os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

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1 OS MUTIRÕES CARCERÁRIOS E A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 1 Gerivaldo Alves Neiva 2 I - Introdução. a) Cadeia Velha. b) Min. Peluso: crime do Estado contra o cidadão. c) Flagrante e responsabilidade do Juiz, segundo o CNJ. II - População carcerária mundial. III - Crescimento da população carcerária no Brasil - 2000 a 2009. IV - Presos nos Estados por cada 100 mil habitantes. V - Presos provisórios. VI - Escolaridade da população carcerária brasileira. VII - Presos por tipo de delito praticado. VIII - A faixa etária da população carcerária. IX - As ações do Conselho Nacional de Justiça. a) O CNJ e as decisões dos Juízes de primeiro grau. b) Os Mutirões Carcerários. X - Desfazendo Mitos. XI - Conclusão. Anexos. O objetivo do presente trabalho é abordar criticamente o programa de Mutirões Carcerários” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em face da profunda crise do sistema prisional brasileiro. Esta visão crítica não significa, necessariamente, deixar de reconhecer que através desse programa milhares de presos já foram libertados e outros milhares tiveram deferidos benefícios relacionados ao cumprimento da pena. O mesmo não se pode dizer, no entanto, com relação ao sistema penitenciário brasileiro, que a cada dia viola mais escancaradamente ainda os direitos humanos e garantias fundamentais dos presos. Para aprofundamento do tema, assim me parece conveniente, precisamos conhecer, primeiramente, o perfil da população carcerária brasileira no que diz respeito à sua evolução histórica, escolaridade, faixa etária, tipos de delitos cometidos etc. A partir daí, então, penso ser possível suscitar, por fim, algumas hipóteses acerca do problema proposto. As informações estatísticas utilizadas neste estudo são disponibilizadas, semestralmente, pelo Ministério da Justiça em seu site na Internet. I - Introdução Gostaria de iniciar esta provocação relatando, brevemente, três situações emblemáticas sobre o sistema prisional brasileiro: (i) a história da Cadeia Velha do Rio de Janeiro colonial, (ii) a entrevista concedida pelo Ministro Cezar Peluso, em Salvador, reconhecendo a falência do sistema prisional Brasileiro e (iii) a prisão em flagrante e a responsabilidade do Juiz na garantia 1 Contribuição ao V Simpósio Crítico de Ciências Penais Sistema Punitivo: entre obscenidades e resistências, promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais (GEPeC), em Goiânia-Go, de 13 a 15 de maio de 2010. 2 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia

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Contribuição ao V Simpósio Crítico de Ciências Penais, promovido pelo GEPeC, em Goiânia - GO, em 15.05.2010, com o tema "Sistema Punitivo: obscenidades e resistências."

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Page 1: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

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OS MUTIRÕES CARCERÁRIOS E A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO1

Gerivaldo Alves Neiva 2

I - Introdução. a) Cadeia Velha. b) Min. Peluso: crime do Estado contra o

cidadão. c) Flagrante e responsabilidade do Juiz, segundo o CNJ. II -

População carcerária mundial. III - Crescimento da população carcerária

no Brasil - 2000 a 2009. IV - Presos nos Estados por cada 100 mil

habitantes. V - Presos provisórios. VI - Escolaridade da população

carcerária brasileira. VII - Presos por tipo de delito praticado. VIII - A

faixa etária da população carcerária. IX - As ações do Conselho Nacional

de Justiça. a) O CNJ e as decisões dos Juízes de primeiro grau. b) Os

Mutirões Carcerários. X - Desfazendo Mitos. XI - Conclusão. Anexos.

O objetivo do presente trabalho é abordar criticamente o programa de “Mutirões

Carcerários” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em face da profunda crise do sistema

prisional brasileiro. Esta visão crítica não significa, necessariamente, deixar de reconhecer que

através desse programa milhares de presos já foram libertados e outros milhares tiveram

deferidos benefícios relacionados ao cumprimento da pena. O mesmo não se pode dizer, no

entanto, com relação ao sistema penitenciário brasileiro, que a cada dia viola mais

escancaradamente ainda os direitos humanos e garantias fundamentais dos presos.

Para aprofundamento do tema, assim me parece conveniente, precisamos conhecer,

primeiramente, o perfil da população carcerária brasileira no que diz respeito à sua evolução

histórica, escolaridade, faixa etária, tipos de delitos cometidos etc. A partir daí, então, penso ser

possível suscitar, por fim, algumas hipóteses acerca do problema proposto.

As informações estatísticas utilizadas neste estudo são disponibilizadas, semestralmente,

pelo Ministério da Justiça em seu site na Internet.

I - Introdução

Gostaria de iniciar esta provocação relatando, brevemente, três situações emblemáticas

sobre o sistema prisional brasileiro: (i) a história da Cadeia Velha do Rio de Janeiro colonial, (ii)

a entrevista concedida pelo Ministro Cezar Peluso, em Salvador, reconhecendo a falência do

sistema prisional Brasileiro e (iii) a prisão em flagrante e a responsabilidade do Juiz na garantia

1 Contribuição ao V Simpósio Crítico de Ciências Penais – Sistema Punitivo: entre obscenidades e resistências,

promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Criminais (GEPeC), em Goiânia-Go, de 13 a 15 de maio de 2010. 2 Juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia

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do cumprimento de preceito fundamental do preso, (art. 5º, XLVIII), segundo o entendimento do

CNJ.

Então, vamos lá.

a) A Cadeia Velha

Em estudo publicado na Revista História Viva, a historiadora Cynthia Campelo

Rodrigues levantou importantes informações sobre a Cadeia Velha, uma típica prisão do período

colonial, no Rio de Janeiro. A prisão teria sido construída no início do século XVII e funcionava

no mesmo prédio da Câmara Municipal, como era costume na época, tornando-se uma das

maiores e mais importantes prisões do Brasil Colonial.3

Assim, qualquer um que infringisse as leis da colônia podia parar na Cadeia Velha. Por

conseguinte, lá se amontoavam todos os tipos de criminosos, incluindo escravos fugidos,

prostitutas, delinqüentes comuns e até mesmo os envolvidos na Inconfidência Mineira foram

presos na Cadeia Velha. Significa dizer, portanto, que não havia qualquer tipo de relação entre o

crime e o castigo ou mesmo a idéia de proporcionalidade da pena e, muito menos, qualquer

possibilidade de recuperação social dos detentos.

A situação da Cadeia Velha se agravou a tal ponto que em 1764, o Conde da Cunha, Vice

Rei do Brasil, escreveu ao Rei de Portugal, D. José I, nos seguintes termos: “A Cadeia desta

cidade é tão pequena, que com grande aperto e incômodo dos presos só poderá recolher até

cento e cinquenta; e porque presentemente tem duzentos e cinquenta e três, se faz preciso que ou

se acrescente a Casa da Prisão (o que custará mais de trinta mil cruzados) ou se não prendam

os que delinquirem aqui em diante por não haver onde se recolham.”

Consta da correspondência oficial que a Cadeia foi reformada em 1767, mas no início do

século seguinte, o viajante inglês John Luccok fez o seguinte relato da dita prisão: “Um edifício

forte e pesado, ao redor do qual tudo é imundície e dentro do qual tudo é repugnante. O

primeiro dos cômodos é barricado de maneira muito semelhante às nossa jaulas de animais

ferozes, e dentro dele vagueiam os presos de modo muito semelhante a eles e com acomodações

não muito superiores”.

Além disso, a corrupção era prática comum na Cadeia Velha. Consta em processos da

época que os carcereiros confiscavam boa parte daquilo que a Santa Casa de Misericórdia

destinava aos detentos, vez que muitos eram escravos “esquecidos” na prisão pelos senhores,

3 RODRIGUES, Cynthia Campelo. A Bastilha brasileira. Revista História Viva, São Paulo, ano VI, n. 76. p. 66-71. Fev. 2010.

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sendo socorridos pela Santa Casa ou obtinham permissão para pedirem esmolas, presos a uma

corrente, na frente da prisão, podendo chegar até o meio da rua. Na verdade, a legislação

portuguesa da época dispensava o governo da alimentação dos presos, incumbência que cabia à

família, amigos ou instituições de caridade.

Como não podia deixar de ser, a violência contra os presos era algo absolutamente

comum na época. Em processo envolvendo um carcereiro consta o depoimento de um detento

relatando a morte de um negro chamado Vicente: “... e praticar tanto em veras e tanto como

homem bárbaro que estando na prisão dos Pardos, um por nome Vicente, sem levante ou

maldade punível lhe mandou dar uma roda de pau, que até o deixar quase morto, e assim mesmo

o meteu no segredo, de onde o tirou, passados alguns dias, e o mandou para a Enxovia da

Guiné, com ordem ao Juiz José Desidério para não deixar chegar a grade. E logo o preso

Vicente depois foi removido para a dita Enxovia da Guiné, com tal recomendação do carcereiro,

logo também entrou a agonizar e por isso o juiz mandou fazendo levar, chegado que ele foi a

Enfermaria, morreu sem confissão ou sacramento”.

Segundo a historiadora Cynthia Campelo Rodrigues, a única instituição que os presos

podiam recorrer era a Santa Casa de Misericórdia, que se dedicava a obras de caridade, fornecia

pão aos detentos, supria a prisão de enfermeiros e remédios e tinha à disposição dos condenados

um grupo de advogados responsáveis pelas apelações necessárias para tentar livrar os réus da

cadeia ou aliviar as penas. Apesar disso, muitos detentos morriam na prisão sem qualquer

assistência, vitimados por maus tratos e as mais variadas doenças.

A Cadeia Velha foi desativada após a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, em

1808, e finalmente demolida no início do século XX. Em seu lugar, foi construído o atual Palácio

Tiradentes, sede da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em homenagem aos inconfidentes

mineiros4 que lá estiveram presos no final do Século XVIII.

b) Ministro Cézar Peluso: “o tratamento dispensado aos detentos no Brasil é um

crime do Estado contra o cidadão”.

A afirmação foi feita em entrevista coletiva no Centro de Convenções de Salvador, onde

se realizava o 12º Congresso da ONU sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal. Disse ainda

4 De todos os presos que passaram pela Cadeia Velha, os inconfidentes foram os mais famosos. Dentre eles, o alferes que se

tornou historicamente conhecido como Tiradentes. De acordo com as Ordenações Filipinas, vigentes à época, a pena de morte se

dividia em ―natural cruel‖ e ―natural atroz‖. No primeiro caso, o corpo do condenado podia ser cortado, enterrado vivo, rompido,

quebrado arrastado, esquartejado, queimado ou esmagado. No segundo caso, o condenado tinha os bens confiscados, podia ser

esquartejado depois de morto. Tiradentes, no entanto, foi condenado a outro tipo de morte previsto no Direito Português: ―a

morte natural para sempre.‖ Essa pena proibia o sepultamento do corpo do condenado, que deveria ser esquartejado e as partes

expostas até a decomposição completa.

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o Ministro Presidente do STF: “É uma deficiência que beira, em certas situações, a falência

total. Há casos específicos que têm sido ultimamente ventilados, até pela própria imprensa, que

envergonham o país. Eu não quero citar particularmente, mas há casos de tratamento

vergonhoso, em que na verdade o que se faz ao preso é um crime do Estado contra o cidadão.” 5

Esta é a visão, portanto do Ministro Presidente da mais alta corte de justiça do Brasil: o

Supremo Tribunal Federal, o Tribunal guardião da Constituição Federal.

c) A responsabilidade do Juiz ao examinar prisão em flagrante. O caso da

aposentadoria compulsória da Juíza Clarice Maria de Andrade.

Eis a ementa:

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR N° 0000788-29.2009.2.00.0000

Rel. CONSELHEIRO FELIPE LOCKE CAVALCANTI

Requerente: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Requerida: Juíza CLARICE MARIA DE ANDRADE

Assunto: ATUAÇÃO FUNCIONAL DE MAGISTRADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARÁ

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ.

INFRAÇÕES AOS DEVERES FUNCIONAIS DA MAGISTRATURA. CONFIGURAÇÃO.

I – O Juiz de Direito ao examinar o auto de prisão em flagrante delito torna-se responsável pela prisão

levada a efeito bem como pela regularidade do encarceramento do preso.

II – Impossibilidade de manutenção de presa do sexo feminino em carceragem única ocupada por detentos

do sexo masculino.

III – Descumprimento do preceito fundamental contido no artigo 5º, inciso XLVIII, da Constituição

Federal.

IV – Utilização de documento ideologicamente falso com fim de justificar a grave omissão perpetrada.

V – Infringência ao artigo, 35, incisos I e III, da LOMAN.

VI – Procedência do Procedimento com a aplicação da pena de aposentadoria compulsória, com proventos

proporcionais ao tempo de serviço, de acordo com os artigos 28 e 42, V, todos da Lei Complementar nº 35,

de 14.03.79.

Grifei a expressão: “O Juiz de Direito ao examinar o auto de prisão em flagrante delito

torna-se responsável pela prisão levada a efeito bem como pela regularidade do

encarceramento do preso”.

A Ementa é clara e não precisa de comentários: O Juiz que homologa prisão em flagrante

torna-se responsável pelo preso e o descumprimento de preceitos fundamentais previstos na

Constituição Federal importa em violação à Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e aplicação

de pena de aposentadoria compulsória. No caso específico, entendeu o eminente Conselheiro do

CNJ que a Juíza descumpriu o preceito fundamental do artigo 5º, XLVIII, ou seja, “a pena será

cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do

apenado”.

5 In < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=124315 > acesso em 10.05.2010

Page 5: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

5

Para que não paire dúvidas, importante transcrever o dispositivo do “acórdão” que

aposentou compulsoriamente a Juíza:

Diante de todos estes fatos e relatos não é possível deixar de reconhecer que a magistrada,

violou seus deveres funcionais, deixou de observar sua obrigação de garantidora da não

violação dos direitos e garantias fundamentais da menor Lidiany e assim, em conclusão,

tenho por suficientemente provadas as imputações relacionadas na Portaria inaugural.

(grifei).

Em face do exposto, julgo procedentes as imputações formuladas no presente

procedimento administrativo disciplinar para aplicar a Juíza CLARICE MARIA DE

ANDRADE, como incursa no artigo, 35, incisos I e III, da Lei Complementar nº 35, de

14 de março de 1979 (LOMAN), a pena de aposentadoria compulsória, com proventos

proporcionais ao tempo de serviço, de acordo com os artigos 28 e 42, inciso V, ambos da

já mencionada Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, e o artigo 5º da

Resolução nº 30, de 07 de março de 2007, deste Conselho Nacional de Justiça.

(Art. 35- São deveres do Magistrado: I Cumprir e fazer cumprir, com

independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício; III

- determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem

nos prazos legais;)

São estes, portanto, os três casos que devem nos inspirar neste diálogo sobre as

obscenidades e resistências frente ao sistema punitivo brasileiro: (i) a longa história de violação

aos Direitos Humanos no sistema prisional brasileiro, (ii) a constatação desse fato pela mais alta

autoridade judiciária brasileira e, por fim, (iii) o entendimento do CNJ de que o Juiz, ao decidir

pela manutenção da prisão decorrente do flagrante, é responsável pela prisão e condições do

encarceramento.

Dito isto, entendo de fundamental importância um rápido relato acerca das estatísticas de

outros países referente à população carcerária e a relação de pessoas presas por cada 100 mil

habitantes.

II - População carcerária mundial

De acordo com estudo do International Centre for Prisions Studies, do King’s College

London, existia no mundo, em dezembro de 2008, cerca de 9,8 milhões de pessoas presas.

Os EUA, disparadamente, detém a maior população carcerária do mundo com 2,29

milhões de presos. Este fato é explicado pelas políticas da “tolerância zero”, da “lei e da

ordem”, da privatização do sistema penitenciário etc, que transformaram os Estados Unidos em

verdadeiro Estado Penal.

Com efeito os EUA possuem em torno de 5% da população mundial e mais de 25% da

população carcerária do mundo. É como se quase dois terços (65%) da população do Uruguai

estivesse presa nos EUA.

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A relação de presos por habitante também tem os EUA em primeiro lugar com 756 presos

por cada 100 mil habitantes, depois a Rússia com 629 presos por cada 100 mil habitantes. Depois

Ruanda com 604 presos por cada 100 mil habitantes. Vejamos mais alguns países:

População Carcerária Mundial (alguns países)

País Total de Presos Por 100 mil hab.

EUA 2.293.157 756

Rússia 891.738 629

Ruanda 58.598 604

Chile 51.244 305

Brasil 440.013 227

Espanha 73.687 160

Argentina 60.621 154

Inglaterra 83.392 153

Canadá 38.348 116

Portugal 11.017 104

França 59.655 96

Itália 55.057 92

Alemanha 73.203 89

Suíça 5.715 76

Suécia 6.770 74

Finlândia 3.370 64

Japão 81.255 63

Dinamarca 3.448 63

Índia 373.271 33

Fonte: International Centre for Prisions Studies, do King’s College London

Na Europa ocidental, a média é de 95 presos por 100 mil habitantes, na América do Sul a

média é de 154. No Caribe, a média é de 324,5 presos por 100 mil habitantes. Não ouso

apresentar qualquer justificativa para o caso da Índia em face da complexidade das relações

sociais naquele país.

Nas estatísticas divulgadas recentemente pelo CNJ, o índice brasileiro em 2009 seria de

229 presos por cada grupo de 100 mil habitantes. Será que nosso destino é aproximar-se da

média dos EUA (756) ou da Europa Ocidental (95)?

Eis, por fim, um breve comparativo do crescimento da população carcerária no Brasil e

EUA, de 1981 a 2007.

Comparativo Brasil - EUA

Ano EUA Ano Brasil

1981 369.000 1985 39.609

1991 824.000 1990 90.000

2007 2.319.000 2007 422.509

Fonte: Wacquant, Loic. Punir os pobres. Ed. Revan. Dados do MJ Brasil

Os detalhes sobre o caso brasileiro, conforme adiantado no início deste trabalho, estão

contidos no Sistema de Informações Penitenciárias – Infopen, do Ministério da Justiça.

É o que veremos adiante.

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III - Crescimento da população carcerária no Brasil – 2000 a 2009

Segundo a estatística no Sistema de Informações Penitenciárias - Infopen, órgão

vinculado ao Ministério da Justiça, a população carcerária no Brasil era de 232.755 no ano de

2000 e de 473.626 em dezembro de 2009, ou seja, um crescimento de mais de 100% em uma

década.

O que se acentua de extrema gravidade neste quadro é que o déficit no sistema brasileiro

é de 139.266. Só em São Paulo, por exemplo, segundo a estatística do Infopen, o déficit é de

52.741 vagas. Isto significa dizer que os atuais presídios estão com população muito acima da

capacidade e, muito provável, também neste aspecto, em conflito com os Direitos Humanos mais

básicos.

Vejamos a evolução do crescimento da população carcerária no Brasil de 2000 a 2009,

segundo o Infopen.

Brasil – 2000/2009

Ano Total de presos

2000 232.755

2001 233.859

2002 239.345

2003 308.304

2004 336.358

2005 361.402

2006 401.236

2007 422.590

2008 451.429

2009 473.626

Fonte: Infopen - Ministério da Justiça

É evidente que a compreensão plena desse fenômeno somente se dará com a compreensão do

processo histórico vivido pelo País durante este período, bem como com a percepção do que

ocorreu nos campos da economia, política e do jurídico nesta década.

No Brasil, impossível não lembrar, vivemos sob a égide da Constituição Federal de 1988,

mas de outro lado com uma avalanche de normas punitivas e agravantes de penas para crimes já

tipificados em outras leis.

IV – Presos nos Estados por cada 100 mil habitantes.

O Brasil é uma vastidão de contradições e o sistema penitenciário retrata também essas

contradições entre os Estados com relação ao percentual de presos por cada 100 mil habitantes.

Vejamos.

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Brasil – Presos por cada 100 mil habitantes - Estados

Estado Presos % p/100 mil hab.

Acre 69.132 495,71

Rondônia 6.986 464,52

Mato Grosso do Sul 10.844 459,39

São Paulo 163.915 396,08

Roraima 1.659 393,60

Paraná 37.440 350,36

Distrito Federal 8.231 315,74

Espírito Santo 10.366 300,46

Amapá 1.812 289,18

Rio Grande do Sul 28.750 263,42

Pernambuco 21.041 238,82

Minas Gerais 46.447 231,84

Paraíba 8.524 226,10

Santa Catarina 13.340 218,02

Goiás 11.118 187,60

Rio de Janeiro 26.651 166,46

Sergipe 3.130 154,98

Ceará 13.035 152,50

Tocantins 1.935 149,76

Pará 10.289 138,46

Rio Grande do Norte 4.162 132,65

Bahia 14.289 97,62

Piauí 2.591 82,38

Maranhão 5.222 82,01

Alagoas 2.379 75,38

Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

Como se vê, os Estados do Nordeste Brasileiro (AL, MA, PI e BA) tem média abaixo de

100 presos por cada 100 mil habitantes, ou seja, indicadores dos países mais desenvolvidos da

Europa Ocidental. Evidente que este indicador dos Estados Nordestinos não significa que

alcançaram o nível de países da Europa em termos de Política Criminal. Empiricamente,

podemos dizer que os indicadores refletem, na verdade, a deficiência do sistema de segurança

pública e do Poder Judiciário desses Estados.

Sendo verdadeira esta reflexão, podemos então concluir que o percentual brasileiro de

presos por cada 100 mil habitantes seria bem superior aos 229 informados pelo CNJ caso

houvesse uma uniformização no funcionamento do sistema policial e judicial, tomando-se por

base os Estados do Sul e Sudeste do Brasil.

V - Presos provisórios

O Supremo Tribunal Federal tem decidido, reiteradamente, que a pena não pode ser

cumprida antecipadamente em respeito ao princípio constitucional da presunção da inocência.

Nas prisões do Brasil, no entanto, em dezembro de 2009, encontram-se na condição de presos

provisórios, cerca de 143.941 homens e 8.671 mulheres, totalizando 156.612 pessoas detidas

provisoriamente.

Page 9: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

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Vejamos, também, a evolução deste quadro no período compreendido entre 2000 a 2009:

Brasil – Presos provisórios – 2000 a 2009

Ano Homens Mulheres Total

2000 35.606 2.125 37.731

2001 34.076 1.804 35.880

2002 33.745 2.051 35.796

2003 * 64.849 2.700 67.549

2004 78.592 8.174 86.766

2005 98.222 3.894 102.116

2006 107.968 4.170 112.138

2007 122.334 5.228 127.562

2008 132.404 6.535 138.939

2009 143.941 8.671 156.612 Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

* Somente a partir de 2003 o Infopen disponibiliza os dados por Estados. Neste ano, o Estado de São Paulo informou a existência de 23.812 presos provisórios de um total de 67.549.

O primeiro dado importante a observar neste quadro é o crescimento de 37.731 presos

provisórios em 2000 para 156.612 presos provisórios em 2009. De outro lado, com relação às

mulheres, o crescimento foi de 2.125 em 2000 para 8.671 presas em regime provisório em

dezembro de 2009. Portanto, um crescimento significativamente inferior ao crescimento de

prisões provisórias de homens. O que explica esta diferença?

Definitivo, de outro lado, é a existência de 156.612 presos, representando mais de um

terço (33,06%) dos encarcerados, na condição de provisórios e aguardando julgamento em

delegacias e carceragens, ou seja, cumprindo, antecipadamente, a pena que, porventura, seriam

condenados.

VI - Escolaridade da população carcerária brasileira

Com relação ao grau de escolaridade, nenhuma surpresa. A grande maioria dos presos

tem baixíssima escolaridade enquanto uma parcela ínfima teve acesso ao ensino superior.

Brasil - Grau de escolaridade da população carcerária

Escolaridade Homens Mulheres Total %

Analfabeto 25.015 1.076 26.091 6,25

Alfabetizado 46.801 2.720 49.521 11,87

Fund. incompleto 168.113 10.427 178.540 42,83

Fund. completo 63.465 3.916 67.381 16,16

Médio incompleto 41.179 2.925 44.104 10,58

Médio completo 28.283 2.734 31.017 7,44

Superior incompleto 2.524 418 2.942 0,70

Superior completo 1.478 237 1.715 0,411

Acima do superior 52 8 60 0,014

Não informado 15.230 245 15.475 3,71

Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

Vê- se no quadro acima o que já era de se esperar: 77,11% dos presos tem grau de

escolaridade até o fundamental e apenas 1,12% tem escolaridade referente a superior incompleto

ou completo. O que se sabe ainda, considerando que são presos necessariamente com idade

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superior a 18 anos, é que apenas o ensino fundamental não qualifica nenhum deles para qualquer

atividade profissional, seja dentro ou fora do sistema penitenciário.

É verdade que esta proporção não corresponde, exatamente, ao retrato da escolaridade da

população brasileira. De outro lado, pode demonstrar que crimes são cometidos em maior

quantidade por pessoas de pouca escolaridade, tornando a recíproca verdadeira, ou seja, pessoas

de bom nível de escolaridade cometem poucos delitos.

VII – Presos por tipo de delito praticado

Para atender aos objetivos deste estudo, reduzimos as categorias de delitos cometidos

apenas em relação aos crimes contra a pessoa, contra o patrimônio e decorrentes de tráfico de

entorpecentes. Ressalte-se, todavia, que no Relatório do Sistema Infopen estão informados

também as categorias de crimes contra a “paz pública”, contra a “fé pública”, contra a

“administração pública”, “praticados por particular contra a administração pública” e, por

fim, crimes relacionados à legislação específica, incluído o ECA, Lei Maria da Penha, Tortura,

Meio ambiente, Desarmamento e Entorpecentes.

Presos por principais categorias de delito

Delitos Homens Mulheres Total %

Contra a pessoa 51.004 1.581 52.585 12,60

Contra o patrimônio 212.198 5.564 217.762 52,17

Contra os costumes 17.625 160 17.785 4,26

Entorpecentes 78.725 12.312 91.037 21,81

Fonte: Infopen – Ministério da Justiça

Vê-se aqui que mais da metade dos presos cometeram crimes contra o patrimônio, ou

seja, contra bens disponíveis. Somando-se os crimes contra o patrimônio com os crimes

relacionados ao tráfico, portanto, teríamos o percentual de 73,98% dos crimes, ou seja, quase três

quartos. De outro lado, somando-se os crimes contra a vida com os crimes contra os costumes,

teríamos um percentual de apenas 16,86%.

Significa dizer, consequentemente, que uma política criminal de descriminalização do

uso de entorpecentes ao lado de uma nova concepção de punição para os crimes contra o

patrimônio, a realidade do sistema seria outra.

Uma última observação com relação a este quadro diz respeito ao percentual de crimes

relacionados ao tráfico de entorpecentes praticados por mulheres. O Infopen não oferece mais

detalhes sobre este percentual, mas o que se sabe empiricamente é que boa parte dessas mulheres

são flagradas ao tentarem introduzir drogas nos presídios a pedido de seus companheiros que lá

se encontram. Muitas vezes, portanto, são primárias e de bons antecedentes, mas terminam

condenados e presas pelo crime de tráfico.

Page 11: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

11

VIII – A faixa etária da população carcerária

Outro dado importante para compreender a realidade do sistema prisional brasileiro e,

principalmente, para se conhecer o perfil da população carcerária diz respeito à faixa etária dos

presos.

População carcerária por faixa etária

Faixa etária Homens Mulheres Total

18 a 24 anos 122.592 6.507 129.099

25 a 29 anos 103.124 5.881 109.005

30 a 34 anos 68.693 4.319 73.012

35 a 45 anos 58.191 4.647 62.838

45 a 60 anos 22.050 2.075 24.125

Fonte Infopen – Ministério da Justiça

Vê-se aqui outro quadro desalentador: 311.116 presos contam com menos de 35 anos de

idade e este número representa 74,5% do total dos presos. Isto significa, portanto, que quase três

quartos dos presos são pessoas em plena idade produtiva, ou seja, entre 18 e 35 anos de idade.

Uma rápida conclusão, portanto, indica que 77% da população carcerária brasileira tem

grau de escolaridade até o ensino fundamental, 74,5% estão na faixa etária de 18 a 35 anos de

idade e 73,98% cometeram crime contra o patrimônio ou por tráfico de entorpecente.

É hora de nos perguntar, portanto, o que se tem realizado e proposto pelo Poder Judiciário

brasileiro em face desta realidade. Neste sentido, nos limites deste trabalho, abordaremos

algumas tentativas isoladas de magistrados brasileiros e ações institucionais promovidas do CNJ.

É o que veremos a seguir.

IX – As ações do Conselho Nacional de Justiça

Durante a realização dos Mutirões Carcerários, os juízes envolvidos no trabalho tem

divulgado e denunciado a existência de sérios problemas nas Delegacias e Penitenciárias do

Brasil. Antes de deixar a presidência do CNJ, o Ministro Gilmar Mendes escreveu artigo par ao

Jornal O Estado São Paulo criticando severamente o sistema prisional brasileiro.

Segundo Ministro, o sistema sofre de superlotação, algumas varas de execução penal não

contam com estrutura mínima de funcionamento, existe um déficit de 167 mil vagas no sistema

prisional, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos, cumprimento de penas provisórias

que ultrapassam o teto legal para o delito que cometeram e um flagrante paradoxo: “milhares de

réus encontram-se soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se

acham ilegalmente encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento

da pena.” (Anexo).

Page 12: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

12

De outro lado, as decisões do CNJ e de outros Tribunais brasileiros, em que pese o

reconhecimento da crise que se instalou no sistema, não são de acolhimento às iniciativas de

juízes de primeiro grau que, corajosamente, fazem valer as garantias fundamentais inseridas na

Constituição de 1988.

Vamos observar, portanto, as ações do CNJ com relação às iniciativas dos juízes de

primeiro grau e, em seguida, os números dos Mutirões Carcerários.

a) O CNJ e as decisões dos Juízes de primeiro grau

Em 27 de maio de 2009, o tribunal de Justiça de Minas Gerais aposentou

compulsoriamente o Juiz de Direito Livingsthon José Machado, após ter recusado remoção

compulsória, pelo fato de ter libertado, em 2005, 59 presos que cumpriam penas ilegalmente em

delegacias superlotadas na comarca de Contagem (MG).

Segundo o relato do Juiz, em um Distrito Policial de Contagem, em quatro celas, cada

uma com capacidade para 4 presos, havia 148, dos quais 39 esperavam transferência para a

penitenciária havia quatro anos. Em outro, em razão do excesso de presos, o delegado pôs uma

grade no corredor, que virou uma cela com 28 presos.

O CNJ, à unanimidade de seus Conselheiros, indeferiu o pedido de Revisão do Ato

Administrativo (PCA nº 2007.10.00.001082-1), requerido pela Associação Nacional dos

Magistrados Estaduais (ANAMAGES) em favor do magistrado

A entrevista que o Juiz de Direito Livingsthon José Machado concedeu ao Jornal Folha

de São Paulo, (Anexo), é um marco da luta da magistratura brasileira em defesa da Constituição

de 1988.

Em outra oportunidade, o CNJ, acolhendo voto do Conselheiro Jorge Maurique, também

deixou de acolher decisão do Juiz da Execução Penal de Tupã (SP) que proferiu decisão

impedindo diretores das penitenciárias de Pacaembu e Lucélia e do Centro de Progressão de

Pacaembu de receberem mais presos, em face da superlotação das unidades.

Antes do CNJ, a decisão do Juiz havia sido revogada pela Corregedoria Geral da Justiça

do TJSP e a questão foi levada ao CNJ através de Procedimento de Controle Administrativo

(2008.10.00.000239-7) requerido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, pela

Comissão de Direitos Humanos da seccional de Tupã (SP) da Ordem dos Advogados do Brasil

(OAB) e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Em seu voto, o relator registrou que o problema de fundo deste procedimento "concerne

Page 13: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

13

à incapacidade do Estado em gerir de modo adequado a execução penal". E levantou uma série

de razões sociológicas para explicar "os motivos pelos quais dificilmente políticas de execução

penal pautam de modo prioritário as agendas dos governos. A origem do problema, contudo,

não se encontra somente em motins, rebeliões e violações sistemáticas de direitos humanos; ela

remonta à própria noção de estrutura da sociedade, seus fins e métodos de controle social".

De acordo com o Conselheiro Jorge Maurique, a grave situação enfrentada pelas casas

prisionais de São Paulo é comum em todo o País e no mundo. Ao sugerir a criação da Comissão,

o conselheiro alertou para a gravidade da crise: "O problema, portanto, é macro, sistêmico,

mundial e complexo, não apenas restrito aos estabelecimentos prisionais do caso em tela e, à

toda evidência, não sendo resolúvel por meio de medidas isoladas, sejam adotadas por

magistrado, em sua atividade fiscalizatória e correcional da execução penal, seja por parte

deste Conselho, em seu papel de controlador dos referidos atos. Para um problema de tamanha

grandeza, faz-se mister soluções igualmente complexas e tomadas com suporte de um número

maior de pessoas e instituições. Se há algo de errado com o sistema, é necessário que este

sistema seja alterado; o que não se pode permitir é que este mesmo sistema seja subvertido em

sua ordem, sob pena de que seja instaurada uma situação de desordem, de antidemocracia e de

supressão do diálogo institucional. Em resumo, incorre-se no risco de se inviabilizar o próprio

sistema prisional, por pior que seja seu modelo atual, ainda mais por que praticamente não há

no Brasil estabelecimento carcerário que não tenha excedido seus limites. É infelizmente a triste

realidade que se atesta diariamente nos noticiários nacionais e nas atividades correcionais

judiciais." 6

Conclui-se, portanto, que não são aceitas pela cúpula do Poder Judiciário iniciativas

isoladas da magistratura brasileira o enfrentamento da questão, tendo como fundamento o

respeito às garantias fundamentais e aos Direitos Humanos dos presos.

A seguir, ainda nos limites deste trabalho, analisaremos o programa “Mutirões

Carcerários” promovido pelo CNJ, com apoio de outros órgãos do Poder, em penitenciárias de

todo o Brasil. Sem esquecer, todavia, que o CNJ também desenvolve o programa “Começar de

Novo”, destinado aos presos libertados através das ações dos Mutirões Carcerários, e a

modernização e aparelhamento das Varas de Execução Penal.

6 In < http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3915:conselho-cria-grupo-para-analisar-situa-

dos-presos-e-execus-de-pena-no-pa&catid=1:notas&Itemid=675 > acesso em 10.05.2010

Page 14: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

14

b) Os Mutirões Carcerários

Em agosto de 2008, o CNJ coordenou o primeiro mutirão carcerário, no Rio de Janeiro,

em conjunto com o Tribunal de Justiça daquele Estado, e já esteve presente em quase todos os

Estados Brasileiros. Segundo o CNJ, em síntese, “o propósito é fazer um relato do

funcionamento do sistema de justiça criminal, revisar as prisões, implantar o Projeto Começar

de Novo e, ao final, no relatório dos trabalhos, são feitas proposições destinadas aos órgãos que

compõem o sistema de justiça criminal, visando ao seu aperfeiçoamento.”7

O Relatório atualizado em 06.05.2010, publicado no site do CNJ8, informa que já foram

analisados 124.585 processos, concedidos 21.736 benefícios de liberdade e 36.345 outros tipos

de benefícios. A porcentagem de liberdade por processos é de 17%.

A estatística por Estado aponta os seguintes indicadores:

Sistema de Mutirão Carcerário

Estado Proc. Analisados Benefício de liberdade Outros benefícios

Alagoas 1.848 458 502

Amazonas 3.323 555 865

Amapá 1.461 49 285

Bahia 9.830 2.648 3.936

Ceará 9.272 2.553 3.842

Espírito Santo 9.122 858 1.345

Goiás 22.202 2.484 4.042

Maranhão 4.881 1.244 2.059

Mato Grosso do Sul 9.416 1.595 3.027

Mato Grosso 2.122 392 941

Pará 1.742 435 435

Paraíba 6.738 970 2.222

Pernambuco 9.767 1.940 2.729

Piauí 1.366 461 493

Paraná 16.084 1.458 2.568

Rio de Janeiro 6.247 1.730 3.914

Rio Grande do Norte 88 2 59

Roraima 1.906 315 538

Santa Catarina 696 39 159

Sergipe 4.181 1.292 1.707

Tocantins 2.293 258 677

Total 124.585 21.736 36.345

Fonte: Estatística do CNJ

Os dados publicados pelo CNJ não permitem uma análise mais detalhada sobre o perfil

dos presos beneficiados. Assim, por exemplo, não sabemos quais os delitos que cometeram, qual

a escolaridade, a que pena foram condenados, quanto tempo de pena já tinham cumprido e,

finalmente, o futuro deles após a liberdade.9

7 In < http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10311&Itemid=1123 > acesso em 10.05.2010 8 In < http://www.cnj.jus.br/mutirao_carcerario/index.wsp> acesso em 10.05.2010 9 O caso do detento Gildeon Ribeiro dos Santos, noticiado no site do CNJ, é emblemático: ―Depois de passar quase 18 anos preso

em uma penitenciária de São Luis (MA), Gildeon Ribeiro dos Santos, 34 anos, vai finalmente poder rever sua família, neste

sábado (6/3), em Imperatriz (MA), cidade que fica a 530 km da capital, no sudoeste maranhense. Ao ganhar liberdade

Page 15: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

15

Empiricamente, no entanto, como base na experiência de quem atua na área de execução

penal, talvez seja possível afirmar que os presos beneficiados, certamente, não possuíam

advogados constituídos e nem eram assistidos por Defensores Públicos de forma mais atenta, vez

que houve necessidade da intervenção do CNJ para que tivessem reconhecido um benefício

legal.

Os Relatórios dos mutirões publicados pelo CNJ apontam a existência de quadros

deprimentes nas penitenciárias do país, inclusive a existência de presos em “containeres”,

detentos com doenças contagiosas, prisões com quantidade de detentos superior à capacidade,

esgotos a céu aberto etc. Enfim, os mutirões do CNJ serviram para conceder a liberdade e outros

benefícios a milhares de presos, mas serviram também, e principalmente, para mostrar à

sociedade o quadro de horrores que é o sistema penitenciário brasileiro.

As liberdades e benefícios concedidos, no entanto, com base no que foi divulgado, não

tem relação com a falta de estrutura das penitenciárias e violação das garantias fundamentais dos

presos, mas apenas a aspectos processuais.

Não custa lembrar que no Brasil Colônia, aos presos da Cadeia Velha, a Santa Casa de

Misericórdia socorria com enfermeiros, remédios, comida e advogados. Não há registro, no

entanto, que os misericordiosos padres da Santa Casa de Misericórdia tivessem promovido

algum protesto com relação à própria Cadeia Velha ou à violação dos direitos mais básicos dos

detentos.

X – Desfazendo mitos

Segundo Loïc Wacquant, três mitos amplamente divulgados pelo governo e imprensa,

dominam o debate contemporâneo sobre a violência criminal nos EUA. O primeiro pretende que

a política penal no país peca por uma condescendência perene; o segundo afirma que a repressão

é uma política bem sucedida, ao passo que o Estado se revela congenitamente impotente no

domínio social, salvo quando adota a mesma atitude punitiva; o terceiro sustenta que o

encarceramento se torna, no final das contas, por seu efeito neutralizante, menos caro do que o

somatório dos crimes que evita.10

condicional nesta sexta-feira (5/3), depois de ter seu processo analisado pelo mutirão carcerário do CNJ, Gildeon recebeu a

passagem para voltar a sua cidade, roupa e um auxílio em dinheiro para alimentação, fruto de uma parceria entre o Conselho, a

prefeitura de São Luís, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), e o governo do estado. "Vão me colocar no ônibus e quando

eu chegar lá, minha mãe estará me esperando. Se não fosse isso, não sei como voltaria para casa, teria que pedir carona, ou

ajuda para alguém", disse.

In < http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10200:libertados-pelo-mutirao-no-ma-recebem-

apoio-para-voltar-para-casa&catid=1:notas&Itemid=675 > acesso em 10.05.2010 10 Wacquant, Loïc. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Page 16: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

16

O caso do Brasil não é diferente. É forte o sentimento com relação à condescendência da

legislação brasileira e é grande a aceitação, pela opinião pública, da implantação da pena de

morte na legislação penal brasileira. Ao lado disso, as penas alternativas não são levadas muito a

sério e, não raro, tornam-se motivo de chacota. No mais, mesmo para boa parte da magistratura

brasileira, a solução é o encarceramento e aplicação de penas cada vez maiores para os

delinquentes comuns.

Os números apresentados neste estudo, porém, destronam estes mitos ao demonstrar que

o nível de encarceramento, em comparação com países desenvolvidos da Europa Ocidental, é

muito alto no Brasil; que a população carcerária cresceu assustadoramente na última década e,

mesmo assim, a criminalidade apenas cresceu e ganhou novos contornos no mesmo período.

Além disso, os números apresentados neste estudo demonstram claramente que a

população carcerária brasileira é composta basicamente pela população pobre e excluída, que

mal sabe desenhar o nome, que cometeu crimes contra o patrimônio e por envolvimento com o

tráfico de entorpecentes.

Por fim, os mutirões carcerários promovidos pelo CNJ, ao anunciar a libertação de mais

de 20 mil presos por excesso no cumprimento da pena, demonstram claramente que não há

condescendência do sistema para quem é pobre e desamparado de boa defesa. Com efeito, a

estatística disponibilizada pelo CNJ não informa detalhes sobre os detentos beneficiados pelos

mutirões carcerários, mas não é difícil supor que se trata de delinquantes comuns, analfabetos e

desamparados de defesa.

XI – Conclusão

E assim, entre obscenidades e resistências, não podemos dizer que concluímos

definitivamente o presente estudo, pois não sabemos ainda os detalhes acerca da população

carcerária beneficiada pelos mutirões carcerários promovidos pelo CNJ.

De outro lado, podemos afirmar que o problema da superlotação dos presídios brasileiros

é antigo e histórico, desde os tempos da Cadeia Velha, bem como é antiga a política de maus

tratos, abandono e violação dos direitos dos presos. Séculos se passaram, mais crimes foram

tipificados, mais penas agravadas e, por lógica, a população carcerária só aumentou a cada ano,

principalmente na última década. Sem dúvidas é o Estado do Bem Estar dando lugar ao Estado

Penal.

Page 17: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

17

Os presos, guardadas as devidas proporções, são os mesmos do Brasil Colônia. Antes,

prendiam-se escravos, prostitutas e malandros de todas as espécies. Hoje, prende-se jovens

pobres, analfabetos, no auge da idade produtiva, pela prática de crimes contra o patrimônio e

tráfico de drogas, em grande parte.

Além disso, é interessante observar que as mais altas autoridades judiciárias brasileiras

denunciam o caos do sistema penitenciário brasileiro, mas os Tribunais e CNJ não acolhem as

iniciativas dos juízes de primeiro grau em defesa da Constituição e no cumprimento dos Direitos

Humanos dos Presos. Ao contrário, são promovidos mutirões carcerários para libertar presos

pobres, sem defesa, com direito à liberdade assegurado em Lei, apenas em razão de falhas

processuais na execução da pena, mas sem tocar na grande ferida que é o próprio sistema

penitenciário, violador das garantias fundamentais de toda a população carcerária.

O perfil da população carcerária brasileira, por fim, destrói os mitos da eficiência da

pena, aumento da repressão e condescendência do sistema. Não passam, portanto, de

obscenidades justificadoras da grande obscenidade que é o sistema penitenciário brasileiro.

Resistindo e relembrando as atrocidades da Cadeia Velha; o discurso do Ministro Peluso

reconhecendo a falência do sistema; o reconhecimento do Juiz, pelo CNJ, como “garantidor da

não violação dos direitos e garantias fundamentais” e as estatísticas dos mutirões carcerários do

CNJ, a discussão que agora propomos é a seguinte:

a) Até quando vamos continuar aceitando o atual sistema prisional fundamentado apenas na

justificativa de que, por enquanto, não temos nada melhor?

b) Até quando seremos cúmplices de constantes violações aos Direitos Humanos na medida

em que continuamos, a cada dia, condenando réus a regime fechado em penitenciárias

superlotadas, ou seja, o Estado-Juiz cometendo crimes contra o cidadão, conforme

discursou o Ministro Peluso?

c) Até quando aceitaremos passivamente o descaso e abandono da Constituição e da LEP

quando da execução da pena?

d) Até que ponto os Mutirões Constitucionais estão apenas aliviando a tensão em

penitenciárias superlotadas, que em breve estarão à espera de novos condenados, mas

coma mesma estrutura de antes?

e) Por fim, qual o papel do Direito e das Ciências Penais na superação desse quadro de

horrores?

Page 18: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

18

Enfim, este é o debate para o qual convido a todos os “artesãos” do Direito e defensores

dos Direitos Humanos a enfrentar e, por consequência, promover um verdadeiro “mutirão

constitucional” que também tivesse olhos para as violações dos Direitos Humanos, além das

violações do Processo Penal, contribuindo, efetivamente, para a construção da democracia e

fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

Muito obrigado a todos pela atenção.

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Anexo I

Mutirões carcerários, uma aula de Brasil

O Estado de São Paulo, Sexta, 23 de Abril de 2010

Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ

Comecemos pelo óbvio: preso é gente. E gente precisa de alimento, educação e trabalho. No

Brasil, porém, a realidade às vezes consegue revogar até axiomas. Aqui, os presídios não são

casas correcionais socializadoras, mas depósitos de seres humanos que, lá chegando, se

transformam em coisas - pelo menos aos olhos apáticos da maioria - e como tal são amiúde

tratados.

Essa constatação vem sendo escancarada diariamente ao País, desde que o Conselho Nacional de

Justiça (CNJ) pôs em execução o Programa dos Mutirões Carcerários.

As deficiências são de toda ordem: desde a já conhecida superpopulação, a exigir investimentos

muito mais consistentes na estrutura carcerária, até o lixo acumulado e a infestação por ratos,

cuja solução é de simplicidade absoluta. No âmbito do sistema de justiça, faltam técnicos e

estrutura mínima de funcionamento em algumas varas de execuções penais. Enquanto

escasseiam defensores, sobram processos aguardando instrução, num quadro em que o excesso

de prazo passa a ser a regra.

De fato, os mutirões carcerários constataram um inadmissível déficit de mais de 167 mil vagas

no sistema prisional - que hoje mantém mais de 473 mil pessoas e cresce em média 7,11% ao

ano. Esse número é ainda mais grave se considerados os milhares de mandados de prisão que

ainda não foram cumpridos. Sem dúvida, o total gasto pela União no ano passado para

construção de presídios é insuficiente e não atinge sequer 3% dos recursos essenciais para a

criação dessas vagas.

A ineficiência sistêmica é mais flagrante no paradoxo de que milhares de réus encontram-se

soltos, sem perspectiva de julgamento, ao tempo em que outros tantos se acham ilegalmente

encarcerados, com excesso de prazo na prisão cautelar ou no cumprimento da pena. E o mais

aviltante: muitos presidiários cumprem, provisoriamente, penas que ultrapassam o teto legal

fixado para o delito que cometeram.

É para reverter tais ignomínias que o CNJ trabalha.

Em um ano e meio de trabalho e após examinados mais de 111 mil processos, foram concedidos

cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre os quais mais de 20,7 mil

liberdades. Em outras palavras, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reouveram o

vital direito à liberdade. Quanto à racionalização dos gastos - decisiva num sistema carcerário em

que a superlotação é a regra -, os mutirões resultaram na realocação de vagas equivalentes à

capacidade de 40 presídios médios. Não é pouco, mas há muito ainda por fazer.

A Lei de Execuções Penais determina que os condenados trabalhem ou tenham acesso ao ensino

fundamental. Todavia, recente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Rio de

Janeiro revela que, em 2008, a média de presos sem trabalho gira em torno de 76% e apenas

17,3% estudam. Também de acordo com a pesquisa, entre os detidos que trabalham, a

probabilidade de reincidência cai a 48%. Para os que estudam, reduz-se a 39%.

Ora, o alto índice de reincidência demonstra que o sistema prisional não atende ao seu principal

Page 20: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

20

objetivo - recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que tiveram a desventura de

infringir a lei.

Ainda que não resolvam, por si sós, a grave situação por que passa o sistema de justiça criminal,

os mutirões descortinaram, jogando luz sobre o incômodo quadro, uma realidade que a

população brasileira, em geral, e o Estado, em particular, preferiam ignorar, como se o problema

não existisse ou não lhes fosse pertinente.

Os explosivos indicadores da violência urbana, o aumento da criminalidade e da sensação de

insegurança demonstram às escâncaras que o problema se agrava a olhos vistos e precisa ser

resolvido com medidas pragmáticas e não paliativas, a exemplo das parcerias que o CNJ vem

fazendo com órgãos públicos e com a comunidade para viabilizar a capacitação profissional

necessária à reinserção dos presos na sociedade, além do acesso a serviços básicos como a

previdência e assistência social.

No abrangente conjunto de ações desenvolvidas pelo CNJ para viabilizar a efetiva reinserção de

egressos, destacam-se projetos como o Começar de Novo, a Advocacia Voluntária, o

Recambiamento de Presos e até a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do

Sistema Carcerário (Lei n.º 12.106/09), no âmbito do CNJ, verdadeiros legados estruturantes dos

mutirões carcerários, com frutos até mesmo no plano da justiça criminal. Não por outro motivo,

o 3.º Encontro Nacional do Judiciário, realizado no início do ano, elegeu o ano de 2010 o ano da

justiça criminal.

De fato, os mutirões nos dão uma aula de Brasil, cujas revelações ensinam que apenas um

esforço conjunto, sério e planejado pode virar essa página tão triste e calamitosa, tanto do ponto

de vista dos direitos humanos como da segurança pública. Daí a elaboração de ampla Estratégia

Nacional de Justiça e Segurança Pública, alicerçada em estreita colaboração entre os órgãos do

Judiciário, do Executivo e do Ministério Público, direcionada à superação dos problemas que,

além de empalidecerem a efetividade da lei, atrapalham o fortalecimento das instituições

democráticas no País.

Pressuposto dessa integração de ações é o reconhecimento da extensão do problema e da própria

responsabilidade de cada uma das instituições ligadas ao sistema carcerário. O momento é de

abandonar a postura da transferência de culpas para abraçar a da corresponsabilidade, com

planejamento e atuação articulados.

Por ação ou omissão, o tirano nessa história não pode ser mais o Estado brasileiro, cujo

crescimento econômico, em plena crise mundial, tem despertado admiração nos quatro cantos do

mundo. Passa da hora de o País alçar ao ranking exemplar da responsabilidade social,

garantindo, minimamente, proteção aos direitos fundamentais, sobretudo dos segmentos mais

vulneráveis da população.

Fonte: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10750:presidente-gilmar-mendes-mutiroes-carcerarios-uma-aula-de-brasil&catid=412:artigos&Itemid=1166

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Anexo II

Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo pelo Juiz Livingsthon José Machado

Qual era a situação carcerária quando o senhor assumiu a Vara de Execuções Criminais

em Contagem?

Livingsthon José Machado — À época [2005], havia seis unidades prisionais [em delegacias] e

uma prisão de segurança máxima. As seis delegacias tinham presídios em situação

irregular. Num distrito, em razão do excesso de presos, o delegado pôs uma grade no corredor,

que virou uma cela com 28 presos.

Por que o senhor determinou a primeira soltura de presos?

Machado — Naquele distrito, 16 presos cumpriam pena ilegalmente. Ordenei a transferência

deles depois que o Ministério Público pediu a interdição do presídio. Como foi vencido o prazo e

não houve a transferência, expedi 16 alvarás de soltura.O Estado, através da Procuradoria,

ajuizou um mandado de segurança, dizendo que a decisão contrariava o interesse público. O

desembargador Paulo César Dias deu a liminar e suspendeu a ordem de soltura. Duas semanas

depois, a situação em outro distrito era caótica. Em quatro celas, cada uma com capacidade para

4 presos, havia 148, dos quais 39 esperavam transferência para a penitenciária havia quatro anos.

Também expedi mandado de soltura para os 39. Novo mandado de segurança foi impetrado e

nova liminar foi dada.

Ficou caracterizado que houve desobediência sua?

Machado — A alegação foi que eu desobedeci reiteradamente a decisão do desembargador. Não

houve isso. No dia 22 de novembro de 2005, um juiz corregedor me avisou que eu seria afastado

no dia seguinte. Fui afastado sem possibilidade de defesa. Só fui intimado para responder a esse

processo em março do ano seguinte. Em setembro de 2007, a corte decidiu o meu afastamento.

Apesar de a lei dizer que juiz só pode ser afastado por decisão de dois terços, esse quórum não

foi alcançado. Só um desembargador examinou as provas. Votou pela minha absolvição.

Como o Ministério Público atuou no caso?

Machado — Nomeou uma comissão de dez promotores para apurar possíveis crimes que eu

teria praticado. Quando foi assassinado um promotor em Belo Horizonte, a Procuradoria

designou três promotores.

Qual foi a reação dos juízes de primeiro grau?

Machado — A associação dos magistrados fez uma nota depois do meu afastamento, dizendo

que era inadmissível aquela ingerência. Houve solidariedade de juízes de outros países.

Independentemente de chamar a atenção ou não, eu faria o que fiz. No país há um descaso com a

população carcerária. O que fiz foi cumprir o dispositivo constitucional de que a prisão ilegal

deve ser relaxada.

Como o senhor recorreu das decisões?

Machado — Assim que o tribunal decidiu me afastar, recorri em mandado de segurança aqui no

tribunal. Foi denegado. Contra essa decisão, impetrei um recurso ordinário que tramita no

Superior Tribunal de Justiça. Publicada a decisão do tribunal daqui, entrei com recurso no

Conselho Nacional de Justiça em 10 de outubro de 2007. Ficou um ano e meio sem o então

Page 22: Os mutirões carcerários e a crise do sistema penitenciário

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corregedor despachar. Foi distribuído ao relator Paulo Lobo, que, após alguns meses, disse que

não conhecia da revisão [não seria o caso de julgar], porque eu já havia ajuizado recurso

ordinário no STJ. Eram coisas diferentes. No CNJ, alego que não houve desobediência. No STJ,

contesto a decisão do tribunal. Contra essa denegação do CNJ, há um mandado de segurança no

Supremo Tribunal Federal, cujo relator é o ministro Menezes Direito, que indeferiu a liminar.

Agora, o tribunal em Minas abriu processo para minha aposentadoria compulsória.

Por que o senhor não aceitou a remoção para uma vara cível?

Machado — Há recursos a serem decididos. Se eu assumisse, estaria aceitando a punição.

O governo do Estado alega que acelerou a construção e a melhoria de presídios. É

verdade?

Machado — Aqui, em Contagem, as unidades prisionais deixaram de existir em 2007.Hoje, só

existe a penitenciária. De certa forma, foi um dos efeitos da ação. Não tem mais preso condenado

em delegacia aguardando vaga na penitenciária. Foi criado um centro de internação provisória.

Mas, num distrito investigado pela CPI do Sistema Carcerário, viram que a situação continuava

grave.

Quando o senhor decidiu que iria deixar a Magistratura?

Machado — Quando vi a Constituição sendo rasgada.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2009-mai-27/juiz-mandou-soltar-presos-contagem-deixar-

magistratura