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OS PREDADORES

Tudo o que os políticos fazempara conquistar o poder

Vítor Matos

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Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.Reprodução proibida por todos e quaisquer meios.

A presente edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa de 1990.

© 2015, Vítor MatosDireitos para esta edição:Clube do Autor, S. A.Avenida António Augusto de Aguiar, 108 - 6.º1050-019 Lisboa, PortugalTel.: 21 414 93 00 / Fax: 21 414 17 [email protected]

Título: Os predadoresAutor: Vítor MatosInfografia: Filipe RaminhosRevisão: Pedro Prostes da Fonseca Paginação: Maria João Gomes,em caracteres PalatinoImpressão: Multitipo – Artes Gráficas, Lda (Portugal)

ISBN: 978-989-724-238-0Depósito legal: 396 897/151.ª edição: Setembro, 2015

www.clubedoautor.pt

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para os meus pais.

O governador civil fez saber ao ministério que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas terras.

Camilo Castelo Branco,A Queda de um Anjo

De todas as coisas que tenho em alta consideração, as regras não são uma delas.

Frank Underwood,personagem da série House of Cards

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Índice

Preâmbulo ......................................................................................................... 11

Introdução: Caciques e Galopins ................................................................. 13

Parte Um: Os de Baixo .................................................................................. 35

1 – Um aparelhista confessa-se ...................................................................... 37

2 – A pirâmide do caciquismo e a democracia no Estádio da Luz ........... 43

3 – Os «gangues» lisboetas do PSD ............................................................... 57

4 – As votações albanesas do PS em Lisboa ................................................. 73

5 – O PS no Porto: o meu apoio por uma dentadura .................................. 83

6 – As concelhias: o poder dos pequenos gigantes ...................................... 93

7 – Juventudes partidárias: as academias do crime político .................... 121

Parte Dois: Os do Meio ............................................................................. 151

1 – O escândalo do PS em Coimbra: primeiro episódio ........................... 153

2 – «Coimbra B», a sequela: centenas de fichas falsas ............................... 167

3 – Suspeitas generalizadas de manipulação eleitoral no PS ................... 181

4 – O que eles fazem para ser deputados ................................................... 195

5 – Tudo o que um boy não deve fazer ........................................................ 215

6 – Marco António Costa: a carreira do cacique perfeito ......................... 225

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Parte Três: Os de Cima .............................................................................. 243

1 – Menezes vs Mendes: cacicagem científica

contra golpes de secretaria ..................................................................... 245

2 – Pedro Passos Coelho: a construção de um novo personagem ........... 267

3 – António Costa: no aparelho desde pequenino

e o embuste das primárias ...................................................................... 311

4 – O Governo feudal: o poder dos suseranos

e a distribuição aos vassalos ................................................................... 347

Conclusão ...................................................................................................... 373

Agradecimentos ............................................................................................ 385

Índice onomástico ......................................................................................... 387

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Preâmbulo

Este livro obedeceu a um impulso jornalístico de revelar as ló-gicas de funcionamento dos dois grandes partidos de poder em Portugal e teve como ponto de partida algumas investigações que fui realizando ao longo dos anos sobre a democracia interna dos mesmos na revista Sabado. Nenhuma das organizações políticas vi-sadas deu qualquer contributo para que pudesse dispor de dados oficiais para realizar este trabalho. Nem os responsáveis do PS nem do PSD nas respetivas sedes em Lisboa acederam aos meus pedidos de elementos sobre resultados de votações internas, número de mi-litantes e organização, etc.. Talvez julgassem que essa opacidade se-ria mais defensora das instituições que representam. Devo por isso agradecer às pessoas de ambos os partidos, por todo o País, que me ajudaram a recolher os elementos essenciais para a realização deste projeto.

As histórias que estão contadas neste livro mostram que não existe uma verdadeira democracia interna nos partidos do poder, o que facilita a vida aos carreiristas com instintos predatórios e difi-culta a participação e ascensão na política aos cidadãos mais livres. Passados mais de 40 anos sobre o 25 de Abril, podemos pensar que a Democracia é um facto adquirido, mas esta será sempre uma rea-lidade precária.

Este projeto terá continuação no blogue Os predadores em http://ospredadores.blogs.sapo.pt, onde serão publicados alguns dados em bruto que suportam o livro, assim como novas informações

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que tenham interesse para o tema. O endereço [email protected] está disponível para o envio de comentários e informação.

Grândola, 17 de Agosto de 2015

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Introdução

CaCiques e Galopins

«O caciquismo não é um acessório do regime. É o próprio regime. Ou pelo menos está para o regime como o coração está para o orga-nismo que bate: é o aparelho distribuidor da energia e da ação». Esta imagem ainda é clara. Ao fim de 40 anos de democracia, o regime que derrubou o fascismo também é isto. O mais intrigante é que o excerto acima citado foi escrito em 1910, pelo médico republicano António José d’Almeida ― futuro Presidente da República ―, na revista Alma Nacional, num texto com o título «Galopins». A palavra caída em desuso designava os angariadores de votos, por ocasião das eleições durante a Monarquia constitucional.1

Passaram 105 anos. Na nossa democracia do século xxi, o caci-quismo continua a não ser um mero acessório. Tornou-se também na essência, ou numa das essências, do próprio sistema, e este livro tem como objetivo descrever como funciona. Na partidocracia vigente, são os caciques que mantêm vivo o organismo que nos governa. São eles o coração que bombeia energia e ação nos partidos: nos jantares, eventos, manifestações, mobilizam toda aquela gente que aparece de bandeirinhas a puxar pelos chefes. Pouco pensamento. São os caci-ques e os novos galopins que elegem e depõem líderes. São os caci-ques e os galopins as ventosas nos tentáculos que sugam os cargos na administração pública. São os caciques e os galopins nas juntas, nas câmaras, nas juventudes, nos organismos do Estado, nos gabine-tes dos ministros, no Parlamento e no Governo, que ― para o bem

1 António José de Almeida, «Galopins», in Alma Nacional n.º 28, 18 de agosto de 1910.

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e para o mal ― comandam a vida dos portugueses e determinam o futuro dos seus filhos. São os caciques e os galopins predadores de si mesmos nas guerras internas dos partidos. Os maiores engolem os mais pequenos nesta cadeia alimentar que vai do topo até à base. Por vezes, os pequenos juntam-se e devoram os maiores, incluindo os líderes que não tiverem suficientes instintos predatórios. São todos, no seu conjunto, predadores do Estado suportado pelos contribuin-tes e um dos principais bloqueios ao bom funcionamento do regime democrático e até do mercado. Os partidos são ecossistemas onde apenas sobrevivem os mais fortes, os mais aptos a lidar com armas tanto legítimas como ilegítimas, ou os que se adaptam melhor à porosidade do terreno de caça.

Se o texto de António José d’Almeida, que viria a ser Presidente da República entre 1919 e 1923, tem mais de 100 anos, isso não faz dele uma relíquia de antiquário: torna-o assustador. Dá impressão de que não saímos do mesmo lugar durante um século. «Por cacique entendia-se o homem de influência e prestígio eleitoral que domi-nava uma região», definia António José d’Almeida no mesmo arti-go. «Galopim chamava-se ao aventureiro que executava os planos do cacique; era a criatura mais especialmente encarregada da técnica eleitoral, de fazer a batota marcando as listas, falsificando os cader-nos, praticando as chapeladas. O galopim era uma espécie de chefe de guerra do cacique».

O caciquismo e o funcionamento dos partidos organizados numa pirâmide de redes e clientelas foram uma característica da política portuguesa ao longo das décadas em que durou o rota-tivismo do século xix. Esta investigação jornalística analisa o ca-ciquismo e a lógica piramidal dos partidos no novo rotativismo democrático que existe desde 1976 (apesar das coligações entre PS e PSD ou destes com o CDS). Já não é o Partido Regenerador contra o Histórico ou o Partido Progressista contra o Regenerador. Não é já o regenerador Hintze Ribeiro a rodar à vez com o pro-gressista José Luciano, combinando-se previamente os deputados a eleger, trocando-se os votos nas eleições ou a seguir dividin-do as prebendas estatais.2 É o Partido Socialista contra o Partido Social Democrata. É António Costa contra Pedro Passos Coelho,

2 Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalo Monteiro, História de portugal, Esfera dos Livros, 2009, p. 565.

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em 2015, cujas biografias partidárias descritas na Parte Três des-te livro evidenciam diferenças de percurso, mas demonstram que amadureceram ambos no mesmo caldo de cultura: nas «jotas» e nos jogos de poder interno, cada um suportado pela sua rede de influentes a quem foi distribuído um quinhão, que por sua vez dis-tribuem, em parcelas, aos de baixo. O PS e o PSD não são apenas parecidos. Tornaram-se gémeos na lógica do aparelho, assim como nos objetivos dos seus dirigentes e nos resultados obtidos pelas respetivas camarilhas na ocupação do Estado, ou na forma como são escolhidos os representantes.

As referências associadas ao caciquismo «não conotam, aliás, um regime político em particular»3: atravessaram metade do século xix, desde 1852, mas sobretudo acentuaram-se depois de 1876, e manti-veram-se na República, até ao golpe de 1926 que criaria as condições para a ascensão de Salazar ao poder. Continuaria a haver depois o caciquismo próprio do partido único, a União Nacional: «Quanto mais se descia na hierarquia da Administração, maior era a capaci-dade de influência da UN na triagem e apresentação de candidatos. Daí que o papel que ela desempenhou na filtragem dos acessos ao funcionalismo público e à administração local tenha criado [...] me-canismos de clientelismo tipicamente partidário».4

As descrições do caciquismo no Portugal oitocentista não an-dam longe das referências negativas do partidarismo de hoje: a in-fluência política dos dirigentes locais, a corrupção eleitoral (agora nas eleições internas dos partidos), o compadrio, o favor, a cunha. Ainda habitamos a mesma Pátria. Outros textos da mesma época, como um de Mariano Carvalho, no editorial de O popular, em 1901, podiam ter sido escritos há uma semana: «Esses partidos não exis-tem por questões de princípios, nem muito em geral por processos de administração. Apenas se distinguem porque os chefes têm este ou aquele nome, porque existem estes ou aqueles interesses gerais, locais ou pessoais. Os princípios, como vulgarmente se diz, foram à carqueja». Como a experiência tem demonstrado, os princípios do PS e do PSD também têm uma rigidez de borracha para se adaptarem

3 José Manuel Sobral e Pedro Ginestal de Almeida, Caciquismo e poder político. Reflexões em torno das eleições de 1901, Análise Social, vol. XVIII, 1982, pp. 649-675.4 Manuel Braga da Cruz, O partido e o Estado no Salazarismo, Editorial Presença, 1988 p. 252.

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ao momento. As diferenças entre as promessas eleitorais e a ação go-vernativa em aspetos fundamentais como os impostos provam-no.

A distinção entre os «dois grandes» continua a ser feita ― não em exclusivo, mas em grande medida ― pelos nomes dos chefes, pela fulanização dos líderes, seja quando está em causa o primeiro--ministro seja a chefia de um partido. Isso foi evidente na luta entre António Costa e António José Seguro, no PS, durante o verão de 2014. Veremos na Parte Dois como, nas eleições federativas que precede-ram o combate dos líderes socialistas, as fações se combateram de morte em processos cheios de irregularidades e de puras vigarices, como de costume entre «camaradas». A seguir, o processo das primá-rias, pioneiro e inovador, vendido à opinião pública como um avanço democrático irrevogável, não foi mais do que um prolongamento do longo braço profissional do aparelho. Desse ponto de vista, as pri-márias foram um logro: esta constatação é politicamente incorreta, mas os argumentos, as histórias, os depoimentos e os números que suportam esta explicação estão plasmados na terceira parte do livro.

Na Monarquia, «o sistema assentava na corrupção eleitoral», des-creve Vasco Pulido Valente em O poder e o povo. O rei arbitrava o rotativismo e, quando um governo se desgastava, o monarca cha-mava a oposição a governar. Uma mudança de partido no Terreiro do Paço alterava o perfil da administração e do funcionalismo de cima até abaixo. «O novo ministério [o Governo] passava, então, à dolorosa tarefa de se legitimar, ou melhor, de “fazer” eleições, ou melhor ainda, de “fazer” a “sua” maioria. Começava geralmente por substituir os representantes da administração central na admi-nistração local: governadores civis, administradores de concelhos e regedores».5 Após o 25 de Abril, depois de se obter o poder, substituí-am-se os governadores civis (até serem extintos), mais os dirigentes das Comissões de Coordenação Regional, os presidentes e diretores dos institutos, das empresas públicas, etc.. Durante o rotativismo monárquico, chegava-se ao detalhe: «Seguiam-se os funcionários públicos eventuais dependentes de Lisboa. Muitos municípios ti-nham um carteiro regenerador e outro progressista, um professor primário regenerador e outro progressista: todos rodavam nos em-pregos com os padrinhos da capital. Nos distritos mudavam igual-mente os provedores das Misericórdias, os reitores dos liceus, os 5 Vasco Pulido Valente, O poder e o povo, Gradiva, 2004, p. 23.

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auditores administrativos e dezenas de personagens menores».6 No poder municipal democrático da atualidade, quando numa câmara cai um partido e ascende um outro as mudanças também chegam ao pessoal menor. Norberto Pires, antigo presidente de uma Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, conta, na Parte Dois, como foi pressionado para meter boys do PSD e «correr com a tralha socialista» dos organismos que dirigia.

Depois deste «render da guarda», de acordo com a descrição de Pulido Valente, iniciavam-se «as negociações com os influentes e caciques». Era a troca de favores por apoios e vice-versa. «Embora flexível, a diferença entre um influente e um cacique estava apenas em que, por regra, o influente “tinha” mais votos do que o cacique e, com frequência, “tinha” até vários caciques. Estes patrões eleitorais vendiam os seus serviços por “favores” do Governo».7 Podiam ser fa-vores pessoais, como a obtenção de títulos, ou coletivos, como obras públicas e melhoramentos. Os caciques, «quando não se limitavam a representar os influentes, dependiam do tráfego de “cunhas” e da sua capacidade de intimidar os eleitores recalcitrantes, através das autoridades ou por intermédio de bandos de caceteiros pagos em dinheiro ou em espécie».8

O domínio das técnicas da fraude reinava. «Uma rica tradição de truques incluía o enchimento prévio das urnas com listas preparadas (a famosa “chapelada”), a falsificação dos cadernos de recenseamen-to, a intimidação física dos adversários, o voto múltiplo, o voto de mortos e ausentes e mais coisas subtis», ilustra Pulido Valente.9 Os bastidores da vida partidária no chamado «arco da governação» pa-recem recheados destas terríveis emanações do passado: nas eleições diretas para as estruturas do PS e do PSD são os próprios compa-nheiros a denunciarem frequentemente os adversários internos por chapeladas, manipulação de cadernos, intimidação e instauração de clima de medo, pagamento de quotas a mortos, voto múltiplo e ou-tras subtilezas variadas, porque o mundo evoluiu e tornou-se mais complexo. Vamos descrever casos de abusos eleitorais que começam com falsificação de fichas nas juventudes, como na JSD de Lisboa,

6 Idem, p. 23. 7 Idem, pp. 23-24.8 Idem, p. 24.9 Idem, p. 24.

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roubos de urnas na JSD do Porto, ou criação de colégios eleitorais inventados no PS de Coimbra.

Uma agravante para os tempos modernos é que Pulido Valente e outros autores atribuem o «caciquismo e a fraude institucionalizada» do século xix ao analfabetismo da população. Com os níveis de ins-trução atuais, como se explica, então, a continuação destas práticas entre a população restrita dos militantes partidários, supostamente mais interessados e esclarecidos do que a massa indiferenciada?

A pirâmide do poder: os de baixo, os do meio e os de cima

Há mais de um século, os partidos do rotativismo ― Regenerador e Progressista ― combinavam a existência de redes horizontais com uma hierarquia piramidal, em cujo vértice se encontravam os che-fes.10 A organização deste livro baseia-se no funcionamento dessa pirâmide, observando a estrutura do PS e do PSD, para analisar as relações horizontais e verticais que se estabelecem numa rede com-plexa de dependências e de trocas económicas a que se costuma cha-mar clientelismo. No século xix chamavam-lhe «empregomania». Tal como há cem anos, a energia interna destes partidos assenta nos favores, na «reciprocidade assimétrica» entre os de baixo e os de cima e também em alguma descaracterização ideológica. «São agru-pamentos de clientelas com um acentuado pendor oligárquico».11 São grupos e fações que se protegem ou lutam para subirem e se manterem no poder.

A palavra cacique começou a ser utilizada pelos conquistadores espanhóis para designar os chefes índios da América do Sul12, que faziam a ponte entre a administração colonial e os interesses locais. A importação do conceito via Espanha serviria séculos depois para definir os protagonistas de relações oligárquicas nos partidos. No sé-culo xix, as relações estabeleciam-se por fidelidades que, tal como hoje, têm que ver com «gratidão» e «lealdade»13, embora tenham perdido

10 José Manuel Sobral e Pedro Ginestal de Almeida, op. cit.11 Idem. 12 Fernando Farelo Lopes, Caciquismo e política em portugal ― uma perspectiva sobre a Monarquia e a I República, Sociologia ― problemas e práticas, n.º 9, 1991, pp. 127-137.13 Idem.

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duas componentes essenciais nessa época, que eram a «honra» e a «virilidade».14 O cacique do século xix era o «influente» que domi-nava uma freguesia, um município ou um distrito, e que usava a sua força económica e o prestígio por ser proprietário, instruído ou burguês abastado para controlar o voto do sufrágio restrito ― não universal ― nas eleições parlamentares.

Os seus galopins faziam o serviço para angariar os votos. Ou pior: «A eleição, essencialíssimo fundamento do sistema representativo, é uma burla», apontava José Luciano de Castro, em 1872, na Câmara dos Deputados.15 O regime representativo do século xix tinha-se tor-nado numa fraude. Pode dizer-se o mesmo sobre as eleições dentro dos partidos do presente: basta ler o que foi a luta entre Luís Filipe Menezes e Luís Marques Mendes na Parte Três deste livro, em que o vencedor arrebatou a liderança do PSD depois de uma série de atropelos, que foram da espionagem interna à pirataria informática, ou ao pagamento massivo de quotas através de uma gestão abso-lutamente profissional de caciques e galopins. Combatia com estas armas a secretaria do partido, que procurava blindar também com alguns truques a teórica vantagem do então líder.

Hoje, o cacique faz o mesmo que o do antigamente, mas para controlar as eleições dentro do partido, usando os seus galopins para garantir os votos, com a diferença de que estes já não são assa-lariados do senhor. Os galopins modernos vivem profissionalmente da política através de avenças, empregos em gabinetes e assessorias de todo o tipo. Um caso paradigmático: a rede de dezenas de em-pregos dados a membros e dirigentes do PS e aos seus familiares na câmara de Lisboa liderada por António Costa. Tinha acontecido o mesmo quando lá esteve o PSD. O que vai mudando são as ca-madas sobrepostas na cor do funcionalismo: laranja, rosa, laranja, rosa... O sociólogo Fernando Farelo Lopes escreveu, a respeito ao século xix, que as relações clientelares perverteram o Estado libe-ral: «Frequentemente, os locais são meros clientes dos influentes situados mais acima, os quais, por sua vez, servem influentes em lugar superior, e assim sucessivamente até se formar uma cadeia de redes caciquistas a nível nacional». Na atualidade, os partidos parecem continuar a funcionar através de mecanismos semelhantes, 14 Idem.15 Maria Filomena Mónica, Fontes pereira de Melo ― Uma Biografia, Aletheia, 2010, p. 127.

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pervertendo a democracia liberal moderna e degradando a confiança nas instituições políticas.

Como a opinião pública vai apenas recebendo visões parcelares desta realidade através da comunicação social, um dos objetivos des-te trabalho é dar uma noção de conjunto. Vamos apanhando ecos parciais dessa cadeia nos jornais, em notícias sobre fraudes em elei-ções, sobre corrupção nas autarquias, ou acerca dos boys que tomam conta da administração pública. A estrutura deste livro baseia-se nessa pirâmide para mostrar como o sistema partidocrático funciona de forma integrada e organizada.

Este trabalho divide-se em três partes: os de baixo, os do meio e os de cima. Em cada uma delas contam-se histórias, mais ou menos recentes, para mostrar como se estabelecem as relações verticais em que os de baixo apoiam os de cima, e depois como os de cima susten-tam os de baixo. Importante será ir explicando, com exemplos muito concretos, como se opera essa troca comercial que usa como moeda o aparelho do Estado: votos por cargos, lugares por apoios. Embora tenha acabado a oferta de empregos nas propriedades agrícolas dos antigos caciques rurais para captar os votos do eleitorado, a «em-pregomania» mantém-se. Os caciques de hoje já não são os latifun-diários, os boticários, os morgados e os bacharéis de ontem. Aquilo que o cacique moderno tem para oferecer não é seu, é do Estado: o emprego na câmara, na junta, a casa no bairro social, a assessoria no gabinete do vereador, a esperança numa cunha em troca de um punhado de votos combinados com um grupo de amigos. Há casos de compra de votos através de meios tão extraordinários como uma dentadura...

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Os de baixo são os que estão mais longe dos olhares públicos: os presidentes das secções, dos núcleos e das concelhias são matéria que vai escapando ao escrutínio dos media, mais preocupados, na-turalmente, com as grandes questões nacionais. Tudo começa nesta zona obscura do caciquismo local. A base que suporta o poder do PS e do PSD são as autarquias. Neste degrau, o que importa é fazer

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militantes, cada vez mais militantes, que sejam meros inscritos sem vontade própria e constituir «sacos de votos» ou «sindicatos de vo-tos», facilmente manipuláveis pelos «cabos eleitorais» (os galopins) para a manutenção de um poder pessoal ou de grupo, com ambi-ções grandes ou pequenas. Vamos descrever casos caricaturais e em-blemáticos. Alguns envolvem uma certa loucura dos participantes, tendo em conta o poder que está em jogo, como no caso de algumas freguesias do PSD em Lisboa. Outros chegam a ser alvo de investiga-ções judiciais, apesar de serem ignorados pelas instâncias jurisdicio-nais dos partidos, como aconteceu no PS de Coimbra.

Trata-se de factos ocorridos ao nível das freguesias, dos pequenos concelhos e das juventudes partidárias, que começam por contami-nar a base dos partidos e que se vão disseminando com o tempo pela estrutura acima. Estes influentes locais enquadram-se em descrições sobre os mesmos protagonistas de há 150 anos, como a «indiferen-ça dos caciques perante as conceções de justiça e direito proclama-das pelo discurso oficial».16 Práticas como a manipulação eleitoral e a fraude ou o pagamento irregular de quotas são hoje de tal forma habituais que, mesmo escandalizando uma certa opinião pública, se toleram nos círculos de poder. A não ser quando se perde.

No século xix e no início do século xx, uma das características do regime era, exatamente, a «manipulação das leis eleitorais»17, que atingiu o zénite com a modificação da lei eleitoral em 1901, que reorganizou os círculos uninominais para manter a influência dos grandes partidos e neutralizar os adversários republicanos ou os «endireitas» de João Franco, ficando para a história como a «ignóbil porcaria».18 Com o atual sufrágio universal direto e secreto protegi-do de artimanhas que subvertam os resultados finais, o caciquismo não se baseia já na manipulação das eleições de caráter nacional, mas vive da batota e da vigarice grosseira em relação aos regulamentos partidários. Alimenta-se e sobrevive dos golpes e truques de secreta-ria e de um conjunto de irregularidades e ilegalidades onde a Justiça não chega porque o Código Penal nem sequer pune a fraude elei-toral nas disputas partidárias internas. Os conselhos de jurisdição dos partidos, que apreciam e «julgam» os casos, são eleitos em listas

16 Fernando Farelo Lopes, op. cit. 17 Idem.18 José Manuel Sobral e Pedro Ginestal de Almeida, op. cit.

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por método de Hondt e acabam por refletir as maiorias políticas. Protegem na maior parte dos casos o poder vigente nos distritos e na sede nacional. Fazem para que não haja demasiado ruído e para acautelar a imagem dos partidos. Depois de cometida uma fraude é quase impossível revertê-la pelos meios regulares. Reclamar das irre-gularidades eleitorais partidárias raramente compensa. Os repetidos recursos das chapeladas internas para o Tribunal Constitucional são apreciados «à luz do princípio da intervenção mínima» e em nome da «autonomia na ordenação da vida interna de cada instituição par-tidária», segundo os sucessivos acórdãos sobre estas matérias. Ou seja, geralmente o TC não se mete. É este conjunto de factos que hoje configura a «ignóbil porcaria».

A «fraude nas urnas»19 que grassava durante o rotativismo mo-nárquico e que não foi banido durante a República, continua de saú-de. Não há eleições para estruturas do PS ou PSD que não sejam contestadas, por denúncias de chapeladas, contabilização falseada de votos, eleitores que não existem, militantes que votam por outros, documentos falsificados, roubo de urnas, arrebanhamento de inscri-tos. Há de tudo. No século xix havia o cabrito com batatas ou o ba-calhau frito para pagar os votos; hoje são as camionetas cheias para comer carne assada, ou o passeio em excursão para ir a Fátima. No século xix, e depois na República, havia «intimidação e violência»20 sobre os eleitores em alguns círculos. Hoje, como veremos, continua a haver locais onde os argumentos para as eleições internas são o medo, a intimidação e por vezes a agressão.

Oliveira Martins escreveu, em 1886, que o «cacique ou influente, em Espanha e em Portugal, é quem todo lo manda numa determinada zona de terreno, numa freguesia, num concelho, num distrito». A primeira parte do livro debruça-se sobre personagens que tentaram tudo para mandar no seu limitado território ou que de facto man-dam. O problema desta abordagem é o risco de se tomar a parte pelo todo: há mais de três mil freguesias e mais de 300 concelhos onde operam os nossos pequenos e médios políticos, sendo impossível fazer uma análise global de todo o País. Na impossibilidade de se fazer uma magna enciclopédia do cacique português e das respeti-vas redes, os casos relatados foram escolhidos por serem exemplares, 19 Fernando Farelo Lopes, op. cit. 20 Idem.

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no mau sentido. Servem de amostra para o que pode acontecer ― e acontece ― na nossa realidade. Se muitos processos mais ou menos conhecidos e escandalosos ficaram de fora, isso deu-se pela dificul-dade em abarcar uma realidade tão vasta.

Também se corre o risco de pagar o justo pelo pecador. Esta in-vestigação não se destina a enaltecer os casos dos políticos que cons-troem a sua carreira à margem deste sistema estabelecido, cada vez mais raros, cada vez mais excluídos. Sublinha-se, em vez disso, tudo aquilo que vai além do tolerável, mas que os partidos toleram de tal forma que a prática partidária mediana já está absorvida pelos des-vios, pelos vícios e pela batota. O que muitos políticos iam dizendo durante as entrevistas para este trabalho, quase todos em off, é que ninguém chega virgem ao poder: se não praticaram irregularidades e malfeitorias para ascender, tiveram de pactuar com elas, tolerá-las ou fechar os olhos. Ou então, incentivá-las. Quem não pactuar com o modus operandi das antecâmaras partidárias tem bom remédio: fica fora do poder. Para desalojar um «gangue» é preciso constituir um «gangue» ainda maior.

«O cacique é, basicamente, um intermediário entre os segmen-tos sociais locais e o Estado que os engloba. Ele fornece os meios, os votos indispensáveis à legitimação das instituições políticas».21 Esta descrição também permanece. Mas agora a legitimação das institui-ções políticas faz-se, antes de mais, no interior dos partidos. São as estruturas de baixo que escolhem os candidatos às juntas de fregue-sia e às câmaras, que depois precisam da anuência das estruturas aci-ma delas. São as estruturas intermédias, «os do meio», que definem uma parte significativa dos candidatos a deputados. Depois, são «os de cima» que distribuem os cargos na administração pública «aos de baixo», quando chegam ao Governo, às câmaras, aos institutos. Todos os nossos representantes gozam de uma dupla legitimidade: a legitimidade do voto dos cidadãos eleitores, nas eleições autárqui-cas, legislativas ou regionais; e uma segunda legitimidade anterior a essa, conquistada dentro de cada partido, onde residem os proble-mas graves.

A questão essencial que este livro pretende levantar é a seguin-te: se a legitimidade interna está viciada, se uma grande parte dos nossos representantes políticos são escolhidos pelos militantes dos 21 José Manuel Sobral e Pedro Ginestal de Almeida, op. cit.

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partidos para se apresentarem às eleições com base em processos fraudulentos e não democráticos, não representativos dos verdadei-ros militantes partidários, então não há democracia. Ou pelo menos não há uma democracia decente.

No capítulo sobre Os do Meio entra-se num campeonato deci-sivo. As eleições para as estruturas nos distritos são fundamentais: para «os de cima», que precisam destes apoios para se manterem no vértice da pirâmide, mas também para «os de baixo», que querem ascender ao patamar superior, ou manter a sua posição. Cada fação numa distrital tem a sua corte. As distritais são centros de distribui-ção de poder e de satisfação de clientelas. Por aí abaixo, do vértice para a base, há um séquito de galopins para alimentar e um exército de caciques a enquadrar. A análise de vários processos eleitorais no PS e no PSD servirão para demonstrar como nasce torta e doente a legitimidade de muitos dos nossos futuros representantes.

No capítulo Os do Meio vamos ainda analisar várias formas de chegar a deputado e contar como é a experiência de parlamentares desenquadrados deste tipo de praxis política. No mesmo patamar, daremos também atenção à carreira de políticos profissionais que se tornam verdadeiramente poderosos dentro dos seus partidos a partir do controlo de uma concelhia, de uma câmara e depois de uma distrital. No fim da linha, tornam-se essenciais para as respeti-vas lideranças nacionais, como foi o caso de Marco António Costa, no PSD.

Uma das lacunas que o leitor poderá apontar com justiça a este trabalho é a ausência de um capítulo sobre as regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A Madeira de Alberto João Jardim forneceria, certamente, uma coleção exemplar do mais puro caciquismo, pejado de galopins e caceteiros, num regime insular de partido quase único, onde tantas vezes a democracia é encarada de uma forma muito par-ticular, com a conivência dos dirigentes nacionais do PSD. Os man-datos do socialista Carlos César nos Açores seriam outra realidade a merecer igualmente uma abordagem sobre o domínio de um partido numa região. Mas cada um destes casos, pela sua especificidade, me-recia outro livro.

A opção de analisar o PS e o PSD em exclusivo tem outra razão de ser. São os dois partidos que ganham eleições, que se revezam no Governo, que alternam nas maiorias parlamentares ― mesmo que seja

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em coligação ― e que dominam a maior parte das câmaras. Dirigentes laranja e rosa sabem que depois de um ciclo de poder do outro partido segue-se um ciclo de poder do seu. Portanto, basta esperar, ter uma es-tratégia e estar bem posicionado para quando a respetiva vez chegar. Só estes dois partidos ― e, em algumas ocasiões o CDS ― têm a capa-cidade de manter uma influência transversal na sociedade em todos os patamares do poder. O PCP fica de fora, embora fosse interessante ve-rificar a dinâmica dos apparatchiks do Partido Comunista nas câmaras municipais, em variadíssimas associações e sindicatos. Porém, a lógica de funcionamento de um partido marxista-leninista e revolucionário não corresponde à dos catch-all-parties ou partidos de cartel que aqui interessa analisar e que ascendem à governação.

No vértice da pirâmide, temos os governos e as lideranças. São «os de cima». No domínio do Executivo veremos qual a lógica que comanda a escolha das equipas governativas e como estas podem servir de plataforma para satisfazer as clientelas. O rotativismo par-tidário que acompanha as mudanças de Governo tem depois reflexo na alternância das administrações das empresas públicas e na dire-ção de institutos.

Finalmente, os líderes: a ponta aguda da pirâmide, o vértice de onde emanam as instruções superiores. As batalhas internas mais fratricidas, como a de Menezes vs Mendes ou a de Costa vs Seguro, permite com-preender como o voto livre é residual nos partidos, mesmo quando se abrem à sociedade. Os votos não têm dono, mas têm trela. Depois, como ascenderam líderes como Pedro Passos Coelho ou António Costa? Em que redes se basearam? Quais são, ou foram, os pilares que sustentaram o seu poder? No fundo, que importância tiveram as redes de cacicagem na consolidação da sua corte? E as primárias do PS? Serão o futuro? As primárias melhoram ou pioram a democracia?

A lei de ferro dos partidos: as oligarquias de políticos profissionais

Se, do ponto de vista histórico, o caciquismo é uma velha prática de cujas raízes os protagonistas partidários nem sequer terão cons-ciência, na perspetiva da Ciência Política nada disto é novidade. Nos primeiros 20 anos do século xx, as principais doenças políticas que se

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verificam nas histórias narradas nos próximos capítulos já estavam identificadas. A intenção deste livro não é descobrir o que sempre existiu: é descrever a realidade e partilhá-la de forma articulada com o leitor. Estes problemas não são novos, não são surpreendentes, nem sequer são exclusivos da democracia portuguesa. Mesmo com toda a tecnologia e imediatismo do tempo novo da internet, neste novo milénio os factos básicos da nossa política são, como sempre fo-ram, na sua natureza primordial: lutas pela conquista e manutenção do poder, com mais ou menos sentido de missão, com mais ou me-nos sentido interesseiro. No terreno político, sobretudo no interior do mesmo partido, manifesta-se a natureza humana em todo o seu esplendor, em tudo aquilo que tem de pior: as ambições, as invejas, as vaidades, os ódios, as vinganças. Também há, claro, exemplos de abnegação, altruísmo, amizade e de entrega a ideais, mas estas ati-tudes tendem a ser ofuscadas pelas outras. A natureza humana não muda. E a política não é para ingénuos. Neste ambiente só sobrevi-vem os que mantiverem níveis mínimos de maquiavelismo.

Em 1903, depois de estudar os partidos no Reino Unido e nos Estados Unidos, o sociólogo político russo Mosei Ostrogorski iden-tificou uma tendência geral para a profissionalização dos políticos. A escolha interna de candidatos a eleições recaía sobre os mais ade-quados à sobrevivência da máquina partidária. Das suas viagens aos países anglo-saxónicos, concluiu que os dirigentes partidários eram «um corpo estável de políticos profissionais que têm no seu hori-zonte imediato a vitória eleitoral e a ocupação de cargos públicos eletivos e de nomeação».22 Ao analisar a prática política nos EUA, percebeu que os cargos federais ficavam «à disposição do candidato vitorioso», tornando-se a política num negócio. Os partidos apresen-tavam-se como «organizações de caçadores de lugares e prebendas oficiais, sendo inteiramente dominados pelos interesses dos bosses que controlam votantes, nexos eleitorais e empregos federais e esta-duais». A opinião pública ainda se escandaliza hoje com as notícias sobre boys e lugares. Há debates públicos e fóruns nas rádios sempre que se volta a provar essa tendência. Vivemos apenas formas mais refinadas e complexas da mesma realidade, que se estende no tem-po: Ostrogorski descrevia a vida política americana de 1900 como

22 Maria da Conceição Pequito Teixeira, O povo Semi-Soberano ― partidos políticos e Recrutamento parlamentar em portugal, Almedina, 2009, p. 194.

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«dominada por políticos profissionais que afastam os amadores e restringem» a atividade destes, ficando abandonada a indivíduos «de segunda extração».23 Nada de novo.

Com partidos assim, a impossibilidade de realização plena do ide-al democrático foi enunciada por outro autor: há mais de um século, em 1911, Robert Michels estudou o SPD, o Partido Social Democrata alemão. A sua principal conclusão poderá resumir-se assim: «Todos os partidos acabam por atraiçoar os ideais democráticos, transfor-mando-se em organizações oligárquicas controladas por um peque-no número de indivíduos».24 Este politólogo alemão estabeleceu a chamada «lei de ferro da oligarquia» dos partidos políticos, a que nenhuma organização partidária escapa. A classe dirigente profis-sionaliza-se e tenta manter-se inamovível na sua posição: «Apodera--se, portanto, dos dirigentes, a tendência para fecharem o seu círculo para, por via de um comportamento de cartel, edificarem à sua volta uma muralha que só pode ser transposta por elementos que lhe são favoráveis».25 O povo costuma traduzir estes raciocínios elaborados por dizeres mais prosaicos, como «eles querem é poleiro», ou «são sempre os mesmos», ou «são todos iguais», ou «eles e os amigos é que se amanham». O desejo de poder, a dependência económica dos políticos profissionais e dos burocratas, a dificuldade de quem vai contra o poder estabelecido em lidar com a ostracização são fatores que em tudo contribuem para a permanência das mesmas personali-dades e grupos nos vértices da pirâmide.

As estruturas partidárias analisadas nestas páginas não per-tencem aos seus militantes, pois depressa se tornam em coutadas de fações. Mas não só. A cada estrutura na hierarquia do partido corresponde a sua própria oligarquia, ao nível de freguesias, de concelhos, de distritos e de regiões. Maria da Conceição Pequito Teixeira escreveu no seu livro que, entre os elementos que melhor definem os sentimentos antipartidários dos cidadãos, encontra-se a ideia generalizada de que o funcionamento interno dos partidos não é suficientemente democrático e a convicção de que este fac-to contribui para debilitar seriamente a legitimidade do sistema

23 Idem.24 António de Araújo, Michels revisitado: a propósito de dois livros recentes, Análise Social, vol. XXXVII (165), 2003, pág. 1261-1284.25 Maria da Conceição Pequito Teixeira, op. cit.

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democrático.26 A ideia não é apenas generalizada: o funcionamen-to interno dos maiores partidos portugueses chegou a um ponto de tal corrupção em termos de funcionamento interno que debilita seriamente a legitimidade de todo o sistema democrático.

A tão debatida profissionalização e o carreirismo dos políticos também não é uma originalidade da política portuguesa, muito me-nos uma tendência recente. Max Weber escreveu, em 1917, que há duas maneiras de fazer da política uma profissão: ou se vive para a política no sentido de obter um gozo interior ao serviço de uma causa, ou esta atividade passa a ser uma profissão, como uma fonte permanente de rendimento e passa-se a viver da política. Quem não tem fortuna pessoal para estar ao serviço da causa pública passa a estar dependente. Ao contribuírem para a existência do político pro-fissional, os partidos modernos levam a que a política se transforme, fundamentalmente, «numa empresa de interessados».27

Em A política como profissão, Weber descreveria o que poderia, sem grandes hesitações, ser repetido hoje: «Em todos os partidos a empresa política é necessariamente uma empresa de interessados. Isto é, um pequeno número de indivíduos fundamentalmente inte-ressados na vida política ― por conseguinte em participar no poder político ― que recrutam livremente os seus partidários, apresentam--se a si e aos seus protegidos como candidatos às eleições, reúnem os recursos financeiros e tratam de angariar votos.» A profissionali-zação dos burocratas e dos funcionários, mas também dos próprios representantes eleitos, segundo Max Weber, leva depois a um estado de necessidade que se reflete naquilo que desde o «guterrismo» se chama em Portugal os jobs for the boys: «Todas as lutas partidárias são não só lutas por objetivos concretos, mas acima de tudo pelo patro-cínio dos cargos».28

É esta relação de patrocinato entre o apoio político dentro dos partidos e o pagamento com os cargos no Estado que vai envenenan-do aos poucos a democracia nacional. Os «padrinhos» que prolife-ram nos partidos, e que precisam de continuar a ser dirigentes para subsistir, recompensam os seus «afilhados» que também passam a precisar dos cargos que o partido proporciona para sobreviverem.

26 Idem, p. 211.27 Idem, p. 214.28 Idem, p. 215.