os públicos da cultura na infância e na adolescência: da mediação familiar a trajetórias...

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1 Os públicos da cultura na infância e na adolescência: da mediação familiar a trajetórias cruzadas 1 Gilles Pronovost 2 Após ter destacado as ambiguidades da noção de “público da cultura” no caso de crianças e adolescentes, tentarei descrever como se “constroem” os interesses culturais das crianças pequenas. Prosseguirei tentando esclarecer os processos de estruturação, os itinerários sociais tomados pelos adolescentes, influenciados pelo meio familiar e alterados pelas eventuais rupturas, modelados pelos grupos de pares e pelas mídias, determinados pelas relações com a escola. O percurso de vida dos jovens, da saída da infância à plena adolescência, no seio de seus diversos universos sociais, será aqui privilegiado. Quais “públicos da cultura” nas crianças? Em primeiro lugar podemos nos perguntar sobre esta noção de “público da cultura” no caso de crianças e adolescentes. No início, poderíamos dizer, que se trata de uma noção “centrada no adulto”, no sentido de que são nitidamente os interesses culturais dos adultos, especialmente dos pais, que dominam, como ilustrarei na próxima seção. Para além de um discurso sobre o respeito para com as crianças e sua autonomia, sobre a importância de um acompanhamento que as guie progressivamente em suas escolhas pessoais, são na verdade os interesses culturais dos pais que formam o universo de referência da “cultura” para as crianças. Em outros termos, estamos em presença de um processo clássico de transmissão intergeracional, processo que. É claro, não é rígido pois os pais se dividem entre a permissividade, a escuta, o respeito à autonomia de seu filho, um tipo de geometria variável de controle e de tolerância, que pode modular-se ao longo do tempo e dos acontecimentos. Do mesmo modo a influência das mídias, da escola e dos amigos toma rapidamente o seu lugar. 1 Esse texto foi parte da apresentação de Gilles Pronovost durante a mesa “Os públicos da cultura na infância e na adolescência: da mediação familiar às trajetórias cruzadas”, no Encontro Internacional Públicos da Cultura realizado em novembro de 2013. O texto foi traduzido pela empresa Vranjac Traduções. 2 Doutor em sociologia pela Universidade Laval (Québec). É professor emérito do Departamento de Estudos em Lazer, Cultura e Turismo da Universidade de Québec em Trois-Rivières e diretor-geral do Conselho para o Desenvolvimento de Pesquisa sobre a Família de Québec. É membro do Comitê Consultivo de Estatísticas Demográficas e Sociais do Instituto de Estatística de Québec.

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Por Gilles Pronovost. O texto foi parte da apresentação de Gilles Pronovost durante a mesa “Os públicos da cultura na infância e na adolescência: da mediação familiar às trajetórias cruzadas”, no Encontro Internacional Públicos da Cultura realizado em novembro de 2013.

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Page 1: Os públicos da cultura na infância e na adolescência: da mediação familiar a trajetórias cruzadas

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Os públicos da cultura na infância e na adolescência: da mediação familiar a trajetórias

cruzadas1

Gilles Pronovost2

Após ter destacado as ambiguidades da noção de “público da cultura” no caso de crianças e

adolescentes, tentarei descrever como se “constroem” os interesses culturais das crianças

pequenas. Prosseguirei tentando esclarecer os processos de estruturação, os itinerários sociais

tomados pelos adolescentes, influenciados pelo meio familiar e alterados pelas eventuais

rupturas, modelados pelos grupos de pares e pelas mídias, determinados pelas relações com a

escola. O percurso de vida dos jovens, da saída da infância à plena adolescência, no seio de

seus diversos universos sociais, será aqui privilegiado.

Quais “públicos da cultura” nas crianças?

Em primeiro lugar podemos nos perguntar sobre esta noção de “público da cultura” no caso de

crianças e adolescentes. No início, poderíamos dizer, que se trata de uma noção “centrada no

adulto”, no sentido de que são nitidamente os interesses culturais dos adultos, especialmente

dos pais, que dominam, como ilustrarei na próxima seção. Para além de um discurso sobre o

respeito para com as crianças e sua autonomia, sobre a importância de um acompanhamento

que as guie progressivamente em suas escolhas pessoais, são na verdade os interesses

culturais dos pais que formam o universo de referência da “cultura” para as crianças. Em

outros termos, estamos em presença de um processo clássico de transmissão intergeracional,

processo que. É claro, não é rígido pois os pais se dividem entre a permissividade, a escuta, o

respeito à autonomia de seu filho, um tipo de geometria variável de controle e de tolerância,

que pode modular-se ao longo do tempo e dos acontecimentos. Do mesmo modo a influência

das mídias, da escola e dos amigos toma rapidamente o seu lugar.

1 Esse texto foi parte da apresentação de Gilles Pronovost durante a mesa “Os públicos da cultura na

infância e na adolescência: da mediação familiar às trajetórias cruzadas”, no Encontro Internacional Públicos da Cultura realizado em novembro de 2013. O texto foi traduzido pela empresa Vranjac Traduções. 2 Doutor em sociologia pela Universidade Laval (Québec). É professor emérito do Departamento de

Estudos em Lazer, Cultura e Turismo da Universidade de Québec em Trois-Rivières e diretor-geral do Conselho para o Desenvolvimento de Pesquisa sobre a Família de Québec. É membro do Comitê Consultivo de Estatísticas Demográficas e Sociais do Instituto de Estatística de Québec.

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A construção dos interesses culturais durante a infância

Antes mesmo do seu nascimento alguns parâmetros fundamentais podem exercer uma

profunda influência sobre o devir dos interesses culturais de uma criança. Não para considerar

como natural que “tudo entre em jogo antes do nascimento”, ou ainda que “tudo entre em

jogo antes dos cinco anos”, mas para reconhecer que certos elementos do meio em que vive,

do círculo familiar, do meio social, podem contribuir para modificar o curso da formação das

paixões culturais, esportivas, sociais e midiáticas.

Assim, está bem estabelecido que a composição do meio familiar e sobretudo o nível de vida e

a escolaridade dos pais exercem um efeito às vezes determinante sobre a natureza do

acompanhamento parental; a influência dos pais nas escolhas das atividades de seu filho e na

participação deles em atividades mais ou menos estruturadas está bem documentada. A

atração pela cultura ou pelo esporte, pelo cinema ou pela música é frequentemente

despertada desde a mais tenra idade pelos próprios pais. A criança aprende progressivamente

a definir-se como ator de um certo “público” da cultura.

Para ilustrar este fato tomarei o exemplo de um estudo longitudinal realizado no Quebec junto

a uma amostragem representativa de mais de 2.000 famílias. A partir de 1998 interrogamos

quatorze vezes estas mesmas famílias o que permitiu acompanhar sua evolução no tempo. Ao

longo das pesquisas, numerosas perguntas foram feitas sobre as atividades das crianças.

Resumindo sumariamente as grandes conclusões desta pesquisa podemos destacar os

seguintes pontos:

Para pai leitor, pai acompanhador

Para pai leitor, filho leitor

Para pai “télévore” [aficionado por televisão], filho “télévore”

As trajetórias da participação cultural na adolescência: uma tipologia

Mesmo se todo jovem tenha vivido até hoje uma trajetória pessoal, única, inédita, podemos

tentar detectar as características próprias a diversos itinerários típicos, sob forma de “tipos

ideais”. É evidente que o exercício obriga a simplificar situações complexas, e este é o limite

mais importante. As trajetórias repertoriadas são múltiplas. Foram reconstruídas sob formas

de ‘tipos ideais’ que acentuam os aspectos mais significativos, as passagens mais importantes

de articulação, as diversas modalidades de entrada e saída, a coexistência de universos

complementares, paralelos ou opostos.

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Baseado em meus trabalhos de pesquisa, cheguei a propor algumas tipologias marcantes que

podemos observar no itinerário dos jovens no seio de suas atividades culturais e sociais:

1- Do círculo virtuoso da família à escola “relais” [de assistência temporária].

2- Trajetórias sexuadas no seio de universos paralelos.

3- Uma paixão intensa desmultiplicada em uma constelação de atividades relacionadas.

4- Ecletismo sobre fundo de autonomia.

5- Estratégias de retirada.

Estas “trajetórias” oscilam entre o tempo presente e as representações do futuro, o passado

não constituindo ainda uma trama importante de sua narração. Oscilam também entre a

construção de sua identidade e a descentração de si mesmo. Fortemente incitados a expressar

uma narração significativa do que eles pensam ou querem ser, inteiramente consagrados à

afirmação de sua identidade, é muitas vezes difícil para os jovens distanciar-se deles mesmos

para chegar a considerar por exemplo, a presença de fontes de influência externas, o que pode

até levar à negação do papel da escola e do meio familiar ou seja a uma sobrevalorização de

seu domínio do tempo.

As temporalidades institucionais têm igualmente um papel importante, em primeiro lugar a

temporalidade induzida pelas diversas passagens escolares. Sem que as trajetórias dos jovens

seja um decalque da ordem escolar, elas muitas vezes se conjugam com esta: utilização de

uma paixão cultural como meio de integração em um novo meio, multiplicação de uma paixão

graças aos recursos escolares, recusa de atividades paraescolares, etc.

Referências

PRONOVOST, Gilles, L’Univers du temps libre et des valeurs chez les jeunes, Presses de

l’Université du Québec, 2007.

PRONOVOST, Gilles, “Le développement des pratiques culturelles chez les enfants”, Optique

culture, número 26, julho de 2013.

(http:www.stat.gouv.qc.ca/observatoire/publicat_obs/pdf/optique_culture_26.pdf).

PRONOVOST, Gilles, Comprendre les jeunes aujourd’hui. Trajectoires. Temporalités,

Presses de l’Université du Québec, 2013.