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Os princípios da antropologia teatral de Eugenio Barba na construção da personagem e a utilização da metodologia do alvo de Declan Donnellan na montagem: Rojas Rosas . Camila Rodrigues Vaz Chaves Orientador: Fernando Mencarelli RESUMO Partindo da concepção do espetáculo Rojas Rosas, o presente artigo visa apresentar como os conceitos da antropologia teatral de Eugenio Barba podem auxiliar na criação do personagem, e como esta prática facilita a concepção da cena dramática baseada na metodologia do “Alvo” de Declan Donnellan, permitindo encontrar reações particulares das personagens e estéticas que fujam do realismo. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia teatral. Metodologia do alvo. Declan Donnellan. Personagem. Este artigo pretende abordar como o trabalho prático a partir dos conceitos da antropologia teatral de Eugenio Barba pode ser utilizado como auxiliar na metodologia do “alvo” de Declan Donnellan através da construção de personagem. E para explicar como essa correlação pode se dar utilizarei como exemplo o processo de criação do espetáculo Rojas Rosas, baseado na obra Misterio del ramo de rosas de Manuel Puig, em que participei como atriz juntamente com Camila Flávio, sob a direção de Adélia Carvalho.

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Os princípios da antropologia teatral de Eugenio Barba na

construção da personagem e a utilização da metodologia do

alvo de Declan Donnellan na montagem: Rojas Rosas.

Camila Rodrigues Vaz Chaves

Orientador: Fernando Mencarelli

RESUMO

Partindo da concepção do espetáculo Rojas Rosas, o presente artigo visa apresentar

como os conceitos da antropologia teatral de Eugenio Barba podem auxiliar na criação

do personagem, e como esta prática facilita a concepção da cena dramática baseada na

metodologia do “Alvo” de Declan Donnellan, permitindo encontrar reações particulares

das personagens e estéticas que fujam do realismo.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia teatral. Metodologia do alvo. Declan Donnellan.

Personagem.

Este artigo pretende abordar como o trabalho prático a partir dos conceitos da

antropologia teatral de Eugenio Barba pode ser utilizado como auxiliar na metodologia

do “alvo” de Declan Donnellan através da construção de personagem. E para explicar

como essa correlação pode se dar utilizarei como exemplo o processo de criação do

espetáculo Rojas Rosas, baseado na obra Misterio del ramo de rosas de Manuel Puig,

em que participei como atriz juntamente com Camila Flávio, sob a direção de Adélia

Carvalho.

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2  

 

Sendo assim, introduzirei explicando a metodologia do alvo e a antropologia teatral

através da experiência prática que obtive com cada uma dessas pesquisas, experiências

essas que serviram como processo de preparação e investigação para a elaboração do

espetáculo que teve como proposta a correlação de ambas teorias.

1. A metodologia do “alvo” de Declan Donnellan.

Participei junto à atriz Camila Flávio, minha companheira de cena do espetáculo Rojas

Rosas, do Estúdio Fisções, projeto de pesquisa orientado pelo professor Luiz Otávio

Carvalho, que teve como objetivo formar artistas cênicos através do estudo da ação

física utilizando a metodologia do “Alvo” proposta por Declan Donnelan. Tomando por

base a conceituação de Bonfitto:

Reconheço, como primeira característica fundamental, o fato da ação física ter sido considerada e nomeada inúmeras vezes por Stanislavski como uma ação psico-física. Ou seja, no processo de sua execução as ações devem desencadear processos interiores, agindo dessa forma quase como “iscas”. (BONFITO, 2009, p.25)

Dessa maneira, observando a necessidade das ações em cena desencadearem processos

interiores para a formação das ações físicas, utilizamos o conceito de alvo para alcançar

esse objetivo. O “alvo” foi criado por Donnellan para que o ator não se sinta bloqueado

em cena pensando no que deve fazer ou saber, mas sim agindo a partir de algo externo a

ele, o que seria o “alvo”, e assim, através da prática física, o ator é capaz de desencadear

processos interiores.

“Não sei o que estou fazendo”. Este é o mantra de todo ator bloqueado, e é uma armadilha pela qual qualquer um pode escorregar. [...] A estrutura da oração é importante. A palavra “eu” se repete. [...] Mas esta queixa, em aparência razoável, tem ignorado completamente algo crucial. [...]A atenção que deveria ir a nosso “algo”, se transforma em pessoal, se reverte no “eu”. [...] Resulta crucial comprovar que as demandas do “saber” e do “eu” não podem ser resolvidas se não tratamos antes com o inominado. Assim, começaremos com esse “algo” tão abandonado que nem sequer tem

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ainda um nome. A esse inominável o batizarei O ALVO. [...]Devemos enfrentarmo-nos com o alvo antes de fazê-lo com o “eu” ou com o “saber”. (DONNELLAN, 2007, p.22 e 23)1

Para compreender melhor a teoria do alvo, pode ser lido neste artigo o Anexo 1, que é

um trecho do relatório final da Iniciação Científica que realizei, vinculada ao Estúdio

Fisções, em que apresento um pouco mais a teoria.

Através dessa experiência, descobrimos como a metodologia do “alvo” permite gerar

confiança no ator, já que tem como objetivo desbloqueá-lo. E como também objetiva

limpar o desnecessário na cena, possibilita criar partituras claras para o espectador.

Conscientes dessas vantagens é que escolhemos essa metodologia para compor as cenas

do espetáculo Rojas Rosas, que como dito anteriormente, servirá de guia para o

esclarecimento das teorias deste artigo e também como exemplo prático de uma maneira

de criar a partir delas.

2. A antropologia teatral de Eugenio Barba

A escolha de Barba para a elaboração do espetáculo se deu pela experiência de ambas as

atrizes participarem da matéria Atuação Cênica C, que foi ministrada pela professora – e

diretora do citado espetáculo – Adélia Carvalho, em que experimentamos, através de

diversos exercícios, os “princípios-que-retornam”, que são: o cotidiano e o

extracotidiano, o equilíbrio em ação, a dança das oposições, a incoerência coerente e

virtude da omissão, a equivalência, e um corpo decidido. Todos estes termos são

chamados por Barba de “bons conselhos” aos atores, ao concluir sua pesquisa na

antropologia teatral:

Vários atores e dançarinos, de lugares e épocas distintas e independentemente das formas estilísticas de suas próprias tradições,

                                                                                                                         

1Tradução da autora do original: “No sé lo que estoy haciendo”. Éste es el mantra de todo actor bloqueado, y abre una trampa por la que cualquiera puede resbalarse. […] La estructura de la oración es importante. La palabra “Yo” se repite. […] Pero esta queja, en apariencia razonable, ha ignorado completamente algo crucial. […] La atención que se debía a nuestro “algo”, su cuota personal, ha

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compartilham princípios semelhantes. A primeira tarefa da antropologia teatral é rastrear esses princípios-que-retornam. Os princípios que retornam não provam a existência de uma “ciência do teatro” ou de algumas leis universais. São apenas “conselhos particularmente bons”, indicações que têm uma grande chance de se tornarem úteis para a prática cênica” (BARBA, 2012a, p.14).

Assim, ao longo da matéria Atuação Cênica C, trabalhamos os princípios-que-retornam

da seguinte maneira: experienciamos formas de andarmos e agirmos em cena

extracotidianamente, diferente da maneira como agimos em nosso dia-a-dia que é

influenciada por nossa cultura; fizemos também um treinamento diário, o que

proporcionou certo domínio técnico em nossos corpos; trabalhamos as possibilidades

individuais de como alterar o equilíbrio no jogo cênico, este “equilíbrio de luxo” exige

alto custo de energia e também nos permite atingir o corpo extracotidiano e dilatar a

presença cênica.

Ainda para dilatar a presença, buscamos maneiras de gerar tensões entre forças

contrapostas, trabalhando, por exemplo, a pressa interna, porém revelada em um corpo

que precisa agir de maneira tranquila. Ou o oposto, o corpo que possui agilidade, mas

que não carrega nenhuma necessidade de pressa ou tensão. Experimentamos também o

conceito de “sats”, que é a suspensão da energia:

No comportamento físico, a passagem da intenção à ação constitui um típico exemplo de diferença de potencial. No instante que precede a ação, quando toda a força necessária se encontra pronta para ser liberada no espaço, mas como que suspensa e ainda presa ao punho, o ator experimenta a sua energia na forma de sats, preparação dinâmica. O sats é o momento no qual a ação é pensada-executada por todo o organismo, que reage com tensões também na imobilidade. Existe um empenho muscular, nervoso e mental já dirigido a um objetivo. É a extensão ou retratação da qual brota a ação. (BARBA, 2012b, p.79)

O sats, que é o impulso e o contra-impulso juntos, mesmo que ainda não trabalhado

dentro do jogo cênico, que é seu principal objetivo, foi uma preparação, uma

experimentação para estarmos desenvoltas diante da possibilidade de trabalhar

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oposições em cena e dilatar a presença cênica. Experimentar variações rítmicas também

fez parte do processo, que propicia domínio corporal e retenção de energia, facilitando a

criação de corpos diferenciados. E para trabalhar o corpo-decidido, afim de alcançar

ações precisas – porque o corpo já decidiu realizá-las –, treinamos a intenção e o

impulso.

Todo este processo possibilitou uma formação atoral que nos permitiu acessar corpos e

energias diferenciados com fluidez. E que foi fundamental como preparação pré-

expressiva das atrizes, sendo a pré-expressividade conceituada por Barba da seguinte

maneira:

O conceito de pré-expressividade pode parecer absurdo ou paradoxal, já que não leva em consideração as intenções do ator, seus sentimentos, sua identificação com o personagem, suas emoções, ou seja, toda a psicotécnica [...] A psicotécnica leva o ator a querer expressar, mas o “querer expressar” não determina o que ele tem que fazer. Na verdade, a expressão do ator deriva – ainda que apesar dele mesmo – das suas ações, do modo como ele usa a sua presença física. É o fazer e o como é feito que determina o que a pessoa expressa. De acordo com a “lógica do resultado”, o espectador vê um ator que expressa sentimentos, ideias, pensamentos e ações, ou seja, o espectador vê a manifestação de uma intenção e de um significado. Essa expressão é apresentada aos espectadores em sua totalidade: então ele é levado a identificar o que o ator está expressando com o como ele expressa. Naturalmente é possível analisar o trabalho do ator a partir dessa lógica. No entanto ela leva a uma avaliação geral que muitas vezes não facilita a compreensão de como aquele trabalho foi realizado no nível técnico, ou seja, através do uso do corpo e da sua fisiologia. A compreensão do como pertence a uma lógica complementar à lógica do resultado: a lógica do processo. (BARBA, 2012a, p.227)

A lógica do processo proposta pela antropologia teatral é proporcionar a dilatação da

energia do ator, possibilitar a ele ser uma presença em cena, este é o maior foco da pré-

expressividade. E todo esse trabalho pré-expressivo vivenciado ao longo da matéria

Atuação Cênica C teve forte influencia na utilização dos conceitos da antropologia

teatral de Barba no resultado expressivo, como será apresentado neste artigo.

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3. A importância dessas experiências para a montagem Rojas

Rosas

Observamos no Estúdio Fisções que a pesquisa de Declan Donnellan segue a linha de

estudos de Konstantín Stanislavski, já que Stanislavski propõe o trabalho do ator a partir

das tarefas que o texto dramatúrgico apresenta. E Donnellan também, pois baseia a

reação no contexto em que está inserida a situação, e em seus exemplos as situações

surgem a partir da dramaturgia.

Como a construção do espetáculo Rojas Rosas foi proposta a partir de um texto

dramático, nos propusemos a trabalhar a utilização do texto tal qual esses criadores-

pensadores: observando as situações propostas na peça e separando as subunidades que

a compõe, pois objetivávamos criar a cena de maneira clara e coerente com o texto

através da metodologia do “Alvo”.

Este é um rico trabalho para nos aprofundarmos no contexto, criarmos com coerência, e

para descobrirmos cada vez mais as minúcias do texto. Porém, como experienciamos os

conceitos da antropologia teatral de Eugenio Barba depois de um ano em que já

estávamos integrando o Fisções, observei após essa experiência que o domínio dos

“princípios-que-retornam”e o trabalho com eles - principalmente em relação ao que se

nomeia “cotidiano e extracotidiano”, que nos incitava a agir de maneira diferente da

habitual - me permitia fugir do óbvio durante a criação da personagem. E, como

consequência, me auxiliava a alcançar o artístico/artificial2, o que não ocorria com

facilidade ao construir cenas sem o trabalho pré-expressivo como no primeiro ano do

Estúdio Fisções, já que tínhamos somente como influência, ou matriz geradora, o texto

dramático.

Considerando que a dramaturgia utilizada apresentava personagens com distúrbios e,

como consequência disso, propunha diversas alucinações, pretendíamos criar cenas que

                                                                                                                         

2 Utilizo aqui o termo: “artístico/artificial” como oposto de cotidiano ou habitual. Como no seguinte trecho de Eugenio Barba: “...As técnicas extracotidianas tendem à informação: literalmente põem-em-forma o corpo, tornando-o artístico/artifical, porém crível.” (BARBA, 2012, p.30).

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fugissem do cotidiano, alcançando o artístico/artificial, e personagens que fossem

complexas e permitissem diversas leituras sobre sua maneira de ser, agir e pensar.

Dessa forma, apostamos para a concepção do espetáculo na utilização das duas

referências: os conceitos da antropologia teatral de Eugenio Barba para nos auxiliar na

etapa de preparação, que nos deu elementos para criar a personagem fundada na

corporeidade, nos permitindo fugir do cotidiano; mas também a metodologia do “Alvo”

de Declan Donnellan, para trabalhamos o texto e a maneira de reagir a partir dele de

forma coerente.

4. O processo de criação

Iniciamos o processo de criação do espetáculo partindo da antropologia teatral de

Eugenio Barba, mais especificamente de um dos seus conceitos: o treinamento. Assim

como coloca Barba, o treinamento é uma sequência individual de exercícios para serem

repetidos constantemente pelo ator com a finalidade de atingir sua virtuose a partir da

técnica.

[...] é possível construir uma série de exercícios que a pessoa pode aprender e repetir assim como se repetem os vocábulos de uma língua. No começo eles serão repetidos mecanicamente, como os vocábulos de uma língua estrangeira que se deseja aprender. Em seguida serão absorvidos, começarão a “aparecer por si só”. Aí então o ator terá que escolher. Ele pode fazer pouquíssimos exercícios. Os exercícios podem ser repetidos não só em ordem diferente, mas também podem ser feitos com um ritmo diferente, em direções diferentes, de forma introvertida ou extrovertida, acentuando uma fase do exercício ou outra.[...]Com os exercícios de treinamento, o ator coloca à prova a sua capacidade de alcançar uma condição de presença total, a mesma condição que terá que reencontrar no momento criativo na improvisação e do espetáculo. (BARBA, 2012a, p.290).

A escolha pelo uso do treinamento individual se deu não só com o intuito de atingir a

presença “total” e uma certa virtuose, mas principalmente pelo objetivo de utilizá-lo

como base para a criação das nossas personagens, como será apresentado adiante.

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4.1 Do treinamento individual à criação da personagem

Criamos um treinamento individual que foi repetido diariamente como forma de

aquecimento corporal para todos os dias de ensaio. E sua construção se deu da seguinte

maneira: escolhemos utilizar seis movimentos de oito tempos, que juntos formaram uma

sequência de 48 tempos que trabalhavam conceitos fundamentais para os princípios-

que-retornam: equilíbrio, força, resistência, direção espacial, agilidade, ritmo, atenção e

planos (alto, médio e baixo).

Mas como tínhamos o objetivo de que o treinamento servisse de base para a construção

das personagens, a criação dos movimentos da sequência se deu pela escolha de cada

atriz de seis verbos utilizados por suas personagens ao longo da peça, cada verbo

correspondendo a um movimento da sequência.

A utilização dos verbos do texto na sequência física nos auxiliou a conectar, identificar

e pensar na personagem, já que eram verbos usados com frequência por ela ao longo de

toda a dramaturgia. Porém, como nos propusemos a criar partindo dos conceitos

fundamentais dos princípios-que-retornam, os movimentos da sequência, por mais

ligados que estivessem aos verbos e a maneira como apareciam e se repetiam no texto,

foram elaborados de forma que fugissem do ilustrativo. Esta fuga foi interessante para a

sequência porque sua intenção era explorar ao máximo as possibilidades corporais, visto

que o treinamento serviria como base de desenvolvimento e repertório para a criação de

todos os movimentos da personagem, e também foi o aquecimento cotidiano para os

ensaios.

A personagem principal que represento na peça se chama Délia. É uma enfermeira

marcada por diversos fracassos, e, por exemplo, sente muita vergonha de não possuir

bons modos para comer em uma mesa. Dessa forma, escolhi como os verbos que mais

se repetiam ou marcavam suas ações ou características: comer, servir, queixar-se,

contestar, cuidar e acompanhar. Assim, criei movimentos diversos que me remetiam a

esses verbos, mas sempre influenciada pela peça. Então percebi como a sequência já

demarcava a construção de minha personagem: os movimentos criados me cansavam e

me causavam fadiga, mas não eram muito grandiosos, pois tinham a característica de

trabalhar a contenção. E a contenção marcou a personagem em toda a elaboração

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cênica, pois não permitia reações grandiosas. Na maioria das vezes pedia contenção, o

que marca principalmente a maneira dela agir em sua profissão de enfermeira: paciente

e ardilosa, para conseguir com pequenas ações atingir grandes resultados. O que faz

com que as ações pequenas sejam grandes e cansativas porque são bem calculadas.

Como a diretora do espetáculo possui uma pesquisa de criação a partir dos orixás para

atingir princípios orgânicos do trabalho do ator, incorporamos a sua pesquisa ao

processo de criação do treinamento individual, com o intuito de explorar ainda mais as

personagens. O que se deu da seguinte forma: escolhemos dois orixás, sendo estes os

que mais se relacionassem com a personagem. Então observamos as imagens de cada

um (suas oposições, posição das pernas e dos braços, torções) para criarmos a partir das

imagens dois movimentos, um para cada orixá,e então acrescentarmos esses

movimentos à sequência do treinamento.

Entre os orixás, escolhi Oxossi, pelo jeito ardiloso, ligeireza, astúcia e comodidade, que

marcam a personalidade da personagem Délia. E depois, escolhi Ossâim, porque é o

orixá da medicina e da saúde, que cria ilusão e traz paz, o que reflete a profissão que a

personagem realiza ao longo de toda a peça.

Observei que os movimentos a partir dos orixás foram influenciados mais pelo estudo

das características dos orixás do que pela leitura da peça. E dessa vez, foram

movimentos maiores, com menos contenção. O que foi interessante para minha

sequência. Pois como Délia é uma personagem complexa, ela carrega a contenção mas

nem sempre consegue ser contida, principalmente quando pensa e realiza em seus

pensamentos3 todos os desejos que vela em seu cotidiano. E então esses exercícios me

permitiram encontrar momentos em que a personagem se descontrola e extrapola um

pouco os limites que pretendia, não sendo sempre a personagem contida, sem nenhuma

transformação ao longo da peça.

Ao acrescentarmos os movimentos dos orixás à sequência, a criação do treinamento

individual foi finalizada. Este treinamento foi executado durante todo o semestre de

                                                                                                                         

3  Pensamento aqui se refere a dois momentos da peça em que os pensamentos da personagem Délia são encenados no espetáculo.  

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diversas maneiras: primeiramente oito vezes seguidas em oito tempos; depois cinco

vezes seguidas em oito e quatro tempos, intercalando-os; então em oito, quatro e dois

tempos, também intercalando. Acrescentamos ainda o tempo 1, que era somente o

impulso do movimento; adicionamos também a sequência de 16 tempos ao treinamento;

e por fim fizemos a sequência de oito tempos cantando as músicas que utilizamos na

peça. Essas modificações tiveram como finalidade manter nossa atenção e presença

ativas a cada ensaio, já que o treinamento era complexo de se executar, e ainda com

modificações, era cada vez mais desafiante. A execução dos movimentos em tempos

variados nos permitiu compreender ainda mais os detalhes de cada movimento. E como

utilizaríamos os movimentos da sequência como base de criação da linha de ações da

personagem, como será apresentado adiante, esse processo nos foi extremamente

importante.

Dessa maneira, observo como o início do processo de criação de Rojas Rosas une os

dois referenciais teóricos: utilizamos o conceito de treinamento, baseado em elementos

estruturais para efetivação dos “princípios-que-retornam”, mas mantivemos todo o

tempo como ponto de partida a sequência de movimentos criada com os verbos do

texto, ou seja, a partir da influência dos contextos contidos na cena, tal qual propõe

Donnellan. O que nos permitiu encontrar possibilidades de criação de nossas

personagens: tanto elaborando seu jeito de ser, como possibilitando formas de como

poderia agir em cena.

4.2 A construção da linha de ações da personagem

Começamos a construção do primeiro esboço da peça criando as cenas do texto a partir

dos contextos que a dramaturgia propunha. Porém, para a criação da linha de ações da

personagem ao longo da cena utilizamos somente os movimentos que fazíamos no

treinamento individual, ou seja, cada ação que fazíamos derivou dos movimentos do

treinamento.

A princípio fizemos movimentos grandiosos, pois os realizamos exatamente como eram

na sequência, e depois conseguimos diminuí-los de acordo com o que a cena

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demandava. E em algumas cenas trabalhamos com a utilização de movimentos repetidos

de outras cenas, o que nos permitiu já começarmos a criação com movimentos menores.

E ainda, com o intuito de ganharmos outras possibilidades de movimentação, dividimos

os movimentos da sequência em pequenas partes, o que gerou impulsos diferenciados

para realizá-los e assim, uma diversificação dos movimentos existentes.

Dessa maneira, a construção do primeiro esboço da peça me permitiu ter certo tipo de

movimentação que começou a demarcar os modos, por exemplo, de pegar e andar da

minha personagem. E esses modos me fizeram acessar sua energia. Então, já ao realizar

as primeiras criações, tive a personagem demarcada, e ao longo de toda a construção

cênica pude aprofundar ainda mais, o que facilitou a transformação da linha de ações da

personagem em uma sequência de reações, como será apresentado adiante.

Novamente observo como se uniu a antropologia de Barba com a metodologia de

Donnellan na concepção de Rojas Rosas: a construção da cena se deu a partir do texto

dramático e das situações propostas nele, tal qual fizemos ao longo da experiência com

o Fisções ao seguir a metodologia do “Alvo”; mas as ações da cena partiram de

elementos estruturantes dos “princípios-que-retornam” contidos no treinamento

individual, que são conceitos da antropologia teatral. O que me permitiu encontrar a

personagem com facilidade e ainda trouxe estética diferenciada para as cenas, ao

mesmo tempo em que elaborávamos um esboço concreto que já nos permitia visualizar

a cena pronta.

Ao elaborarmos o esboço de todo o espetáculo, percebemos a transformação das

personagens dentro do que construímos, e começamos assim a criar diversas reações

dentro da partitura. Mas, como um todo, a peça ainda era um esboço para ser trabalhado

dentro da metodologia do alvo.

Para a compreensão da criação de toda a peça, vale ressaltar quatro momentos na

dramaturgia em que há uma mudança do tempo e espaço das cenas, pois acontecem

alucinações ou pensamentos das personagens. O primeiro momento é uma alucinação da

paciente, ela vê e dialoga com sua irmã morta. Assim, nesse momento, a atriz deixa de

ser enfermeira e se transforma na irmã da paciente, enquanto que a paciente se

transforma em si mesma, porém jovem. No terceiro momento, a paciente delira com sua

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filha, então a atriz novamente deixa de ser a enfermeira para se tornar a filha da

paciente. No segundo e no quarto momento, é a enfermeira quem sonha ou imagina que

está com sua mãe, então a outra atriz deixa de ser a paciente para se tornar a mãe, e

somente no segundo, a enfermeira está jovem e não em sua idade atual.

Nas alucinações e pensamentos em que fizemos a personagem em outra circunstância

ou idade, a construção da cena foi simples porque buscamos criar com os mesmos

movimentos do treinamento individual, como feito anteriormente, porém podíamos ser

mais vigorosas porque estávamos mais jovens. Já nos outros dois momentos, criei as

personagens ao longo da improvisação, no momento da elaboração das cenas, visto que

essas personagens aparecem em trechos curtos e dessa forma permitiram uma

construção um pouco menos minuciosa que a da enfermeira. Sendo assim, o processo

foi simples, mas um pouco oscilante, já que ao longo das improvisações houve

alterações até chegar ao ponto que desejávamos.

Assim, a criação dessas personagens é mencionada neste artigo, porém ele se foca em

trabalhar a construção da personagem “enfermeira”, visto que foi a personagem eleita

para ser criada através dos movimentos inventados a partir dos verbos do texto. Dessa

forma, após a construção da personagem enfermeira é que se deu a montagem de sua

partitura de reações, já que objetivei alcançar a personagem para depois criar a

sequência de reações. O que aconteceu de forma diferente no processo de criação das

outras personagens, pois as reações foram criadas junto com a personagem.

4.3 Ação, reação e a montagem a partir da metodologia do alvo

Ao longo da elaboração do primeiro esboço, vários movimentos foram criados como

reação à outra personagem ou a outros alvos, mas não todos, já que diversas vezes

criamos partituras individuais para depois juntarmos na cena. E mesmo quando

juntávamos, apareciam diversas reações, mas a partitura como um todo não era uma

sequência de reações. E foi o processo de transformá-la em uma sequência de reações

que nos proporcionou sairmos do esboço para a cena de fato.

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Como dito anteriormente, após o esboço completo do espetáculo, começamos a

observar a transformação das personagens e isso nos incitou a criar diversas reações.

Após algumas repetições da partitura, também transformamos diversos movimentos em

reações, mas sempre buscando não modificá-los demais, ou no caso de ser necessário,

manter a raiz do movimento (de onde vinha, para qual direção, qual é seu formato–

torção, flexão, extensão). Para então, por fim, repassar toda as cenas pausadamente,

refletindo quais movimentos não eram reações e transformando-os em uma.

Percebi que foi fácil transformar o primeiro esboço em uma sequência de reações, visto

que foi criado a partir do texto e das situações e falas propostas por ele. E ao mesmo

tempo, como foi construído a partir da movimentação do treinamento individual,

ganhou reações específicas da personagem logo no início, pois reagi partindo de

movimentos específicos que se tornaram próprios da personagem e não da atriz. Além

de adquirir estéticas variadas ao longo das circunstâncias que a peça apresenta através

das movimentações que apareceram.

Dessa forma, noto como a construção da personagem e do primeiro esboço da peça,

influenciados tanto pelo contexto quanto pelo treinamento individual, fizeram-se

fundamentais na finalização da construção cênica, com a transformação das ações em

uma sequência de reações. Pois, dessa maneira, a sequência de reações proposta pela

metodologia de Donnellan sofreu forte influência da preparação das atrizes com os

“princípios-que-retornam” de Barba. E assim as reações se fizeram complexas, vindas

das personagens e não das atrizes, o que fez o jogo cênico vivo, criativo e capaz de

atingir o extracotidiano com facilidade.

Conclusão

A antropologia teatral auxilia a criar corpos e energias diferenciados e extracotidianos

enquanto que a metodologia do “Alvo” ajuda na precisão do ator em saber ao que deve

reagir e também na criação de cenas claras e objetivas. Esses benefícios, como mostrado

ao longo de nossa experiência prévia à criação do espetáculo Rojas Rosas, já nos eram

conhecidos, mas o que deu força à essa construção cênica e também à concepção deste

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artigo foi como se mostrou um processo muito produtivo a opção por trabalhar os

conceitos da antropologia teatral de Eugenio Barba relacionado à utilização da

metodologia do Alvo de Declan Donnellan.

Primeiramente observo como a união das duas referências foi fundamental no processo

de construção da personagem. A criação do treinamento individual em relação ao

contexto da peça me permitiu encontrar a personagem enfermeira, alcançar sua energia

e seu corpo, logo às primeiras improvisações para a concepção das cenas. O que me

proporcionou criar a personagem antes do processo de construção da sequência de

reações, sendo assim, quando atingi esta etapa, reagi com movimentos e características

particulares da personagem, enriquecendo, dessa forma, o trabalho cênico.

Observo também que, como a construção do treinamento partiu de fundamentos dos

“princípios-que-retornam”, a personagem atingiu reações estilizadas, que definiram-na e

marcaram a estética da peça. O que auxiliou a construção do artístico/artificial na

criação cênica, tanto da peça, quanto do modo de agir da personagem.

Comparando a enfermeira às outras personagens criadas, que não obtiveram o mesmo

processo de construção, noto como as últimas foram mais difíceis de serem alcançadas e

oscilavam a cada passagem da cena, até encontrarmos o ponto que desejávamos para

sua concepção. Exigiram maior tempo de elaboração, enquanto que a enfermeira foi

criada de forma fluida e logo ao princípio de nossas criações cênicas já apresentava

características físicas e psicológicas, visto que a criação dos movimentos (físicos) da

sequência do treinamento se deram a partir dos verbos que a paciente mais executava,

repetia ou desejava executar (psicológico).

Observei também que muitas vezes que trabalho partindo de uma dramaturgia, crio

minhas primeiras improvisações a partir das falas que esta dramaturgia apresenta, o que

muitas vezes me acarreta ficar presa somente às falas e propondo poucas situações e

reações além das que o texto sugere. E ao longo do processo de Rojas Rosas, mesmo

criando sempre partindo das situações que o texto oferecia, propomos com facilidade

diversas circunstâncias, características para as personagens, disposições de cenário e

modificações de estética. E considerando que havia momentos de alucinação propostos

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pela dramaturgia, desejávamos encontrar estéticas diferenciadas ao longo da peça, para

distinguir as alucinações das cenas em que aconteciam no “tempo real”.

Sendo assim, constato que a utilização destas referências juntas foi fundamental para a

concepção e o enriquecimento da peça Rojas Rosas, pois proporcionaram o trabalho

minucioso e complexo que a dramaturgia exigia pelas trocas de ambientação,

personagens e situações que apresenta. E também intensifico a importância dessa

experiência para a formação das atrizes, pois além de proporcionar uma construção

complexa partindo de uma experimentação, abrangeu em nosso repertório de criação

cênica a possibilidade de unir referências diferenciadas para o benefício de um mesmo

processo, como se deu na elaboração deste espetáculo, sem que se tornasse confuso ou

contraposto.

Assim, ressalto como a experiência ao longo da universidade nos proporcionou concluí-

la com um trabalho acadêmico e de experimentação, a partir de desejos, pesquisas e

curiosidades individuais, enriquecendo possibilidades de criação, conhecimento e

experimentação na metodologia do “Alvo” de Declan Donnellan, assim como na

antropologia teatral de Eugenio Barba.

Referências:

• BARBA, Eugenio. A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia teatral. Eugenio Barba, Nicola Sevarese; tradução de Patrícia Furtado de Mendonça. - São Paulo: É Realizações, 2012 a. (A arte do ator) • ________. A canoa de papel – Tratado de antropologia teatral. / Eugenio Barba; tradução de Patrícia Alves Braga. -3ª edição – Brasília: Teatro Caleidoscópios & Editora Dulcina, 2012 b. 240p. • BONFITTO, Matteo. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. São Paulo, Perspectiva, 2009. • CARVALHO, Luiz Otávio. Falar, no teatro dramático, é (re)agir. In Caderno de encenação / publicação do curso de graduação em teatro. – v.1, n.7 (ago. 2008)-. -Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, 2008. • DONNELLAN, Declan. El actor e la diana. Tradução: Ignacio García May, 2ª edição. Editorial Fundamental, Madri, 2007.

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• STANISLAVSKI, Konstantín. El trabajo Del actor sobre sí mismo en el proceso

creador de la vivencia.. Traducción Jorge Saura. Alba Editorial, s.l.u., Barcelona.

Primera edición: abril 2003.

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Anexo 14

Donnellan propõe seis regras para a metodologia do alvo que serão aqui

mostradas e explicadas. E para orientar a compreensão do que é um alvo exemplificarei

as regras através de um quadrinho da turma da Mônica (figura 1):

Figura 1

                                                                                                                         

4 CHAVES, C.R.V. O alvo. In: Relatório final da iniciação científica “Proposta Metodológica com Exercícios Práticos para a Formação de Artistas Cênicos”. 2012. Relatório (Iniciação Científica) – Curso de Graduação em Teatro - Escola de Belas Artes da UFMG, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. Orientador: Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de Souza. Cap.2, p.6-9.

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No quadrinho acima, podemos observar uma sequência de reações: no primeiro quadro,

o Cebolinha chateia e zomba a Mônica, assim o Cebolinha é o primeiro alvo do

quadrinho, pois provoca a Mônica executar a primeira reação, que é a de ir pegar o

Cebolinha. A segunda reação ainda está no primeiro quadro que é a reação do

Cebolinha de correr da Mônica, assim, a Mônica brava atrás dele é seu alvo, que o

provoca a correr.

No segundo quadro a ponte é o alvo da Mônica que reage temendo passá-la. No terceiro

quadro, observamos através do último quadro que o alvo da Mônica foi o Cebolinha que

a provocou a dar a volta para pegá-lo do outro lado. E no último quadro, o alvo continua

sendo o Cebolinha que a provoca a concluir sua reação: ameaçá-lo carregando-o e

questionando “quem é a gorducha?”.

Assim como vimos no quadrinho da turma da Mônica acima, em cena não pode haver

uma ação sem alvo, cada pequena reação deve ser provocada por um alvo. E esta é a

primeira regra da metodologia: “Sempre há um alvo”. E através dele é que o ator clareia

a compreensão do espectador que o assiste, pois não faz nada que seja desnecessário e

prejudique o desenvolvimento de uma cadeia de reações. Nas palavras do próprio

Donnellan:

Tudo o que um ator pode interpretar são verbos, e isto é ainda mais significativo quando cada um destes verbos tem um alvo por trás. Este alvo é um tipo de objeto, direto ou indireto, uma coisa específica vista ou sentida, e, até certo ponto, necessitada. A concreção do alvo trocará de momento em momento. Há muito que eleger. Mas sem o alvo, o ator não pode fazer absolutamente nada, porque o alvo é a fonte de toda a vida do ator. Quando somos conscientes, estamos sempre presentes com algo, com o alvo. E quando a mente consciente já não está presente com nada em absoluto, nesse ponto exato deixa de ser consciente. E um ator não pode interpretar a inconsciência. (DONNELLAN, 2007, p. 27)5

                                                                                                                         

5Tradução da autora do original: “ Todo lo que un actor puede interpretar son verbos, pero, y esto es aún más significativo, cada uno de estos verbos debe tener una diana detrás. Esta diana es un tipo de objeto, bien directo o indirecto, una cosa específica vista o sentida, y, hasta cierto punto, necesitada. La concreción de la diana cambiará de momento en momento. Hay mucho donde elegir. Pero sin la diana, el actor no puede hacer absolutamente nada, porque la diana es la fuente de toda la vida del actor. Cuando somos conscientes, estamos siempre presentes con algo, con la diana. Y cuando la mente consciente ya no está presente con nada en absoluto, en ese punto exacto deja de ser consciente. Y un actor no puede interpretar la inconsciencia (DONELLAN, 2007, p.27).

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E ressaltando, como colocou Donnellan, que o alvo é o objeto do verbo, ou seja, o

objeto da reação realizada pelo ator, dessa forma o ator não pode interpretar um verbo

intransitivo, pois é um verbo sem alvo. Por exemplo, o ator não pode morrer, ele pode

“lutar pela vida” ou “dar boas vindas à morte” que é quando passa a ter um alvo.

A segunda regra desta metodologia é: “O alvo sempre existe fora e a uma distância

moderada”. O alvo pode ser real ou imaginário mas deve estar a uma distância do ator.

Na figura 1, o quadrinho da Mônica, por exemplo, podemos notar que o alvo da Mônica

não é ela mesma, assim como o alvo do Cebolinha também não é ele mesmo.

O que sucede, no entanto, se o alvo parece estar dentro do cérebro, como quando temos uma dor de cabeça profunda? Como podemos localizar isto no exterior? Seja qual seja nossa dor, por mais íntima que resulte a agonia, sempre haverá diferença entre o paciente e sua dor. E a gente que sofre grandes dores lhe dirá que se sentem separadas delas. Quanto mais intensa é uma enxaqueca, mais parece que existem só duas entidades no mundo, a dor e o sofredor. O mal estar pode invadir o cérebro, mas permanece fora da consciência. Sempre há uma distância básica. (DONELLAN, 2007, p.28)6

“O alvo existe antes que necessitamos dele”, esta é a terceira regra. Para Donnellan,

descobrir o alvo é mais útil que inventá-lo, sendo assim, se pensamos até mesmo no

alvo sendo o futuro, resulta melhor ao ator encontrar o seu desejo para o futuro do que

criar um futuro. Na figura 1, notamos que antes das reações, houve a provocação do

alvo, dessa forma a Mônica não corre atrás do Cebolinha porque criou que ele está lhe

provocando, mas sim porque vê ou percebe primeiro a sua provocação.

A quarta regra desta metodologia é: “O alvo é sempre específico”. Ou seja, o alvo não

pode ser uma generalização, porque deve ser visualizado pelo ator, então deve ser

específico. Como vimos na figura 1, os alvos foram específicos: o Cebolinha chateando,

a Mônica brava, a ponte feita de tronco de árvore e, por último, o alvo foi imaginário,

que continuava ser o Cebolinha chateando, mas a Mônica já não mais o tinha diante os                                                                                                                          

6Tradução da autora do original: “¿Qué sucede, sin embargo, si la diana parece estar dentro del cerebro, como, digamos, cuando tenemos un dolor de cabeza profundo? ¿Cómo podemos localizar esto en el exterior? Sea cual sea nuestro dolor, por muy íntima que resulte la agonía, siempre habrá diferencia entre el paciente y su dolor. Y la gente que sufre grandes dolores te dirá que se sienten extrañamente separados de ellos. Cuanto más intensa es una migraña, más parece que existan sólo dos entidades en el mundo, el dolor y el sufridor. El malestar puede invadir el cerebro, pero permanece fuera de la consciencia. Siempre hay una distancia básica. (DONELLAN, 2007, p.28).

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olhos, porém, ainda assim é possível notar que o alvo era específico e não uma

generalização.

A quinta regra é que “O alvo se transforma constantemente”, assim, por mais que

novamente o ator reaja ao mesmo alvo, seu alvo deverá ter transformado para também

transformar sua reação. Retornando a figura 1, observamos que primeiramente a Mônica

reage ao Cebolinha que a chateia, e depois retorna a reagir ao Cebolinha que a chateia,

mas é importante considerar que houve uma transformação: a Mônica nos últimos

quadrinhos reage ao Cebolinha que a chateia do mesmo modo, mas que agora se

encontra seguro pela ponte que a Mônica não tem coragem de atravessar. Assim a

reação da Mônica continua ser a de correr, porém também transformada, ela agora

necessita de mais agilidade e esperteza para recuperar a distância que o Cebolinha

tomou dela, desconsiderando o caminho da ponte.

A sexta e última regra é: “O alvo está sempre ativo”. Assim como vimos nas regras

anteriores, o alvo tem que provocar, por isso precisa estar sempre ativo, fazendo algo. E

como coloca Donnellan se faz mais importante ao ator se perguntar: “O que é que o alvo

me obriga a fazer?” do que “O que estou fazendo?”, que como vimos é a pergunta que o

leva a bloquear-se.

Donnellan ainda chama a atenção para os alvos secundários, que novamente se torna

fácil observar através do quadrinho. Quando a Mônica encontra a ponte de tronco de

árvore, a ponte torna-se seu alvo, pois lhe faz dar a volta, mas é seu alvo secundário,

pois ela dá a volta não só porque está reagindo ao tronco, mas principalmente porque

está reagindo ao Cebolinha, que é o seu alvo primário, e se encontra do outro lado da

ponte.

E Declan ainda faz uma última ressalva:

O alvo não é um objetivo, nem um desejo, nem um plano, nem uma razão, nem uma intenção, nem um motivo. Os motivos surgem do alvo. Um motivo é uma forma de explicar porque faço as coisas. O “porque” faço coisas pode resultar interessante. Mas perguntar

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“porque” constantemente pode atar o ator com fortes nós. (DONELLAN, 2007, p.33).7

Dessa forma, através deste capítulo podemos compreender o que o alvo é, o que não é, e

o que uma cena precisa ter para estar dentro da metodologia do alvo. E utilizando estas

informações contidas no livro de Declan Donnellan é que iniciamos nossas pesquisas no

Estúdio Fisções.

 

                                                                                                                         

7Tradução da autora do original: “La diana no es un objetivo, ni un deseo, ni un plan, ni una razón, ni una intención, ni un foco, ni un motivo. Los motivos surgen de la diana. Un motivo es una forma de explicar por qué hago las cosas. El “por qué” hago cosas puede resultar interesante. Pero preguntar “por qué” constantemente puede atar al actor con recios nudos.” (DONELLAN, 2007, p.33).