os problemas da filosofia - visionvox · web viewficou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou...

174
OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA BERTRAND RUSSELL TEMAS DE FILOSOFIA TíTULO OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - BERTRAND RUSSELL AUTORAS MARIA LUíSA RIBEIRO FERREIRA - MARIA TERESA XIMENEZ EDITOR TEXTO EDITORA, LDA. COORDENAÇÃO SECTOR DE COORDENAÇÃO TEXTO S0F1,4 LEITÃO CAPA SECTOR CRIATIVO TEXTO WÜNTICA GVDOSO DIM ARRANjo GrÁFico SECTOR DE PROJECTOS GRÁFICOS TEXTO .1L1,WELAUGUSTO FOTOCOMPOSIÇÃO SECTOR DE FOTOCOMPOSIÇÃO TEXTO FOTOLITO SECTOR DE FOTOCOMPOSIÇÃO TEXTO MONTAGEM SECTOR DE MONTAGEM TEXTO IMPRESSÃO E AcABAMENTOS FOTOLITO, LDA. ko Texto Editora LISBOA Alto da Bela Vista - 2735 CACÉM Ir 426 10 01 PORTO Rua da Torrinha, N, 1228 - G - 4000 PORTO

Upload: others

Post on 13-Jan-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA BERTRAND RUSSELL

TEMAS DE FILOSOFIA

TíTULO OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - BERTRAND RUSSELL

AUTORAS MARIA LUíSA RIBEIRO FERREIRA - MARIA TERESA XIMENEZ

EDITOR TEXTO EDITORA, LDA.

COORDENAÇÃO SECTOR DE COORDENAÇÃO TEXTO S0F1,4 LEITÃO

CAPA SECTOR CRIATIVO TEXTO WÜNTICA GVDOSO DIM

ARRANjo GrÁFico SECTOR DE PROJECTOS GRÁFICOS TEXTO .1L1,WELAUGUSTO

FOTOCOMPOSIÇÃO SECTOR DE FOTOCOMPOSIÇÃO TEXTO

FOTOLITO SECTOR DE FOTOCOMPOSIÇÃO TEXTO

MONTAGEM SECTOR DE MONTAGEM TEXTO

IMPRESSÃO E AcABAMENTOS FOTOLITO, LDA.

ko

Texto Editora

LISBOA

Alto da Bela Vista - 2735 CACÉM

Ir 426 10 01

PORTO

Rua da Torrinha, N, 1228 - G - 4000 PORTO

Ir 996 60 70/1

ENDEREÇO POSTAL

Apartado 237 - 2736 CACÉM CODEX

C 1995, TEXTO EDITORA, LDA.

Page 2: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio (fotocópia, offset, fotografia, etc.) sem o

consentimento escrito da Editora, abrangendo esta proibição o texto, a ilustração e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

LISBOA, 1995 - 1.'EDIÇÃO - 1.'TIRAGEM - 2 000 EXEMPLARES

WN 972-47-0632-X DEPóSITO LEGAL N.’ 86959195

Page 3: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

ÍNDICE

INTRODUÇÃO: Como ler um texto? ........................................................... 5

1 - Integração da obra Os Problemas da Filosofia num percurso

filosófico possível ................................................................................. 11

1. Bio-bibliografia de Russell

2. A tradição empirista dos filósofos de língua inglesa ......................................... 11

2.1 A controvérsia racionalismo/empirismo ............................................... 142.2 Bertrand Russell e a tradição empirista ............................................... 142.3 A influência de Russell no empirismo lógico - o atomismo lógico ............. 20

11 - Percursos possíveis para a obra em causa ................................................ 33

1. Um percurso de leitura global .................................................................... 33

1.1 0 que é para Russell conhecer? ......................................................... 33

- A possibilidade de um conhecimento absolutamente certo ........................... 33- 0 que podemos conhecer? - 0 conhecimento como conhecimento de coisas ....... 37- Como podemos conhecer? - 0 conhecimento como conhecimento

de verdades .................................................................................. 39

Page 4: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

1.2 0 que é para Russell a filosofia ? ....................................................... 42

- A filosofia como conjunto de problemas ................................................. 42- A filosofia como atitude .................................................................... 45- A atitude científica e a atitude filosófica ................................................. 46- Finalidade, valor e especificidade da filosofia ........................................... 47

2. Um percurso de leitura estrutural ............................................................... 552.1. 0 problema do conhecimento (os diferentes tipos de conhecimento e suacredibilidade) ................................................................................. 552.1.1 Os diferentes tipos de conhecimento ................................................. 55

- Conhecimento de coisas ............................................................ 57

* conhecimento de trato ............................................................ 57* conhecimento de descrição ....................................................... 58

- Conhecimento de verdades ......................................................... 63

conhecimento a priori ............................................................. 64* conhecimento dos princípios morais .......................................... 65

Page 5: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

* conhecimento das matemáticas puras ........................................ 65* conhecimento dos princípios lógicos .......................................... 65- A indução ............ 1 ................................................................ 66- A intuição ............................................................................. 67

Page 6: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

2.2 0 problema do ser (a descontinuidade dos diferentes tipos de ser) ............ 732.2.1 A discussão acerca da existência da matéria ......................................... 73

- a mente e a matéria .................................................................. 73- o problema dos universais ........................................................... 762.2.2 Os vários graus de aproximação do real - o problema da verdade ............... 82

- diferentes tipos de crença; o papel da crença na busca da verdade ............ 82- verdade, erro, certeza e probabilidade ............................................. 83

Glossário ................................................................................................. 89

Page 7: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

INTRODUÇÃO

Como ler um texto?

0 projecto de programa de Filosofia do 12.0 ano dedica vinte e três páginas à necessidade de leitura de urna obra integral. É prática comum dos professores saltarem as introduções e centrarem-se nos temas obrigatórios. Irem os contrariar tal prática por nos parecer que o texto programático fornece indicações esclarecedoras sobre o que é ler filosofia. Assim, atenderemos a ele para justificar a estrutura seguida neste livro. 0 programa entende que é «produto específico do ensino/aprendizagem da Filosofia no 12.0 ano, saber (... ) interpretar e escrever em português o texto filosófico» (p. 8). Considera esta competência como «requisito essencial, constitutivo do sucesso escolar» (ibidem). Deste modo, centra-se no primado da obra, tomando-a simultaneamente como ponto de partida e como termo de chegada (p. 11). Está em causa a aquisição de competências comunicativas, nas quais a leitura e a escrita têm um papel determinante.

A leitura de textos filosóficos não constitui novidade para os alunos do secundário. De um modo geral, os professores de filosofia privilegiam-nos e estruturam as suas aulas a partir da interpretação e problematização dos mesmos. Só que as mais das vezes são textos fragmentados, que se utilizam com o objectivo de introduzir uma determinada temática, de ilustrar um problema, de veicular diferentes posições sobre um mesmo assunto, etc., etc. Por conseguinte, se todos leram textos, poucos terão tido acesso a uma obra completa e ao

trabalho específico que ela implica.

0 programa de Filosofia do 12.0 ano tem o mérito de relevar a integralidade de uma

obra, enfatizando a sua dupla função: por um lado, o facto de fornecer ao aluno um modelo para a construção de um texto próprio; por outro, a vantagem de o instruir em determinados «processos, problemas e doutrinas filosóficas» (p. 12).

0 trabalho de texto, quando conseguido, implica a apropriação do mesmo por parte do leitor. 0 texto não deverá ser abordado a partir do mero levantamento dos temas que o

constituem. Não basta percebê-lo, comentá-lo ou pô-lo em causa. Há que o reorganizar, detectando-lhe os núcleos problemáticos fundamentais, equacionando o modo como o autor os resolve e discutindo as soluções propostas. Trata-se de um trabalho de desbravamento que exige uma passagem à escrita. Por isso nos é dito que: «Todas as actuações didácticas (... ) hão-de ir encaminhadas para a aquisição, por parte do aluno, da competência de elaborar o discurso filosófico mediante a escrita» (p. 12) e que «Ler é a única via de acesso

Page 8: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

ao escrever» (ibidem, p. 17). Na verdade, é estreita a ligação leitura/escrita.

Page 9: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

A leitura filosófica, eminentemente selectiva, é destituída da ludicidade de quem lê um romance ou da despreocupação de quem folheia diagonalmente um jornal. Ler filosofia é exercitar o pensamento, nada tem portanto de passivo. E a actividade mental que provoca acompanha-se de uma série de tarefas que a concretizam: os sublinhados, as notas à margem, as fichas, todo o aparato que acompanha o dinamismo do acto de ler e que o confirma.

Concluímos assim que a leitura de uma obra ultrapassa a mera compreensão da mesma, visando a produção de um texto próprio, pois a escrita vai colocar-se como etapa complementar de uma hermenêutica textual, etapa que exige um trabalho prévio de compreensão. Ler é aprender a pensar. Pensar «com» ou pensar «contra», como nos aconselha Kante qualquer modo, iniciar-se na aventura de pensar por si mesmo. A intimação «sapere aud

2 e» @ por situada que seja no programa das Luzes, continua hoje mais do que nunca a

manter-se actual.

Quando podemos dizer que compreendemos uma obra? Para sustentar que nos apropriámos da obra temos que a ler a vários níveis, atendendo a vários patamares semânticos, ou seja, traçando para ela diferentes percursos. Foi o

que tentámos fazer relativamente a Os Problemas da Filosofia de Russell aí a organização por que optámos e que passaremos agora a explicitar.

Quisemos, em primeiro lugar, integrar Os Problemas da Filosofia naquilo que o aluno já conhece e a tal dedicámos o cap. 1. Trata-se de uma abordagem inicial da obra, em que esta é inserida no universo filosófico do leitor. Na verdade, o aluno que começa a ler Os Problemas da Filosofia não se sente perdido, pois pisa um terreno familiar, quer pelos temas levantados, quer pelo modo como os mesmos se problematizam, quer pelo vocabulário com

que depara. Partindo do princípio que toda a aprendizagem só é realmente conseguida se

for significativa, interessou-nos enfatizar essa familiaridade pressentida, situando a obra em causa relativamente a problemas já estudados em anos anteriores. Assim, o cap. 1, coloca o

livro de Russell no contexto cultural e filosófico do leitor, o que implica um revisitar de questões gnoseológicas, epistemológicas, éticas e metafísicas, que o aluno encontrou no seu percurso de «Introdução à Filosofia.» Deste modo, Os Problemas da Filosofia não aparecem’ desligados, constituindo-se como aprofundamento e consolidação de teses já estudadas. Não se trata de caracterizar profundamente a tradição empirista dos filósofos de língua inglesa, à qual Russell pertence, mas apenas relevar alguns dos seus parâmetros mais

Page 10: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

pregnantes, pois a abordagem dos mesmos clarificará as posições tomadas por Russell na obra em causa.

Com o capítulo inicial apelamos, pois, para uma informação filosófica que possibilite a identificação das temáticas em causa, ao mesmo tempo que enquadramos o autor num espaço, num tempo e numa determinada mundividência. É um capítulo de certo modo extrínseco, que se coloca como auxiliar de uma compreensão significativa. Contudo, não penetra no âmago do texto. É no cap. 11 que procederemos a uma hermenêutica propriamente filosófica, centrada no conteúdo da obra e jogando quase exclusivamente com ele.

Kant, Nachricht von der Eintichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765-1766, AK. 11, pp. 305-308, trad. portuguesa de Leonel Ribeiro dos Santos, Rev. Filosofia, Lisboa, 1/2, 1988, pp. 173-6.

Kant, “Resposta à pergunta: que é o iluminismo?” inA Paz Perpétua e outros Opúsculos, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 11.

6

Page 11: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Entre uma multiplicidade de modelos possíveis para a leitura de um texto filosófico optámos pelas propostas de Ricoeur, sugeridas nas suas obras Do Texto à Acção, e Teoria da Interpretação.’ Pareceu-nos que um modelo de leitura defendido por um filósofo seria extremamente vantajoso, obviando às dificuldades que inevitavelmente surgem quando se

pretende aplicar grelhas interpretativas adaptadas de outros domínios.

Fala-nos Ricoeur de três fases de trabalho de texto: uma primeira que apelida de conjectura e que identifica com a captação ingénua do sentido do texto como um todo. Trata-se de uma abordagem holística em que o leitor se apercebe das intenções gerais do autor e

dos problemas genéricos que estão em causa. Tentámos empreender um trabalho deste tipo no ponto 1) do cap. 11 - «Um percurso de leitura global».

A complementar esta primeira abordagem genérica, Ricoeur também refere a utilidade de uma perspectiva estrutural, onde o texto é desconstruído nas diferentes temáticas que o integram. Não se trata aqui de ter em conta o seu sentido global, mas de considerar separadamente uma série de questões. Também o programa postula a necessidade de o aluno atender «às partes em que tematicamente a obra se divide» (p. 18). Ocupamo-nos deste processo no ponto 2) do cap. 11 - “Um percurso de leitura estrutural”.

Por último, fala-nos Ricoeur de um terceiro momento, de abordagem compreensiva, onde o leitor se apropria não só do que o autor pretendeu escrever mas das virtualidades do texto e dos mundos que ele nos abre. É um trabalho complementar, que levará à construção de um outro texto, neste caso o texto do aluno. Procurámos concretizar este objectivo com a

sugestão de uma série de tarefas. A sua realização obedece a um duplo propósito: não só verificar se a obra foi realmente entendida, como também e sobretudo levar o leitor a apropriar-se dela, considerando-a como algo de vivo e actuante. Numa palavra, tornando-a sua. Consequentemente, para além dos resumos e comentários, é importante que se passe à problematização e argumentação, à crítica, aos estudos comparativos com obras do mesmo autor ou de outros, aos juízos de valor, às posições pessoais, etc., etc. Pretendemos deste modo anular a distância cultural com a obra, tornando-a familiar, na medida em que passa a

ser inserida no discurso e nos problemas de quem a lê. A referência a textos complementares pareceu-nos uma maneira de situar filosoficamente certos problemas levantados por Russell. Como alguns desses textos são do conhecimento do aluno, afigurou-se-nos uma boa oportunidade para integrar o que se pretende estudar (o livro de Russell) naquilo que já se

domina (certas problemáticas filosóficas referidas).

Page 12: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

A finalizar, pensámos útil a introdução de um glossário dos principais conceitos e

autores referidos, de modo a que o aluno disponha de instrumentos eficazes, que de um

modo rápido o situem e lhe resolvam eventuais problemas.

Paul Ricoeur, Do Texto à Acção, trad. portuguesa de A. Cartaxo e Maria José Sarabando, Porto, Rés, s.d., e Teoria da Interpretação, trad. port. de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1987.

7

Page 13: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

TAREFAS

Ponto Prévio

A leitura de um texto não corresponde a uma decifração/descodificação do mesmo.

Um texto não tem encerrado em si um sentido único para o qual se pretenda fornecer uma

chave. Ler é um processo interactivo no qual autor e leitor desempenham papéis específicos.0 aluno a quem estas tarefas são propostas é alguém detentor de uma determinada estrutura cognitiva, possuidor de conhecimentos filosóficos cimentados a partir do que já estudou em anos anteriores, orientado por interesses que o levam a criar determinadas expectativas, numa palavra, é um sujeito eminentemente activo, cujo papel na leitura de uma obra é fundamental. Consequentemente, as tarefas que propomos deverão ser entendidas como meras sugestões. Pretendemos apenas que funcionem como ajuda e/ou complemento a todo um trabalho de hermenêutica textual, trabalho esse que deverá ser essencialmente realizado em função do ritmo, das preocupações e dos interesses de quem lê.

Neste momento de iniciação à obra de Russell o que propomos é apenas uma preparação para um futuro trabalho de hermenêutica textual. Sugerimos, portanto, algumas tarefas que pensamos úteis para um ulterior aprofundamento. Assim:

1. Comece por ler Os Problemas da Filosofia sem grande preocupação de responder a

questões específicas. Não tente logo esclarecer aquilo que de-momento não compreende pois é possível que posteriormente, no decurso da leitura, as dificuldades se resolvam.

2. À medida que for lendo os capítulos, anote os termos filosóficos (ou outros) que

desconhece. Construa a partir deles uma espécie de vocabulário, que no decorrer do seu estudo irá completando. Para o fazer socorra-se do próprio texto de Russell, que progressivamente vai esclarecendo muitos dos conceitos que utiliza. Para consolidar os conceitos que não se auto -esclarecem, consulte um dicionário de filosofia. 0 glossário final também o poderá ajudar.

3. Independentemente da obra em causa e atendendo sobretudo à familiaridade que

tem com o tema fundamental que nela detectou, escreva um pequeno texto onde fiquem patentes as ideias que possui acerca dele (recorra a conhecimentos que detém sobre o assunto, provenientes quer da sua experiência pessoal quer dos problemas que trabalhou ao longo do seu programa de filosofia).

Page 14: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

4. Depois de lida globalmente a obra, tente de memória (sem consulta) reconstituir o

argumento central da mesma.

5. Ainda sem consultar a obra, construa um esquema no qual se dê relevo ao tema

central e aos subtemas que nele se incluem ou dele derivam.

6. Faça o mesmo exercício anteriormente sugerido, mas agora com o texto na mão,

folheando-o e relendo-o quando entender necessário. Confronte os dois esquemas.

7. Antes de ler Os Problemas da Filosofia tinha certamente algumas ideias sobre este

tema. Verifique até que ponto a obra lida confirmou, alterou ou enriqueceu as suas

próprias ideias sobre o tema.

Page 15: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

8. Depois de lida integralmente a obra, determine:- os problemas que mais lhe interessaram;- os que teve mais dificuldade em seguir;- os que considerou de mais fácil apreensão.

9. Supondo que teria que recomendar esta obra a um colega seu, escreva um peque-

no texto de apresentação da mesma, onde fique presente o interesse (ou desinteresse) que ela lhe provocou.

9

Page 16: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Integração da obra Os Problemas da Filosofia num

percurso filosófico possível

Bio-bibliografia de Russell

(Elementos colhidos em A. J. Ayer, Bertrand Russe11, Chicago, The University of Chicago Press, 1988).

Bertrand Russell (1872-1970)*/*Bertrand Arthur William, 3.1’ Conde de Russeil, nasceu numa família aristocrata de tradições liberais. Foi um excelente aluno do «Trinity College» em Oxford, cursando mateinática e filosofia (1890-1894). Profundamente contestatário, impôs-se até aos 97 anos como presença incómoda, pondo em causa certezas estabelecidas nos planos filosófico, social,

11

Page 17: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

ético e político. A divulgação das teses de Russell na primeira metade deste século dizem sobretudo respeito ao seu inconformismo moral e político, bem como às posições que conse-

quentemente foi tomando. Não podemos, contudo, esquecer que entre 1898 e 1913 este filósofo publicou textos notáveis no campo da matemática e da lógica. A multiplicidade dos seus interesses e a sua activa produção no campo filosófico, nomeadamente no que respeita à teoria do conhecimento e à ontologia, concretizaram-se numa vasta obra. Nela perpassa urna crítica constante a todas as formas de preconceito e de dogrnatismo.

Russell é por vezes acusado de contradições o que poderá justificar-se pelo facto de não ter um percurso intelectual linear. Na verdade, certas posições inicialmente tomadas so-

frem uma evolução ao longo do tempo. Assim acontece com alguns dos temas tratados em

Os Problemas da Filosofia, nomeadamente com os problemas do conhecimento e da indução.

órfão desde muito novo, Russell foi educado pelos avós, tendo sido profundamente marcado pela influência de sua avó, uma presbiterana de fortes convicções morais e religiosas. Cedo revelou interesses científicos: é significativa a sua descoberta da geometria euclideana com onze anos de idade. Aos dezoito foi determinante a ida para Cambridge. A partir de então, tal como escreve na sua autobiografia (The Atitobiography of Bertrand Russe11, Cap.1, p. 56) «everything went well with me». É em Cambridge que se relaciona com A.N. Whitehead e G.E. Moore, presenças marcantes no seu pensamento filosófico.

Russell sofreu primeiro a influência de Hegel e seguidamente de Karit, filósofos que posteriormente rejeita, distanciando-se criticamente das suas teses. A partir de 1900, data em que encontra o lógico italiano Peano, sustenta que a matemática é redutível à lógica. Da investigação que então empreende, publica em 1903 a obra The Principles of Mathematics na

qual defende uma tese que nunca abandona: a da Identidade entre lógica e matemática. Desenvolve-a em Principia Mathematica (1910-1913), obra escrita em colaboração com Whitchead.

As obras publicadas entre 1910-1914 (vide bibliografia) fazem de Russell um marco

importante do empirismo inglês, colocando-o como etapa do mesmo, na sequência de Locke, Berkeley, Hume e Mill.

Page 18: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Em 1912 conhece Ludwig Wittgenstein, a quem dedicará sempre uma profunda estima. Russell contribui para a publicação do Tractatus Logico-Philosophicus e escreve o prefácio da tradução inglesa do mesmo. Embora posteriormente tenha divergido das posições deste filósofo, a sua amizade por ele manteve-se inalterável.

The Analysis of Matter, publicado em 1927, mostra uma deslocação do seu pensamento, acentuando-se um realismo no que respeita aos corpos físicos.

0 seu último livro de índole filosófica foi Human Know1edge: Its Scope and Limits, datado de 1948. Nele aprofunda e supera alguns dos temas que sempre o haviam preocupado, como é o caso da indução.

Os interesses manifestados por Russell nos domínios da pedagogia, da ética e da política concretizam-se na quantidade de obras que dedicou a estas temáticas (vide bibliografia) e nas iniciativas concretas que tomou para as divulgar. Na verdade, para além da escrita e complementando-a, verificamos que há um empenho constante em diferentes causas, tais como o pacifismo, a objecção de consciência, os direitos das mulheres, a

liberdade de expressão, etc., etc. Assim, Russell ilustra bem o carácter activo da filosofia, pois relativamente à s teses sustentadas não se ficou por posicionamentos teóricos. Querendo educar as suas filhas de acordo com as normas pedagógicas por si defendidas, funda uma

12

Page 19: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

escola progressista onde procura equilibrar autoridade e liberdade. Os ideais por que pugnou levaram-no a participar em demonstrações, a subscrever abaixo-assinados, a encabeçar lutas e protestos, o que não lhe grangeou simpatias por parte das autoridades estabelecidas. De facto, a sua participação activa nestas causas trouxeram-lhe alguns dissabores -

em 1915 é despedido do «Trinity College» onde leccionava e a este incidente sucederam-se outros do mesmo teor, entre os quais destacamos várias prisões por insubordinação à autoridade (a última ocorreu em 1961, aos 89 anos, quando participava numa manifestação pacifista). Aquando de uma estadia na América do Norte, onde fora convidado para leccionar em diferentes instituições, é processado e condenado por imoralidade, sendo impedido de concretizar o contrato inicial. A partir de 1944 volta para Cambridge, onde retoma as suas aulas no «Trinity College».

Nos últimos anos da sua vida, quando o governo britânico deixa de o hostilizar como persona non grata, manteve forte actividade política, intervindo na crise cubana de 1962, defendendo a causa dos Judeus na União Soviética,dos Árabes em Israel, dos prisioneiros políticos na Alemanha de Leste e na Grécia. Nesta linha de denúncia às ilegalidades e abusos de poder participou num comité de investigação sobre o assassinato de John Kermedy e

tomou parte activa contra os crimes dos americanos no Vietriam, relatalido-os em War Crimes in Viemam, 1967.

No que respeita à vida amorosa, também o percurso russelliano foi agitado. Em 1894 casa com Alys Pearsall Smith, suscitando a oposição familiar que se insurgiu contra esta união por motivos sociais e religiosos. Em 1921 casa-se com Dora Black, da qual teve duas filhas. Em 1936 casa com Patricia Spence, de quem tem um filho. Em 1952 novo casamento com a americana Edith Finch.

De entre a vasta bibliografia de Russell seleccionámos alguns títulos mais significativos, indicando a data da sua publicação.

OBRAS DE BERTRAND RUSSELL

Obras filosóficas

A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz, London, 1900. The Principles of Mathematics, London, 1903. Principia Mathematica, com Whitchead, 3 vols., 1910, 1912 e 1913.

1The Problems of Philosophy, London, 1912, trad. port. Os Problemas da Filosofia,

Coimbra, Arménio Amado, 1974 (3 a edição).1Our Knoivledge of the Extemal World, London, 1914.

Page 20: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Mysticism and Logic, London, 1917. The Analysis of Mind, London, 1927. The Analysis of Matter, London, 1927. An Outfine of Philosophy, London, 1927. An Inquiiy imo Meaning and Truth, London, 1940. A Histwy of Western Philosophy, London, 1945, trad. port. Histótia da Filosofia Ocidental, Lisboa, Livros Horizonte, 1961.

13

Page 21: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Human Knowledge, its Scope and Limits, London, 1948. Logic and Know1edge, London, 1956. My Philosophical Development, London, 1959.

Obras de carácter social e político

Principles of Social Reconstruction, London, 1916. Roads to Freedom, London, 1918. The Practice and Theory of Bolshevism, London, 1920. On Education, London, 1926, trad. port. Da Educação, S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969. Why I am not a Christian, London, 1927. Sceptical Essays, London, 1928. Marriage and Morals, London, 1929. The Conquest of Happiness, London, 1930, trad. port. A Conquista da Felicidade, Lisboa, Guimarães Edit., 1991. Education and the Social Order, London, 1932, trad. port. Educação e Vida perfeita, S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941. Power, London, 1938. Authority and the Individual, London, 1949. New Hopes for a Changing World, London, 195 1, trad. port. A última Oportunidade do Homem, Lisboa, Guimarães Edit. 1955. Human Society in Ethics and Politics, London, 1954.

Obras de carácter biográfico

The Amberley Papers, com Patricia Russell, 2 vols., 1937. Portraitsfrom Memory, London, 1956. Autobiography, 3 vols., 1967, 1968 e 1969.

A tradição empirista dos rilósofos de lingua inglesa

2.11 A controvérsia racionalisino/cinpirisnio

Para qualquer pessoa que esteja minimamente familiarizada com a história da filosofia, racionalismo e empirismo surgem como marcos fundamentais no desenvolvimento do pensamento ocidental. Ambas as ‘escolas’ se preocuparam centralmente com o problema do conhecimento, apresentando diferentes modelos explicativos do mesmo.

14

Page 22: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Os modelos explicatívos de conhecimento destas duas ‘escolas` parteril de pressupostos diferentes, razã o pela qual se tem falado, muitas vezes, numa controvérsia empirismo/racionalismo, que tomou corpo, essencialmente, nos séculos XVII e XVIII e que alguns filósofos, como Kafit, tentaram superar.

Filósofos como Descartes e Leibniz, que acreditavam na possibilidade do conhecimento e na sua validade objectiva, evidenciando a existência de ideias e princípios inatos e a

independência do conhecimento em relação à experiência, encontram-se na linha do racionalismo e de um tipo de filosofia que ficou conhecida, pelo menos no mundo de expressão inglesa, como Filosofia do Continente.

0 empirísmo surge particularmente ligado à filosofia de língua inglesa e, tradicionalmente, a nomes como John Locke, David Hume, John Stuart MilI, George Berkeley. Encontra na ‘experiência’ a fonte de todo o conhecimento e opõe-se radicalmente às teses racionalistas, nomeadamente à existência de princípios e ideias inatas e ao princípio da causalidade.

As teses empiristas acabam por desembocar num cepticismo que nega a possibilidade objectiva do conhecimento.

Em Histótia da Filosofia Ocidental, obra datada de 1945, Russell refere-se a esta controvérsia, caracterizando a filosofia ocidental nos seus grandes traços como herdeira de uma ou de outra das duas ‘escolas’:

«De Locke até hoje houve, na Europa, dois tipos principais de Filosofia; um deles deve tanto a doutrina como o método a Locke; o outro deriva de Descartes e, depois, de Karit. 0 próprio Karit pensou ter feito uma

síntese da Filosofia derivada de Descartes e da derivada de Locke; mas não é exacto, pelo menos historicamente, porque os sequazes de Kant estavam na

tradição cartesiana e não na lockeana.

Os herdeiros de Locke são, primeiro, Berkeley e Hume; segundo, os

philosophes franceses que não pertencem à escola de Rousseau; terceiro, Bentham e os radicais filosóficos; quarto, com acrescentos importantes da filosofia continental, Marx e seus discípulos.»

Bertrand Russell - História da Filosofia Ocidental 5

Tanto o empirísmo como o idealismo se encontram, segundo Russeli, face a um

problema que a filosofia não conseguiu resolver satisfatoriamente: mostrar como é que temos corthecimento de outras coisas para além de nós próprios e quais são

Page 23: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

as operações da nossa mente que nos permitem obter tal conhecimento.

É conhecida a resposta que foi dada pelos filósofos racionalistas e idealistas ao problema do conhecimento e ao modo como este se processa: a existência de conhecimentos prévios, ideias inatas, faz depender essencialmente do sujeito toda esta problemática.

Ouando Karit refere a importância da filosofia empirista, ao considerar que foi Hume que o acordou do seu « sorto dogmático» através das críticas que teceu às teses racio-

Esta problemática terá sido abordada na unidade 11 - «A problemática do conhecer e do ser» do programa de 11.1 ano de Introdução à Filosofia, para a qual remeteremos.

Bertrand Russell - History oj'Western Philosophy, London, Allen &Unin, 1961 (9th. ed.). Citamos a partir da tradução de Vieira de Almeida, Lisboa, Liv. Horizonte, 1961, p. 588.

15

Page 24: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

nalistas, ele dá um passo em frente na tentativa de realizar a síntese das filosofias em conflito. No entanto e como o refere RusselI, Karit acaba por se situar muito mais na tradição racionalista do que na empirista. De facto, se a descoberta da subjectividade transcendental permitiu operar, de certo modo, uma superação da controvérsia empirismo/racion ali smo, a distinção entre conhecimento a posteriori, resultante da experiência, e conhecimento a priori, independente em

relação à experiência, situa-o muito mais como herdeiro do racionalismo e do idealismo.

Ao tentar combater a filosofia tradicional, e sobretudo a inetafisica especulativa que a

caracterizava, os empiristas centram o problema do conhecimento na linguagem e na experiência.

A importância dada por estes à experiência, fonte de todo o conhecimento, manifesta claramente uma viragem, uma modificação significativa na história da filosofia, que os filósofos de expressão inglesa tendencialmente seguiram.

«A (filosofia) inglesa - diz Russell em História da Filosofia Ocidental - é mais detalhada e mais ‘à peça’ (piecemeal) (que a do continente). Ouando admite algum princípio geral, procura prová-lo indutivamente examinando-lhe as várias aplicações.»’

Esta faceta da filosofia inglesa torna-a mais próxima do trabalho das ciências e da certeza das matemáticas do que a filosofia continental, que facilmente envereda por caminhos mais especulativos.

RusselI, apesar de profundamente influenciado pela tradição empirista da filosofia inglesa, também sofreu influências de filósofos racionalistas e idealistas como Leibniz, Karit e, sobretudo, Hegel.

Em 1928, nos Sceptical Essays, Russell diz de si próprio, ser um racionalista:

«Estou habituado a considerar-me a mim próprio como um racionalista; e um racionalista, suponho, deve ser alguém que deseja que os homens sejam racionais.» 7

No cap. VII de Os Problemas da Filosofia, Russell refere-se à controvérsia empirismo/racionalismo como a uma das controvérsias mais marcantes na história da filosofia (ver PF, p. 123 e segs.) e imediatamente passa à abordagem de questões que têm directamente que ver com as teses em oposição.

Do que Russell nos diz, claramente concluimos que ele não se situa a favor de nenhuma das escolas envolvidas na controvérsia, optando, nesta sua obra de 1912,

Page 25: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

por mos-

trar quais os pontos de concordância com uma e com outra das escolas, para, seguidamente, no cap. VIII, analisar os aspectos positivos do contributo de Karit, face a esta polémica.

0 tema central do cap.VII foca a existência de uma série de princípios, para além do princípio indutivo, que nã o retiram da experiência a sua prova ou a sua refutação. Neste aspecto concorda Russell com a tese racionalista (ver PF, p. 124); contudo, também está de acordo com as teses empiristas que afirmam que não podemos saber que uma coisa existe a não ser pela experiência (ver PF, p. 125).

Ao longo de todo este capítulo, Russell oscila entre a tese empirista e a racionalista, detectando vantagens e erros de uma e outra. Entre os erros que evidencia, podemos salientar a insuficiência do princípio indutivo (ver PF, p. 126 a 131), bem como as dificul-

ibid., p. 590.

Bertrand Russell - Sceptical Essap, London, Umin Books, 1961, p. 32.

16

Page 26: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

dificuldades e limitações dos princípios a priori (ver PF, p. 126 e segs.). A questão acaba por ser remetida para o capítulo seguinte (cap.VIII), onde será analisado o contributo da Filosofia kantiana a propósito da possibilidade do conhecimento a priori.

«( ... ) Karit porém merece crédito, sem dúvida alguma, por duas coisas: primeirarriente porque viu que há conhecimento a pn'on* que não é puramente analítico, isto é, tal que o oposto seria contraditório; em segundo lugar, porque evidenciou a importância filosófica da teoria do conhecimento.»

Bertrand Russell - Os Problemas da Filosofia, p. 137

Não esqueçamos que Russell foi, durante certo tempo, bastante influenciado pela filosofia de Karit. Embora Karit não tenha conseguido realizar a síntese entre as duas filosofias em oposição, teve o mérito de chamar a atenção para a incompletude de ambas. Antes de Karit, segundo Russell (ver PF, pp. 135-136), pensava-se que os únicos juizos que poderiam estar certos a pn .on.eram os analíticos e que o princípio da não contradição (não se admitiria um juizo que afirmasse e negasse algo, sendo contraditório em si mesmo, corno, por exemplo, «um homem calvo não é calvo» - ver PF, p. 136) era suficiente para estabelecer a verdade do conhecimento a ptiori.

Karit, apesar de perturbado pelas considerações de empiristas como David Hume, acabou por contestar a possibilidade por eles admitida de que nada se pode saber a priori da conexão entre causa e efeito.

Para Russell, tão absurda é a tese empirista de que nada se pode saber a priori da conexão entre causa e efeito como o é a solução de Kant para o problema do conhecimento a

ptiori das coisas de que não temos experiência (ver PF, pp. 137-138); conclui então (PF, p.145):

«( ... ) qualquer conhecimento a priori se refere a entidades que não existem, propriamente falando, quer no mundo mental, quer no mundo físico (... ), são entidades do mesmo gênero que as qualidades e as relações.»

TAREFAS

1. Leia atentamente o texto de Hume que se segue e responda às questões apresentadas.

TEXTO 1

«Todos os objectos da razão ou investigação humanas podem naturalmente dividir-se em duas classes, a saber, Relações de Ideias (relations of ideas) e Questões de Facto (matters offact) (... ).

Page 27: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Do primeiro tipo são as ciências da Geometria, Álgebra e Aritmética e, em suma, toda a afirmação que é intuitiva ou demonstrativamente certa ( ... ).

As questões de facto, que constituem os segundos objectos da razão huniana, não são indagadas da mesma maneira, nem a nossa evidência da sua

verdade, por maior que sej .a, é de natureza semelhante à precedente. 0 contrário de toda a questão de facto é ainda possível, porque jamais pode

17

Page 28: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

implicar uma contradição, e é concebido pela mente com a mesma facilidade e nitidez, como se fosse idêntico à realidade. Que ‘o sol não se há-de levantar amanhã’, não é uma proposição menos inteligível e não implica maior contradição do que a afirmação de que ‘ele se levantará’. Por conseguinte, em vão tentaríamos demonstrar a sua falsidade. ( ...)

Todos os raciocínios relativos à questão de facto (matter of fact) parecem fundar-se na relação Causa e Efeito. Só mediante esta relação podemos ir além dos testemunhos da nossa memória e dos nossos sentidos. Se perguntássemos a um homem porque acredita ele em alguma questão de facto, que está ausente, por exemplo, que o seu amigo está no campo ou em França, fornecer-nos-ia uma razão e esta razão seria algum outro facto, como uma carta dele recebida ou o conhecimento das suas antigas resoluções e promessas. Um homem que encontrasse um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta concluiria que noutros tempos estiveram homens nessa ilha. Todos os nossos raciocínios acerca de factos são da mesma natureza. E aqui supõe-se constantemente que existe uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é inferido. (...)

Se, por conseguinte, nos convencermos a nós mesmos quanto à natureza desta evidência, que nos assegura das questões de facto, devemos indagar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.

Atrever-me-ia a afirmar, como uma proposição geral que não admite excepção, que o conhecimento desta relação não é, em circunstância alguma, obtido por raciocínios a priori, mas deriva inteiramente da experiência, ao descobrirmos que alguns objectos particulares se combinam constantemente uns com os outros.

Apresente-se um objecto a um homem de razão e capacidades naturais muito fortes; se esse objecto for para ele inteiramente novo, não será capaz, mediante o mais rigoroso exame das suas qualidades sensíveis, de descobrir qualquer das suas causas e efeitos. Adão, ainda que as suas faculdades racionais se suponham, logo de início, totalmente perfeitas, não poderia ter inferido da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, ou a partir da luz e do fogo que ele o consumiria. Nenhum objecto descobre jamais, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, as causas que o produziram ou os efeitos que dele derivarão; nem a nossa razão consegue alguma vez, sem ser assistida pela experiência, fazer uma inferência acerca da existência real e da questão de facto».

David Hume - Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Ed. 70, 1985, Secção IV, Parte 1, § 20 a 23 (pp. 31 a 33).

1.1. Atribua um título que expresse a ideia fundamental do texto.

1.2. Liste os conceitos-chave apresentados no texto.

1.3. Identifique algumas das principais teses empiristas presentes no texto.

Page 29: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

1.4. Confronte a tese de Hume apresentada neste texto com o cap. VI de Os Problemas da

Filosofia onde Russell aborda a questão da indução.

Page 30: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

2. Confronte, através de um pequeno comentário escrito e tendo em conta os pontos de vis-

ta do empirismo e do racionalismo, os dois textos que se seguem:

TEXTO 1

«Mas, se não soubéssemos que tudo o que existe em nós de real e ver-

dadeiro vem de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem as

nossas ideias, nenhuma razão teríamos que nos certificasse de que elas têm a

perfeição de serem verdadeiras. ( ...)

Deste modo, enfim, quer estejamos acordados, quer durinamos ` nunca, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência da nossa razão.

Note-se que digo da nossa razão, e não da nossa imaginação, nem dos sentidos.»

Rene Descartes - Discurso do Alétodo, Lisboa, Replicação, 1989, 1V1 Parte, p. 70

TEXTo2

«Todo o homem tem consciência de que pensa e que o seu espírito se

aplica, quando pensa, a ideias que tem em si: está, pois, fora de dúvida que os

homens tenham no espírito ideias como as de brancura, dureza, suavidade, doce, pensamento, homem, elefante, embriaguês e outras ideias; devenios primeiramente perguntar como é que o espírito as obtém. ( ...)

Em primeiro lugar, os nossos sentidos, virados para os objectos particulares, conduzem para o nosso espírito diversas percepções distintas das coisas consoante as maneiras como esses objectos os afectam. É assim que chegamos a ter ]delas de amarelo, branco, quente, frio, macio, duro, amargo, doce e todas as ideias que apelidamos de qualidades sensíveis.»

John Locke - Essay concerning Human Understanding,

Oxford, Clarendon Press, 1985, Liv. 11, cap. 1, § 194

3. Analise o excerto que se segue, mostrando como Karit tenta superar a controvérsia empi-

rismo/racionalismo; confronte-o, seguidamente, com o cap. VI de Os Problemas da Filosofia:

Page 31: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

«Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela ex-

periência; efectivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em acção a nossa capacidade de conhecer senão os objectos que afectam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa capacidade intelectual e levam-na a compará-Ias, ligá-las ou separá-las transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na

ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é

corri esta que todo o conhecimento tem o seu início.

Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência.

19

Page 32: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Há pois, pelo menos, uma questão que carece de um estudo mais atento e que não se resolve à primeira vista; vem a ser esta: se haverá um conhecimento assim independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na experiência.»

1. Kant - Crítica da Razão Pura, Lisboa, Gulbenkian, 1989, pp. 36-37

4. A partir do cap.VII de Os Problemas da Filosofia de RusselI, saliente os traços fundamen-

tais da controvérsia empirismo/racionalismo.

5. Elabore uma lista dos problemas fundamentais referidos por Russell nesse capítulo.6. Construa um mapa conceptua18 para o empirismo e para o racionalismo.

2.2 IBertrand Russell e a tradição empirista

Segundo Ayer, a filosofia de Russell situa-o numa maior proximidade em relação à tradição empirista do que em relação aos filósofos do empirismo lógico, que influenciou profundamente,

«Apesar do muito que os filósofos contemporâneos lhe devem, a

concepção de Filosofia de Russell é antiquada. Ele está muito mais próximo dos empiristas ingleses clássicos, de Locke e de Berkeley, de Hume e de John Stuart MilI, do que dos seguidores de Moore ou de Wittgenstein ou Carnap. A razão principal para tal é que ele faz a antiquada afirmação de que toda a crença que sustentamos necessita de justificação filosófica.»9

Esta proximidade com o empirismo clássico, segundo Ayer, apresenta-se sobretudo em relação à teoria dos dados dos sentidos (sense data), defendida pelos filósofos empiristas e presente em Russe11. É precisamente na obra em estudo, Os Problemas da Filosofia, que Russell faz pela primeira vez uma referência mais explícita à questão dos dados dos sentidos, reservando-lhe um lugar central ao longo de todo o texto.

Mas, comecemos por analisar mais detalhadamente algumas das teses fundamentais do empirismo clássico, sobre as quais recai a atenção de Russeli, sobretudo em filósofos como Locke, Berkeley e Hume.

Tal como nos diz Russell em História da Filosofia Ocidental, a influência de Locke foi tão importante na filosofia subsequente que «não só as opiniões válidas de Locke, frias até os seus erros foram úteis na prática.»I0

A propósito da ideia de ‘nnipa conceptual’ pode consultar M.R. Perez e E.D.

Page 33: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Lopez - Curricultim Y Aprendizaje, Madrid, ltaka (n,11 1), 1990, onde se desenvolve e refere a ideia de mapa conceptual corno um resumo esquemático do aprendido, em

que se apresenta um conjunto de significados conceptuais incluídos numa estrutura de proposições.

A.J. Aver - “Russell: The Theory of Descriptions, Names, and Reality” in Philosopiry through tis Post, ed. Ted Honderich, Londres, Penguin Books, 1984, p. 47 1.

B. Russell - História da Filosofia Ocidental, Lisboa, Liv. Ilorizonte, 1961, p. 559.

20

Page 34: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Locke criticou profundamente a filosofia rnetafísica e especulativa da sua época, especialmente a de Descartes e a de Leibniz, na qual a concepção de ideia e de substância ocupava um lugar de relevo, sem, contudo, chegar a rejeitar tais concepções.

Dele dirá Russell ter sido o fundador do empírismo, «doutrina de que todo o

conhecimento (com possível excepção da lógica e da matemática) deriva da experiência.` 1

Locke critica a existência de ideias e princípios inatos, tal como o tinham afirmado Platão, Descartes e os escolásticos, considerando ser a experiência a fonte de todos os nossos conhecimentos, mesmo das várias espécies de ideias.

No Essay concerning Human Understanding, diz Locke:

«Suponhamos, pois, que o espírito é, como afirmamos, uma folha de papel branca, virgem de qualquer sinal, sem nenhuma ideia: como é que vem depois a recebê-las? De onde lhe vem esse vasto equipamento que a imaginação humana, sempre a trabalhar e sem limites, nela pintou com uma variedade quase infinita? Respondo com urna palavra: da experiência. É nela que se

ftínda todo o nosso conhecimento, é dela que em definitivo ele deriva. A nossa

observação aplicada, quer aos objectos sensíveis externos, quer às operações internas, por nós percepcionadas e reflectidas sobre nós, eis o que fornece aos

nossos entendimentos todos os materiais do pensamento. Eis as duas fontes do conhecimento de onde brotam todas as ideias que temos, ou que naturalmente podemos ter.» 12

Para Locke, é a experiência que origina as várias espécies de ideias. Estas são derivadas da sensação e da percepção (sentido interno). Só podemos pensar através de ideias, mas corno todas elas nos vêm da experiência, torna-se claro que Locke considera a anterioridade da experiência em relação a todo e qualquer conhecimento.

Outro traço fundamental da filosofia de Locke, referido por Russell em História da Filosofia Ocidental é a importância dada à linguagem. Locke considera (no Liv. III do Essay) que o que conhecemos do mundo é verbal, tomando uma posição nominalista extrema acerca dos Universais. Tudo o que existe, diz Locke, são particulares, embora possamos ter ideias cerais tais como ‘homem’ que são aplicáveis a vários particulares; essas ideias gerais são os ‘nomes’. A generalidade dos ‘nomes’ consiste tão só no facto de poderem ser aplicáveis a várias coisas particulares. Como veremos adiante, o problema dos Universais foi um tema que preocupou Russell e do qual este se ocupa nos caps. IX e X de Os Problemas da Filosofia.

Page 35: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Nesta obra, a referência explícita a Locke circunscreve-se ao cap. VII, aquando da discussão das teses empiristas em oposição ao racionalismo. No entanto, a influência deste filósofo, em RusselI, está presente em diversas das teses por ele defendidas e nas muitas críticas que lhe teceu, sobretudo em História da Filosofia Ocidental.

A principal crítica de Russell a Lockc diz respeito às causas externas das sensaçoes (que considera como ocorrências mentais). 0 argumento de Russell centra-se em que experienciamos as sensações, mas não as suas causas e a nossa experiência seria exactamente idêntica se as nossas sensações surgissem espontaneamente.

“ ibid., p. 562.

12 John Locke -An Eçsa,v concerning Human Understanding, Oxford, Clarendon Press, 1985, Liv. II, Cap. 1. § 194.

21

Page 36: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

0 modo como Locke entendeu o conhecimento, a percepção do acordo ou desacordo entre duas ideias, por exemplo, que o amarelo não é azul ou que dois triângulos com os

seus três lados iguais são iguais,etc., consistiu, segundo Russell, numa dificuldade que perturbou o desenvolvimento do empirismo até aos nossos dias.

Berkeley desenvolve algumas das Ideias empiristas de Locke, mas a sua importância filosófica reside, essencialmente, no facto de negar a existência da matéria e de, em consequência, afirmar que os objectos materiais só existem pelo facto de serem percepcionados. Várias foram as objecções feitas a estas teses de Berkeley. Contra essas objecções Berkeley responde «Deus percepciona sempre tudo», motivo pelo qual uma árvore ou qualquer outro objecto do mundo físico mantêm a sua existência apenas por esse facto! Se não houvesse Deus, os objectos manteriam uma existência descontínua, aparecendo e desaparecendo. Berkeley tenta provar assim que toda a realidade é mental, mas, de facto, diz Russell em História da Filosofia Ocidental, o que ele prova é que só percepelonamos qualidades. não coisas, e as qualidades são relativas àquele que percepciona.

0 argumento de Berkeley contra a existência da matéria está exposto nos seus Díálogos de Hylas e Philonous, em que o primeiro representa o senso comum cientificamente educado e o segundo o próprio Berkeley. As conclusões a que o diálogo nos conduz é que nada há de sensível, a não ser as qualidades sensíveis, e assim sendo, as coisas sensíveis nada mais são do que qualidades sensíveis ou combinações de qualidades.

Russell aceita que, na linha da tese de Berkeley, apenas percepcionamos qualidades e não coisas ou substâncias materiais, mas não aceita que as qualidades sensíveis (incluindo as primárias) sejam consideradas como mentais.

Berkeley, ao considerar as qualidades sensíveis como mentais, supera o dualismo de Locke ao dividir as qualidades em primárias (as que são inseparáveis do corpo, tais como

extensão, figura e movimento) e secundárias (tais como sons, cores, odores, que dependem do sujeito que percepciona).

A discussão das teses de Berkeley ocupa um lugar de destaque em Os Problemas da Filosofia, logo desde o cap. 1 (e ainda nos caps. 111, IV, V11 e IX) Russell discute os pontos fundamentais de divergência em relaçã o a este filósofo.

Considera que os argumentos de Berkeley são refutáveis em muitos aspectos, mas é sobretudo o conceito de matéria que mais atraiu a sua atenção e as suas críticas.

«A minha definição de ‘matéria’ pode parecer insatisfatória; eu defini-Ia-ia como o que satisfaz as equações da Física. Pode nada haver que satisfaça essas

Page 37: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

equações; gesse caso ou a Física ou o conceito de ‘matéria’ é um erro. Se rejeito a substância, ‘matéria’ terá de ser uma construção lógica.»13

Russell considera ter sido Berkeley o primeiro filósofo a ter dado relevo às questões da existência e da natureza da matéria (ver PF, p. 36), embora não aceite as suas teses sobre o assunto. Para Russell (ver PF, cap. 111), as coisas têm uma existência contínua e o que o

prova é o facto de os dados dos sentidos (sense data) reaparecerem.

13 B. Russeli - História (Ia Filosofia Ocidenial, Lisboa, Liv. 1 lorizonte, 196 1. p. 603.

22

Page 38: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

A principal crítica que Russell faz a Berkeley é o facto de este confundir a coisa percepcionada com o próprio acto de percepção (ver PF, cap. IV).14

David Hume desenvolve as teses empíricas de Locke e de Berkeley até às suas con-

clusões lógicas, de tal modo que Russell, em História da Filosofia Ocidental, diz que Hume:

«Representa, de certo modo, um ponto final; na mesma direcção é impossível ir além. Refutá-lo foi, desde logo, o passatempo favorito dos metafísicos. Pela minha parte, nenhuma das refutações é convincente. No entanto, só posso esperar que se descubra algo menos céptico que o sistema de Hume. » 15

No entanto, é o mesmo Russell que clama por algo menos céptico que o sistema de Hume, que alguns anos antes, em 1928, nos Sceptical Essays, advogava não ter a coragem heróica de cépticos como Pirro, mas considerava o valor do cepticismo como fundamental. Os resultados das ciências, dizia então, não devem ser admitidos como absolutamente certos, mas como suficientemente prováveis para fornecer uma base para a acção racional.

Mas, não foi apenas o cepticismo de Hume que o impressionou. Russell faz referência a Hume em Os Problemas da Filosofia, sobretudo nos caps. VI, VII, VIII e IX, a propósito da controvérsia empirismo/racionalismo, a propósito da discussão do princípio indutivo e dos princípios a priori e, ainda, a propósito dos Universais.

No Tratado da Natureza Humana, Hume distingue impressões (impressions) de ideias (ideas), e considera dois modos de percepção, dos quais as impressões são aquelas mais fortes e violentas, e as ideias são uma espécie de cópias, mais fracas, das impressões. As nossas ideias derivam das impressões. Em Investigação sobre o Entendimento Humano diz Hume:

«( ... ) Todos os materiais do pensamento são derivados da sensibilidade (sentiment) externa ou interna: a mistura e composição destes pertencem apenas à mente e à vontade. Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias, ou percepções mais fracas, são cópias das nossas impressões ou (percepções) mais intensas.»16

No Tratado, Hume discute o princípio da causalidade, acabando por desembocar num cepticismo exagerado e radical, que não admite a possibilidade de alcançar certeza nos

nossos conhecimentos.

Se Russell foi influenciado pelo empirismo clássico, sobretudo por Locke, Berkeley e

Page 39: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Hume, também é verdade que os criticou em vários aspectos.

No entanto, é corri a sua obra de 1914, Our Know1edge of the External World, que Russell toma uma posição de empirismo radical que o coloca na linha de sucessão directa de Locke, Berkeley, Hume e Stuart Mili.

11 Estaí questão será desenvolvida no ponto 2.2 0 problema do ser (pág. 73), em 2.2.1 A discussão acerca da existência da matéria.15 ibid.,p. 604.

16 David Hume - Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Ed. 70,1985, Secção 11.

23

Page 40: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

TAREFAs

1. A partir dos caps. 1 e 11 de Os Problemas da Filosofia de Russell, resuma as teses em-

pirístas fundamentais de Berkeley aí referidas.

2. Confronte essas teses com as apresentadas nos caps. VI e VII da obra em estudo sobre o

empirismo de David Hume.

3. Esquematize os pontos fundamentais da discussão de Russell com os empiristas tradlicio-

nais (veja, essencialmente, os caps. 1, 11, VI, VII e VIII de PF).

4. Comente o texto de Russell extraído de História da Filosofia Ocidental, a propósito de

Hobbes; no seu comentário pode socorrer-se do cap. VII de PF:

«Hobbes (1588-1679) é um filósofo difícil de classificar. Ele foi, tal como Locke, Berkeley e Hume, um empirista, mas ao contrário deste foi um grande admirador do método matemático, não apenas nas matemáticas puras, mas também na sua aplicação. ( ...)

De Descartes a Karit, a filosofia continental derivou a sua concepção da natureza do conhecimento humano das matemáticas, apesar de ter consi-

derado que o conhecimento destas é independente da experiência. ( ...)

Por outro lado, o empirismo inglês foi pouco influenciado pelas matemáticas, e mostrou uma tendência para ter unia concepção errada do método científico.»

Bertrand Russell - Históiia da Filosofia Ocidental, Lisboa, Liv. Horizonte, 1961, p.510.

2.3 @A influência de Russell no empirisnio lógico - o atonfismo

lógico

A obra de Russell teve um enorme impacte no mundo de expressão inglesa; ele foi, sem dúvida, uma das figuras de maior influência e, ao mesmo tempo, muito controversa, no

nosso século.

Page 41: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Pela diversidade de temas abordados, pelas tomadas de posição radicais em questões sociais, Russell foi considerado por alguns como um anti-Cristo e como o filósofo patrono da imoralidade. Em todas estas ‘facetas’ da sua vida e do seu pensamento, Russell foi sempre marcado por uma atitude científica, na medida em que não reclama certezas absolutas para as opiniões expressas.

Russell foi, sem dúvida, uma das figuras mais marcantes da filosofia contemporânea, não só pela vasta diversidade de assuntos e problemas que atrairam a sua investigação filosófica, como ainda pelas sucessivas e complexas mudanças que caracterizaram a sua Filosofia.A maior dessas mudanças é, talvez, a passagem do idealismo, sobretudo o de Hegel que, na forma que Bradley (de quem foi discípulo até cerca de 1889) lhe deu, o influenciaram durante um período considerável - ao realismo e ao método analítico, influenciado, sobretudo, por Moore.

24

Page 42: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

De início, Russell adere a um realismo de tipo platónico, muito marcado pela influência das matemáticas, não aceitando as teses empiristas segundo as quais as entidades matemáticas são o resultado de generalizações empíricas. Russell chega à filosofia através das matemáticas, movido pelo desejo de encontrar alguma razão para acreditar na evidência das suas verdades.

Um dos acontecimentos que Russell considera fundamental na sua vida intelectual, foi o Congresso Internacional de Filosofia de Paris, em 1900, onde fica profundamente impressionado com o trabalho do matemático Peano e do seu grupo. Sob esta influência, o

trabalho de Russell sobre a filosofia das matemáticas desenvolve-se num sentido novo.

Com Whitebead escreve Principia Mathernatica, obra que influenciou profundamente os filósofos do Círculo de Viena (Der Wiener Kreis) e o movimento analítico em geral.

Nos Sceptical Essays, Russell refere-se à ‘nova filosofia’ que surge nos princípios do século XX, como uma revolta contra o idealismo alemão. Entre os que contribuiram para essa mudança na filosofia, refere, para além do seu próprio contributo, a importância de nomes como Frege, Husserl, Meiriong, Moore, Mach, William James.

Esta nova filosofia caracteriza-se, fundamentalmente, pela sua proximidade com a

ciência; por considerar todo o conhecimento, conhecimento científico; por considerar que o

mundo não é um todo orgânico.

Além de crítica, esta nova filosofia é também construtiva e o seu método de construção é a lógica matemática. Ficou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e

encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual que, nos anos vinte e princípios dos anos trinta, agrupou filósofos, cientistas e matemáticos, liderados por Moritz Sclilick, na Universidade de Viena. As ideias divulgadas pelo Círculo de Viena, através, sobretudo, da sua publicação Erkenntnis, conduzem a uma nova ideia de Filosofia baseada no trabalho das matemáticas e na análise lógica da linguagem. Por esse motivo, o de considerar os problemas de conhecimento como problemas de linguagem, este movimento filosófico provocou aquilo a que muitos designaram por uma viragem linguística (linguistic turn) na actividade filosófica.

Este movimento caracterizou- se, sobretudo, pela tendência de tudo submeter ao

Page 43: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

empírico, pelo recurso à lógica simbólica e pela profunda crítica à metafísica tradicional.

No Manifesto do Círculo de Viena, da responsabilidade de Hann, Neurath e Carnap, diz-se:

«A concepção científica do mundo caracteriza-se, não tanto pela especificidade das suas teses, mas antes pela sua atitude fundamental, pelo seuponto de vista, pela sua direcção de investigação. Ela visa a ciência unitária. 0 seu esforço é o de articular e harmonizar os trabalhos particulares dos investigadores de diferentes domínios da ciência. ( ...)

Tudo é acessível ao homem e o homem é a medida de todas as coisas. A concepção científica do mundo não conhece enigmas insolúveis. A clarificação dos problemas filosóficos tradicionais conduziu, em parte, a desmascará-los como simili-problemas, em parte a transformá-los em problemas empíricos, como tal submetidos ao juízo da ciência da experiência. Clarificar os problemas e os enunciados, e não colocar enunciados propriamente ‘filosóficos’, constitui a tarefa do trabalho filosófico. 0 método desta clarificação

25

Page 44: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

é o da análise lógica; Russell disse a propósito desse método que ‘ele introduziu-se progressivamente sob a influência e o exame crítico das matemáticas'.»

Não é pacífica entre os membros e os sucessores deste movimento a designação de @positivismo lógico’ ou a de ‘empirismo lógico’. Os que optam pela primeira designação evidenciam a proximidade da sua actividade filosófica com a actividade científica, os que optam pela outra designação, pretendem situar-se na linha directa do empirismo clássico.

A influência das ideias deste movimento no pensamento filosófico contemporâneo foi fundamental.

A relação de Russell com o empirismo lógico, de que várias vezes diz sentir-se próximo, é marcada, essencialmente, pela influência que a sua obra, sobretudo os Plincipia Mathematica, teve nalguns dos filósofos pertencentes a este movimento (como, por exemplo, Carnap).

Sabemos já que a evolução do pensamento e obra de Russell foi complexa, o que dificulta a tarefa de quem queira traçar um percurso uno deste autor.

Podemos, contudo, encontrar alguns traços gerais que Russell manteve praticamente em toda a sua obra, como a importância das matemáticas e a crítica ao movimento idealista, aproximando-se cada vez mais de uma posição realista e analítica.

A maneira analítica de fazer filosofia tem antecedentes históricos em filósofos como Aristóteles, David Hume, Karit e na filosofia de expressão anglo-saxónica.

Confrontando as duas formas de empirismo, a clássica e a nova, diz Russell em Histótia da Filosofia Ocidental:

«0 moderno empirismo analítico difere do de Locke, Hume e

Berkeley pela incorporação da matemática e desenvolvimento de uma poderosa técnica lógica.» 17

Russell nunca foi propriamente membro do Círculo de Viena, mas sentiu-se próximo de algumas das teses defendidas pelo empirismo lógico, corno, por exemplo, o combate ao idealismo e à metafísica tradicional. Criticou, no entanto, algumas das suas ideias, que considera insuficientes, como é o caso da teoria da verificação (teoria que diz respeito ao

sentido das frases), defendida por este grupo de filósofos, admitindo certos postulados do conhecimento empírico, as crenças justificadas (em vez de princípios metafísicos). Estes postulados não se baseiam na experiência, mas são confirmados por ela.

Page 45: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Ao fazê-lo, Russell coloca-se a meio caminho entre o empirismo tradicional e o

empirismo lógico, ao mesmo tempo situando-se próximo e afastado do empirismo lógico, atraindo as críticas de filósofos como Ayer e outros membros do grupo de Oxford.

Tal como o empirismo tradicional, os empiristas lógicos consideram que o nosso co-nhecimento se baseia inteiramente na experiência sensível e é inteiramente composto pelos dados dos sentidos (sense data). A novidade do empirismo lógico está em considerar os problemas como problemas de linguagem e em falar de análise lógica da linguagem vulgar.

Afirma Russell que esta análise da linguagem vulgar não pode, por si só, resolver todos os problemas da filosofia.

11 Bertrand Russell -História da Filosofia Ocidental, Lisboa, Liv. Horizonte, 1961, p. 756.

26

Page 46: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Critica, com algum humor, a tendência da filosofia anglo-saxónica contemporânea, excessivamente preocupada corri as questões da linguagem:

«A escola filosófica mais influente nos nossos dias em Inglaterra per-

filha uma certa doutrina linguística a qual me sinto incapaz de subscrever.

Não quero representar mal esta escola, mas suponho que qualquer adversário de uma doutrina é considerado como mau representante desta pelos que a defendem.

A doutrina, tal como eu a entendo, consiste em manter/sustentar que a

linguagem do quotidiano, com as palavras usadas nos seus sentidos comuns, basta à filosofia, a qual não necessita de termos técnicos ou de trocas no significado dos termos comuns. Encontro-me totalmente incapaz de aceitar tal posição...

A cristandade ortodoxa afirma que sobrevivemos à morte. 0 que significa ela com esta afirmação? E em que sentido, se o há, a afirmação é verdadeíra?

Os filósofos em questão considerariam a primeira destas questões, mas diriam que a segunda não é tarefa sua.

Concordo totalmente que, neste caso, a discussão do que significa é importante e perfeitamente necessária como preliminar para a consideração da questão substancial, mas se nada pode ser dito da questão substancial, parece ser uma perda de tempo discutir o que ela significa.

Estes filósofos fazem-me lembrar o comerciante a quem uma vez

perguntei qual o caminho mais curto para Winchester,

Ele chamou um homem na parte de trás da casa: ‘0 Senhor quer saber qual o caminho mais curto para Winchester.- Winchester? - replicou uma voz invisível.- Sim.- 0 caminho para Winchester?- Sim.- 0 caminho mais curto?- Sim.- Dunno (não sei).’ Ele quis tornar clara a natureza da questão, mas não teve interesse em responder-lhe. Isto é exactamente o que faz a filosofia moderna na sua ansiosa busca da verdade.

Surpreendemo-nos que os jovens se voltem para outros estudos?»18

Russell distancia-se, assim, de uma atitude filosófica que considera insuficiente, por apenas tentar clarificar questões e analisar a linguagem

Page 47: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

comum. Para Russell, a tarefa da filosofia tem que ser algo mais do que a proposta por estes filósofos; mais do que chegar a

verdades acerca da linguagem, ele pretende chegar a verdades acerca daquilo que é. Russell não pode, pois, ser considerado corno um filósofo linguístico.

Bertrand Russell-PortraitsfromMemory, London, GeorgeAllen and Unwjn,1956,pp. 154-157.

27

Page 48: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Para RusselI, a relação entre linguagem e mundo é constituída pelos nomes e pelos seus significados. Para que algo seja um nome é necessário que um objecto exista (ver cap. 1 de PF).

A propósito da filosofia que perfilha, diz Russell:

«Considero, em geral, a filosofia que proponho como uma espécie de realismo, e classificam-na de inconsequente porque contém elementos que parecem ser contraditórios com essa doutrina. (...)

Mantenho que a Lógica é o fundamental em filosofia e que as escolas se deveriam caracterizar mais pela sua lógica do que pela sua metafisica. A minha própria lógica é atómica e é este aspecto que desejo sublinhar.»19

Da sua teoria diz Russell ser um atomismo lógico e não um realismo lógico, pois a sua

lógica é atómica e a lógica deveria ser o fundamental em filosofia.

A lógica atómica proposta por Russell compartilha a crença do senso comum de que há uma multiplicidade de coisas diferentes, refutando a ideia de haver uma só realidade e múltiplas aparências desta. 0 mundo consiste em simples particulares que apenas têm simples qualidades que assentam nas simples relações uns com os outros.

Para Russeli, justificar a filosofia do atomismo lógico significa justificar o método analítico.

«A razão pela qual denominei a minha doutrina de ‘atornismo lógico’ é que os átomos a que pretendo chegar, como último resíduo da análise, são átomos lógicos, não átomos físicos. Alguns deles serão aquilo a que chamo4particulares'- coisas como pequenas manchas de cor ou sons, coisas fugazes e momentâneas - outras serão predicados ou relações e entidades do mesmo estilo.»20

A propósito do seu ‘atornismo lógico’, Russell refere que o mundo contém factos que são o que são, mesmo que escolhamos pensar o que quer que seja deles. Esta posição é semelhante à assumida por Wittgenstein no Tractatus, quando diz «0 mundo é a totalidade dos factos, não de coisas».

Russeil, tal como Wittgenstein, que foi seu discípulo, assume a correspondência entre a estrutura da linguagem e a estrutura do mundo, evidenciando a importância dos factos: são eles que dão às proposições e às frases algo sobre o qual reflectir e são ainda eles que garantem a verdade ou a falsidade das proposições.

Page 49: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Diz RusselI, são os factos atómicos que tornam as proposiçoes atómicas verdadeiras. A filosofia do ‘atomismo lógico’ é desenvolvida por RusselI, sobretudo nas suas

conferências de 1918; representa um momento crítico em relação ao monismo e o reencontro com a lógica moderna de Frege e de Peano.

Segundo RusselI, o mundo é composto de coisas que têm qualidades e que estabelecem relações umas com as outras. Nele se incluem os particulares e os universais, os quais

Bertrand Russell - «0 atomismo lógico» in Contemporaty British Philosopky (org. J. Muirhead), London, George Allen and Umin Ltd., 1924.

20 Bertrand Russell - «A Filosofia do atomismo lógico» in Logic and Know1edge, London, George Allen and Umin, 1956.

28

Page 50: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

entram na composição dos factos, sendo nesse sentido considerados como não tendo existência concreta. Os factos pertencem ao mundo exterior e são apreendidos directamente, pelo que os podemos considerar como factos da percepção sensível.

Os factos atómicos são entendidos c~, a parte não linguística das proposições atómicas. São eles que determinam a verdade ou a falsidade de tais proposições.

As proposições atómicas nem sempre nos são dadas como tal na linguagem, razão pela qual Russell sente a necessidade de proceder a uma análise lógica, distinta da mera análise gramatical. É através da teoria das descrições definidas que Russell mostra esta

questão. Esta teoria consiste basicamente em rejeitar os nomes próprios, substituindo-os por expressões descritivas que fazem apelo a conceitos, a funções, numa linguagem simbólica. Os termos singulares podem ser eliminados da linguagem lógica.

Uma descrição é uma forma de designar um indivíduo por uma expressão que desempenha o lugar, na proposição, de um nome próprio e que denota bem esse indivíduo: por exemplo, ‘o rei de Inglaterra’, ‘o autor do crime’, etc.

Diz Russell:

«Por descrição entendo uma frase como ‘o actual presidente dos Estados Unidos’, em que se designa uma pessoa ou uma coisa não pelo nome, mas por alguma propriedade que se supõe ou se sabe ser-lhe peculiar. Tais frases produziram muita confusão.

Suponhamos que digo: A montanha de ouro não existe’ e me perguntam @que é que não existe?’. Parece que se eu disser ‘é a montanha de ouro’ lhe atribuo uma espécie de existência.

Não é o mesmo que se dissesse: ‘Não existe o círculo quadrado’. Isto parece implicar que a montanha de ouro é uma coisa e o círculo quadrado outra, embora nenhuma delas exista.

A teoria das descrições foi pensada para obviar a estas dificuldades. »21

As descrições são consideradas por Russell como ‘símbolos incompletos’, são funções que têm que ser completadas por um argumento para poder formar uma proposição; ao

passo que os nomes são símbolos completos.

Assim, proposições aparentemente com a mesma forma gramatical, tais como ‘Sócrates é mortal’ (que é uma proposição atómica) e ‘o actual rei de França é calvo’, não têm, contudo, a mesma forma lógica,

Page 51: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Russell dá vários exemplos em que, através da análise lógica dos enunciados, podemos verificar que expressõ es singulares que denotam o mesmo indivíduo não são idênticas entre si, embora aparentem sê-lo. É conhecido o célebre exemplo de Russell: ‘Scott’ e ‘o autor de Waverley’ denotam o mesmo indivíduo, mas a primeira expressão é um nome próprio e a segunda uma descrição definida. Os nomes próprios, porque são símbolos completos, possuem um significado em si próprios, mas os símbolos incompletos (as descrições definidas) podem participar no significado dos enunciados de que fazem parte, mas nada significam por si mesmos.

21 Bertrand Russe11-Históiia da Filosofia Ocidental, Lisboa, Liv. Horizonte, 1961, p.753.

29

Page 52: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Russell evidencia, assim, a necessidade analítica, a necessidade de recorrer ao método de análise lógica da linguagem, para resolver os problemas filosóficos, através da reformulação dos enunciados da linguagem vulgar na linguagem lógica. 22

Os filósofos do Círculo de Viena, ainda que profundamente influenciados por este método de RusselI, acabam, nalguns por utilizá-lo apenas numa só direcção: como

ataque sistemático à metafisica e, nalguns casos, a toda a filosofia. Os filósofos da escola de Oxford, por exemplo, retomam, embora com muitas diferenças, a análise lógica da linguagem vulgar, mas Russell também os critica por considerar que esta análise por si só não é suficiente para resolver todos os problemas da filosofia.

Juntamente com esta tendência para valorizar o papel da análise lógica, Russell apresenta também traços fortemente empiristas no seu pensamento. Estes manifestam-se, sobretudo, na distinção que faz entre conhecimento de trato (acquaintance) e conhecimento por descrição (ver cap. V de PF); no monismo neutral que, sob a influência de Leibniz, Russell admitiu, para cedo abandonar e que consistia em considerar o físico e o psiquico como duas faces da mesma realidade; e no subjectivismo (como é que a experiência subjectiva e as proposições de um sujeito cognoscente se relacionam com a realidade enquanto descrita - para o empirismo ló gico esta teoria é a teoria da verificação).

TAREFAS

1. Comente o seguinte texto de Ayer:

«( ... ) As questões com que a filosofia se preocupa são questões puramente lógicas; e embora se discuta sobre questões lógicas, tais disputas são sempre infundadas. Porque ou envolvem a negação de uma proposiçã o que é necessariamente verdadeira, ou a asserção de uma proposição que é neces-

sariamente falsa.»

AI Ayer - Linguagem, Verdade e Lógica,

Lisboa, Ed. Presença, 1991, p. 122

2. Confronte o texto de Davidson que a seguir se apresenta com algumas das ideias acerca

da importância da lógica na análise da linguagem, que reteve deste ponto:

«A linguagem é um instrumento de comunicação em virtude da sua dimensão semântica, a potencialidade de verdade ou falsidade das suas frases, ou melhor,

Page 53: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

das suas elocuções e inscrições. 0 estudo de que frases é que são verdadeiras é, em geral, o trabalho das diversas ciências; mas o estudo das condições de verdade é a província da semântica. Aquilo em que nos devemos concentrar na linguagem, se quisermos pôr em relevo as características gerais do mundo, é em que é que consiste, em geral, a verdade de uma frase na linguagem.»

Donald Davidson e outros - Existência e Linguagem,

Lisboa, Ed. Presença, 1990, p. 12221 Esta questão será desenvolvida no ponto 22 0 Problema do Ser (a discontinuidade dos diferentes tipos de ser) (pág.73), a pro-

pósito da relação com a questão da verdade, do real, dos universais.

30

Page 54: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

3. A partir do texto de Carnap e do que concluiu ao longo deste ponto sobre o empírismo lógico e o Círculo de Viena, trace um diagrama com as principais características deste movímento e evidencie os pontos essenciais de crítica à iiietafísica tradicional. Para a

elaboração desta tarefa será aconselhável consultar um dicionário de filosofia e uma história da filosofia contemporânea.

«No nosso Círculo de Viena, assim como nos grupos aliados, ganhou corpo a convicção ` que presentemente está a radicar-se solidamente, de que a metafísica não pode avançar qualquer pretensão de possuir carácter científico. A parte do labor filosófico que pode ser considerada de natureza científica - exceptuados os problemas factuais reduzíveis à ciência empiri . ca- não é senão a análise lógica. 0 intento da sintaxe lógica é fornecer um sistema de conceitos, uma linguagem mediante a qual os resultados de tal análise lógica sejam precisamente formuláveis. A filosofia deve ser substituída pela lógica da ciência, isto é, pela análise lógica dos conceitos e das proposições da ciência, dado que a ló gica da ciência mais não é que a sintaxe lógica da linguagem científica.»

Rudolf Carnap - Sintaxe Lógica, Londres, 1937, p. 16

4. A partir do cap. IX de Os Probleinas da Filosofia, elabore, em articulação com o que foi

dito, neste ponto, sobre a teoria das descrições definidas de RusselI, um pequeno resumosíntese dessa problemática.

31

Page 55: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

11

Percursos possíveis para a obra

em causa

1

Um percurso de leitura global

1.1 @ 0 que é para Russell conhecer?

A possibilidade de um conhecimento absolutamente certo

Ainda que Russell não considere explicitamente o problema do conhecimento como o grande tema de Os Problemas da Filosofia, o facto é que esta questão se torna central nesta obra, uma vez que é considerada como problema filosófico determinante e a ela é dedicada grande parte do texto. No prefácio que o autor faz a Os Problemas da Filosofia, desde logo é evidenciado o papel fundamental que atribui à teoria do conhecimento, facto que motivou que tal questão ocupasse grande parte desta sua obra.

Noutros escritos posteriores a este de 1912, Russell teve a preocupação de problematizar este tema de forma mais sistemática, apresentando algumas posições divergentes, reflexo da evolução do seu pensamento.

Contudo, tentaremos, na medida do possível, cingir-nos à questão tal como ela é colocada em Os Problemas da Filosofia, e, neste ponto do nosso estudo, porque apenas pretendemos uma leitura global do problema do conhecimento, não insistiremos em questões de pormenor que serão abordadas posteriormente, aquando da leitura estrutural.

Oue significa, então, para RusselI, conhecer?

33

Page 56: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Em Human Know1edge, obra de 1948, Russell diz:

«0 conhecimento é uma subclasse das crenças verdadeiras: todo o caso

de conhecimento é um caso de crença verdadeira, mas não o inverso.»23

E em Os Problemas da Filosofia (ver cap. XIII, p. 202) exemplifica o que pode ser

uma crença verdadeira que não seja conhecimento: quando um homem olha para um relógio que não funciona, crendo, contudo, que este funciona, no momento em que dá a hora correcta; ou quando um outro homem crê, com razão, que o últimer nome do 1.0 ministro inglês em 1906 começava por B, pensando chamar-se este Balfour, quando de facto se chamava Campbell-Bannerman. Conclui Russell que uma crença verdadeira, quando deduzida de uma falsa, não constitui conhecimento (ver PF, cap. XIII).

Mas, na mesma obra, Russell também afirma que, tal como não há resposta para a

questão'o que é a calvície?’, também a não há para a questáo'o que é o conhecimento?'.Esta afirmação deixa-nos numa situação embaraçosa, que tentaremos, contudo, ultrapassar.

Alguns anos antes, em 1921, em The Analysis of Mind, Russell diz serem as crenças aquilo que nos dá o conhecimento e o erro, pois são estas os veículos da verdade e da falsidade.24 Mas, na obra em estudo, Os Problemas da Filosofia, Russell coloca a questão do co-

nhecimento como algo que é, pelo menos nalgum grau, duvidoso.

Afirma: «Existe, acaso, algum conhecimento tao certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?» (PF, p. 29), problema que acaba por considerar como um dos mais difíceis de resolver. As dificuldades estão, de facto, presentes não só no texto desta obra

como na própria Filosofia de Russell sobre o assunto.

«Na busca da certeza - diz Russell - é natural que principiemos pelas nossas presentes experiências» (PF, p. 30), pois é delas que deriva o conhecimento, tal como o afir-

mavam os empiristas clássicos.

0 ponto de partida de Russell na sua teoria do conhecimento é, segundo Ayer, muito semelhante ao de Locke. Ambos partem da consideração empirista de que o nosso

Page 57: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

conhecimento do mundo deriva da percepção sensível. Russell assume, contudo, que há uma

diferença entre as coisas que são imediatamente conhecidas na sensação e os objectos físicos que pensamos per-cepcionar, introduzindo a distinção entre aparência e realidade. Diz: «( ... ) o que vemos e sentimos de maneira directa não passa de uma mera aparência.» (ver Cap. 1 de PF, p. 41).25

Mas Russell difere de Locke, pois enquanto este falava de ‘simples ideias dos sen-tidos’ (simple ideas of sense), Russell fala de ‘dados dos sentidos’ (sense data) e exemplifica o

que são esses dados dos sentidos, os quais nos dão apenas a forma aparente das coisas, não a

sua forma real (ver Cap. 1 de PF, pp. 32 a 34).

As cores, os sons, etc., são os dados dos sentidos que Russell diferencia das sensações, que identifica com as experiências de conhecimento imediato dos dados dos sentidos.

23 Bertrand Russell - Human Know1edge, us Scope and Limits, London, RoutIedge, 1992.

21 Ver Bertrand Russell - TheAnalysis of Mind, London, George Allen and Unwin Ltd., 1924, p. 231.25 Esta questão será desenvolvida posteriormente, em 2 2 2 Os vários graus de aproximação do real - o problema da verdade ( pág 82).

34

Page 58: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Russell tenta sugerir que esses elementos sensórios são dependentes da mente, ao

afirmar que são aquilo de que temos consciência (awareness) imediata (ver cap. 1 de PF, pp.35-36), razão pela qual afirma (ver cap. 111 de PF, p. 58) que os dados dos sentidos são sinais da existência de qualquer coisa independente de nós e das nossas percepções.

Na obra em estudo, diz Russell: «Quando vemos uma certa cor, temos nós a sensação da cor, mas a própria cor é um dado dos sentidos, não uma sensação» (PF, p. 36).

Em PF, Russell considera a ‘consciência de’ como um estado mental. Admite a existência dos dados dos sentidos independentemente de serem sentidos, uma vez assumida a possibilidade de termos consciência destes, como algo de mental.

Diz: «Podemos, portanto, admitir ( ... ) que o mundo externo realmente existe, e que não depende completamente, para a sua existência, do facto de continuarmos a percepcioná-lo.» (ver cap. 11 de PF, p. 53)

Mas, eni The Analysis of Mind, Russell rejeita a tese da existência de actos mentais (mental acts), porque considera que o sujeito é uma ficção lógica. Abandona a crença nas sensações, no sentido em que previamente usara o termo e, assim, não pode acreditar na

existência de objectos, negando também a existência dos dados dos sentidos.

No entanto, apesar de abandonar o termo ‘dados dos sentidos’, Russell fala, em obras posteriores, em perceptos (percepis), a que acaba por atribuir as mesmas características que em Os Problemas da Filosofia atribuíra aos dados dos sentidos, excepto a de serem correlativos dos actos sensoriais.

Nalguns textos, por exemplo em Our Know1edge of lhe External World, Russell utiliza o termo sensibilia para se referir ao facto de os objectos físicos serem representados por construções lógicas. Os sensibilia têm, para RusselI, um estatuto idêntico ao dos dados dos sentidos (sense data), embora não necessitem de ser actualmente sentidos. Ambos, sense data e sensibilia se situam, segundo RusselI, nos espaços privados.

A crença (belief), que é, como diz Russell em The Analysis of Mind, a coisa mais mental que fazemos, ocupa um papel fundamental no conhecimento.

Acreditamos na existência de um mundo externo, através de uma crença instintiva, a qual nunca seria posta em dúvida, se não fosse o facto de possibilitar uma confusão entre o objecto independente e o dado sensível. Russell conclui, porém, que nada destrói a crença instintiva em objectos correspondentes aos dados dos sentidos e que «todo o conhecimento, em última análise, se constrói sobre

Page 59: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

crenças instintivas» (cap. 11 de PF, p. 54), das quais umas

são mais fortes do que outras. A tarefa da Filosofia, na busca de um conhecimento certo, consiste também em organizar e hierarquizar as nossas crenças instintivas (ver PF, p. 54).

Russell acaba por concluir que o conhecimento é uma questão de grau, isto é, o grau mais elevado do conhecimento encontra-se em factos de percepção e no poder de convicção de argumentos muito simples. 0 grau seguinte está nas recordações vividas.

Assim como há diferentes espécies de crenças, as quais tanto nos conduzem ao erro como à verdade, também há diferentes espécies de certeza, graus distintos de auto-evidência e só o grau mais alto desta é também o grau mais alto de certeza (ver cap. X1 de PF) .26

` Esta questão será desenvolvida posteriormente, em 2.2 0 Problema do Ser (p. 73).

35

Page 60: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Nos capítulos finais de Os Problemas da Filosofia, Russell acaba por mostrar a impossibilidade de alcançar um conhecimento absolutamente certo, tentando deste modo responder à questão colocada no início da sua obra (ver cap. 1 de PF).

0 problema do conhecimento surge, então, ligado com o problema de o que é a Filosofia:

«A Filosofia, como os demais estudos, visa primeiramente ao conhecer.0 conhecimento que ela tem em vista é aquela espécie de conhecimento que confere unidade e organização sistemática a todo o corpo do saber científico, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos das convicções, e dos nossos preconceitos, e das nossas crenças.» (PF, pp. 232-233)

RusselI, após ter considerado a Filosofia como uma crítica do conhecimento (ver PF, pp. 226-227), acaba por concluir que a possibilidade do erro é sempre uma hipótese a admitir, mas através de uma análise crítica é possível uma aproximação cada vez maior à certeza,

A dificuldade anunciada por Russell no início de Os Problemas da Filosofia em relação ao problema do conhecimento é reafirmada no cap. XIII.

Há vários graus ou géneros de conhecimento, os quais estão relacionados com os

vários tipos de crença, mas nada nos possibilita definir o conhecimento como crença verdadeira (ver cap. XIII de PF, p. 201), ele é antes «o que é validamente deduzido de premissas que são conhecidas» (cap. X111 de PF, p. 203).

Assim, no cap. XIII de Os Problemas da Filosofia, Russell admite um gênero de conhecimento a que chama intuitivo, outro a que chama derivado, um conhecimento de facto, um de percepção, um de coisas e um de verdades (ver PF, pp. 204 a 207). Destes nos

ocuparemos no ponto seguinte.

0 conhecimento é, diz Russell neste mesmo capítulo (PF, p. 212), «aquilo que cremos

com crença firme e que é verdadeiro».

0 conhecimento da existência dos dados dos sentidos parece a Russell conhecimento indubitável, pelo que a crítica filosófica não deverá exigir, como o fizeram filósofos racionalistas tais como Descartes, que os abandonemos como conhecimentos em que podemos acreditar (ver cap. XIV de PF, p. 228).

Mas, Russell insiste neste aspecto, não poderemos confundir dados dos sentidos com

Page 61: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

objectos físicos, pois destes últimos jamais poderemos ter conhecimento. Esta identidade, que alguns consideram entre dados dos sentidos e objectos físicos, terá que ser rejeitada na

sua totalidade (ver PF, pp. 228-229).

0 que podemos conhecer com certeza são, quando muito, as relações, e estas situam-se ao nível da linguagem.

36

Page 62: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

0 que podemos conhecer?- 0 conhecimento como conhecimento de coisas

Russell responde de forma mais ou menos clara a esta questão, no cap. 111 de Os Problemas da Filosofia. Nã o podemos conhecer os objectos físicos na sua natureza intrínseca, mas podemos conhecer algumas relações destes objectos entre si. Podemos conhecer as

relações que são requeridas para manter a correspondência com os dados dos sentidos (ver cap. 111 de PF, p. 64).

0 conhecimento que temos dos dados dos sentidos é aquilo a que Russell chama conhecimento de coisas e que se opõe ao conhecimento de verdades (ver cap. IV de PF, p. 81).0 conhecimento de coisas liga-se àquílo a que Russell chama ‘trato’. Mas, diz Russel], «todo o conhecimento - quer o de coisas, quer o de verdades, - se vai fundamentar, em última instância, no conhecer de trato.» (cap. V de PF, p. 88)

Russell emprega frequentemente três termos com significados próximos, mas que importará aqui analisar minimamente, para nos darmos conta da amplitude desta problemática.

Conhecimento (know1edge), trato (acquaintance) e consciência de (awareness) são os três termos utilizados por Russel], ao abordar a questão do conhecimento, nem sempre com o mesmo significado que habitualmente lhes é dado na linguagem vulgar.

Para além disso, há alguma analogia no modo corno estes termos são utilizados, pois Russell quase os identifica e quando trata de os distinguir fá-lo, por vezes, corri pouca precisão.

A propósito de ‘trato’ (acquaintance) e ‘conhecimento de trato’ (knowledge by acquaintance), termos que Russell utiliza quase arbitrariamente (ver sobretudo cap. V de PF), seria útil ver como são utilizados.

De um modo geral, a utilização que Russell faz de ‘trato’ (acquaíntance) implica uma

noção de ‘consciência’ (awareness) que não está presente na utilização vulgar do termo. ‘Trato’ é, diz Russell, aquilo que supõe uma relação com algo que existe, ‘ter trato com’ implica conhecer que esse algo existe, contudo, posso saber que algo existe sem ter desse algo ‘conhecimento de trato’ (ver cap. IV de PF, p. 82).

Temos trato com aquilo de que temos experiência directa. Assim, temos ‘trato’ com

pessoas, com locais geográficos, com sentimentos, etc. Temos ‘trato’ com as

Page 63: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

coisas que experienciamos e com aquelas que recordamos.

270 uso que Russell faz de ‘trato’ está, como diz A. White @ relacionado com aquilo com que temos contacto directo e presente, «em presença da minha mesa, tenho trato directo (ou conhecimento íntimo, ou conhecenç a) com aqueles dados dos sentidos que constituem a

aparência da minha mesa: a cor, a forma, a dureza, a macieza, etc., ete.» (cap. V de PF, p. 86)Para A. White, se pensarmos no uso vulgar de ‘consciência'e de ‘trato, aquilo a que Russell chama ‘trato’ está mais próximo do uso vulgar de ‘consciência’.

17 Ver A. R.White em “Knowledge, Acquaintance and Awareness” in The Fotindations ofAnalytic Philosophy, Midwest Studies

in Philosophy, vol. VI, ed. French e outros, Mirmeapolis, Univ. of Mitmesota Press, 1981, pp. 159-172.

37

Page 64: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Em Os Problemas da Filosofia, Russell identifica ‘experiência’ (experience) com ‘consciência de’ (awareness of). ‘Ter consciência de’ é ‘uma experiência de’ e, em consequência, identifica as coisas que são experienciadas com aquelas de que tomamos consciência (as coisas dadas na sensação, pensamentos e sentimentos, etc.); dois anos mais tarde, em 1914, no artigo «On the Nature of Acquaintance», Russell desenvolve essa noçã o de experiência como equivalente a trato (acquaintance).

Tanto consciência como trato implicam conhecimento, mas o conhecimento de que alguém está consciente não é o mesmo do conhecimento que temos por trato; ter consciência não é necessariamente ter trato com.

No cap. V da obra em estudo (ver PF, pp. 89-90), consciência de si e conhecimento

de trato pela memória, ou autoconsciência, são identificados e considerados como a origem de todas as coisas mentais.

A relação que Russell faz entre ‘trato’ e ‘conhecimento de trato’ é ambígua: ‘trato’ é considerado como uma forma de conhecimento imediato e como um meio através do qual se obtém o conhecimento que designa por ‘ conhecimento de trato’.

Fala Russell de trato com objectos, e de conhecimento de objectos físicos, o qual não é directo, nem imediato, mas obtido através do trato com os dados dos sentidos (sense-data) (ver cap. V de PF, sobretudo pp. 86 e 88).

Refere-se, ainda, a conhecimento de trato de universais (ou ideias gerais) e de particulares (ver cap. V de PF, p. 93) apesar de considerar que tal conhecimento é diferente, num e noutro dos casos; diz «A tomada de consciência dos universais designamo-la por con-

cepção.» (PF, p. 93).

Russell argumenta contra Berkeley e a sua tese de que ser conhecido é ser mental, isto é, estar num espírito (ver cap. IV de PF), pois considera que a coisa mesma e o acto mental não se confundem, como o faz Berkeley. Para este, a ideia (idea) é o que é conhecido imediatamente, como o são, para RusselI, os dados dos sentidos.

A coisa mesma é aquilo de que temos consciência e o acto mental de apreender tal coisa é, para RusselI, distinto dela. Ao criticar a tese idealista de Berkeley (no cap. IV de PF), Russell diz: «Esta distinção entre o acto e o objecto, no nosso apreender ou percepcionar as coisas, assume importância capitalíssima, pois que toda a capacidade de conhecimento se nos apresenta com ela vinculada.» (PF, p. 78)

Page 65: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Russell considera dois tipos de conhecimento (ver caps. IV e V de PF): o ‘conheci- mento de verdades’, que se aplica aos actos mentais, e o ‘conhecimento de coisas’, que é um

conhecimento de trato, através do qual podemos conhecer os dados sensíveis.

Em relação ao ‘conhecimento por descrição’, que é, também, um conhecimento de coisas, mas de coisas de que não temos experiência directa, diz Russell que este implica sem-

pre algum conhecimento de verdades (ver cap. V de PF, pp. 85 - 87 e 94).38

Page 66: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Como podemos conhecer? - 0 conhecimento como conhecimento de verdades

Depois de termos tentado equacionar algumas questões referentes ao problema do conhecimento, nomeadamente:

- em relação àquilo que podemos conhecer, e tendo concluído que dificilmente co-

nhecemos com certeza;

- que podemos conhecer através de conhecimento de coisas, por trato, os dados dos sentidos (sense data) que, contudo, não são identificáveis com os objectos físicos;

oque podemos conhecer por descrição o objecto físico, através de uma descrição definída do tipo ‘o isto e o aquilo’ e que tal conhecimento nos permite ultrapassar os limites da nossa experiência pessoal (ver cap. V de PF, p. 103), passaremos, seguidamente, a perspectivar o conhecimento como conhecimento de verdades.

0 problema da verdade e de um conhecimento verdadeiro é, para RusselI, como veremos mais detalhadamente28@ uma questão de grau.

Como até agora nos foi dado observar, apesar de toda a anibiguidade que o problema do conhecimento encerra neste filósofo, podemos conhecer de vários modos, os quais se

devem, com a ajuda da actividade filosófica, hierarquizar.

Na base de todo o conhecimento Russell afirma encontrar sempre um conhecimento de trato, o qual, como vimos, é um conhecimento imediato dos dados dos sentidos.

0 conhecimento considerado como conhecimento de verdades envolve sempre, tal como

todas as verdades, os universais e, diz RusselI, ‘trato’ com os universais (ver cap. IX de PF) .

É, também, um conhecimento que envolve dualismo: o conhecimento, como já referimos, tem que ver com a crença, e «podemos crer no falso, como no verdadeiro» (cap. X11 de PF, p. 185).

Afastada a hipótese de considerar o conhecimento apenas como crença verdadeira, como o faz Russell no cap. XIII da obra que estamos a estudar (ver PF, p. 201), assume então que «conhecimento é o que é validamente deduzido de premissas que são conhecidas» (PF, p. 203).

Esta questão, que será desenvolvida com mais pormenor quer na análise estrutural

Page 67: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

de ‘o que é o conhecimento’ quer na análise de ‘o que é a verdade’, razão pela qual nos limitamos aqui a estabelecer as articulações globais, está directamente ligada com todo o desenvolvíniento que Russell faz na obra em estudo, a propósito do conheciniento a ptiwi.

Diz RusselI, «cumpre-nos distinguir, em primeiro de tudo, entre o conhecimento de coisas e o conhecimento de verdades. Em cada um deles há duas espécies: uma imediata, derivada a outra.» (PF, p. 171). No primeiro, conhecimento de coisas, como já foi referido no ponto anterior, podemos distinguir o conhecimento de trato (imediato) e o conhecimento por descrição (derivado); mas, em relação ao conhecimento de verdades, ele é iniediato

18 Ver 11.a Parte, 2 22 Os vários graus de aproximação do real -o problema da verdade (pág. 82).

39

Page 68: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

quando é conhecimento intuitivo (em que as verdades são evidentes de si) e é derivado quando, a partir destas verdades evidentes de si se derivam ou deduzem outras verdades dependentes das primeiras (ver cap. X de PF, pp. 172-173).

Este conhecimento de verdades está relacionado com a admissão de princípios gerais independentes da experiência, a priori, tais como o princípio indutivo e outros princípios gerais de inferência, que se referem a entidades que não são nem mentais, nem físicas, entidades inexistentes, do tipo das qualidades e das relações.

0 conhecimento de verdades refere-se, pois, a este tipo de entidades: as relações e, nesse sentido, implica um conhecimento dos universais, termo que Russell prefere em vez

de ideia.

A discussão acerca do conhecimento de verdades ocupa vários dos capítulos da obra Os Problemas da Filosofia, nomeadamente aqueles em que Russell se refere à controvérsia empirismo/racionalismo e a Karit e ao conhecimento a priori.

Este tipo de conhecimento implica problemas mais complexos do que aqueles que se

colocam ao conhecimento de coisas, pelo facto de nele «aparecer um problema novo, que não surge a propósito do conhecimento de coisas : o problema do erro» (PF, p, 172).

No cap. X111 de Os Problemas da Filosofia, Russell distingue vários graus de evidência que se apoiam nos tipos de crença: conhecimento (intuitivo ou inferido), erro (o que cremos de crença firme e que não é verdadeiro), opinião provável (o que não tem evidência do mais alto grau).

Dos problemas apenas enunciados a propósito deste tipo de conhecimento faremos uma análise mais detalhada em pontos posteriores.

TAREFAs

1. Confronte o texto de Descartes apresentado com os caps.l, XIII e XIV de Os Problemas

da Filosofia, evidenciando a possibilidade da busca de um conhecimento certo:

«Mas porque agora desejava dedicar-me apenas à procura da verdade, pensei que era preciso que eu fizesse exactamente ao contrário e que rejeitasse como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, depois disso, não ficaria alguma coisa na minha crença que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que não existe coisa alguma que seja tal como

Page 69: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

eles a fazem imaginar.»

Renê Descartes - Discurso do Método, Lisboa,

Replicação, 1989, IV.1 Parte, pp. 59-60

2. Comente o texto de Hartinann, confrontando-o com a perspectiva geral de conhecimentoapresentada por Russell em Os Problemas da Filosofia:

«0 acto de conhecimento ‘ingénuo’ é uma abstracção. Nunca o encon-

tramos em estado isolado. Está sempre na realidade inserido num vasto con-

40

Page 70: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

1.unto de estados vividos. Ninguém se limita a apreender, pura e simplesmente algunia coisa; este qualquer coisa insere-se num todo e recebe uma significação, teórica ou prát.;ca.»

Nicolai Hartrnann - Princípios de lima Metafísica do Conhecimento, Paris, Aubier, 1945, vol. 1, pp. 89-90.

3. Elabore um esquema conceptual para o problema do conhecimento nos cap. IV e V da

obra de Russell Os Problemas da Filosofia.

4. Confronte, em traço gerais, o texto de Ayer que a seguir se apresenta e que coloca deter-

minados problemas em relação à questão do conhecimento, com a perspectiva central apresentada por RusselI, sobre o mesmo tema, em Os Problemas da Filosofia:

«( ... ) 0 dicionário diz-nos que o verbo ‘conhecer’ se usa em vários sentidos. Podemos falar de conhecimento no sentido de ser-nos familiar uma pessoa ou um lugar, de conhecimento de alguma coisa por experiência, como

quando alguém diz ter conhecido a fome ou o medo, do conhecimento no sentido de poder reconhecer ou distinguir, como quando alguém diz conhecer um homem honesto ao ver algum, ou distinguir a manteiga da margarina. ( ...)

Possuir a informação do dicionário sobre a palavra inglesa to know (conhecer) ou os termos correspondentes em outras línguas é decerto neces-

sárío para dar uma análise do conhecimento; mas não é suficiente. 0 filósofo que tem essa informação pode ainda perguntar: ‘Que é o conhecimento?’ e hesitar na resposta. (. . -)

Assim, ele pode inquirir se os vários casos em que falamos de conhecimerito têm alguma coisa em comum; se, por exemplo, todos exigem a presença de certo estado de espírito. ( ...)

Concluo, pois, que as condições necessárias e suficientes para o conhecimento de alguma coisa são: primeiro, que o que se diz conhecer se@a verdadeiro; segundo, que estejamos certos disso; e, terceiro, que tenhamos o direito de estar certos.»

A. J. Ayer - 0 Problema do Conhecimento, Lisboa/Rio de Janeiro,

Ulisseia, Liv. Pelicano, s.d., pp. IJO-1 1 e 31.

Page 71: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

5. Liste os vários sentidos do verbo ‘conhecer’ na sua língua materna, auxiliando-se, para tal

tarefa, de um dicionário da língua portuguesa.* Seguidamente, formule uma pequena série de proposições onde este verbo seja utiliza-

do com acepções possivelmente diferentes.* Finalmente, trace um esquema conceptual do termo ‘conhecimento’, partindo das con-clusões a que chegou com as duas tarefas anteriores &ste ponto.

6. Elabore um mapa conceptual para o termo ‘conhecimento’ a partir da obra Os Problemas

da Filosofia.

41

Page 72: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

7. Confronte a tese de Ayer apresentada no texto que se segue, em relação à busca da certeza, com a de Russell em Os Problemas da Filosofia:

«A busca da certeza teve parte considerável na história da Filosofia; pensou-se que sem essa base seria suspeita a nossa aspiração ao conhecimento. Se algumas coisas não fossem certas, dl'zia-se, nada poderia ser provável. Infelizmente, não se faz ideia clara do que se procurava. Às vezes a palavra @certo’ usava-se como sinónimo de ‘necessário’ ou a priori. ( ...)

Assim, se a busca da certeza é apenas busca de conhecimento, se dizer que uma proposição é conhecida como certa quer dizer somente que é co-

nhecida, deve achar-se o seu objecto em proposições a priori, embora não só nelas.»

A. J. Ayer - 0 Problema do Conhecimento, Lisboa/Rio de Janeiro,

Ulisseia, Liv. Pelicano, s.d., pp. 37 e 39

1.2 @ 0 que é para Russell a filosofia?

A filosoria como conjunto de problemas

Não é por acaso que Russell dá à sua obra o título de Os Problemas da Filosofia. Na verdade, a questão geral que a perpassa e unifica é a demanda do que é a filosofia e de quais os problemas que lhe são específicos, terminando com um capítulo sobre o seu valor, o seu âmbito e a sua finalidade (vide PF, cap. XV).

0 que é então um problema filosófico? Um problema filosófico é algo que implica uma investigação em profundidade, algo que se situa para além da superfície das coisas comuns do dia a dia. É um problema que se apresenta “prenhe de supreendentes possibilidades” (PF, cap. 1, p. 41). É ele que transforma o mundo que nos rodeia, revelando-o a um outro olhar e revestindo-o de um interesse que o

comum das gentes não adivinha (PF, p. 42). Por exemplo, o facto de duvidarmos da autenticidade dos objectos que percepcionamos, temática central na obra em causa, parece à primeira vista absurdo, mas à medida que vamos abordando tal questão, depara-se-nos um

mundo insuspeito de interrogações sobre as quais é preciso trabalhar esforçadamente para construir plataformas de certeza. Este trabalho é aquilo a que chamamos método filosófico, o que p@ra Russell está longe de ser fácil (PF, cap. 11, p. 55).

E através dos seus problemas que a filosofia ganha um estatuto próprio e se corporiza. Como vimos, Russell é contrário a uma perspectiva globalizante,

Page 73: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

sustentando um

«atornismo lógico», uma abordagem parcelar de questões resolúveis. É uma tese que defende também noutras obras.

42

Page 74: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Citamos um passo extraído de Mysticism and Logic 29@ escrito alguns anos mais tarde, onde a mesma ideia é repensada:

«A filosofia que eu pretendo defender pode ser chamada atomismo lógico ou pluralismo absoluto, porque embora mantenha que existem muitas coisas, nega que haja um todo composto dessas coisas.»

Bertrand Russell, Mysticism and Logic, p. 108

A filosofia hoje não mais pretende conhecer o Todo, à maneira de Hegel (PF, cap. XIV, pp. 216-218). A investigação a que procede é ‘à peça’ (piecemeal):

«Uma filosofia científica, tal como desejo recomendar, deverá processar-se ‘à peça’ (piecemeal) e por tentativas (tentative), tal como as outras ciências.»

Bertrand Russe11, Mysticism anil Logic, p. 110

Tomando como referência o método científico, o filósofo deve pôr de lado as grandes visões unificadoras e trabalhar os problemas separadamente, tentando resolvê-los. Russell defende que os problemas filosóficos têm que ser abordados cada um por si, não devendo o seu estudo subordinar-se a uma teoria geral do universo. É uma tese central do «moderno empirismo analítico», tese que o filósofo considera uma conquista definitiva sobre a filosofia clássica e que retoma noutras obras, como podemos verificar pelo seguinte extracto:

«0 moderno empirismo analítico de que dei um esboço ( ... ) pode assim responder definidamente a certos problemas, mais com o carácter de ciência do que de filosofia. Tem a vantagem, se comparado com as filosofias dos construtores de sistemas, de atacar os problemas separadamente, em vez de inventar de uma vez uma teoria global do universo. Os seus métodos, nesse aspecto, parecem-se com os da ciência. Não duvido de que o conhecimento filosófico, até onde é possível, deva guiar-se por esse método, e também não duvido de que por esse método muitos problemas antigos são completamente solúveis.»

B. Russell, História da Filosofia Ocidental, p. 756

Note-se que esta visão parcelar das coisas não impede que se procure um sentido para as mesmas. Porque a filosofia não encara os seus problemas como uma mera soma de questões, tendo como objectivo inseri-los num horizonte que os organize de um modo coerente. Compreendemos que Russell conclua do seguinte modo Os Problemas da Filosofia:

«0 conhecimento que ela [a filosofia] tem em vista é aquela espécie de conhecimento que confere unidade e organização sistemática a todo o corpo do saber científico, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos das convicções, e dos nossos preconceitos, e das nossas crenças.»

Page 75: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

PF, cap. XV, p. 233

Bertrand RusselI, MYstiffim and Logic, London, 1917. As citações são feitas a partir da edição Unwin Paperbacks, London,1989. Aconselhamos a leitura do cap. 6 desta obra (”On the Scientific Method in Philosophy”), de onde é extraído o texto.

43

Page 76: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Se é próprio da filosofia abordar cuidadosamente cada questão, não se perdendo em

explicações genéricas, também lhe é vedado enveredar por problemas insolúveis, para os

quais não se vislumbra uma resposta plausível. De facto, não interessa fazer filosofia se não conseguirmos encontrar soluções para as interrogações que nos inquietam. Daí Russell definir a filosofia a partir dos problemas que levanta e das respostas que consegue obter para os mesmos. A teoria surge na sequência das questões suscitadas. São estas que lhe traçam fronteiras e lhe privilegiam centros de interesse.

Procedendo a um balanço da relação entre a filosofia e os seus problemas tal como é feito na obra que estudamos, concluímos que para Russell a filosofia é encarada:

1. Como conjunto residual de problemas ainda não resolvidos cientificamente e para os quais não há uma resposta objectiva (PF, cap. XV, p. 234).

2. Como conjunto de problemas a que nunca se poderá responder cabalmente (ibidem, pp. 234-235). Há questões que se mantêm em aberto e que a filosofia assume como suas. 0 valor da filosofia está na sua própria incerteza (p. 236).

3. Como conjunto de problemas aos quais é importante e possível responder. Os problemas filosóficos têm que ser perspectivados no plano da racionalidade. Embora Russell reconheça que muitas questões filosóficas fundamentais ultrapassam a análise lógica, tal facto não o impede de abordar outras, com esperança de as ir resolvendo. Relativamente a elas, há que tomar como modelo um método objectivo e rigoroso. Um método analítico, paciente, parcelar e modesto nas expectativas, que à maneira dos cientistas, combata o fanatismo e as pretensões dogmáticas:

«0 falhanço da filosofia até agora tem-se devido à pressa e à ambição: neste domínio, tal como no de outras ciê ncias, a paciência e a modéstia abri- rão o caminho para um progresso sólido e duradouro.»

Mplicism and Logic, p. 120

Na obra de Russell que presentemente estudamos, é dado um relevo especial ao co-

nhecimento, considerando-o como problema filosófico determinante:

«A filosofia visa primeiramente ao conhecer( ... ).»

PF, cap. XV, p. 232

Page 77: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Na sequência de Carnap, Russell defende que grande parte dos problemas da filosofia deriva de erros de sintaxe (ver Hist. Fil. Ocid., p. 753) e que por vezes basta eliminar esses erros para que o problema filosófico se resolva.

Há que clarificar os conceitos. Uma das soluções possíveis para chegar a essa clarificação, imprescindível para quem pretende fazer filosofia, é a utilização da teoria das descrições. Para RusselI, a existência só pode afirmar-se de descrições e grande parte das confusões filosóficas reside no facto de se atribuir indevidamente a existência a entidades que a nãopossuem. (ver Hist. Fil. Ocid., p. 753).

A partir da gnosiologia surgem outras questões com ela relacionadas. Embora na obra que presentemente estudamos Russell valorize o problema do conhecimento, é possível encontrar temáticas filosóficas de peso, ligadas a esferas tais como a metafísica, a axiologia, a política, a ética, etc. Na História da Filosofia Ocidental, Russell inventaria alguns desses problemas que constituem o corpo da filosofia.

44

Page 78: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

«Estará o mundo dividido em espírito e matéria? E, sendo assim, que é espírito e que é matéria? Está a alma sujeita a matéria ou tem energias independentes? Tem o Universo unidade ou fim? Evolve para algum objectivo? Há realmente leis da Natureza ou cremos nelas devido ao nosso inato amor da ordem? É o homem o que parece ao astrónomo, um pequeno conjunto de carvão impuro e água, a arrastar-se impotente sobre um pequeno planeta sem

importância? Ou é o que pensava Hamiet? Será as duas coisas? Há um tipo nobre e um tipo baixo de vida ou são todos meramente fúteis? Se um deles é nobre, em que consiste e como realizá-lo? Deve o bem ser eterno para poder ser apreciado ou merece procurar-se ainda quando o Universo caminhe inexoravelmente para a morte? Existe de facto a sabedoria ou não passa de re-

quinte derradeiro de loucura? Não há resposta em laboratório para tais questões. Pretenderam teologias dar respostas, todas demasiado definidas, o que as torna suspeitas a espíritos modernos. Estudar essas questões, se não responder-lhes, é a tarefa da filosofia.»

Russe11, História da Filosofia Ocidental, p. 14

Algo de comum a esta diversidade de problemas e que os unifica enquanto filosóficos, é o desejo, presente na abordagem de todos eles, de justificar as nossas crenças. A actividade filosófica é eminentemente justificativa. Tem como objectivo fundamentar as nos-

sas crenças, desmitificando a sua pretensa evidência, verificando as que são válidas e compatibilizando-as entre si (ver PF, cap. 11, p. 54).

A rilosofia conio atitude

A abordagem de certos temas e o levantamento de determinadas questões nem sem-

pre são entendidos pela maioria das pessoas, aquelas que Russell designa por «gente prática» (PF, cap. XV, p. 232). A filosofia implica uma determinada atitude face ao mundo e face à vida, que leva a que os seus cultores considerem válido o que a maioria classificaria como mera perda de tempo. Isto porque nem sempre os problemas que o filósofo levanta são susceptíveis de uma resposta «clara e assegurada» (PF, cap. 1, p. 29). E também porque os reflexos da actividade filosófica têm um impacte diminuto sobre a maioria, dado que apenas se

fazem sentir directamente naqueles que a praticam (ibidem).

Para quê então fazer filosofia? Valerá a pena continuar a pôr em causa o que aceitamos na vida quotidiana, se não conseguimos chegar a conclusões precisas e objectivas? (ver PF, cap. 1, p. 29). A resposta de Russell é peremptória logo no início da obra, e assim se manterá até ao final da mesma, como podemos verificar

Page 79: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

pelos seguintes extractos do seu primeiro e último capítulos:

«A filosofia é afinal de contas a tentativa de responder aos problemas últimos deste gênero, não descuidada e dogmaticamente, como usa fazer-se na vida ordinária, e até ainda nas próprias ciências, senão que de maneira ver-

dadeiramente crítica, depois de explorado tudo aquilo que torna enleadoras tais questões, e de havermos tomado consciência clara do que há de vago e de confuso nas nossas ideias ordinárias.»PF, cap. 1, p. 29

45

Page 80: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

«( ... ) por fraca que seja a esperança de vir a descobrir uma resposta, é parte do papel da filosofia o prosseguir no exame de tais questões, o dar-nos consciência da sua importância, o examinar as diferentes aproximações que a

elas conduzem, o ir mantendo como chama viva o interesse especulativo pelo universo, que nós arriscaríamos a deixar morrer se nos confinássemos aos conhecimentos que se podem assegurar como definitivos.»

PF, cap. XV, p. 235

Para RusselI, o trabalho dubitativo que o filósofo exerce sobre as certezas do quotidiano e do senso comum, deixa marcas. Não é indiferente que ultrapassemos a opinião e o dogmatismo, os diferentes dogmatismos. Ao fazê-lo, exercendo a «dúvida libertadora», colocamo-nos numa determinada perspectiva, cultivamos uma dada forma de estar no mundo e na vida, fundamental para a caracterização da filosofia. Pois se filosofar é levantar certo tipo de questões, quem o faz comunga de uma atitude libertadora no que respeita a preconceitos e a hábitos arreigados que a maioria aceita como ‘naturais’. Assim, a prática filosófica leva-

-nos a ultrapassar a mesquinhez dos pontos de vista subjectivos (ver PF, cap. XV, p. 237), alargando as dimensões do eu (ibidem, p. 238). A atitude filosófica é aberta, traçando-nos perspectivas insuspeitadas. É uma evasão através da dimensão contemplativa: a contem-

plação que se obtém pela união com o Universo, do qual passamos a ser cidadãos de pleno direito (ibidem, p. 242).

A atitude científica e a atitude filosófica

Para RusselI, a atitude do filósofo tem afinidades com a atitude do cientista. Há semelhanças com o conhecimento científico quer no objecto focado quer nos resultados obtidos.

Vejamos o que ele nos diz a este respeito no cap. XIV da obra em causa:

«0 conhecer filosófico, se é verdadeiro o que atrás dissemos, não difere essencialmente do conhecimento científico; não há fonte especial de sabedoria aberta à filosofia e não à ciência; e os resultados obtidos pela filosofia não se apresentam radicalmente distintos dos que são alcançados pela ciência.0 carácter essencial da filosofia, em virtude do qual é ela um estudo que se

distingue do da ciência, vem a ser a crítica.»

PF, cap. XIV, p. 226

Como logo desde o início da obra é frisado, tanto a filosofia como a ciência

Page 81: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

põem em causa o senso comum e as evidências injustificadas (ver PF, cap.1). Ambas (filosofia e

ciência) pressupõem a estranheza face àquilo que o homem comum aceita sem problemas (ver PF, cap. IV, p. 72). Será então legítimo identificar ciência e filosofia?

0 excerto atrás citado já nos alertara para uma diferença relevante: a dimensão crítica própria do filosofar. Dimensão essa que engloba a própria ciência pois uma das tarefas do filósofo é examinar «os princípios subjacentes ao saber científico» (PF, cap. XIV, p. 227).Tanto a filosofia como a ciência visam conhecer melhor o real (ver PF, cap. XV, p. 232). Contudo, o olhar da filosofia inclui a ciência. Por um lado, porque a filosofia se constitui como matriz a partir da qual se desenvolve o conhecimento científico, como podemos concluir do seguinte excerto:

46

Page 82: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

«( ... ) dos problemas, os já capazes de soluções positivas vão sendo colocados nas ciências, ao passo que aqueles para que não foi encontrada, até ao presente, uma resposta exacta, continuam a constituir esse resíduo a que se

dá o nome de filosofia.»

PF, cap. XV, p. 234

Por outro lado, porque a filosofia pretende organizar o corpo científico, tornando-o uno e examinando minuciosamente os pressupostos de que a ciência parte (ver PF, cap. XIV, p. 226). A ciência é soberana na descrição do mundo. A filosofia elucida e analisa criticamente as operações da ciência. Daí não poderem confundir-se, embora por vezes se

cruzem. Atendamos aos seguintes textos ilustrativos desta relação:

«Filosofia, como entenderei a palavra, é algo intermédio entre teologia e ciência. Como a teologia, consiste em especulações sobre matérias inacessíveis até agora ao conhecimento definido, mas, como a ciência, apela para a

razão de preferência à autoridade, quer da tradição, quer da revelação. Todo conhecimento definido [ ... 1 pertence à ciência; todo o dogma como o que excede o conhecimento definido pertence à teologia.»

História da Filosofia Ocidental, p. 13

«Quando procuramos descortinar os motivos que levaram os homens a investigar questões filosóficas, constatamos que, de um modo geral, estes podem ser divididos em dois grupos, muitas vezes antagónicos e levando a sistemas divergentes. Estes dois grupos de motivos são, por um lado, os que derivam da religião e da ética, e, por outro, os que derivam da ciência. Platão, Espinosa e Hegel podem ser considerados como típicos dos filósofos cujos interesses são essencialmente religiosos e éticos, enquanto Leibniz, Locke e

Hume podem ser tomados como representativos da ala científica. Em Aristóteles, Descartes, Berkeley e Karit encontramos muito presentes quer um quer outro dos grupos de motivos.»

ob. cit., p. 96

Finalidade, valor e especificidade da rilosofia

Para Russeli, a filosofia tem uma determinada finalidade: libertar o espírito dos horizontes estreitos que o empobrecem (ver PF, cap. XV, p. 237). De facto, a filosofia promove o conhecimento abstracto e universal (ibidem, p. 240). Há nela potencialidades que rompem com a tirania do hábito, varrendo todas as espécies de dogmatismo.

Page 83: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

0 valor da filosofia é para Russell suficientemente importante para lhe dedicar o

capítulo final da obra em causa. A filosofia não é um passa tempo (ibidem, p. 231), é um

bem do espírito (ibidem, p. 232). Contrariamente aos preconceitos do homem comum que a considera sem interesse prático, ela tem uma utilidade indirecta, na medida em que modifica a vida daqueles que se lhe dedicam. É uma actividade teórica que permite a união do eu com o «não eu» (ibidem, p. 239).

47

Page 84: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Um ponto para Russell particularmente relevante é a prática da tolerância que nos

advém do trabalho filosófico (ibidem, p. 238). Na verdade, ao depararmos com uma

multiplicidade de perspectivas apercebemo-nos da mesquinhez dos nossos critérios subjectivos, compreendemos que não somos o centro do universo e aprendemos a ser

imparciais. Porque o espírito livre não atende ao particular (ibidem, p. 240) nem considera o homem como medida de todas as coisas (ibidem, p. 239). Longe de criar perplexidade, as

diferentes opiniões dos vários filósofos são para Russell motivadoras como prática unificadora de horizontes (ibidem, p. 236).

Note-se que as conclusões tiradas por Russell no capítulo final de Os Problemas da Filosofia deverão ser situadas num determinado momento da sua caminhada. 0 texto é escrito em 1911 e depois dele muitos outros surgiram em que as orientações se precisaram. Sem dúvida que as respostas encontradas na obra que estudamos não foram posteriormente desmentidas. No entanto, podemos falar de uma superação, de uma perspectiva mais definida, da qual algumas generalidades foram definitivamente erradicadas. Assim, para quem se debruce sobre o pensamento do filósofo seria erróneo ignorar a aproximação por ele feita ao longo do seu percurso, relativamente à lógica e às várias ciências, nomeadamente a matemática e a física. Em obras publicadas posteriormente, Russell parte das descobertas da ciência para questionar o tipo de mundo em que vivemos, ou seja, faz filosofia confrontando o mundo que pensamos ser o nosso com o mundo a que a ciência nos faz aceder. Os problemas que daí resultam constituem o corpo da filosofia. Deste modo, Russell mantém-se relutante em nos dar uma definição de filosofia, aceitando no entanto que ela tem uma relação cada vez mais íntima com a ciência, embora mantenha a sua especificidade própria:

«A definição de ‘filosofia’ varia consoante a filosofia que adoptarmos; tudo o que podemos dizer para começar é que há certos problemas que algumas pessoas consideram interessantes, e que, pelo menos no presente, não pertencem a nenhuma das ciências particulares. Esses problemas são de molde a

levantar dúvidas sobre aquilo que normalmente se considera como conhecimento; e se conseguimos responder a essas dúvidas, tal só será possível por meio de um estudo especial, a que damos o nome de ‘filosofia'.»

An Outfine oJ'PIÚIosopI@y, p. 1

Concluímos pois que, na sua fase de maturidade, Russell aproxima cada vez mais a filosofia dos resultados e dos métodos científicos, tomando-os como ponto de partida e como

Page 85: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

orientação para os problemas gnosiológicos (e outros) que levanta. Em Sceptical Essays31@ ao

fazer o cômputo das orientações filosóficas dominantes no início do século XX, Russell considera três grandes correntes, situando-se nitidamente numa. São elas a filosofia alemã que continua a valorizar Karit e Hegel; os pragmatistas e Bergson; finalmente, os realistas, que fazem da ciência o fulcro da sua actividade filosófica, partindo de três pontos essenciais: a teoria do conhecimento, a lógica e os princípios da matemática. Será esta a opção de Russe11.

Bertrand Russeli, Ati Outfine of Philosopky, London, 1927. (Seguimos a 9.@I edição, London, Unwin Books, 1970).

Scepti(al Essa ,vs, London, Unwin Books, 1970, p. 48. Veja-se especialmente o capítulo V, “Philosophy in the Twentieth Century”, pp. 38-55. (A edição a que nos referimos é a sétima, datando a primeira, como já referimos, de 1935).

48

Page 86: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

A aceitação de uma pluralidade de perspectivas filosóficas, tese presente na obra que estudamos, nunca abandona o filósofo inglês. Mesmo dentro da orientação que posteriormente defenderá, e que designa por «nova filosofia» (newphilosophy), Russell admite divergências entre os seus cultores. Como tal, linuta-se a apontar alguns tópicos desta corrente. Atendamos ao que ele nos diz nos seguintes textos:

«A primeira característica da nova filosofia é que deixa de reivindicar que um método filosófico especial ou um modo peculiar de conhecer sejam obtidos por seu intermédio. Considera a filosofia e a ciência como essencialmente unas, diferenciando-se a filosofia das ciências particulares apenas pela generalidade dos seus problemas e pelo facto de se dever preocupar com a

formação de hipóteses quando a evidência empírica ainda falha. Considera que todo o conhecimento é científico, devendo ser certificado e provado pelos métodos da ciência. Não pretende, como a filosofia previamente fez, chegar a

juizos sobre o universo como um todo, nem à construção de um sistema criglobante. Acredita, na base da sua lógica, que não há razão para negar a visão aparentemente parcelar e confusa do mundo. Não considera o mundo como @orgâmco’, no sentido de que se possa inferir o todo a partir de cada parte, desde que adequadamente compreendida, tal como o esqueleto de um extinto mons-tro pode ser inferido a partir de um só osso. E muito particularmente não tenta, como o fizera o idealismo alemão, deduzir a natureza do mundo como um todo, da natureza do conhecimento. Considera o conhecimento uni facto tão natural como outro qualquer, sem qualquer significado místico ou

importância cósmica.»

Sceptical Essa-vs, pp. 48-49

«De certo modo, a moderna filosofia do pluralismo e do realismo tem menos a oferecer do que as filosofias anteriores. Na Idade Média, a filosofia era a serva da teologia; hoje em dia aparecem sob a mesma designaçã o nos

catálogos dos livreiros. Geralmente tem-se considerado que é tarefa da filosofia provar as grandes verdades da religião. 0 novo realismo não defende ser capaz de o provar ou de o não provar, Apenas tem como objectivo clarificar as

ideias fundamentais das ciências e sintetizar as diferentes ciências numa visão única e englobante desse fragmento do mundo que a ciência conseguiu explorar. Não sabe o que fica para além disso; não possui qualquer talismã para transformar a ignorância em conhecimento. Oferece um deleite intelectual para aqueles que o valorizam, mas não tenta lisongear a presunção humana, como fazem a maior parte das filosofias. É seco e técnico, póe a culpa no

universo, que escolheu trabalhar de um modo matemático e não como desejariam os

Page 87: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

poetas ou os místicos. Talvez que isto seja lamentável, mas um matemático não o lamenta.»

Sceptical Essap, pp. 54-55

Nesta tentativa de reorientar a filosofia para conhecimentos válidos, Russell tem como objectivo primeiro que ela nos faça conhecer melhor o mundo em que vivemos. Daí a atenção especial conferida a duas interrogaçóes presentes na obra que estudamos: o que é o

49

Page 88: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

mundo em que vivemos e que pensamos conhecer? 0 que é, em última instância, o conhecimento e a que processos deverá submeter-se para o considerarmos válido?

Passamos agora a examinar o modo peculiar como estes temas são abordados em Os Problemas de Filosofia, encaminhando-nos para uma leitura estrutural da obra.

TAREFAs

1. 0 cap. 1 de Os Problemas de Filosofia tem como título «Aparência e Realidade». Atenden-

do ao seu conteúdo, responda às seguintes questões:- Qual o argumento central do capítulo?- Ouais as principais teses defendidas a favor desse argumento?- Em que medida as teses trabalhadas neste capítulo inicial nos permitem perceber as

orientações filosóficas que Russell perfilha?

2. Embora só nos capítulos finais Russell aborde a temática específica da filosofia, relativa-

mente ao seu campo, valor e limites, há achegas para a consolidação deste tema ao longo de toda a obra. Faça um levantamento dos contributos de cada capítulo para a construção de um conceito de filosofia.

3. Seleccione os argumentos apresentados por Russell no que respeita:

- à aproximação da ciência e da filosofia;- à diferenciação dos campos científico e filosófico.

4. Procure num dicionário de filosofia uma definição de cepticismo. Tendo em conta a infor-

mação colhida (bem como aquilo que provavelmente já domina sobre este problema) discuta até que ponto Russell pode ou não ser considerado um defensor de tal posição. Confirme os seus pontos de vista socorrendo-se de excertos do texto (caps. XIV e XV).

5. No cap. XV da obra em causa, Russell refere-se aos «preconceitos do homem prático».

Atendendo à sua experiência, faça um levantamento de alguns deles, explicando em que medida podem constituir um impedimento para a actividade filosófica.

6. Confronte a tese de Russell contra o «egotismo na especulação filosófica» e o lema de

Page 89: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Protágoras «0 homem é a medida de todas as coisas». Argumente a favor ou contra cada uma das posições.

7. No cap. XIV da obra em causa, Russell refere-se criticamente à filosofia hegeliana. Os

textos 1, 2 e 3 que se seguem dão-lhe algumas indicações quanto ao conceito de filosofia defendido por este filósofo. Leia-os e detecte neles passagens susceptíveis de confirmar as

críticas do filósofo inglês.- Se quiser aprofundar o conceito de filosofia em Hegel e enquadrar melhor os textos que

sugerimos, leia deste autor a Introdução à História da Filosofia, trad. A. Pinto de Carvalho, Coimbra, Arinénio Amado, 1974.

50

Page 90: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

8. Ao longo do seu curso de filosofia foi deparando com diversos posicionamentos quanto a

um conceito de filosofia. Seleccione textos que lhe pareçam representativos quer de posições semelhantes às que Russell defende quer de posições antagónicas.

9. Os textos 4 e 5 em anexo são de filósofos contemporâneos de Russe11. Confronte os pontos

de vista do filósofo inglês com o que lhe parecem ser os pontos de vista dominantes em Jaspers e Ortega y Gasset.- As obras de onde foram extraídos os textos 4 e 5 são ambas de iniciação à filosofia. Se

as perspectivas nelas defendidas lhe despertaram interesse, sugerimos-lhe que as leia integralmente: Karl Jaspers, Iniciação Filosófica, Lisboa, Guimarães Editores, 1968; José Ortega y Gasset, Que é Filosofia?, Rio de Janeiro, Livro lbero-Americano, 1961.

10, Escreva um texto em que desenvolva o seu próprio conceito de filosofia. Pronuncie-se

quanto ao contributo que eventualmente Russell lhe possa ter dado para a clarificação do conceito que acabou de expor.

TEXTO 1

c) A filosoria como apreensão do desenvolvimento do concreto

Depois de termos explicado e ilustrado genericamente a natureza do concreto, acrescento ao seu significado que o vero, assim determinado em si mesmo, apresenta a tendência de se desenvolver: só o ser vivo e espiritual se

move em si mesmo, se desenvolve. Assim, a ideia, como concreta em si mesma e desenvolvendo-se, é um sistema orgânico, uma totalidade que compreende em si multidão de graus e de momentos. A filosofia por si é o

conhecimento deste desenvolvimento, e como pensamento é ela própria este desenvolvimento pensante; quanto mais este desenvolvimento progrediu, tanto mais perfeita é a filosofia.

Este desenvolvimento não se dirige para fora, para a exterioridade, mas, explicando-se, volta-se para o interior: quer dizer, a ideia geral permanece sendo a base e continua a ser o que tudo abraça e o imutável. Com efeito, o andar fora de si da ideia filosófica no seu desenvolvimento não é uma mudança, nem outro devir, mas é, antes, um entrar em si, um aprofundar-se a si próprio; deste modo, o progredir torna mais determinada em si a ideia que anteriormente

Page 91: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

era genérica e indeterminada. 0 ulterior desenvolvimento da ideia e a

sua maior determinação são exactamente a mesma coisa. A profundidade parece querer significar intensificação; mas neste caso o mais extensivo é igualmente o mais intensivo; quanto mais intensivo é o espírito, tanto mais ex-

tenso é, tanto maior o campo que abraça. A extensão, como desenvolvimento, não é dispersão nem desagregação; é, sim, coesão, e esta é tanto mais vigorosa e intensa quanto mais rica e vasta for a extensão e o número dos objectos que deve abarcar. Neste caso, quanto maior for a força de oposição e de separação, tanto maior é o poder de a vencer.

51

Page 92: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Estas são as proposições abstractas acerca da natureza da ideia e do seu desenvolvimento; assim se formou a filosofia, constituindo-se em si mesma; é uma ideia no todo e em todos os seus membros, como num indivíduo vivo, uma vida, um pulso que bate por todos os membros. Todas as suas partes e a

sistematização das mesmas emanam da única ideia; todos estes particulares são apenas espelho e imagem desta única vitalidade. Têm a sua realidade somente nesta unidade, e as diversidades e várias qualidades deles são a expressão da ideia e a forma nela contida. Assim, a ideia é o ponto central que a um

tempo é a periferia, a nascente de luz que nas suas expansões não vai além de si própria, mas continua presente e imanente em si; deste modo, a ideia é sistema da necessidade e da sua própria necessidade, a qual, por isso, é também a sua liberdade.

Hegel, Introdução à História (Ia FilosQtia, Coimbra,

Armémo Amado, 1974, pp. 69-70

TEXTo2

c) A filosofia como pensamento do próprio tempo

A filosofia desponta num determinado momento de desenvolvimento da cultura. Contudo, os homens não criam uma filosofia ao acaso: é sempre uma determinada filosofia que surge no seio dum povo, e a determinaçã o do ponto de vista do pensamento é idêntica à que se apodera de todas as demais manifestações históricas do espírito desse povo, está em íntima relação com

elas e delas constitui o fundamento. Deste modo, a forma particular duma filosofia é sincrónica com uma constituição particular do povo, onde ela aparece, com as suas instituições, com as suas formas de governo, com a

suamoralidade, com a sua vida social, com as atitudes, hábitos e preferências, com as suas tentativas e produtos científicos, com a sua religião, com os seus

êxitos militares, com todas as circunstâncias externas, não menos que com a

decadência dos Estados em que este princípio particular impusera a sua supremacia, e com a formação e progresso de novos Estados, nos quais surge e se desenvolve um princípio mais alto. Sempre que o espírito alcançou determinado grau da sua autoconsciência, elabora e faz penetrar este princípio em

toda a riqueza das suas múltiplas relações. Este rico espírito dum povo é um

organismo, semelhante a uma catedral que, composta de numerosas abóbadas, naves, colonadas e vestíbulos, é sempre manifestação dum todo, duma unidade, cujas

Page 93: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

partes se coadunam para um fim. A filosofia é uma forma deste múltiplos aspectos. E qual é essa forma? É a flor excelsa, o conceito do espírito na sua totalidade, a consciência e essência espiritual de todo o conjunto, o espírito do tempo como espírito presente e que se pensa a si próprio. Este todo multíplice reflecte-se nela como num único foco, no conceito que se conhece a si mesmo.

HegcI, ob. eit., pp. 10 1 - 102

Page 94: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

TEXTO ‘X

Definido o conceito da filosofia, no sentido de pensamento que, como

conteúdo geral, é o ser na sua totalidade, demonstrar-se-á na história da filosofia como as determinações se libertam pouco a pouco nos aspectos deste conteúdo.

Antes de mais nada surge a pergunta: onde começa a filosofia e a sua história?

A resposta genérica, de acordo com o que fica exposto, deve ser: a filosofia começa no momento em que o universal é concebido como o Ser que tudo abarca, ou então no qual o Ser é compreendido de modo universal: a

saber, quando surge o pensamento que se pensa a si mesmo, o pensamento do pensar. Quando é que isto aconteceu? Quando começou? Eis o aspecto histórico da questão. 0 pensamento deve ser por si mesmo, deve realizar a

sua liberdade, deve separar-se da natureza passando da dispersão à contemplação; deve livremente entrar em si mesmo e chegar assim à consciência da sua liberdade. Como verdadeiro princípio da filosofia deve-se considerar o

momento, em que o absoluto já não é representação, e o sentimento livre não pensa somente o absoluto, mas apreende a ideia do absoluto: quer dizer, quando o pensamento reconhece o ser (que também pode ser o próprio pensamento) como a essência das coisas, como a totalidade absoluta e a essência imanente do todo.

Hegel, ob. cit., pp. 145-146

TEXTo4

Muito se tem discutido o que seja a filosofia e qual o seu valor. Uns esperam dela extraordinárias revelações, outros rejeitam-na como pensamento sem objecto. Uns respeitam-na enquanto valioso esforço de pessoas invulgares, outros desprezam-na considerando-a supérflua lucubração de sonhadores. Uns opinam que é algo que a todos interessa e, portanto, deverá no fundo ser simples e compreensível, outros julgam-na tão difícil que não vale a pena abordá-la. De facto, o que corre sob o nome de filosofia oferece-nos exemplos que permitem juizos destarte contraditórios.

Para quem acredita na ciência, o que a filosofia tem de pior é não atingir conclusões geralmente válidas, que se possam aprender e portanto possuir. Enquanto as ciências alcançaram nos seus domínios resultados necessariamente certos e geralmente reconhecidos como tal, a filosofia não logrou a

mesma evidência após milenários esforços. Não se pode negar que na filosofia não há unanimidade relativamente a conhecimentos definitivos. Aquilo que, por

Page 95: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

motivos irrecusáveis, é para todos válido tornou-se conhecimento científico, deixou de ser filosofia para se referir ao domínio particular do que é sus-

ceptível de conhecimento.

Page 96: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Por outro lado, o pensamento filosófico não tem, como as ciências, o

carácter de um processo progressivo. Estarnos, decerto, mais adiantados do que Hipócrates, o médico grego. Mas já não podemos dizer que estejamos mais adiantados do que Platâo, exceptuando apenas o conjunto material de conhecimentos científicos que teve ao seu dispor. No filosofar propriamente dito, talvez nem sequer chegássemos ainda até onde ele chegou.

Deve pertencer à índole própria da filosofia esta carência de reconhecimento unânime de qualquer das suas formas, pela qual diverge das ciências.0 modo da certeza que nela se pode alcançar não é científico, ou seja idêntico para todos os entendimentos; é o de uma «certificação» que só é bem suce-

dida se o homem na sua totalidade nela cooperar, Ao passo que os conhecimentos científicos se referem a objectos particulares que não estão neces-

sariamente ao alcance do conhecimento de todos, a filosofia refere-se à totalidade do ser, que importa a todo o homem enquanto homem, procura uma verdade que, onde quer que fulgure, comove mais profundamente do que qualquer conhecimento científico.

0 estudo da filosofia está, aliás, ligado ao das ciências. Pressupõe o es-

tado avançado que estas atingiram na era actual, mas a filosofia tem outra origem e sentido. Surge, antes de qualquer ciência, quando os homens despertam,

Karl Jaspers, Iniciação Filosófica, Lisboa,

Guimarães Editores, 1993, pp. 9-10

TEXTO 5

A primeira coisa que ocorreria dizer seria definir a filosofia como conhecimento do Universo. Mas esta definição, sem ser errónea, pode deixar-nos fugir precisamente tudo o que há de específico, o peculiar dramatismo e o tom de heroicidade intelectual em que a filosofia e só a filosofia vive. Parece, com efeito, essa definição um contraposto à qual podíamos dar da física, dizendo que é conhecimento da matéria. Mas o caso é que o filósofo não se coloca diante do seu objecto - o Universo - como o físico diante do seu, que é a matéria. 0 físico começa por definir o perfil desta e só depois começa o seu trabalho e procura conhecer a sua estrutura í ntima. 0 mesmo se dá com o matemático, que define o número e a extensão, isto é, que todas as

ciências particulares começam por demarcar um trecho do universo, por limitar o seu problema, que ao ser limitado deixa em parte de ser problema. Por outras palavras: o físico e o matemático conhecem de antemão a extensão e atributos essenciais do seu objecto; portanto, começam não com um problema, mas com alguma

Page 97: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

coisa que dão ou tomam por sabida. Mas o Universo em cuja pesquisa parte audaz o filósofo como um argonauta não se sabe o que é. Universo é o vocábulo enorme e monolítico que, como uma vasta e vaga gesticulação, oculta, em vez de enunciar, este conceito rigoroso: tudo quanto há. É isso, portanto, o Universo. Isso, notem-no bem, nada mais que isso, pois quando pensamos o conceito ‘tudo quanto há’ não sabemos o que seja isso há;

Page 98: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

a única coisa que pensamos é um conceito negativo, ou seja: a negação do que apenas sej .a parte, trecho, fragmento. 0 filósofo pois, diferenterin ente de qualquer outro cientista, atira-se para o desconhecido como tal. 0 mais ou menos conhecido é partícula, porção, lasca do Universo. 0 filósofo situa-se diante de seu objecto em atitude diversa de qualquer outro conhecedor; o

filósofo ignora qual é o seu objecto e dele sabe apenas: primeiro, que não é nenhum dos demais objectos; segundo, que é um objecto integral, que é o

autêntico todo, o que não deixa nada fora e, por sso, o único que se basta. Mas, precisamente, nenhum dos objectos conhecidos ou suspeitados possui esta condição. Por isso, o Universo é o que fundamentalmente nã o sabemos, o

que absolutamente ignoramos em seu conteúdo positivo.

José Ortega y Gasset, Que é Filosofia @ Rio de Janeiro,

Livro Ibero-Americano, 1961, pp. 70-71

2. 1 Um percurso de leitura estrutural

2.1

0 Problema do Conhecimento (os diferentes tipos de conhecimento e sua credibilidade)

Seguindo o que nos propusemos fazer na introdução, iremos agora iniciar um percurso de leitura estrutural, evidenciando alguns dos problemas que consideramos mais relevantes na obra que temos vindo a encarar genericamente. Nela destacámos três grandes temas: o Conhecimento, o Ser e a Verdade. Abordá-los-emos atendendo aos subtemas que a

partir deles se delineiam.

Começaremos por um inventário dos diferentes tipos de conhecimento que o filósofo considera. De seguida, trataremos de algumas formas de conhecimento a que Russell dá particular destaque, trabalhando-as agora como problemas autónomos.

2.2.1 @ Os diferentes tipos de conhecimento

Sem dúvida que em Os Problemas da Filosofia a teoria do conhecimento ocupa um

lugar de relevo, sendo relegados para segundo plano outras temáticas (sociais, éticas, políticas, etc.), que no cômputo geral da obra de Russell também são importantes.

Page 99: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

A análise específica dos diferentes tipos de conhecimento inicia-se a meados do cap. IV (p. 81) e prossegue até ao final do cap. X1 (p. 184). Enibora Russell não os especifique, é possível detectar diferentes critérios a partir dos quais ele considera o conhecimento. Respeitando a letra do texto russelliano, começaremos por fazer o seu inventário, reconstituindo através de um esquema os diferentes tipos de conhecimento.

55

Page 100: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Inventário dos diferentes tipos de conhecimento

CONHECIMENTO DE COISAS

Conhecimento de trato (acquaintance) (imediato):

- sentidos;- memória;- introspecção;- ideias gerais.

Conhecimento de descrição (derivado)

objectos físicos; outros ‘eus’.

CONHECIMENTO DE VERDADES

Conhecimento imediato:

conhecimento a priori

- princípios lógicos;- principios morais: o conhecimentos universais.

Conhecimento derivado:

- dedução;- indução.

Outras classificações possíveis do conhecimento: Atendendo ao objecto:

- conhecimento de coisas;- conhecimento de verdades.

At-9dendo à relação sujeito/objecto:

- conhecimento imediato, intuitivo;- conhecimento derivado, inferido.

Atendendo aos processos utilizados:

- conhecimento perceptivo;- conhecimento indutivo;- conhecimento dedutivo.

Atendendo ao grau de liabilidade

Page 101: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

- conhecimento de certeza;- conhecimento de probabilidade.

Atendendo à origem:

- por sense data;- por ‘intuição’;- por raciocínio (inferência).

Page 102: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Atendendo ao grau de evidência: conhecimento absoluto

- princípios lógicos- dados da percepção

conhecimento gradativo

- verdades de memória;- verdades de lógica e de matemática;- princípio indutivo;

juizos morais; juizos estéticos.

Atendendo à possibilidade de erro:

- crenças;- conhecimento de intimidade.

Atendendo ao grau de verdade:

erro; opinião provável; conhecimento verdadeiro.

Aprofundemos agora alguns desses tipos de conhecimento que Russell considera.

CONHECIMENTO DE COISAS

Ao terminar o cap. IV de PF, Russell faz uma distinção, que de seguida aprofunda, entre conhecimento de coisas e conhecimento de verdades. Este último diz respeito exclusivamente aos nossos juízos, sendo por consequência sujeito a critérios de verdade e falsidade.0 primeiro visa directamente os objectos e tem por base os dados dos sentidos. Não nos garante por si só a existência das coisas, mas é imprescindível quando nos queremos debruçar sobre ela.

Russell tem consciência de que, relativamente aos homens, é difícil separar conhecimento de coisas e de verdades, pois quando conhecemos uma coisa necessariamente formulamos juízos sobre ela. É uma dificuldade que se acentua quando no interior do conhecimento de coisas ele considera dois grandes grupos: o conhecimento de trato (aquaintance) e o co-

nhecimento de descrição.

Conhecimento de trato

A melhor maneira de definirmos conhecimento de trato é considerar o seu carácter directo, imediato. Russell diz-nos que este conhecimento se refere a coisas «que apreendo de maneira imediata exactamente como elas são» (PF, p. 86). Conhecemos

Page 103: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

as mesas e as

cadeiras da nossa sala sem que para tal tenhamos tido necessidade de raciocinar. Logo que captamos certos dados dos sentidos relativos à cor, à textura, à forma ou a outras qualidades de uma mesa, temos acesso a ela, dizemos que a conhecemos de um modo imediato. Note-se que não podemos afirmar que estamos certos da existência real da mesa, pois este tipo de conhecimento não nos dá certezas quanto à existência da mesa como objecto físico. Faz-nos

57

Page 104: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

sim aceder a uma determinada percepção da mesa através da nossa sensibilidade. Estamos pois seguros de que tacteamos, vemos e sentimos aquele objecto com que deparamos. Disso temos uma certeza imediata e absoluta, pois não podemos duvidar que somos nós que o vemos, palpamos e sentimos. Na obra que estamos a estudar, os dados dos sentidos (sense data) identificam-se com as cores, cheiros, dureza, etc. São algo de privado, pois embora Russell admita a sua existência autónoma, tem consciência de que são percepcionados por cada um dos sujeitos a partir de determinados condicionalismos. Assim, o diferente espaço em que cada um se coloca, o seu estado físico e psicológico, etc., levam a que não possamos ter a certeza de que partilhamos exactamente os mesmos sense data.32

Não se pense que este tipo de conhecimento se confina aos dados da percepção. De facto também temos um acesso imediato a lembranças, não precisando de raciocinar para concluir que algo que pensamos pertence ao passado33. De igual modo, temos uma certeza imediata de que somos nós que experimentamos determinadas sensações ou estados de espírito. Verificamos, sem que para tal façamos qualquer tipo de inferência, que podemos ter consciência dos nossos estados, que todos eles se podem referir a nós enquanto sujeitos que os vivernos31. É um conhecimento reflexivo que os animais não possuem, pois embora conheçam multas coisas não têm possibilidade de se considerar sujeitos cognoscentes, dado não terem consciência de si mesmos.

0 conhecimento de trato não diz apenas respeito a objectos particulares; podemos ainda incluir dentro dele o acesso imediato aos universais, ou seja, às ideias gerais. Como explicitaremos adiante, os universais referem-se a qualidades e a relações. Não têm uma existência meramente mental, visto que se afirmam independentes de um sujeito que as percebe (ver PF, cap.IX, p. 155).

Conhecimento de descrição A partir dos dados dos sentidos podemos construir conhecimentos sobre um qualquer objecto, descrevendo-o por meio de juizos. É com este tipo de conhecimento que concluímos que a mesa é um objecto físico. Trata-se portanto de um conhecimento indirecto, inferido. Embora diga respeito a coisas, contrasta com o conhecimento de trato pela sua mediatez. É um tipo de conhecimento que não nos dá uma segurança plena quanto à existência do real. Como vimos, estamos absolutamente seguros das nossas sensações mas não de que elas correspondam a algo de existente. 0 conhecimento por descrição coloca-se como o limiar do nosso conhecimento sobre as coisas, pois nunca poderemos chegar à certeza de que a mesa que descrevemos de uma determinada maneira corresponde à mesa real. É

11 Posteriormente, Russell porá em causa a própria existência dos sense data (vide The Analysis of Mind e My Philosophical De-

velopment) na relação imediata que estabelecem com as sensações. Falará de ‘perceptos’ (percepis).

Page 105: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

33 Circunscrevemo-nos à classificação dada em Os Problemas da Filosofia. De facto, nesta obra o conhecimento de memória é

incluído no conhecimento de trato, portanto considerado como algo de imediato e não inferido. Contudo, noutras obras, co-

mo é o caso de The Analysis of Mind (vide Ayer, pp. 35 e 90), Russell diz-nos que ele é um conhecimento inferencial e portanto incerto.

11 Também no que respeita ao conhecimento introspectivo há divergências nas posições defendidas por Russell. Assim, nos PF

o conhecimento de nós próprios é distinto do conhecimento das nossas experiências, enquanto em The Amilysis of Mind ele é construido a partir das nossas experiências (Ayer, p. 33).

58

Page 106: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

um conhecimento que nos possibilita ultrapassar a experiência pessoal, partilhando-a e con-

frontando-a com a dos outros. De qualquer modo, fica sempre circunscrito aos nossos

i.uízos, sendo estes dependentes dos nossos dados dos sentidos.

0 que deverá incluir-se neste tipo de conhecimento? Para além dos objectos físicos, conhecemos por descriçã o os outros sujeitos, os outros ‘eus’ com os quais contactamos e sobre os quais formulamos íuízos. Russell considera diferentes tipos de descrição. Classifica como «ambígua» (PF, cap. V, p. 94) aquela que diz respeito a algo de genérico e que se enuncia através de indefinidos (ex.: um pássaro, um homem, etc.). Chama «descrição definida» àquela que incide sobre algo de concreto, usando o

artigo definido ou o pronome demonstrativo (ex.: o pássaro, aquela casa, etc.). Nos PF é sobretudo a «descriçáo definida» que está em causa.

0 que tem de específico conhecer por descrição? Como se distingue do conhecimento de trato?

Não há incompatibilidade entre um e outro tipo de conhecimentos, na medida que ambos se podem referir validamente a um mesmo objecto. Só que o conhecimento por descrição não implica que conheçamos directamente a coisa da qual falamos; na verdade, podemos formular juízos sobre ela sem nunca a termos percepcionado. Deste modo, podemos saber que há um presidente da República em Portugal e que ele é o sr. X e, no entanto, podemos nunca ter tido um conhecimento directo desse indivíduo, podemos nunca ter tido qualquer contacto com ele. Sem dúvida que ao falar dele, ao formular juízos sobre a sua

pessoa, necessariamente nos referiremos a aspectos que nos vieram de um conhecimento de trato.

Oue indivíduos e que coisas conhecemos por descrição? De um modo geral os nomes

comuns, os nomes próprios, os lugares, numa palavra, tudo aquilo de que podemos não ter tido conhecimento de intimidade, mas sobre o qual nos é possível com segurança enunciar juízos válidos. 0 que nos leva a concluir da grande utilidade do conhecimento por descrição no que respeita ao alargamento das nossas possibilidades cognitivas, dado que é ele que permite ultrapassar os limites da experiência pessoal, levando-nos a beneficiar da informação colhida a partir de outras fontes, diferentes de nós.

TAREFAS

Transcreva da obra Os Problemas da Filosofia passos que lhe permitam ilustrar o

Page 107: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

inventário dos diferentes tipos de conhecimento tal como é exposto no esquema da pág. 56.

Com base na leitura do cap. IV da obra em causa, atenda às seguintes questões.

1. Tendo em conta o problema da natureza do conhecimento dos objectos físicos, caracterize

as posições defendidas:- pelo senso comum;- por um filósofo materialista;- por um filósofo idealista.

59

Page 108: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

2. Leia com atenção o texto de Berkeley em anexo e detecte nele passagens que confirmem a caracterização que Russell faz deste filósofo.

Os parágrafos que leu são extraídos da obra de Berkeley Dos Princípios do Conhecimento Humano. Caso lhe interesse a temática, leia o texto integral que surge em anexo a Berkeley, Tratado do Conhecimento Humano, trad. Vieira de Almeida, Coimbra, Atlântida, 1958, pp. 21-101.

3. Para consolidar o idealismo de Berkeley e o modo como Russell o entende, leia o cap. XVI (Berkeley) do livro 111 da História da Filosofia Ocidental de Russe11.4. Reconstitua a argumentação de Russell na crítica feita a Berkeley.

As questões que se seguem, bem como as actividades sugeridas, têm em conta os conteúdos abordados no cap. V.

1. Identifique o problema (ou problemas) que Russell considera neste capítulo. Pronuncie-

-se quanto à sua importância na economia da obra em causa.

2. Ao distinguir o conhecimento de coisas e o conhecimento de verdades Russell levanta al-

gumas dificuldades quanto a uma possibilidade de os separar de um modo absoluto.- Identifique o problema no texto da obra.- Equacione os dados em que Russell o coloca.- Discuta-o pronunciando-se criticamente sobre ele.3. Russell admite que tenhamos um acesso imediato aos objectos através dos dados dos

sentidos (sense data), mas duvida que através deles possamos dizer que conhecemos os

objectos. Reconstitua a argumentação deste filósofo no que respeita a este problema, apoiando-se quando entender necessário em passos do textos que considere esclarecedores.

4. Ao exemplificar o ‘conhecimento por descrição’ Russell refere-se ao conhecimento que

temos dos outros sujeitos.- Contraste este conhecimento com o conhecimento que cada um tem de si próprio.- Imagine que como ponto de partida na sua prática científica se circunscrevia ao ‘conhe-

cimento de trato’:

Page 109: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

* Quais as limitações a que estaria sujeito?* Ser-lhe-ia possível prescindir do ‘conhecimento por descrição’ no que respeita

ao seu agir quotidiano?- Inventarie algumas das características que é possível conhecer a respeito dos outros ‘eus’.- Problematize as dificuldades quanto à possibilidade de conhecer verdadeiramente os

outros.

60

Page 110: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

TEXTO 1

É evidente a quem investiga o objecto do conhecimento humano haver ideias (1) actualmente impressas nos sentidos, ou (2) percebidas considerando as paixões e operações do espírito, ou finainwnte (3) formadas com auxílio da memória e da imaginação, compondo, dividindo ou simplesmente representando as originariamente apreendidas pelo modo acima referido. Pela vista tenho ideias de luzes e cores, e respectivos tons e variantes. Pelo tacto percebo o áspero e o macio, quente e frio, movimento e resistência e de todos estes a maior ou menor quantidade ou grau. 0 olfacto fornece-me aromas, o paladar sabores e o ouvido traz ao espírito os sons na variedade de tom e corriposição. E como vários de eles se observam em conjunto, indicam-se por um

nome e consideram-se urna coisa. Por exemplo, um certo sabor, cheiro, cor, forma e consistência observados juntamente são tidos como uma coisa, significada pelo nome «maçã». Outras colecções de ideias constituem uma pedra, uma árvore, um livro, etc.; e como são agradáveis ou desagradáveis excitam as

paixões de amor, alegria, repugnância, tristeza e assim por diante.

2) Mas ao lado da infinita variedade de ideias ou objectos do conhecimento, há alguma coisa que os conhece ou percebe, e realiza diversas operações como querer, imaginar, recordar, a respeito de eles. Este percipiente, ser

activo, é o que chamo mente, espírito, alma ou eu. Por estas palavras não designo alguma de minhas ideias mas alguma coisa distinta de elas e onde elas existem, ou o que é o mesmo, por que são percebidas; porque a existência de uma ideia consiste em ser percebida.

3) Todos concordarão que nem os pensamentos, nem as paixões, nem

as ideias formadas pela imaginação existem sem o espirito; e não parece me-

nos evidente que as várias sensações ou ideias impressas nos sentidos, ligadas ou combinadas de qualquer modo (isto é, sejam quais forem os objectos que compõem), só podem existir em um espírito que as perceba, Quem quer pode ter de isto conhecimento intuitivo se notar o sentido do termo «existir», aplicado a coisas sensíveis. Digo que existe a mesa onde escrevo - quer dizer, vejo-a e sinto-a; e se estiver fora do meu gabinete digo que ela existe, significando assim que se lá estivesse vê-la-ia, ou que outro espírito actualmente a vê. Houve um odor, isto é, cheirava a alguma coisa; houve um som, isto é, ouviu-se algo; uma cor ou uma forma, isto é, foi percebida pela vista ou pelo tacto. É tudo o

que posso entender por esta e outras expressões. 0 que se tem dito da existência absoluta de coisas impensáveis sem alguma relação com o seu ser-percebidas parece perfeitamente ininteligível. 0 seu esse é percipi; nem é possível terem

Page 111: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

existência fora dos espíritos ou coisas pensantes que os percebem.

4) Entre os homens prevalece a opinião singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objectos sensíveis têm uma existência natural ou real, distinta da sua perceptibilidade pelo espírito. Mas por mais segura aquiescência que este princípio tenha tido no mundo, quem tiver coragem de discuti-lo compreenderá, se não me engano, que envolve manifesta contradição. Pois que são os objectos mencionados senão coisas percebidas pelos sentidos? E

Page 112: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

que percebemos nós além das nossas própri .as i.dei.as ou sensações? E não repugna admitir que alguma ou um conjunto de elas possa existir impercebido?

16) Examinemos a opinião comum. Diz-se «extensão» um modo ou acidente da matéria, e «matéria, o substractum que a suporta. Gostaria que me explicassem o que se entende por matéria, suporte da extensão. Direis: Não tenho ideia da matéria, por isso não posso explicá-la. Respondo: Se não tendes ideia positiva, entretanto se lhe ligais algum significado deveis ter uma

ideia relativa de matéria; se não sabeis o que ela é, deveis saber a relação em

que ela está com os acidentes e o que se entende por ser «suporte» de eles. Decerto, «suporte» não tem aqui o sentido usual e literal - como quando se

diz que os pilares suportam a construção; em que sentido há-de então entender-se?

17) Se interrogarmos sobre isto os melhores filósofos, vê-los-emos concordes em atribuir a «substância material» apenas o sentido do ser em geral, juntamente com a noção relativa de suporte de acidentes. A ideia geral do Ser parece-me a mais abstracta e incompreensível de todas; quanto ao

suporte de acidentes, como já notámos, não pode entender-se no sentido comum das palavras; deve ser outro, mas não nos dizem qual. Assim, quando considero as duas partes ou ramos do significado das palavras «substância material», convenço-me de que não têm sentido distinto: Mas para quê levar mais longe a laboriosa discussão do substractum material ou suporte da figura, movimento e outras qualidades sensíveis? Não se supõe que têm existência fora do espírito? E isto não repugna directamente, além de ser inconcebível?

18) Mas supondo possível existirem fora do espírito substâncias sólidas, figuradas, móveis, correspondentes à s nossas ideias de corpos, como nos é possível sabê-lo? Ou o sabemos pelos sentidos ou pela razão. Pelos sentidos só conhecemos as nossas sensações, ideias, ou as coisas imediatamente percebidas pelos sentidos, dê em-lhes o nome que quiserem; mas não nos informam de coisas existentes fora do espírito ou impercebidas, semelhantes às percebidas. Nisto até os materialistas concordam. Resta pois, se temos algum conhecimento de coisas exteriores, que tem de ser pela razão, inferindo a existência do imediatamente percebido pelos sentidos. Mas como pode a razão induzir-nos a crer na existência dos corpos fora do espírito, de aquilo que percebemos, se até os defensores da matéria não pretendem que haja conexão necessária entre eles e as nossas ideias? Todos afirmam (e o que respeita a

sonhos, frenesis e coisas análogas põe o caso fora de discussão) que épossível sermos afectados por todas as ideias actuais, embora não houvesse corpos exteriores semelhantes a elas. É pois evidente a desnecessidade de corpos exteriores à produção das nossas ideias, desde que nos concedem que elas são

Page 113: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

produzidas às vezes e podem talvez sê-lo sempre na mesma ordem presente, sem o seu auxílio.

19) Mas embora assim seja pode talvez pensar-se mais fácil conceber e explicar o modo de produção das sensações supondo a semelhança de corpos externos, em vez de outro processo; assim, pode ser provável haver corpos que

Page 114: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

excitem as suas ideias no nosso espírito. Mas nem isso; porque ainda conce-

dendo aos materialistas os seus corpos externos, eles mesmos reconhecem nada adiantar quanto à produção das ideias, por não poderem compreender a

acção de um corpo sobre um espírito ou como é possível ele imprimir no espírito uma ideia. De onde é evidente que iiciihuma razão há de supor matéria ou substâncias corpóreas na produção de ideias e sensações nossas, dada a

concordância em que ela continua inexplicável com ou sem essa hipótese. Portanto, se fosse possível existirem corpos fora do espírito, afirmá-lo seria uma opinião bastante precária; corresponderia a supor sem razão alguma que Deus criara inúmeros seres que não serviam absolutamente para nada.

20) Em suma, se houvesse corpos externos nunca poderíamos sabê-lo; e se não houvesse, devemos ter as mesmas razões de pensar que haveria o que temos agora. Supondo (possibilidade incontestável) uma inteligência sem o

auxílio de corpos estranhos, afectada pela mesma série de sensações e ideias na mesma ordem e com a mesma intensidade das nossas, pergunto se essa

inteligência não teria razão de crer na existência de substâncias corpóreas, representadas pelas suas ideias impressas no seu espírito, assim como nós temos para poder acreditar o mesmo. Não há dúvida. Consideração que bastaria a qualquer pessoa razoável para suspeitar da força dos seus mesmos ar-

gumentos a favor da existência de corpos fora do espírito.

Berkeley, Dos Princípios do Conhecimento Humano,

Coimbra, Atlântida, 1958, pp. 21-23 e 28-31

CONHECIMENTO DE VERDADES

Para Russell este é um tipo de conhecimento que diz respeito a juízos, sendo como

tal susceptível de ser classificado de verdadeiro ou de falso. 0 conhecimento de verdades admite o erro como seu contrário. 0 conhecimento de coisas, nomeadamente na sua verten-

te imediata que é o conhecimento de trato (acquaintance), não é enganador, pois só erramos quando a partir dele fazemos ilações.

0 conhecimento de verdades implica o recurso à linguagem, processa-se pela utilização de palavras e pelo estabelecimento de relações entre elas por meio de um verbo. É algo de especificamente humano que os animais não possuem. Nele

Page 115: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

estão presentes actividades de atribuição e de classificação extremamente complexas:

«Sensação, percepção e memória são essencialmente experiências pré-verbais; podemos supor que não são muito diferentes nos animais e em nós mesmos. Otiando lidamos com o conhecimento expresso por palavras, parece que inevitavelmente perdemos algo da experiência que tentamos descrever35@ visto que todas as palavras classificam.»

Russell, Human Know1edge, p. 44135 0 texto citado coloca-se na sequência de uma análise que Russell empreende sobre o que na obra citada designa por conheci-

mento especular (mirror knowledge), que é um conhecimento não inferencial de factos através da sensação, percepção e memória. Vide Human Knowledge, its Scope and Limits, London, Routledge, 1992, IV, cap. 1, “Kinds of KnowIedge”, pp. 439-450).

63

Page 116: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Interessa a Russell analisar o grau de credibilidade que podemos atribuir aos nossos

juizos, consoante eles provêm de um ou de outro processo cognitivo.

No que respeita ao conhecimento de verdades podemos ter certezas quando deduzimos algo a partir de princípios que aceitamos como verdadeiros.

A dedução é um raciocínio que ie de proposições ou de princípios gerais e deles tira ilações até chegar a uma conclusão. Por conseguinte, o processo mental que desencadeamos quando queremos provar a verdade de uma tese deverá ser um processo dedutivo. É um caminho que pode orientar-se do geral para o particular como no caso da dedução silogística ou então do geral para o mais geral, como acontece na dedução matemática. De qualquer modo é um caminho seguro, no qual não temos dificuldades justificativas.

0 raciocínio dedutivo é autónomo relativamente à experiência. Russell admite outras formas de conhecimento que também prescindem da experiência, preocupando-se em analisar a sua validade. É o caso do conhecimento a priori.

Conhecimento a priori

Em Os Problemas da Filosofia, Russell diz-nos que conhecemos de um modo a priori determinados princípios e verdades, propondo-se analisá-los. Dá-lhes, no entanto, um tratamento desigual. Na verdade, analisa exaustivamente os princípios lógicos e o princípio indutivo, limitando-se a tecer algumas considerações sobre os princípios morais que também considera fruto de um conhecimento a priori. É sobretudo o princípio indutivo que mais o

preocupa. Aborda-o explicitamente no cap. V e mantém o seu questionamento ao longo dos caps. VI a XII.

Na sequência de Karit, Russell aceita que o conhecimento a priori não é necessariamente analítico. Num juizo analítico do tipo “o triângulo é um polígono de três ângulos”, o

predicado está contido no sujeito e nada lhe acrescenta. Todavia, como Karit demonstrou na sua Ctítica da Razão Pura, há juízos sintéticos a priori. Um juizo como «a recta é a mais curta distância entre dois pontos» nã o é analítico, pois no conceito de recta não está contida qualquer referência a distâncias. Contudo, não é um juízo a posteríori, pois não precisamos de recorrer à experiência para o provar, impondo-se como algo de universal e necessário. Não podemos dizer que o conhecimento a priori se consolida com a experiência. Ouando pela primeira vez percebemos que 2+2 são 4, tal compreensão é-nos perfeitamente evidente. Não podemos pois concluir que o resultado se torna mais claro em função do número de adições que empreendemos.

Page 117: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Todo o conhecimento a priori é um conhecimento de princípios que se processa entre universais. Um conhecimento deste tipo é sempre geral. Contrariamente ao conhecimento de experiência, que diz respeito a casos particulares a partir dos quais generaliza, o conhecimento de princípios aplica-se com segurança a todos os casos.

Todo o conhecimento a priori é necessário, pois não podemos pensá-lo de outro modo. Nomeadamente no que respeita aos princípios lógicos e às verdades matemáticas, verificamos que seria difícil senão impossível imaginar um mundo em que 2+2 fossem 5 ouem que um resultado válido num dado momento deixasse de o ser no momento seguinte. Mas visto que Russell fala genericamente de um conhecimento a priori e depois analisa as suas concretizações, iremos considerar cada uma delas, seguindo a ordem crescente de importância que o filósofo lhes atribui.

64

Page 118: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Conhecimento dos princípios morais

Vimos que para Russell o conhecimento a priori é imediato e independente da experiência, o que não quer dizer que todo o conhecimento a priori seja de natureza lógica. Há princípios a que acedemos imediatamente e que dizem respeito aos valores morais, àquilo que prezamos e consideramos bom. Para RusselI, o bem e o mal impõem-se-nos por si mesmos, sem necessidade de referência à realidade. Como nos diz em Os Problemas da Filosofia, eles representam «a desejabilidade intrínseca das coisas» (p. 127), independentemente da sua aplicação a situações concretas. Sabemos intuitivamente o que é bom e o que é mau, o que é justo e injusto, não precisando de qualquer raciocínio para alcançar tais valores.

Conhecimento das matemáticas puras

No que respeita aos conhecimentos matemáticos, Russell critica fortemente os empiristas. Estes consideram que as noções básicas que possuímos, quer no campo da aritmética quer no da geometria, têm como base a experiência, a partir da qual se constroem. Assim, a noção de número seria formada a partir de operações concretas de contagem, as figuras geométricas seriam uma depuração de formas que veríamos realmente na natureza, etc., etc.

Contrariando esta perspectiva, Russell sustenta que a experiência em nada fortalece as convicções aritméticas ou geométricas, pois alcançamo-las imediatamente, com toda a evidência. Não é por somarmos muitas vezes dois e dois que ficamos mais seguros do resultado; como já referimos, este impõe-se como verdadeiro e é-nos logo evidente na primeira soma que fazemos.

Conhecimento dos princípios lógicos

Outro tipo de conhecimento que se impõe independentemente da experiência, mas que é absolutamente imprescindível para que possamos formular juízos, raciocinar e de um modo geral pensar, é o dos chamados princípios lógicos. Designamo-los por princípios, pois eles presidem à construção de todo o nosso pensamento, colocando-se como referência imprescindível do mesmo. De facto, temos que os aceitar para podermos organizar o raciocínio e para o fazer de um modo correcto. A verdade dos nossos conhecimentos toma como pedra de toque estes princípios, sendo necessariamente errados todos os raciocínios que não lhes obedeç am.

Remontando à formulação clássica dos princípios lógicos, Russell enuncia três que se constituem como leis básicas do nosso pensamento, embora admita que haja outros igualmente importantes. Todos são manifestações ou derivações do princípio de identidade. 0 princípio da identidade propriamente dito enuncia-se formalmente pela expressão A = A. Russell refere-se-lhe em termos de coisas, dizendo que o que é é, ou seja, que uma coisa é aquilo que é. 0 princípio da identidade tem como corolário o princípio da contradição, que afirma que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Uma outra consequência do princípio da identidade é o princípio do terceiro excluído ou do meio excluído, que

Page 119: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

defende que uma coisa é ou não é, não havendo meio termo.

Ao apresentar estes princípios, Russell chama-lhes «leis do pensamento» (PF, p. 122), pois eles regem a nossa actividade mental. Na ausência deles, seriam impossíveis quer a coe-

65

Page 120: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

rência quer a eficácia. Constituem um caso particular do conhecimento a priori. Como tal, é ao pensá-los que nos persuadimos da sua verdade, não tendo necessidade de recorrer à experiência para os confirmar. Note-se que tal facto não os circunscreve ao domínio do pensamento, pois eles aplicam-se ao real e ajudam-nos a percebê-lo. Daí Russell problematizar a própria designação de «leis do pensamento» (PF, cap. VIII, p. 143).

Depois de explicar a função que estes princípios desempenham, ou seja, de nos demonstrar que sem eles nã o seríamos capazes de formular o menor juízo válido sobre o real, não conseguiríamos actuar com coerência, nem poderíamos ter qualquer expectativa sobre o

futuro, Russell preocupa-se em determinar a credibilidade dos mesmos. E a conclusão a que chega é que a eficácia destes princípios nos obriga a aceitá-los como válidos. Acreditamos neles porque são evidentes e porque nos permitem pensar o real e actuar sobre as coisas. Se é verdade que não os conseguimos demonstrar, também é verdade que a sua presença nos é imprescindível. Contrariá-los ou ignorá-los levar-nos-ia a um universo caótico.

0 mesmo acontece com o princípio indutivo que preside ao nosso relacionamento com o real, que se revela sempre que tentamos passar dos factos para as leis e que tem um

papel determinante na indução.

A INDUÇÃO Teoricamente, quando fazemos inferências que dizem respeito a acontecimentos que irão

passar-se, não temos possibilidade de provar a verdade das mesmas. Russell admite que tenhamos certezas quanto àquilo que experimentamos no presente - sentimentos, percep-ções, desejos, etc., mas põe eni causa que possamos estar seguros quando generalizamos a partir de dados empíricos. De facto, a experiência pessoal é um campo em que podemos ter certezas: estamos certos de ver alguém à nossa frente; estamos certos de sermos nós a percepcioná-lo; estamos certos também de que tal presença nos é agradável ou desagradável. Contudo, se nos quisermos manter num plano de certezas absolutas nunca podemos fazer previsões.

A indução é, precisamente, uma inferência que parte de factos conhecidos para outros que não conhecemos, mas que pensamos poder prever. E em Os Problemas da Filosofia, a indução é considerada falível, pois visa ocorrências cujo alcance nos escapa. Assim, se verificámos que um facto sucede a outro e se experimentámos um número razoável de vezes tal coincidência, é-nos lícito generalizar, prevendo a sua ocorrência no futuro. Mas a validade de tal generalização circunscreve-se ao terreno da probabilidade. A mesma situação é aplicada a acontecimentos passados cujas causas desconhecemos. Russell fala de indução a propósito de ocorrências passadas, quando procuramos, por analogia, as

Page 121: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

suas causas, ou seja, quando recorremos, para as explicar, ao mesmo tipo de teorias que verificámos válidas em ocorrências presentes. Assim, admite que os conhecimentos que temos de geologia ou de astrofísica, com os quais resolvemos problemas contemporâneos, nos deveriam permitir compreender o modo como se formou o Universo.

Ouer na vida corrente quer na actividade científica, fazemos inferências baseadas em expectativas. 0 problema de Russell é precisamente encontrar um fundamento lógico para justificar a existência em nós de tais expectativas. Ora uma delas, subjacente a toda a inferência indutiva, é a expectativa da uniformidade da natureza, ou seja, a crença que temos de que nas mesmas circunstâncias as mesmas causas produzam os mesmos efeitos. Oue razões teremos então para acreditar em tal?

66

Page 122: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Nem todas as expectativas verdadeiras são conhecimento. Há afirmaçoes que nos

parecem óbvias, mas que contudo não resistem a uma análise mais funda. É o que acontece quando pomos em causa ‘verdades’ aparentemente seguras, como por exemplo que o sol nascerá amanhã ou que todos havemos de morrer um dia. Quando analisamos os fundamentos destas crenças, procurando provar a sua verdade, verificamos que são frágeis. Com efeito, não ultrapasssamos o domínio da probabilidade, nunca alcançando o da certeza. Ao querer justificá-las, socorremo-nos da experiência passada. Só que tal experiência não garante que de futuro não haja uma excepção.

Uma outra hipótese para validar a indução é recorrer às leis do movimento. Neste caso pecamos pelo vício lógico da petição de princípio, pois estamos a querer legitimar cer-

tos factos a partir de uma lei, lei essa que por sua vez depende dos factos para ser válida.

Concluímos que o conhecimento indutivo não pode perspectivar-se num plano de certeza. 0 princípio indutivo deverá pois ser enunciado em termos de probabilidade, sendo a esse nível perfeitamente aceitável. De facto, é tanto mais provável que um facto A suceda a B, quantas mais vezes tal ocorrência se tiver processado. Há mesmo casos em que a inferência é quase segura, só que há sempre a possibilidade de aparecer um facto desconhecido que contrarie as expectativas verosímeis.

Russell não nega a eficácia do princípio indutivo. Aceita-o corno algo que embora não possa ser provado funciona com êxito na nossa vida quotidiana bem corno na prática científica. Só que a única maneira de o validar é considerá-lo como uma crença, como algo profundamente arreigado no nosso espírito. 0 princípio índutivo impõe-se pela sua evidência, mas não é susceptível de demonstração. Ele é o limite com que deparamos quando queremos justificar as nossas crenças. No entanto, o facto de ser imprescindível para quem se

propuser fazer ciência não lhe confere validade lógica.

A INTUIÇAO Quando Russell considera a indução coloca-se no plano da inferência, ou seja, a

partir da observação de determinados factos particulares generaliza, concluindo que o que se passa com um número significativo de casos manter-se-á constante para a totalidade dos mesmos. Mas, como vimos, não é o número de casos observados que irá legitimar as ilações tiradas, mas sim a crença num princípio que as justifica. Neste caso trata-se da crença no

princípio indutivo, princípio esse que pressupõe o carácter ordenado da natureza, garantindo a sua uniformidade. Não nos interessa abordar a

Page 123: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

legitimidade lógica de tal princípio, mas

sim o modo como a ele acedemos, ou seja, as operações mentais necessárias para o alcançar. Ora, se tivermos presente o que foi dito sobre o conhecimento a ptioti, verificamos que ele é intuitivo, que se nos afirma como evidente, pois alcançanio-lo de um modo imediato, sem raciocinarmos. Trata-se de um conhecimento cuja presença se impõe sem mediações. Portanto, o conhecimento a ptiwi é um conhecimento intuitivo, tal como também o é o conhecimento puramente empírico.

Relembrando o que já foi dito sobre o conhecimento empírico, verificamos que temos acesso imediato aos dados dos sentidos, sobre os quais posteriormente formulamos juizos, os juizos de percepção. Também temos acesso aos juízos de memória e à consciência de nós próprios como sujeitos. 0 problema que agora se levanta é o da verdade desses conhecimentos. A evidência não é por si mesma um critério de verdade. Quando é que temos direito de considerar verdadeiras as evidências a que intuitivamente acedemos? Quais são ou de que tipo são as evidências verdadeiras? Será que poderemos ter evidências falsas?

67

Page 124: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Para Russeli, temos legitimidade para considerar verdadeiras as nossas intuições sensíveis quando verificamos que há um facto que lhes corresponde. De qualquer modo, relativamente às intuições dos objectos, há umas mais evidentes do que outras. As que implicam dados dos sentidos são absolutamente evidentes. As que concernem à memória não são tão nítidas. No que respeita à intuição de princípios, há que os aceitar, pois nã o nos é possível ultrapassá-los. Na cadeia de justificações que vamos tecendo quando pretendemos validar as

nossas crenças, há sempre um princípio último que não conseguimos transpor e que consideramos como a pedra inicial de todo o nosso pensamento, como o alicerce sobre o qual se constrói o nosso raciocínio, que sem o seu suporte ruiria. Russell classifica-o de «luminosa evidência» (PF, p.176), admitindo que a ele acedemos por intuição. Note-se no entanto que as intuições intelectuais, tal como acontece corri as intuições sensíveis, não são igualmente evidentes. Há certos princípios que se nos impõem de um modo absoluto, como por exemplo os princípios lógicos. Há outros que não são tão nítidos, como o princípio indutivo.

TAREFAS

(As questões que se seguem têm como ponto de referência os caps. VI a VIII.)

1. Relativamente aos princípios a que acedemos de um modo imediato, Russell privilegia o

princípio indutivo. Como justifica a importância dada por Russell a este princípio?

2. Leia o texto de Karit sobre os juízos sintéticos a priori. Identifique o problema nele trata-

do. Confronte-o com as posições defendidas por Russe11.- Caso lhe interesse aprofundar a posição kantiana sobre este assunto, leia a ‘Introdução’

à Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 36-56.3. Relembre os conhecimentos que tem sobre os princípios lógicos, recorrendo às noções de

Lógica que estudou no 11.1 Ano. Atendendo também às informações que colheu em Os Problemas da Filosofia, escreva um pequeno texto no qual contemple:- o modo de acesso a estes princípios;- a função que desempenham no processo cognitivo;- a sua validade.

4. Leia o texto de Hume e identifique nele alguns dos problemas que Russell retoma ao

Page 125: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

tratar da induçáo.- No caso de lhe interessar a posição de Hume, sugerimos-lhe que consulte a obra deste

autor, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 1985,

5. Destaque os principais argumentos que Russell usa para problematizar a validade lógicado princípio indutivo.6. Relembre o vício lógico da petição de princípio (vide programa do 11.0 Ano, rubrica Talá-

cias’) e esclareça a acusação de Russell de que certo tipo de validação da indução enferma deste sofisma.

Page 126: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

7. Escreva um pequeno texto clarificando as noções de verdade e de crença, bem como o

papel que cada uma desempenha na epistemologia russelliana.

8. No cap. VIII da sua obra (PF, pp. 123-124) Russell assinala alguns filósofos empiristas e

racionalistas. Procure caracterizar em traços gerais cada uma destas orientações. De entre os filósofos mencionados, seleccione textos que entenda serem representativos destas cor-

rentes filosóficas.

9. Distinga ‘inatismo’ e ‘apriorismo’. Refira-se aos diferentes tipos de conhecimentos que

Russell classifica como a priori.

10. Discuta até que ponto um raciocínio dedutivo pode ser criativo.

11. Relembre a posição kantiana quanto ao apriorismo espacio-temporal do sujeito humano.

Pronuncie-se criticamente quanto à crítica de Russell face a esta tese.

12. Russell começa por considerar os princípios lógicos como «leis do pensamento» (PF, cap.

VII, p. 122). Posteriormente irá pôr em causa tal designação (PF, cap. VIII, p. 143 e

segs.). Justifique esta mudança analisando os argumentos por ele apresentados.

TEXTO 1

a) Da diferença dos juizos sintéticos e dos juízos analíticos em geral

0 conhecimento metafisico deve simplesmente conter juizos a pri .on. exige-o a peculiaridade das suas fontes. Ora, seja qual for a origem dos juízos ou a natureza da sua forma ló gica, existe neles, quanto ao conteúdo, uma diferença em virtude da qual são ou simplesmente explicativos, sem nada acrescentar ao conteúdo do conhecimento, ou extensivos, aumentando o conhecimento dado; os primeiros podem chamar-se juízos analíticos, e os segundos, sintéticos.

Os juízos analíticos nada dizem no predicado que não esteja já pensado realmente no conceito do sujeito, embora não de modo tão claro e com

Page 127: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

consciência uniforme. Quando digo: todos os corpos são extensos, não alarguei minimamente o meu conceito de corpo, mas analisei-o apenas, porque a

extensão estava pensada realmente no conceito já antes do juízo, embora não expressamente mencionada; o juízo é, portanto, analítico. Pelo contrário, a

proposição: alguns corpos são pesados, contém no predicado alguma coisa que não está verdadeiramente pensada no conceito geral de corpo, aumenta pois o meu conhecimento, ao acrescentar algo ao meu conceito; deve, portanto, chamar-se um juízo sintético.

h) 0 princípio comum de todos os juizos analíticos é o princípio de con-

tradição

Todos os juízos analíticos se baseiam inteiramente no princípio de contradição e são, por natureza, conhecimento a priori, quer os conceitos que lhes

69

Page 128: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

servem de matéria sejam ou não empíricos. Pois, assim como o predicado de um juízo analítico afirmativo está já pensado anteriormente no conceito do sujeito, não pode ser negado por ele sem contradição, assim também o seu

contrário, num juizo analítico, mas negativo, será negado necessariamente pelo sujeito e, sem dúvida, em consequência do princípio de contradição. Assim acontece com as proposições: todo o corpo é extenso e nenhum corpo é inextenso (simples) por natureza.

Eis porque também todas as proposições analíticas são juizos a priori, embora os seus conceitos sejam empíricos, por exemplo, o ouro é um metal amarelo; para saber isso, não preciso de mais nenhuma experiência além do meu conceito de ouro, o qual implica que este corpo é amarelo e um metal; pois é nisto que consiste precisamente o meu conceito e eu não preciso de fazer nada a não ser desmembrá-lo, sem buscar outra coisa fora dele.

c) Os juizos sintéticos exigem um princípio diferente do princípio de con-

tradição

Há princípios sintéticos a posteri.on., cuja origem é empírica; mas também os há que são certos a priori e provêm do puro entendimento e da razão. Uns e outros concordam em que eles nunca podem existir em virtude do axioma fundamental da análise, isto é, do simples princípio de contradição; exigem ainda um princípio inteiramente diferente, embora sempre devam ser derivados de todo o princípio, seja ele qual for, em conformidade com o princípio de contradição; nada, pois, se deve opor a este princípio, embora nem tudo dele possa ser derivado. Vou, antes de mais, classificar os juízos sintéticos.

1) Os juizos empíricos são sempre sintéticos. Seria absurdo fundar na experiência um juízo analítico, visto que não tenho de sair do meu conceito para formular o juízo e, por conseguinte, não necessito de um testemunho da experiência. Um corpo é extenso: é uma proposição certa a priori, e não um juízo empírico. Com efeito, antes de passar à experiência, eu possuo já no

conceito todas as condições do meu juízo e apenas posso extrair dele o predicado segundo o princípio de contradição e tornar-me consciente da necessidade do juízo, que a experiência não me ensinaria.

2) Os juizos matemáticos são todos sintéticos. Esta proposição parece ter-se inteiramente subtraído, até agora, à s observações dos analistas da razão humana, e até mesmo contrapor-se a todas as suas suposições, embora seja certa de modo incontestável e muito importante subsequentemente. Porque se constatou que os raciocínios dos matemáticos procedem todos segundo o

princípio de contradição (o que exige a natureza de toda a certeza apodíctica), também se persuadiram que os axiomas eram conhecidos a partir do princípio de

Page 129: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

contradição; mas era um grande erro, porque uma proposição sintética pode, naturalmente, ser apreendida segundo o princípio de contradição, mas

só enquanto se pressupõe uma outra proposição sintética, a partir da qual ela pode ser deduzida, mas nunca em si mesma. Deve, antes de mais, observar-se que as proposições matemáticas genuínas são sempre juízos a priori e não empíricos, porque têm em si uma necessidade que não pode ser tirada da experiência. Mas, se não me quiserem conceder isso, bem, então restrinjo a minha

Page 130: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

proposição à matemática pura, cujo conceito já implica que não contém um

conhecimento empírico, mas um puro conhecimento a priori. Poder-se-ia, antes de mais, pensar que a proposição 7+5=12 é uma simples proposição analítica, que resulta do conceito de urna soma de sete e de cinco, em virtude do princípio de contradição. Mas, olhando de mais perto, descobre-se que o

conceito da soma de 7 e 5 não contém mais nada senão a reunião de dois números num só, sem que se pense minimamente o que seja esse único número, que compreende os dois. 0 conceito de doze de nenhum modo está pensado pelo simples facto de eu pensar essa reunião de sete e de cinco, e, por mais que analise longamente o meu conceito de uma tal soma possível, não encontrarei, no entanto, aí o número doze. É preciso ultrapassar estes conceitos, recorrer à intuição que corresponde a um dos dois números, por exemplo, os

seus cinco dedos ou (como Segner na sua aritmética) cinco pontos, e assim acrescentar, uma após outra, as unidades do cinco dado pela intuição ao con-

ceito de sete. Alarga-se assim realmente o seu conceito por meio desta proposição 7+5=12 e junta-se ao primeiro conceito um novo, que nele não estava pensado, isto é, a proposição aritmética é sempre sintética, o que se torna muito mais claro quando se assumem números algo maiores; percebe-se então nitidamente que, se virarmos e revirarmos à vontade o nosso conceito, nunca poderemos, sem recorrer à intuição, mediante a simples análise dos nossos

conceitos, encontrar a soma.

Tão-pouco analítico é um qualquer axioma de geometria pura. Entre dois pontos a linha recta é a mais curta - é uma proposição sintética. Pois o

meu conceito do que é recto não contém nenhuma noção de grandeza, mas

apenas uma qualidade. 0 conceito do que é mais curto é, portanto, inteiramente acrescentado e não pode ser tirado do conceito de linha recta por ne-

nhuma espécie de análise. Deve, pois, recorrer-se à intuição, através da qual é unicamente possível a síntese.

Alguns outros axiomas, que os geórnetras postulam, são certamente analíticos e fundam-se no princípio de contradição, mas servem apenas, como proposições idênticas, para o encadeamento do método, e não como princípios; por exemplo, a = a, o todo é igual a si mesmo, ou (a + b) > a, isto é, o

todo é maior que a sua parte. No entanto, também estes, embora válidos em

virtude de simples conceitos, são admitidos em matemática unicamente porque podem ser representados na intuição. 0 que aqui nos leva comumente a crer que o

Page 131: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

predicado de tais juízos apodícticos se encontra já no nosso con-

ceito e que, por conseguinte, o juizo é analítico, é simplesmente a ambiguidade da expressão. Devemos, com efeito, pelo pensamento acrescentar a um

dado conceito um certo predicado e esta necessidade está já ligada aos con-

ceitos. Mas, a questão não é o que devemos acrescentar pelo pensamento aoconceito dado, mas o que nele pensamos realmente, embora apenas de um

modo obscuro, e então torna-se claro que o predicado adere necessariamente a esses conceitos, não imediatamente, mas por meio de uma intuição que se deve acrescentar.

Kant, Prolegórnenos a toda a Metafisica Futura,

Lisboa, Edições 70,1982, pp. 24-28.

Page 132: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

TEXTo2

58. Mas, para apressar o termo desta discussão, que já atingiu uma

extensão demasiado grande, buscámos em vão uma ideia de poder ou de conexão necessária em todas as fontes a partir das quais supusemos que ela podia derivar-se. Parece que, em casos singulares da acção dos corpos, nunca

podemos, mediante o mais extremo escrutínio, descobrir alguma coisa a não ser um evento sucedendo-se a outro, sem conseguirmos compreender qualquer força ou poder pelo qual a causa actua, ou qualquer conexão entre ela e o seu

suposto efeito. A mesma dificuldade ocorre ao contemplarmos as operações da mente sobre o corpo - onde observamos que o movimento do último se segue à volição da primeira, mas não conseguimos observar ou conceber o laço que liga conjuntamente o movimento e a volição, ou a energia pela qual a mente produz este efeito. A autoridade da vontade sobre as suas próprias faculdades e ideias de modo nenhum é mais compreensível: em suma, em toda a natureza, não aparece um único exemplo de conexão, que por nós seja concebível. Todos os eventos parecem inteiramente soltos e separados.

Um vento sucede a outro, mas jamais podemos observar entre eles qualquer vínculo. Parecem conjuntos, mas nunca conexos. E visto que não podemos ter a ideia de alguma coisa que nunca apareceu aos nossos sentidos externos ou ao sentimento (sentiment) interno, a conclusão necessária parece ser a de que não temos ideia alguma de conexão ou poder, e que estas palavras são absolutamente desprovidas de significado, quando empregues nos

raciocínios filosóficos ou na vida comum.( ... )

61. Recapitulando, pois, os raciocínios desta secção: toda a ideia é copiada de alguma impressão ou sentimento (sentiment) anterior; e onde não podemos descobrir qualquer impressã o, podemos estar certos de que não existe ideia alguma. Em todos os casos singulares da operação dos corpos ou das mentes, nada há que produza qualquer impressão, nem, por conseguinte, possa sugerir alguma ideia de poder ou conexão necessária. Mas, quando surgem muitos casos uniformes e o mesmo objecto é sempre seguido pelo mesmo evento, começamos então a albergar a noção de causa e conexão. Experimentamos (feel) então um novo sentimento ou impressão, isto é, uma

conexão usual no pensamento ou na imaginação entre um objecto e o seu concomitante habitual; tal sentimento (sentiment) é o original da ideia que buscamos. Uma vez que esta ideia brota de um número de casos similares e não de um único caso, deve provir daquela circunstância em que o número de casos difere de cada caso individual. Mas a habitual conexão ou transição da imaginação é a única circunstância em que eles diferem. São semelhantes em todas as outras particularidades. 0 primeiro exemplo que vimos de movimento comunicado pelo

Page 133: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

choque de duas bolas de bilhar (para regressarmos a

esta ilustração palpável) é exactamente semelhante a qualquer caso que, presentemente, nos possa ocorrer; a não ser apenas que, a princípio, não podíamos inferir um evento a partir de outro - o que agora estamos habituados a fazer, após um tão longo decurso de experiência uniforme. Não sei se o leitor apreenderá com prontidão este raciocínio. Receio que, se multi-

Page 134: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

plicar as palavras a seu respeito ou o esclarecer em m aior variedade de aspectos, ele se tome apenas niais obscuro e intricado. Em todos os raciocínios abstractos existe um ponto de vista que, se felizmente o conseguirmos atingir, nos fará avançar mais no esclarecimento do tema do que mediante toda a eloquência e copiosa expressão do mundo. Tentaremos alcançar esse ponto de vista e reservar as flores da retórica para assuntos que com elas mais se coadunam.

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano,

Lisboa, Edições 70, 1985, pp. 74-79

2.2 @ 0 problema do ser

(a discontinuidade dos diferentes tipos de ser)

2.2.1 IA discussão acerca da existência da inatéria

A mente e a matéria

A questão ontológica, ou se preferirmos, acerca da existência e dos modos de existência do real, é introduzida por Russell logo no início da sua obra Os Problemas da Filosofia, no capítulo 1, a propósito da distinção entre aparência e realidade. 0 leitmotiv da questão parece ser a discussão do argumento idealista de Berkeley, a propósito da existência da iriatéria.

Resumamos, em traços gerais, os pontos essenciais do argumento de Berkeley: Berkeley tinha ultrapassado o dualismo presente na doutrina de Locke36 acerca das qualidades primárias e secundárias. Lembremos que Locke dizia: «sem o olho não haveria cores; sem o ouvido, sons, e assim por diante»37. 0 empirismo de Locke, que o levara a reconhecer a experiência como a origem de todo o nosso conhecimento, mesmo das próprias ideias, desembocara numa refutação da doutrina escolástica da essência. Para Locke, a

essência é-nos, na sua maioria, desconhecida; tal como a podemos conhecer, ela é puramente verbal e consiste na definição do termo geral.

Para Berkeley, a ideia é o que é conhecido imediatamente, como o são os dados dos sentidos (sense data) e tudo aquilo que percepcionamos são ideias (ver capítulo IV de PF); a @xistência permanente dos objectos materiais é garantida pelo facto destes serem percepcionados38@ concluindo que toda a matéria é mental.

Nesse sentido, Berkeley nega a existência independente da matéria, em favor de um idealismo que se manifesta numa concepção mental do real.

31 A este propósito rever o ponto 2. - Bertrand Russell e a tradição empinsta, da 1.1 Parte, onde é sumariamente referida esta questão.

Page 135: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

11 Locke faz esta afirmação no Essay conceming Human Understanding.

11 Ver o ponto 2. -BenrandRijsselle a tradição empitista, da 1.’ Parte.

73

Page 136: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Atribui a Deus o papel de garantia da continuidade da existência da matéria, na me-

dida em que considera que «Deus tudo percepciona» e, uma vez que assume que os objectos físicos não tê m existência independente de nós, só existiriam árvores e todo o tipo de objectos físicos enquanto os percepcionássemos. Mas, como de facto eles continuam a existir, ainda que não os percepcionemos, Berkeley e obrigado a responder aos seus críticos com o argumento da existência do Deus que tudo percepciona.

Contudo, o argumento de Berkeley, que acaba por demonstrar que não há matéria e

que o mundo consta exclusivamente de espíritos, mentes, e das suas ideias, (ver cap.1 de PF, p.37) e que os objectos físicos são, em última instância, ideias no espírito de Deus, é frágil.

Russell considera que Berkeley teve um papel importante no campo filosófico, malgrado os erros dos seus argumentos, ao chamar a atenção, pela primeira vez na história da Filosofia, para uma questão muito importante sobre a realidade: os objectos imediatos dos nossos sentidos não têm existência independente de nós (ver cap. 1 de PF, p. 36).

Para Russell, a questão é colocada, na argumentação contra Berkeley, a partir da distinção entre matéria e espírito (mente) e através da afirmação da existência contínua e permanente do real.

Feita a distinção entre aparência e realidade, «uma distinção das que mais enleiam na Filosofia: a destrinça entre a aparência e a realidade, entre o que as coisas parecem ser e

o que as coisas realmente são» (PF, cap. 1, p. 32), e dado que Russell aceita a tese empirista de a experiência ser a base de todo o nosso conhecimento, conclui que o que nos é dado pela experiência imediata, pelos dados dos sentidos, nunca é a forma real de algo, mas

apenas a sensação ou sinal (ver cap. 1 de PF, p. 34) desse algo.

A sensação é o nome dado à experiência de tomar imediatamente consciência das coisas (ver PF, pp. 35-36), os dados dos sentidos são aquelas coisas que são conhecidas imediatamente pela sensação e que nos dão a forma aparente das coisas.

É através do exemplo da mesa que tenho perante mim que Russell desenvolve a questão acerca da existência e da natureza da matéria,

Matéria é, diz Russell, «a colecção dos objectos físicos» (PF, cap. 1, p. 36). A propósito desta questão, importa relembrar que Russel], olhando para a história

Page 137: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

da Filosofia Ocidental, reconheceu nela várias disputas. Uma, a que já nos referimos em11, a controvérsia empirismo/racionalismo (ver cap. VII de PF), e agora a oposição entre realismo e idealismo (ver cap. 1 e IV de PF).

Idealistas como Berkeley e Leibniz, ao negarem a existência da matéria como algo que se oponha ao espírito, acabam por aceitar a sua existência, pelo menos como algo de mental (ver cap. 1 de PF, pp. 39-40).

Conclui Russell: «aquilo que os sentidos imediatamente nos atestam não é a verdade sobre o dito objecto, tal como ele é independentemente de nós, mas tão só a verdade sobre uns dados sensíveis - os quais (...) dependem da relação entre o objecto e nós» (PF, p. 41).0 objecto real não pode ser por nós conhecido imediatamente, Russell insiste que a questão fundamental acerca do real é a relação que podemos estabelecer entre os dados dos sentidos e os objectos físicos a que estes se associam. Mas, será que os dados dos sentidos nos dizem algo acerca da existência dos objectos físicos? Isto é, será que eles são sinal dessa existência?

Russell está inclinado a admiti-lo, diz, no cap. 11 de Os Problemas da Filosofia: «admitida a certeza dos nossos dados sensíveis, haverá razões para os termos na conta de sinais da existência de uma outra coisa, a que possamos chamar o objecto físico? o sen-

74

Page 138: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

so-comum responde logo que sim» (PF, p. 47); no entanto, a tese do senso comum, de que há objectos independentes de n?s, os quais dão origem às nossas sensações (verPF, p. 51), parece ser, para RusselI, simplista. E nesse sentido que apresenta o exemplo do gato (ver cap.11 de PF, p. 51 e segs.), refutando a possibilidade da descontinuidade do real. Se o objecto físico, no caso o gato, apenas consistisse em dados dos sentidos, ao deslocar-se este não poderia ter estado numa posição intermédia em que eu não o vi (isto é, na linha do que Berkeley afirmava, o gato teria deixado de existir ... ) e reaparecer depois; «teria de supor que não existiu o gato no intervalo de tempo em que o não mirei, mas que voltou de súbito à existência, em um novo lugar» (PF, p. 5 1).

Segundo RusselI, a crença na existência de um mundo externo, independente de nós, baseia-se na admissão de uma crença instintiva”, segundo a qual o mundo externo existe e não depende essa sua existência do facto de o percepelonarmos (ver cap. 11 de PF, pp. 53-54).

Em obras ulteriores, contudo, esta ideia desenvolveu-se no sentido de afirmar que o real implica a existência de entidades que não têm existência nem física, nem mental, isto é, entidades que são as relações, o sentido, etc.

Nesta sua acepção posterior do real, os nomes e o seu significado constituem a conexão fundamental entre a linguagem e o mundo, e a existência do nome implica a existência do objecto.

Russell considera, ainda, que a existência dos objectos físicos reais, isto é, a existência contínua do real, é o que garante que os dados dos sentidos reapareçam aquando da presença do objecto (ver cap. 111 de PF, p.p. 57-58).

A distinção entre forma aparente e forma real das coisas conduz Russell a considerar a distinção entre estar num espaço público e estar num espaço privado. 0 espaço real onde se situam os objectos físicos é uma coisa pública; o espaço aparente é propriedade privada daquele que percepciona um determinado objecto. Nos diferentes espaços privados das diversas pessoas, o mesmo objecto tem formas diferentes (ver cap. 111 de PF, pp.60-61). Os objectos físicos situam-se no espaço da ciência que é um espaço físico.

Os dados dos sentidos situam-se nos espaços privados de cada um de nós, mas os objectos físicos situam-se num espaço público, pelo que Russell é levado a admitir a necessidade de uma correspondência entre ambos os espaços, ou se quisermos, entre os dados dos sentidos e os objectos físicos que lhes dizem respeito.

A crença do senso comum é a da existência de objectos físicos num espaço comum. RusselI, contudo, parte dos dados inegáveis da experiência, que não são, como vimos, coisas, mas qualidades, acabando por considerar que a realidade são as próprias aparencias que constituem o mundo privado, pois, de facto, os dados dos

Page 139: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

sentidos situam-se nesse espaço privado de cada um de nós. Russell nunca considera, contudo, que os dados dos sentidos sejam mentais, apesar de os situar nos espaços privados de cada um de nós.

A realidade funda-se e constrói-se, pois, para RusselI, na e a partir da nossa experiência privada.

Embora Moore tenha influenciado Russell em vários aspectos da sua Filosofia, no que diz respeito à existência de objectos físicos, ambos os filósofos se situam em posiçoes distintas. Para Moore, o essencial não é colocar essa questão de saber se há, de facto, objec-3’ A e ste propÓsito \cr os pontos 1.10 qiw é para Ritssellconhecer? e 2. 1. 0 problema do conheciniento, da IL’ Parte.

75

Page 140: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

tos físicos como o senso comum acredita haver; o que considera fundamental acerca do nosso conhecimento do mundo externo é saber o que significamos com expressões do tipo «está um livro nesta sala».

Sabemos que Russell foi influenciado pelo idealismo de Hegel e de Leibniz, e que numa certa fase do seu desenvolvimento filosófico sustentou uma concepção do real, cedo abandonada, conhecida por monismo neutral, em que basicamente considerava o físico e o mental como duas faces da mesma realidade. Só depois, por influência da lógica e da matemática, esboçou uma concepção neo-realista e pluralista do real, onde este é conce-

bido, segundo a filosofia do atomismo lógico, como um conjunto de átomos - as relações, o

sentido, as descrições - resultantes de uma construção lógica. 0 objecto é, assim, entendido como uma construção puramente lógica e o espaços comum em que se situa é construído também logicamente a partir dos espaço privados de cada um.

Desta construção lógica do real trataremos brevemente, ao abordar o problema dos universais.

0 problema dos universais

0 desenvolvimento da concepção de Russell acerca do real toma a sua expressão mais completa, em Os Problemas da Filosofia, a propósito da distinção estabelecida entre

universais e particulares.

Esta questão surge tematizada essencialmente nos capítulos IX e X, e decorre da constatação feita, em capítulos anteriores (nomeadamente no final do cap. VIII) da obra em

estudo, de que existem entidades que não são nem físicas, nem mentais, e que são, precisamente essas entidades as que mais interessam a Russell analisar, pois são elas, enquanto construções lógicas, que nos dizem algo acerca da existência dos objectos físicos.

Tais entidades, enquanto relações, parecem ser ontologicamente diterentes dos objectos físicos, das mentes e dos dados dos sentidos. Mas, Russell acaba por não acrescentar muito mais acerca de tais entidades e daquilo em que possa consistir esse seu ser, para além de dizer que não são meramente mentais.

Lembremos que Russell está interessado em demonstrar que um nome possui uma ligação com aquilo que denota, com aquilo a que se refere, o que equivalerá a dizer que o nome implica a existência de algo.

Page 141: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Nos seus últimos trabalhos, Russell considera que os universais ocupam realmente certas posições espácio-temporais através de graus de semelhança e comparação.

A questão dos universais está directamente relacionada, também, com a questão do conhecimento e da possibilidade de conhecimento a priori.

A questão não é nova e remonta a filósofos tão antigos como Platão. É o próprio Russell que nos diz (ver cap. IX de PF) que o problema dos universais tem a sua origem na teoria platónica das ideias. A questão é introduzida através de uma

análise desta teoria de Platão e da distinção entre particulares e universais.

A designação ‘universal’ é proposta, por Russeil, para o termo ‘ideia’ no sentido utilizado por Platão: «empregamos o termo ideia para designar aquilo em que Platão pensava» (PF, p. 149).

76

Page 142: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Considera Russell que no mundo dos sentidos só há particulares, os quais nos são dados pela sensação, a estes se opõe o conceito de ‘universal’ que é o que é comum a particulares (ver cap. IX de PF, p. 149).

Tal como Platão já o afirmara, através da Teoria da Participação - em que considera que cada coisa particular do mundo sensível participa na ideia que lhe corresponde no mun-

do inteligível; assim os actos justos participam na ideia de Justiça, as coisas brancas na ideia de brancura e assim sucessivamente -, os particulares participam numa natureza comum,

com a qual não se confundem.

A intenção de RusselI, ao analisar a questão da realidade, é a de proceder a uma análise lógica, a qual obrigará a um distanciamento em relação a filosofias do tipo da platónica, que consideram a realidade inteligível do mundo das ideias a verdade de que o mundo sensível é cópia e imagem esbatida.

Como vimos no ponto anterior, para Russell a realidade consiste nas aparências do mundo privado, isto é, nos dados dos sentidos, nos particulares.

Diz, a propósito da distinção entre particulares e universais: «Ao que nos é dado na sensação, ou a tudo o que é da mesma natureza que quanto nos é dado na sensação, chamaremos nós um particular; e por conseguinte, em oposição a isto, será para nós um universal o que pode ser comum a particulares» (PF, p. 149).

Para Russell e ao contrário do que Platão supusera, tão real é o mundo dos universais, isto é, o mundo do ser (ver PF, p. 159), como o é o mundo do existir, onde encontramos os particulares. No mundo do existir estão contidos todos os dados dos sentidos, todos os pensamentos e sentimentos e a totalidade dos objectos físicos; o mundo dos universais é o mundo das relações lógicas, o mundo daquilo que não tem existência física nem mental.

Admitida a realidade de entidades que são as relações, é em termos de análise da linguagem vulgar que Russell apresenta a questão: «no geral os substantivos próprios representam particulares, ao passo que os restantes substantivos, os adjectivos, as preposições, os

verbos, representam universais» (PF, p. 150). Assim, esta distinção entre particulares e universais patenteia a diferença entre qualidades e relações (ver PF, p. 152), a qualidade de algo ser branco é algo de distinto da relação que posso estabelecer entre um cisne branco e uma folha de papel branca.

As qualidades são qualidades de coisas isoladas e as relações implicam sempre o que há de comum entre duas ou mais coisas, estabelecido através de um acto de pensamento. No entanto, Russell insiste que «deve haver essas entidades a que

Page 143: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

chamamos os universais, o próximo ponto que nos cumpre provar é que esse ser dos universais não é de natureza meramente mental» (PF, p. 155).

Na discussão acerca do que possam ser tais entidades, as relações, Russell critica vários filósofos, como Berkeley e Hume, os quais só atenderam às qualidades e não às relações como universais. Russeli acaba por dar razão aos filósofos racionalistas a propósito desta questão, admitindo a distinção entre particulares e universais e entre qualidades e relações.Estes filósofos, tal como alguns empiristas mais recentes, negaram a existência de ideias abstractas, como a ideia de justiça ou a de brancura, argumentando que imaginamos algo de particular justo ou branco e formulamos os nossos raciocínios sobre esses particulares, nada deduzindo deles, a não ser o que também é verdadeiro de outras coisas particulares justas ou brancas. Negam, portanto, a existência de universais.

77

Page 144: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Os universais, não sendo nem mentais, nem materiais, têm, contudo, que ser alguma coisa. Russell exemplifica (ver PF, pp. 156457) que os universais não têm existência espácio-temporal. Toma como exemplo a proposição «Edimburgo está ao norte de Londres», considerando que os termos Edimburgo e Londres, presentes na proposição, têm uma

existência espácio- temporal, mas que a relação ‘estar ao norte de’ tem um tipo de existência totalmente diferente. Esta relação é um universal e, para RusselI, a sua existência não pode ser meramente mental, pois o ser dos universais é independente de eles serem pensados ou

apreendidos por uma mente ou espírito.

Saber o que é esta relação implica saber, diz RusselI, o modo como podemos conhecer os universais.

Como vimos nos pontos em que foi abordada a questão do conhecimento, pode-se considerar um conhecimento de trato (acquaintance) e um conhecimento por descrição dos universais e dos particulares. Sabemos já, também, que todo o conhecimento de verdades, distintamente do conhecimento de coisas, se refere sempre ao conhecimento dos universais, e este conhecimento é um conhecimento a priori (ver caps. V, VII e VIII de PF).

Mas Russell também afirma (ver caps. V e X de PF) que há um conhecimento de trato dos universais, «ternos trato (acquaintance) com universais como o branco, o vermelho, o negro, o doce, o amargo, o sonoro, o duro, etc., quer dizer, as qualidades exemplificadas pelos dados dos sentidos» (PF, p. 161).

0 modo como se processa este conhecimento de trato dos universais é explicado por Russell da seguinte maneira: quando conhecemos, por exemplo, uma mancha branca, temos dela ‘trato’ (ver PF, p. 161), quando apreendemos o que há de comum entre várias temos conhecimento de trato da brancura; e conclui que «a esta casta de universais podemos chamar ‘qualidades sensíveis'» (PF, p. 162). Também são consideradas como relações das quais temos conhecimento de trato as relações espacI ais (do tipo ‘estar ao lado de’, ‘estar à esquerda de’, etc.) e as relações temporais (’antes de’, ‘depois de’, ‘durante’, etc.), bem como as relações de semelhança (ver PF, pp. 162-163).

Esta explicação de como temos ‘trato’ com os universais não fica claramente explicada por Russell nesta sua obra de 1912, mas, tal como referem alguns dos seus

comentadores, é nos seus últimos escritos que considera, como condição necessária para um

universal ser objecto de trato, que este seja exemplificado na experiência privada de cada um de nós, pois um predicado só se torna inteligível se for

Page 145: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

suportado por um universal.

No cap. XIV de Os Problemas da Filosofia, Russell retoma a questão da distinção entre conhecimento de trato e conhecimento por descrição, afirmando que «o conhecimento de trato de certa coisa não envolve logicamente um conhecimento das suas relações; o

conhecimento de algumas das suas relações não envolve o conhecimento de todas as suas relações» (PF, p. 220) e considera, ainda, que «em todos os casos de conhecimento por descrição necessitamos de algum vínculo com universais» (PF, p. 225) e que esse conhecimento se refere às coisas de que não temos experiência directa.

Assim, através de um conhecimento puramente empírico, damo-nos conta da existência de certas coisas particulares de que temos conhecimento de trato; através do conhecimento a priori podemos estabelecer conexõ es entre universais (ver cap. XIV de PF).

Russell diz: «a muitos universais como a muitos particulares apenas os conhecemos por descrição» (PF, p. 102) e o que constitui a principal importância deste tipo de conhecimento é que ele possibilita ultrapassar os limites da nossa experiência pessoal (ver cap. V de PF, p. 103).

78

Page 146: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Apesar de Russell não desenvolver esta questão em Os Problemas da Filosofia, um

comentário nos parece necessário, além do já feito anteriormente, a propósito da teoria das descrições de RusselI, evidenciando a importância de que esta questão se reveste para a análise da concepção de real e de verdade do autor.

Russell considera que os objectos do mundo externo só são por nós conhecidos por descrição, pois só temos ‘trato’ com os dados dos sentidos.

A sua concepção atomista lógica do real, desenvolvida sobretudo em obras posteriores à obra em estudo, leva-o a considerar que o mundo consiste em simples particulares que possuem simples qualidades, as quais assentam nas simples relações de uns com os outros.

As qualidades e as relações são ambas externas relativamente ao objecto. Os objectos simples são aqueles que podem ser denotados logicamente por um nome próprio. Os objectos externos, do mundo físico, só podem ser conhecidos por descrição, não podem ser

denotados pelos nomes próprios lógicos.

Nomear consiste, assim, para RusselI, num processo de identificação demonstrativa, o nome garante, de algum modo, a existência do objecto que nomeia , pois se o objecto não existir, o nome não tem uso significativo. Só podemos nomear os nossos perceptos (percepts) C-Os nossos estados mentais (que são por nós conhecidos com conhecimento de trato); estes são, como já referimos, entidades privadas, não são correlativos a dados dos sentidos

0 exemplo mais conhecido apresentado por Russell para ilustrar esta sua teoria é a frase «o actual rei de França é calvo», a qual poderia ser reduzida logicamente: há algo que é actualmente rei de França, há apenas uma coisa que tem esta propriedade geral e esta coisa também tem a propriedade de ser calvo.

As descrições definidas não são usadas como nomes, são símbolos incompletos que não possuem significado enquanto consideradas isoladamente e não denotam qualquer obi.ecto; são funções, pelo que necessitam de ser completadas para formar uma proposição.

Um nome poderia, para Russeil, referir-se a coisas particulares existentes espácio-temporal, bem como a entidades abstractas (por exemplo, o unicórnio, a montanha dourada, a sereia, etc.) e, também considera que expressões como ‘todos os homens’, ‘alguns homens’, ‘um homem’, ‘qualquer homem’, são objectos separados em termos de denotação, apesar de aparentemente podermos considerar que referem um mesmo

objecto, posição que Russell contesta; acaba, assim, por concluir que esta concepção do real estava ‘superpovoada’ e que seria necessário utilizar como

Page 147: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

princípio metodológico o

princípio de Ockham (conhecido por ‘navalha de Ockham’ ) de não multiplicar os entes mais do que o necessário : «sempre que possível há que substituir as inferências a entidades desconhecidas pela construção à base de entidades conhecidas».

Em obras como The Principles of Mathematics, datada de 1903, chegara mesmo a con-siderar que deve ser concedida realidade a todo o objecto de pensamento, incluindo, assim, as entidades abstractas tais como as classes e as proposições.

79

Page 148: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

TAREFAS

1. Confronte o texto de Hume que se segue com a concepção de Berkeley e a de Russell

acerca da continuidade da existência:

«Uma interrupção na aparição dos sentidos não implica necessariamente uma interrupção na existência. Admitir a existência contínua de objectos ou percepções sensoriais não implica qualquer contradição.»

David Hume -A Treatise of Human Nature, Oxford, Clarendon Press, 1978, 2.a, Liv. 1, 4.a Parte, Secção 11

2. Leia atentamente o texto de Quine apresentado, a propósito da questão ontológica. Resu-

ma a tese fundamental apresentada pelo autor.

«Uma coisa curiosa acerca do problema ontológico é a sua simplicidade. Pode ser formulado em cinco monossílabos portugueses: ‘0 que é que há?’. Para além disso, pode ser respondido numa única palavra -'Tudo’ - e

qualquer pessoa aceitará esta resposta como verdadeira. No entanto, isso é apenas dizer que há o que há. Continua a haver lugar para um desacordo acerca de casos; e a questão tem assim permanecido viva ao longo dos séculos.

Suponha-se agora que dois filósofos, McX e eu, diferem em ontologia. Suponha-se que McX defende que há algo que eu defendo que não há. McX pode, de um modo muito consistente com o seu próprio ponto de vista, descrever a nossa diferença de opinião, dizendo que eu me recuso a reconhecer certas entidades. Naturalmente, eu protestaria dizendo que ele está errado na sua formulação do nosso desacordo, uma vez que defendo que não há quaisquer entidades, do gênero que ele alega, para eu reconhecer; mas o facto de eu achar que ele está errado na sua formulação do nosso desacordo não é importante, porque estou de qualquer modo determinado a considerá-lo como errado na sua ontologia.

Por outro lado, quando eu tento formular a nossa diferença de opinião, pareço encontrar-me num predicamento. Não posso admitir que há certas coisas que McX aceita e eu não, porque ao admitir que há tais coisas eu estaria a contradizer a minha própria rejeição delas.

Se este raciocínio fosse correcto, então pareceria que em qualquer disputa ontológica o proponente do lado negativo sofre sempre da desvantagem de não ser capaz de admitir que o seu oponente está em desacordo com ele.

Este é o velho enigma platónico do não-ser. 0 não-ser tem que, num

Page 149: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

certo sentido, ser; porque senão o que é que não há? Esta doutrina emaranhada poderia ser cognominada de A Barba de Platão; ela mostrou ser historicamente resistente, embaciando frequentemente o gume da navalha de Ockham.»

Wv. 0. Quine - «Sobre o que há» in Existência e Linguagem - Ensaios

de Metafisica Analítica, Lisboa, ed. Presença, 1990, pp. 21-22

Page 150: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

3. Confronte o texto de Quine anteriormente apresentado com a concepção do real de Russe11.

4. Confronte o seguinte texto de Gustav Berginann com o cap. IX de PF sobre os universais:

«A mais distintiva inovação desta ontologia é a análise do acto. 0 mais simples determinado num acto é um particular e dois universais, designados espécie e pensamento, respectivamente. 0 acto em si proprio e a conjunçao de dois factos atómicos; um, o particular que exemplifica a espécie; o outro, o particular que exemplifica o pensamento. Vejam um acto de percepcionar os

factos atómicos disto- ser-verde. 0 pensamento nele presente é, tal como todos os pensamentos e todas as espécies, um universal ( ... ).»

Gustav Bergmann - “Notes on the Ontology of Minds” in The Foundations ofAnalytic Philosophy, Midwest Studies in Philosophy, vol. VI, ed. French e outros,

Minneapolis, Univ. of Minnesota Press, 1981, pp. 189-213; p, 189.

5. Relacione o mesmo texto com alguns dos conhecimentos que adquiriu acerca do atomis-

mo lógico de Russe11.

6. Comente o texto de Bergmann e relacione-o com a distinção feita por Russell entre men-

te e matéria. Para o seu comentário apoie-se nos caps. 1,11 e 11 de PF.

«Os particulares de um mundo não fundacionalista são, afirmo eu, objectos materiais e talvez mentes.

0 fundacionalista rejeita esta opção como muito complexa. Os seus

particulares são tao simples como os sentidos (sensa) da tradição. Os particulares deste mundo são tao simples como os do mundo do fundacionalista; nada mais são do que sentidos (sensa). A maior parte deles são não-mentais (norimental); só alguns são mentais, os particulares nos actos e nenhuns outros.»

Gustav Bergrnann - in ob. cit., pp.189, 191, 213

7. Resuma os aspectos fundamentais do argumento de Berkeley acerca da negação da maté-

ria, a partir dos caps. 1, 11, 111 e IV de Os problemas da Filosofia,

Page 151: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

8. Liste os principais argumentos utilizados por Russell em PF contra a tese de Berkeley

acerca da matéria.

9. Elabore um esquema conceptual de mente e matéria na obra Os Problemas da Filosofia.

10. Resuma a tese principal de Russell apresentada nos caps. IX e X de Os Problemas da

Filosofia.

11. Elabore um diagrani a acerca da relação entre universais e particulares estabelecida por

Russell em PF.

12. Confronte o excerto de Ayer a seguir transcrito com a tese apresentada por Russell no

cap. 111 de Os Problemas da Filosofia acerca da distinção entre ‘mental'/'material’ e

espaço privado'/'espaço público’.

81

Page 152: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

«Ser um objecto público ou privado é questão de linguagem. Depende de convenções que seguimos ao formular juízos de identidade. Os objectos físicos são públicos, porque faz sentido dizer que pessoas diferentes recebem

o mesmo objecto físico; as imagens mentais são privadas porque não faz sentido dizer que pessoas diferentes têm a mesma imagem mental.»

A. J. Ayer - 0 Problema do Conhecimento, Lisboa/Rio de Janeiro, Ulisseia, Liv. Pelicano, s.d., p. 163

2.2.2 10 problema da verdade (os vários graus de aproximação do real)

Diferentes tipos de crença: o papel da crença na busca da verdade

Uma das questões que Russell considera fundamental na sua tematização do problema da verdade é a de saber a relação da verdade e da falsidade com a mente, apesar de ter já admitido que: «a verdade ou a falsidade de um juízo não dependem da pessoa que o formula, mas apenas dos factos sobre os quais essa pessoa emite o juízo. Se julgo que Carlos 1 morreu na sua cama, o meu Juízo é falso, não por algo que se deva a mim, mas porque de facto ele não morreu na sua cama. Do mesmo modo, se julgo que ele morreu no cadafalso, o meu juizo é verdadeiro, devido a um evento de facto ocorrido há 260 anos atrás. Assim, a verdade ou falsidade de um juízo tem sempre um fundamento objectivo, e é natural perguntar se haverá verdades e falsidades objectivas enquanto objectos, respectivamente, dos juizos verdadeiros e dos juízos falsos.»40

0 verdadeiro e o falso de qualquer crença dependem de algo que lhe é exterior: o facto (ver cap. X11 de PF, p. 187), e não de internas qualidades das crenças.

Facto, diz Russell em Human KnowIedge, «é tudo o que há no mundo», o sol é um facto, César ter atravessado o Rubicão é um facto, e tudo o que torna um enunciado verdadeiro ou falso é um facto.

A noção de verdade não advém, como alguns filósofos o consideraram, da coerência de um conjunto de crenças, mas apenas da correspondência com um facto (ver cap. X11 de PF, pp. 191-192).

A verdade e a falsidade são consideradas, por RusselI, como propriedades das nossas

crenças, e estas são, num certo sentido, mentais, ou seja, elas dependem dos espíritos para a sua existência, mas dependem da correspondência com os factos para a sua verdade (ver PF, p. 198). Os espíritos não criam a verdade ou a falsidade, mas apenas as crenças.

Bertrand Russeli - “On the Nature of Truth and Falsehood” in Philosophical Es,@ti,@,,@,LondoniN.Y., Routlege, 1994, pp. 149-150, e também em Os Problemas

Page 153: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

da Filosofia, cap. X1 1, pp. 187-188.

82

Page 154: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Em TheAnalysis of Mind, Russell considera a crença como aquilo que de mais mental fazemos, dizendo que toda a nossa vida mental consiste em crenças e os raciocínios mais não são do que passar de uma crença a outra. Nesta obra, Russell introduz a noção de ‘referência’ para explicitar a relação existente entre a crença e o seu objectivo, isto é, o facto particular que torna a crença verdadeira ou falsa.

Russell distingue, em The Analysis of Mind, vários tipos de crença: a crença de memória (memory belief), a crença de expectativa (expectation beliej) e a crença de simples assentimento (bare assem), mas em Os Problemas da Filosofia, a tematização da crença não aparece tão sistematizada. No cap. XI, quando se refere ao conhecimento intuitivo, fala de crença desrazoável, de crença comum e de crença justificada, considerando que as primeiras são aquelas de que não se pode dar razão, as segundas são as que são inferidas ou são suscep- tíveis de ser inferidas de outras crenças para as quais se apresentaram razões e, finalmente, as últimas são as que são acompanhadas pela apresentação de uma razão (ver cap. X1 de PF, pp. 175-176). No mesmo capítulo, ao referir-se à memória e ao erro que esta pode implicar, também fala de crenças de memória, as quais nos conduzem multas vezes a falsas memórias (ver PF, pp. 182-183).

A propósito destas crenças de memória, diz Russeil, em The Analysis of Mind, que estas podem consistir apenas em palavras. Nesse caso, o conteúdo da crença idelitifica-se com o conteúdo de urna proposição.

No cap. X1 de Os Problemas da Filosofia, Russell insiste na possibilidade de a crença falhar em casos de memória, admitindo a possibilidade de erro da memória (ver PF, p. 180-181).

Verdade, erro, certeza e probalidade

Em «On the Nature of Truth and Falsehood»41, Russell diz:

«A questão ‘0 que é a verdade?’ é daquelas que pode ser entendida de muitos e diferentes modos, e antes de iniciarmos a nossa investigação com

vista à obtenção de uma resposta, será necessário clarificar o sentido de uma tal questão. Poderemos estar a perguntar quais as coisas que são verdadeiras: a ciência é verdadeira? a religião revelada é verdadeira? e por aí adiante. Mas antes de podermos responder a tais questões, devemos ser capazes de saber qual o significado destas questões: o que é que exactamente estamos a perguntar ao dizer ‘a ciência é verdadeira'?»,

mostrando que a questão que verdadeira e realmente preocupa a filosofia não é a de saber se o termo ‘verdade’ está a ser correctamente utilizado, mas sim que frases, crenças ou

Page 155: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

juizos são verdadeiros ou falsos. A questão da verdade, também já o referimos anterior-

‘1 Bertrand Russell - ---On the Nature of Truth and Falsehood” in Philosophical Essa.vs, London,/N.Y., Routlege, 1994, p. 147.

83

Page 156: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

mente, está intimamente ligada com a questão da crença. Tal como há diferentes espécies de crenças, também há diferentes graus de certeza. Mas, tanto a verdade como a falsidade residem fora da análise da mente, no facto com o qual a crença tem correspondência.

São as crenças que nos dão conhecimento e erro, diz Russell em The Analysis of Mind. É essencialmente nos caps. X11 e X111 de Os Problemas da Filosofia que a questão da verdade e da falsidade é analisada com mais pormenor, embora já em capítulos anteriores se lhe tenha feito referência, nomeadamente quando se distingue, no cap. V, conhecimento de coisas de conhecimento de verdades.

0 conhecimento de verdades tem um contrário que é o erro, diz Russell (no cap. XII de PF, p. 184). Todo este conhecimento parte do conhecimento intuitivo e é dele dependente, o qual é (ver cap. XIV de PF) de duas espécies: ou empírico, relacionado com os particulares, ou a priori, permitindo conexões entre universais.

As verdades a que Russell chama auto-evidentes ou evidentes de si são as que sabemos através do conhecimento intuitivo (ver cap. X de PF, p. 172), e entre elas consideram-se as proposições que enunciam o que nos é dado na sensação, bem como alguns princípios da Lógica e da Aritmética.

0 erro só surge quando ultrapassamos o objecto imediato, o dado sensível (ver cap. X de PF, p. 173), pois Russell considera, numa perspectiva empirista, que o conhecimento dos dados dos sentidos, na sua imediatez, é auto-evidente.

Diz Russe11:«afora os principios gerais, as outras verdades evidentes de si são aquelas que de modo imediato se derivam da sensação» (PF, p. 178) e acrescenta que os dados dos sentidos reais não são nem verdadeiros nem falsos, existem pura e simplesmente. Estas verdades evidentes de si são também chamadas por Russell verdades de percepção e exprimem-se pelos juízos de percepção.

A questão da verdade, como já o referimos, é uma questão de grau, isto é, há várias gradações de evidência, na busca da certeza. No cap. X1 de Os Problemas da Filosofia, Russell refere que «há graus na evidência ( ... ) que se vão dispondo desde a certeza absoluta até uma quase imperceptível suspeita » (PF, p. 182).

Nos Sceptical Essays, admite os resultados bem estabelecidos da ciência, não como certeza absoluta, pois essa, como tão bem o nota em Os Problemas da Filosofia, (ver caps. 1, XIII e XIV) é uma procura difícil e vã, mas como suficientemente provável para fornecer uma base para a acção racional.

A verdade e a falsidade, tal como Russell as considera em Human Knowledge, têm caracter público, são atributo de proposições. Mas, se a propriedade fundamental de uma proposição, o que a caracteriza, é o facto de ter significado, conclui Russell que a verdade e a falsidade devem ser procuradas precisamente no

Page 157: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

significado das proposições e não nas proposições em si próprias.

Uma proposição expressa uma crença e o que a torna verdadeira ou falsa é a correspondência com um facto.

Assim, quer a verdade, quer a falsidade são relações externas das proposições e das crenças. Podemos crer na verdade ou no falso (ver cap. X11 de PF).

Se não houvesse crenças, diz Russell (ver PF, p. 187) a verdade e a falsidade não poderiam ser admitidas, « o verdadeiro e o falso são propriedades das crenças e das asserções» (PF, p. 187), que são mentais, pois se o mundo fosse só material não teria nem verdades nem falsidades.

84

Page 158: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Diz Russell que «todo o conhecimento de verdades é contaminado de dúvida em certo grau» (PF, p. 206), e que é necessário considerar uma gradação de evidências na aproximação à verdade.

Assim, Russell considera uma gradação contínua no que diz respeito à evidência de si, do mais alto grau até ao mais baixo, mas apenas em relação aos juizos, não em relação aos dados dos sentidos (ver PF, pp. 210-211).

Ouando temos conhecimento de trato de um facto que corresponde a uma verdade, essa verdade é evidente de si (por exemplo, «quando Otelo crê Desdérnona apaixonada por Cássio ... », PF, p.208); há uma outra espécie de evidência de si que diz respeito a juízos e

não deriva da percepção directa de um facto (ver PF, pp.210-21 1).

0 conhecimento, o erro e a opinião provável (ver PF, p.212) são graus de aproximação ao conhecimento certo, que têm na sua base crenças.

A questão da verdade, tal como é abordada por Russell na obra em estudo, através dos diversos graus de evidência, revela diferentes modos de aproximação ao real, nesta tarefa que é a da filosofia de conferir unidade e organização aos conhecimentos, na busca de um conhecimento certo.

TAREFAS

1 Comente o texto de Davidson que se segue, retirando dele urna concepção de crença.

«As crenças só são ídentificadas e descritas no interior de um padrão compacto de crenças. Eu posso acreditar que uma nuvem está a passar diante do sol, mas apenas porque acredito que existe um sol, que as nuvens são feitas de vapor de água, que a água pode existir em forma líquida ou gasosa; e assim por diante, ilimitadamente.

Nenhuma lista particular de crenças adicionais é exigida para dar substância à minha crença de que uma nuvem está a passar diante do sol; mas

tem de haver aí um certo conjunto apropriado de crenças relacionadas. Se eu

suponho que uma outra pessoa acredita que uma nuvem está a passar diante do sol, então suponho que ela tem o género de padrão de crenças correcto para suportar tal crença; e, para realizarem o seu trabalho de suporte, essas

crenças têm que ser suficientemente semelhantes às minhas crenças para justificar a descrição da crença da pessoa em questão como sendo uma crença de que uma nuvem está a passar diante do sol.»

Page 159: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Donald Davidson - «0 método da verdade em metafísica» in Existência e Lik@uagem - Ensaios de Metafisica Analítica,

Lisboa, ed. Presença, 1990, pp. 120

85

Page 160: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

2. Confronte a concepção de crença do texto de Davidson com a que retirou da leitura da obra de Russell Os Problemas da Filosofia.

3. Elabore um pequeno resumo dos problemas fundamentais referidos por Russell nos caps. XII

e XIII de Os Problemas da Filosofia.

4. Inventarie as questões que Russell relaciona com o problema da verdade nos caps. XII,

XII e XIV de Os Problemas da Filosofia.

5. Elabore um esquema conceptual para a crença na obra Os Problemas (Ia Filosofia.

6. Trace um diagrama para a concepção de verdade em Os Problemas da Filosofia.

7. Comente o excerto de Tarski a propósito da concepção de verdade, tendo em conta a con-

cepção apresentada por Russell:

«0 predicado verdadeiro é, às vezes, utilizado para referir fenómenos psicológicos, tais como juízos ou crenças, outras vezes, para referir certos objectos físicos, designadamente certas expressões linguísticas e em especial frases, e outras vezes para referir ainda certas entidades ideias chamadas ‘proposições’. ( ...)

A verdade de uma frase consiste na sua concordância com a realidade (ou correspondência com a realidade).»

Alfred ]àrski - «A concepção semática da verdade e os fundamentos da @cinârnica» in Exisiência e Linguageni- Ensaios de Vctafísica Analítica, Lisboa, ed. Presença, 1990, pp. 76-77

8. Distinga verdade, erro, certeza e probabilidade em Os Problevias (Ia Filosofia.

9. Confronte as proposições de Wittgenstein retiradas de Da certeza (On Certaility) corri a

concepção de certeza apresentada por Russell nos caps. XII e XIII de Os Problemas (Ia Filosofia:

§ 194 -«Pelo termo ‘certeza’ exprimimos a convicção total, a ausência da menor dúvida e procuramos assim convencer os outros. Isto é a certeza subjectiva.

Page 161: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Mas quando é que há certeza objectiva? Quando não é possível um erro. (...)»;

§ 210 - «A minha conversa telefónica com Nova lorque reforça a

minha convicção de que a Terra existe?

Há muitas coisas que nos parecem solidamente fixas e que desaparecem da circulação. )»Ludwig Wittgensteiii - On Certaint’@; Oxford,

Brasil BlacW ell, 1969, §§ 194 e 2 10.

Page 162: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

10. Confronte as proposições transcritas, retiradas do Tractatus de Wittgenstein, corri a con-

cepção ontológica de Russell:

§ 1 «0 mundo é tudo o que acontece.» § 1.1. «0 mundo é o conjunto dos factos, não das coisas.» § 1.13. «Os factos no espaço lógico constituerri o mundo.»

Ludwig Wittgenstein - Tractatus Logico Philosophicus,

London, Routledge Kegan Paul, 1961, §§ 1,1.1. e 1.13

11. Leia atentamente as considerações apresentadas por Putriam a propósito da verdade no

texto que se segue e confronte-as com as referidas por Russell sobre o mesmo tema:

«Muitos filósofos, talvez a maioria, defendem hoje uma outra versão da teoria da verdade como ‘cópia’, a concepção segundo a qual um enunciado é verdadeiro apenas no caso de ‘corresponder aos factos (independentemente da mente)’ e os filósofos desta fracção vêem como única alternativa a negação da objectividade da verdade e uma capitulação à ideia de que todos os

esquemas de pensamento e todos os pontos de vista são irremediavelmente subjectivos.»

Hilary Putnam - Razão, Verdade e História, Lisboa,

Dom Quixote, 1992, p. 16

87

Page 163: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Filósofos referidos por Russell em Os Problemas da Filosofia:

George Berkeley - caps. 1, 111, IV, VII, IX

Francis H. Bradley - cap. IX

George Cantor - cap. XIV

Renê Descartes - caps. 11, VII

Bento Espinosa - cap. IX

David Hume - caps. VII, VIII, IX

1. Kant - caps. VII, VIII, IX

WG. Leibniz - caps. 1, 111, VII

John Locke - cap. VII Platáo - cap. IX

Page 164: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

GLOSSARIO

Analítico - Aplicado a juizo, implica uma determinada relação entre os termos constitutivos do mesmo. Num juízo analítico, o predicado está contido no sujeito, nada lhe acrescentando (ex.: Manuel é um indivíduo do sexo masculino). Os enunciados analíticos são válidos a priori, sem que haja necessidade de recorrer à experiência.

Apriorismo - No que respeita ao conhecimento, o apriorismo sustenta que este se constrói independentemente da experiência, prescindilido dela. Genericamente, o termo utiliza-se para designar toda a realidade não sensível à qual acedemos pela razão.

BERKELEY, George (1685-1753) - Filósofo irlandês, bispo anglicano de Cloyne, autor de obras como Treatise on the Principles of Human Know1edge, 1710; Three Dialogues Betiveen Hylas and Phylonous, 1713; Alciphron or the Minute Philosopher; etc.

A fórmula que melhor representa a sua filosofia é a célebre «Esse est percipi» (ser é ser percepcionado), por exemplificar o seu idealismo subjectivo. A realidade do mundo é reduzida à percepção que dele temos. A matéria é negada e Deus é chamado como recurso para demonstrar a permanência da realidade, na medida em que a percepciona e como tal lhe garante o ser.

BRADLEY, Francis Herbert (1846-1924) - Filósofo inglês, autor de obras como Ethical Studies, 1877; The Principles of Logic, 1833; Appearance and Reality, 1893; Essays ou Truth and Reality; etc. Representante do idealismo inglês, é defensor de uma ética concreta, na qual a sociedade influencia o indivíduo. Critica a tradiçã o silogística, bem como a lógica indutivista de Stuart Mifi. Propõe uma teoria dos «graus de verdad-,», sustentando que o real se estratifica a vários níveis, desde o real físico até à mente humana.

CANTOR, Georg (1845-1918) - Matemático alemão de origem russa. Deu um contributo importante aos fundamentos da análise matemática, bem como à teoria dos números cardinais e números ordinais transfinitos.

CARNAP, Rudolf (1891-1970) - Filósofo austríaco, autor de uma vasta bibliografia, da qual destacamos: Der logistiche Aujbau der Welt, 1928; Logische Syntax der Sprache, 1934; Meaning and Necessity, 1947; The Continuum of Inductive Methods, 1952. Foi um dos representantes mais significativos do Círculo de Viena e do empirismo científico. Interessou-se pela criação de linguagens rigorosas aplicáveis a todas as ciências empíricas.

Page 165: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Contribuiu para a criação de uma sintaxe lógica e para o desenvolvimento da semântica. Trabalhou um conceito muito próprio de lógica dedutiva.

Ceptisnio - Forma de pensamento que afirma a Impossibilidade de um conhecimento absolutamente certo e completo pelo homem. A origem do termo remonta à Grécia Antiga e a filósofos como Pirro - razão pela qual o cepticismo também é designado por ‘pirronismo’ -, que afirmavam que «a toda a razão se opõe uma razão de igual força», pelo que, na impossibilidade de conhecer a verdadeira natureza das coisas, suspendiam o juizo em todas as matérias, procurando alcançar a felicidade imperturbável (ataraxia).

Dedução - Inferência (raciocínio) que consiste em fazer ilações a partir de determinadas proposições (antecedentes), chegando a uma conclusão que delas deriva necessariamente. Pode ser imediata ou mediata, distinguindo-se nesta última forma a dedução silogística e a matemática.

DESCARTES, Renê (1596-1650) - Filósofo racionalista francês, criador da geometria analítica. É autor de muitas obras, entre as quais destacamos: Discurso do Método, Meditações Metafisicas, Principia Philosophiae, etc. Representativo da modernidade seiscentista, defende unia dúvida metódica que permitirá alcançar a certeza, tomando como critério a evidência, ou seja, as ideias claras e distintas. Partindo de uma delas, a existência do eu como ser pensante, vai sobre este príncipio construir um sistema de verdades progressivamente conquistadas.

Empirismo - Corrente filosófica que valoriza a experiência (do grego empeiria) no que respeita à obtenção do conhecimento. 0 apogeu do empirismo situa-se entre os filósofos de língua inglesa, nos séculos XVII e XVIII, embora encontremos teses empiristas em filosofias anteriores. No século XX, o empirismo continuou a dar frutos nos filósofos do Círculo de Viena que sustentam um empirismo lógico, debruçando-se essencialmente sobre problemas da ciência, da linguagem científica e da linguagem em geral.

Empirísmo lógico - Ou positivismo lógico, ou empirismo científico, é o nome dado às ideias desenvolvidas pelo Círculo de Viena, movimento filosófico fundado por Moritz Schlick em 1924 e terminando em 1936, aquando da sua morte. Este movimento reuniu filósofos, cientistas, matemáticos e linguistas. 0 movimento foi influenciado pelo antigo empirismo de Hume e de MilI, pela metodologia das ciências empíricas, pela análise lógica da linguagem e pelas matemáticas. Muitos dos membros deste niovimento preferem a designação ‘empirismo lógico’, evidenciando, assim, a sua afinidade

com os empiristas clássicos.

ESPINOSA, Baruch ou Bento (1632-1677) - Filósofo holandês de origem judaico-portuguesa. Autor de obras como Da Refonna do Entendimento, Etica, Tratado Teológico-Político e Tratado Político. Defende um racionalismo monista, no qual

Page 166: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

tudo quanto existe se reduz à Substância ou Deus e aos seus modos

Page 167: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

ou modificações. Concretizou o ideal maternafizante do século XVII escrevendo a sua obra principal, a Etica, «more geometrico» (à maneira dos geórnetras).

HEGEL, Georg Wilheim Fríedrich - nasceu em Estugarda em 1770 e morreu em Berlim em 1831. Após ter estudado Teologia e Filosofia na universidade de Tubinga, foi, durante alguns anos, perceptor e exerceu, em leria, o cargo de Privatdozent (docente privado) em Filosofia. Em 1805 foi promovido a professor universitário, cargo que exerceu em leria e, mais tarde, em Heidelberg e Berlim.

Sofreu influências do Romantismo e do Idealismo Transcendental de Karit na sua filosofia, vulgarmente designada por Idealismo Absoluto.

As suas obras principais são: A Fenomenologia do Espírito (1807): Ciência da Lógica (1812-1816): Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817) e Princípios da Filosofia do Direito (1820).

Após a sua morte foram publicadas, a partir de notas dos seus estudantes, as suas lições sobre filosofia da religião, história da filosofia, filsofia da história e estética.

HUME, David - nasceu em 1711 em Edimburgo e morreu, na mesma cidade, em 1776.

Sucessor filosófico de John Locke, e de George Berkeley, Hume pode ser considerado como o filósofo que desenvolveu até às últimas consequências o empirismo inglês. Considera que a origem do conhecimento se encontra nas impressões da sensação e na reflexão.

Apresentou alguns princípios cépticos na sua filosofia do conhecimento, que também se manifestaram na sua filosofia moral. Grande crítico do conhecimento, substitui o princípio de causalidade pelo hábito.

As suas obras fundamentais são: A Treatise of Human Nature (1739-1740): Inquiry Conceming Human Understanding (175 1): Dialogues on Natural Religíon (1779).

Idealismo - Tendência filosófica que toma como ponto de partida da reflexão filosófica o eu, o sujeito ou a consciência, e não o mundo externo, atribuindo à ideia um papel privilegiado quer na interpretação quer na constituição do real. No que respeita ao conhecimento, o idealismo sustenta que este se processa a partir de representações ou ideias; relativamente à natureza das coisas, defende que a realidade se define pelas ideias ou representações que dela temos, conduzindo, assim, toda a existência ao pensamento. Esta corrente filosófica distingue-se do materialismo e do realismo ontológico, o qual admite que a existência é independente do pensamento. 0 termo surgiu em finais do século XVII para designar a teoria das ideias arquetípicas de Platão.

Page 168: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Iniaterialismo - Doutrina filosófica que leva o idealismo ao seu extremo, negando a existência da matéria e defendendo que a realidade é constituída por ideias (v. Berkeley, para quem as coisas são «colecções de ideias»).

Indução - No sentido mais usual, refere-se à operação mental que consiste em remontar de um certo número de proposições dadas a uma proposição ou a um pequeno número de proposições. E um género de inferência que tenta alcançar uma conclusão relativa a todos os membros de uma classe a partir da observação de apenas alguns deles: por exemplo, da observação várias vezes repetida de cisnes brancos, inferir que todos os cisnes são brancos.

KANT, Immanuei - nasceu em 1724 em Kõnigsberg e morreu em1804 na mesma cidade.

A filosofia de Karit, o idealismo transcendental ou filosofia crítica, cujas raízes remontam ao Ilurílinismo, caracteriza-se pela procura de um método e de uma teoria que abalassem a metafisica racionalista dos séculos XVII e XVIII. Tenta, assim, encontrar um método que estabeleça com segurança os limites e o uso da razão.

A sua primeira obra célebre é a Dissertação de 70, onde anuncia uma proposta que iria revolucionar a filosofia: o método crítico, o idealismo transcendental. Segue-se-lhe um intervalo de dez anos, após o qual publica as suas obras fundamentais:

Critica da Razão Pura (1781); Prolegónienos a toda a metafisica futura que possa apresentar-se como ciência (1783); Crítica da Razão Prática (1788); Crítica da Faculdade de Julgar (Crítica do Juízo) (1789-1793); Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Escreveu outras obras e pequenos artigos e ensaios sobre vários temas, onde apresenta as suas concepções de história e de sociedade ideal, como é o caso de A Paz Perpétua (1795-1796), ou dos textos sobre educação.

LEMNIZ, Gottfried WilheIm - Filósofo alemão, nasceu em Leipzig em 1646 e morreu em 1716.

Espírito universal, Leibníz manifestou sempre o desejo de alcançar a harmonia e a unificação, quer a nível político e social, quer a nível científico. Chegou mesmo a apresentar o projecto de uma língua universal e a sonhar com uma ciência, também ela universal.

As suas obras principais são: De arte combinatoria (1666): Discurso de Metafisica (1686); Novo sistema da natureza (1695); Novos ensaios sobre o entendimento humano (1701-1704); Teodiceia (1710); Monadologia (1714); Princípios da natureza e da graça (1719). Deixou uma vasta correspondência com figuras importantes (nas áreas da filosofia, da política e das ciências) da sua época.

Page 169: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

Concebeu a realidade como um mundo monadológico, pleno, onde tudo está relacionado com tudo.

Page 170: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

LOCKE, John (1623-1704) - Filósofo inglês com interesses na teoria do conhecimento, na política, na economia e na religião. É representante da corrente empirista, contrariando as ideias inatas de Descartes e Espinosa. Defende a mente como uma «tábua rasa» na qual se vão inscrevendo conteúdos, a partir da experiência sensível. Como obras principais destacamos: Two Treatises on Govemment,1689; Reasonableness in Christianity, 1695; An Essay on Human Understanding,1690.

Materialismo - Teoria que, em oposição ao idealismo, afirma que só a matéria existe ou é real e que é o constituinte primordial e fundamental do universo, a única substância existente.

Monadismo - Ou monadologia, é uma teoria muito ligada à filosofia de Leibniz, a qual considera que o universo é composto por unidades elementares - as móriadas - identificadas com as almas ou indivíduos metafisicos. 0 monadismo encontra-se em muitos filósofos, desde Pitágoras a Platão. A móriada não é divisível, nem possui extensão ou forma.

Monismo - No sentido metafísico, é a teoria que afirma a existência de uma única realidade fundamental. Foi Wolff quem utilizou pela primeira vez o termo. Também se designa, frequentes vezes, por singularismo.

No sentido gnosiológico, é a teoria que considera que o objecto real e a percepção deste são um só na relaçã o de conhecimento.

Monismo neutra[ - Doutrina que não considera nem o espírito nem a matéria como fundamento. Reduz o mental e o físico a relações entre entidades neutrais (entidades que, em si mesmas, não são nem mentais, nem físicas).

Russell defendeu este tipo de monismo durante um certo período de tempo, para cedo o abandonar e se voltar para o atomismo lógico.

MOORE, George Hward - filósofo inglês, professor na Universidade de Cambridge, nasceu em 1873 e morreu em 1958.

Foi um dos mais notáveis filósofos realistas, grande crítico da tradição idealista em metafísica, em ética e em gnosiologia. Foi um marco na filosofia contemporânea, sobretudo na filosofia de expressão anglo-saxónica.

As suas obras mais conhecidas são: Principia Ethica e Philosophical Studies.

Nominalismo - Doutrina que ataca o realismo das ideias gerais ou ‘universais’, considerando-as como meras palavras desprovidas de realidade. Assim, é absurdo considerar a existência do triângulo, pois apenas existem triângulos particulares.

Page 171: OS PROBLEMAS DA FILOSOFIA - Visionvox · Web viewFicou conhecida por ‘positivismo lógico’ ou ‘empirismo lógico’ e encontra-se ligada ao Círculo de Viena, movimento intelectual

PLATÃO - Foi um dos maiores filósofos gregos. Nasceu em Atenas em 428 a.C. e morreu em 348 a.C. Foi discípulo de Sócrates e fundou em Atenas uma escola, a Academia.

Escreveu várias obras, a r,,ãior parte delas em diálogo, das quais se destacam:

* do primeiro período (período da juventude) -Ion, Cárinides, Hípias

Maior, Hípias Menor, Laques, Lísis, Eutifron, Eutidemo, Górgias, Protágoras, Ménon, Apologia de Sócrates, Criton, Fédon, Menexeno;* do segundo período (período da maturidade) - Banquete, Fedro,

República, Teeteto, Crátilo;* do último período (período da velhice) - Timeu, Critias, 0 Sofista, 0

Político, Filebo, Parménides, As Leis, Epinomis.

Racionalismo - Teoria que, do ponto de vista da origem do conhecimento, se opõe ao empirismo. Encontra na razão a origem dos conhecimentos certos e verdadeiros, dos princípios a priori e evidentes.

Sintético - Em sentido geral, designa aquilo que resulta de uma síntese. Em lógica, refere-se ao método geral de dedução. Diz-se dos juízos relativos a um conceito que é o sujeito com um conceito e que não está incluído nesse mesmo sujeito. Nos juízos sintéticos e ao contrário do que sucede com os juizos analíticos, o predicado acrescenta algo ao sujeito e não se retira deste. Os juízos sintéticos podem ser a priori (são os juízos científicos) ou a posteriori, dependentes da experiência.

Substância - Aquilo que faz que uma coisa seja aquilo que é e a distingue de todas as outras coisas. Para Aristóteles, a substância é a ‘quiditas’, opondo-se a acidente (aquilo que não acontece nem sempre, nem necessariamente). Substância é o que de permanente existe nas coisas que mudam.

Universais - Na linha de Platão, que é aquela em que Russell utiliza o termo, significa ideias, aquilo que se diz (ou predica) de um conjunto de particulares. É aquilo que expressa um termo geral.