e de grupos não reconhecidoslegalmente como habilitados à posse e/ou propriedade, marcam uma diferença diante doordenamento jurídico colonial e descrevem uma trajetória que colide com ele ao se erigiremcomo sujeitos. Recorde-se que os próprios fazendeiros, enquanto sesmeiros, usufruiam deuma concessão régia e não eram proprietários das terras estrito senso e, após a extinção doinstituto das sesmarias em 1823, ficaram como "posseiros" até, pelo menos, a Lei de 18504.

Está-se diante, portanto, de diferentes vertentes de construção deterritorialidades, as chamadas terras de santo, terras de caboclos e terras de preto, emque comunidades aparentemente separadas em termos étnicos convergem, por intermédiode uma relação associativa abrangente, para um mesmo processo de territorialização étnica.Tal quadro histórico permite compreender por que, em Alcântara, a memória das comunidadesremanescentes de quilombo não se atém a feitos militares ou a episódios de heroísmo, ou,ainda, a figuras míticas, mais se concentrando na afirmação de uma forma de existir e produzir,com base num sistema de uso comum dos recursos naturais e numa reciprocidade positiva

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entre as famílias de diferentes povoados. Em termos de uma datação, pode-se afirmar quesemelhante sistema, nas terras das fazendas das antigas ordens religiosas, já tem mais de doisséculos e, nas demais situações sociais específicas de Alcântara, tem quase dois séculos.

De certo modo, a desagregação das fazendas dos sesmeiros em meados doséculo XIX reproduzia condições de acamponesamento da força de trabalho imobilizada,tal como já se verificara nas antigas fazendas dos jesuítas, na segunda metade do séculoXVIII, e naquelas das demais ordens religiosas depois de 1821. Através do trabalho familiar,os escravos garantiam o seu sustento e propiciavam, a cada colheita, quantidades significativasde farinha e arroz aos fazendeiros então absenteístas. As chamadas casas de forno, ouedificações utilizadas para o beneficiamento da mandioca, e os portos constituíam o núcleobásico dos povoados que foram sendo formados. As casas-grandes e as benfeitoriasdesmontadas e vendidas já não representavam a referência principal daquelas terras desesmarias, ainda que muitos dos chamados sítios velhos ficassem localizados nasproximidades de portos, para facilitar o escoamento da produção. A partir dos portos, osprepostos embarcavam em pequenos barcos a produção dos gêneros comercializáveispara a Praia Grande na capital São Luís, fortalecendo paradoxalmente, não necessariamenteos senhores, mas um sistema produtivo cada vez mais autônomo.

A paisagem descortinada por Pereira do Lago em fins de 1819 e início de1820, na estrada e no rio Periaçu (Pirauaçu), que demandavam São João de Cortes, queele denomina de "povoação de índios", bem ilustra a magnitude da prevalência doplantio de mandioca, já não havendo inclusive quaisquer informações essenciais sobregrandes plantações de algodão ou sobre os indigoteiros. As informações sobre asfazendas mencionadas pelo engenheiro militar Pereira do Lago cingem-se a:

"De Alcântara para ir à beira do rio Turi toma-se logo a estrada do Pirauaçu

até onde são 3 ½ léguas, caminho muito bom e acompanhado de três

fazendas, por entre matas, que já foram queimadas, e terreno quase

todo de areia. Esta estrada corre ao norte, e depois 420 noroeste. Embarca-

se no igarapé Pirauaçu, cuja largura varia desde 20 braças até 110, e suas cabeceiras

são no Pirajaratoca, todo de mangue aos lados, e só com uma fazenda

Morari, até chegar à povoação de São João de cortes, e até aqui 2 léguas.

Esta povoação de índios é muito antiga, constava de 22 fogos e cousa de

90 a 100 almas (...) Plantam só mandioca, porque para mais nada

serve o terreno." ( Pereira do Lago, 2001:16) (g.n.)

Os quilombos e a governação pombalina

A autonomia produtiva, por outro lado, foi sendo conquistadaconcomitantemente com a consolidação dos chamados quilombos ou mocambos. Sobreisso, cabe assinalar que os registros relativos à incidência de quilombos em Alcântara,levantados a partir da consulta a documentos burocráticos das administrações dos períodoscolonial e imperial, deixam entrever que, mesmo antes e durante a governação pombalina, asações dos quilombolas já eram registradas, embora com menor recorrência do que no decorrer

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do século XIX. O termo "mocambo" é acionado nessa documentação em sinonímia comquilombo, como se poderá destacar nos excertos transcritos nos quadros adiante apresentados.

No período colonial, ou mais exatamente entre 1701 e 1751, as fontesdocumentais e arquivísticas compulsadas compreendem basicamente a correspondênciaentre a Casa Real, na metrópole, e a alta hierarquia do corpo administrativo da colônia, istoé, do Estado do Grão-Pará e Maranhão, separado do Brasil desde 1621.

Na interpretação de Viveiros:

"Pelo que investigamos, no Maranhão, o mais antigo mucambo data do

ano de 1702. Localizou-se nos sertões do Turiaçu, tendo sido destruído

pelo Governador Fernão Carrilho, que lá aprisionou centro e vinte escravos,

cobrando por seus senhores por peça a quantia de oito mil réis, no que foi

censurado pela Coroa. No decorrer dos anos, foram surgindo mucambos

em vários lugares maranhenses: Viana, Pinheiro, Alcântara, Guimarães,

Maracassumé, donde não raro saíam os africanos para a pilhagem das

fazendas." (Viveiros, 1954:88)

A Companhia de Comércio do Maranhão (1682-84) introduzira umaquantidade de escravos africanos muitíssimo inferior ao previsto, qual seja: 500 escravospor ano, durante vinte anos. Não durou mais que dois anos e assim mesmo com resultadosincompletos (Salles, 1970:30). Assim, não é difícil entender por que a composição dosquilombos, consoante os registros da administração colonial, assinala uma destacadaparticipação de índios. Os próprios termos designativos denotam tal idéia ao designarem oquilombo como: "aldeia de escravos fugidos". Do mesmo modo, a caracterização da açãoé assim registrada: "gentios do corço" (sic). A noção de corso denota ataques esporádicose irregulares, porém rápidos e sucessivos, feitos de forma isolada ou em grandes grupos,sem objetivo de ocupação permanente, apenas fustigando ou visando o roubo deinstrumentos de trabalho em ferro e de gado para tração e alimento. São essas incursõesguerreiras que afetam Alcântara ainda no período em que os colonos se opunham aosempreendimentos econômicos das ordens religiosas. O termo gentios parece prevalecernos quilombos e os chamados pretos e caboclos só vão ser mencionados quando, porrazões estratégicas de povoamento, os administradores coloniais passam a favorecer ocasamento com índios, proibindo que os filhos recebessem a denominação de caboclos, e,depois, passam a privilegiar os próprios índios, libertando-os da escravidão, em 1755, emantendo formalmente nessa condição principalmente os chamados pretos.

A própria área correspondente a Alcântara surge inicialmente como dentro

Notas ao Quadro da página 119:

(1) O jurista Perdigão Malheiro, em 1864, menciona o quilombo do Turiaçu como tendo durado cerca de 40 anos

(Malheiro, 1976 : 36 ). A. César Marques, em 1872, registra como este quilombo se expandiu para Alcântara e Viana.

(Marques, 1878, páginas 5-69). J. Viveiros cita este documento de 1702, que foi reproduzido pelos Anais da Biblioteca

Nacional em 1948, volume 66, páginas 212-213, como referente ao quilombo mais antigo do Maranhão (Viveiros,

1954:88) mencionando como em Alcântara, Viana, Pinheiro, Guimarães as fazendas eram alcançadas pelos quilombolas

saídos de Maracassumé, Turiaçu.

(2) Cf. M. Carneiro de Mendonça - A Amazônia na era Pombalina : correspondência inédita do governador e capitão

- General do Estado do Grão Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado 1751 - 1759. Rio de Janeiro,

IHGB, 1º Tomo, 1963 pp. 303 - 304.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

do raio de ação dos quilombolas que tem seu principal núcleo no Turiaçu. O documentoque a consagra, e que é reconhecido pelos principais historiadores maranhenses como ummarco na história dos quilombos no Maranhão, é uma carta do rei de Portugal ao governadorgeral do Estado do Maranhão, Fernão Carrilho, datada de 20 de março de 1702, emresposta à correspondência de 06 de maio de 1701, dando notícias de que: "no certam doRio Turiacú que estavão humas Aldeias de escravos que se tinhão levantado a muitos anose fugido a seus senhores." (sic)

Esse documento foi lido e citado por César Marques, em 1872, e tambémpor Viveiros, em 1954, tornando-se uma referência obrigatória da historiografia regional.Assinala que os chamados "corsos" ocorreram simultaneamente em Turiaçu, Viana eoutras áreas, tal como ocorreria 165 anos depois, quando os quilombolas de SãoBenedito do Céu se deslocaram no sentido de Viana, destruindo fazendas. A menção aAlcântara é inteiramente complementar.

O outro documento detectado é também uma carta, só que do capitão geraldo Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei de Portugal, datadade 16 de novembro de 1752. Nela, o referido capitão geral, que era irmão do Marquês dePombal, tenta estabelecer uma aplicação diferenciada de pena para "índios" e "pretos"capturados num mesmo quilombo, afirmando que os primeiros não deviam ser marcadoscomo os outros. Como justificativa da pretendida distinção, trata os "pretos" comoatomizados, enquanto os "índios" são representados como povo, agregando um limite,qual seja, que é "impossível castigar um povo inteiro". Quatro anos antes da "Lei dasLiberdades dos Indios", já fala em libertação dos índios. A repressão seletiva no períodopombalino se volta principalmente contra os chamados pretos e os caboclos.

O uso do termo "cativeiro" na documentação, referido à condição de escravo,ainda hoje é de uso corrente na região, denominando situações vividas como de opressãoe subordinação5.

A documentação pombalina é mais voltada para medidas produtivas, alusivasà formação das fazendas, ao tráfico de escravos e à comercialização de gêneros agrícolas eextrativos. Não foi encontrado nessa documentação um registro sequer de levantes ouincursões dos quilombolas nas fazendas, embora as matas do Turiaçu sempre estejam nasentrelinhas da captura de escravos e de supostos perigos, e os portos de Cururupu e Turiaçusejam sempre citados nas rotas de contrabando e do comércio ilegal de escravos. Omovimento de escravos por esses portos não passava pelas estatísticas alfandegárias e decontrole oficial (Salles, 1971:41). A concentração de interesses do Estado dinástico, atravésda Companhia Geral de Comércio, no transporte e na comercialização de escravos, resolviaum problema atinente aos empreendimentos agrícolas desde fins do século XVII, isto é,aumentava a oferta de escravos e facultava créditos que fortaleciam a capacidade produtivae os instrumentos repressores ao alcance dos fazendeiros. A expansão das fazendas e ocrescimento da vigilância e dos atos coercitivos podem ter inibido as incursões quilombolas.

Uma terceira forma de registro de quilombos que foi detectada nadocumentação data do período de 1785 a 1793. Trata-se de referências explícitas a"mocambos", "enseada de preto fugidos", "lagos dos mocambos" e "ações de Capitão doMato" que aparecem explicitamente nas cartas de datas e sesmarias que asseguram asconcessões do poder real passadas aos sesmeiros: Ignácio de Araújo Cerveira, em 1785;

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

capitão Manoel Ferreira dos Santos, em 1787; José Alberto da Silva Leitão, em 1788, e Joãode Carvalho Santos, em 1793. No caso da concessão passada ao capitão José de AraújoCerveira, em 1787, a referência é implícita. Nessa documentação colonial, a ocorrência dequilombos antecede, de maneira flagrante, ao próprio registro de sesmarias. Emboraapareçam nos registros oficiais como meros topônimos de acidentes naturais (lago, enseada,rio), a menção à ação repressora de capitão do mato e militares desnaturaliza-os, porquantoevidencia conflito, dotando de vida o que se supõe extinto ou não mais existente. Osregistros dizem respeito ao chamado "Lago do Mocambo" e à "enseada dos negrosfugidos", que corresponderiam a quilombos cujas áreas foram entregues por concessãorégia a sesmeiros que dispunham de escravos e recursos e diziam que as terras eram"devolutas" e que, nelas, ocupação não havia. Trata-se, pois, de doações de sesmarias emterras ditas devolutas e supostamente sem qualquer presença humana, conforme foi citadoanteriormente.

Cotejamos os dados documentais com aqueles da história oral através deduas entrevistas realizadas nas periferias de Alcântara e obtivemos informações que localizamessas áreas próximo ao rio Aurá, ao sul do município de Alcântara, e próximo ao antigopovoado de Peru – que se localiza na chamada "área de segurança da base" e foi deslocadocompulsoriamente pelo Centro de Lançamento de Alcântara, em 1987, para a agrovila quehoje responde pela mesma designação de Peru.

O depoimento de Dona G., nascida em Marudá e atualmente residindo emAlcântara, adianta que:

"G. - Tem a Lagoa do Mocambo que é da terra do Peru. A Lagoa do

Mocambo era do Sítio do Peru. O Peru era junto com a nossa terra.

A nossa terra faz divisão com o Peru. Era um lugar chamado Boca

da Lagoa. Boca da Lagoa era a junção da nossa terra com o Peru.

P. - E a Sra. tem alguma informação sobre esse Lago do Mocambo?

G. - Tem o mocambo... que morava o povo do Peru mesmo. Um

senhor que morreu. O nome dele era João Francisco. Eu não sei o

sobrenome, né? Mas João Papudo era o apelido. Era o dono desta

terra.(...)

É, mas quando nós chegamos naquele Jabaquara, era uma terra que

tinha tapera para todo lado, era preto mesmo. Já tinha morado gente.

Tinha tapera de casa pra todo lado. É... Tinha tapera para todo lado.

Tinha até um lugar que tinha uma tapera...No tempo que meu pai

contava, que no tempo da guerra, no tempo da guerra, que o pessoal

se escondiam mode a pegação, que os soldados que eles pegava o

pessoal pra levar pra guerra." ( G. 22.04.2002 - ENT. 35) (g.n)

Há uma superposição entre os chamados mocambos e os locais de refúgionos períodos de recrutamento obrigatório para prestação de serviço militar, quecompreendem as guerras da Independência, as lutas chamadas "separatistas", do iníciodo segundo reinado, a Guerra do Paraguai e a citada I Guerra Mundial. Mesmo que essareferência histórica à I Guerra possa carecer de exatidão, tem-se uma analogia entrequilombo e "esconderijo", em circunstâncias vividas como de não-acatamento de

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

disposições legais e compulsórias. Senão, vejamos a entrevista de M., representante depovoado:

"Existem algumas taperas no Peru, essas taperas era o lugar onde eles se

escondiam na época da guerra, na primeira guerra mundial. Tinha como

lugar chamado Mucambo. Vocês chegaram lá no Mucambo, no Peru, você

encontra as tapera onde eles habitavam na época da guerra que eles se

escondiam. O Mucambo, São Benedito, Tapera do Padre, Monte Alegre e

Peru de Cima. Esse lugar você pode chegar lá que você ainda encontra

alguma coisa dos pessoal mais antigo, esses escravos que vinham antes.

Então, era tapera, uma como em Alcântara tem aqui hoje tem várias muralhas,

só que lá não tem muralha: eles só corriam para lá nas épocas de guerra.... Lá

era o esconderijo deles." ( M. P. 19.04.2002 - ENT. 11.3). (g.n)

A noção de quilombo como valhacouto abrange, no texto das entrevistasrealizadas, um repertório de termos que designam resistência a atos coercitivos pelafuga e refúgio e contêm simultaneamente referências ao apresamento de índios para otrabalho escravo nas fazendas, ao alistamento compulsório para prestação de serviçosmilitares e à fuga de escravos das fazendas. Nesse sentido, torna-se indissociável determos como pegação e toca, que foram detectados em praticamente todas asentrevistas realizadas e em todas as situações sociais registradas, tais como as chamadasterras de santo, as terras de preto, as terras de caboclo e demais territorialidadesespecíficas.

As próprias histórias dos antepassados são narradas consoante essesmarcos, como frisa o Sr. J. N., 69 anos, que vive em São João de Cortes:

"Bem aqui nós tamos aqui dentro de uma toca. Isso aqui era uma

aldeia, os meus avós, os meus bisavós foram pegados a cachorro

pra poder domesticar. Era índia a minha bisavó e no tempo da

guerra do Paraguai houve aquele povo que tava pegando aquele povo

por dentro do mato para exército, pra entrar pra guerra aí pra fora.

Morreu tanta gente nesse navio sem ter necessidade e quando os filhos

dela, com os netos dela, um dos netos se meteram de baixo da saia

dela, que a saia dela era lá no pé. Se meteram embaixo da saia da velha

que era pra não ir pra guerra. E sem ser eu, outras pessoas daqui

podem também dizer a mesma coisa que eu estou lhe citando, porque

aqui nós tudo somo uma parenteza toda. O povo se olha é tudo jeito

de índio. E a parte indígena e a cidade dessa comunidade foi adoada

pelos índios." (J.N. 20/04/2002 ENT.22) (g.n.)

No mesmo sentido, tem-se o depoimento do Sr. E. A. , 60 anos, que exerceatividade de pesca em Brito:

"Aqui a toca pra ali desse mato, desse mato grosso pra lá, que eu tô

te falando, a gente encontra parte aí de mato, tem um lugar chamado

Tabaquinha (Tabatinga), cansei de achar assim casca de sernambi e

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

osso dentro daquele mato. Eles fugiam ali. Meu pai ele ainda contava

que fugiu, passou seis dias dormindo no mato com medo...Acontece

na vida do ser humano, rapaz, eles tinham medo, quando diziam a

pegação aí todo mundo corria para se esconder no mato. Tinha

criança que entrava no mato e saía de lá era pai de família, assim tem

muito povoado aí só de preto, que fugia aí de Alcântara, ganhava a

mata aí atrás. Então acontecia isto no município de Alcântara." (E.A.

20/04/2002 - ENT. 21.3)

"Eles vinham apanhá o sernambi de noite para levar para comer

com a família no mato, que quando eles fugiram dos brancos, que

branco era perverso, outro não era tão perverso assim como se dizia

e por isso que eles fugiam e iam fazer moradias, hoje tem muito

povoado, no município de Alcântara, porque eles fugiram e os outros

iam fazer suas casas no mato, quando acabou a escravatura, que

foram libertos os escravos, aí esse povoado aí, cada um... ficaram

independentes, ali de Canelatiua, antes do governo chegar com a

base...". (E.A. 20/04/2002 - ENT.21.3) (g.n)

Não importa em que tempo, se no passado ou no presente, asrepresentações de medo e fuga se mesclam na prática dos entrevistados, reatualizandopermanentemente uma forma de resistência aos antagonistas, sejam eles osdenominados brancos ou o Estado. Essas características são em tudo definidoras dequilombo. "A fuga é inerente à escravidão" (Perdigão Malheiro, 1976:34), como jádizia Perdigão Malheiro em 1864, e se é recorrente, assim se mantendo na memóriados entrevistados, é porque tanto é maior o rigor e a perversidade dos atos coercitivosque sobre eles se abatem. O medo, por sua vez, mesmo conjugado com fuga, denotapressentimento de perigo e uma visão aterradora do alcance dos instrumentos derepressão da força de trabalho, que marcaram a sociedade escravista e colonial.

A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX

Pode-se constatar uma expansão dos quilombos em Alcântara, entre 1811e 1837, sem que contra eles tenha sido empregada uma força repressora significativa.As lutas políticas que marcaram a Independência e a adoção de dispositivosconstitucionais, que inclusive extinguiram as sesmarias, se estenderam até fins da década1820-30. Em Alcântara, os fazendeiros, com a derrocada da economia algodoeira ecom sua retirada das fazendas, exerceram predominantemente o monopólio sobredeterminados cargos e funções de representação política. Valendo-se da posiçãopreponderante de Alcântara sobre a região da Baixada Ocidental, centralizaraminteresses e estabeleceram articulações privilegiadas com o poder provincial, atravésdas Juntas Governativas6, e com a Côrte. Em 11 e 16 de agosto de 1823, consignaramatos de juramento de fidelidade e apoio à Independência e ao imperador Pedro I,em cerimônia realizada na Câmara da vila de Alcântara. Representantes de Guimarães,São Bento, Santo Antonio e Almas e Pinheiro se fizeram presentes. As famílias Franco de

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Sá, Viveiros, Ribeiro, Araújo, Costa Ferreira, Araújo Cerveira, Gomes de Castro ocupamcargos proeminentes (presidente da câmara, vereadores, comandante de destacamentosmilitares, tenente-coronel, capitão, alferes e procurador) juntamente com outras famíliasque haviam sido aquinhoadas com concessões de sesmarias no século XVIII. Os própriossesmeiros, mencionados anteriormente, aparecem como signatários dos documentos, bemcomo os futuros barões sagrados pelo imperador, a saber: Severo Antonio de AraújoCerveira, Romualdo Antonio Franco de Sá, Francisco Mariano de Viveiros, Antonio PedroRibeiro, José Ascenso da Costa Ferreira, Antonio Pedro da Costa Ferreira, Jerônimo Joséde Viveiros etc., além de religiosos carmelitas e padres seculares7. O principal teatro deoperações das forças militares encontrava-se na esfera política. Em Alcântara, as fazendasem abandono, administradas por prepostos, evidenciavam uma certa deserção dosfazendeiros. Até 1837, não foram encontrados documentos indicando a mobilização detropas de linha para combater os quilombos em expansão, nem a crescente autonomiaprodutiva dos escravos sob a direção dos prepostos. Isso provavelmente explica por que emAlcântara, e particularmente nas duas freguesias de São Matias e São João de Cortes, nãoforam registradas "fugas em massa" de escravos, tal como ocorrido em outros pontos daregião como Guimarães8, ou grandes rebeliões, como em Viana9. Os escravos, em Alcântara,permaneceram com suas famílias nas fazendas de algodão cultivando e garantindo suaautonomia a partir do processo produtivo. Certamente que o mesmo ocorreu em algumasáreas de Viana, Cajari e Guimarães, em engenhos de membros da denominada "aristrocraciaalcantarense", que não conseguiram mantê-los sob seu controle absoluto. A desagregação deengenhos com formação de quilombos, como nos casos do Engenho Kadoz, da famíliaViveiros, e do Engenho Frechal, da família Coelho de Souza, bem ilustram isso.

Entre 1835 e 1886, detectei registros oficiais de quilombos em todos os tiposde estabelecimentos agrícolas de Alcântara, quaisquer que fossem: antigas fazendas de ordensreligiosas (Itamatatiua e povoados próximos, Mercês), fazendas de algodão (Esperança),engenhos de cana-de-açúcar (Gerijó, Mutiti, Itapiranga, São Maurício e povoados próximos)e fazendas de gado (Tubarão). Detectei registros de história oral de quilombos nessas mesmasunidades de produção e ainda em Flórida, Forquilha, Ladeira, Peroba de Cima, Itapuaua,Samucangaua, Iririzal, Peru, Brito e Itapera. Detectei também registros de quilombos emtodas as territorialidades específicas: nas antigas terras de índio doadas para o santo (SãoJoão de Cortes), nas chamadas terras da santa (Itamatatiua e povoados próximos), nasdenominadas terras de santíssimo (centralizadas em torno de Santana dos Caboclos eSamucangaua), nas designadas terras de caboclo (Peroba de Cima e povoados próximos)e nas chamadas terras de preto. Estas últimas são mais numerosas e abrangem quasetodos os povoados da antiga freguesia de São Matias e quase toda a de São João de Cortes,considerando a interpenetração entre os planos organizativos de tais territorialidades (Geertz,1967:257). Detectei a referência a quilombos em todas as situações caracterizadas por doaçãode fazendeiros, como nas denominadas terras da pobreza (Canelatiua e povoadospróximos) que foram doadas explicitamente e por disposição registrada em cartório,incluindo-se também as doações informais, como seria o caso de Vai com Deus; situaçõescaracterizadas por herança, como seria o caso de Santo Inácio e São Raimundo, situaçõescaracterizadas por aquisição, como seria o caso de Baixa Grande, entre outras.

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Detectei, finalmente, a menção explícita a quilombos em documentos alusivosa todas as quatro freguesias correspondentes a Alcântara no século XIX, quais sejam: SãoMatias, São João de Cortes, Santo Antonio e Almas e São Bento.

As principais fontes documentais e arquivísticas levantadas entre 1837 e 1886concernem a carta de fazendeiro e ofícios de juiz de paz dirigidos a autoridades provinciais,documentos de chefes e subdelegados de polícia, além de procuração passada em cartórioe denúncias de fuga de escravos e de incursões guerreiras de quilombolas. Completam taisreferências interpretações documentadas de historiadores regionais, como César Marques,em 1872, e dispositivos da legislação provincial que focalizam a repressão aos quilombos.

O primeiro desses dispositivos data de 1835 e trata-se da Lei n° 5, de 23 de abril, emque o presidente da província, Antonio Pedro da Costa Ferreira, natural de Alcântara e já mencionadoanteriormente, busca reorganizar o aparato policial da província. Para tanto, institui um Corpo dePolícia Rural, sob as ordens diretas do juiz de paz em cada município, com destacamentos consoanteà necessidade dos distritos tal como informado pelas câmaras municipais. A criação dessa forçamilitar, recrutada nos próprios municípios conforme o Art. 13, volta-se basicamente contra osquilombos e estabelece premiações, além do soldo, para soldados e respectivos comandantes queaprisionarem escravos fugidos em cada distrito. Consoante o Art. 4º:

"Quando no ataque de um quilombo concorrerem dous ou mais

soldados, se repartirá por todos eles com igualdade as somas das gratificações,

que se houverem de pagar pelos escravos aprehendidos." (sic)

A reestruturação do aparato militar e as denúncias que começam a serencaminhadas aos juizes de paz a partir daí evidenciam um certo grau de consolidação dosquilombos na província do Maranhão e notadamente em Alcântara. Aqui, ao contrário dasdemais regiões do Maranhão, as tropas de linha imperiais, preocupadas em enfrentar astropas dos chamados Balaios, não tiveram qualquer participação maior. A partir do Valedo Itapecuru, quase toda a província estava imersa na guerra da Balaiada, entre 1839 e1841. Foram capturados por Caxias cerca de 3.000 quilombolas dos 11.000 balaios feitosprisioneiros. Os quilombos de Alcântara ficaram relativamente à margem desses entreveros,porquanto não constituíam ameaça direta ao poder político. De igual modo, as escaramuçasem Alcântara são esparsas, não se registram grandes combates nas proporções dos que, em1855, marcaram a campanha militar no Turiaçu, ou tal os de 1866, que levaram aoaprisionamento de uma centena de quilombolas de São Benedito do Céu, quando saíamdas matas do Turiaçu em direção a Viana. A despeito disso, tem-se uma regularidade deocorrências que deixam entrever uma resistência constante e uma expansão sobre as áreasem que a cultura do algodão foi desaparecendo. A dispersão dos quilombos por todaAlcântara bem traduz esse movimento ascendente que vai tornando cada vez mais indistintaa produção deles daquela que os escravos mantêm para si nas fazendas ainda controladasparcial e precariamente pelos feitores e encarregados. As ruínas das antigas fazendas, apagandoas diferenças entre domínios formais e ocupações efetivas, constituem um cenário comumpara essas modalidades de acamponesamento que convergem para um mesmo processode territorialização. O quadro das páginas seguintes arrola os registros levantados no decorrerdos trabalhos de perícia, que evidenciam como os quilombos foram focalizados peladocumentação administrativa no período imperial.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Em 1837, mediante a denúncia do fazendeiro de Alcântara Raymundo daConceição Lemos ao vice-presidente da província, Joaquim Franco de Sá, também fazendeiroem Alcântara, não é difícil constatar, pela recusa explícita dos soldados em procurarem osescravos fugidos, a fragilidade do aparato repressivo. Os soldados alegavam que não iriamparticipar da captura dos escravos fugidos devido ao fato de "terem trabalhado um anointeiro sem terem sido (serem) pagos". Pela quantidade e dispersão dos quilombos, pode-se verificar que as gratificações previstas em lei não pareciam suficientes para animar atropa, obrigando os fazendeiros a empreender a busca com milícia privada formada porseus próprios "escravos de confiança". O sentido de quilombo nesse documento é tomadocomo sinônimo de unidades de moradia dos escravos fugidos, reproduzindo a noçãodifundida pela legislação colonial10 e pelos relatos militares. O denunciante se refere a fatosocorridos no distrito de Carvalho, onde já não se plantava mais algodão em 1819, conformeatesta o coronel Pereira do Lago, descrevendo tal distrito:

"Todas estas terras pouco já servem para algodão, mas só para

mandioca. Onde chamam Carvalho é um istmo de ½ légua entre o fim

de dois rios, ao norte pelo do Carvalho, ao sul pelo Tucupai, de sorte

que as cargas que vem do Pericumã descem por este rio, entram no do

Carvalho, descarregam atravessando ½ légua e tornam a embarcar no

Tucupai para chegarem a Alcântara." (Pereira do Lago, 2001:34) (g.n.)

Na Fazenda de Tammata-tira (Itamatatiua), que pertencia à ordem doscarmelitas antes do período pombalino e que ainda estava arrolada entre os bens doConvento do Carmo, local das principais ocorrências, tem-se que os quilombolas ameaçamtomar o controle do encarregado das terras. Na outra fazenda de Felipe Joaquim Viegas,no Tubarão, tem-se que a incidência dos quilombos, bem próxima à sua moradia, precedeao registro das terras que teria ocorrido em 28 de maio de 1855 conforme o livro dosregistros paroquiais n° 01, folha 10. Os outros povoados citados são Rio Grande e Mucajuba,onde o denunciante registrou roubo de gado e ameaças de morte a vaqueiro.

Neste mesmo março de 1837, o juiz de paz reitera a denúncia dos quilombosno 5º distrito em novo documento ao vice-presidente da província e reafirma o envio dosarmamentos necessários para a sua dispersão.

No período da Balaiada, não se registram movimentos de tropas em Alcântaracombatendo os quilombos. No ano de 1844, após o término da guerra e dentro da políticado governo provincial de reintroduzir o "hábito e a disciplina de trabalho nas fazendas", osguardas campestres instituídos pela Lei Provincial n° 44 já se achavam estabelecidos naSubdelegacia de Alcântara para punir a vadiagem nos campos. Então, já havia um projetode reinstalar em Alcântara engenhos de açúcar e comercializar a produção. A insuficiênciados guardas campestres em face da amplitude da ação quilombola leva o governo provinciala aprovar novos instrumentos repressivos. Em 1846-47, ocupando a presidência da provínciao alcantarense Joaquim Franco de Sá – filho do sesmeiro Romualdo Franco de Sá e genrode Antonio Pedro da Costa Ferreira, que também governara a província em 1834-35 e queinstituíra a polícia rural –, define como política de governo a implantação de engenhos deaçúcar na província. Antes, porém, através da Lei n° 236, de 20 de agosto de 1847, intenta

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reorganizar os dispositivos de repressão aos escravos fugidos. Para debelar os quilombos,através da autoridade do juiz de paz, disciplina a ação dos capitães do mato instituindo umaforça repressiva com pelo menos dois capitães por distrito, sendo que cada um deles nãopoderia dispor de mais de cinco soldados. Nota-se um misto de força regular e milíciaprivada animado por uma classificação dos quilombolas aprisionados em três diferentessituações, às quais correspondem gratificações distintas:

"Art. 5 - Os Capitães do Mato perceberão vinte mil reis por cada escravo

que for achado em quilombo; dez mil reis pelo que andar a corso, e dois

mil reis pelo que for achado nas cidades, Vilas ou povoações e até uma

légua de distância das mesmas."

Tais gratificações são bem mais elevadas do que aquelas instituídas pela Lei n°5, de 23 de abril de 1835. Excedem-nas em 100% nos dois primeiros casos aventados, casosejam tratados em separado os soldos. Além disso, o Art.9o previa que os capitães do matodeveriam receber as gratificações anunciadas e prometidas pelos senhores, enquanto o Art.10 dispunha que os quilombos tornavam-se presa de guerra, ou seja, todos os objetosencontrados nos quilombos seriam distribuídos entre os capitães do mato e seus soldados.Em outras palavras, havia uma escassez de força de trabalho para os empreendimentosaçucareiros e o tráfico de escravos, começando a enfrentar obstáculos legais, já não asseguravamais uma oferta regular, o que aumentava consideravelmente o preço dos escravos, tornandoa captura de escravos fugidos um negócio alta rentabilidade. Consoante os entrevistados deItapuaua, seus avós narravam casos em que fazendeiros chegavam a roubar escravos unsdos outros:

"Disse que tinha o preto vigia, que eles tinham medo do preto, esse que

vigiava... se fizesse alguma pegação, ele saía de noite ia dizer pro

branco. Puxava, dizem que ele puxava uma corda assim aí vinha o branco.(...)

– O caçador caçava quem?

– Eles roubavam um do outro. Os brancos eles roubavam preto um do

outro. Eram três irmãos, da família Araújo, na Esperança, no Mutiti e

abaixo." (A.C.A.ou A.T. 21/04/2002 - ENT. 23.1)

Em virtude da aludida escassez, os fazendeiros, que pretendiam estabelecerengenhos com maquinarias inglesas e norte-americanas, passavam a ter interesses maisimediatos no resultado da ação das milícias. Os quilombos são vistos, nesse momento,como depósitos de mão-de-obra. A referida lei preconiza, inclusive, a montagem de umcadastro de escravos fugidos atualizada a cada ano.

Nesse contexto, a legislação provincial maranhense procede a uma revisãono conceito de quilombo, estreitando-o severamente e adequando-o às novasnecessidades produtivas. Afasta-se da quantidade mínima de escravos fugidos, requeridanos dispositivos coloniais, que correspondia a cinco, reduzindo-a drasticamente paradois. Os mecanismos repressivos aumentam e o quilombo passa a ser definido pelo"escravo aquilombado", restringindo o sentido de reunião tão recorrente nadocumentação administrativa colonial.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

"Art. 12o - Reputar-se-á escravo aquilombado, logo que esteja ao interior

das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião

de dois ou mais com casa ou rancho."

Ao aprovar essa lei, a Assembléia Legislativa Provincial se coloca nos debatesque precedem a Lei de terras de 1850 e que se desenrolam desde 1839 com participaçãodestacada dos parlamentares alcantarenses. Entre os fazendeiros, havia grupos com interessesdiferenciados: os sesmeiros que tinham suas posses confirmadas, os que não possuíamconfirmação e os que se mantinham na condição de simples apossamento (Shiraishi, 1998:28).Como as listagens correspondentes aos registros de terras em Alcântara, expedidos entre1777 e 1816, arrolam menos de 25 nomes, pode-se imaginar que a última situaçãocompreendia um número mais elevado de fazendeiros, que não se atinham às extensõesusualmente concedidas e às exigências legais do período imperial, e é nesse sentido quepoderia ser lida a manifestação do senador Franco de Sá nos debates parlamentares entre1841 e 1843, sobre o tamanho das propriedades, autodefinindo-se como representante da"classe dos posseiros" (Carvalho, 1981:39).

Com a Lei de Terras de 1850 e com a organização por freguesia dos registrosdas terras, foram instituídos os "registros paroquiais" ou "registros do vigário" (Shiraishi,1998:26), que consistiam em autodeclarações. Nesse contexto, aumenta significativamente ototal de registros. Em três freguesias de Alcântara – São Matias, São João de Cortes e SantoAntonio e Almas – foram registrados, entre 1854 e 1857, 345 imóveis rurais, isto é, 135registros na primeira, 25 na segunda e 185 na outra.

Registro de terras segundo declaração do possuidorAlcântara (São Mathias): 1854 - 1857

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Registro de terras segundo declaração do possuidorAlcântara (Santo Antônio e Almas): 1854 - 1857

As informações sobre o tamanho das áreas foram freqüentemente omitidas:apenas 49 na primeira, 14 na segunda e 68 na terceira freguesia. A maioria dos queforneceram tal informação situa-se abaixo de 200 hectares e, no caso de Santo Antonioe Almas, a metade estaria abaixo dos 100 hectares e apenas seis acima de 1.000 hectares.Em São João de Cortes, apenas quatro acima de 1.000 hectares, e em São Matias, setesomente. Em suma, os que pretendiam maiores extensões não declararam o tamanho desuas áreas, cingindo-se tão somente a referências vagas. Antonio Onofre Ribeiro, irmãomais velho do Barão de Grajaú e que inclusive o havia criado (Viveiros, 1975:113), limita-

Registro de terras segundo declaração do possuidorAlcântara (São João de Cortes): 1855 - 1856

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se a declarar o seguinte no Livro 02 , folha 12, em 02 de maio de 1856: "várias posses".Da mesma maneira procede o Comendador José Maria Correia de Souza, sogro doBarão de São Bento, em cujas terras da Fazenda S. José o historiador Viveiros assinalapresença de escravos fugidos e mocambo (Viveiros, 1955). Nas denominações de pelomenos duas fazendas, o termo "preto" aparece como sufixo; "Ponta do Preto", registradaem 5 de maio de 1856, por Jerônimo José Mirubins, e "Cabeça de Preto" registrada emmaio de 1856 por Carlos Felipe Coelho. No registro de Aruhu (Uruhu), na freguesia deS. João de Cortes, em 25 de maio de 1856, aparecem como proprietários: "IgnácioAntonio Dias e diversos pobres". Essa área constitui hoje uma das territorialidadesespecíficas assinaladas respondendo pela designação de Terra da Pobreza. As fazendasEngenho Castelo e Tapera, de onde fugiam os escravos para o mocambo localizado naEsperança, próximo a Itapuaua, foram registradas, em 30 de abril de 1855, por SeveroAntonio de Araújo Cerveira Filho. Obtive essa informação sobre a fuga de escravos deCastelo para Esperança entrevistando A.C.A., de 78 anos, que indicou o local do"Mucambo" também tratado por toca (A.C.A.21/04/2002 - ENT.23.1). Dessas fazendas,fugiram também escravos que foram para o quilombo de São Sebastião, em Pinheiro,conforme entrevista realizada por Viveiros com um dos quilombolas remanescentes,transcrita pelo periódico Cidade de Pinheiro de 12 de junho de 1955. Este quilombolachamado Silvério, que fora escravo de uma das netas do Comendador José Maria C. deSouza, narrou para Viveiros como se dava o processo de trabalho no quilombo. Ohistoriador registrou, sem maiores explicações, que se dava em "moldes cooperativistas".*

O Convento de Nossa Senhora do Carmo registrou as chamadas Terras

de Santa Tereza, onde se localizavam inúmeros quilombos em torno de Itamatatiua,tal como registrado em 1837 pela polícia rural, como Fazenda Tamatatiua (livro 01, fl.56, datado de 1857). A Irmandade do Santíssimo Sacramento registrou, em 30 dejunho de 1856, no Livro 02, folha 19, uma terra sem denominação e sem a extensãoem hectares, que corresponderia às áreas designadas terras de preto, onde se localizamos antigos quilombos que abrangiam Ladeira, Samucangaua e Iririzal. Ora, à épocadesse registro, Bellarmino Mattos, a partir de verificações in loco, relata o seguinte sobreItamatatiua:

"Os religiosos tem ali muitos escravos, alguns oficiais de pedreiro,

carapinas, oleiros, bastante porção de terras de lavrar com matas, de muitas

madeiras de lei, e nas mesmas terras tem grande número de foreiros,

e algumas pessoas recebem grátis o asylo." (Mattos, 1861:34).

A relação da Ordem do Carmo com os escravos considerados insubmissosjá foi examinada no capítulo sobre as ruínas intitulado "Muralhas e Paredões". Em outraspalavras, tais terras eram um recurso aberto com uma pluralidade de posses. As informaçõesdos entrevistados sobre as chamadas terras de santíssima indicam que para ali se dirigiramos escravos fugidos dos engenhos Gerijó e Mutiti. As terras dos mercedários não aparecem

* Trecho do artigo mencionado encontra-se transcrito na nota ao quadro "Quilombos em Alcântara: Registros

burocrático-administrativos (1800-1886)". (n.e)

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nos registros paroquiais, mas a Fazenda das Mercês desde 1819 aparece como de incidênciade quilombos, como bem o demonstra a documentação transcrita no quadro demonstrativojá exibido. B. de Mattos afirma que as terras de Sant'Ana, vizinhas a Itamatatiua, dos religiososmercedários, também tinham foreiros (Mattos, 1861:34). Ou seja, para além da escravidão,já estava vigindo nessas terras a figura do aforamento e da posse, com documentação váriaassinalando isso.

A família Ribeiro – ou seja, Maria Francisca, Rita Quitéria, Carlos Pedro eoutros – registrou, no decorrer de 1857, sem mencionar o número de hectares, a áreadenominada Jarucaia, que corresponderia ao quilombo do mesmo nome assinalado pelastropas de linha desde os anos 1834-38. Outras áreas correspondentes às terras de preto,que compreendem os povoados de São Mauricio, Santa Rita, Arenhengaua, São RaimundoII e Santa Bárbara foram igualmente registradas. Constata-se ainda que algumas das chamadasterras de caboclo, como Cujupe e Bacuriajuba, foram registradas por clérigos, a saber, oPadre José Aureliano da Costa Leite e o Padre José Ribeiro Martins. A perspectiva deorganização de um mercado de terras parece ter levado os que fizeram os registros aprocederem de modo formal sem que efetivamente tivessem qualquer benfeitoria nasrespectivas áreas ou sem que de fato as controlassem. A precariedade das informaçõesautodeclaradas talvez possa reforçar isso, contribuindo para evidenciar que os quilombosprecederam aos registros de propriedade, já que as sesmarias eram consideradas possespelo direito agrário do período imperial. Ocorre, entretanto, que a propriedade da terra erapré-condição para se ter direitos políticos, como sublinha Faoro, destacando a eleição de1886 em que os eleitores habilitados representavam apenas 0,89% da população brasileira.A cena política e a magistratura eram dominadas pelos interesses agrários.

Não se pode dizer, contudo, que não havia atividade econômica nos 13engenhos da freguesia de São Matias e nos cinco de Santo Antonio e Almas, que usufruíramde incentivos do governo Franco de Sá, em 1846-47, e mantiveram a produção até osanos 1860-70. O Barão de São Bento, Francisco Mariano Viveiros Sobrinho, apareceregistrando o Mutiti, em 04 de outubro de 1855, enquanto que Manuel Gomes de Sáhavia registrado outra parte dele em 14 de fevereiro do mesmo ano. A tentativa desoerguimento dos engenhos teve vida efêmera, não obstante terem sido importadosequipamentos e erguidas edificações grandiosas como ainda deixam entrever as ruínasdo Gerijó. Tanto o Gerijó, quanto o Mutiti, não obstante terem se tornado objeto detransações de compra e venda, tiveram quilombos e se constituem hoje em situaçõessociais designadas como terras de preto. A contradição entre os registros formais e oreconhecimento de fato das territorialidades específicas mencionadas permite constatarque não havia resistência através de posses individuais, nem de povoados de per si, senãode vários povoados que se interpenetravam, através de relações sociais comunitárias,constituindo as chamadas terras de santo, terras de santíssimo, terras de preto, terras

de caboclo. Diferem sob este aspecto da chamada terra da pobreza, que foi instituídaem cartório num ato de doação do proprietário, cuja certidão constitui um dos anexosdesta perícia.* Diferem também daquelas situações que, embora designadas como terra

* Esse documento pode ser consultado no Volume 2. (n.e)

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de preto, foram objeto de doação ou de sucessão, formal ou informal, do grandeproprietário, tais como: Santo Inácio,Vai com Deus, São Raimundo I e parte de Itapuaua.Diferem ainda daquelas situações designadas como terra de preto que foram objeto deaquisição por alforriados, como Mutiti, Baixa Grande, parte de Itapuaua. Estes últimosse valeram do mercado de terras para legitimar antigos quilombos, ou seja, compraramo título formal de terras em que já cultivavam centenariamente. Em virtude disso é que setorna temerário asseverar que quando da chamada "Abolição da escravatura", em maiode 1888, já se encontra um quadro relativamente definido no que tange à estrutura agrária.A relação dos registros paroquiais transmite assim a ilusão de ordenação fundiária e detitulação definitiva, resultando numa aparente destruição dos quilombos. Não é por acaso,portanto, que os mapas hoje elaborados pelo Centro de Lançamento de Alcântara tratamtodos os povoados e territorialidades específicas como "fazendas", como se de fato ofossem ou assim o tivessem sido. A realidade da representação cartográfica endossa aprecariedade dos registros autodeclarados, deficientes de informações elementares,tentando transformar em realidade as ficções sobre fazendas que já não mais existiamefetivamente em 1850.

Em suma, pode-se pontuar que, objetivando a estruturação formal de ummercado de terras, com prevalência de aquisições de terras públicas em detrimento dequaisquer doações ou concessões que porventura favoreçam as pequenas posses, tem-seum estímulo à formalização das terras de fazendeiros, mesmo que não as estivessemocupando efetivamente. O ato de formalização mostra-se coextensivo a uma ação repressivacontra pequenos ocupantes, entre 1848 e 1853, em todo o Maranhão, antecedendo aoinício dos "registros paroquiais", que data de 1854. A estratégia de formalização jurídicaarticula-se com aquela da implantação dos engenhos de açúcar. Após as ações repressivasautorizadas por Franco de Sá, enquanto presidente da província, tem-se ações contraquilombos da freguesia de São Bento, que então pertencia a Alcântara. Os juízes de paz deVila Nova de Pinheiro e de São Bento, em 16 de julho de 1850, solicitam reforços aopresidente da província, Honório P. de Azevedo Coutinho, nos seguintes termos:

"Que se nos faz muito preciso, se nos der auxilio a fim de destruímos

certos quilombos que temos em nossos distritos, tanto assim que chegam

a impedirem as estradas para o trânsito dos viajantes, estes malvados são

aquilombados para as margens do rio do Turi, e frequentão todo este

continente..." (g.n.)

Em 1853, sucedem as campanhas de destruição de quilombos autorizadaspor Eduardo Olimpio Machado, também presidente da província. Elas priorizam a regiãode Turiaçu (Marques, 1878:11) e suas ramificações por Viana, Guimarães e Santa Helena,alcançando áreas de beira-campo, em Pinheiro, com as quais interagiam economicamenteos quilombolas de Alcântara.

Segundo os relatos de César Marques, após essa perseguição que foicomandada pelo capitão Guilherme Leopoldo de Freitas, e após, também, pode-se agregar,terem cessado os registros de terras, os quilombos voltaram às suas formas de ocupaçãoefetiva e estável, assim descritas pelo próprio C. Marques:

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"...viviam eles estabelecidos em povoações mais ou menos regulares

entretendo relações com regatões ou com a gente dos povoados, ou

então vivendo isolados em ranchos situados nas clareiras dos bosques,

evitando cautelosamente todo o contato com a gente de fora, e cuidando

exclusivamente da agricultura." (Marques, 1878:6) (g.n.)

A descrição sugere relações sociais comunitárias consolidadas e uma práticade tratos agrícolas como atividade principal dos quilombos, combinada com acomercialização da produção.

O presidente da província, Lafayette Rodrigues Pereira, autorizou diligênciaem Alcântara contra o quilombo de Jurucaia (Jarucaia), a partir de denúncia do assassinatode Antonio Fernandes Paes "atribuído aos quilombolas", consoante o texto do documentodo chefe de polícia de 11 de maio de 1866, que assim dispõe:

"Em resposta ao seu ofício de 9 do corrente em que V.Sa. da parte do

assassinato de Antonio Fernandes Paes, atribuído aos quilombolas

de Jurucaia, tenho a dizer-lhe que nesta data expeço ordem ao

Encarregados dos Armazéns de artigos bélicos para que remeta ao

Delegado de Polícia do termo de Alcântara sessenta armas e dois mil

cartuxos para a diligência que tem de fazer o mesmo Delegado com o

fim de bater os referidos quilombolas e descobrir o assassino..." (g.n.)

Em 1867, ocorreram as campanhas militares mais intensas contra os quilombosordenadas pelo presidente da província Franklin de Menezes Dória. Além do combate aoquilombo São Benedito do Céu, várias ações foram empreendidas em todo o Maranhão,chegando ao Pericumã:

"Não descuidou-se a Presidência de dar outras ordens, de prevenir certos

acontecimentos, de traçar, para assim dizer, o plano do cerco, do ataque e

da destruição dos quilombos.

Tudo isto vemos e analysamos, por termos à nossa disposição, para

maior facilidade de nossos estudos históricos, o arquivo da secretaria de

governo desde a presidência do conselheiro Antonio Manuel de Campos

Mello, pelas razões já mencionadas não as publicamos.

Receiando que os calhambolas perseguidos fossem em suas correrias

atacar, ou pelo menos asylar-se em S. Bento, S. Vicente Ferrer, Paraná,

Santa Helena, Villa Nova de Pinheiro e Pericumã, para alli dirigiu suas

vistas, e foi isto de proveito porque além de por os habitantes d'estas

localidades em movimento afim de receberem a agressão, deu ordem para

aumentar os destacamentos, e ser-lhes fornecido armamento com a

competente munição e correame." (Marques,1878:16) (sic)

Menezes Dória, percebendo que a ação de suas tropas não era bem recebidanos povoados e vilas porquanto elas praticavam também o alistamento compulsório para

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serviços de guerra, mais conhecido localmente como pegação, foi impelido a suspenderesse recrutamento em Viana, Guimarães, Santa Helena, Turiaçu, Cururupu, São Bento eS.Vicente Ferrer (Marques, 1878:17). Constata-se, nesse sentido, que nas regiões próximas aAlcântara as ações de combate aos quilombos foram realizadas concomitantemente comaquelas de recrutamento obrigatório, confirmando a relação estabelecida nas narrativas dosentrevistados que tratam segundo uma inseparabilidade a noção de quilombo daquelas depegação e toca. As tropas de linha, quando empreendiam ação contra os quilombos,eram abastecidas com suprimentos e víveres muitas vezes saqueados de comerciantes esegmentos mais remediados dos povoados. Casos de entregas forçadas de produtos agrícolase confisco de colheitas contribuem para a descrição da rapina promovida pelas tropas delinha. Isso, por um lado, indispunha os habitantes desses povoados com as tropas, queeram mais temidas do que os quilombolas, e, por outro, os aproximava solidariamente dosquilombos não apenas nos circuitos de troca de produtos. Marques menciona como "presose processados os indivíduos coniventes com os calhambolas" (Marques, 1878:19), quemantinham relações comerciais com eles, que inclusive os avisavam da chegada das tropas.Esse fato reforça a interpretação de que havia um repertório vasto de relações sociaiscomunitárias interligando os povoados erigidos sobre as ruínas das fazendas e os quilombos.As fugas funcionavam também como uma forma de interlocução entre escravos dediferentes freguesias e termos. Localizei, nesse sentido, procurações passadas por fazendeiroscomo Jerônimo José de Viveiros, em 03 de dezembro de 1868, a seu bastante procuradorpara recuperar junto à justiça de Viana um escravo fugido e seus descendentes. Da mesmamaneira, haviam relações entre os escravos dos engenhos, como Castelo e Gerijó, e osquilombos de Pinheiro (São Sebastião) e de Alcântara mesmo, como o de Jarucaia. Asfronteiras de separação entre eles mostravam-se tênues mediante o absoluto abandono dasfazendas após o malogro dos engenhos de açúcar reinstalados a partir de 1847.

Em contrapartida, os objetivos econômicos da ação bélica de Menezes Dóriaaparecem em seus próprios pronunciamentos transcritos por César Marques:

"que era de interesse da ordem pública, para a lavoura, para a civilização

em summa, obrigar os calhambolas a voltarem à obediência e

aos hábitos da vida regular, perseguindo-os nos seus próprios asylos,

perdidos no interior das florestas." (apud Marques, 1878:17) (g.n.)

Por contraste com essa visão imobilizadora da força de trabalho que caracterizaa sociedade colonial, tem-se o reconhecimento implícito pelo próprio historiador C. Marques– que é membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e um dos biógrafos deFranklin de M. Dória, Barão de Loreto e ministro da Guerra em 1882 – do sistema produtivoprevalecente nos quilombos:

"Era poderoso e difícil de ser batido (o quilombo de São Benedito do

Céu) pela sua posição nas matas do Tury-Assu, pelas comodidades de

suas habitações, pelos vigias, cautelas e espécie de fortificações, e pelas

suas roças em tudo variadas e em tudo abundantes.

Para este estado de tranqüilidade e de trabalho muito concorreu o não

serem perseguidos desde 1858." (Marques, 1878:17) (g.n)

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Os quilombos, considerados como lugar de roças e assim reconhecidos pelosnarradores oficiais das façanhas bélicas dos que buscavam destruí-los, explicitam um conflitoentre diferentes sistemas produtivos. De um lado, a produção de gêneros alimentícios baseadano trabalho familiar e em formas de cooperação simples, com as famílias praticando umareciprocidade positiva, mantendo uma relação de uso continuado e de preservação dosrecursos naturais, e referidas às praças de mercado locais; de outro lado, os grandesestabelecimentos agrícolas monocultores com uso massivo de trabalho escravo, voltadospara o mercado metropolitano. Ora, em Alcântara, esse já era o quadro de contradiçõesdesde finais do século XVIII e início do século XIX que pendeu para o processo produtivoautônomo dos quilombos com a derrocada absoluta das grandes plantações de algodãoque jamais foram recompostas, nem sequer numa tentativa de políticas governamentaisdirigidas setorialmente, como teria sido o caso dos engenhos de açúcar em Alcântara apartir de 1847-48.

Os quilombos são apresentados, todavia, também como lugar sórdido onde,pela "indisciplina", que pode ser lida como recusa ao trabalho escravo, aglutinavam-se osque transgrediam as leis:

"Para estes antros, para estes abrigos, todos os dias acolhiam-se, segundo

participações oficiais que temos à vista ‘os pretos, seduzidos e desvairados

por falsas idéias de emancipação, insidiosamente incutidas em seus

animos por miseráveis traficantes, que entretendo com eles sórdido

commercio, costumam fornecer-lhes armamento e munições’ e além

disto a elles se agregam desertores e outros criminosos d'esta província

e da do Pará, a cujo território pertenceu o Tury-Assu até 1852..." (Marques,

1878:18)

As atividades de comércio eram intensas e esses quilombos persistiram emantiveram suas delimitações territoriais e sua identidade em virtude desse tipo derelação, mantida permanentemente nas fronteiras de seus domínios, que quebrava comqualquer idéia de isolamento e insularidade.

Assim, não obstante as campanhas militares do Barão de Loreto, em 1871,em Mensagem à Assembléia Legislativa, o presidente da província, José Augusto OlímpioGomes, informava sobre a fuga de escravos das fazendas do Turiaçu, Santa Helena e S.Bento para se reunirem aos quilombos ali existentes. Em 1876, o major Honorato CandidoFerreira Caldas, do 5o batalhão de Infantaria, realiza ação contra quilombos em Viana eSão Bento. Para lá se dirigindo, realiza "uma ligeira digressão" em quilombo próximo àcidade de Alcântara, ou seja, o quilombo é pretexto para uma manobra diversionista. Orelatório do referido major foi transcrito pelo Diário do Maranhão de, domingo, 11 dejaneiro de 1877:

"... na qualidade de major fiscal, com destino à cidade de Alcântara,

onde o mesmo exm. Sr. Senador (Frederico de Almeida e

Albuquerque), de acordo com o dr. Chefe de polícia, entendeu

conveniente que eu fizesse uma ligeira digressão com o fim, se não

bater um pequeno mocambo que lhe constava existir a pouca

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distância daquela cidade, de distrair por um lado as vistas

indiscretas que porventura pudessem malograr o bom êxito de

minha empresa". (g.n.)

O Relatório do presidente da província do Maranhão, senador Fredericode Almeida e Albuquerque, de 1876, afirma, entretanto, que, com a retirada das forças delinha do 5o Batalhão, habitantes de Pinheiro e da freguesia de Santo Antonio e Almasvoltaram a solicitar apoio militar para conter as "correrias" dos quilombolas. Não sepercebe qualquer menção explícita a Alcântara como objetivo de qualquer campanhamilitar específica. Mesmo a ação de 1878, ordenada por Carlos Fernando Ribeiro,alcantarense, presidente da província, e proprietário do engenho Gerijó, é dirigida contrao quilombo do Limoeiro, no Turiaçu (Almeida, 1883:184). Em conformidade cominformações coletadas por Shiraishi, um quilombo teria se formado em áreas do próprioGerijó:

"Segundo a escrivã substituta, Maria Benita, a área denominada Ladeira

pode ser aquela que está na área denominada Gerijó Velho e Gerijó

Novo. Ela defende a tese de que os negros fugiram da área denominada

Bacuriajuba, legado do Padre José Ribeiro Martins, e formaram um

quilombo de nome ladeira na área de Gerijó Velho e Gerijó Novo."

(Shiraishi, 1998b:17).

As atenções oficiais parecem sempre temer um perigo que emana das matasdo Turiaçu, perdendo de vista a consolidação de um sistema produtivo contrário aoescravismo naqueles domínios que formalmente imaginavam como ainda das antigasfazendas. Os mandatários provinciais, que eram reconhecidos formalmente como grandesproprietários territoriais em Alcântara, acreditavam nos seus próprios mitos, ou seja, nailusão de que controlavam efetivamente suas fazendas. Em Alcântara, entretanto, aconsolidação dos quilombos ganhara um novo impulso com a desagregação dosempreendimentos açucareiros nos anos 1860-80, que levaram inclusive à extinção domaior deles, o Engenho Gerijó. Consoante as narrativas, a este tempo, em 1861, apopulação da freguesia de São Matias, onde se localizava a sede municipal, era constituídade mais de 56% de escravos e de um percentual acentuado de alforriados (Mattos, 1861)e a própria cidade de Alcântara já se encontrava em estado de abandono, consoante omesmo Bellarmino de Mattos em seu Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial

de 1861: "Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e as ruas nuas de viandantes."(Mattos, 1861:24)

Os demais documentos levantados até 1886 referem-se a procuraçõespara resgate individual de escravos ou às dificuldades de deslocar tropas para combaterquilombos, com as autoridades da burocracia imperial transferindo responsabilidadesde captura para os próprios fazendeiros de Santo Antonio e Almas e São Bento. Oaparato repressivo oficial encontrava-se nos seus estertores e o controle efetivo daprodução agrícola em Alcântara, já bem antes da abolição formal da escravatura, estavanas mãos das comunidades de quilombo erigidas sobre as ruínas das fazendas.

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O processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilomboem Alcântara, cabe repetir, não pode ser pensado consoante um desenvolvimento linear ecumulativo. Há descontinuidades historicamente determinadas e de sentido aparentementeparadoxal que convergem para a formação de um território étnico. As territorialidadesespecíficas, que o constituem, foram construídas de modo diferenciado, como foi possívelobservar com as chamadas terras de santo, terras de preto e terras de caboclo. Damesma maneira que as chamadas terras de santo abrangem situações sociais referidas aordens religiosas e irmandades distintas, que foram afetadas desigualmente pelo Estadodinástico em diferentes momentos históricos – como, por exemplo, os jesuítas, em 1758, eos carmelitas e mercedários, em 1821 –, tem-se que os povoados que se agrupam naschamadas terras de preto e as terras de caboclo também compreendem uma diversidadede situações. As diversas formas de acesso à terra, que se dispersam em face delas, concorrempara uma descrição sumária dessas diferenças. Doações de terras, aquisições, ocupaçõespor abandono ou através de conflitos explicitam as referidas dinâmicas de autonomia e asmodalidades segundo as quais se formaram os grupos sociais a elas referidos.

Verifica-se, assim, que, para além das doações apontadas anteriormente comotendo sido feitas dos "índios para os santos" ou "dos índios para os pretos", há aquelas emque o fazendeiro é apontado como tendo doado formal ou informalmente terras a escravose ex-escravos. No mesmo sentido, há casos de aquisição de terras e há distintos casos deocupação abrangidos pela denominação terra de preto. Ademais, numa mesma forma dedomínio, ou seja, numa mesma territorialidade, não se tem uma e apenas uma rede deparentesco, como se procurará expor adiante.

As doações de terras

Em se tratando de doação, pode-se destacar, nos relatos dos entrevistados,que são narrados como atos tanto antecedentes quanto concomitantes àquele da aboliçãoda escravatura, de 1888. Tais narrativas, ao enfatizarem a condição de ex-escravos e de "libertos",evidenciam um grau de percepção jurídica de sua posição, já que nenhuma lei garantia aoescravo o pecúlio ou a propriedade de bens móveis ou imóveis, ou mesmo a sucessão.

Para efeito de ilustração, selecionamos quatro situações relativas a doação quese referem a povoados – Santo Inácio, Vai com Deus, Itapuaua e São Raimundo II – que

Os territórios de parentesco

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se localizam nas denominadas terras de preto do noroeste ao sudeste do município deAlcântara, descrevendo uma diagonal. Sem qualquer pretensão de estabelecer regras dedescendência unilinear, passarei a descrever as situações verificadas. Os laços de parentescoem Santo Inácio e São Raimundo II são traçados pelo lado das mulheres1, em Vai comDeus e Itapuaua pelo lado masculino. No caso das mulheres, elas são vinculadas implícitaou explicitamente às famílias dos senhores. Na situação de Santo Inácio, Laurencia, aonascer, embora classificada pelos dispositivos coloniais como "filha natural", é filiada aogrupo de parentes, também por intermédio do pai, através de uma relação de patronagem,o que lhe provê uma série de direitos de descendência.

"Santo Inácio foi uma posse de terra que foi doada pelos brancos a

uma escrava Laurencia que, após a liberdade da escravatura, o branco

disse que doou. Dr. Carlos doou à sua filha Laurencia. Ele

coabitou com uma escrava e doou parece que foi duas, três posses

de terra e a Santo Inácio foi uma das tais que era bem pertinho e a

fazenda dele era ali no Gerijó, fica bem ali entre Santo Inácio e onde

hoje tem as muralhas, os marcos estão lá, os casarões.

A minha avó já era parece neta ou bisneta da Laurencia." (P.F.C. 12/04/2002

- ENT. 01 ) (g.n.)

"Minha bisavó Régina ganhou a terra porque ela era escrava, naquela

temporada antiga ela era escrava. Aí o branco, quando teve a liberdade,

o branco liberou essa parte de terra para trabalhar aqui mais o

marido dela. Pascoal que era o nome dele.

Meus bisavós deram para minha avó, ela pra minha mãe, há muitos

anos. Aí ficou no Jequitiua esta terra, ficou parada, os velhos morreram,

não se incomodaram de pagar, ela ficou parada. Aí quando eu me criei

bem eu paguei, paguei oitenta e seis anos eu paguei, do anual desta

terra aí fiquei pagando, fui lá peguei o registro da terra trouxe, levei ao

INCRA, foi para Brasília e veio o total a pagar..." (B.P.A. 19/04/2002

- ENT.17 ) (g.n.)

"...O Cerveira justo doou pra filha do Francisco, que é a Glades, que

mora em Brasília, mas ela não pagou nada do imposto da terra...Então

ela disse que ia doar estas terras pros pretos, que justo era a gente da

minha mulher e do Antonio Tó." (J.A. 21/04/2002 - ENT.23 ) (g.n.)

"O marido da minha avó foi escravo no Gerijó. O nome dele era Zeferino.

Quando acabou a escravatura o senhor dele, o Dr. Carlos, deu um lugar

de casa a cada um. E ele escolheu o lugar e foi falar com o senhor dele que

tinha posto o nome no lugar de Vai com Deus. O senhor falou para ele

ir buscar a escritura da terra, mas meu avô nunca foi lá pegar e nós

continuamos morando nela." (D.A.M. 08/06/2002 - ENT.34) (g.n.)

Nas narrativas, cuidam de bem citar o doador das terras e do "chão dascasas", acentuando que por descuido ou acontecimento acidental não se completou alegalização da doação. Também em São Raimundo I, coletamos relatos que ressaltamo direito ao chão da casa, dado a uma "filha natural" do senhor com uma escrava

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(M.E.A. 23/04/2002 - ENT. 27). Conjugam o mito do "bom senhor", generoso ecompreensivo após a Abolição, com a legitimidade de seu domínio sobre as terras.Assim, não obstante os descuidos de não formalizarem a entrega das terras,permanecem legitimamente nelas. Os fatos narrados por si sós justificariam a doação, istoé, as terras teriam sido obtidas através de: "união natural", caso da mãe de Laurencia e seusenhor; reconhecimento pelo trabalho exercido, caso de Régina e Pacoal e Zeferino; econtrato verbal em que os ex-escravos ficam incumbidos de pagar os impostos, caso deItapuaua. Havia uma norma da legislação colonial que não permitia aos "livres" contrairmatrimônio com escravos, assim também não se cometia adultério com eles. Entretanto, oparentesco resultante do fruto desses intercursos sexuais torna-se uma expectativa de direitonas narrativas dos entrevistados. A partir deles, apropriam-se do nome dos senhores quepartiram e permanecem idealmente como os detentores dos domínios. O fato de os libertospassarem a controlar efetivamente as terras e tomarem para si os nomes de família dos seusantigos senhores constituiu-se numa realidade, mesmo que os laços de sangue alegadospossam ser fictícios. Por disposição legal, os escravos não possuíam família e entre eles nãohaveria casamento, nem parentesco, mas tão-somente o que as autoridades coloniais tratavamde "união natural". Ao se apropriarem das terras e dos nomes da aristocracia agráriaalcantarense, eles manifestam uma expectativa de direito e fazem da memória um recursode história oral para documentar genealogias inteiras que não foram necessariamenteregistradas. As territorialidades que lhes correspondem – além de serem denominadas coma categoria pela qual se autodefinem e são conhecidos, pretos – constituem um lugar depredomínio de nomes de famílias que seus fundadores adotaram. A genealogia dos ex-escravos que receberam as terras de São Raimundo II foi elaborada por Aniceto Cantanhede,que dispôs numa linha de descendência, a partir de Régina e Pascoal e sua irmã Ingrácia eFrancisco, 29 descendentes diretos.

As terras da pobreza

Para além dessas situações, tem-se a nordeste do município uma doaçãoregistrada em cartório, referente à chamada terra da pobreza, que foi, inclusive, cartografadapor oficiais da Aeronáutica, provavelmente em 1985. Conforme documento passado em15 de janeiro de 1915 pelo escrivão Freire Lemos2, pode-se ler:

"Há tempos immemoriaes que o finado Theofilo José Barros, em uma

das cláusulas de seu testamento legou à gente pobre de São João de

Cortes -, para nella se estabelecerem os pobres e suas familias cultivarem-

na, goza-la e tirarem d'ella os fructos para seu sustento e manutenção.

Este trecho de terra é o em que se acham hoje situados os povoados -

Retiro, Canelatiua, Araray, Uru, Uru Mirim, Rio de Ignacio e Santo Antonio,

com 65 casas habitadas por uma população pobre, a qual com suas famílias

se ocupa no serviço de pequena lavoura; sendo alli se acham domiciliados,

vindo de seus antepassados, há mais de cem (100) annos." (sic.)

A expressão "tempos imemoriais" consta dessa certidão, que ao reconhecerformalmente, em 1915, que há mais de um século ali se encontram, permite que se estime

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em pelo menos dois séculos a autonomia desses povoados, ou seja, desde a derrocada daeconomia algodoeira. A este tempo, segundo as narrativas coletadas em entrevista, oschamados brancos começam a abandonar as fazendas em Alcântara. Trata-se de um conjuntode povoados hoje apontados como na faixa de segurança da área desapropriada em 1980para a instalação da base da Aeronáutica, e sob ameaça de deslocamento compulsóriodesde 1997. As chamadas terras da pobreza são subdivididas em quatro áreas que têmcomo limite: a oeste, a antiga Fazenda Mato Grosso; ao sul, as terras dos povoados deBrito e Itapera, limitado este pelo igarapé de Canelatiua; a leste, o oceano, e ao norte, pelopovoado de Retiro, alcança também o mar.

As compras de terras

As aquisições também são arroladas nesses meios de obtenção de terras.Vaqueiros, pequenos comerciantes e ex-escravos aparecem como adquirindo as terras quehoje integram os povoados de Baixa Grande, Mutiti, Esperança e parte de Itapuaua. Osseus descendentes diretos apresentam-se e são vistos localmente como herdeiros. Mesmosem formal de partilha, mantêm-se nas terras segundo um sistema de uso comum dosrecursos naturais. No caso de Peroba de Baixo, também os Gusmão se apresentam e sãorepresentados como herdeiros. Em Conceição e Mutiti, D. Raimunda Gregória de Sá(Mundica), que reside no povoado de Conceição, diz "ser a única herdeira e neta de um dosproprietários" (C. Galvão, 1998:16).

Em Baixa Grande, a descendência é traçada pelo lado masculino. Todos sereferem a Eloy Antonio Sá, pai do Sr. Pedro Nascimento Sá, atual liderança e herdeiro,com 86 anos, como antepassado comum. Em Itapuaua, também: o avô de seu AntonioTó, herdeiro com 78 anos, era escravo que prestava serviços na casa-grande da Esperança.Ele "embalava e abanava os senhores" (Carvalho Martins, 1998:14) e se casou com umamulher assinalada nas entrevistas como "cabocla" de Santana, ou seja, das terras de

santíssimo, que não era escrava. Consoante as entrevistas, o matrimônio teria ocorridoapós a abolição e eles adquiriram uma porção de terras, deixando-a depois aos filhos.

O capítulo dessas aquisições, a partir de fins do século XIX, inscreve-se numquadro mais geral delineado por Viveiros ao analisar os efeitos da abolição da escravatura.A abundância de terras no mercado forçava a baixa dos preços e registrava que terras deAlcântara, já sob o controle efetivo dos ex-escravos, estavam agora mudando de mãos noplano jurídico-formal.

"Das fazendas afastavam-se os senhores com a mesma ansiedade que os

ex-escravos deixavam os ranchos do seu cativeiro. (...) Poucos ficaram,

uns enfrentando a crise para sucumbirem mais adiante, como o dono do

engenho Tijuca; outros assistindo estóicamente a derrocada de sua fortuna,

como o proprietário do engenho Aracanga que nem desencaixotou os

aparelhos chegados da França.

A maioria desertou da luta, aceitando os 10% sobre o valor da

propriedade, que lhe oferecia o vendeiro da encruzilhada ou o

negociante da povoação." (Viveiros, 1954:558)

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Na sua interpretação concernente aos efeitos da abolição da escravatura noMaranhão, o historiador Viveiros utiliza metáforas que expressam uma hiperbolização doacontecimento, tais como "hecatombe" e "catástrofe". Ao ressaltar a execução das hipotecasdas fazendas e o êxodo dos ex-escravos, afirma que: "cerca de 70% dos engenhos de canae 30% das fazendas algodoeiras fecharam as portas." (Viveiros, 1954:557)

Ora, semelhante quadro em Alcântara antecedera à abolição em pelo menosvinte anos. Entrementes, agora se observava que também se interessavam pelas terras grandescomerciantes, cujo objetivo primeiro era reintroduzir o aforamento, exigir a obrigatoriedadede venda dos produtos agrícolas e extrativos nas suas casas comerciais e de prepostos(quitandas, vendas e barracas) e implantar uma pecuária extensiva. Uma pressão sobre asterras correspondentes àquelas territorialidades mencionadas se fez imediatamente sentir,instaurando um clima de tensão e conflitos.

No período republicano, a partir do Decreto nº 451B, de 31 de maio de1890, que estabeleceu novos critérios de registro e transmissão de imóveis, e do Art. 64 daConstituição de 24 de fevereiro de 1891, que destinou as terras devolutas à administraçãodos governos estaduais, os entrevistados recordam de conflitos a partir das demarcações.Quando as terras doadas, ocupadas e adquiridas começaram a ser demarcadas para registro,teriam surgido, na versão dos entrevistados, pretensos proprietários das terras. Os domíniosautodeclarados nos registros paroquiais após a Lei de Terras de 1850 não correspondiamaos limites das terras efetivamente ocupadas pelos chamados pretos, pobres e caboclos.A tentativa de materializar pontos de imóveis rurais que apenas existiam na imaginação dosque só fizeram declará-los entre 1854-57 resultou em antagonismos. Em Santo Inácio,apareceram nove pretensos donos das terras, querendo usurpar as comunidadesremanescentes de quilombo. Um pretenso dono de tudo, no caso da demarcação de MatoGrosso, queria englobar as chamadas terras da pobreza. Esta última demarcação, a únicasobre a qual detectei documentos cartoriais, foi embargada no início do século XX:

"Místicas à terra da ‘Pobreza’ jazem as denominadas de ‘Mato Grosso’

outrora de um Fernão Troça, já há muito falecido e hoje divididas em 5

quinhões, dos quais é Esterlino Azevedo possuidor de um por compra

feita a Dr. Urraca Prado. Ora, como fica acima dito a ‘Terra da Pobreza’ é

efetivamente habitada por gente pobre, secularmente, desde os seus

maiores, sem que até há pouco tivessem sido perturbados em sua posse.

Desde, porém que Virgílio Esterlino de Azevedo se estabeleceu nas terras

do ‘Mato Grosso’ que começou de fazer àquelles pacífico vizinhos

exigências dezarrazoadas e impertinentes as quais lhe não assiste a menor

partícula de direito; e ultimamente tem tido estulta verleidade de proihibir

que o protestante roce na terra que ocupa desde que nasceu sendo que já

conta 52 anos de idade. E como não haja logrado sua pretensão, tem

contractado um agrimensor para demarcar extra-judicialmente as terras

de ‘Mato Grosso’, como si todas estas lhe pertencessem. Como, porém

o protestante tem a certeza de que, com este insidioso procedimento, o

protestante não visa se não esbulhá-lo e a muitos moradores da ‘Terra

da Pobreza’, de sua posse mansa, pacífica e nunca contestada; e outrossim,

por que não concorda e sabe que nenhum morador acima referido

concorda com essa demarcação extrajudicial, vem perante V. Exa. contra

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ella protestar, e pelos prejuízos que d'ahi possa advir." (sic.)

(Protesto registrado em cartório contra demarcação extrajudicial.

Alcântara, 15 de janeiro de 1915)

No caso de Santo Inácio, de acordo com os entrevistados, houve tambémresistência à demarcação:

"As pessoas compravam um sítio... e desse sítio ele botava o rumo ele

mesmo e tirava uma parte para ele. Aí vinha no cartório, amizade e tal e tal,

e pessoal não ligava para isto, quando menos esperava tava com um

pedaço registrado. Foi a origem que quando se demarcou Santo Inácio,

tava com nove donos, que não eram herdeiros de Laurencia." (P.F.C. 12/

04/2002 - ENT.01)

Percebe-se uma disputa constante pelas terras e atos de apossamento ilegítimos,como no caso de Santo Inácio, forçando as comunidades remanescentes de quilombo a pagaremforo nas próprias áreas que lhes foram doadas e onde se mantinham autonomamente, emtermos produtivos, bem antes da abolição da escravatura. Atos similares foram observadosquanto aos povoados de Só Assim, Peru, Itapuaua e Arenhengaua:

"Não, as terras de Alcântara não pagavam foro na época, de lá pra cá veio

criando esses donos e já do meu conhecimento para cá, onde eu tô lhe

explicando, já tinha dono só que antes não tinha." (I. 16/04/2002 - ENT. 12)

"As terras ficaram aí. Os branco foram embora. Olha, depois de um certo

tempo, quando Nojosa chegou aqui, começou a ser dono. Compravam

com o Souza e esse pessoal começaram a dividir terra e começaram a

cobrar foro.

– Mas antes não pagavam?

– Não tinha antes. Começou a ter depois, aí depois para cá já tinha a velha

Alena tinha uma parte... Compravam. Era assim. O Otávio comprou do

João de Souza, do Isidoro Souza... e foram negociando. Agora de quem

Isidoro adquiriu não sei, porque antes, é as histórias a gente sabe aqui do

Rio do Cujupe, até fazer limite com a terra da senhora de Santana, era de

Santa Teresa, aí depois surgiu um somente de dono por dentro que quase

Itamatatiua fica sem ter terra.

– O limite da terra de Santa Teresa aqui (apontando o mapa) seria onde?

– Seria o rio do Cujupe aqui, aí pegando para cá e a terra vai até fazer limite

com as terras de Santana, em Bequimão. Mas depois disto surgiu este

monte de dono, esse monte de confusão toda que a gente não sabe

distinguir." (G.X. 19/04/2002 ENT.16 )

Na assertiva de G., tanto Arenhengaua quanto São Maurício originariamenteestariam dentro das terras de Santa Teresa. Mas foram incorporados pelos engenhos nosanos 1850-60. Os engenhos, entretanto, na década seguinte já estavam arruinados e as famíliasescravas usufruíam das terras sem recolherem aforamento. Com as vendas de terras, houvetentativas de demarcação que geraram conflitos em Arenhengaua e também em São

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Raimundo II, onde várias famílias acabaram se deslocando da área com receio doagravamento dos entreveros (B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17). O processo de territorializaçãoassinala, portanto, conflitos nas primeiras décadas do regime republicano com fortes pressõessobre as terras das comunidades, que embaralharam certos limites tradicionais, mas quenão chegaram a desestruturar, entretanto, o sistema de uso comum e de interligação entreos povoados e as relações sociais comunitárias entre eles. Tampouco foram afetadas asrelações entre os denominados herdeiros e os demais moradores dos povoados em queforam registradas aquisições ou em que houve transmissões por sucessão a partir da doaçãooriginária.

"Os herdeiros, naquela época, não cobrava foro de quem trabalhava lá no

Santo Inácio. Tudo era comum. Comum eram os foreiros, por exemplo,

que não eram herdeiros. Os herdeiros não cobravam nada dos que

trabalhavam lá."(P.F.C. 12/04/2002 - ENT.01). (g.n)

Essas relações protegiam os que pertenciam ao povoado e simultaneamenteos distinguiam daqueles de áreas circundantes:

"A forma de produzir era comum. Era comum assim entre os

moradores de lá. Agora, quando tinha alguém que chegava, estranho,

dos povoados vizinhos, que a área que pertencia e que estava no domínio

dos que diziam ser donos, eles cobravam uma gratificação... de farinha,

mas era irrisório."(P.C.F. 12/04/2002 - ENT. 01). (g.n)

De maneira semelhante, constata-se, em São Raimundo II:

"Não, nunca ninguém pagou foro aqui. (...) Não, aqui esse morador aqui

nenhum paga foro, nunca ninguém pagou, trabalhamos aqui. Nunca

ninguém recebeu um paneiro de farinha, um de milho, de foro. Nem

herdeiro, nem ninguém." ( B.P.A. 19/04/2002 - ENT.17)

A tentativa mais proeminente de reinstalar uma subordinação através doaforamento só logrou êxito por algumas décadas, desfazendo-se inteiramente depois. Foiencetada pelo comerciante que adquiriu maiores extensões de terra em Alcântara no períodoposterior à escravidão e até 1941, Antoninho (Antonino) da Silva Guimarães3 (Viveiros,1975:142), que possuía "casas de comércio" na cidade de Alcântara, em Raimundo Su e emSanto Antonio e Almas (Bequimão). Além de forte presença econômica adquirindo terrase sobrados, concorreu para que, no plano político, se destacassem os Ramalho, em Alcântarae Bequimão. Datam de 25 de setembro de 1905 e de 15 de maio de 1934 os registros decompra de partes da área "Santa Rita" adquiridas por Antonino Guimarães de AntonioPedro de Araújo Cerveira (Shiraishi, 1998:10). Adquiriu também nesta primeira década doséculo XX a Fazenda Arequipá, com engenho de açúcar, localizada na beira-campo, emBequimão. O genro de Antonino, Marcial Ramalho Marques, casado com sua filha AnaGuimarães, adquiriu também as terras de Janã. Em 1941, os dois netos de Antonino

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Guimarães, filhos de Marcial e Ana, adquiriram Flórida e Caranguejo. A filha de Antoninoadquiriu, posteriormente, Gerijó Velho e Gerijó Novo4. Prevalecia o sistema de aforamentonessas áreas e a obrigatoriedade da venda do coco babaçu nas "quitandas" dos prepostosdos proprietários que se espalhavam pelos diferentes povoados. Em 1934, as terras doAriquipá, que haviam sido passadas a uma sociedade intitulada "Marques, Ramalho e Cia.",formada por Agostinho Ramalho Marques, irmão de Marcial, e Raimundo MagalhãesRamalho (Nhônhô Ramalho), foram transmitidas para o segundo. O genro de AntoninoGuimarães tornou-se prefeito de Alcântara e Nhônhô Ramalho, prefeito de Bequimão.Quando faleceu, em 1963, Marcial ocupava novamente o cargo de prefeito de Alcântara, eo sistema de cobrança de foro em suas terras só persistia simbolicamente.

Não obstante a força da presença de Antonino Guimarães na memória dosentrevistados nessa área que correspondia à antiga freguesia de São Matias, observa-se queseu nome não foi adotado por famílias de nenhum povoado. De certa maneira, isso evidenciaque suas aquisições foram posteriores à formação dos territórios de parentesco e dasterritorialidades, e que sua modalidade de exploração das terras não conseguiu quebrar aunidade étnica e não teve força para imprimir uma forma de organização nas comunidadesque contrariasse os pressupostos do trabalho livre e da autonomia produtiva. Nesse sentidoé que seu nome de família não teria sido arrebatado e tampouco tornou-se objeto de umaconquista com expectativa de direito. Embora a tentativa de instituir aforamento possa serlida como uma contramarcha para frear o processo de territorialização apoiado na autonomiaprodutiva e no sistema de uso comum dos recursos naturais, cabe acrescentar que ocorreutambém uma mobilização étnica em sentido contrário que evitou a fragmentação dospovoados e o chamado "êxodo rural". Os laços de co-residência foram articulados comos laços de parentesco no estabelecimento de uma solidariedade revestida de princípiohierárquico. Melhor explicando: tal resistência se configurou na ação dos chamadosencarregados da terra em Forquilha, Pavão, Janã, Santa Rita, São Raimundo, Ladeira,Engenho, Terra Mole, São Francisco, Rio Grande, Peroba de Cima e demais povoados. Osdetentores dessa função administrativa eram simultaneamente mediadores e lideranças nospróprios povoados, preservando as reservas de mata e disciplinando o uso dos recursos,isto é, não violaram as normas elementares de convívio e, antes, as reforçaram.

A tentativa de implantar o aforamento foi, portanto, pontual e não teve vigornem força o suficiente para alterar as normas de uso comum adotadas tradicionalmente.Ao contrário, foi obrigada a reconhecer a autoridade das lideranças locais e não chegou acriar uma modalidade de administração dos recursos que as substituisse. Não constituiparadoxo, portanto, o tom nostálgico de certos depoimentos que sublinham a preservaçãode madeiras de lei e de uso dos igarapés, quando os encarregados da terra iam medircom cordas os terrenos e conceder as licenças de plantio. Esse tom foi constatado quandoos entrevistados mencionam a perda de autoridade dos responsáveis pela preservação dosrecursos estratégicos aos povoados, após a desapropriação de 1980 e os deslocamentoscompulsórios realizados pelo CLA em 1987. Os primeiros impactos dessas medidas atingiramtanto os chamados encarregados da terra e encarregados da santa quanto os chamadosherdeiros, bem como povoados fora da área do decreto de 1980, deixando que as terrasfossem dispostas como recursos aparentemente abertos ou, em outras palavras, comodiriam moradores de Pavão e São Raimundo II, como "terra de ninguém". No momento

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do trabalho de campo pericial, os moradores dos povoados estavam se organizando paraimpedir que continuasse a retirada ilegal de madeira:

"Eles tiram é o pacazeiro, é todo pau. Essa aí é a madeira mais procurada

o pacará. Ela é mais resistente. Tiram também a meguba, essas madeiras

para poder fazer as casas. Em Pinheiro e Bequimão tão comprando as

madeiras." (B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17)

Os territórios de parentesco

Os povoados enquanto unidades afetivas, como domínios reconfirmadospor aquelas formas de acesso mencionadas (doação, aquisição, ocupação, sucessão), deixamentrever que o sistema de parentesco pode ser traduzido em termos de representaçõesespaciais. Os nomes de família, legitimamente conquistados junto com a terra, distribuem-se pelas territorialidades específicas e pelos povoados tal como as famílias aristocráticasdistribuíram-se pelas sesmarias, sem que as territorialidades, todavia, se limitemnecessariamente aos marcos divisórios das sesmarias. Os nomes Sá, Araújo Sá, AraújoCerveira, Morais, Ribeiro, Silva, Gusmão, Serejo, Gonzaga, Costa e Diniz são indicativosde pertencimento a povoados, mas não se restringem a povoados de uma únicaterritorialidade. Acham-se dispersos entre elas. Os Sá e os Araújo tanto podem serencontrados nas chamadas terras da santa quanto nas terras de preto. Os Araújo podemser encontrados também nas terras de santíssimo. Os Morais tanto podem ser encontradosnas chamadas terras de caboclos quanto nas terras de preto. Os Ribeiro tanto estão naschamadas terras da pobreza quanto nas terras de preto. Os nomes de família perpassam asdistintas territorialidades chamando a atenção para laços de solidariedade que explicitam quea ocupação não se deu apenas com a permanência dos escravos nas fazendas, mas através dasrelações que foram estabelecendo com aqueles que escaparam ao controle dos mecanismosrepressores da força de trabalho. Nesse sentido é que foi possível observar o uso de expressõescomo a "irmandade dos Sá" ou a "irmandade dos Araújo". Assim, considerando os povoadosdas chamadas terras de santíssima, como Samucangaua e Santana dos Caboclos ouForquilha, tem-se que os vínculos entre eles podem ser mais frágeis do que aqueles entreSamucangaua e Ladeira, apontado como antigo quilombo, ou entre Forquilha e Peroba deCima. Redes de parentesco foram sendo erigidas e os próprios quilombolas se apropriaramdos nomes adotados por aqueles com quem mantinham laços de solidariedade permanentes,seja em Jarucaia, seja em Esperança e Itapuaua. Os grupos baseados no parentesco e naafinidade aproximaram os que ficaram subjugados no âmbito das grandes plantações eengenhos e aqueles que se mantiveram fora do controle senhorial. A clivagem entre "famíliasde preto" e "famílias de caboclo" tem uma força distintiva, em contextos de regras deresidência, que se dilui em homogeneidade relativa em situações de uso dos recursos naturaise de sua conservação, em situações de conflito e, inclusive, em situações de entretenimento ede devoção (festas religiosas, jogos de futebol, "reggae"). Sob esse aspecto, pode-se asseverarque se está frente a um entrelaçamento entre os povoados e entre as distintas territorialidadesque, a despeito dos diferentes nomes de família e suas respectivas redes de relações sociais,consolidam uma forma identitária e de pertencimento a um mesmo território étnico.

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No caso das agrovilas implantadas pelo CLA, já não parece ser possível, emvirtude da limitação dos recursos disponíveis às famílias deslocadas, a manutenção de regrade residência duolocal ou norma, segundo a qual noivo e noiva devem permanecer em seuslocais originais, mantendo aí residências. Os lotes oficialmente destinados às famílias, comapenas 16 hectares, mal permitem a reprodução simples. Tem-se o enfraquecimento dosgrupos familiares que permanecem nas agrovilas, cujos filhos e filhas contraem matrimôniosem outros povoados onde passam a residir. Um dos exemplos seria a relação entre as famíliasde pescadores de Brito e aquelas das agrovilas como Só Assim e Peru, onde passaram avender o pescado5. As relações no sistema de parentesco aqui só podem ser devidamenteentendidas se relacionadas às condições de acesso aos recursos naturais e às estratégias desobrevivência adotadas pelos grupos em face da situação de escassez resultante do Plano deReassentamento do CLA.

Para fins de ilustração, passarei a expor um quadro sintético focalizando algunsdesses entrelaçamentos anotados no decorrer do trabalho de campo pericial.

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Indicação do limite sul da Terra dos quilombos

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As territorialidades específicas verificadas em Alcântara, que atendem peladesignação de terras de preto, terras de santo, terras de santíssima, terras de caboclo e terrasda pobreza, são de diferentes ordens e mostram-se extremamente diversificadas, conformesublinhado anteriormente, abarcando uma multiplicidade de povoados, cujos agentes sociaisafirmam seu pertencimento pela adoção de categorias de auto-atribuição tais como: pretos,caboclos e pobres. Os povoados, mesmo quando contíguos, podem ser diferentementeorganizados1. Aspectos formais, tais como as relações de consangüinidade ou referênciasrecorrentes a um mesmo antepassado, podem ser essenciais num povoado e ter significadomarginal noutros2. Tal diversidade impele as territorialidades para um sentido plural eextremamente diverso. Os elementos de descrição e a observação etnográfica não podem,estrito senso, homogeneizar situações dessa ordem com o risco de perder as peculiaridadesde cada uma delas. O grau de coesão que caracteriza cada uma delas pode, entretanto, serpassível de aproximação sem afetar o rigor da análise. Isso porque tal coesão não se esgotanuma atividade econômica comum para atender às necessidades coletivas e semprecompreende fatores de parentesco, de afinidade e de solidariedade política, que organizama interação entre os agentes sociais e concorrem de igual modo para garantir o ideal deautonomia que historicamente as torna distintivas.

As análises dos "territórios de parentesco", empiricamente assinalados, e dasruínas dos engenhos e casas-grandes, como fatores de manutenção de fronteiras e deconstrução social das territorialidades, permitiram a descrição de diferentes modalidadesde persistência, como grupos étnicos, das comunidades observadas, de acordo com asproposições teóricas de F. Barth. Ao asseverarmos, pois, que as mencionadas territorialidadesconvergem para um território étnico de algum modo delimitável, apoiamo-nos novamentenesses pressupostos teóricos:

"Em primeiro lugar enfatizamos o fato de que os grupos étnicos

são categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos

próprios atores; consequentemente tem como característica

organizar as interações entre as pessoas." (Barth, 2000:27)

A investigação pormenorizada de realidades empiricamente observáveis explicaa demarche dos trabalhos de pesquisa inerentes a esta perícia, que evitou recorrer a umatipologia de grupos e relações étnicas, como acentua Barth, para dar ênfase a processosreais de territorialização que asseguram a etnicidade dos grupos ora examinados.

O território das comunidadesremanescentes de quilombos

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A partir dessas premissas, quando sublinhamos que os povoados dascomunidades remanescentes de quilombo em Alcântara apresentam grande variação, mastêm seus fundamentos num conjunto de componentes essenciais que disciplinam o sistemade relações sociais, estamos tentando responder a indagações no sentido de qual tipo de"unidade territorial" estaria em jogo. Para tanto, recorremos ainda aos estudos de C. Geertz,num complexo de pequenas vilas na Indonésia (Bali), que indicam que a mais apropriadaformulação sistemática para essa modalidade de estrutura, que apresenta múltiplos povoadosem rede, seria conceituá-la em termos de interseção de planos de organização socialteoricamente separáveis (Geertz, 1967: 259-263). Com base nesse instrumento de investigação,foi possível verificar que cada família tem seu povoado de pertencimento, tem suacomunidade de referência, acata regras de cooperação simples e de uso comum dos recursos,entende como bem privado apenas o produto de seu trabalho, representa os recursosnaturais como não passíveis de apropriação individual em caráter permanente e não se vênum povoado isolado, vivendo e praticando através de elementos identitários e deintercâmbio vário o alargamento do território, pelas fronteiras interpovoados que não sefecham jamais no sentido absoluto. É através da situação social designada pelos moradoresdos povoados como comunidade, que os povoados observados se estruturam, pois,segundo esses diferentes planos de organização social. Entrelaçados por uma unidadesociológica, tais planos foram levados em conta para se compreender também a lógica dedistribuição de bens e serviços, assim como de uso dos recursos naturais entre os diferentespovoados. Abrangem, pois, tanto fatores econômicos quanto políticos, embora nãocorrespondam necessariamente a um plano de organização formal com associaçõesconstituídas legalmente ou reconhecidas em cartório. As relações prevalecentes são quase-institucionais e remetem para uma rede de povoados, implicando numa divisão de trabalhoe serviços e num intercâmbio continuado entre os povoados. Por intermédio delas é que seconsolida um sistema de trocas equilibradas entre, por exemplo, povoados mais próximosao mar e a igarapés maiores – que se dedicam principalmente à pesca e que praticam acomercialização da produção através de seus inúmeros portos e têm na agricultura umaatividade complementar – e povoados considerados "mais centrais", distantes da beira edo porto, que se dedicam principalmente aos tratos agrícolas. Na própria organizaçãosocial intrínseca aos povoados, verifica-se uma certa inseparabilidade entre a condição depescador e aquela de lavrar e roçar. De toda maneira, a unidade familiar é também aunidade de trabalho, seja na pesca, seja na agricultura, seja no extrativismo, fazendo uso detecnologias elementares e de instrumentos artesanais, bem como de práticas de cooperaçãosimples definidas por critérios de parentesco, afinidade e vizinhança. Com base nessa descrição,pode-se adiantar que não constituem "comunidades primitivas" ou comunidades constituídas"espontaneamente", que ignoram as trocas mercantis e bastam a si próprias com uma circulaçãorestrita a produtos domésticos e, portanto, com predomínio do valor de uso. Ao contrário,trata-se de comunidades que têm seus fundamentos nas crises do mercantilismo e do própriodesenvolvimento capitalista, cuja expressão mais perceptível seria a desagregação das grandesplantações algodoeiras e de cana-de-açúcar referidas ao mercado mundial.

Em decorrência, a reciprocidade positiva, como troca equilibrada de bens,serviços e solidariedade política interpovoados, reflete um sistema econômico singular que,conjugado com a afirmação de uma identidade coletiva – traduzida por uma multiplicidadede designações correlatas, tais como: terras de preto, terras de santo, terras da santa, terras

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de santíssima, terras de santíssimo, terras santistas, terras de caboclo, terras da pobreza eoutras denominações variantes –, configura um território étnico. Mais que considerar essasexpressões denominativamente, importa aprofundar o sentido específico que adquirem navida social e na construção da própria identidade dos agentes sociais que lhes são referidos3.As chamadas terras de santo se sobrepõem, se interpenetram e se fundem com as terras decaboclos e com as terras de preto, mas as chamadas terras de caboclo não se justapõemnecessariamente às terras de preto e vice-versa4. Como verificamos anteriormente, asdiferenças e as similitudes, que aproximam e distanciam os significados e a vigência dessasexpressões, funcionam como um princípio operativo, que disciplina as relações sociaiscomunitárias que fundamentam esse território étnico. A idéia de remanescente de quilombospassa, aqui, por esses diferentes planos de organização social que, entrelaçados, delineiamuma territorialidade própria, cuja persistência no tempo pressupõe mobilização de cadaconjunto de famílias vizinhas, de cada grupo de parentes e de cada comunidade solidariamenteestruturada, mediante ameaças de destruição de sua forma de viver e de agir livremente.

Mesmo que em cada um dos povoados sejam acatados os limites tradicionais,valendo-se inclusive das pedras de rumo, verificamos uma interpenetração de domínios,em contextos de escassez extremada, em que um supre suas necessidades com os recursosde outros e vice-versa. Há um consentimento mútuo para tanto. Os limites físicos nãosignificam recursos naturais fechados, como ocorre no caso da noção de propriedadeprivada de imóveis rurais, e remetem para uma interpenetração bastante complexa sobrea qual se estrutura a noção de territorialidade. Os marcos delimitadores das terras de cadapovoado podem ser livremente transpassados pelos membros de outros povoados, emborao uso efetivo e continuado de recursos naturais, dentro desses limites, esteja condicionadoao assentimento daqueles que ali têm morada e cultivo habituais e se autodefinem e sãovistos como pertencendo à comunidade, que administra sua reprodução física e social apartir daqueles recursos. A condição de pertencimento a este povoado ou àquele outroconfere autoridade incontestável na administração e uso continuado dos recursos naturaisrespectivos. O trabalho científico de verificar a articulação entre essas regras de pertencimentoassociadas ao direito de uso, através de uma consulta aos diretamente interessados, foi omais amplo possível, buscando se chegar a um contorno abrangente e inclusivo, capaz deabarcar o conjunto de povoados e não apenas delimitar alguns entre eles, à molde de umproblemático arquipélago com pseudo-ilhas.

Esse procedimento não é, portanto, de simples execução como possa parecerà primeira vista. Antes, aponta para um mosaico complexíssimo de planos cruzados esobrepostos, além de interações de toda ordem, seja no plano religioso, no plano sindicalou naquele da interdependência ecológica entre os povoados. O princípio das múltiplasconexões entre mais de uma centena de povoados, numa quase península, que se mantevepor quase dois séculos à margem do foco de ação das políticas de Estado, é que viabilizaas condições materiais de existência desses povoados e em virtude do qual eles constituemuma comunidade dinâmica ou um todo organizado. Tais conexões constituem ofundamento da autonomia de que usufruem e da não-subordinação a terceiros em termosdas decisões sobre onde construir sua habitação, onde plantar ou pescar ou quando e aquem vender a produção. O intercâmbio constante entre os povoados inscreve-se, pois,entre as necessidades essenciais dessa comunidade dinâmica, que abarca uma diversidadede modos de vida em grupo, transcendendo àquela idéia de comunidade definida por

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critérios de isolamento demográfico e geográfico. Mesmo que as territorialidades referidase os respectivos povoados variem quanto ao tamanho, à composição, à atividadeeconômica principal e aos laços com diferentes circuitos de mercado, destaque-se queseus moradores participam de um mesmo padrão de relação diante dos recursos naturaise de acontecimentos da vida religiosa e política. Variam, por exemplo, os santos padroeirose as festas religiosas de povoado para povoado. Porém, cada festejo congrega participantesde povoados distintos, que contribuem para a consecução das sequências rituais e dos fundoscerimoniais necessários. Para uma compreensão mais acurada, atente-se para o caso de Itapuaua:seus moradores, em termos de referência política, falam em "região da Peroba"; enquantorecinto cemiterial, enterram seus mortos em Santana dos Caboclos, cujo campo santo centralizatambém outros povoados, tais como Perizinho, Peroba de Cima, Forquilha, Flórida, Esperançae Peroba de Baixo; em termos de construção de embarcações para pesca, os moradoresmencionam São João de Cortes; para a aquisição de tipiti , instrumento artesanal de palhautilizado para espremer a massa da mandioca, mencionam São Raimundo. Itapuaua, por suavez, possui delegacia sindical, congregando interesses associativos, reivindicatórios e dosaposentados, além de servir como porto para quase uma dezena de povoados, ou seja,ponto de acesso à circulação de bens ou de acesso a praças de mercado. Seus moradores, quetêm na família Araújo preponderância, em termos de parentesco, vinculam-se àqueles depovoados próximos, compondo o que classificam como "uma ruma de parentes só" (J.A.21/04/2002 - ENT.23). Apresentam-se como descendentes de índios e de escravos, numadenominada terra de preto composta através de atos de aquisição e ocupação, assinaladacomo vizinha das chamadas terras de santíssimo. Segundo as narrativas, uma parte do povoadofoi adquirida pelas famílias dos antigos escravos, que prestavam serviços domésticos na casa-grande dos sesmeiros. A outra parte foi fruto de doação informal da herdeira dos chamadosbrancos, que lá nunca residiu. Em suas terras e nas circunvizinhas, há vários lugares assinaladoscomo tocas e referências a mocambos, que expressam uma forma de ocupação quilombolaefetiva, cuja alegada doação, feita oralmente, só teria servido para referendar. Ademais, mantémlaços econômicos e afetivos regulares com aquelas famílias que, com a migração, se deslocarampara bairros da Camboa e da Liberdade, na capital São Luís, também designada pelosentrevistados como "a cidade".

Durante o trabalho de campo pericial, inventariamos, segundo critérioselaborados a partir da representação dos próprios informantes, os povoados que compõema área identificada, pertencente e sob controle efetivo das comunidades remanescentes dequilombo. Cabe reiterar que os trabalhos de campo não incluíram Itamatatiua, ao sul domunicípio de Alcântara, onde o Iterma realiza, desde 1997, atividades para reconhecimentoda área enquanto comunidades remanescentes de quilombos, nem a ilha do Cajual, onde selocaliza Santana dos Pretos. Caso fossem incluídos, o número de povoados em pautaaumentaria de pelo menos um terço. Detivemo-nos na área desapropriada por interessesocial para reforma agrária, pelo MDA-Incra, em Ibituba (Gleba Ibituba) e em São RaimundoII, onde o Iterma também realizou ações fundiárias. A inclusão de São Raimundo se atémà própria interação econômica e política que mantém com os demais povoados arrolados.Atém-se também à representação espacial manifesta pelos entrevistados e concernente àscabeceiras do igarapé Tiquara, que desce, no sentido leste, para o rio Aura e a baía de SãoMarcos, e àquelas do igarapé Pratitá, que desce, no sentido oeste, para o rio Raimundo Sue para a baía de Cumã.

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Não foi possível, dadas as condições que nortearam o trabalho pericial, realizarum recenseamento com critérios antropológicos. O próprio trabalho cartográfico foirealizado de maneira limitada no cotejo com os mapas oficiais e com os dados da Funasa.A verificação in loco ficou prejudicada em alguns casos, como na repetição das designaçõesde povoados. Há quatro deles nomeados como São Francisco, três como São Benedito,Boa Vista e São Raimundo e pelo menos dois como Macajubal, Ladeira, Mamona, RioGrande, Santa Rita, Tacaua, Vila Nova, Rio Verde, Cajueiro, Guanda, Cujupe, Caicaua,Baixa Grande e Tiquaras.

Os dados censitários apresentados foram produzidos no âmbito da Funasa e,por atenderem a finalidades dos denominados "distritos sanitários", aqui foram utilizadosmais para efeitos de ilustração e de uma primeira aproximação. Totalizam 139 povoadosaos quais correspondem, de acordo com dados da Funasa, cerca de 12.000 habitantes.Considerando as diferenças de tamanho e composição entre eles, verifica-se que, em termosde habitantes, variam de três – povoados de Cajituba, Capoteiro, Piquiá, Primirim, SantaHelena, Taturoca, Vila Maranhense e Trapucara (Trapucaia) – a 958 habitantes, caso dopovoado de Oitiua. Em termos de edificações ou "prédios", variam de um a 350. As oitoinclusões como povoados, que registram três habitantes, dispõem de apenas um "prédio"cada uma. Os denominados "prédios" compreendem edificações, ocupadas ou não, qualquerque fosse o material empregado em sua construção e o fim a que se destinasse: residências,escolas, postos de saúde e ambulatórios, bem como as chamadas tribunas, local de reuniõese eventos comunitários, as casas de forno, e locais de serviços e atividades diversas. Essainformação nos leva a relativizar tais inclusões, focalizando os povoados segundo umahierarquia em que uns usufruem de uma posição de centralidade enquanto outros gravitariamem torno deles, constituindo uma área de influência. Nesse sentido, importa frisar que,numa ordem de grandeza, por número de prédios e de habitantes, tem-se num primeiropatamar aqueles povoados com no mínimo 48 e até 350 edificações, aos quais correspondemno mínimo 131 e até 958 habitantes. Nessa classificação, há uma certa dispersão geográfica,com uma distribuição de povoados relativamente equilibrada, abrangendo desde povoadosao norte, nordeste e noroeste, tais como São João de Cortes, Ponta d'Areia, Canelatiua eSantana dos Caboclos; povoado a oeste, como Prainha; povoados ao sul da área delimitada,como Oitiua, a sudoeste, e Arenhengaua, a sudeste; e ainda Manival, Samucangaua e aagrovila Novo Peru. Os principais núcleos de pesca e portos para embarque da produçãopesqueira do município encontram-se entre estes maiores povoados, a saber: Oitiua, Pontad'Areia, Prainha e São João de Cortes. Em se tratando da agrovila Novo Peru, há umaoutra disposição hierárquica que a interseção de planos permite vislumbrar e que diz respeitoa como os próprios agentes sociais representam a suas condições materiais de existência.Com os deslocamentos compulsórios, promovidos pelo Ministério da Aeronáutica, em1986 e 1987, os 23 povoados5 atingidos foram retirados de sua rede de relações e apartadosdas territorialidades específicas e do estoque de recursos que proviam os meios básicos deinterdependência ecológica, de acesso a recursos para a reprodução física e de circulação deserviços e produtos. As sete agrovilas (Marudá, Ponta Seca, Só Assim, Cajueiro, Espera,Peru e Pepital) nesse contexto, não obstante as edificações de alvenaria, a cobertura detelhas, a eletrificação, os poços artesianos e os projetos governamentais de crédito e custeio,são percebidas como em desvantagem e vividas como num patamar de certo modo inferior.Os critérios extraídos das entrevistas assinalam o seguinte quanto às agrovilas: não têm

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portos próprios, nem têm proximidade das águas piscosas, os lotes destinados às famíliassão de extensão insuficiente, em terras frágeis e não comportam a capacidade produtivadas unidades familiares. Sem documentos das casas e dos respectivos lotes, os moradoresdas agrovilas vivem e são vistos como se fossem locatários, sob uma insegurança constante.Ademais, são regidos por disposições administrativas, que afetam diretamente o padrão desucessão das famílias ao inviabilizarem a possibilidade de que os filhos casados possamerguer suas habitações próximas à dos pais. Em meio a tais condições, as agrovilas vivemsob o signo da escassez e é recorrente nas entrevistas a idealização da abundância e farturado passado. A própria posição dos outros povoados, que não foram deslocadoscompulsoriamente e se mantém junto ao mar na própria faixa definida pelo Ministério daAeronáutica como de segurança – como Brito, Itapera, Baracatatiua e Mamona –, tambémé vista como positiva e mais vantajosa pelos moradores das agrovilas. As fruteiras silvestresdo cordão arenoso, como os muricizais, e a facilidade de realizarem diretamente as atividadesde pesca nutrem essa representação da fartura prevalecente nesses outros povoados. Apartir das agrovilas, o acesso à praia pelos moradores para realizarem pescaria só pode serefetuado sob controle administrativo do CLA, que distribui crachás para os que exercemessa atividade e os monitora com uma guarita disposta na entrada da área, registrando omovimento de cada pescador.

Destaque-se que na área desapropriada foram registrados mais de 90 povoados,considerando-se os dados da Funasa e os levantamentos para efeito de elaboração dosmapas produzidos no âmbito do trabalho de campo pericial. Observe-se também que,nessa área, apenas as agrovilas e mais uns poucos povoados, como Oitiua, Rio Grande eBaixa Grande, nos limites da área, usufruem de energia elétrica. Em São João de Cortes,um dos mais populosos povoados do município, que possui pequeno estaleiro de construçãode barcos e exporta grandes volumes de pescado, a iluminação é a óleo diesel.

Para fins de exposição, apresentamos a seguir dois quadros, agrupando noprimeiro deles os povoados que se localizam na área desapropriada por utilidade públicapara instalação da base de lançamento de Alcântara e, no outro, aqueles que se situam forade seus limites. Tomamos como referência os dados da Funasa, porquanto aqueles doCenso Demográfico de 2000, elaborados pelo IBGE, assinalam tão-somente 21.291habitantes em Alcântara, sendo 5.665 na zona urbana e 15.626 na área rural, e destacamapenas São João de Cortes com 2.909 habitantes, sendo 503 no núcleo urbano e 2.406 naárea rural. Não apresentam os resultados censitários correspondentes aos demais povoados.

Foram levantados, portanto, consoante a base comunitária da Funasa, 139povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos, sendo 90 localizados naárea desapropriada por utilidade pública para a instalação da base de lançamento de foguetese 49 deles situados fora dos limites daquela área. Esses povoados totalizam 12.941 habitantes,ou seja, 83% da população rural do município, e compreendem uma área aproximada de85.537,3601 hectares, englobando a área desapropriada por utilidade pública para instalaçãoda base e outra extensão mais ao sul desta referida área desapropriada, até alcançar as terrasde Ibituba que foram objeto de desapropriação para fins de reforma agrária pelo Incra. Aseguir, apresentamos a relação deles com informações extraídas do cadastro da Funasa.

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Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada

para instalação da base de lançamento de foguetes

1 Águas Belas 27 19 25/07/95

2 Bacuriajuba (Bacurijuba) 7 19 25/07/95

3 Baracatatiua 37 101 25/07/95

4 Bebedouro 3 8 25/07/95

5 Boa Vista III 10 27 25/07/95

6 Bom Jardim 9 25 12/06/95

7 Bom Viver (Bom de Ver) 26 71 25/07/95

8 Brito I 35 96 25/07/95

9 Cajapari 6 16 25/07/95

10 Cajatiua (Cajitiva/Cajutiua) 9 25 25/07/95

11 Camirim 10 27 25/07/95

12 Canavieira 19 52 25/07/95

13 Canelatiua 65 178 25/07/95

14 Capijuba 1 3 25/07/95

15 Capim Açu 20 55 25/07/95

16 Capoteiro 1 3 25/07/95

17 Caratatiua 9 25 25/07/95

18 Cavem II 3 8 25/07/95

19 Corre Fresco 17 47 25/07/95

20 Engenho I 14 38 25/07/95

21 Esperança 13 36 25/07/95

22 Flórida 2 5 25/07/95

23 Ilha da Camboa (Camboa) 5 14 25/07/95

24 Iririzal 25 68 25/07/95

25 Itapuaua 63 172 25/07/95

26 Itauaú 83 227 25/07/95

27 Janã 22 60 25/07/95

28 Ladeira II 26 71 25/07/95

29 Lago 27 74 25/07/95

30 Macajubal I 21 57 25/07/95

31 Macajubal II 32 88 25/07/95

32 Mãe Eugênia 11 30 25/07/95

33 Mamona I 60 164 25/07/95

34 Mamona II 13 36 25/07/95

35 Mangueiral 35 96 25/07/95

36 Marinheiro 2 5 25/07/95

37 Marmorana 14 38 25/07/95

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

38 Mato Grosso 6 16 25/07/95

39 Murari 15 41 25/07/95

40 Mutiti 11 30 25/07/95

41 Nova Espera 22 60 25/07/95

42 Nova Ponta Seca 21 57 25/07/95

43 Novo Cajueiro 65 178 25/07/95

44 Novo Maruda 111 304 25/07/95

45 Novo Peital (Pepital) 50 137 25/07/95

46 Novo Peru 130 356 25/07/95

47 Novo Só Assim 30 82 25/07/95

48 Oitiua 350 958 25/07/95

49 Pacuri 25 68 25/07/95

50 Palmeiras 7 19 25/07/95

51 Pavão 18 49 25/07/95

52 Peri-Açu 35 96 25/07/95

53 Perizinho 39 107 25/07/95

54 Peroba de Baixo 29 79 25/07/95

55 Peroba de Cima ( * ) 68 186 25/07/95

56 Piquia 1 3 25/07/95

57 Ponta D'areia 124 340 25/07/95

58 Porto da Cinza 3 8 25/07/95

59 Porto do Boi I 56 153 25/07/95

60 Praia de Baixo 9 25 25/07/95

61 Prainha 82 225 25/07/95

62 Primirim 1 3 25/07/95

63 Quiriritiua 70 192 25/07/95

64 Retiro 15 41 25/07/95

65 Rio Grande I 85 233 25/07/95

66 Rio Grande II 7 19 25/07/95

67 Rio Verde 6 16 25/07/95

68 Samucangaua 48 131 25/07/95

69 Santa Helena 1 3 25/07/95

70 Santa Maria 122 334 25/07/95

71 Santa Rita II 7 19 25/07/95

72 Santana dos Caboclos 55 151 25/07/95

73 São Benedito I 22 60 25/07/95

74 São Francisco II 4 11 25/07/95

75 São João de Cortes 190 520 25/07/95

76 São Lourenço (* *) 7 19 25/07/95

77 São Paulo 2 5 25/07/95

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

FONTE: Ministério da Saúde/ Fundação Nacional de Saúde/ Distrito de Pinheiro, Relação de Localidades/ Município

de Alcântara, 13/08/2001.

NOTAS:

( * ) Num recenseamento elaborado em maio de 2002, os moradores de Peroba de Cima registraram, eles próprios,

em seu povoado, 58 casas e 196 pessoas.

(* *) Vários moradores de São Lourenço, no decorrer de 2001, mudaram suas casas para Rio do Pau, que fica às

margens da rodovia MA-106. A família de D. Luzia, composta de quatro membros, permanece, entretanto, no local do

povoado, conforme informação obtida em conversa com o Sr. Simão Reis Araújo, 62 anos, que mora perto da

"marinha" em Samucangaua.

(* * *) Em virtude de mortes ocorridas em 2001 e da mudança domiciliar de três pessoas, atualmente residem no

povoado Vai com Deus apenas seis pessoas.

(****) Procedemos a uma tentativa de recenseamento nas chamadas terras da pobreza, a partir de Canelatiua. Registramos

informações demográficas sobre os seguintes povoados: Canelatiua, Bom Viver, Retiro, Uru-Mirim e Vila do Meio.

Os itens relativos a edificações e número de habitantes não apresentaram grandes variações em relação ao cadastro da

Funasa. Os povoados de Uru-Mirim e Vila do Meio no cadastro da Funasa aparecem agregados com Canelatiua. Aliás,

quanto a Uru-Mirim, foram detectadas somente duas casas fechadas e com sinais de abandono. De acordo com

informações levantadas localmente, tem-se o seguinte:

"Moravam lá duas famílias. Uma senhora com um neto e um casal de velhos. Quando foi em janeiro de 2001 a

senhora que morava com o neto morreu no poço, tomando banho. Era de tardinha. E lá era tão difícil de auxílio

que eles resolveram mudar para mais perto da estrada. Foram para Vila do Meio e o neto para São Luís com o pai."

(D.S.M. 13/04/2002 - ENT. 3.1).

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

78 São Raimundo III 4 11 25/07/95

79 Tacaua I 10 27 25/07/95

80 Tapicuem (Itapecuem) 6 16 25/07/95

81 Taturoca 1 3 25/07/95

82 Terra Mole 50 137 25/07/95

83 Terra Nova 17 47 25/07/95

84 Trajano 34 93 25/07/95

85 Trapucara 1 3 25/07/95

86 Vai com Deus 4 11 (***) 25/07/95

87 Vila Maranhense 1 3 25/07/95

88 Vila Nova I (Vila do Meio) 51 140 25/07/95

89 Vila Nova II 45 123 25/07/95

90 Vista Alegre 14 38 25/07/95

TOTAL 2949 8398

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Além dos 49 localizados fora dos limites da área desapropriada para fins deinstalação da base de lançamento de foguetes, que também integram o território dascomunidades remanescentes de quilombos e constam do quadro abaixo, foram registrados13 outros povoados, a partir dos materiais cartográficos elaborados para fins da perícia,igualmente fora da área desapropriada. Eles não aparecem no cadastro da Funasa, certamentepor terem sido agregados a povoados maiores, mas podem ser separáveis tanto quantoaqueles que assinalam apenas um ou cinco "prédios", porque assim são vistos e há os que sedefinem como a eles pertencendo. Passaremos a seguir a enumerá-los: Bordão, Bejú-Açu,Baixo do Grilo, Caçador, Centro da Eulália, Fora Cativeiro, Iscoito, Jacroa, Maracati, MariaPreta, Santa Luzia, Segurado e São José. No caso de Iscoito, Beju-Açu e Baixo do Grilonão obtivemos maiores informações. Mantivemos os dois últimos baseado nas cartas daDiretoria do Serviço Geográfico, do Departamento de Engenharia e Comunicações doMinistério do Exército, de 1981, correspondentes à área, e no mapa do Iterma, de julho de2001, também apoiado nas cartas da DSG-ME, mas assinalando: uma casa em Beju-Açu ecinco no Baixo do Grilo. Em se tratando de Iscoito, a informação foi obtida, sempormenores, em reunião realizada em Peroba de Cima para elaboração dos materiaiscartográficos desta perícia. Em virtude de não ter sido factível realizar um censo durante aperícia, com verificações detidas em cada situação definida como povoado, validamos taisinformações disponíveis. Todos eles encontram-se assinalados no mapa produzido nodecorrer do trabalho de campo pericial e que foi intitulado de "Alcântara: terra dascomunidades remanescentes de quilombo-territorialidade, uso dos recursos naturais, sítioshistóricos e conflitos sociais". Em suma, uma vez acrescentados àquele total de povoadospertencentes ao território das comunidades remanescentes de quilombo, temos um novototal correspondente a 152 povoados.

Povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos que se

localizam fora da área desapropriada para instalação da Base

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

1 Apicum Grande 8 22 25/07/95

2 Arenhengaua 100 274 25/07/95

3 Bacanga 8 22 25/07/95

4 Baixa Grande I 8 22 25/07/95

5 Baixa Grande II 17 47 25/07/95

6 Barreiros X 38 25/07/95

7 Belém 32 88 25/07/95

8 Boa Vista I 16 44 25/07/95

9 Boa Vista II 2 5 25/07/95

10 Boca do Rio 7 19 25/07/95

11 Caicaua I 3 8 25/07/95

12 Caicaua II 11 30 25/07/95

13 Cajiba 25 68 25/07/95

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

FONTE: Ministério da Saúde / Fundação Nacional da Saúde / Distrito: Pinheiro

Relação de Localidades / Município: Alcântara 13/08/2001.

14 Cajueiro II 29 79 25/07/95

15 Castelo 68 186 25/07/95

16 Conceição 57 156 25/07/95

17 Coqueiro 11 30 25/07/95

18 Cujupe I 77 211 25/07/95

19 Cujupe II 74 213 25/07/95

20 Curuça I 12 33 25/07/95

21 Guanda I 9 25 25/07/95

22 Guanda II 9 25 25/07/95

23 Iguaiba 26 71 25/07/95

24 Itaperaí 24 66 25/07/95

25 Itapiranga 16 44 25/07/95

26 Jacaré I 5 14 25/07/95

27 Jarucaia 11 30 25/07/95

28 Jordoa 11 30 21/01/99

29 Manival 122 334 25/07/95

30 Pacatiua (Paquativa) 32 88 25/07/95

31 Porto de Baixo 23 63 25/07/95

32 Porto de Caboclo 5 14 25/07/95

33 Raposa 4 11 25/07/95

34 Rasgado 12 33 25/07/95

35 Salina 4 11 25/07/95

36 Santa Bárbara 26 71 25/07/95

37 Santa Rita I 18 49 25/07/95

38 Santo Inácio 55 151 25/07/95

39 São Benedito II 6 16 25/07/95

40 São Benedito III 5 14 25/07/95

41 São Francisco I 3 8 25/07/95

42 São Maurício 26 71 25/07/95

43 São Raimundo II 56 153 25/07/95

44 Tapuio 3 8 25/07/95

45 Tatuoca 9 25 25/07/95

46 Timbotuba 35 96 25/07/95

47 Tiquaras II 11 30 25/07/95

48 Traquai 8 22 25/07/95

49 Vila Itaperaí 137 375 25/07/95

TOTAL 1276 3543

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Tecendo palha (Santo Inácio)

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"Se nós somos do quilombo, como se diz, da terra de negro, descendente

de escravo, descendente de índio, se a Fazenda Esperança e Itapuaua,

Santana dos Caboclos, Perizinho tudo, nós somos tudo assim como se

diz como os dedos da mão. Então nós temos a Flórida, a Forquilha tudo

são só uma coisa, agora, com sua separação, com seus lugares. Inclusive

Santana de Caboclo está dentro da Esperança, Esperança está dentro de

Itapuaua na praia viu? Perizinho tá dentro de Santana, Flórida está dentro

de Santana, que é a terra de santo. E Forquilha dentro também. E Peroba

está bem emendado. Como é que pode fazer uma separação de um com

o outro? Acho que não." ( J.A.- Itapuaua)

Ao considerar as interseções de planos organizativos e sem querer absolutizá-los, pode-se dizer que cada um destes planos consiste num conjunto de instituições sociaisapoiadas num princípio de afiliação, ou seja, num modo de agrupar os agentes sociais oude separá-los uns dos outros (Geertz,1967:259-263). Destacando os principais planos deinterpenetração dos povoados, decidimos descrever notadamente as interseções econômicas,ecológicas, religiosas e políticas configurando as fronteiras do território, sob diferentesprismas. Outros dados referidos a planos institucionais, como estabelecimentos de ensino epostos de saúde, não tiveram análise destacada e são citados no decorrer da investigação,ou constam do mapa básico elaborado para fins desta perícia.

A interdependência ecônomica e ecológica entre os povoados

Constata-se uma especialização no nível dos povoados de que deriva umadivisão de trabalho, abarcando múltiplos elos entre eles, desde a esfera da produção atéaquela da circulação dos produtos agrícolas, extrativos e da pesca. Semelhante interligaçãocompreende, pois, tanto as relações de troca, fixando equivalentes da farinha, do peixe secoe do peixe fresco, quanto a utilização de determinados recursos naturais e de meios detrabalho de uso comum.

Em termos de fragilidade ambiental, as terras de Alcântara revelam o agrestede um solo cansado, fraco e arenoso que necessita de calagem e correções. Para comportara pressão demográfica, têm sido definidas e acatadas, no âmbito dos povoados, regras de

A interseção dos planos deorganização social

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

uso comum dos recursos básicos1. Os povoados usufruem comunalmente das mesmasfaixas de terrenos agriculturáveis, designados centros, considerados mais adequados paracultivo e onde se encontram as reservas de mata ou capoeiras mais velhas, partilhadas entreos povoados de maneira ordenada e relativamente harmônica. Os divisores das terrascorrespondentes a cada povoado tangem-se nesses denominados centros. Ademais, a terranão é plana, possui solo arenoso e as florestas são relativamente ralas, muitas vezes batizadascomo capoeirões. A terra fica praticamente coberta pela vegetação no período chuvoso, osigarapés transbordam e os campos naturais afetados pelas marés ficam completamenteinundados, dificultando a pesca e a coleta.

Nas áreas que ladeiam a rodovia MA-106, além das areias quartzosas, háflorestas secundárias mistas em que os cocais avançam e as palmeiras de babaçu disputamcom o encapoeiramento cada faixa de terra. Apicuns, manguezais e campos inundáveisprevalecem nos povoados mais próximos ao mar, juntamente com o cordão arenoso daspraias, marcado por muricizais nas bordas. As matas de galeria e as pequenas reservasmadeireiras dos povoados têm sido mantidas com dificuldades, mediante regras quedisciplinam tratos agrícolas, práticas extrativistas e atividades pecuárias e de pesca. Elasinformam a referida divisão de trabalho: há povoados que mantêm o criatório cercado ouque amarram os chamados boi-cavalo e mantêm livres as áreas de plantio, enquanto queoutros mantêm soltos os animais, cercando a extensão dos terrenos de cultivo. A altura dascercas, seu estado de conservação e os materiais que devem ser usados nelas sãoinformalmente definidos e consensualmente acatados, dirimindo as disputas quando sucedemocorrências de gado invadir as áreas de plantio.

O entrelaçamento dos povoados pode ser exemplificado em termos dessesmúltiplos planos relativos ao ecossistema, à organização da distribuição e uso dos recursosbásicos no processo produtivo e aos circuitos específicos de serviços e de circulação de bensessenciais ao consumo. Dessa maneira, há povoados que se dedicam principalmente à produçãoagrícola, abastecendo aqueles que são voltados para a pesca e vice-versa. Os moradores dospovoados de Baixa Grande e de Novo Belém realizam atividades de pesca em Oitiua. Eles nãopossuem artefatos que possibilitem pescar uma quantidade maior de peixes. Em decorrência,eles compram mais peixe do que pescam propriamente. Adquirem o peixe no povoado deOitiua, trocando-o pela farinha d'água e pelo arroz que produziram. Em Oitiua, que é o povoadode maior expressão demográfica, há mais de 200 famílias que vivem basicamente da pesca e dafabricação artesanal de instrumentos relativos a ela, como: espinhel, rede, tarrafa e puçá. Ospescadores de outros povoados, como Manival e Itapuaua, reconhecem a qualidade dessesinstrumentos e dão preferência à sua aquisição para aumentar sua capacidade produtiva.Acrescente-se que para a aquisição de barcos de pesca todos os povoados acham-se referidosprincipalmente a São João de Cortes, onde há pequenos estaleiros que consomem diferentesespécies de madeiras, tais como: caju da baixa, bacuri e guamadim retirados das reservas demato dos povoados para a construção de embarcações. O povoado de Raimundo Sú (RaimundoSul) possui também pequenas unidades de fabricação de barcos. Os pescadores de Oitiua,situados a sudoeste do município, também incursionam eventualmente no rio Periaçu ou rio deSão João, mais ao norte, onde passam dias pescando. Através deles e destas incursões esporádicas,as duas mais expressivas microbacias localizadas respectivamente ao norte e ao sul do territóriodas comunidades remanescentes de quilombos2 tornam-se enquadráveis nas práticas de usocomum articuladas entre povoados de distintas posições geográficas.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Os moradores de Manival, por seu turno, vendem peixe e camarão para RioGrande, cujos moradores vão regularmente a Manival transportando arroz e farinha d'águapara a realização das devidas trocas. Manival e Pacatiua são também procurados pormoradores de inúmeros povoados, inclusive Rio Grande, como portos para embarcarcarvão, madeira, madeira de mangue, frutas, aves e porcos para a capital São Luís. Pescadoresde Brito, que praticam a pesca marítima, vendem peixes em povoados como Santa Mariae nas agrovilas de Peru, Marudá e Só Assim. Na pesca de rede, obtêm as taínhas e osbagres, que também são pescados com tarrafas. Com as malhadeiras mais grossas, pescamcamburés e pescadas, que variam de oito a dez quilos. Transportam a produção em bicicletas,conhecidas como cargueiras, que comportam duas caixas de isopor com capacidade para60 quilos cada uma. Verificamos que há duas bianas de moradores de Brito, chamadas de"Milena" e "Marister" – que ligam regularmente o povoado à capital São Luís, atracandono porto sob a ponte Bandeira Tribuzzi –, que transportam peixes e demais gênerosalimentícios produzidos nas regiões circunvizinhas ao povoado. Há também um barco àvela, chamado "Flor de Natal", que transporta para o mesmo destino tão-somente o carvão.

Constatamos ademais que esses povoados que possuem portos e exportamos mais expressivos volumes da produção pesqueira, além de possuírem os maiorescontingentes demográficos no município – como Oitiua, São João de Cortes, Prainha,Ponta D'Areia, Cujupe, Manival, que correspondem a pouco menos de 1/3 dos habitantesdos povoados arrolados – centralizam e irradiam sua influência sobre dezenas de outrosque se tornam seus tributários em termos de relações de troca. Entretanto, não só a condiçãode porto torna um determinado povoado o centro de irradiação ou de concentração deinfluências e de importância econômica. Há alguns deles voltados para o beneficiamento daprodução que, possuindo casas de forno, onde ocorre a transformação artesanal da mandiocaem farinha, constituem um fator de atração para as demais localidades próximas.

Intensificam-se essas trocas no período de preparo das chamadas roças.Nessa etapa do ciclo agrícola em que prevalecem as modalidades de ajuda mútua eintercâmbio de serviços e de força de trabalho, como a denominada troca-dia, entregrupos familiares de parentes e vizinhos, os entrevistados pontuam que a alimentaçãotem de ser mais forte. Como é um período que sucede à colheita, há uma relativaabundância de farinha d'água e são também fartos os resultados da pesca do camarão edo extrativismo do babaçu. As casas de forno funcionam quase de maneira ininterrupta,sem parar a ralação e a torração de farinha, e as mulheres dos pescadores concentramsuas atividades em levar ao sol os camarões que já foram ao fogo. Produzem o camarãoseco, que é um forte equivalente de troca. Os homens pescam e as mulheres trabalhamsecando o pescado, nos povoados ribeirinhos, enquanto os homens preparam o terrenopara o plantio e as mulheres encofam3 a farinha d'água, nos povoados considerados maiscentrais. Constata-se uma complementariedade em múltiplos aspectos, suprindo asnecessidades essenciais dos grupos familiares. Tal complementariedade acha-se consolidadahistoricamente e apresenta uma relação de pertinência e certo equilíbrio, quando seexaminam as conexões entre as diferentes etapas dos ciclos produtivos ou entre oscalendários agrícolas e extrativos e entre estes e as atividades derivadas da pesca4.

No que concerne à distribuição dos recursos hídricos disponíveis, pode-sedestacar que tanto o uso da água potável, os chamados olhos d'água, quanto as demaisutilizações são também realizadas mediante regras de uso comum. Percebe-se uma

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

reciprocidade positiva entre as redes sociais referidas aos povoados, com uma interdiçãoexpressa ao cercamento das fontes e nascentes, ou seja, com a proibição do uso privadode ribeiras e igarapés e demais cursos d'água. Não roçam e nem desmatam perto dasaguadas de modo a não afetar a vegetação que protege as nascentes ou que ladeia oscursos d'água. A própria localização dos povoados sempre observa a regra de evitar aproximidade das nascentes e olhos d'àgua, privilegiando o curso médio de rios e igarapés5.

As fontes e os chamados poços são mantidos enquanto recursos abertos. Assim,o denominado poço do frade – poço de pedra construído provavelmente em meados doséculo XVIII por ordem religiosa que detinha o domínio das terras –, localizado em VistaAlegre, é também utilizado por moradores de Baixa Grande e São Benedito.

Para o rio Periaçu confluem moradores de dezenas de povoados e das agrovilas.Mariscos, como ostras, sururus e caranguejos são extraídos em suas margens mais próximasdas cabeceiras, tendo como referência principal o povoado de Samucangaua. No curso médioe na foz prevalecem os peixes. Segundo entrevistados de Samucangaua, a escassez de víveresnas agrovilas tem forçado os moradores a uma pesca incessante e de características algopredatórias, posto que estariam extraindo prematuramente sururus e demais mariscos. Essetipo de uso predatório, bem como aquele das redes de malha estreita, é inibido pelascomunidades ribeirinhas, porquanto coloca em risco a reprodução de peixes e mariscos.

A utilização de terrenos para plantio pode variar segundo a localização dospovoados. No caso das agrovilas, a insuficiência de terras – devido a lotes inferiores àfração mínima de parcelamento agronomicamente prevista para o município – e o seurápido esgotamento – em virtude de a rotação nos lotes ficar comprimida num intervalode tempo que não permite o descanso do solo – têm obrigado os moradores a colocaremseus plantios em áreas que distam até oito quilômetros do local de moradia. Essa distânciaaumenta o esfôrço físico dos moradores e torna mais intenso o uso de animais de tração ecarga, ou seja, os bois-cavalo. Em São Raimundo, Rio do Pau, Castelo, Ladeira, Pavão eSanto Inácio os terrenos de plantio são mais próximos das residências. As unidadesresidenciais são fixas e os terrenos de plantio variam de lugar a cada novo ciclo agrícola.

As árvores frutíferas que não foram plantadas e nem constituem benfeitoriade nenhuma unidade familiar podem ter seus frutos apropriados por quaisquer pessoas, dequalquer povoado que seja. Os povoados em que houver abundância de frutos suprem osdemais e não há cotas estabelecidas por pessoa ou família, como narra um morador dePeroba de Baixo:

"A manga por exemplo, você está vendo muito pé de mangueira aqui,

mas não tem manga. Na Peroba de Cima tem manga agora. Se eu quiser,

vamos na Peroba de Cima pegar. Eu trago o tanto que eu quiser e ninguém

diz para mim: – Não junta, não leva. ( A. G. 14/04/2002 ENT.4.1 )

O extrativismo também é praticado livremente. O único ato de interdiçãomencionado refere-se ao babaçu nos lotes das agrovilas:

"coco babaçu pode pegar em qualquer lugar, ninguém proíbe. Só nas

glebas das agrovilas é que com a divisão dos lotes deram de não deixar.

Prenderam o coco, mas tá acabando por lá..." ( J.G. 14/04/2002 ENT. 4.2)

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Por outro lado, numa analogia com as práticas já mencionadas de extração demarisco, o ato de coleta é condicionado à madurez do fruto, seja para a juçara, seja para obabaçu. É interditado o corte de cachos na extração da amêndoa do babaçu. Somentepodem ser coletados os que se precipitaram ao solo.

Os maiores juçarais acham-se situados em São Maurício, Canelatiua, Mamonae Peru Velho e as práticas de coleta também respeitam o estado de madurez. EntrePeroba de Baixo e Peroba de Cima, existem duas "baixas" preservadas e separadas poruma campina, onde os moradores desses dois povoados extraem juçara. A interseçãoentre os dois povoados ocorre nessa prática conjunta de preservação e na distribuição deterrenos pra o cultivo e de extrativismo. Os moradores de Peroba de Baixo "fazem suasroças" na Peroba de Cima nos extremos com Terra Mole, Engenho, Prainha e CorreFresco, enquanto que aqueles de Peroba de Cima ajudam a manter o juçaral. Não proíbema coleta da juçara, mas não permitem a derrubada de palmeiras, nem que tirem a juçaraverde. É a madurez que assegura a reprodução da espécie. Senão, vejamos: "O juçaralmaior é aqui na Peroba de Baixo. Mas nós aqui não tiramos a juçara verdinha. Temque esperar ficar madura...".(J.G. 14/04/2002 - ENT.4.2)

Os instrumentos cilíndricos, feitos de palha e utilizados para espremer a massada mandioca, denominados tipiti, são produzidos principalmente em São Raimundo II edaí vendidos para os outros povoados. A produção de adobe, tijolo cru que não é cozido,concentra-se nos povoados de Santa Maria, Peroba de Cima, Ponta da Areia e São João deCortes. Essa produção artesanal tem levado à construção de casas segundo novas técnicasde levantar as paredes, que conferem à paisagem desses povoados um traço peculiar, e tempossibilitado um intercâmbio com os povoados próximos que discutem das vantagens ounão de se ter paredes de adobe.

Quanto à circulação de produtos, vale acrescentar que há uma rede deempreendimentos comerciais, as denominadas quitandas ou comércios, que são vinculadosdireta ou indiretamente a comerciantes de cidades próximas, notadamente Bequimão ePinheiro, e que servem indistintamente a diferentes povoados. Assim, tem-se que moradoresde Vista Alegre fazem compras de produtos industrializados na quitanda de Baixa Grande,que consideram "mais sortida". Há ligeiras variações entre elas no preço pago pelos produtosagrícolas e extrativos.

Antes, a amêndoa do babaçu de Baixa Grande era vendida para Pavão,Oitiua e Peroba. Hoje, os entrevistados afirmam que a produção declinou em demasia,fazendo com que a coleta se volte para o autoconsumo, principalmente para a feitura deazeite, que é como designam o óleo de babaçu para fins comestíveis. Os preceitos de nãoderrubar palmeiras continuam, entretanto, prevalecendo. As relações com os comerciantes,chamados quitandeiros, se concentram mais, agora, na produção de carvão, que é vendidona beira das rodovias ou na própria sede municipal, para abastecimento local, e da capitalSão Luis, que designam como cidade. Os compradores de carvão são dos povoadosmaiores e, mediante o aumento da demanda de seu uso doméstico, têm visitadoseguidamente os demais povoados, sem obedecer exatamente o ciclo usual das "caieiras"de verão. Organizaram um sistema regular de transporte das cargas para a capital, ondetêm um entreposto de comercialização, no que chamam de "porto livre" da Camboa.

Nas trocas entre famílias de povoados diferentes, há algo mais que "coisastrocadas", há elementos de um mesmo complexo cultural, que são reforçados por esse

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

intercâmbio voluntário. Definindo-se os povoados por essas interrelações, pode-seafirmar ainda que o acesso aos meios de produção depende do grau de inclusão oupertencimento à comunidade. A terra para cultivo é alocada para os membros dospovoados consoante suas necessidades simultâneas de autoconsumo e de comercialização.Os lugares (litoral, "interior" ou "centro", ribeiras dos rios) em que os povoados seformaram ou para onde se deslocaram geograficamente, consoante os critérios derelação equilibrada com os recursos naturais, podem ser pensados como ecossistemasaos quais os grupos estão adaptados. Historicamente, ocupam lugares distintos e como uso comum resultam por reduzir ao mínimo a competição por recursos naturaisrelativamente escassos e por respeitar a fragilidade ambiental. Cada povoado teriapelo menos um porto de referência, uma aguada ou poço, bem como uma reserva demata para prover necessidades eventuais de reparo e construção de casas e deembarcações e de feitura de mastros para as festas dos santos. O porto e a reserva demata podem ser compartilhados com outros povoados, enquanto que o núcleo dehabitações, também designado sítio, e os terrenos de cultivo seriam exclusivos ouprioritários no seu uso para as famílias que ali se agrupam, seja por laços deconsanguinidade e afinidade, seja por sucessão ("herdeiros"), seja por vínculos religiosossob a designação genérica de comunidade.

As "circunscrições" religiosas

Os integrantes das comunidades se agrupam religiosamente em fronteiras quetranscendem os povoados. A manutenção de rituais religiosos rompe com os seus limitesestritos, estabelece lealdades para além do parentesco e da atividade econômica conjunta,levando a que os devotos se movimentem com maior freqüência em direção a algunspovoados, que assumem uma posição de centralidade. A obrigação compartilhada defreqüentarem cerimônias religiosas, de maneira recorrente, em determinado templo, defineoutra forma de pertencimento à estrutura dos povoados. Igrejas, como em São João deCortes, e as inúmeras capelas da Igreja Católica, juntamente com templos da Assembléia deDeus, que se distribuem por Oitiua, Manival, Mangueiral, Marudá, Peru, Santa Maria eMocajubal, e da Igreja Batista, em Peroba de Cima, propiciam, através de padres e pastores,serviços religiosos regulares, com missas e cultos, para pessoas de diferentes povoados. Afreqüência evidencia um grau de interrelação. De igual modo, os chamados terreiros e terreirosde mina, localizados, entre outros, em Itapiranga, Rio do Pau e Mocajubal (perto da agrovilaNovo Peru), e os denominados pajés e pajoas, em Belém e Bom Viver, realizam eventualmentesessões de cura, delineando, como o fazem os demais funcionários religiosos, suas respectivas"circunscrições". Essas regiões não produzem comunidades rigidamente separáveis e é possívelse entrever as mesmas pessoas presentes em missas ou em pajelanças, em povoados diferentes,referidos a qualquer uma das territorialidades já citadas: terras de santo, terras de preto e terrasde caboclo. Buscam atendimento religioso a demandas que vivem como distintas, combinandoo que na aparência se exclui mutuamente. As ditas "circunscrições" religiosas permitem mapearde uma outra maneira o território das comunidades remanescentes de quilombo, estabelecendovínculos e pertencimentos de várias ordens a povoados não necessariamente contíguos.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Os cemitérios e as tensões socias em face da interdição de uso, peloCLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá

No que tange aos cemitérios, como recinto sagrado que transcende àsdiferenças de confissões religiosas, em que não apenas se enterram os mortos, masonde são guardados os elementos da descrição genealógica e renovada a memória emrituais que congregam os descendentes e afins, verificamos que não há correspondênciaexata entre os povoados e o que chamam de "campo santo". Levantamos 19 cemitériosdistribuídos desigualmente pelos 139 povoados arrolados, assinalando que diferentes povoadosenterram seus mortos num mesmo recinto cemiterial. Onde estão enterrados os ancestrais detoda uma rede de povoados, mais que um "campo santo", estrito senso, consiste numa parteda história do grupo. Aqui, novamente, a geografia parece não funcionar como critério paraexplicar as formas de coesão social. Nem sempre enterram os mortos no cemitériogeograficamente mais próximo. Depende da "escolha" feita pelas famílias. E tal seleção parecelevar em conta, pelo menos nas situações verificadas, fatores de história pessoal e de parentescomais exatamente alusivos aos antepassados. Foi possível perceber isso em trechos de entrevistasem que reivindicam o livre acesso ao "antigo" cemitério de Perú e Marudá, hoje interditado econtrolado pela administração do CLA, que desde os deslocamentos compulsórios não maisautoriza enterros aí. Senão, vejamos: "ali foi enterrado meu umbigo" ( J.S. ou J.G. de Cajueiro.23/04/2002 ENT. 26); "meus avós e pais estão ali e nem no Finados posso chegar pertodeles" (M.L.S.D. de Marudá).

Historiando o deslocamento compulsório, a senhora de Marudá assim sepronunciou em reunião realizada na Câmara Municipal de Alcântara:

" (...) nem área para fazer cemitério deram para nós. Fizeram o cemitério

dentro de minha gleba... eles enterraram o primeiro que morreu dentro

da minha gleba, hoje uma parte da gleba está ocupada pelo cemitério

porque todo mês morre um para enterrar lá... Tomaram da gente o

cemitério velho e meu pai, minha mãe, meus avós estão enterrados lá e se

for possível eu quero ser enterrada lá onde meu pai foi enterrado."

(M.L.S.D. de Marudá).

Pode-se asseverar que há povoados cujos mortos são enterrados em mais deum cemitério com os territórios de parentesco segmentando-os e tendo primazia nas redesde relações. A decisão de onde enterrar os mortos define pontos de convergência nessasredes, fazendo dos sepulcrários um critério de afiliação e pertencimento que suscitasolidariedades mais intensamente valorizadas. Os que se mobilizam hoje mais diretamentepelo livre acesso ao cemitério controlado pela administração do CLA encontram-se referidosa mais de dez povoados do total de 21 deslocados compulsoriamente em 1986. O cemitériomostra-se indissociável da identidade pela qual os agentes sociais se definem e se posicionam,posto que simboliza o pertencimento em termos genealógicos, que faz uma pessoa serreconhecida socialmente como parte de um grupo. Foi nesse sentido que decidimos disporos dados, intersecionando planos comunitários, quer dizer, tanto enumerando os povoadosonde se localizam os cemitérios, quanto mencionando aqueles outros povoados que alienterram seus mortos.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

NOTAS:

(1) No cemitério da sede do município, na cidade de Alcântara, são enterrados mortos de vários povoados circunvizinhos,

dentre eles: agrovilas do Cajueiro, Nova Espera, Ponta Seca e Pepital e ainda Boa Vista, Trajano Mangueiral.

(2) O cemitério de Itamatatiua constitui ponto de convergência de mais de uma dezena de povoados, quase todos eles

localizados na área de remanescentes de quilombo, ao sul do município de Alcântara, cujo processo de reconhecimento

e titulação encontra-se a cargo do Iterma a partir de convênio firmado com a SMDH, em 1998. Alguns povoados

dentro da área de remanescentes de quilombo ora identificada, como São Raimundo, enterram seus mortos em

Itamatatiua ou em Japeú. Essa interligação entre as diferentes áreas identificadas encontra-se analisada no texto.

(3) Há povoados que aparecem referidos a mais de um cemitério, como Novo Belém e Ladeira, evidenciando que

nem sempre a proximidade física entre as localidades define o local do funeral. Relações de afinidade e parentesco

podem funcionar como critérios de escolha do local de sepultamento. Destaca-se, entre esses critérios, o local onde

foram sepultados os antepassados.

Cemitérios

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

As festas religiosas

As devoções aos santos padroeiros compõem um calendário de rituais religiososque ocorrem fundamentalmente na estação mais seca, definida como verão, e que se estendemdo fim das chuvas, em maio, até que novamente elas reiniciem em dezembro e janeiro. As festasde São Sebastião ocorrem invariavelmente já sob as primeiras chuvas. No decorrer da estaçãochuvosa, não se registram, portanto, grandes festas religiosas.

Cotejando com o ciclo produtivo, importa salientar que os festejos começamquando a colheita do arroz e do milho, bem como as farinhadas, já terminaram ou aindaestão terminando. Em maio têm como referência a Festa do Divino, que desde a derrubadado mastro já mobiliza diversos povoados. É considerada a "festa da sede", em oposição aSão Benedito ou "festa dos pretos", que ocorre em agosto e é vista como a festa dospovoados e dos tambores de crioula de povoados como São Mauricio, São Raimundo,Iririzal, Samucangaua, Itapuaua, Pavão, Só Assim e Agrovila do Cajueiro que se agrupamno largo da Igreja Rosário dos Pretos, na sede do município. Em junho, ocorrem as festasde São João e São Pedro em S. João de Cortes e em outros povoados. Nesse período,imediatamente após a colheita, as famílias dispõem de parte da produção para formar osfundos cerimoniais destinados a assegurar materialmente os eventos. Em outubro, ospovoados mais ao sul do município se agrupam nas novenas e bailes de radiolas queanimam a festa de Santa Teresa, em Itamatatiua, e em janeiro ocorrem as festas de SãoSebastião, sobretudo nas fazendas de gado da beira-campo.

Nas festas em todo o município, através dos grupos de tambor de crioula deSão Maurício, São Raimundo II, Iririzal, Itapuaua, Pavão, Oitiua, Só Assim e agrovila Cajueiro,os povoados estreitam seus laços. A percussão é considerada, numa visão de senso comum,como uma arte própria de alguns povoados, preponderantemente das chamadas terras depreto, mas pode ser registrada nas terras de caboclos, como soa ser em Oitiua. Elaboreium quadro com as festas e os povoados respectivos tentando evidenciar a composiçãodessas redes de relações, que perpassam as territorialidades e simultaneamente concorrempara estruturá-las. O fato de ocorrerem em terras de santo demonstra ainda que a etnicidadeaqui comporta duplos pertencimentos "pretos/ santo" e "caboclos/santo" que em verdadereferem-se a um único elemento identitário indissociável da territorialidade. O territórioétnico, nesse sentido, transcende a uma noção estrito senso de terra, como recurso básico, eremete a interações sociais entre pessoas e famílias, entre povoados e entre redes de povoadosentre si, nas quais as devoções é que definem o pertencimento às comunidades. Pode-sedizer, pois, que as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de caboclos são maisque simples terra, num sentido geográfico, e se erigem, não obstante a diversidade desituações, enquanto território cultural e etnicamente distinto.

No quadro a seguir, descrevo o calendário de festas religiosas com a relaçãodos principais povoados que as organizam e dela participam, indicando também aterritorialidade específica de referência. Constata-se que as festas perpassam, inclusive, aárea ora delimitada nesta perícia, em se referindo a Itamatatiua, cujas terras foram parcialmentedesapropriadas pelo Incra e a outra parte encontra-se sob ação fundiária do Iterma paraefeitos de aplicação do Art. 68 do ADCT.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

As instâncias políticas de mediação

Pelo critério da mobilização política, os elementos identitários parecem falarmais forte, sobretudo a partir do Art. 68 do ADCT e das informações que os agentessociais passam a ter desse instrumento jurídico de reconhecimento de direitos coletivos, quese coaduna com seu universo de auto-atribuições. O referido artigo enuncia o reconhecimentodo processo específico de territorialização das comunidades remanescentes de quilomboque compreende as denominadas terras de santo, terras de preto, terras de caboclo, terrasda pobreza e demais expressões derivadas. Tal processo abrange, pois, essas territorialidadesespecíficas e os agentes sociais a elas referidos que se autodefinem como "pretos", "caboclos"e "pobres" e que foram homogeneizados pelo tipo de intervenção do Estado em Alcântara.Tais categorias, que não cabem mais nos esquemas interpretativos, de perspectiva evolucionista,que prognosticavam uma inexorável assimilação racial, que acomodava tensões e assinalavapara um "branqueamento" da população, chamam a atenção para os fatores étnicos quepossibilitam um novo plano de definição das identidades, segundo as quais os agentessociais se reconhecem enquanto grupo portador de uma cultura que transcende vínculossindicais ou de associação formal. O advento de tais categorias, através de um critériopolítico-organizativo, define uma situação social particular.

As características culturais contrastantes, agravadas por circunstânciasrecentes e externas à trajetória do grupo, como sucede com a implantação do CLA, foramimpelidas a uma maior visibilidade social. As medidas oficiais adotadas pelo CLA, aolimitarem drasticamente a sobrevivência física e a reprodução social das comunidades, apartir da destruição de sua base física – ou seja, os povoados deslocados compulsoriamentee ameaçados de deslocamentos –, provocaram impactos sobre a percepção dos própriosagentes sociais de si mesmos diante dos direitos básicos instituídos juridicamente paraassegurar a persistência de diferenças culturais. A consciência quilombola emergiu no decorrerdesse conflito, quando a categoria trabalhadores rurais dava mostras de esgotamento e avelocidade das pressões sobre sua cultura e estilo de vida aumentaram intensamente. A vidasocial, sobretudo nos povoados da "faixa de segurança" ou área mais diretamente afetada,passou a organizar-se explicitamente no sentido de exigir observância não apenas documprimento dos dispositivos da legislação agrária, que foram subvertidos no desrespeitoà fração mínima de parcelamento, mas sobretudo dos direitos étnicos.

Até 1988/89, a mobilização não levava em conta a identidade étnica,tampouco os agentes sociais se autodefiniam como quilombolas e nem podiam fazê-lo,com o risco de, na sua relação com os poderes constituídos, se definirem à margem dosdispositivos legais. Autodefiniam-se como trabalhadores rurais, assim eram tratados nassuas manifestações diante dos aparatos do Estado e mantinham-se seguros na condiçãolegítima de "herdeiros" de doações, aquisições e direitos de sucessão de seus antepassados,ou simplesmente na condição também legítima de posseiros e ocupantes. Sua posição legalatinha-se ao componente fundiário. Ainda que assim se autodefinissem, vale asseverar quejamais deixaram de existir as identidades correspondentes às territorialidades específicas,que os singularizavam em face de poderes políticos e dos demais segmentos sociais com osquais secularmente vêm interagindo, seja nos mercados rurais, seja na prestação de serviços.Aliás, essas territorialidades, que efetivamente caracterizam a estrutura agrária dessa região,

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

permanecem invisíveis tanto para as estatísticas cadastrais do Incra, quanto para as categoriasdo censo agropecuário do IBGE. Esse desconhecimento deliberado, mais que uma omissãoou lacuna censitária, é um fator de confronto, que ao querer destruir não estende apossibilidade de reconhecimento formal. Trata-se de uma eliminação mais que simbólicaou involuntária, refletindo a própria forma como o poder dos grandes estabelecimentosagrícolas, de cunho escravista, foi construído juridicamente no mundo colonial, consagrandoum tipo de propriedade e de imóvel rural, como absoluto, que menospreza as outrasformas de propriedade culturalmente distintas e vistas como potencialmente subordinadasou escravas, e que persiste nas disposições jurídicas hodiernas.

Assim, a ênfase na identidade étnica como alternativa num contexto de totalpressão externa que leva o grupo a uma situação limite, colocando em jogo sua reproduçãofísica e social, pode levar a formas de existência coletiva, com características intrínsecas emtermos organizacionais (Barth, 2000:60). O que já existia efetivamente, mas não erareconhecido como tal, encontra possibilidades para emergir. Está-se diante de umacombinação de fatores em que laços primordiais e permanentes, em termos históricos,articulam-se com expressões jurídicas contingentes, num contexto de conflito extremo, decaracterísticas terminais. Tal combinação, ocorrendo num processo de territorialização jábem delineado, pode ser facilmente distinguível de qualquer abordagem de cunhoinstrumentalista, que pretenda interpretar o advento da identidade quilombola como umaestratégia do grupo de lançar mão de uma identidade, objetivando simplesmente obtervantagens materiais e simbólicas.

Os agentes sociais no conflito com o CLA adotaram uma forma deresistência que enfatiza um determinado elemento identitário, entre os vários presentes naorganização social tradicionalmente estruturada. A ênfase nos quilombos, como capazde imprimir uma identidade étnica, mesmo que haja diferenças "culturais" aparentes entreos que habitam e cultivam nas territorialidades específicas, emana da agudez do conflitocom a intervenção governamental que resultou no advento de uma forma de existênciacoletiva capaz de se confrontar com os antagonistas. A proeminência daqueles povoadosque explicitamente acionam a denominação terras de preto concorre secundariamentepara isso. São cerca de 100 povoados referidos explicitamente pelos agentes sociais queneles vivem como terras de preto, dentre os 139 arrolados, que se colocam sob estadenominação e assim são reconhecidos. Como se pode constatar nos depoimentos daparte sul da área delimitada:

"Santa Rita, Curuça, Santa Bárbara, Barreiro, Bonfim e aí vai até Guaíba, já

Guaíba é lá na beira do igarapé, já tá quase na costa. Lá já se olha Alcântara.

Para cá mais tem acesso para ir daqui lá por terra. E é só negro toda essa

região, que vai até o São Francisco onde o Leitão diz que é dele, que o

Delino mora lá, toda essa área aí é negro que mora aqui dentro destes

matos aí, pra chegar lá dá uma luta danada, mais chega, duas, três horas de

viagem, quatro já dá pra chegar. (...) e por aí vai tendo só festa de São

Benedito que é festa do preto. " ( G.X. 19/04/2002 ENT.16).

"Cujupe é uma terra de caboclo, como Oitiua. Ficam nas extremas com os

pretos no meio, e assim vai." (G.X. 19/04/2002 - ENT.16)

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Delegacias sindicais

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

A indagação mais freqüente é para que se diga qual seria o suporte dessaescolha que leva todos os povoados a convergirem para uma mesma identidade, produtode uma mobilização coletiva contra uma forma de intervenção do Estado. Numa tentativade resposta, vale citar: a recusa explícita a quaisquer modalidades de subordinação, expressapelo ideal de autonomia desses povoados; o passado trágico que remete aos horrores daescravidão, sempre acionado pela história oral e pela memória social dos integrantes dospovoados, quaisquer que sejam; o temor permanente pelo que designam de cativeiro ou aposição que consideram mais degradante, humilhante e desonrosa. Ancestrais remotos sobo jugo da escravidão são sempre lembrados, porquanto viabilizaram o acesso aos recursosnaturais hoje essenciais à reprodução física e social dos povoados. As narrativas de fuga eaquelas outras análogas referidas à chamada pegação ou fuga em face do recrutamentocompulsório para guerras, às chamadas tocas ou esconderijos nos fundos das fazendas ounos abrigos das terras de ordens religiosas: todas essas modalidades de escapar dosmecanismos repressores da força de trabalho parecem convergir, hoje, para o significadode quilombo ou comunidade remanescente de quilombo compreendida como negaçãodo trabalho escravo e garantia de livre acesso aos recursos para assegurar a reprodução, ecomo o elemento mais afinado com o ideal de autonomia preservado historicamente pelasterritorialidades específicas e seus respectivos povoados. Certamente que só sugere paradoxalà primeira vista imaginar como remanescente de quilombo um povoado onde os agentessociais se auto-representam como descendentes de escravos, pretos, índios ou como caboclos.

A noção de quilombo surge como identidade de referência dos povoadosnum antagonismo que envolve o acesso a bens essenciais, que tem reduzido vertiginosamentea produção de mandioca, ou seja, a capacidade de as famílias fazerem farinha, afetandohábitos alimentares e estilo de vida. Nesse sentido, a noção de quilombo não pode sercongelada historicamente, impondo aos grupos sociais uma forma de se classificarem. Aocontrário, são eles próprios que elaboram suas categorias de auto-atribuição e suas formasde relação com os poderes constituídos, recolocando os quilombos na ordem do dia daspautas oficiais e do Estado. Nessa elaboração, o significado da identidade se altera consoanteas circunstâncias. Assim, no caso de Alcântara, a identidade quilombola – que historicamenteera sobretudo um atributo econômico, simbolizado pela autonomia no processo produtivo– assume cada vez mais uma dimensão política, infletindo sobre as associações e sobre opróprio sindicato, que passa a conduzir as reivindicações nesse sentido, considerando oconflito não apenas agrário, mas sobretudo étnico. Desse modo, a inter-relação entre ospovoados evidencia que a resistência às medidas de implantação do CLA implica em novasmaneiras de se organizarem e de marcarem diferenças culturais potencialmente abafadas esocialmente invisíveis pelo peso das ações de inspiração colonialista. Os povoados que

Nota ao quadro da página 178:

(1) Consoante dados de 2001 levantados pelo STR de Alcântara, a entidade possui 31 delegacias sindicais com 1991

associados. Destas, sete encontram-se fora da área identificada como de comunidades remanescentes de quilombo,

no âmbito deste laudo pericial, a saber: Alcântara (sede), Itamatatiua, Paraíso, Portugal, Raimundo Sul (Raimundo-

Sú), Mocajatuba, Baiacuaua e Timbira, compreendendo, respectivamente, 492 homens e 333 mulheres, ou seja, 825

associados ou ainda cerca de 41% do total geral apresentado acima. Muitos associados vinculados à delegacia

sindical da sede são dos povoados mais próximos a Alcântara. Há inúmeros outros associados que ora habitam no

perímetro urbano de Alcântara e que também estão referidos a esta delegacia.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

tinham uma interdependência econômica e ecológica, a partir dessa mobilização étnicapassam a ter também uma estreita ligação política, passando a se constituir em unidadesorganizadas, compondo uma comunidade política que vincula os povoados uns aos outros.Tal vinculação, que configura um território étnico, reforça o objetivo deste trabalho pericial,que analisou os elementos a partir dos quais os agentes sociais focalizados estão se dizendoquilombolas e se estruturando como comunidades remanescentes de quilombo.

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Introdução

1 A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, produzida pelo IBGE, em 1959, atribui ao município

de Alcântara uma área de 1.114 quilômetros quadrados (IBGE, 1959:31). As Informações Básicas

sobre o Município de Alcântara, elaboradas em 1972 pelo Instituto de Pesquisas Econômico-

Sociais e Informática-IPEI, do Governo do Estado do Maranhão, atribuem-lhe uma área de 1.201

quilômetros quadrados (IPEI, 1972:4).

Notas

O objeto da perícia e os procedimentos de obtenção de informações

1 Conforme já foi mencionado, foram visitados 53 povoados, com a realização de entrevistas na

imediaticidade da aplicação de técnicas de observação direta, tanto no centro do povoado quanto nos

terrenos dedicados aos cultivos, às atividades extrativas e à pesca. Foram obtidas, entretanto,

informações sobre duas centenas de povoados através de técnicas de observação indireta. Elas

consistiram na realização de "oficinas de trabalho" para discutir temas específicos, como o mapeamento

social das comunidades, envolvendo representantes de diferentes povoados, e na participação em

reuniões programadas previamente pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de

Alcântara, STTR, pelo Centro de Cultura Negra, pelo Projeto Vida de Negro e pela SMDH. As

informações obtidas por método indireto foram sempre confrontadas com relatos de outros

entrevistados, observando a possibilidade de divergência entre as versões, sobretudo porque as

reuniões em pauta referiam-se a questões no mais das vezes polêmicas e não exatamente produzidas

no âmbito da programação estrita do trabalho de pesquisa.

2 Os livros do STTR, que registram os aposentados a cada ano, entre 1997 e 2002, assinalam 435

nomes correspondentes a: 46 povoados, em 1997; 41 povoados, em 1998; 29 povoados, em 1999;

23 povoados, em 2000, e 65 povoados em 2001. Essas estatísticas não registram os aposentados

antes de 1997 nem tampouco os possíveis óbitos no período, dificultando qualquer operação de

soma e impondo a relativização do total obtido. As aposentadorias incluem os seguintes "benefícios":

auxílio doença, salário materno, aposentadoria por idade, pensão e "amparo previdenciário". Não

foram detectados casos de aposentadoria por invalidez.

3 Tais unidades, em Alcântara, organizam-se segundo duas expressões associativas: colônias de pesca

e movimento dos pescadores. Uma, sediada em Prainha, na área de influência do Movimento

Nacional dos Pescadores e do Movimento de Pescadores do Maranhão; e a Colônia de Pesca Z-10,

sediada na sede do município. Esta última tem 984 associados, incluindo-se os aposentados, que

também concorrem voluntariamente para o funcionamento da entidade.

4 Embora para Foster esses contratos sejam essencialmente diádicos, ligando partes contratantes

mais do que grupos e evidenciando que cada "pessoa" é o centro de sua rede de laços contratuais,

pode-se considerar que se trata de uma característica intrínseca ao povoado de Tzintzuntzan,

estudado por ele no México, onde não foram registradas organizações vigorosas compreendendo

três ou mais pessoas. Tomando-se Alcântara como referência empírica para tal conceituação,

certamente que tem que ser levada em conta a densidade dos aspectos organizativos e sua significação

na vida social.

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5 A exceção aqui aparece referida às terras indígenas. Entretanto, trata-se de situação em que

os povos são mantidos sob tutela.

6 Compulsando os livros de "Carregação" da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-

78), "onde eram transcritas na íntegra as faturas dos gêneros, africanos e brasileiros, escravos e

outros" (Carreira, 1988:20), Carreira observa que a escrituração mercantil não fornece informações

cabais sobre: idade, sexo e etnia dos escravos. O dado relativo ao sexo pode ser aclarado em

testamentos dos senhores de escravos e, parcialmente, na nomenclatura das faturas, "mas nunca

o da idade e o da etnia" (Carreira, 1988:113). Consoante o autor: "A indicação do porto de

embarque não conduz a conclusão nenhuma, dado que a distribuição das etnias é complexa e

numa pequena faixa da costa (africana) existe um complicado emaranhado de grupos." (Carreira,

1988:113). No caso do Maranhão, de acordo com a referida escrituração, os pontos de embarque

foram Bissau, Cacheu e Serra Leoa. Compulsando os "Diários" da Companhia Geral, tem-se o

nome dos rios e pontos da costa onde eram efetuadas as negociações para obtenção de escravos,

consistindo numa aproximação ainda vaga para indicar as etnias: rios Logos, Escasserim, Casamansa

e Geba e na costa Bossis, Balantas e ilhas dos Bigajós. Na feitoria de Bissau, estavam aprisionados

nos armazéns: Mandingas, Fulas e Bigajós. Após a extinção da referida Companhia, o tráfico

continuou a orientar-se para o Maranhão e Turiaçu, por exemplo, onde foram registrados

quilombos desde o fim do século XVII e de onde foram iniciadas grandes sublevações no século

XIX, consistiu num porto clandestino sem qualquer controle alfandegário das autoridades coloniais.

7 No Cartório do Segundo Ofício, em Alcântara, os dois inventários mais recuados que encontrei

foram de 1832, de Anna Florinda Silva, e de 1872, de João José da Cunha. Neles, as indicações sobre

os escravos são vagas e registra-se a designação "crioulo(a)", acompanhando o prenome. Neles, não

há menção a doações e atos de alforria. O mesmo se verifica nos testamentos mais recentes levantados

no Cartório do Primeiro Oficio.

8 Insisti nesse argumento mesmo considerando a pertinência de uma leitura crítica dessas explicações

de "esgotamento do solo", chamando a atenção para o fato de que isso não corresponde à exaustão

absoluta da terra, mas sim à diminuição progressiva do resultado das colheitas nas terras das grandes

plantações. Essa seria uma explicação do ponto de vista senhorial, que também poderia estar atrelada

à flutuação de preços do algodão e do açúcar no mercado, mas que acaba sendo reproduzida

acriticamente pelos comentadores regionais.

9 Uma informação complementar sobre esta dupla posição usufruída pelo Sr. Pedro Nascimento Sá,

que conta 86 anos – de exercer simultaneamente uma mediação interna, resolvendo disputas sobre

os terrenos de plantio entre moradores de povoados ou concedendo permissão de pesca para

moradores de povoados vizinhos, e uma mediação junto a órgãos oficiais –, concerne ao fato de ser

sogro do presidente do STR que conduz o conjunto das negociações com as autoridades

governamentais. O Sr. Samuel Moraes é casado com a filha mais velha do segundo matrimônio do

Sr. Pedro, que é o único cartorialmente registrado.

10 Levantamento realizado por Sérvulo de Jesus de Moraes Borges, do Centro de Cultura Negra, em

abril de 2002, também corrobora esta aglomeração de famílias impelidas a sair dos povoados no

chamado Anel de Contorno, da cidade de Alcântara, incluindo o Baixão do Lobato ou Buraco

Fundo e a Vila Airton. Na capital São Luís, de igual modo, foram registradas outras tantas famílias

nos bairros de Gamboa, Vila Embratel, Vila Palmeira e Liberdade. Linhares registrou, em 1998,

na Liberdade, uma aglomeração de famílias de Florida e Forquilha. O advogado das comunidades

desapropriadas, Dr. Domingos Dutra, realizou, em 1994, um levantamento abrangendo 600

famílias dos povoados de Alcântara que tinham domicílio em São Luís.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

11 Cabe a advertência de que essas práticas costumeiras não devem ser cristalizadas enquanto direito

consuetudinário, porquanto conhecem variações no tempo, condicionadas pela abundância ou escassez

dos recursos, pelas intempéries climáticas, pelo tipo de pressão de antagonistas que buscam usurpar

seus domínios tradicionais e pelas estratégias de sobrevivência que têm sido encetadas pelas unidades

familiares mediante os excedentes demográficos ou em contraposição a interesses conflitantes. A

noção de costume, aqui, não se refere a padrão de comportamento sancionado de maneira absoluta

e sempre reproduzido do mesmo modo pelos que o adotam. Ao contrário, mostra-se dinâmica e

contingente, abrangendo alterações condicionadas por fatores de diferentes ordens que redefinem

tais práticas, transformando-as, ainda que muitas vezes mantendo a mesma designação.

12 As visitas a alguns povoados coincidiram com reuniões realizadas pelo STTR de Alcântara, caso de

Peroba de Baixo e Peroba de Cima, e com oficina realizada pelo Projeto Vida de Negro/SMDH-CCN,

caso de Ladeira. Nas visitas aos povoados, fui acompanhado, no mais das vezes, pelo Presidente do

STTR, Sr. Samuel Morais. Nas caminhadas de reconhecimento dos marcos divisórios das áreas, fui

acompanhado pelos representantes dos povoados e por aqueles indicados por eles. Na delimitação do

conjunto da área, fiz-me acompanhar também de agrônomo e técnico em cartografia, como se poderá

constatar no memorial descritivo e nos mapas, em anexo, elaborados exclusivamente para fins desta

perícia.

13 Para além do total mencionado, foram utilizadas também duas entrevistas realizadas por A.

Cantanhede, em Ladeira, uma entrevista realizada por L. F. R. Linhares, no Bairro da Liberdade, em

São Luís, com antigo morador de Flórida e Forquilha. Uma última entrevista, nessa faixa etária, foi

realizada na sede do município com informante acima de 70 anos, reconhecido pelos demais

entrevistados como branco e que tem seus ancestrais no que Viveiros classifica como "aristocracia

alcantarense" (Viveiros, 1975:109). Por descendência direta, reconstituiu, sem maior esforço, quatro

gerações da genealogia da derradeira família de grandes proprietários de terra em Alcântara, simbolizada

por Antonino da Silva Guimarães (Viveiros, 1975:42). Esse entrevistado corrigiu, inclusive, a data

do falecimento de A. S. Guimarães para março de 1947, diferentemente da data de 1948, mencionada

por Lopes (1957:65).

14 Embora não tenha sido realizada uma coleta sistemática de dados nesse sentido, pode-se afirmar

que pelo menos quatro entrevistados possuem mais de trinta afilhados e são conhecidos em mais de

uma centena de povoados. Um deles, por prestar serviços relativos à cura e ser conhecido como

"doutor de ossos", recebe pacientes de municípios que distam mais de 100 km. Dois deles por terem

sido encarregados da terra, com função de arrecadar foros, e o quarto por ser o mais velho de uma

família de herdeiros, com direitos sobre a terra reconhecidos em cartório, que descende de um

vaqueiro que fazia a ligação entre os campos naturais e os povoados considerados centrais, ou seja,

que não se localizam na chamada beira-campo.

15 Cf. Decreto nº 7.820, de 12 de setembro de 1980, estado do Maranhão. Declara de utilidade, pública

para fins de desapropriação, área de terra necessária à implantação, pelo Ministério da Aeronáutica, de

um Centro Espacial no município de Alcântara, num total aproximado de 52.000 hectares.

16 Durante o trabalho de campo, verifiquei que há situações de desautorização desses protagonistas em

povoados como Pavão, onde ocorreu uma certa devastação das reservas por parte dos que acreditavam

que seriam fatalmente remanejados, a partir dos primeiros deslocamentos compulsórios realizados

pelo Centro de Lançamento de Alcântara em 1987, e acabaram migrando para a capital São Luís. Nesse

povoado, entretanto, teria ocorrido o falecimento do antigo encarregado, Sr. Domingos Araújo, sem

que sua autoridade tivesse sido transmitida a outro.

Situações de desautorização também foram registradas em entrevistas com referência a Itamatatiua,

povoado central das denominadas terras de Santa Teresa, a partir de ação fundiária inconclusa por

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

parte do Iterma, em 1997, que permanece provocando instabilidade na ação tradicionalmente

reguladora dos chamados encarregados da santa. O mesmo foi observado com respeito a São

Raimundo e São Maurício, a partir de interpretação feita pelo filho mais velho e herdeiro, que tem

encontrado dificuldades em fazer respeitar o veto à retirada de madeiras e, respectivamente, pelo

antigo encarregado da terra.

17 Entre esses termos e expressões, pode-se adiantar, porquanto serão retomados posteriormente,

aqueles constantes das descrições dos perímetros das áreas focalizadas, quais sejam: "pedras de

rumo", "datas", "abas de terras", "pontas e abas", "quinhão de terras", "mística" ou "fazem misco

com...", "extremas", "testadas de uma sorte de terras", "enseadas", "beiras" e "centros".

18 Cf . Registro Paroquial expedido em 01 de março de 1856, Livro 20, folha 10. Localizado no Arquivo

Público do Estado do Maranhão.

19 Cf. Registro Paroquial expedido em 30 de junho de 1856, Livro 20, folha 20. Localizado no Arquivo

Público do Estado do Maranhão.

20 Para se ter uma aproximação do tipo de acatamento e de difusão dessas narrativas, cabe esclarecer que elas

foram obtidas em entrevistas realizadas na casa de duas famílias que se apresentaram como membros da

Assembléia de Deus.

21 Para um aprofundamento sobre essa situação, consulte-se a dissertação de mestrado de Laís

Mourão (1974), que abarca as terras de Santa Teresa; as notas de campo produzidas no ano de

1972, por João Pacheco de Oliveira Filho, datadas de 6 de outubro, que descrevem os rituais e

cerimônias que compõem a festa de Santa Teresa e os episódios alusivos à Santa viva (Pacheco,

1972:1-12); e as observações de Terri Valle de Aquino feitas em Barroso, município de Bequimão,

quando da visita do cortejo das caixeiras tirando a citada jóia (Aquino, 1972:7-12). O valor da

jóia não é fixo nem é estipulado previamente e corresponde às condições de possibilidade das

famílias. Materializa a relação com o santo ou com a santa, por meio de serviços, bens ou

dinheiro. Tanto podem ofertar uma cabeça de gado quanto uma ave, um ovo ou uma certa

quantidade de arroz ou farinha ou o que apuram a partir da venda de determinados produtos.

Esses bens passam a integrar um fundo cerimonial que mantém o patrimônio da santa e que é

administrado pelos referidos funcionários religiosos.

22 Pelo fato de o trabalho de campo pericial ter se realizado no período de chuvas, ocorreram maiores

dificuldades de acesso aos marcos onde há subidas e descidas sucessivas nas trilhas. No caderno

fotográfico disposto em anexo, no Volume 2, há registros completos desses marcos com as devidas

inscrições.

23 Foram realizadas entrevistas e feitos contatos detidos com dirigentes do STTR de Alcântara, da colônia

de pescadores, do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Alcântara, Montra, do recém-

criado Movimento dos Atingidos pela Base de Lançamento de Alcântara e da Associação das

Comunidades Negras Quilombolas, Aconeruq.

24 Foram realizadas discussões no âmbito do Projeto Vida de Negro (SMDH-CCN), na Sociedade

Maranhense de Direitos Humanos e no Centro de Cultura Negra do Maranhão e contatos com

membros da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Rede Nacional de Advogados Populares.

Além dessas entrevistas, foram feitos contatos com vereadores e funcionários religiosos, a saber:

freiras, clérigos e pastores.

25 Para maiores informações sobre essa expressão, consulte-se a interpretação de Almeida sobre as

narrativas míticas da "decadência do Maranhão" (Almeida, 1983:197).

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26 O termo mocambo, nos dispositivos jurídicos da legislação colonial, era apresentado como sinônimo

de quilombo. Ambos designavam concomitantemente habitações e locais de refúgio de escravos

fugidos. Para uma interpretação crítica do deslocamento desta noção jurídico-formal e de sua

ressemantização, consulte-se o texto "Quilombos: sematologia face a novas identidades" (Almeida,

1996:11-19).

27 Carvalho Martins destaca essa situação no seu relatório preliminar de identificação de Itapuaua: "A

chamada toca, cujo significado pode ser assimilado à idéia de quilombo." (Carvalho Martins, 1998:10).

De igual modo, ela detectou também nos povoados a expressão "tempo da escravidão".

28 Os que fazem referência à história do "negro Tito" são principalmente aqueles cujas atividades se

referem de algum modo à baia de Cumã e à beira-campo correspondente. Não procedem a relatos

heróicos, porquanto viveram o medo e o temor quando era anunciado que o bando do "negro Tito"

estava próximo ou por ali deveria passar.

29 Há um vasto repertório de histórias sobre o significado de esconder sob as saias para evitar o

recrutamento compulsório, para burlar a vigilância de soldados e para acentuar a esperteza dos

moradores dos povoados diante da belicosidade dos chamados "brancos". Tal como as demais

histórias, que ressaltam qualidades e temores em face da ação de antagonistas mais poderosos,

são narradas em momentos de descontração e não necessariamente quando as perguntas dos

pesquisadores estavam sendo colocadas de maneira mais permanente à mesa. Pela sua extrema

variedade de versões e significados, certamente merecem um estudo à parte e uma decifração

mais detida, já que, muitas vezes, os narradores se posicionavam como contadores de histórias,

entremesclando personagens dos contos de fadas, como reis e príncipes que habitariam os

sobrados e zelariam pelos seus tesouros, com figuras da vida cotidiana dos povoados, como

pescadores, carvoeiros, mulheres levando seus filhos para o lugar das roças e, ainda, com seres

sobrenaturais. A pesquisadora Patrícia Portela coletou pacientemente inúmeras dessas histórias.

30 As disciplinas militantes valorizam esses atos, tornando-os marcos históricos de lutas e

mobilizações. O que os historiadores regionais classificam como pilhagem e saque de

fazendas é vivido, nesse contexto, como ato afirmativo, exaltado em processos de afirmação

étnica.

31 Esse conceito resulta do pressuposto de que não faz sentido aplicar, hoje, a mesma definição de

quilombo do Conselho Ultramarino, de 1740, às situações sociais ora classificadas como

comunidades remanescentes de quilombos. Não se pode congelar a definição jurídica da legislação

colonial, de finalidade nitidamente repressiva, e transportá-la mecanicamente no tempo, para que

preencha finalidade de reconhecimento oficial dos direitos dos quilombolas. A legislação colonial

coloca os quilombos numa camisa de força geográfica, como se fossem sempre isolados, localizados

em áreas remotas, longínquas, distantes dos mercados e produzindo tão-somente para subsistência.

Considera, ademais, os quilombolas como "coisa" ou como "peças" passíveis de serem recolocadas

no mercado de escravos pelos atos de captura. Os instrumentos jurídicos coloniais são de sentido

eminentemente repressivo, desqualificando os quilombolas e estigmatizando-os de maneira

absoluta. Em outras palavras: antes, o quilombo era para ser destruído e nessa direção eram

forjados os instrumentos jurídicos; hoje, o quilombo é valorizado e o propósito legal é que seja

oficialmente reconhecido. Ao contrário das noções do período colonial, nas situações sociais hoje

classificadas como remanescentes de quilombos, tem-se uma afirmação econômica de produzir

para diferentes circuitos de mercado, podendo o quilombo estar localizado próximo a núcleos

urbanos, aliado à emergência de uma identidade coletiva com base na autodefinição dos agentes

sociais em pauta, numa capacidade político-organizativa, em critérios ecológicos ou de conservação

de recursos básicos por meio de modalidades de uso comum dos recursos naturais ou por outras

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

formas similares de manejo sobre as quais se manifestem favoráveis as comunidades. Há uma

inversão dos elementos estigmatizantes, que passam a ser vividos como condição positiva. Para

maiores detalhes sobre esse conceito de quilombo, que relativiza a definição do código jurídico

colonial chamando a atenção para a necessidade de sua releitura, hoje, consulte-se Almeida,1996.

32 Os trabalhos relativos às fontes secundárias compreenderam, entre outros, o levantamento da

documentação administrativa do período colonial, que contém referências explícitas aos quilombos na

região de Alcântara, assim como as cartas de datas e de sesmarias expedidas no último quartel do século

XVIII e os "registros paroquiais", efetuadas entre 1854 e 1857, conforme os ditames da Lei nº 601, de

18 de setembro de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas do Império, definindo sobre o

preenchimento das condições legais para legislação de posses e antigas sesmarias. Para facilitar eventuais

consultas, que porventura se façam necessárias, classificamos e transcrevemos tais documentos e

decidimos expô-los no Volume III* desta perícia que concerne basicamente aos Anexos.

(*Na presente edição, uma seleção desses documentos foi incluída no Volume 2 – n.e)

Processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos

1 As atividades de pesquisa no âmbito desta perícia reiteram interpretações e constatações de investigações

científicas anteriores realizadas entre 1972 e 1999. A primeira delas refere-se aos trabalhos etnográficos

realizados, durante 1972 e 1973, pela equipe de antropólogos do Museu Nacional-UFRJ vinculada à

Pesquisa Polidisciplinar "Prelazia de Pinheiro", que se constituíram num ponto de partida para

outras pesquisas posteriores. A segunda concerne aos trabalhos executados por antropólogos,

advogados e agrônomos junto à Coordenadoria de Conflitos Agrários do Mirad-Incra, em 1985 e

1986, objetivando propiciar subsídios ao Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário

para apreciação das iniciativas do Estado Maior das Forças Armadas, EMFA, através do Ministério da

Aeronáutica, concernentes aos pequenos produtores agrícolas afetados pela implantação do Centro

de Lançamento de Alcântara. A terceira refere-se tanto aos relatórios preliminares de identificação de

comunidades remanescentes de quilombos em Alcântara, produzidos em 1997-98 por equipe

multidisciplinar vinculada ao Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão,

e financiados pela Fundação Cultural Palmares-Ministério da Cultura, quanto às dissertações de

mestrado relativas à questão, defendidas no decorrer de 1999 e 2000 no âmbito dessa mesma

instituição.

2 Cf. Lei de 06 de junho de 1755 ou "das Liberdades dos Índios", que, segundo o texto, restituiu aos

"índios do Grão-Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas, bens e comércio". A instituição da

Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, também denominada na documentação pombalina de

Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, ocorreu em 7 de junho de 1755 através de

Alvará régio de confirmação. Três anos depois, foi aprovado o "Directorio que se deve observar nas

povoações dos indios do Pará e Maranhão", firmado pelo rei D. José I e por Sebastião José de

Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, e datado em Lisboa, em 17 de agosto de 1758. Os bens

dos jesuítas, incluindo-se as fazendas, olarias e engenhos, foram sequestrados e sua arrecadação

passou a pertencer ao Real Erário. Em junho de 1760, os jesuítas foram detidos e forçados a sair de

Alcântara.

Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual dos conflitos

1 O conceito de plantation aqui utilizado se opõe àquele de fazenda, enquanto diferentes tipos de

organização social na agricultura. Tem como referência a distinção teórica de E. Wolf e S. Mintz, para

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

quem a fazenda seria uma "propiedad agrícola operada por un terrateniente que dirige y una fuerza de

trabajo que le está supeditada, organizada para aprovisionar un mercado de pequeña escala por

medio de un capital pequeño, y donde los factores de la producción se emplean no sólo para

acumulación de capital sino también para sustentar las aspiraciones del status del propietario. Y

plantación será una propiedad agricola operada por propietários dirigentes (por lo general organizados

en sociedad mercantil) y una fuerza de trabajo que les está supeditada, organizada para aprovisionar

un mercado de gran escala por medio de un capital abundante y donde los factores de produción se

emplean principalmente para fomentar la acumulación de capital sin ninguna relación con las

necesidades de status de los dueños." (Wolf e Mintz, 1975:493).

2 Para Viveiros (1954:163), eles eram banqueiros, que concediam empréstimos, e controlavam

exportações, importações e até o beneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos.

3 Esta interpretação enfatiza o exercício de atividades autônomas de cultivo e comercialização de possíveis

excedentes por parte dos escravos, em tempo livre e em terras das fazendas que lhes eram concedidas

para tanto. Consulte-se Sidney W. Mintz, "From plantations to peasantries in the Caribbean", in:

Caribbean Contours. The John Hopkins Univ. Press, p. 127-153, 1985. Consulte-se, também,

sobre a chamada "brecha camponesa" no sistema escravista e no Brasil, os estudos de Ciro F. S.

Cardoso in: Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Ed.

Brasiliense, p.31-125, 1987.

4 Essa situação referida concerne às aquisições de terras feitas, entre finais do século XIX e a primeira

metade dos anos 1940-50, por Antonino da Silva Guimarães e seus descendentes, que serão examinadas

posteriormente.

5 A área correspondente a essas três freguesias do município de Alcântara, no decorrer do século

XIX, correspondia a aproximadamente 195 mil hectares. Obtive esse total somando a área

correspondente ao atual município de Bequimão, antiga freguesia de Santo Antonio e Almas,

831,5 Km2, com aquela do atual município de Alcântara, que engloba as outras duas freguesias, ou

seja, 1.114 Km2. Excluindo as povoações e fazendas da beira-campo, que continuam apoiadas

principalmente na pecuária extensiva nos campos naturais, e considerando marcadamente a área

das freguesias de São Matias e de São João de Cortes, obtive o total alusivo à extensão das fazendas

de algodão.

6 Esse sistema não deve ser confundido com terras comunais, próprias do feudalismo, em que os

homens não são dissociados do recurso básico, sendo mantidos sob a autoridade senhorial, nem

com terras coletivas, que pressupõem uma intervenção externa de aparatos de poder, organizando a

distribuição dos recursos e dos produtos do trabalho. Em verdade, esse sistema de uso comum

distingue-se daquelas referências históricas concernentes a "sobrevivências feudais" e não significa

uma involução, que o sentido da expressão "decadência de Alcântara" pode denotar. Trata-se de uma

resultante das crises econômicas, próprias do mercantilismo que orientou as políticas do governo de

Pombal, produzida a partir de tensões peculiares ao desenvolvimento capitalista. Constitui, por

outro lado, uma modalidade de apropriação da terra que se desdobrou marginalmente ao sistema

econômico dominante. Emergiu enquanto artifício da autodefesa de indígenas, escravos, alforriados

e agregados, para assegurarem suas condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica

e de desorganização de grandes estabelecimentos agrícolas. Resultou em uma forma aproximada de

corporação territorial que se consolidou rapidamente numa região ainda central no final do século

XVIII, quando Alcântara era visto como "Ouro Preto ao Norte" (Tristão de Athayde, 1978), que foi

se tornando periférica a partir de meados do século XIX.

7 Conforme a conceituação de Barth a respeito de grupos étnicos (Barth, 2000:31).

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

8 Por intermédio do Aviso nº 007/GM4/C-0033, datado de 27 de agosto de 1979, o ministro da

Aeronáutica comunicara ao governo do Maranhão seu interesse pela utilização de área no município

de Alcântara para o projeto de lançamento de foguetes.

9 No decorrer de 1982, foi instituído o Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara,

subordinado ao Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento do Ministério da Aeronáutica.

10 Para outras informações, consulte-se: "Só a decepção no final do bloqueio. Lavradores suspendem o

cerco à base e começam longa caminhada para as suas roças." O Imparcial. São Luís, 22 de março de

1986.

11 A documentação do MAer fala em 21 povoados, mas não inclui dois outros que foram mencionados

em entrevistas no decorrer do trabalho de campo pericial. Para maiores detalhes sobre os deslocamentos

compulsórios e as agrovilas, consulte-se Carvalho Martins (1994) e Fernandes (1998).

12 A Infraero passa a atuar na implantação da base juntamente com o Ministério da Aeronáutica através

do Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento, Deped, com base em Termo de Convênio com

vigência de 15 anos, firmado em 01 de novembro de 1996 (cf. Diário Oficial da União, 11/11/1996,

Seção 3, p. 23888). Em 2001, a Infraero já se encontrava afastada de qualquer intervenção.

13 Cf. "Relatório referente à preparação da população alvo da área de transferência e assentamento III -

Meta 1", Infraero-CLA, 05 de novembro de 1998. Esse documento dá sequência às medidas de

deslocamentos compulsórios, distinguindo as chamadas "áreas de transferência", que perfazem 152

famílias, daquelas de "assentamento", que afetam 103 famílias, num total de 255 famílias atingidas,

correspondendo a 908 pessoas.

14 Cf. Relatório do Encontro "Seminário Alcântara: A Base Espacial e os impasses sociais". Contag,

Fetaema, STTR de Alcântara, 1999. 40 p.

15 Para um aprofundamento dessa discussão do EIA-Rima, consulte-se: Barbosa Pacheco, M.A. A

questão ambiental como direito social. O caso do Relatório de Impacto Ambiental do Centro de

Lançamento de Alcântara. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Maranhão. MPP-UFMA.

2000. p.57-105.

16 Tal decisão não foi efetivada e, até agosto de 2002, nenhuma medida foi adotada nesse sentido pelos

responsáveis pela implantação do CLA.

17 Consulte-se o "Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados

Unidos da América sobre salvaguardas tecnológicas relacionadas à participação dos Estados Unidos

da América nos lançamentos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara", datado em Brasília, 18

de abril de 2000, e firmado pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardenberg e

pelo Embaixador dos Estados Unidos da América Anthony S. Harrington.

18 Cf. Ofício nº JG-RJ 179/01, de 16 de agosto de 2001, dirigido ao embaixador Santiago A. Canton,

Secretário-Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

19 Cf. Decreto de 20 de janeiro de 1994. Diário Oficial da União, 21/01/1994, p.1015, e Decreto de 10 de

junho de 1996. Diário Oficial da União, de 11/06/1996.

20 Cf. "Convênio celebrado entre Seplan/MA e Iterma visando promover estudos de preservação

ambiental e ações fundiárias para recuperação do patrimônio fundiário e cultural das comunidades

negras rurais tradicionais remanescentes de quilombos" Todas as ações, segundo os termos do

Convênio, teriam o acompanhamento sistemático do Centro de Cultura Negra, da SMDH e da

Fetaema. Datado em São Luís, 11 de julho de 1996. A extensão das duas áreas citadas foi obtida a

partir de consulta à base cartográfica do Iterma, concernente às ações fundiárias em Alcântara, elaborada

em 2000.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Muralhas e Paredões

1 As técnicas de identificação consideradas próprias à situação dos quilombos em Alcântara escapam das

auto-evidências e dos procedimentos usuais de historiadores e arqueólogos em elencar provas através

de elementos da cultura material. As escavações e a descoberta de inscrições guerreiras, de vestígios de

muros de fortificações militares, de fragmentos de artefatos bélicos (lanças, pontas de ferro), de pedras

que balizam a praça central dos quilombos e o seu formato, corresponde a outras situações históricas,

como as que caracterizam, por exemplo, os trabalhos arqueológicos no caso de Nanny Town, na

Jamaica. Agorsah observa que, na caracterização dos quilombos na Jamaica, pode ser traçado um

amálgama ou uma mistura de povos do período pré-hispânico, africanos e povos de outras origens. Da

sua reconstituição histórica das investigações arqueológicas, cabe citar o seguinte: "Archaeological research

in Jamaica that deals with Maroon heritage is limited to very few reconnaissance, survey (Teulon, 1967),

and minor excavation expeditions (Bonner, 1974). It was only recently that major excavations have

been conducted by the Univesity of the West Indies Mona Archaeological Research Project (Agorsah,

1992b,1993 a,b). In 1967, a reconnaissance expedition led by Alan Teulon of the Survey Department

made the first attempt to locate and identify the ancient site of Nanny Town and to conduct an

environmental study of the area. A ruined stone wall, a stone with engraved inscriptions as well

surface artifacts such as fragments of bottles and crockery, and some botanical specimens were observed

and some collected." (Agorsah, 1994:164-165). (g.n.)

2 Entre as "figuras alcantarenses", resenhadas biograficamente por J.Viveiros, tem-se, a saber: quatro Barões

(Mearim, São Bento, Pindaré e Grajaú); dois cavaleiros professos na Ordem de Cristo, sendo um deles

membro da nobreza com Carta de Brasão dada pela rainha Dona Maria I; um arcediago e comendador;

cinco senadores do Império, um oficial da Ordem da Rosa, agraciado pelo próprio imperador Pedro II;

dois médicos, sendo que um deles "educou-se em Paris, em virtude de uma cláusula do testamento de seu

pai" e foi condecorado por Luiz Felipe, Rei de França, em 1838 (Viveiros, 1975:111).

3 Esses nomes de família abarcam 21 entre as 24 "figuras ilustres" biografadas por Viveiros. Segundo

o especialista em genealogia, suas raízes remontam à "fidalguia lusitana" (Viveiros, 1975:95). O

próprio nome Viveiros, que só encontramos referido a uma única família no povoado de Itapera,

viemos a detectá-lo denominando os próprios quilombos no relatório publicado em Lisboa, em

1822, pelo coronel do Real Corpo de Engenheiros Antonio Bernardino Pereira do Lago: "...os

quilombos de negros fugidos eram tantos e tão grandes que, em um, no distrito de Alcântara,

conhecido por quilombo dos pretos de Viveiros..." (Pereira do Lago, 2001:28).

4 Registrar estes "nomes de família" no batismo cristão e no registro civil indica uma conquista antes

que uma forma de identificação imposta aos escravos e seus descendentes. Os nomes arrebatados se

articulam com o advento das territorialidades específicas e contrariam os antigos registros dos nomes

dos escravos. Nos testamentos compulsados, o nome dos escravos vem grafado da seguinte maneira:

prenome acompanhado de locativo de origem ou da região africana de referência, ou de uma característica

física que distingue o escravo, ou de um estigma ou, ainda, de um ofício (carpinteiro), ou do nome

de um santo ou de um apelido. O ato de apossar-se do nome do antigo senhor é vivido como

legítimo e encerra uma expectativa de direito à terra, ainda hoje.

5 Essa expressão foi inspirada em Comerford (2001:66) e se refere aqui a um padrão de ocupação

que concentra residências e locais de trabalho dos que se consideram parentes, reconhecidos e

valorizados como tais sem que necessariamente existam laços de consangüinidade, incluindo

amigos e vizinhos, cujas relações são disciplinadas por regras de uso comum dos recursos

naturais, instituídas por eles próprios ou por seus antecessores e acatadas consensualmente.

6 A denominação negro tratava-se de uma categoria abrangente que, nos dois primeiros séculos e

meio de colonização, incluía os índios. Foi impositivamente reconceituada em 1759, pelo art. 10 do

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Diretório Pombalino, que estabeleceu uma dissociação formal entre os chamados "negros" e "índios".

Nesse mesmo documento ela é utilizada em sinonímia com preto. Entretanto, os estigmas a ela

referidos não são exatamente os mesmos concernentes à categoria preto, que, inclusive, foi adotada

afirmativamente pelos ex-escravos e quilombolas como de autodefinição.

7 O exemplo mais conhecido concerne à introdução, pela Cia. Geral do Grão-Pará e Maranhão, de

sementes de arroz da Carolina, então colônia britânica, para "substituir o arroz vermelho nativo".

(Viveiros, 1975:58)

8 Em verdade, não há mais grandes imóveis rurais em Alcântara. Consoante as estatísticas cadastrais

do Incra correspondentes a 1999, não haveria latifúndios por dimensão ou por exploração no

município.

9 Essa designação não se aplica às edificações da sede do município, embora também em ruínas e

construídas do mesmo modo: em pedra e cal e taipa, possuindo alicerces profundos, paredes grossas

de até um metro e vinte centímetros de espessura e tendo mais de um pavimento. Quando os

entrevistados se referem a elas, utilizam o termo sobrado, que denota a solidez de um poderio quase

sem limites. Não tenho o aprofundamento necessário, nem dados suficientes para afirmar que tal

termo seja designativo principalmente das habitações citadinas dos senhores rurais. Em povoados da

beira-campo, da antiga freguesia de Santo Antonio e Almas, como Arequipá e Monte Palmo, registrei o

termo sobrado para designar sedes de fazendas. Além disso, tudo indica que tal termo mais se refere a

uma posição de poder do que a uma forma arquitetônica, uma vez que tais sedes mencionadas possuíam

um e tão-somente um pavimento.

10 Janã, trata-se da antiga sede da fazenda de Marcial Ramalho Marques, que por duas vezes foi

prefeito de Alcântara e era casado com Ana Guimarães, filha de Antonino da Silva Guimarães. Este

era filho de Antonio Alexandre da Silva Guimarães e de Ana Conceição Araújo. Não possuía título

de nobreza, mas dispunha de muitos bens e é uma das "figuras alcantarenses" listadas por Viveiros

(1975:142), que detinha a propriedade dos imóveis rurais de maior extensão da antiga freguesia de

São Matias, no período logo após a Abolição de 1888. Antonino Guimarães, casado com Leontina

Stela Ribeiro, sobrinha de Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú (H.M. 21/04/2001- ENT.25),

adquiriu o imóvel rural "Gerijó" (que incluía os povoados de Santa Maria, Ladeira, Janã, Peroba de

Cima, Engenho e Pavão) de José Ribeiro de Sá Valle, mais conhecido como Bebê Sá Valle. Além

disso, possuia imóveis rurais na Ilha do Cajual (Bacurizeiro), na beira-campo de Bequimão

(Arequipá, Paracatiua, Conceição, Cangiqueira, Bamboral), uma ilha no Apicum de Paracatiua, uma

posse nas terras de Castelo e as posses denominadas Tataboia, Tapera, matinha e Santa Rita, e

também comprou, em 1893, inúmeros sobrados, inclusive os três da família Viveiros do largo

central da cidade de Alcântara, que haviam sido vendidos anteriormente ao comerciante Antonio

Mariano Franco de Sá. A cadeia dominial dos imóveis rurais foi reconstituída por Joaquim Shiraishi,

no âmbito dos trabalhos de pré-identificação das comunidades remanescentes de quilombo em

Alcântara (Shiraishi, 1998).

Para maiores informações, podem ser consultados: a) "Formal de Partilha passado a requerimento

de parte interessada e extraído dos autos de inventário dos bens deixados pelo falecimento de

Antonino da Silva Guimarães para título e conservação de seus direitos". Datado em São Luís, 11 de

julho de 1949, e lavrado pelo escrivão interino Antonio A. de Mattos Pereira, sendo escrivão João de

Martins Pereira, 23p; e b) "Formal de Partilha extraído dos autos do inventário dos bens deixados

pelo falecimento de Marcial Ramalho Marques." Datado de Alcântara, 17 de agosto de 1970, e

subescrito pela escrevente juramentada Rosalva Brito Lopes, 38p.

11 Ver, neste volume, mapa elaborado para fins desta perícia intitulado: "Alcântara - terras das

comunidades remanescentes de quilombo: territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos

e conflitos sociais". Junho, 2002.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

12 Os fundamentos dessa interpretação jurídica, de acordo com Salmoral, tem sua inspiração no "Código

Carolino, donde se estabeleció la consideración ingenua o maléfica de que los esclavos no sólo eran

necesariamente útiles, sino que además vivian mejor en América, como tales esclavos, que como

hombres libres en Africa. El hecho de que huyeran o se rebelaran no obedecia, por tanto, a no poder

soportar su condición esclava, sino a la perversión de algunos de sus amos, que les obligaban a

trabajar excesivamente, no les subministraban lo necesario para su sustento, y les maltrataban con

castigos crueles. Tal perversión justificaba muchas veces sus fugas y cimarronaje, y atentaba contra

los principios de la Religión, de la Humanidad y el bien del Estado." (Salmoral, 1996:161) (g.n.)

13 Sobre esse endividamento, podem ser consultados quase todos os comentadores regionais, de

Garcia de Abranches, em 1822 (cf. edição de 1922:116), até Viveiros, em 1954. Fazem uma defesa dos

senhores dos estabelecimentos agrícolas diante dos comerciantes de escravos e da Companhia Geral

do Grão-Pará e Maranhão. Os autores Mota, Silva e Mantovani reuniram e classificaram 80 testamentos

do século XVIII. Uma das considerações da leitura que realizam é a seguinte: "À Companhia de

Comércio devia aparentemente todo mundo." (Mota et al., 2001:27), ou seja, quase todos os

inventários mencionam endividamentos junto à empresa colonial.

14 Como narra A. P., também conhecido como R.P., com respeito à imagem original de S.J. Batista, que teria sido

levada da capela de São João de Cortes, depois que os jesuítas foram expulsos e seu patrimônio confiscado.

(R.P. 20/04/2002 - ENT.22.1).

15 Numa narrativa similar a esses depoimentos coletados na perícia, observa-se que alguns comentadores

regionais fazem o que seria uma crônica da pilhagem. Chegam a registrar os seguintes termos e

expressões: “evasão dos latifundiários”, “êxodo dos proprietários” e “saque” feito pelos herdeiros

(Lima, 1998:90), ou, então, a produzir imagens literárias que pintam esse quadro dramático, como

Josué Montello em seu romance A noite sobre Alcântara (Montello, 1978:249-251). A seguir, uma

passagem de Lima a respeito:

“... tudo concorrendo para a evasão dos latifundiários, dedicados a outros assuntos, e a omissão do

poder político para conjurar a crise. Com o abatimento das fazendas e engenhos e o êxodo dos

proprietários, ficaram as casas da cidade entregues a antigos escravos, promovidos a zeladores de

confiança. Mas, sem recursos, pois os donos acharam mais interessante investir em outros bens em São

Luís ou Rio de Janeiro (...) além do que todo o acervo dos velhos sobrados foi saqueado – é bem o

termo – pela parentela dos herdeiros... Toda a cidade foi saqueada, das pedras dos vetustos muros

às alfaias das igrejas, imagens e grades de ferro, louças e cristais. Prédios desmoronaram, ruas inteiras

deixaram de existir, os sobrados se esvaziaram de tudo e de todos.” (Lima, 1998:90,91) (g.n.).

16 Uma das mais vívidas descrições da seqüência dessas pedras de rumo, abarcando 28 delas, à molde

de um memorial descritivo, foi coletada por Luiz Fernando R. Linhares no trabalho de campo para

sua dissertação de mestrado e para identificação das comunidades de Flórida e Forquilha como

remanescentes de quilombo. Com mais de 70 anos, Sr. Binga, o entrevistado que narra as delimitações,

mesmo residindo atualmente na Camboa, em São Luís, representa o "documento vivo" da

comunidade. Passo a transcrever, com a devida licença de quem a coletou, tal descrição: "A primeira

pedra de rumo fica no Rio Duarte, que divide as terras de santíssima justamente com as terras que era

dos brancos; a segunda fica na Flórida, atrás da casa de forno de Tomásia; terceira fica na Peroba, no

quintal de Moisés; quarta fica na Ladeira (perto do Janã, depois do Vai-com-Deus, lá Isídio ou

Domingos Carne de Porco, ou Domingo Xandoca sabe onde fica; quinta pedra fica no Tajurará; sexta

fica no Samucangaua, localizada no caminho chamado Corta Pescoço, perto do Quebra ovo; de lá vai

para o Porto do Rumo (perto do Deserto), onde fica a sétima pedra de rumo; de lá vem pro lugar

chamado Rio do Pamané, onde fica a oitava pedra de rumo; de lá vem fazer misco com a terra da

Cachoeira (lá era de Firmino Ribeiro, agora ele tinha os filhos Arlipe Ribeiro, Mundico Ribeiro,

Mundico Periz, Miguel Ribeiro, Hermínia Ribeiro, Isídio Ribeiro, Ilário Ribeiro, Daniel Ribeiro, José

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Mintiba Ribeiro, esse era tio do Beja, José Ribeiro e Leonide Ribeiro; da Cachoeira vem para a Ladeira

(9a. pedra); de lá vai pra Conceição (10a.); de lá pra Baixa Grande (11a.); de lá vem pra cá Gerijó (12a.);

de lá vai pra Santo Inácio (13a.); de lá vai prá Castelo (14a.); de lá vem pro Pavão (15a.); de lá para o

Centro de Vovó (16a.); Porto dos Bois (17a.); Quiritiua (18a.); Trespucaia (19a.); Oitiua(20a.); Cajueiro

perto de Oitiua(21a.); de lá vêm embora para o Bom Jardim (22a.); Janã (23a.); Terra Mole (24a.); Vai-

com-Deus (25a.); Engenho (26a.); Peroba de Baixo (27a.); Primirim, perto da Prainha (28a.)."

(Linhares, 1999:66,67)

17 Não constitui particularidade tal pecúlio, posto que juristas como Perdigão Malheiro, em 1864, já

verificavam a sua ocorrência nas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro.

18 Em Alcântara, sobretudo nas fazendas da beira-campo, há situações nas quais os escravos possuem

gado e também seriam vítimas dos "ladrões de gado". Uma correspondência de José F. da Silva Maia

Jr., datada de Santa Helena, 11 de abril de 1858, e remetida ao Sr. Redator, foi divulgada em São Luís

por A Imprensa, de 21 de abril de 1858, sobre furto de gado na região de Alcântara. Registra dois

casos, sendo um de escravo e outro de escrava, arrolados como "criadores", que também tiveram

roubadas suas cabeças de gado: "... que me explique quem será o abator (sic) e consumidor de gado

alheio - por exemplo umas vacas da Exma. Sra. D. Maria Tereza Franco de Sá, bem assim diversos

animais das fazendas do Sr. Comendador Joaquim Mariano Franco de Sá, D. Ana Diniz Ferreira de

Sá, de uma escrava do Dr. João Franco de Sá... Além desses são sofredores, e forçados contribuintes

os criadores - Manoel Pinto da Motta, Antonio Mariano Nogueira, Simoa Maria Lourinha, e um

pobre preto escravo do Comendador José Ascenso Costa Ferreira, de nome Simplício." (A

Imprensa, no 32, Ano II, 21 de abril de 1858, p.3).

19 A exportação de escravos para as lavouras cafeeiras das províncias do Sul consistia, conforme a versão

dos intérpretes oficias, num recurso de que os senhores de engenho lançavam mão para saldarem

suas dívidas e os empréstimos usurários. O elevado preço obtido pelos escravos propiciava isto. Para

maiores detalhes, consulte-se Almeida (1983:109). Para se acompanhar mais de perto o caso particular

de uma escrava, Eufrásia, do Maranhão, vendida em 1879, para Campinas (SP), para a empresa

Calhelha & Villares, que deposita na Coletoria da cidade uma quantia para promover sua liberdade e

entra com uma ação contra seu senhor, leia-se Mendonça (2001:63).

20 Enquanto as benfeitorias em Alcântara foram inteiramente destroçadas e os bens móveis dispersos,

as sedes das fazendas dos jesuítas na Ilha do Marajó (Fazenda Arari) e em outras partes do país

permanecem restauradas e com peças de madeira, santuário e mobiliário preservados. Para um

contraste mais detido e para um maior aprofundamento, consulte-se Serafim Leite (1943: 201).

21 O descaroçador de algodão entrou em cena entre 1784 e 1790, após a independência dos Estados

Unidos e com a quebra do monopólio colonial, aumentando as possibilidades de comercialização,

como afirmou E. Williams, e revigorando a economia escravista (Williams, 1975:134-139). No caso

de Alcântara, ele não chegou a ser montado e, quando surgiu em São Luís, quase um século depois

do fim do monopólio da Cia. Geral de Comércio, já era uma medida tardia, incapaz de reverter o

declínio da produção algodoeira maranhense e de ampliar as exportações.

22 O índigo do Brasil é uma planta da família das solanáceas, com ramos de ápices azulados, folhas

lanceoladas e flores em racemos curtos, nativa do Brasil. Os jesuítas desenvolveram técnicas de

processamento e obtiveram o corante, que passou a ter elevado valor comercial.

23 As terras correspondentes a essa fazenda situam-se hoje no município de Bequimão, que foi uma

freguesia de Alcântara sob o nome de Santo Antonio e Almas e passou a município em junho de 1935.

24 Cf. Parecer da Comissão do Convento das Mercês. São Luís, 12 de dezembro de 1862. E Ofício da

mesma Comissão datado de 30 de setembro de 1863. Transcritos por D. Francisco de Paula e Silva,

Bispo do Maranhão. (Paula e Silva, 1922: 458-466).

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

25 Para maiores esclarecimentos, veja-se Linhares (1999:66).

26 A Companhia de Jesus moveu ação contra o governo pombalino, exigindo indenização e reparo

pelos bens confiscados. Sucederam-se comissões para avaliar gado, terras e demais bens. Em 1885, a

Ordem do Carmo tentou transferir para seu convento em São Luís os derradeiros bens que se

encontravam num enorme baú em sua igreja de Alcântara. Consoante Viveiros, eram "quinze

arrobas, ou sejam 225 quilos de prata em obras de fino valor artístico" (Viveiros, 1978:22). Houve

resistência no plano municipal. A Ordem moveu uma ação para recuperar seus bens. Em 1891,

não obstante a Igreja já estar separada do Estado, o governo federal, republicano, "constituiu-se

em legítimo dono e recolheu o tesouro nos seus cofres, no Rio de Janeiro". (Viveiros, 1978:21).

27 Não foi possível estabelecer relações diretas na construção das territorialidades específicas com as três

fazendas de gado da Ordem do Carmo, quais sejam: Pericumã, Tubarão e Suassiu Cumã. Não

consegui, tampouco, detectar qualquer informação outra alusiva às terras correspondentes à Ordem

Terra Santa, assim citadas pelo Bispo do Maranhão D. Francisco Paula e Silva em relação de 1877:

"huma fazenda na paróquia de São Matias em Alcântara." (Paula e Silva, 1922:419).

28 Nos primeiros registros, não me detive na informação, porquanto refere-se a uma figura de dimensão

mítica onipresente em praticamente todo o Maranhão provincial. Tinha conhecimento de seus imóveis

rurais no Mearim, no que hoje corresponde a São Luís Gonzaga. Além disso, é vasto o raio de ação de

membros da família. Antecessores de Ana Jansen ocuparam cargo administrativo na Companhia Geral

do Grão-Pará e Maranhão ou foram dela acionistas ou, ainda, carregaram gêneros à consignação em

navios da Cia. As referências poderiam passar, pois, por vagas. Alguma vezes, entretanto, elas eram

associadas mais diretamente ao Engenho Gerijó, como se ele tivesse pertencido a Ana Jansen e fosse

palco de horrores. Não obtive qualquer informação cartorial ou em fontes arquivísticas capaz de adiantar

sobre a fidedignidade dessa versão. Verificam-se, entretanto, possíveis analogias com a esposa de Carlos

Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, proprietário do Gerijó, que também se chamava Ana e sobre a qual

incidiam acontecimentos denotando perversidade. Senão, vejamos: "(22) Ana Rosa Ferreira Vale Ribeiro,

irmã do ilustre maranhense José Joaquim Ferreira Vale, Visconde do Desterro. Matou a sevícias uma

criança escrava, mas não foi processada porque um seu irmão se apresentou à Justiça, confessando-se

autor do delito e foi absolvido porque ninguém em Alcântara estava convencido da culpa que nobremente

lançou sobre os ombros. Acusada mais tarde de ter morto um escravinho, respondeu a júri, em São

Luís, onde teve como incorruptível acusador o promotor público Celso de Magalhães. Leia-se acerca

deste júri célebre e do promotor o que escreveram Graça Aranha em ‘O meu próprio romance’ e

Dunshee de Abranches em ‘O Cativeiro’". (Lopes, 1957:287).

Numa outra versão, apoiada nas peças processuais e mais exatamente no termo de depoimento da

acusada, Figueiredo de Almeida transcreve o seu depoimento, onde se evidencia que não corresponde

exatamente ao nome e ao pertencimento de família mencionado por Lopes. Para um cotejo, destaquei

o seguinte trecho do depoimento: "Perguntado qual o seu nome, idade, estado, naturalidade e

filiação? Respondeu chamar-se D. Ana Rosa Viana Ribeiro, de quarenta e tantos anos, casada com Dr.

Carlos Fernando Ribeiro, natural desta Província, filha do Comendador Raimundo Gabriel Vianna

e D. Francisca Isabel Lamagnere." In: José Eulálio Figueiredo de Almeida, O crime da Baronesa.

São Luís: Lithograf, 2004, p.36-37.

“Depois do júri da esposa, o Barão de Grajaú viu o Partido Liberal subir ao poder e assumiu a

presidência da Província do Maranhão. No mesmo dia em que tomou posse demitiu Celso Magalhães

da promotoria pública..." (Lopes, 1957:287). Narrativas populares de menino-escravo, cuja morte

foi provocada pelo fato de terem lhe introduzido um garfo no ânus, causando infecção, podem ser

registradas ainda hoje em Alcântara, bem como relatos, reproduzidos também por Lopes, da jovem

mucama do Gerijó que, por ordem da baronesa, "teve os líndissimos dentes arrancados um a um, a

torquês, simplesmente porque o barão, quando ela servia a mesa ao jantar, lhes notara a perfeição"

(Lopes, 1957:287).

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

29 Cynthia C. Martins registrou em Itapuaua o que intitulam, em meio às ruínas da casa-grande da

Fazenda Esperança, sumidor (Carvalho Martins, 1998:11), ou seja, um buraco bem fundo onde

eram colocados os escravos que cometiam infrações consideradas passíveis de penas máximas.

30 Contribuem, assim, indiretamente para alargar a ação de tombamento do conjunto arquitetônico e

urbanístico de Alcântara, iniciada oficialmente pelo Decreto n° 26077, de 22 de dezembro de 1948,

que erigiu a cidade de Alcântara em Monumento Nacional. Essa intervenção, que se concentrou nas

igrejas e sobrados coloniais, vê-se hoje socialmente ampliada pela mobilização das comunidades

remanescentes de quilombos, cuja presença histórica no entorno das ruínas, tornando-as vívidas, foi

mantida sob absoluta invisibilidade no ato de tombamento. Para maiores detalhes, consulte-se: a) o

Livro de Tombo Histórico, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituído

pelo Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, p.43 - Número de Inscrição: 254; processo n°

390/T/48. Proprietário: Municipalidade de Alcântara e outros. Caráter do Tombamento: ex-ofício,

voluntário. Data de inscrição: 29 de dezembro de 1948. b) o Livro do Tombo das Belas Artes,

igualmente instituído pelo Decreto-Lei nº 25, já citado, p.95. Número de Inscrição: 521; data da

Inscrição: 10 de outubro de 1974. c) o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico,

também instituído pelo decreto supracitado, p.15. Número de inscrição: 77.

O domínio "original"

1 A antropologia tem adotado como instrumento de análise novos significados de etnia. Desde 1973,

pelo menos, a American Ethnological Society tem sublinhado novos procedimentos de análise da

etnicidade como identidade, consoante os Proceedings definidos nessa data em The New Ethnicity

- Perspectives from Ethnology. Esse esforço de redefinição já vem desde 1966-67, com F. Barth,

segundo o qual os grupos étnicos passam a ser entendidos como um tipo organizacional ou como

uma forma de organização social (Barth, 2000:11). De igual modo, a ciência do direito, pelas formulações

de N. Bobbio, tem chamado a atenção para os deslocamentos que sofre o conceito de etnia. Bobbio

et al. enfatizam: "Observe-se que não fizemos uso da raça como critério fundamental da definição de

etnia. Este conceito, tal como é comumente usado, não tem fundamento científico." (Bobbio et al,

1999:449).

2 Denomina-se taca a uma fasquia de madeira em forma de bordão e presa ao pulso por uma correia

de couro, empregada para castigar os escravos. Também chamada de mangual ou relho. Diferencia-se

do açoite, que tem tiras de couro.

3 Cf. Directorio, que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, instituído

por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, em 17 de agosto de 1758, e

rubricado pelo rei D. José I.

4 Localizada na cabeceira do rio Pericumã, com 8.712 hectares, foi confirmada a doação de sesmaria aos

"Indios da Povoação de Anadia", em 31 de janeiro de 1811, consoante anotação que consta do Livro

de Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias n° 10, à folha 44, disponível à consulta no Arquivo

Público do Estado do Maranhão. O copista, que transcreveu e classificou os documentos, considera

esse registro como referido a Alcântara. Não o inclui, todavia, nos quadros demonstrativos das

expedições de confirmação das sesmarias. Para um aprofundamento sobre esse processo de

territorialização, leia-se Almeida (1988), Oliveira (1998) e Paula Andrade (1999).

5 A designação pretos aparece em sinonímia com negros no documento do Directorio de 1658. Isso

difere dos comentários de Câmara Cascudo sobre o "ABC dos Negros do Maranhão", divulgado por

Leonardo Mota, em 1928: "Os escritores desses assuntos jamais tiveram contacto com legítimos ex-

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

escravos, filhos de africanos, bem lembrados do Cativeiro, como eles diziam, porque Escravidão era

aviltante. É como na África portuguesa onde Negro é indelicadeza quase insultuosa. Diz-se Preto!"

(Cascudo, 1986:51)

6 E. Galvão, em Santos e Visagens, observa que o termo caboclo "indica posição social inferior"

(Galvão, 1955:196). Cantanhede recupera a oposição entre os "ricos" (brancos) e os "pobres" (caboclos)

no sistema de representação dos moradores de Ladeira, relacionando-a com o uso comum versus a

propriedade individual da terra (Cantanhede, 1998:7-9).

7 Essa sigla hoje corresponde à Conaq, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras

Rurais Quilombolas.

8 "Entre os particulares que dispunham de cabedal para povoar e cultivar uma capitania do Norte

amazônico, estava Antonio Coelho de Carvalho, desembargador da Casa da Suplicação, que em 1627

pedia, na costa do Maranhão, cinqüenta léguas para norte da barra do rio Cumã. Contudo, como a

escolha feita por Álvaro de Souza da capitania de Caeté entrara pela de Cumã, "que lhe estava já

nomeada até o rio Tury que eram muitas léguas" em prejuízo de Antonio Coelho de Carvalho,

ficando a capitania de Cumã "mui defraudada", este pediu ao rei que lhe passasse a carta de confirmação

da ponta de Tapuitapera para o norte. Pela carta de doação, de 7 de abril de 1640, ficamos sabendo que

esse donatário era fidalgo da Casa Real, desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação e juiz das

contadas do Reino, empregos estes que o prendiam, ao mesmo tempo que era o senhor de terras no

Norte brasileiro (ibidem, doc. 63, p. 329-33)". (Nizza da Silva, 2005: 60).

Todos os donatários de capitanias eram praticamente fidalgos da Casa Real ou militares recompensados

por prestação de serviços guerreiros. Para maiores esclarecimentos, consulte-se: Maria Beatriz Nizza

da Silva, Ser nobre na Colônia. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

9 César A. Marques transcreve literalmente essa Carta e cita documento que confirma o patrimônio da

Câmara após a decisão régia de 1754 de reverter todas as terras de Alcântara à Coroa: "Pela Portaria de

28 de outubro de 1759, o Governador Gonçalo Pereira Lobato e Souza, de conformidade com as

ordens que havia recebido, concedeu ao Senado da Câmara desta antiga Vila de Santo Antonio de

Alcântara uma légua de terra para seu patrimônio."(Marques, 1970:72) (g.n.)

10 As confirmações régias mencionadas por César Marques referem-se às seguintes datas: 15 de abril de

1644 e 06 de outubro de 1648. (Marques, 1970:66).

11 A manufatura do algodão e o monopólio dos mercados coloniais no período de 1750 a 1790 foram

estudados por E.J. Hobsbawm (1969 e 1983).

12 Para um aprofundamento sobre o cultivo de arroz pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão

e a introdução de novas espécies, consulte-se Viveiros (1975:58) e ainda Carney e Marin (1999:124).

13 Nunes Dias arrola o rendimento dos bens sequestrados aos jesuítas do Grão-Pará e Maranhão.

Importa destacar, no presente estudo, o caso da Fazenda "Gerijó de Tapuytapera". A maior produção

em termos do volume da quantidade produzida e de valor refere-se à farinha, embora o arroz apareça

com destaque. A produção corresponde a 75 alqueires de farinha e a 44 de arroz, em 1760, e a 102

alqueires de farinha e a 220 de arroz, no ano de 1769 (Nunes Dias, 1970:186-87).

14 Esse empreendimento teve curtíssima duração e não logrou êxito. "Na Provisão de 21 de abril de

1688 se lê que, achando-se desmantelada a maior parte dos engenhos do Estado do Maranhão

por falta de braços e do comércio do açúca..."(Marques,1970:64) (g.n.).

15 Desde 1772, ou seja, 17 anos após a criação da Companhia Geral, mais de três dezenas de filhos

desses "lavradores" começam a frequentar universidades européias, tais como a Universidade de

Coimbra, Université Libre de Bruxelles, Université de L'Etat à Gand, Faculté des Sciences

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Agronomiques de L'Etat à Gembloux, Université de l'Etat à Liége e Universidade de Heidelberg no

Grão-Ducado de Baden. Há dois que estudaram em universidades norte-americanas. Entre esses se

encontrava pelo menos uma dezena de filhos de "lavradores" de Alcântara, tais como: José Constantino

Gomes de Castro (vigário geral), José Mariano Correa de Azevedo Coutinho, Patrício José de Almeida

e Silva Seixas (senador), Antonio Pedro da Costa Ferreira (Barão de Pindaré, governador, senador),

Custódio Alves Serrão (diretor do Jardim Botânico, na Corte), Joaquim Franco de Sá (senador), José

da Silva Maia (presidente da província), Carlos Fernando Ribeiro (Barão de Grajaú, presidente da

província), Alexandre José de Viveiros (oficial da Ordem da Rosa), Francisco Mariano de Viveiros

Sobrinho (Barão de São Bento). Todos estudaram em Coimbra à exceção de José da Silva Maia, que

se formou na Escola de Medicina de Paris e Carlos Fernando Ribeiro que fez agronomia no Yale

College e medicina na Escola de Medicina da Filadélfia (USA). Pombal reformara a Universidade de

Coimbra, separando o direito canônico do direito costumeiro e, na jurisprudência do reino, afastou

a possibilidade de aplicação do direito canônico. Outros tantos membros dessas famílias de

"lavradores" de Alcântara, no decorrer do século XIX, estudaram na Faculdade de Direito de Recife

(Augusto Olimpio Gomes de Castro, presidente da província; José Francisco de Viveiros, vice-

presidente da província; Felipe Franco de Sá, senador; Carlos Fernando Viana Ribeiro) e na Faculdade

de Medicina do Rio de Janeiro (Luiz Alfredo Neto Guterres).

16 Teodoro Correa de Azevedo Coutinho aparece na lista dos "lavradores" que transportaram seus

gêneros à consignação nos navios da Companhia Geral, inclusive a partir de 1778. Os que assim o

fizeram após a extinção da Companhia tinham como objetivo a" liquidação ou amortização de

dívidas junto a empresa" (Carreira, 1988:284).

17 Historiadores e economistas, reproduzindo as periodizações ortodoxas da historiografia oficial,

utilizam um conceito de etnia restrito a características raciais.

18 Carreira considera os historiadores que estimaram em 100.000 os escravos transportados pela

Companhia Geral, incluindo-se os 48.000 para o Rio de Janeiro, como referidos a um período pré-

estatístico, em que não se havia examinado com rigor a documentação contábil da referida empresa.

Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio da CompanhiaGeral do Comércio

1 Os dois registros alusivos a demarcações foram localizados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro,

e os demais, em São Luís, no Arquivo Público do Maranhão, que possui as cartas e uma cópia da

listagem disposta em microfilmes no Iterma. Tal listagem foi classificada por termo e por vila sem o

acuro necessário na localização de cada um dos registros. Certamente que há referências por demais

vagas de localização mas, ainda assim, pode ser feito um cotejo com dados biográficos de sesmeiros,

contribuindo para precisar a informação. Há casos de registro com grafia quase ilegível e há anotações

não convenientemente explicadas, como "sem efeito" assinalado após a denominação da sesmaria.

Um procedimento de maior acuro exigiria uma transcrição integral de cada carta ou registro, constituindo

o acervo original básico para as iniciativas de classificação.

2 Com propósito de checar a fidedignidade do registro com as informações memorialísticas e de

história oral, decidi pela transcrição integral do documento, verificando se a localização correspondia

aos relatos. Tal checagem se impôs porquanto havia muitos registros localizados nos chamados

Riacho do Mocambo, Mocambo, Rio do Mocambo e Lago do Mocambo que se referiam a outras

áreas geográficas.

3 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Livro 4, folha 54.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

4 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Livro 4, folha 123.

5 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Em 23/09/1815, Livro 10, folha 25.

6 Cf. Correspondência entre o chefe de polícia e o presidente da província do Maranhão Lafayete

Rodrigues Pereira. São Luís, Palácio do Governo, 11 de maio de 1866.

7 Para outras informações, inclusive sobre a conversão dessas fortunas em moeda inglesa, consulte-se

Röhrig Assunção (2000:32-71). Pereira do Lago, em 1820, cita 54 comerciantes portugueses e quatro

estrangeiros em São Luís. Destaca Meirelles, entre os portugueses, e R. Hesketh, entre os estrangeiros.

Descreve também as condições de trabalho nos estabelecimentos fabris de São Luís: "Há diferentes

máquinas de descascar arroz, de descaroçar algodão, de fazer açúcar, de destilações e de tecer pano de

algodão, todas imperfeitas (...) e podemos dizer que a força motriz de todas é só resultante de muitos

braços escravos, parecendo aquelas fábricas mais uma masmorra d'África." (Pereira do Lago,

2001:56). (g.n.)

8 Destaque-se que os processos de cobranças de dívidas e de definição do espólio da Companhia Geral

do Comércio do Grão-Pará e Maranhão tramitaram na justiça até 1914.

9 Outras informações podem ser obtidas com a leitura de R. Gaioso, que publicou sua análise em

1813, e com a consulta ao trabalho de Barros Bello (1998), que faz uma arqueologia dos planos de

desenvolvimento do Maranhão.

10 Arruda, comentando a interpretação de Furtado, afirma que teria ocorrido uma "euforia efetiva" e que

a política pombalina contribuiu para o início da formação da economia nacional; e conclui: "O

Maranhão não é, portanto, exceção ao quadro econômico que define o perfil da colônia brasileira no

fim da época colonial, é uma de suas manifestações mais expressivas, mas seu dinamismo econômico

não é exclusivo, nem conduz à primazia entre as regiões econômicas brasileiras. "(Arruda, 1988:21).

11 Para um aprofundamento sobre essa polêmica, leiam-se os seguintes tópicos de "Apontamentos

sobre as sesmarias do Brasil" de José Bonifácio de Andrada e Silva: "1) Todos os possuidores de

terras que não tem titulo legal perderão as terras que se atribuem, exceto num espaço de 650 jeiras

(130 hectares), que se lhes deixará caso tenham feito algum estabelecimento ou sítio. 2) Todos os

sesmeiros legítimos que não tiverem começado ou feito estabelecimento nas suas sesmarias serão

obrigados a ceder à Coroa as terras, conservando 1.300 jeiras..." (Andrada e Silva, 1998:152-153).

12 Após suspender o noviciado, o governo procurava extinguir as ordens religiosas: "O intento da

Monarquia Constitucional do Brasil era ir acabando aos poucos com a vida claustral, e esperar, com

ânsia de cobiçoso heredipeta, a morte do último frade para recolher-lhe o espólio."(Lacerda de

Almeida, p.196, apud Pratt, 1941). Segundo Frei André Pratt: "Proclamada a Independência o Governo

cuidou logo de nacionalizar as ordens religiosas existentes, não permitindo que elas conservassem o

menor vínculo de sujeição às respectivas hierarquias estrangeiras." (Pratt, 1941:186). O Projeto n° 20,

aprovado sem discussão pela Câmara dos Deputados, em 1828, estabelecia que religiosos que

obedecessem a superiores residentes em Estados estrangeiros seriam expulsos para fora do Império

(Art.4º).

13 Senador Patrício José de Almeida e Silva Seixas, senador Antonio Pedro da Costa Ferreira, senador

Jeronimo José de Viveiros, senador Joaquim Franco de Sá, senador Felipe Franco de Sá.

14 O exemplo exponencial aqui seria o naturalista José Custódio Alves Serrão, que fez o curso de

Ciências Naturais na Universidade de Coimbra, em 1823. Retornou ao país e, em 1835, pesquisou as

serras de Itabaiana, em Sergipe, e foi professor de Química no Colégio Militar, diretor do Museu

(hoje Museu Nacional) e diretor do Jardim Botânico, falecendo no Rio de Janeiro, em 1873.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Os quilombos em Alcântara

1 A expressão encarregados da terra foi registrada no decorrer do trabalho de campo pericial, não

tanto para referir a feitores de escravos, mas para designar os que tinham a responsabilidade de

cobrança do aforamento, de medir os terrenos de cultivo, definindo os percentuais a serem recolhidos,

de estocar a produção arrecadada e de administrar as terras em virtude da ausência, seja dos fazendeiros,

seja de membros das ordens religiosas. Em inúmeras situações, os que lideram a resistência aos

senhores são oriundos exatamente das famílias destes encarregados. O fato de exercerem uma ação

mediadora os dispunha no centro dos antagonismos que marcavam as relações escravistas nas

antigas fazendas de algodão e nos engenhos.

2 Para maiores informações sobre essa revogação, leia-se "Apontamentos para a civilização dos índios

bravos do Império do Brasil", elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva entre os anos de

1823 e 1829 (Andrada e Silva, 1993: 89-149).

3 Consoante entrevistas já citadas, os índios haviam doado suas terras para os santos padroeiros.

4 As discussões jurídicas sobre a condição de sesmeiros como posseiros marcaram as sessões do

Senado do Império, entre 1841 e 1843. O indício que levantamos de que os fazendeiros de Alcântara

se auto-representavam enquanto posseiros atém-se à participação do senador Franco de Sá: "Num

debate acerca do tamanho máximo para a legitimação das posses, Franco de Sá, grande proprietário

e senhor de engenho em Alcântara no Maranhão afirmara que a Lei iria prejudicar a sua ‘classe de

posseiros’ (Carvalho, 1981:39). Talvez esta assertiva confirme a hipótese de que as terras do Maranhão

seriam tomadas por posse de terras, que implicariam na ausência ou omissão de registros nos livros

do período." (Shiraishi, 1998:29).

5 No decorrer do trabalho de campo, foi registrado um povoado denominado de "Fora Cativeiro" e

devidamente localizado na base cartográfica que acompanha esta perícia. Foram também registradas

alusões à base de lançamento que a identificam com "cativeiro".

6 No Arquivo Nacional, há abundantes registros das disputas políticas que cercaram as Juntas

Governativas na Província do Maranhão.

7 Cf. Arquivo Nacional-CFC - As Câmaras Municipais e a Independência. Rio de Janeiro, Vl. I, 1973,

p. 21-27.

8 No caso de Guimarães, a ocorrência mais conhecida refere-se às fazendas do Barão de Bagé, tal como

registrado em O Progresso, n° 82, de 28 de abril de 1847, à pág. 3. Senão, vejamos: "Tendo-se

evadido das fazendas do Barão de Bagé do distrito de Guimarães duzentos escravos, o Governo

provincial expediu as convenientes ordens para que sejam capturados." (g.n.)

9 Sobre o "movimento que explodiu no mucambo de São Benedito do Céu", em 1867, considerado

a mais expressiva "rebelião" ocorrida no Maranhão, que devastou fazendas e mobilizou centenas de

soldados para reprimi-lo, consulte-se: Jerônimo Viveiros, "A revolta dos pretos" - Quadros da Vida

Pinheirense XXV, in: Cidade de Pinheiro, n° 1.676. Pinheiro (MA), 28 de agosto de 1955.

10 Nessa ordem, considerava-se juridicamente como quilombo ou mocambo "toda habitação de negros

fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem

se achem pilões neles" (Conselho Ultramarino, 1740 apud. Moura, 1994:16). Perdigão Malheiro

menciona, ademais, os seguintes dispositivos legais que instrumentalizam e asseguram a aplicação

desse dispositivo: Alvará de 3 de março de 1741 e Provisão de 6 de março do mesmo ano: "Era

reputado quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos." (Perdigão Malheiro, 1976:50).

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Os territórios de parentesco

1 Aqui se poderia incluir, ainda, o caso de Samucangaua, povoado localizado em terras de santíssimo,

que teve como primeira moradora Ismendia, que teria sido escrava no Engenho Gerijó, e da qual

todos dizem descender. Para maiores informações, consulte-se Cantanhede (1998:10).

2 Essa certidão foi transcrita e encontra-se entre os anexos da presente perícia (volume 2). Também

referido a esta territorialidade, tem-se o registro paroquial expedido em 25 de maio de 1856 em nome

de "Ignacio Antonio Dias e diversos pobres" (cf. Livro 01, fl. 10), comentado em tópico anterior.

3 Antonino da Silva Guimarães (1867-1947).

4 Essas informações podem ser aprofundadas a partir da leitura do levantamento cartorial realizado

por Joaquim Shiraishi Neto, em 1998.

5 Refiro-me mais diretamente a matrimônio entre jovens das agrovilas e dos povoados mais próximos

ao mar, onde os recursos naturais permanecem abertos e são vistos pelos moradores das agrovilas

como lugar de fartura e abundância. O matrimônio dos filhos, combinado com a nova regra de

residência, ou seja, "residir sempre fora das agrovilas", produz fatores adicionais de coesão entre os

povoados, apoiados no parentesco e na afinidade.

O território das comunidades remanescentes de quilombos

1 Um cotejo desse tipo pode ser feito entre os povoados de Flórida e Forquilha, que se dispõem em

áreas contíguas, medidas em metros, mas têm referências a territorialidades distintas, quais sejam,

terras de santíssimo e terras de preto, respectivamente, sendo estas últimas formadas a partir de

desagregação de engenho de açúcar ao qual sucederam regras de aforamento, com o já citado Antonino

Guimarães.

2 As referências empíricas aqui se voltam para a descrição de povoados cuja composição se atém a

fatores religiosos, tais como Águas Belas e Santa Maria. ( R.N.R.S. 20/01/1950 - ENT. 07).

3 Para um aprofundamento dessa relação entre territorialidade e identidade, consulte-se: A. W.B. de

Almeida. "Terras de preto, terras de santo, terras de índio-uso comum e conflito" in: , E.M. R. de

Castro e J. Hebette (orgs). Na trilha dos grandes projetos - modernização e conflito na

Amazônia. Belém: UFPA, 1989, (Cadernos do NAEA, nº 10), p. 163-196.

4 Atente-se também para a distinção verificada por A. Cantanhede nos povoados de Ladeira, Iririzal

e Samucangaua entre "família de preto" e "família de caboco" (Cantanhede, 1998:06-09).

5 Dados do MAer assinalam 21 povoados compulsoriamente deslocados em 1986 e 1987 para as sete

agrovilas. São eles: Cajueiro, Curuçá, Pepital, Barro Alto, Espera, Ponta Seca, Lage, Só Assim, Boa

Vista, Norcasa, Cavem, Peru, Santa Cruz, Jabaquara, Pedro Marinho, Titica, Santa Rosa, Pirapema,

Jenipauba, Marudá e São Raimundo. Não incluídas nos dados do MA

A interseção dos planos de organização social

1 Na elaboração deste tópico, utilizei também informações coletadas anteriormente e reunidas nos

seguintes relatórios: "A economia dos pequenos produtores agrícolas e a implantação do Centro de

Lançamento de Alcântara", elaborado com a colaboração de Célia Maria Correia e Francisco José

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

Lopes de Souza, datado de Brasilia, Mirad, 21/10/1985; e "Relatório de Viagem a Campo", que

elaborei em junho de 2000 a partir de visitas a povoados com técnicos do Bird.

2 Consulte-se o mapa elaborado para fins desta perícia.

3 O verbo "encofar" deriva do utensílio de palha que confeccionam para armazenar a farinha, as

galinhas e demais produtos a serem trasnportados, que chamam de cofo.

4 Para uma descrição mais completa desses calendários agrícolas e extrativos, consultem-se os anexos

no Volume 2.

5 Um dos maiores desastres ambientais na implantação das agrovilas foi dispô-las junto às nascentes,

afetando diretamente o volume d’água de rios e igarapés. O exemplo mais flagrante diz respeito ao

rio do Pepital, em cujas nascentes foi erguida a agrovila do mesmo nome. Esse rio, que abastece a

sede do município, está com seu volume d’água drasticamente reduzido e em algumas partes do seu

curso já se fala de "rio seco". A agrovila de Só Assim teria sido instalada, conforme relato de J. na

discussão sobre a situação das agrovilas, sobre cinco nascentes, comprometendo os igarapés.

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AGORSAH, E.K. Archaeology of Maroon Settlements in Jamaica. In: HERITAGE, M.

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Terras das comunidadesremanescentes de quilombos:

territorialidade, uso dos recursos naturais,sítios históricos e conflitos sociais

Anexo

Mapa e memorial descritivo

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TÍTULO: Mapa elaborado para fins de péricia antropológica. Território dascomunidades remanescentes de quilombo.

MUNICÍPIO: Alcântara/MAÁREA: 85.537,3 haPERÍMETRO: 350.207,19 mMARCO INICIAL: PD-01 (Ponto digitalizado)COORDENADAS: LAT. : 2º08'44,091"- S LONG.: 44º27"46,206" - W

ESTE: 559.732,48m NORTE: 9.762.836,44mDATUM: SAD-69MC: -45º WGr.

Limites e Confrontações

NORTE: Baia do Cumã e Oceano Atlântico;LESTE: Oceano Atlântico;SUL: Baia de São Marcos;OESTE: Rio Itapetininga.

Descrição do perímetro

Com início no marco VD-01 (Vértice Digitalizado) digitalizado na Pontado Murici, deste segue na direção sudeste percorrendo o limite com terras de MARINHA,com distância de 5.851,58m, chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO;deste segue percorrendo o limite no sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉSEM DENOMINAÇÃO com distância de 3.287,46m até vértice P-1 de coordenadasE=561.803,47m, N=9.757.483,44m, deste segue percorrendo o limite no sentido jusante,

Memorial descritivo

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

pela margem direita do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, com distância de 3.606,30mchega-se à foz; desta segue no sentido sudeste, com terras de MARINHA com distância de4.494,38m chegas-se à foz do IGARAPÉ DO BRITO; desta segue percorrendo o limiteno sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉ DO BRITO, com distância de6.761,87, chega-se ao vértice P-2 de coordenadas E= 562.967,60m, N=9.754.002,14m;deste segue percorrendo o limite no sentido jusante, pela margem direita do IGARAPÉDO BRITO, com distância de 5.223,48, chega-se à foz; desta segue na direção sudeste,percorrendo o limite com terras de MARINHA, com distância de 6.362,93, chega-se à fozdo IGARAPÉ CAIUANA, desta segue percorrendo o limite no sentido montante, pelamargem direita do IGARAPÉ CAIUANA, com distância de 3.996,47m chega-se ao vérticeP-3, de coordenadas E=565.498,37m, N=9.747.288,62m; deste segue percorrendo o limitea margem direita sentido jusante do IGARAPÉ DO CAIUANA, com distância de 5.223,48mchega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras deMARINHA, com distância de 6.874,42m chega-se à foz do IGARAPÉ PIRAPEMA; destasegue percorrendo o limite pela margem direita sentido montante, do IGARAPÉPIRAPEMA, com distância de 1.311,91m chega-se ao vértice P-4; de coordenadasE=569.665,11m, N=9.742.933,65m; deste segue o IGARAPÉ DO PIRAPEMA na margemdireita no sentido jusante, com distância de 1.752,02m chega-se à foz; desta segue na direçãosudeste, percorrendo o limite com terras da MARINHA, com distância de 3.217,88mchega-se à foz do IGARAPÉ PEPITAL; desta segue percorrendo a margem direita sentidomontante do IGARAPÉ PEPITAL com distância de 3.703,71m chega-se ao vértice P-5,de coordenadas E=566.449,98m, N=9.740.046,11m; deste segue o IGARAPÉ DOPEPITAL na margem direita no sentido jusante, com distância de 3.624,49m chega-se àfoz; desta segue na direção sudeste, percorrendo, percorrendo o limite com terras de BAIADE SÃO MARCOS e decreto de delimitação do perímetro municipal da cidade deALCÂNTARA, com distância de 31.757,08m chega-se à foz do RIO SALGADO; destasegue percorrendo a margem direita sentido montante do RIO SALGADO na margemdireita no sentido jusante, com distância de 30.238,43m, utilizado o perímetro de seusafluentes, chega-se ao vértice P-6; de coordenadas E=546.814,41m, N=9.730.730,26m;deste segue o RIO SALGADO na margem direita no sentido jusante, com distância de28.997,93m, utilizando o perímetro de seus afluentes, chega-se à foz; desta segue na direçãosudeste, percorrendo o limite com terras do RIO CAJUPE, com distância de 3.048,23mchega-se à foz do IGARAPÉ PORTO DO MEIO, desta segue percorrendo a margemdireita sentido montante, com distância de 4.107,37m chega-se ao vértice P-7, decoordenadas E=552.016,96m, N=9.730.368,19m; deste segue percorrendo o limite pelamargem do IGARAPÉ PORTO DO MEIO sentido jusante, com distância de 4.033,87mchega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite de terras da marinha,com distância de 2.110,76m chega-se à foz do IGARAPÉ CURUÇÁ; desta seguepercorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 4.904,10m chega-se aovértice P-8; de coordenadas E=551.779,62m, N=9.727.327,70m; deste segue o IGARAPÉCURUÇÁ na margem direita no sentido jusante, com distância de 5.193,31m chega-se àfoz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras da marinha, comdistância de 9.530,83m chega-se à foz do IGARAPÉ TIQUARA; desta segue percorrendoa margem direita sentido montante, com distância de 10.996,47m chega-se ao vértice P-9,

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

de coordenadas E=544.239,82m, N=9.724.453,60m; deste segue percorrendo o limitecom a RODOVIA ESTADUAL, com azimute de 233º15'16" e distância de 205,51m até ovértice P-10; deste segue com azimute de 210º48'19" e distância de 95,77m até o vértice P-11; deste segue percorrendo o limite com a RODOVIA ESTADUAL MA-106, com azimutede 189º32'03" e distância de 468,52m até o vértice P-12; deste segue com azimute de216º39'35" e distância de 408,52m até o vértice P-13; deste segue com azimute de 184º18'28"e distância de 360,72m até o vértice P-14; deste segue com azimute de 195º35'40" e distânciade 264,10m até o vértice P-15; deste segue com azimute de 213º24'48" e distância de1.083,24m até o vértice P-16, de coordenadas E=, N=; deste segue percorrendo o limitecom a margem direita do IGARAPÉ DO PRATITÁ no sentido jusante, com distância de11.238,52m chega-se à foz; desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com asmargem do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 2.169,95m chega-se à foz doIGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, desta segue percorrendo a margem direita sentidomontante, com distância de 1.130,07m chega-se ao vértice P-17; de coordenadasE=540.431,67m, N=9.729.854,39m; deste segue o IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃOna margem direita no sentido jusante, com distância de 1.123,31m chega-se à foz, destasegue na direção noroeste, percorrendo o limite com as margens do RIO RAIMUNDOSUL, com distância de 4.304,57m chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO,desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 1.380,24mchegas-se ao vértice P-18; de coordenadas E=538.649,12m, N=9.732.423,03m; deste segueo IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO na margem direita no sentido jusante, com distânciade 1.447,67m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com asmargens do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 5.724,37m chega-se à foz doIGARAPÉ DO CARVALHO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante,com distância de 4.160,32m chega-se ao vértice P-19; de coordenadas E=542.848,20m,N=9.738.416,50m; deste segue o IGARAPÉ DO CARVALHO na margem direita nosentido jusante, com distância de 3.998,43m chega-se à foz, desta segue na direção noroeste,percorrendo o limite com as margens do RIO ITAPETINGA com distância de 13.243,58mchega-se à foz do IGARAPÉ PEROBA, desta segue percorrendo a margem direita sentidomontante, com distância de 1.728,32m chega-se ao vértice P-20; de coordenadasE=542.163,50m, N=9.745.468,63m; deste segue o IGARAPÉ PEROBA na margem direitano sentido jusante, com distância de 1.739,91m chega-se à foz, desta segue na direçãonordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DO CUMÃ com distância de1.218,92m chega-se à foz do IGARAPÉ FONTINHA, desta segue percorrendo a margemdireita sentido montante, com distância de 2.346,11m chega-se ao vértice P-21; decoordenadas E=543.537,60m, N=9.748.410,78m; deste segue o IGARAPÉ FONTINHAna margem direita no sentido jusante, com distância de 2.262,97m chega-se à foz, destasegue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DE CUMÃcom distância de 11.114,32m chega-se à foz do RIO PERI-AÇU, desta segue percorrendoa margem direita sentido montante, com distância de 26.578,34m, utilizado e as margensseus afluentes, chega-se ao vértice P-22; de coordenadas E=552.058,49m, N=9.744.884,44m;deste segue o IGARAPÉ PERI-AÇU na margem direita no sentido jusante, com distânciade 28.050,96m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite comas margens da BAIA DE CUMÃ com distância de 9.808,40m chega-se à foz do IGARAPÉ

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1

REPARTIMENTO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, comdistância de 3.365,86m chega-se ao vértice P-23; de coordenadas E=553.659,39m,N=9.759.371,99m; deste segue o IGARAPÉ REPARTIMENTO na margem direita nosentido jusante, com distância de 3.405,52m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste,percorrendo o limite com as margens da BAIA DO CUMÃ com distância de 8.584,43mchega-se ao vértice VD-01 (Vértice Digitalizado), início da descrição deste perímetro.

Data: Resp. Técnico:JUNHO/ 2002 Vamilson Freire Fontes

Téc. em AgrimensuraCREA 3203-TD

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