os muckers

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SCHUPP, Padre Ambrósio

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  • Jacobina Mentz Maurer(junho 1841 ou 1842 - 2.8.1874),lder criadora da seita dos Muckers

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    OS MUCKERS

  • Mesa Di re to raBi nio 2003/2004

    Se na dor Jos SarneyPre si den te

    Se na dor Pa u lo Paim1 Vice-Pre si den te

    Se na dor Edu ar do Si que i ra Campos2 Vi ce-Presidente

    Se na dor Ro meu Tuma1 Se cre t rio

    Se na dor Alber to Silva2 Se cre t rio

    Se na dor He r cli to Fortes3 Se cre t rio

    Se na dor Sr gio Zam bi asi4 Se cre t rio

    Su plen tes de Se cre t rio

    Se na dor Joo Alber to Souza Se na dora Serys Slhessarenko

    Se na dor Ge ral do Mes qui ta Jnior Se na dor Mar ce lo Cri vel la

    Con se lho Edi to ri alSe na dor Jos Sarney

    Pre si den teJo a quim Cam pe lo Mar ques

    Vi ce-Presidente

    Con se lhe i rosCar los Hen ri que Car dim Carl yle Cou ti nho Ma dru ga

    Joo Almi no Ra i mun do Pon tes Cu nha Neto

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Edi es do Se na do Fe de ral Vol. 32

    OS MUCKERSEPISDIO HISTRICO EXTRADO DA VIDA

    CONTEMPORNEA NAS COLNIAS ALEMS DORIO GRANDE DO SUL

    Pa dre Ambr sio Schupp S. J.

    Tra du o bra si le i ra au to ri za da pelo au tor porAlfre do Cl. Pin to

    Braslia 2004

  • EDIES DOSENADO FEDERAL

    Vol. O Con se lho Edi to ri al do Se na do Fe de ral, cri a do pela Mesa Di re to ra em31 de ja ne i ro de 1997, bus ca r edi tar, sem pre, obras de va lor his t ri co

    e cul tu ral e de im por tn cia re le van te para a com pre en so da his t ria po l ti ca,eco n mi ca e so ci al do Bra sil e re fle xo so bre os des ti nos do pas.

    Pro je to gr fi co: Achil les Mi lan Neto Se na do Fe de ral, 2004Con gres so Na ci o nalPra a dos Trs Po de res s/n CEP 70165-900 Bra s lia DFCEDIT@se na do.gov.brHttp://www.se na do.gov.br/web/con se lho/con se lho.htm

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Schupp, Ambr sio.Os Muc kers : epi s dio his t ri co ex tra do da vida con tem po r nea

    nas col nias ale ms do Rio Gran de do Sul / Pa dre Ambr sioSchupp ; tra du o bra si le i ra au to ri za da pelo au tor por Alfre doCl. Pin to. -- Bra s lia : Sen ado Fe de ral, 2004.

    XXVI + 329 p. -- (Edi es do Se na do Fe de ral ; v. 32)

    1. Co lo ni za o ale m, Rio Gran de do Sul. 2. Imi gra o ale m,Rio Gran de do Sul. I. T tu lo. II. S rie.

    CDD 325.343098165

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Su m rio

    PRLOGO DA EDIO BRASILEIRA

    pg. XV

    PRLOGO DA 1 EDIO ALEMpg. XXIII

    PRLOGO DA 2 EDIO ALEMpg. XXV

    INTRODUOpg. 1

    LIVRO IOs fa n ti cos

    CAPTULO I S. Le o pol do O Fer ra brs O cu ran de i ro

    pg. 15

    CAPTULO II A pro fe ti sa

    pg. 23

    CAPTULO III Uma hora de de vo o no Fer ra brs

    pg. 27

    CAPTULO IV O per so na gem mis te ri o so

    pg. 31

  • CAPTULO V Ten ta ti va ma lo gra da

    pg. 35

    CAPTULO VI A cena do dia de Pen te cos tes

    pg. 41

    CAPTULO VII Os pri me i ros aps to los

    pg. 47

    CAPTULO VIIIA car ta Pla nos de Ja co bi na O con se lho se cre to

    pg. 53

    CAPTULO IX Na ven da do Ser ra no - Uma nova as sem blia dos Muc kers

    Inten o de Ja co bi napg. 57

    CAPTULO XOs Muc kers e os m pi os O aba i xo as si na do

    pg. 61

    CAPTULO XI O es piapg. 65

    CAPTULO XII O avi sopg. 69

    CAPTULO XIII Um en con tro Espe ran a per di da

    pg. 75

  • CAPTULO XIV Uma in ti ma o es cri ta de sa gra d vel

    pg. 81

    CAPTULO XV Pri so de Jor ge Ma u rer

    pg. 85

    CAPTULO XVI Che ga a vez de Ja co bi na

    pg. 89

    CAPTULO XVII Ja co bi na na po l cia O seu des per tar

    Cena gro tes ca Inter ro ga t rio pg. 95

    CAPTULO XVIII A fes ta de Pen te cos tes per tur ba da

    pg. 99

    CAPTULO XIX A vol ta do ca sal mi la gre i ro

    pg. 105

    CAPTULO XXA ex cur so pela co l nia A ci da de la dos Muc kers

    pg. 109

    CAPTULO XXI Uma de sa pa ri o Fim tr gi co

    Uma vi si ta acom pa nha da de sur pre saspg. 113

    CAPTULO XXII Nova vi si ta

    pg. 119

  • LIVRO IIAssas si nos e in cen di ri os

    CAPTULO I A pri me i ra cena de san gue

    pg. 125

    CAPTULO II Aps o cri me Opi nies di fe ren tes O de le ga do

    pg. 129

    CAPTULO III S di nhe i ro e au d cia

    pg. 135

    CAPTULO IV Li vre das gar ras

    pg. 139

    CAPTULO V A im pu dn cia aco ro o a da pelo bom xi to

    pg. 143

    CAPTULO VI No vas ce nas de san gue

    pg. 149

    CAPTULO VII Espe ran a de si lu di da Uma pri so

    pg. 155

    CAPTULO VIII A vol ta do cu ran de i ro ao lar Per mu ta das mu lhe res

    pg. 159

    CAPTULO IX Pla no de nova atro ci da de

    pg. 163

  • CAPTULO X Uma fa a nha de ca ni ba is

    pg. 169

    CAPTULO XI Aps o aten ta do hor ro ro so

    pg. 173

    CAPTULO XII Inci den tespg. 177

    CAPTULO XIII A no i te da car ni fi ci na

    pg. 181

    CAPTULO XIV Os fo ra gi dos

    pg. 189

    CAPTULO XV Entre o fer ro e o fogo

    pg. 193

    CAPTULO XVI Aven tu ra de Fi li pe Klei Assas si na to de Jac Schmidt

    pg. 197

    CAPTULO XVII Fi li pe Sehn em apu ros Mor te de Kray

    pg. 203

    CAPTULO XVIII Mais san gue

    pg. 207

    CAPTULO XIX A ma nh se guin te no i te da ma tan a

    pg. 211

  • CAPTULO XX A mu lher de Pe dro Ser ra no na fuga

    pg. 217

    CAPTULO XXI A or gia de san gue nas pi ca das

    pg. 223

    CAPTULO XXII Muc kers em apu ros Um en con tro Incur ses

    pg. 231

    CAPTULO XXIII No vas cor re ri as

    pg. 237

    CAPTULO XXIV Os l ti mos Muc kers nas pi ca das

    pg. 241

    LIVRO IIIOs re bel des

    CAPTULO I Pe dro Ser ra no Pro vi dn ci as

    pg. 247

    CAPTULO II A cou sa vai se tor nan do s ria O co ro nel Ge nu no

    Os Muc kers se pre vi nempg. 251

    CAPTULO III O pri me i ro com ba te (28 de ju nho)

    pg. 255

  • CAPTULO IV A pri me i ra nova Ou tros pre pa ra ti vos

    pg. 263

    CAPTULO V O as sal to ci da de la dos Muc kers

    pg. 267

    CAPTULO VI Esmo re ci men to As chou pa nas no mato Os fu gi ti vos

    pg. 277

    CAPTULO VII Assal to ines pe ra do Mor te do co ro nel Ge nu no

    pg. 281

    CAPTULO VIII Expe di o ma lo gra da

    pg. 285

    CAPTULO IX Uma in ves ti da de co lo nos

    pg. 289

    CAPTULO X O ca pi to Dan tas Apu ros de um co man dan te

    pg. 295

    CAPTULO XI Sur pre sa agra d vel

    pg. 301

    CAPTULO XII Ca ts tro fepg. 305

  • CAPTULO XIII Os l ti mos Muc kers

    pg. 313

    FIMpg. 319

    XODOpg. 321

    NOTASpg. 325

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Pr lo go da edi o bra si le i ra

    ABALANAMO-NOS a ver ter no idi o ma p trio oin te res san te li vro que sob o t tu lo Os Muc kers man dou pu bli carna Ale ma nha o Rdo. P.e Ambr sio Schupp. No s como li te ra to, e li -te ra to pri mo ro so, mas tam bm como emi nen te ho mem de cin cia o au tor co nhe ci do na que le pas, don de fi lho. Tam bm aqui no Bra sil, de nor tea sul, os seus tra ba lhos no cam po das cin ci as na tu ra is, pu bli ca dos emdi ver sas re vis tas, gran je a ram-lhe jus to re no me no mun do ci en t fi co. Ain damais, com en tra nha do amor ao nos so pas, que ado tou e es tre me ce comose gun da p tria, este ilus tre fi lho da Com pa nhia de Je sus, h lar gos anosque vem pres tan do, aqui no Rio Gran de do Sul, os mais as si na la dos ser -vi os ca u sa de ins tru o da mo ci da de, j como pro fes sor e len te que foino fa mo so Co l gio de N.a S.a da Con ce i o em So Le o pol do, na Esco la de Enge nha ria e no Se mi n rio Epis co pal de Por to Ale gre, j como pro -fes sor que ain da , no Gi n sio S. Lus, em Pe lo tas. E quan tos o co nhe -cem, ad mi ram-lhe o vas to e pro fun do sa ber re al a do por uma mo ds tiarara.

    Ren den do ho me na gem aos m ri tos e ser vi os de to pres tan te evir tu o so Sa cer do te, apre sen ta mos ao le i tor bra si le i ro, nas li nhas que se -

  • guem, os seus tra os bi o gr fi cos, que ex tra mos de uma re vis ta ale m Die Dich ters tim men Ano 14, fasc. 7.

    Nas ceu o P.- Ambr sio Schupp a 26 de maio de 1840 emMon ta ba ur, pe que na ci da de do en to du ca do de Nas sau, na Ale ma nha.Pas sou a in fn cia na sua ci da de na tal, e aos 15 anos en trou a fre qen tar oGi n sio de He da mar. Con clu dos os es tu dos gi na si a is, se guiu para Mogn -cia, en tran do para o fa mo so se mi n rio da que la ci da de a fim de fa zer os cur -sos de fi lo so fia e te o lo gia. Dois anos aps ma tri cu lou-se na uni ver si da de deWrz burg, na qual trs lu mi na res da cin cia ca t li ca pro fes sa vam, na que lapo ca, res pec ti va men te a dog m ti ca, a apo lo g ti ca e a his t ria ecle sis ti ca.Ter mi na dos os seus es tu dos te o l gi cos, re ce beu ele as or dens sa cer do ta is emLim burg, no ano 1865, exer cen do o sa gra do mi nis t rio, como sa cer do te se cu -lar, du ran te trs anos, aps os qua is, em 1869, en trou para a Com pa nhiade Je sus. Ain da no ti nha ele con clu do o seu 1 ano de no vi ci a do, quan dore ben tou a guer ra fran co-prus si a na, e o jo vem Sa cer do te foi man da do pe losseus su pe ri o res acom pa nhar o exr ci to ale mo alm do Reno, a fim de pres -tar os seus ser vi os aos en fer mos e fe ri dos; e as sim foi que se achou su ces si va -men te nos cer cos de Metz, de Pa ris, de Orlans e fi nal men te em Le Mans.

    Aca ba da a guer ra, sur giu o Kul tur kampf com as cle bres leisde maio que ti ve ram como con se qn cia a ex pul so dos je su tas do im -p rio ale mo; e nos so P.e Schupp foi man da do para a Ingla ter ra, ondeper ma ne ceu dois anos. Embar cou de po is para o Bra sil; che gan do ao RioGran de a 10 de ou tu bro de 1874 jus ta men te quan do ter mi na va ol ti mo ato da san gren ta tra g dia dos Muc kers; e dali em di an te em pre -gou ele, sem in ter rup o, a sua ati vi da de no ma gis t rio em di ver sos es ta -be le ci men tos de ins tru o.

    Os pri me i ros 16 anos pas sou-os no Co l gio de N.a S.a da Con -ce i o, em S. Le o pol do, fun da do ha via pou co, e ali exer ceu tam bm o car gode Pre fe i to dos Estu dos, ao mes mo tem po que se de di ca va ao mi nis t rio sa -cer do tal, como cura dalmas, nas fre gue si as e ca pe las dos ar re do res de S. Le o -pol do, como Ham bur ger-Berg, Lom ba Gran de, Sa pi ran ga e Mun do Novo.E nas suas fre qen tes ex cur ses a es tes lu ga res, teve ele en se jo de se in for marmi nu ci o sa men te acer ca de to dos os mo vi men tos e ope ra es dos Muc kers e deexa mi nar de visu o ce n rio onde se des do brou a tre men da tra g dia.

    XVI Pa dre Ambr sio Schupp S. J.

  • Re a brin do S. Exa Rev ma o Sr. Bis po D. Clu dio o se mi n -rio epis co pal em 1901, foi o Rev mo Pa dre Schupp um dos trs pa dres aquem foi con fi a da a sua pri me i ra di re o: e mais tar de, cri an do-se aEsco la de Enge nha ria, foi ele con vi da do a fa zer par te de seu cor po do cen te, po den do-se por tan to, com toda jus ti a, con si de r-lo como um dos fun da -do res da que le im por tan te es ta be le ci men to de ins tru o su pe ri or.

    Con ser vou-se no se mi n rio at ao ano de 1904; em que foiman da do para a ci da de do Rio Gran de, e ali es te ve du ran te trs anoscomo re i tor do co l gio, di ri gi do pe los pa dres da Com pa nhia, e atu al men te exer ce o ma gis t rio no Gi n sio de S. Lus, em Pe lo tas, equi pa ra do aoGi n sio Na ci o nal. Alm de ou tras dis ci pli nas, en si na o Pa dre Schuppcin cia na tu ra is, que sem pre cul ti vou com ver da de i ro ca ri nho.

    No obs tan te as r du as ta re fas do ma gis t rio e do sa cer d cio, en -con tra ain da o bom do Pa dre tem po para en tre gar-se a tra ba lhos li te r ri os eci en t fi cos, es cre ven do ar ti gos para im por tan tes re vis tas ale ms, como: o Alteund Neue Welt, Na tur und Offen ba rung, Die kat ho lis chen Mis -si o nen, Dich ters tim men. Tam bm no Anu rio do Rio Gran de do Sul,pu bli ca do sob a di re o do Dr. Gra ci a no de Azam bu ja, e em re vis tas de S.Pa u lo e Par, en con tram-se nu me ro sos tra ba lhos seus.

    Du ran te a sua es ta da no Co l gio de So Le o pol do, es cre veudi ver sos dra mas, al guns dos qua is, como Os g me os, A sor te gran -de, Fiel at a mor te, fo ram da dos es tam pa.

    No ano de 1889 em pre en deu ele uma ex cur so a Mon te vi due Bu e nos Ai res, cu jas im pres ses re pro du ziu em um li vro in ti tu la do: Vi -si ta ao Rio da Pra ta. Alm dis so deu a lume uma co le o de po e si assob o t tu lo: Lon ge da P tria, que me re ceu ser re e di ta da em 1904;bem como uma s rie de no ve las, que en con tra ram o mais li so nje i ro aco lhi -men to da par te dos cr ti cos, apa re cen do em re pe ti das edi es.

    Po rm, a obra prin ci pal do Pe. Schupp, a que mais nos in te res sa, a his to ria dos Muc kers, que ago ra ofe re ce mos aos le i to res bra si le i ros.

    um epi s dio de san gue, ex tra do dos ana is do Rio Gran de; a re pro du o fiel des sa hor ren da tra g dia que trou xe em con t nuo eatroz so bres sal to, en san gen tan do-a e en lu tan do-a du ran te dois lon gosanos, a la bo ri o sa e pa c fi ca co l nia ale m es ta be le ci da no Mu ni c pio de

    Os Muc kers XVII

  • So Le o pol do. No um ro man ce, como tal vez pos sa afi gu rar a mu i tos,mas sim a re a li da de his t ri ca em to das as suas par ti cu la ri da des. Dis so pe nhor no s a pa la vra au to ri za da e ve raz do au tor, como tam bm osdo cu men tos au tn ti cos por ele es cru pu lo sa men te com pul sa dos e as tes te -mu nhas pre sen ci a is, ain da so bre vi ven tes, por ele ou vi das. , pois, o li vro, como se v, um sub s dio po de ro so e in te res san te para os que se in te res sam das co i sas p tri as.

    Na tra du o, pu se mos pe i to em con ser var o cu nho da sim pli ci -da de alia da ele gn cia de es ti lo, que o au tor sou be im pri mir ao ori gi nal,como cos tu ma faz-lo em tudo o que bro ta da sua pena fe cun ds si ma;mas, for a con fes sar, para con se gui-lo, fora mis ter ser, como o o au tor, um ar tis ta da pa la vra; e por ve zes sen ti mo-nos de sa len ta dos di an te dasdi fi cul da des que a cada pas so se nos apre sen ta ram. O de se jo, po rm, detor nar co nhe ci do dos nos sos pa tr ci os este tra ba lho im por tan te e a es pe -ran a de que o p bli co re le va ria com in dul gn cia os mu i tos se nes, es ti -mu la ram-nos a no de sis tir da em pre sa e a le var a cabo a tra du o.

    Oxa l a ver so bra si le i ra, no obs tan te os seus de fe i tos e im -per fe i es, te nha o mes mo aco lhi men to que en con trou o ori gi nal ale mo.

    O TRADUTOR.

    ________

    A res pe i to da im por tn cia e me re ci men to do li vro, fa ze mosnos sas as pa la vras de um cr ti co que pelo Di rio do Rio Gran de 23 de fe ve re i ro de 1901 as sim se ex pri miu:

    UM LI VRO

    Pou cos bra si le i ros, mu i to pou cos, sa be ro que ali estcor ren do im pres so um li vro que nos in te res sa mu i to de per to,p gi na que de um acon te ci men to que se pren de his t riada nos sa ci vi li za o, con quan to sim ples in ci den te da nos sa

    XVIII Pa dre Ambro sio Schupp S. J.

  • vida. Re fi ro-me his t ria dos Muc kers, es cri ta em ale mo pelo re ve ren do Pa dre Schupp, da Or dem de Je sus. Des de1872 que os su ces sos san gren tos, cuja re cor da o no se ex -tin gui r ja ma is na me m ria das po pu la es co lo ni a is, de sa fi a -va a boa von ta de dos es cri to res na ci o na is para co or de na rem os fa tos que cons ti tu em a his t ria da que la fa mo sa cons pi ra -o, nas ci da do fa na tis mo de se i ta. Mas o as sun to exi gia es -for o, a pes qui sa de do cu men tos; o es tu do atu ra do de cir -cuns tn ci as, o que, sem d vi da, in flu en ci a va na na tu ral oci -o si da de dos nos sos es cri to res, pou co dis pos tos a me te -rem-se no que pe no so. E as sim mais uma vez o es tran ge i rocon tri bu iu com a sua ao para su prir a fal ta que por nsto cedo no su pra mos. Em com pen sa o, po rm, mu i tosbra si le i ros, mu i ts si mos, de ori gem ale m o s co nhe ce do -res da ln gua de seus pais, po de ro me lhor do que ns terpre sen te a his t ria dos Muc kers, es cri ta em ale mo; e lfora, na Ale ma nha, ser mais co nhe ci da do que en tre ns, eat que al gum em pre en da ao me nos a ta re fa de tra du zir oli vro do Pa dre Schupp, a ln gua por tu gue sa est pri va dades sa obra que eu re pu to com ple ta, um tra ba lho que hon rao la u re a do au tor, uma das no ta bi li da des da Or dem de Je sus.

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Li e reli o li vro be ls si mo do pa dre, es cri to em es ti lo

    sim ples, des pre ten si o so, sem ou tro co lo ri do que no o na tu ral das nar ra es sin ge las, fe i tas com so bri e da de, sem pre o -cu pa es de efe i tos. O au tor tra ba lhou mu i to para co or de -nar os fa tos, lig-los en tre si e cons ti tu ir as sim, des de a sua ori -gem, o dra ma que ti nha o seu ce n rio prin ci pal no Fer ra brs.

    O Pa dre Schupp es cre veu com lou v vel im par ci a li da dea his t ria dos Muc kers, con sul tan do au tos, re len do jor na isda po ca, ou vin do os de po i men tos de tes te mu nhas e com -par sas no dra ma, ma nu se an do do cu men tos par ti dos des tes,as se nho re an do-se por essa for ma ple na men te do as sun to. E as sim des de o seu pon to de par ti da at o des fe cho de fi ni ti -vo da vida da se i ta, o au tor nos con duz pre sos pelo in te res -

    Os Muc kers XIX

  • se atra vs dos ca p tu los de sua obra. E o his to ri a dor secoque fala, no in ter ca lan do ne nhu ma p gi na que nos des cre -va a vida do co lo no, no tra an do uma s pa i sa gem das pi -ca das, nem es bo an do um des ses in te ri o res cu ri o sos da vida rs ti ca, des co nhe ci da para tan ta gen te. O pa dre quis tra zer a sua du pla con tri bu i o: para a nos sa His tria, o re gis tro do -cu men ta do dos fa tos; para a his t ria das se i tas mais esteepi s dio, que com as va ri an tes que lhe so pe cu li a res, in ter -ca la-se ain da as sim no fun do, na for ma e na ori gem, na mul -ti do de ca sos idn ti cos que se con tam na vida dos po vos.

    Sem em pre en der a cr ti ca da se i ta e li mi tan do-se nar ra -o cir cuns tan ci a da dos fa tos, o Pa dre Schupp quis por essa for ma fu gir pos s vel acu sa o de sus pe i ta, o que com pro -me te ria o his to ri a dor, apa re cen do tal vez o je su ta por meioda pa i xo que em pres ta ria s suas ob ser va es. E por istoma i or o va lor do li vro, como do cu men to, com ple to, in te i -ro so bre o as sun to.

    E foi s isto que ele pre ten deu, tan to as sim que no nos d uma s pa i sa gem da vida co lo ni al, no es bo a se quer um in te ri or de co lo no, no es tu da o la bo ri o so agri cul tor na suaexis tn cia. Po dia in ci den te men te ame ni zar o seu li vro comce nas da vida rs ti ca, mas no quis. O au tor o mero nar ra dor, de es ti lo s brio que ain da as sim, mes mo com essa so bri e -da de, tem p gi nas que im pres si o nam vi va men te. O ca p tu lo de no mi na do Ca ni ba lis mo uma des sas p gi nas queco mo vem pela se gu ran a da nar ra ti va sim ples.

    E como do cu men to que se re co men da o li vro do je -su ta, obra dig na de ser ver ti da para o nos so idi o ma, com -ple tan do as sim o seu des ti no, que foi, pen so, vir di zer a ver -da de so bre os Muc kers.

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A le i tu ra des se li vro no in te res sa so men te a pes so as

    que tm amor ao es tu do: ela tam bm um pra zer que pren -de a re cor da o mi nu ci o sa de fa tos que ain da no h 30anos tan to alar ma ram o Rio Gran de e mes mo o Bra sil.

    XX Pa dre Ambr sio Schupp S. J.

  • Quem es cre ve es tas li nhas sen tiu um pra zer, re pas san -do-lhe sob os olhos os fa tos que na sua ima gi na o in fan tilto ma ram tan to vul to, quan do se da vam nas pi ca das do Mu -ni c pio de S. Le o pol do.

    Ter mi no, fe li ci tan do ca lo ro sa men te o Pa dre Schupppelo seu tra ba lho.

    P.J.

    ________

    Os Muc kers XXI

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Pr lo go da 1 edi o

    APESAR de vi ver h lar gos anos no Rio Gran de doSul, flo res cen te es ta do do Bra sil, no o au tor to tal men te des co nhe ci dodos le i to res da Ale ma nha.

    No s sa ram, de quan do em quan do, da sua pena v ri oscon tos para os jo vens le i to res, como tam bm aos seus ve lhos com pa tri o tasteve ele oca sio de con tar mu i ta co i sa real do Novo Mun do, quer da ines -go t vel ri que za da sua pro di gi o sa na tu re za, quer da vida, ati vi da de, h bi tose cos tu mes de seus ha bi tan tes.

    O que ele vai nar rar nes te li vro tam bm a ver da de, a re a li -da de pura. a his t ria ver da de i ra da ori gem e de sen vol vi men to inex pli -c vel, dos ex ces sos san gren tos e do fim tr gi co de uma se i ta de fa n ti cos,tal qual ela se de sen ro lou, qua se no l ti mo quar tel do s cu lo XIX, en treos co lo nos ale mes es ta be le ci dos no Rio Gran de, pro vn cia en to do ex -tin to im p rio do Bra sil.

    Mu i tas tes te mu nhas ocu la res e mu i tas ou tras pes so as que ti ve -ram par te nos acon te ci men tos, ain da vi vem, e da boca des tas pde o au tor co lher gran de c pia das suas in for ma es. Tam bm foi-lhe dado ma nu se ar os au tos do pro ces so e con sul tar o abun dan te no ti ci rio das fo lhas con tem po -r ne as. As au to ri da des no me a da men te o che fe da re par ti o de po l cia

  • a quem re cor reu nos ca sos du vi do sos, pres ta ram-lhe com a ma i or fran -que za e be ne vo ln cia as in for ma es de se ja das. Den tre to dos, po rm,deve-se des ta car o no t rio de S. Le o pol do, o Sr. J. de Oli ve i ra, j fa le ci -do, o qual le vou a sua de li ca de za ao pon to de pr du ran te al gum tem po dis po si o do au tor to das as pe as do pro ces so. O co nhe ci men to exa to doce n rio onde se des do bra ram os fa tos, ad qui riu-o o au tor pela pr pria ob -ser va o e para ele foi de ver sa gra do guar dar a mais es cru pu lo sa im par ci -a li da de no pin tar os ca rac te res dos per so na gens que se apre sen ta ram emcena. De modo que com toda a le al da de pode o au tor afir mar que estanar ra ti va, por mais ro mn ti ca e, diga-se at, por mais in cr vel que pa re -a, em al guns dos seus por me no res, en cer ra pu ra men te a ver da de, umepis dio da vida real, , em suma, uma his t ria au tn ti ca. E esta cir -cuns tn cia jus ta men te im pe diu-lhe s ve zes acom pa nhar os fa tos de maismi nu ci o sas apre ci a es psi co l gi cas e acla rar um ou ou tro pon to mais obs -cu ro. Teve ele de ace i tar as co i sas tais como se lhe apre sen ta ram. Emcon si de ra o a mu i tos so bre vi ven tes viu-se ele obri ga do a ca lar um ou ou -tro nome e a pas sar em cla ro so bre cer tos in ci den tes aces s ri os. Isto, po -rm, nada pre ju di cou a na tu ral con ca te na o dos fa tos nem a uni da de ehar mo nia do con jun to da hor r vel tra g dia.

    Esta nar ra ti va fora es cri ta, ha via anos, logo aps os acon te ci men -tos, e aguar da va so men te a l ti ma de mo para sair a lume. Sa bia-se no pas que es ta va em ela bo ra o, por quan to as pes qui sas a que se en tre ga ra o au tor no po di am fi car ocul tas. Uma fo lha de So Le o pol do to mou a si a co i sa equis en xer gar na de mo ra da pu bli ca o mo ti vos me nos ai ro sos, o que deu lu -gar a que se no re tar das se mais tem po a sua im pres so.

    Os cu ri o sos, os que so vi dos de le i tu ra tal vez no en xer guem nes tas p gi nas se no uma s rie de aven tu ras a qual mais em pol gan te,mais rica de lan ces e pe ri p ci as dra m ti cas. Os que se ocu pam da his t -ria ecle sis ti ca, os que se de di cam his t ria da ci vi li za o, es ses po de roen con trar ne las um sub s dio no sem in te res se para a his t ria das se i tas dos cu lo XIX e o fi lan tro po pen sa dor ter oca sio de for mar um ju zopro ve i to so e sa lu tar a res pe i to das pa i xes e aber ra es hu ma nas.

    XXIV Pa dre Ambr sio Schupp S. J.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Pr lo go da 2 edi o

    ACHA-SE es go ta da a 1 edi o dos Muc kers.Dan do hoje es tam pa a 2 edi o, jul ga mos opor tu no pre ce d-la de uma tr pli ce ob ser va o.

    Em pri me i ro lu gar, mu i tos dos que le ram o nos so li vro, a des -pe i to da de cla ra o ca te g ri ca em con tr rio, re ce be ram tal vez a im pres so de que mu i tas par ti cu la ri da des nele nar ra das no pas sam de adi ta men tos ro mn ti cos. Para ga ran tir o seu tra ba lho con tra tais sus pe i tas, o au tor,logo que ele apa re ceu pela pri me i ra vez, apres sou-se por meio do De uts -ches Volksblatt (n 84 de 1900), fo lha ale m de gran de cir cu la o, ape dir aos seus le i to res que lhe co mu ni cas sem, se por ven tu ra no seu li vroti ves se sido in clu do um ou ou tro fato me nos ve r di co. E pos to que o li vro, pu bli ca do em mi lha res de exem pla res, de sa pa re ces se logo do mer ca do efos se lido e es pa lha do com ver da de i ro al vo ro o; e ain da mais, pos to que oin te res se de al guns so bre vi ven tes re cla mas se tal vez que este ou aque leacon te ci men to fos se apre sen ta do sob ou tro as pec to; o que cer to que atago ra no foi exi gi da ao au tor, quer di re ta, quer in di re ta men te, umani ca re ti fi ca o afo ra a que se fez ao ca p tu lo 13 do 3 li vro; an tes pelocon tr rio, to dos os jor na is, sem ex ce o, quer ale mes, quer bra si le i ros,

  • re co nhe ce ram sem re ser vas a fi de li da de e exa o his t ri ca do li vro e a ob -je ti vi da de da ex po si o.

    Alm do mais, foi-nos en de re a da uma de cla ra o es cri ta, naqual de zeno ve mo ra do res do Sa pi ran ga, cu jas as si na tu ras fo ram le gal -men te re co nhe ci das, so con tes tes em afir mar que tudo o que se nar ra nopre sen te li vro cor res pon de em to dos os seus por me no res ver da de, e aquire le va no tar que a ma i or par te dos no mes que fi gu ram na re fe ri da de cla -ra o so os mes mos que o le i tor h de en con trar ao per cor rer o li vro.

    A se gun da ob ser va o diz res pe i to com pos tu ra do li vro. Ean tes de tudo, apa re ce ago ra acres ci do de uma in tro du o. Escri ta paraser im pres sa na pri me i ra edi o, sal vo nas al te ra es; tem a mes ma porfim tor nar os acon te ci men tos nar ra dos mais fa cil men te com pre en s ve is aos le i to res me nos en fro nha dos nas con di es do pas; com esse in tu i to jun ta -mos ou trossim pre sen te edi o al gu mas plan tas to po gr fi cas, bem comoal gu mas fo to gra fi as de per so na gens e lo ca li da des.

    Em ter ce i ro lu gar, quo fun da foi a ao que na vida da co l -nia ale m exer ceu o mo vi men to dos Muc kers, evi den cia-o o ep lo go que,de cor ri dos anos de po is de fin da, teve essa tra g dia e do qual nos ocu pa -mos par ti cu lar men te em ca p tu lo su ple men tar na pre sen te edi o.

    XXVI Pa dre Ambr sio Schupp S. J.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Introduo

    O RIO GRANDE DO SUL um dos mais belos, dosmais amenos e tambm um dos mais florescentes e esperanosos estadosdo Brasil. Ao tempo em que passa esta narrativa, fazia ele parte do im-prio como provncia; hoje um dos vinte estados federados da Repblica.Estendendo-se entre os paralelos 27 e 34 latitude sul, jaz todo o RioGrande sob a zona temperada, participando ao mesmo tempo das vanta-gens e excelncias da zona trrida e da frgida, sem, todavia, sofrer-lhesos rigores e extremos.

    Ondulantes colinas revezam-se com suaves baixadas, a altero-sos serros sucedem aprazveis vales e plancies, que se estendem a perderde vista, coroados aqueles de matas de luxuria vegetao, e estas tapeta-das de pastagens. A terra opulenta de seiva, abundando as frutas maissaborosas: no norte, sazonam a banana, a baunilha, o anans e at ocaf; ao passo que no sul maduram laranjas, esbeltos coqueiros balouamas suas graciosas umbelas, sombreando a morada do campons.

    Tambm o subsolo encerra tesouros, e ali se encontram ricasjazidas de ouro e prata, e, em maior abundncia ainda, minas de cobre,ferro e outros minerais valiosos.

  • Numerosos rios e riachos sulcam o estado, em todos os senti-dos, irrigando-o e facilitando as comunicaes. Muitos deles vo desbocaras suas guas no rio Uruguai; a maior parte, porm, e so os mais im-portantes, vazam-se na lagoa dos Patos que, paralela costa, se dilataao sul, numa extenso de mais de duzentos quilmetros. essa lagoa permita-se-nos a expresso como que o corao do Rio Grande do Sul;para a lagoa dos Patos afluem, como acabamos de ver, as suas principaisartrias fluviais, e dela reflui a vida para os pontos mais apartados.

    Dentre todos, porm, destacam-se quatro rios, os quais, depoisde receberem os tributos de seus coirmos menores, misturam-se e confun-dem-se em um s rio majestoso, e, sob o mesmo nome de Guaba, vo de-saguar na lagoa.

    No Guaba, margem esquerda, avana a ponta de terra so-bre a qual est assentada a cidade de Porto Alegre, capital do estado.

    Delumbrante a perspectiva que se descobre, vendo-se de qual-quer ponto elevado dos arredores da cidade, o grande rio deslizar a massadas suas guas remansadas por entre um ddalo de verdejantes ilhas, aomesmo tempo que a formosa Porto Alegre, em declive suave, desce at aorio, descrevendo a um extenso arco.

    Destes quatro rios o menor, porm o de mais importncia parans, o dos Sinos ou Itapu, a cujas margens se desdobrou o trgico dra-ma dos Muckers. Nasce o rio dos Sinos num dos pendores meridionaisda serra do Mar; a princpio, referve, cachoa, estorcendo-se, apertado, en-tre gargantas da serra; aparece depois na campina, coleando, qual amenoriacho, at que por fim, j rio navegvel, vai lanar-se no Guaba.

    H uns oitenta anos, ainda eram as margens do Itapu, quasetodas, cobertas de espessas florestas. A mata virgem espelhava-se nassuas guas, e o indgena erradio ou vogava nas suas ondas, a pescar, oucorria a caa, nas suas praias. Apenas dois tratos de terra, distantes am-bos de Porto Alegre, obra de sete lguas para o norte, estavam ento des-bravados ao servio do governo. Um deles, chamado a Feitoria Velha, margem esquerda do rio, devia fornecer Marinha o cnhamo para afabricao do cordame; o outro a Estncia Velha margem direi-ta, era destinado criao de gados.

    2 Padre Ambrsio Schupp S. J.

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  • Acontece, porm, que no ano de 1824 chega a Porto Alegreum navio, a que se seguiu logo outro, desembarcando 126 imigrantes ale-mes, os primeiros que o Brasil viu. A Feitoria e a Estncia Ve-lha deviam ser a nova ptria dos recm-chegados e, ao mesmo tempo, obero da colnia alem no Brasil. No ano imediato, de 1825, recebeu acolnia recm-fundada o nome de So Leopoldo, em homenagem Imperatriz D. Leopoldina.

    Comeou, ento, a luta e a faina, e, de machado em punho,ps o colono mos obra.

    Cheio de dificuldades foi o princpio. Com o faco e o macha-do, era preciso conquistar a mata virgem, palmo a palmo, a terra explo-rvel para a cultura. Os membros da famlia pai, me, filhos todos,sem exceo, desde o maior at ao mais novo, lanaram-se ao duro servi-o, cada qual consoante s suas foras. E quantas vezes no tiveram elesque recuar, apavorados, diante de alguma cobra venenosa ou de algumaaranha de tamanho colossal, to freqente nas matas, ou de outro ani-mal repulsivo, que, inesperadamente, se lhes apresentava na vizinhana.Verdade que no lhes custava muito a inutilizar semelhantes inimigos:o primeiro pau que lhes ficava ao alcance, bastava para isso. O mesmo,porm, no sucedia com outros hspedes, mais perigosos, que de quandoem quando apareciam obrigando o colono a lanar mo da espingarda:tais eram o jaguar e outras alimrias ferozes. Havia, porm, outro ini-migo mais terrvel contra cujos assaltos devia o colono andar constante-mente precavido: eram os selvagens. Estes, que, a princpio, se abeiravamdo homem branco em boa paz, e, inofensivos e curiosos, se punham a re-parar nos seus costumes e hbitos, no tardaram a assumir atitude aber-tamente hostil, quando perceberam que o intruso ia desvastando cada vezmais a mata, e punha e dispunha daquilo a seu bel talante; e certo quea visita de tais hspedes custou a vida a mais de um colono. Desde ma-nh cedo at noite, continuava a afanosa labuta, s interrompida pelaparca e mesquinha refeio.

    Para podermos fazer uma idia exata da vida trabalhosa dosprimeiros colonos, foi-nos mister ouvir a eles prprios as suas aventuras.A histria de cada um quase sempre um entrecho de peripcias, de

    4 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • vicissitudes, de sofrimentos, de sacrifcios, em que no raro o dedo dabondosa providncia aparece tecendo os seus fios da maneira mais como-vente. Superados, porm, os primeiros obstculos e vencidas mil dificulda-des, o cuidado cedeu lugar alegria, e o contentamento veio dissipar-lhesa nostalgia do torro natal. O colono, que na velha ptria vivera emmeio de necessidades e privaes, podia agora olhar, como proprietrio,para uma extenso de terra de uns 200 a 300 hectares.

    Aos primeiros imigrantes no tardaram a seguir outros. Asinformaes dos compatriotas que os haviam precedido, e as vantagens se-dutoras que se lhes ofereciam, atraram bem depressa centenas e centenasde indivduos, a quem as condies apremantes na ptria se haviam tor-nado insuportveis. Novos trechos de terra foram, ento, medidos edemarcados, e novos lotes distribudos. Na medio e demarcao desseslotes, procediam os agrimensores da maneira seguinte: em primeiro lugarabriam, pelo mato adentro, uma picada caminho estreito e comprido;perpendicularmente picada, e distncia de cem em cem metros, mediamtrechos maiores de 1.600 braas cada um. Ficava assim demarcado oprazo que se entregava a cada colono. Media, pois, o lote 100 braas delargura, sobre 1.600 braas de comprimento, representando, por conse-guinte, uma rea de 160.000 braas quadradas, ou 774.400m2. Oconjunto dos lotes formava um ncleo, que recebia um nome oficial, e eraconfiado superintendncia de um diretor de colnia. Alm do nome ofi-cial, porm, costumavam os colonos pr-lhe outro nome alemo, sugeridopor alguma ocorrncia fortuita; na maioria dos casos foram os primitivoscolonos os que puseram esses nomes s picadas. Tambm os morros e osvales tiveram os seus nomes germnicos assim temos: o Hambur-ger-Berg, o Buger-Berg, o Affenthal, o Narrenthal, etc. Como bem dever, crescendo a populao, aumentou naturalmente o nmero das picadas;j uma srie delas contava-se ao longo das margens do rio dos Sinos; e notardou muito que a mata virgem se transformasse em uma paisagemhabitada, e, no meio da floresta, aqui e acol, ora num vale aprazvel,ora na encosta romntica de um serro, abriam-se mais e mais novos cla-ros, onde cepos de rvores carbonizados e alguma choupana mesquinhaeram os sinais de que ali se havia estabelecido um imigrante.

    Os Muckers 5

  • Har

    mon

    ia

    pais

    agem

    colo

    nial

  • Era natural que essas condies primitivas no perdurassem,e, no decorrer de alguns anos, muitas mudanas se vieram operando: ca-sas mais confortveis, posto que muito simples, foram substituindo asgrosseiras cabanas; em roda das casas verdejava e floria o laranjal, esbeltaspalmeiras, em frente da porta, balouando as frondes, saudavam, alvissa-reiras, ao visitante, e, no longe da morada do colono, divisava-se o po-treiro terreno relvoso e cercado, onde erravam a pascer cavalos e reses primcias do seu gado. O que, porm, mais que tudo, se havia dilata-do, era a roa a poro cultivada das suas terras e onde ele passava amaior parte do tempo da sua vida solitria e tranqila; a, tudo haviatomado um aspecto mais aprazvel: dos grossos e possantes troncos de r-vores, abatidos a golpes de machado, e reduzidos, depois, a cinzas, paraadubarem o solo, j tinham desaparecido at os ltimos resqucios.

    Mas tambm no seio das famlias se haviam operado muitasmudanas: os filhos haviam crescido; um ou outro j estava talvez emidade de estabelecer lar prprio; acontecia, ento, que, ou tomava suaconta uma parte da propriedade paterna, ou levantava, de ordinrio nolonge da casa dos pais, a sua moradia; o que deu em resultado aumenta-rem as habitaes e aconchegarem-se mais e mais.

    Por sua vez, a necessidade do convvio social estava a reclamarforosamente a abertura e construo de caminhos e estradas. Primitivoera o sistema de abri-los: com o faco e o machado, praticava-se, nomato, uma abertura, em direo reta, se nenhum obstculo se antepunha;no caso contrrio, procurava-se um desvio. Como de ver, esses caminhos,abertos a esmo, ora galgando ora descendo morros; agora, rompendo porentre balseiras; aqui, salvando grossos troncos de rvores atravessados;ali, beirando escarpas e fraguedos; mais alm, transpondo arroios cauda-losos e at riachos invadeveis; esses caminhos dizemos eram quaseimpraticveis. E imagine agora o leitor como no ficavam eles depois des-sas cordas dgua, torrenciais, de dias a fio, to freqentes no nosso cli-ma: o solo tornava-se movedio, empapado, coberto de tremedais. E comopodia, nessas condies, fazer as suas jornadas o colono, que costuma an-dar de ps nus?

    Uma circunstncia, porm, vinha em parte remediar o mal.

    Os Muckers 7

  • o Brasil rico de gado cavalar, e o brasileiro sabe aproveitaradmiravelmente o cavalo em diferentes misteres, sobretudo nas suas via-gens. Dele aprendeu o colono a utilizar este solpede; e, como os cavalosso em geral baratos, o colono, por pobre que seja, possui pelo menos um;a maior parte, porm, tem dois, e alguns chegam a ter seis e mais cavalos.S sai de casa montado, preferindo fatigar-se uma meia hora para pegaro animal, a dar a p uma caminhada de um quarto de hora; e, quandoest a cavalo, capaz de passar o dia inteiro a vaguear. A princpio essemeio de transporte era acompanhado de mil incmodos e maadas, masbem depressa o colono se lhe afez, e calvagar umas dez ou doze horas nopassava para ele, quando muito, de um passeio algum tanto forado.

    Muitas vezes esses caminhos primitivos tinham de atravessaras propriedades dos vizinhos. Estes, porm, consentiam em tal, exigindocomo nica condio que os transeuntes fechassem, atrs de si, a cancelado potreiro. Essa medida impunha-se, para obstar invaso de animaisestranhos e fuga dos prprios.

    Entrementes a colnia se havia tornado a pouco e pouco menosinspita. O mato havia desaparecido cada vez mais; em lugar das clarei-ras, aqui e acol, a vista podia espraiar-se por sobre vastas extenses deterra cuidadosamente cultivadas, quer no fundo dos vales, quer nas encos-tas das colinas. Ao sul da Estncia Velha e da Feitoria, viera surgindouma como povoao, a que de preferncia se limitou o nome de So Leo-poldo. Em torno desta, como que formando uma coroa, estendiam-se pi-cadas florescentes, onde a harmonia, a paz e a alegria, de mos dadas,felicitavam o lar do colono. Tambm se haviam tomado providncias nosentido de acudir melhor s necessidades e transaes comerciais. O colo-no carecia de utenslios domsticos, de instrumentos para os diferentesmisteres da vida; tinha necessidade de substncias condimentares para opreparo dos seus alimentos, e de vesturio, para aparecer em pblico de-centemente. Para se prover de tudo isso, via-se ele obrigado a fazer, at cidade, uma viagem que, sobre ser fastidiosa, lhe roubava boa parte dotempo.

    Por outro lado cumpria que ele tratasse de colocar os sobejosdos seus produtos anuais, ou vendendo-os a dinheiro, s suas necessida-

    8 Padre Ambrosio Schupp S. J.

  • des. E, nessas transaes, no se lhe dava de sofrer algum prejuzo, con-tanto que o forrassem aos descmodos de transportar tais produtos paralonge.

    Naturalmente, no faltaram espertos especuladores que, sabendotirar partido dessa ordem de coisas, trataram logo de construir casas, comvastos depsitos, armazenando ali toda sorte de artigos, como fazendas,especiarias, louas, trens de cozinha, ferragens; em uma palavra tudode que o colono podia precisar, no faltando tambm o vinho, a cachaa eoutras bebidas. E tudo isso se expunha venda aos fregueses, que acudiamnumerosos. Para essas casas de negcio, que chamavam vendas, trans-portava o colono o excesso das suas colheitas: feijo, milho e outros pro-dutos, como ovos, mel, manteiga, recebendo, em pagamento, ou dinheiro, ougneros. O vendeiro, esse, sustentava umas 30 ou 40 bestas de carga eat mais e, quando tinha um depsito regular daqueles produtos, fazia-ostransportar, pelas suas mulas, ao mercado mais vizinho, auferindo, nes-sas transaes, lucros considerveis.

    Parecia, enfim, que tudo estava encaminhado para garantir aocolono uma vida, seno desafogada de fadigas, ao menos, isenta de cui-dados e preocupaes, quando um acontecimento inesperado sobreveio,pondo em risco toda a sua felicidade. No ano 1831, Pedro I, Imperadordo Brasil, abdicara em seu filho, ainda de menor idade. No podendo ojovem prncipe assumir as rdeas do governo, foi a direo dos negciospblicos confiada a um regente. No bem este havia tomado conta daregncia, quando certas medidas malogradas provocaram um descontenta-mento quase geral no pas. O fermento revolucionrio alastrou pelo povo,e, em diferentes pontos do Brasil, rebentaram revoltas. Tambm o RioGrande do Sul foi arrastado na onda revolucionria, pondo-se os milita-res testa do movimento. No conseguiram, porm, estes torn-lo geral;antes, pelo contrrio, o povo bandeou-se em duas faces: uma, que semantinha fiel ao governo; outra, que o combatia com as armas na mo.Os revoltosos apelidaram de Caramurus aos amigos do governo; estes,por seu turno, chamaram de Farrapos aos adversrios; vindo dali onome de Guerra dos Farrapos, dado revoluo do Rio Grande.

    Os Muckers 9

  • A princpio, parecia que o movimento revolucionrio ficariacircunscrito populao brasileira. Os alemes tinham como norma deconduta no se envolver na revoluo, deixando que os filhos do pas li-quidassem entre si a contenda; essa neutralidade, porm, foi pouco dura-doura, e tambm os colonos no tardaram a dividir-se em dois campos,combatendo uns pela causa do imperador, os outros a favor da revoluo.

    Quase nunca se feriam combates em forma: eram, antes, em-boscadas constantes, assassinatos e morticnios, de parte a parte. Na suaprpria casa, no seio da famlia, era o adversrio surpreendido, e, arras-tado at a um capo prximo, ali o degolavam. Havia j dez anos quese reproduziam essas cenas sangrentas, quando veio ao Rio Grande o baro(mais tarde duque) de Caxias, que, tendo prestado ao governo os maisassinalados servios, com abafar, em outras provncias, a revoluo,logrou, tambm aqui, no Sul, quer pela fora das armas, quer pelos meiospacficos, restabelecer a paz.

    Estava-se no ano 1845.Ningum se regozijou com esse sucesso mais do que o colono:

    pressuroso, trocou ele as armas pelos pacficos instrumentos agrcolas, vol-tando, com dobrado alento, para a sua lavoura, abandonada havia largotempo. As feridas no tardaram a cicatrizar, e o sangue e a carnificinaesqueceram bem depressa. Ao trabalho tenaz, incessante, do colono, queacabava de passar por to duras provaes, voltou o bem-estar antigo, efloriram novamente a paz e a felicidade perdidas. Ainda mais: no levoumuito, e as suas condies melhoraram e prosperaram como nunca.

    Entrementes, a pequena povoao de So Leopoldo fora eleva-da categoria de vila, vindo a ser, assim, a residncia de diversos funcio-nrios pblicos, pelo que se tornava, mais que antes, o corao de toda avida colonial, alimentando, ao mesmo tempo, ativssimo trfego com a ca-pital da provncia. De todos os pontos da colnia, rcuas de bestas trans-portavam para S. Leopoldo os produtos coloniais, que lanches abarrota-dos (vapores no os havia ento), descendo o rio dos Sinos, levavam paraPorto Alegre, donde, por sua vez, reflua o dinheiro para as colnias.

    Mais de um colono previdente comeou ento a pr de parte assuas economias, e no poucos, que tinham vindo pobres, lograram, com o

    10 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • seu trabalho e prudente economia, um estado de despreocupada abastana.Tambm muitos negociantes e homens de ofcio se haviam estabelecidonas colnias; orla da estrada, retumbava o malho na bigorna, e, nofundo do vale solitrio, ouvia-se ranger a roda da azenha.

    Parecia que nada mais faltava para a completa felicidade docolono. Entretanto, assim no acontecia: de uma coisa ainda sentia elefalta. At ento, vira-se quase de todo privado dos confortos e cuidadosespirituais; e cumpria se tomassem providncias tambm nesse sentido.

    Entre os imigrantes havia muitos catlicos, sendo os outrosprotestantes; estes ltimos, em falta de um telogo formado da sua comu-nho, escolhiam, dentre si, um, a quem julgavam mais habilitado, encar-regando-o de pregar e atender aos outros servios religiosos; faziam-no re-conhecer pelo governo, legalizando a sua escolha, e assim satisfaziam osseus interesses espirituais. Os catlicos, esses, reuniam-se tambm, e faziamas suas devoes em comum, recitando um leigo as oraes; mas trataramlogo de procurar sacerdotes que lhes administrassem os sacramentos ecelebrassem o santo sacrifcio da Missa.

    Eis que, no ano de 1844, sucedeu aportarem a Porto Alegredois padres da Companhia de Jesus, que vinham expulsos da RepblicaArgentina, pelo tirano Rosas, por no terem querido se prestar aos ma-nejos da sua poltica infame.

    Aos dois padres dirigiram-se os colonos, pedindo que lhes pre-gassem uma misso. Aquiesceram os padres, e a misso realizou-se.Como o sopro da primavera, que, na sua passagem por sobre a veiga,tudo vivifica, assim a misso veio dar novo alento aos nimos dos ale-mes. De todas as partes, acudiram os colonos em magotes, e as lgrimas,que lhes marejavam os olhos, atestavam o alvoroo, a comoo ntimaque a todos empolgara. Custava-lhes verdade fazer-se compreenderdos padres espanhis; mas, afinal, deparava-se-lhes ocasio de satisfaze-rem as suas necessidades religiosas, o que, desde muito, no lhes tinhasido possvel fazer. At o elemento protestante no se pde esquivar po-derosa influncia que esse acontecimento produziu na colnia, e tambmele tomou parte, de maneira edificante, na alegria comum.

    Os Muckers 11

  • Abalados pela excelente disposio de esprito dos bons ale-mes, e movidos do desamparo de socorros espirituais em que os viam, osdois missionrios envidaram logo esforos, a fim de lhes alcanar curasdalma efetivas. De feito, no ano 1849, chegavam os padres jesutasAgostinho Lipinski e Joo Sedlach, que fixaram residncia em S. Migueldos Dois Irmos.

    Capelas e igrejas foram logo edificadas, e ouviam-se os sinosrepicar festivamente, nos vales e nas quebradas, convidando o povo ora-o. E, quando chegava o domingo, era de ver acudir dos plainos e de-sembocar das picadas os bravos filhos do Reno e da Mosela, formandoesplndida cavalgada, em direo igreja. Viam-se ali homens de bem,robustos, cujas mos calosas denunciavam as dificuldades com que luta-vam; ancios respeitveis que, antes de fecharem os olhos, queriam ter aventura de assistir ao santo sacrifcio da missa; jovens esposas, com os pe-quenitos a lhes sorrir nos braos; rapages desempenados, sacudidos, decompleio robusta e faces coradas, e, finalmente, donzelas amantes dotrabalho, com os seus roupes de montar.

    Agora sim, eram os colonos realmente ditosos: uma paz tran-qila, suave, perturbada apenas, de vez em vez, aqui ou acol, pelas rixasde algum espadachim, pairava sobre as picadas e fazia esquecer aos seusmoradores, felizes, as saudades da velha ptria. Mais uma vez, porm,devia essa felicidade ficar abalada, de um modo cruel, e, desta feita, pelosprprios colonos. Como isso se passou, o que vamos narrar nos captu-los que seguem.

    12 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • LIVRO PRIMEIROOS FANTICOS

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo I

    S. LEOPOLDO O FERRABRS O CURANDEIRO

    A UMAS seis lguas ao norte de Porto Alegre,acha-se situado S. Leopoldo. Fundado, em 1824, por imigrantes alemes, hoje uma pequena cidade, sim, mas alegre e industriosa, e o rio dos Sinos,a cuja margem esquerda est assentada, comunica-lhe um encanto parti-cular e certa animao.

    Na margem fronteira, depara-se vista um amontoado de casasenfileiradas, umas em frente das outras, formando uma rua. A casaria j avultada, e ao pequeno arraial puseram-lhe o nome de Neustadt (Ci-dade Nova). direita e esquerda, bem como para o fundo, dilata-seum campo plano e inculto, que, na estao chuvosa, se transforma embrejo. Para alm, limitando a plancie, divisam-se serros, coroados dematagal, que, parecendo, primeira vista, formarem uma cadeiacontnua e ininterrupta, se descobrem separados, quando o sol ilumina apaisagem, espalhando luz e sombras por montes e vales.

    Ao norte de So Leopoldo, e bem perto um do outro, alteiamdois serros gmeos e to parecidos entre si, que o povo lhes deu o nomede Dois Irmos.

    Aqum dos dois serros, quase a uma hora e meia de caminhode So Leopoldo, ergue-se um outeiro, chamado Hamburgerberg, ladeado

  • de vales aprazveis e encantadores, de casaria alegre, e tendo como dia-dema uma igrejinha modesta, mas pitoresca, alvejando no cimo. Paraalm dos mesmos serros, estende-se a picada de S. Miguel; a poente des-ta, fica a do Bom Jardim, qual vem ligar-se, pelo norte, a picada das48 Colnias. Esta ltima separa, guisa de cunha, a picada do BomJardim de trs outras picadas, que, estendendo-se de oeste para leste,tm, respectivamente, os nomes de Picada dos Portugueses, PicadaNova e Picada do Caf.

    No decurso da nossa narrativa, teremos ocasio de voltar aesses lugares, como cenas secundrias da tremenda tragdia.

    O teatro principal, porm, ainda no o apresentamos ao lei-tor. Fica este situado no prolongamento da serra de que acima falamos.Se, com a vista, acompanhamos esta cadeia, na direo de leste, descor-tinamos um ponto onde a mesma parece quebrar-se abruptamente; umacomo muralha de rocha alcantilada ergue-se a pino da plancie, paraonde est voltada com a sua fronte carrancuda, mal assombrada e co-berta de escuro mato.

    o Ferrabrs, que, dentre os morros do Rio Grande do Sul,granjeou, embora efmera, a maior celebridade.

    Se, de S. Leopoldo, o leitor quiser visitar aquele lugar, montandoa cavalo, siga, a princpio, a estrada em direo do norte ao cabo de hora emeia ter chegado a Hamburgerberg: aqui tomar o caminho direita, e,continuando a cavalgar em direo paralela serra, atravessar dois ncleoscoloniais, o primeiro dos quais o Campo Bom e o outro o Sapiranga nomes que o leitor tornar a encontrar, vrias vezes, no correr da nossahistria. No Sapiranga, deparar-se- ao viajante uma casa isolada, que ser-viu, outrora, de moradia e de escola ao professor Weiss. Aqui, esquerdada estrada, parte uma senda que leva ao mato. Siga o leitor esta trilha, e, aocabo de uns vinte minutos, ter chegado afinal ao seu destino.

    Cumpre notar que, ao tempo em que se desenrolaram os su-cessos da nossa narrao, ainda no estava terminada a bela ponte quecomunica as duas margens do rio dos Sinos. O trfego entre uma e outramargem era feito por meio de uma barca, que transportava passageiros ap e a cavalo, carros e bestas de carga.

    16 Padre Ambrsio Schupp S. J.

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  • Corria o ano de 1872. raiz do Ferrabrs, est edificada a casa de um colono; con-

    cluda h poucos meses apenas, j est cercada de lavouras bem cuidadase de terras recm-desbravadas. O laranjal, ao lado da moradia, no devemaravilhar o visitante, porque coisa que no falta ao p da casa dequalquer colono; j no acontece o mesmo com o jardim, tratado commimo e fechado por uma sebe, ostentando a louania de um sem-nme-ro de flores variadas.

    A casa e as plantaes so rodeadas de mato pela banda do poen-te, do sul e do norte, e vizinham pelo lado do nascente, com as propriedadesde outro colono, servindo de divisa uma cerca viva e uma vala funda.

    Aqui que mora Joo Jorge Maurer, ou, como lhe chamam oscolonos, o Curandeiro. homem ainda moo, de aproximadamentetrinta anos, de estatura mais que me, cheio de rosto, simptico, barbainteira e cerrada, cor de castanha. Nas linhas do rosto, no se descobreum trao sequer que revele uma inteligncia acima do comum, ou umaenergia no vulgar; pelo contrrio, tudo nele est a denunciar um tempe-ramento pacfico e uma certa simplicidade bonachona.

    Escola, no a freqentou Joo Jorge; no sabe ler nem escre-ver; porm o trato e a convivncia com estranhos fizeram-lhe adquirircerto polimento e maneiras delicadas. Quanto ao mais, nenhuma distinoo extrema dos outros colonos: o seu modo de vida, o seu vesturio, como o dos outros, e, a trabalhar na roa, anda sempre descalo, comoaqueles. Joo Jorge carpinteiro de ofcio, e quantos o conhecem afir-mam que ele entende da arte s direitas e que o seu trabalho expeditoe asseado. H alguns anos, porm, tornou-se mdico, e receita a quantoso consultam medicamentos, mezinhas e pomadas. O que o determinoua abraar a nova profisso o que no est bem averiguado, correndo, aeste respeito, varias verses pelas colnias.

    Um belo dia assim contam estava Joo Jorge na roa, demachado em punho, a esmoitar e abater, a rudes golpes, uma rvoreaps outra. Era um dia calmoso, e Maurer, mais que nunca, sentia opeso da labuta diria. Suspendendo o trabalho, erguera o busto para des-cansar um instante; seno quando, ouve uma voz: Joo Jorge, que eststu a a mourejar? Lana fora esse machado, e trata de seguir a tua voca-o: tu nasceste para mdico.

    18 Padre Ambrsio Schupp S. J.

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  • Joo Jorge quedou como fulminado. Que ser isto? Queouo? pensou ele consigo. Relanceou os olhos em torno a ver se des-cobria, onde quer que fosse, um ser humano. Nada! o corao pula-va-lhe fortemente de comoo. No foi homem nenhum! disse ele desi para si foi uma voz celeste; e, sem hesitar, cheio de contentamento,arremessou para longe o machado e tomou o caminho de casa, a entre-gar-se, dali por diante, sua nova profisso.

    Mal havia ele desaparecido, quando, de trs de um arbustovizinho, se esgueirava, sorrateiramente, um indivduo, de estatura alta,retirando-se com ar satisfeito e triunfante.

    Reproduzimos aqui a histria tal qual contaram-nos, sem, toda-via, ligar-lhe grande crdito; e at pendentes a crer, por certos motivos, quea mesma no passa de mera inveno. Porm, sobre o que no resta duvida, que, em 1872, isto , quatro anos depois de iniciar a sua nova carreira, jera grande a nomeada de que gozava Joo Jorge, como mdico. De todasas partes, vinham a ele enfermos, em busca de sade e conselhos.

    A princpio, eram apenas os moradores ingnuos da colniaos que se lhe entregavam; mais tarde, porm, afluram doentes de S.Leopoldo, de Porto Alegre e at de Pelotas; e, o que mais, enfermosdesenganados por mdicos diplomados socorriam-se a Joo Jorge.

    E como chegara ele a alcanar tamanha reputao? Concorre-ram para isso diversas circunstncias. Em primeiro lugar, muito poucoseram, naquela poca, os mdicos formados. Quando algum doente pre-cisava de facultativo, era obrigado a transportar-se cidade, o que se lhetornava impossvel, muitas vezes; sempre, porm, difcil e dispendioso;ou tinha que mandar pelo mdico o que ainda lhe saa mais caro. Nassuas visitas para fora da cidade, no tinha o clnico, ento, como notem ainda hoje uma tabela fixa de honorrios, sucedendo que, por umanica visita, principalmente quando noturna, o colono tinha que pagarcinqenta, cem e at quinhentos mil-ris. E, ainda assim, o pobre doenfermo no podia ter a certeza de que o intitulado mdico o era na rea-lidade, ou qualquer matasanos,* ajudante de enfermeiro de algum hospi-tal, ou, qui, qualquer servente de farmcia, o qual, depois de manusear

    20 Padre Ambrsio Schupp S. J.

    Matasanos espanholismo: ao p da letra, mata sos, isto , charlato. (Notadesta edio.)

  • algum formulrio de medicina, se havia dado a clinicar por conta pr-pria custa dos doentes. Nessas condies, o colono, que, por via deregra, s dispe de minguados recursos, e estes mesmos ganhos custade muito suor, preferia dirigir-se logo ao primeiro charlato que encon-trava. E, naquela poca, os charlates enxameavam em grande quantida-de pelas colnias.

    A todos, porm, levava as palmas Joo Jorge. Em primeiro lu-gar, muito lhe valeram as suas maneiras insinuantes, para captar a confi-ana e o corao dos enfermos.

    Acresce que ele tinha em si prprio uma certa confiana qualidade esta indispensvel a quem exerce a medicina. Nada o pertur-bava, e, ainda quando tinha diante de si algum caso grave, que o embara-ava, no o dava a perceber. Para cada enfermidade, conhecia Joo Jorgealguma beberagem ou algum remdio eficaz. Nem isso dever causarespanto: o Brasil rico de plantas medicamentosas; at a gente ignoran-te conhece grande nmero delas, e emprega-as com vantagem. Portanto,Joo Jorge nada mais tinha que fazer seno observar e ouvir e tomarnota das diversas plantas medicinais e suas aplicaes, para poder realizargrande nmero de curas; e fora de toda dvida que muitas vezes alcan-ou timos resultados.

    Verdade que, em muitos casos, esses resultados se deviamatribuir, antes, s condies que Maurer costumava impor aos pacientes,do que aos remdios de que lanava mo. Exigia ele, muitas vezes, queos doentes permanecessem na sua vizinhana, hospedando a uns emsua prpria casa, alojando a outros nas vendas mais prximas, ou nasmoradias dos colonos vizinhos. A mudana de habitao e de ares nopodia deixar de atuar beneficamente sobre os enfermos. Alguns dentreestes haviam contrado a enfermidade em conseqncia de excesso detrabalho, e, para se restabelecerem, s careciam de repouso e de trato.Em suas casas, porm, faltava-lhes uma e outra coisa, ao passo que noFerrabrs levavam vida descuidosa e livre de canseiras, e alimentavam-seconvenientemente; e que muito era, pois, que bem depressa adquirissemoutro aspecto e voltassem, afinal, curados para o seio de suas famlias?

    Os Muckers 21

    Hoje, mais do que ento, e em todo o Estado, em conseqncia da liberdade pro-fissional, garantida pela Constituio Estadual. (Nota do tradutor.)

  • Por sobre isto, Joo Jorge exigia bem pouco pelo seu trabalho deixandoquase sempre ao arbtrio e generosidade das pessoas curadas o daremo que lhes aprouvesse.

    E desta sorte foi afluindo, pouco a pouco, grande nmero deenfermos ao nosso curandeiro, vindo este a conquistar a reputao quetornou conhecido o seu nome at s fronteiras do Rio Grande.

    22 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo II

    A PROFETISA

    A MAURER assistia-lhe sua esposa, Jacobina, mu-lher ainda jovem, meio pesadona, de estatura me e de expresso fisio-nmica singularmente fantica.

    Jacobina Mentz tal o seu nome todo descendia de paisanabatistas.* Contando apenas oito anos de idade, comearam a apre-sentar-se nela fenmenos anormais, cuja explicao cabal ningum sabiadar. Aos doze anos, adoeceu gravemente. J antes da enfermidade, e depois,ainda mais a mido, caa em profunda depresso, no dando acordo desi e pondo em alarme a todos os de casa. A vizinhana tomava o maisvivo interesse pela sade da criana. A princpio, consultaram ao velhomdico Hildebrand, em So Leopoldo; mais tarde, porm, acostuman-do-se a essas crises, acabaram por abrir mo do auxlio da medicina. Ja-cobina resignou-se sua sorte. A durao desses acessos aumentava deano em ano. No comeo, duravam de 3 a 4 horas; depois, 6 horas; e,mais tarde, at 12 horas; e, na viglia da festa da Ascenso, sucedeu cair

    Anabatista membro de uma seita protestante que impe a repetio do batismoa quem o recebeu antes do uso da razo. (Nota do tradutor.)

  • ela nesse sono incompreensvel antes do meio-dia, e permaneceu assimat tarde do dia da festa, ao todo cerca de 30 horas.

    Como todos os demais membros da sua famlia, tinha Jacobi-na bem pronunciada tendncia para o misticismo. O seu livro prediletoera a Bblia. Com verdadeira sofreguido, apanhava ela um ou outro tex-to, gravava-o na memria e explicava-o de uma maneira consoante sexigncias do estado religioso do seu esprito doentio. Casada, depois,com Jorge Maurer, auxiliava com dedicao ao marido na clnica. Era elaquem, com piedosas palavras de animao, apresentava aos enfermos asbeberagens e pomadas que aquele aviava e manipulava.

    No tardou, porm, que o mtodo curativo de Joo Jorge to-masse outro carter; comeando ento Jacobina a representar, nele, opapel mais importante.

    Eis como isto aconteceu:Na famlia de Jacobina assim contam leram um livro acer-

    ca de uma sonmbula, e, no livro, asseverava-se que esta, em seu sonam-bulismo, acertava, muitas vezes, com os remdios para as doenas maisvariadas. Acudiu-lhes, ento, a idia de que Jacobina era sonmbula. Le-ram e tornavam a ler o livro e, como o nico exemplar que havia, nochegasse para contentar a todos que o desejavam ler, mandaram vir no-vos exemplares, que foram espalhados na colnia e lidos por toda a par-te com alvoroo e avidez.

    Como era de prever, a gente da colnia acabou por se con-vencer de que Jacobina era verdadeira sonmbula, e que, portanto, podiaapontar os remdios mais acertados para as diferentes enfermidades.

    Tambm o casal misterioso do Ferrabrs se deixou penetrar epossuir dessa convico, e, como conseqncia muito natural, o sistemacurativo de Joo Jorge entrou, ento, em uma nova fase. J no era maisele quem diagnosticava as enfermidades e prescrevia aos doentes o tra-tamento, e sim sua mulher, a qual, estendida na cama, em seu sono mis-terioso, incompreensvel, ditava as receitas.

    Se esta circunstncia, por si s, era bastante para dar a Jacobi-na o papel principal, a sua preponderncia subiu de ponto, quando ela,s mezinhas, se ps a mesclar o elemento religioso.

    24 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • Como dissemos antes, era a Sagrada Escritura o livro da suapredileo; porm, como no sabia ler nem escrever, era a Bblia letramorta para ela; por isso, cuidou de recuperar o que perdera nos anos dainfncia, conseguindo que a ensinassem a ler. Vencidas as primeiras difi-culdades, e chegando a deletrear, entregou-se, com afinco, lio dos li-vros sagrados, procurando, pelo estudo prprio, aumentar os conheci-mentos, no escassos, neles adquiridos, no seio da famlia.

    Pelo mesmo tempo, iniciou as suas prelees sobre a Bblia,interpretando a palavra divina ao sabor da sua fantasia.

    Freqentemente, era ela vista sentada numa cadeira, rodeadade homens, mulheres e crianas, formando um crculo. Diante dela, emcima da mesa, estava aberta a Bblia. Os seus olhos cintilavam de umbrilho sinistro, as suas feies tomavam uma expresso misteriosa, fantsti-ca. Punha-se a ler. As palavras saam-lhe arrastadas, difceis: percebia-seque a leitura lhe custava muito. Concluda, porm, uma frase ou um tex-to, passava a explic-lo; mudava, ento, de voz: as palavras afluam-lhe,espadanavam da sua boca, e, como se fora uma iluminada, dava passa-gem lida as interpretaes mais singulares e estramblicas.

    Aquela gente simples da colnia, sem nenhuma, ou quase ne-nhuma instruo, e, portanto, incapaz de discernir a verdadeira da falsainterpretao, ali se quedava muda, pasmada, embebida, em respeitososilncio, suspensa da boca daquela mulher. Quanto mais extravaganteseram as interpretaes de Jacobina, e quanto menos as entendiam, maisalevantado era o conceito que formavam da sua sabedoria, chegando aacreditar que era ela inspirada por um esprito superior.

    Por vezes, iam os devotos encontr-la reclinada no leito, olhosabertos, cravados em um ponto, como se estivera a contemplar vises.Sentenas esquisitas, proferidas compassadamente, exortaes e profeciasem tom empolado brotavam-lhe, ento, dos lbios, e os assistentes, re-transidos de pavor santo de mistura com uma venerao respeitosa, es-tavam convencidos de ter diante de si um ser sobrenatural.

    Dali saam contando o que tinham visto e ouvido: a curiosidadeatraa; aos centenares, acudiam ao Ferrabrs os curiosos, para verem e ouvi-rem a mulher misteriosa; e, se outrora Joo Jorge tinha gozado nomeada,como mdico, passava Jacobina, agora, por uma profetiza afamada.

    Os Muckers 25

  • A elevada conta em que a tinham fazia que muitos lhe confias-sem os segredos mais ntimos e lhe viessem pedir conselhos em casos du-vidosos. E Jacobina sempre os tinha mo. Quando podia falar com se-gurana e sem o menor risco de se comprometer, fazia-o sem embarao;quando no, envolvia a resposta em frases sibilinas. Tratando-se de mor-tos, podia ela falar com mais desassombro e sem o perigo de se desmas-carar; e, ento, de uns afirmava, peremptoriamente, que estavam salvos;de outros, que se tinham condenado. Embora tais afirmaes levassem ador e o terror ao seio desta ou daquela famlia, contudo no perdia Jaco-bina o seu prestgio, que, pelo contrrio, subia de ponto, dia a dia.

    bem de ver que no lhe podia passar despercebida a grandevenerao e o alto conceito em que a tinha o povo; e, se, a princpio,no teve a inteno de intrujar, deparava-se-lhe, agora, o ensejo de ex-plorar, em seu proveito, essa disposio dos nimos. De feito, os maisavisados, pelo menos, comearam, j ento, a enxergar no caso sinaisevidentes de calculado embuste.

    Causava estranheza que esses sonos de visionria se amiudas-sem cada vez mais, parecendo obedecer, to-somente, vontade da pro-fetisa.

    Esta suspeita cresceu de ponto, quando Jacobina entrou amisturar ao seu embuste religioso outros meios, que claramente visavama armar ao efeito, prendendo os coraes dos seus adoradores e emara-nhando-os nas malhas de uma torpe sensualidade.

    26 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo III

    UMA HORA DE DEVOO NO FERRABRS

    DOMINGO.Em frente da casa de Maurer, v-se uma fileira de cavalos:

    presos uns; outros, com as canas das rdeas ao cho; outros, maneados,de maneira que no possam escapar.

    No interior, na sala, est reunido avultado nmero de devo-tos, uns de p, outros assentados; todos aguardam, ansiosos, o momen-to de principiar o servio divino.

    No centro da sala, h uma mesa, e em cima desta, uma Bblia.Maurer passeia por entre a assemblia, detendo-se a falar ora

    a este ora quele, instruindo e preparando os nimos.Jacobina, essa, ainda se acha recolhida ao seu aposento, prxi-

    mo sala, e, de quando em vez pe-se ela a espreitar atravs de umafresta da parede. Seno quando, percebe, distancia, dois cavaleiros, quedecerto ningum havia avistado. pressa, entra na sala, relanceando osolhos sobre os assistentes, como se procurara algum.

    Ainda no se acham presentes todos os nossos irmos dizela, com ar estudado de profetiza mas ho de vir. Alguns vejo que j

  • se aproximam. Declinou, ento, os nomes dos dois que pouco antesavistara, e abeirou-se da mesa onde estava a Bblia.

    Maurer deu o sinal para se comear a devoo: todos tomaramdos livros de cnticos, e preparavam-se para cantar. Nisto, entram na salaos dois cavaleiros, e todos os olhares voltaram-se para eles: eram, justamen-te, os dois que Jacobina acabara de nomear. Um leve sussurro se fez ouvir:o olhar proftico de Jacobina assombrara a todos. J se haviam cantado al-gumas estrofes, e fizera-se silncio; quando, do desvo da casa, partem no-tas melodiosas. uma caixa de msica. Aquela gente simplria da colnia,que nunca, em dias de sua vida, tinha ouvido to delicado instrumento, fi-cou enlevada, julgando ouvir sons vindos de um outro mundo. Com efeito,tudo parecia calculado para produzir nos circunstantes tal convico.

    Infelizmente, quando ia a findar o canto, entra na sala um ca-valeiro retardatrio.* Fizera ele todo o possvel para estar presente antesde comear a funo religiosa, pois Maurer e a profetisa tinham expres-samente proibido que chegassem tarde; mas no lhe fora possvel vir atempo de assistir ao ofcio religioso desde o seu comeo; entretanto,chegava muito a tempo para poder ver como uma jovem, bem conhecida eaparentada com Maurer, se esgueirava furtivamente do desvo da casa,onde, logo aps, se fazia ouvir a msica celestial.

    Maurer recebeu com semblante carregado e olhar severo e re-preensivo ao colono que acabava de entrar. Tambm Jacobina se mos-trou descontente e despeitada: contrariava-a a circunstncia de no terpodido profetizar a chegada do recm-chegado. Mas, se ela suspeitasseque este houvera visto a origem da msica misteriosa, de certo que acousa no teria parado ali.

    Neste momento, Jacobina havia aberto a Bblia e pusera-se aler arrastadamente, como sempre.

    Todos escutavam ansiosos.Concluda a primeira frase, ergue a cabea e passeia o olhar pe-

    los assistentes. Todos vs ouvistes as palavras da Sagrada Escritura, queacabei de ler; mas podereis tambm dizer-me o que elas significam?

    28 Padre Ambrsio Schupp S. J.

    Este incidente vem narrado no Deutsches Volksblatt, como informao ministradapelo prprio colono. Aqui o reproduzimos, sem, todavia, responder pela sua ve-racidade.

  • Depois, dirigindo-se nomeadamente a algum dos ouvintes,ordena-lhe que explique como entende a passagem lida. O interpelado,ou conserva-se mudo, ou d a explicao que lhe dita o bom senso.

    Jacobina balana a cabea: Vejo diz ela que ainda estspouco penetrado do esprito.

    Depois, ela mesma d a explicao; mas uma explicao toafastada do sentido prprio das palavras, que todos pasmam, ficam em-bevecidos e como que fora de si.

    A mesma cena repete-se ainda vrias vezes, sempre, porm,com o mesmo resultado.

    Afinal, Jacobina recolhe ao seu aposento, com ar triunfante, eum cntico encerra a devoo.

    Tudo concludo, avizinha-se Maurer de cada um dos devotos,e, com ar misterioso, segreda-lhes ao ouvido alguma coisa.

    Sem demora, os fiis se enfileiram diante do aposento de Jaco-bina, e homens, mulheres, crianas, cada qual por sua vez, vo enfiandopela porta a dentro. Fora difcil, se no impossvel, descrever a expressodos semblantes dessa gente, ao sair do quarto. Que sentimentos experi-mentariam eles, no intimo? Ningum saberia dizer se voltavam dali pene-trados de piedade e devoo; ou se estavam oprimidos pelo peso da ver-gonha e da confuso; ou se, finalmente, se achavam sob a influncia detodos esses afetos ao mesmo tempo! O que certo, porm, que aquelagente acabava de receber de Jacobina o sculo dos escolhidos sculoque aquela mulher sensual, daquele dia em diante, introduziu, pela primei-ra vez, como cerimnia obrigada, entrada e sada dos fiis.

    Os que ainda no estavam de todo obcecados e julgavam ascoisas com calma, esses anteviam j em que pntano de lama ia chafur-dar a piedosa corrente do Ferrabrs.

    Os Muckers 29

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo IV

    O PERSONAGEM MISTERIOSO*

    DENTRE os parciais de Jacobina, destacava-se um que a to-dos os mais se avantajava em inteligncia, habilidade e astcia. Oravapelos cinqenta anos, e era ligado quela por vnculos de parentesco eestreita intimidade; figura alta, robusto, fronte espaosa, cabelos negros,sobrancelhas hirsutas que sombreavam dois olhos penetrantes. Passan-do em claro sobre o que dizem da vida desse homem, cingir-nos-emos areferir que era natural de Hunsrcken** e que, depois de tentar, por al-gum tempo, mas em vo, a fortuna na Amrica do Norte, desalentado,viera estabelecer-se no Brasil.

    Antes de fixar-se no Ferrabrs, estivera em muitas outras loca-lidades do Rio Grande do Sul, mas em nenhuma parte se havia demorado,porque, segundo se dizia, onde quer que chegava, incompatibilizava-selogo, tornando-se impossvel.

    O autor, por um extremo de delicadeza, no revela, em todo o seu trabalho, onome do personagem misterioso, porque este ainda vive aqui no Estado.

    ** Montanha e regio da Prssia Renana, ptria de muitos colonos alemes residen-tes no Rio Grande. (Nota do tradutor.)

  • Diziam boca pequena que ele no podia passar sem urdir in-trigas, e no se demorava em lugar nenhum sem semear a ciznia e o des-gosto, criando em derredor de si uma atmosfera de antipatias e dios.

    Graas sua superioridade intelectual, conseguiu ele impor-sede tal modo no Ferrabrs, que a comunidade evanglica o elegeu paraseu pastor.

    Desempenhou, por algum tempo, esse cargo, mas, afinal, foiobrigado a exonerar-se e trocar o ministrio religioso pelos rudes traba-lhos de colono; porm a sensaboria da vida e os trabalhos montonosda lavoura no diziam com o seu temperamento irrequieto; ele precisavade outra ocupao que melhor se coadunasse com as suas tendncias eaptides. O que lhe faltava, encontrou ele quando comearam os desati-nos de Maurer e Jacobina. verdade que, para arredar de si qualquersuspeita, negava, a ps juntos, que tivesse alguma interferncia no que sepassava em casa de Joo Jorge; por sinal dizia ele que estava de malcom Jacobina; e esquivava-se cuidadosamente de aparecer de dia no Fer-rabrs. A despeito disso, a opinio pblica pensava muito diversamente.O misterioso era geralmente tido e havido como o diretor invisvel detudo quanto sucedia em volta do casal milagroso. Havia at quem afir-masse ser ele a origem de tudo; que fora ele quem, por meio da voz mis-teriosa que se fizera ouvir atrs do arbusto, induzira Maurer a abraar aprofisso de mdico. Esta ultima assero porm, como j tivemos ense-jo de dizer, parece-nos pura inveno.

    O fato de se conservar ele afastado da casa de Maurer, duran-te o dia, bem longe de constituir prova de desarmonia com Jacobina,no era, aos olhos da populao, seno o resultado de um plano bematilado. Perspicaz e astuto, como era, no podia ele deixar de compreenderque, tomando a dianteira nos manejos de Maurer e Jacobina, longe defavorec-la, prejudicava a causa destes.

    Mas o que certo que no deixava de se informar, comgrande interesse, acerca dos acontecimentos que se desdobravam emcasa de Joo Jorge, fingindo-se, ao mesmo tempo, apreensivo e receosodas funestas conseqncias da agitao.

    Assim tinha ele ensejo, no s de sondar de perto os nimosdos moradores vizinhos acerca daqueles acontecimentos, como tambmde estudar as suas esperanas e receios; e era convico geral que ele se

    32 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • desforrava de noite do que no podia fazer de dia; indo, de quando emquando, a desoras, ao Ferrabrs, para, na calada das trevas, dispor e urdiros fios que o casal tinha preparado durante o dia.

    Era esta repetimos a opinio corrente e geral.Que o nosso misterioso no era, com efeito, hostil, nem alheio

    aos sucessos no Ferrabrs, provam-no exuberantemente vrias cartaspor ele mesmo escritas, no interesse de Jacobina e de seus parciais, dan-do as minutas, ora para aquela, ora para estes; tendo, porm, a cautela demand-las copiar a fim de encobrir a sua autoria. J se v que era homemprecavido.

    A despeito, porm, de toda precauo, quis o acaso que vriosplanos, por ele traados, viessem a lume, como teremos ensejo de vermais adiante.

    Circunstncia digna de nota era que o movimento no Ferra-brs tomava, dia a dia, mais o carter de um plano bem combinado. Tra-balhava-se ali, com afinco e ardor, em recrutar novos adeptos; aguilhoa-va-se a curiosidade dos colonos, predizendo-se grandes acontecimentos,que estavam para ocorrer em breve e procurava-se despertar, nos que ti-nham freqentado uma vez a casa de Maurer, o esprito da mais estreitasolidariedade.

    Tudo estava a denunciar que o que se tinha em mira era fun-dar uma seita religiosa, cuja alma devia ser Jacobina.

    E, com efeito, precisamente nos ltimos tempos, as romariasao Ferrabrs se haviam amiudado de uma maneira bem reparvel; maisdo que nunca, falava-se, surdina, da misso extraordinria confiada profetisa. Dizia-se que ela no era um ente humano, como os outros:porm que era animada, de um modo singular, do esprito de Deus e ainda mais que era um ser divino.

    Por seu lado, Jacobina, com os seus ademanes, com o seuproceder, tudo envidava para confirmar os iludidos nessa loucura sacr-lega, e, nesse intento, era auxiliada pelos que privavam com ela.

    Com ares de mistrio, chamava-se a ateno dos colonos paraa prxima solenidade de Pentecostes. Afirmava-se que nesse dia o ori-undo assistiria a um milagre, como nunca vira igual, de modo que at osincrdulos haviam de pasmar e emudecer.

    Os Muckers 33

  • Quem acompanhava de perto esses boatos, percebia logo queos mesmos tendiam a estimular a curiosidade dos moradores da colnia.Esperava-se, assim, atrair ao Ferrabrs o maior nmero possvel de curi-osos, e, por meio de uma dessas cenas espalhafatosas, de antemo pre-parada e prpria para armar ao efeito, faz-los cair na embacedela espe-rando, ao mesmo tempo, fazer entrar a causa de Jacobina em uma fasenova. Queriam radi-la da aurola do sobrenatural e at da divindade,para arrastarem os nimos a uma dedicao cega e ilimitada. Ento, sim,conseguir-se-ia realizar a confratenizao de todos os proslitos da mu-lher misteriosa, e a nova seita podia-se considerar fundada.

    Como alma de todos esses boatos, planos e manobras, a opi-nio pblica apontava um s indivduo, e esse no era nem Joo Jorgenem Jacobina era o personagem misterioso.

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  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo V

    TENTATIVA MALOGRADA

    AO SUL do Ferrabrs, numa curva que forma o riodos Sinos, h um lano de terras, dividido em vrias colnias. Desta-ca-se ali uma vistosa casa de colono, com vrios galpes, que servem dedepsitos de madeiras.

    No rio, uma barca transporta carros e passageiros, a p e a ca-valo, estabelecendo, assim, a comunicao entre as duas margens.

    Chamam a esse lugar Passo da Cruz. A poucos lanos dali,numa enseada, est atracada praia uma dessas embarcaes fluviais,grandes e de construo slida, a que do o nome de lanches.

    Tanto a casa com as suas dependncias, como a barca e o lan-cho, so propriedades de um homem, h muito aqui estabelecido e que,aos rudes trabalhos de colono, alia as especulaes de negociante demadeiras.

    Joo Sehn que assim se chama ele a despeito dos seus ses-senta anos, conserva ainda bastante frescor e vio juvenil. Descendentede uma famlia catlica, recebera ele alguma instruo religiosa, postoque deficiente; mas era casado com uma protestante, de nome Maria.Na poca de que nos vimos ocupando, vivia o casal cercado de oito

  • filhos: quatro vares e quatro mulheres; e todos tinham abraado a reli-gio do pai.

    Os rapazes chamavam-se Carlos, Jac, Martinho e Rodolfo;os trs primeiros j eram casados, e tinham teto prprio. Rodolfo, omais novo, morava no Passo da Cruz, encarregando-se do servio dabarca, cujos proventos seu pai lhe havia cedido. Eram quatro moa-lhes, feros e rijos; e, num pas onde o vigor fsico, aliado a um tino pr-tico, supre grandes capitais, tinham eles diante de si um risonho porvir.

    Tambm s filhas sorriam-lhes os partidos mais vantajosos,porque, alm de prendadas pela natureza, tinham a seu favor a estima econsiderao de que gozava o pai.

    O velho Joo Sehn era homem de boa estofa, honrado e sim-ples. O arranjo da sua casa, modesto; mas esta destacava-se das outras porduas circunstncias: era construda de pedra, e, alm disso, sobradada.

    Quem nela entrasse, notaria, primeira vista, a cozinha devastas propores, e a sala espaosa, que logo se via ser destinada aalgum outro fim que no s simples exigncias e ao conforto da famlia.

    E, com efeito, assim era; ali se reuniam, vrias vezes no ano,os vizinnhos; tocavam, danavam e entregavam-se a outras diverses.Demais, o negcio de madeiras levava, no raro, quela casa, hspedes,vindos, principalmente, de Porto Alegre. Eram cavalheiros e jovens elegan-tes da Capital, que, a par de bons centos de mil-ris e de louras onas,iam deixando, insensivelmente, aps si uma boa dose do seu esprito fr-volo e da sua indiferena religiosa. De resto, eram sempre bem-vindasessas visitas; e, como o arranjo modesto e, para assim dizer, rstico dacasa contrastava algum tanto com as maneiras urbanas dos hspedes,lembrou a mulher a necessidade de se proceder uma reforma radical,no s no prdio, como tambm no mobilirio.

    Foi chamado, logo, um oficial de marceneiro, que ps mo obra, e, durante um ano inteiro, no deixou descansar a sua ferramenta.Concludo o trabalho, a casa toda havia tomado o aspecto de prdio decidade.

    Como a residncia de Sehn fosse bem espaosa e na vizinhan-a no havia capela, era ali que, de preferncia, se celebravam as funesreligiosas do culto catlico. De S. Leopoldo, l ia, s vezes, um padre,

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  • demorando-se uns dois ou trs dias. Dos arredores, acudiam os colonoscatlicos, e tambm alguns protestantes, para assistirem missa e aosermo. O padre administrava depois o sacramento do batismo, e osfiis dispersavam-se, tomando cada um o rumo de sua casa.

    Na poca em que a causa de Jacobina florescia, eram JooSehn e sua famlia adeptos, dos mais fervorosos e dedicados, da mesma.Deveu ele isso a sua mulher, a qual, como j dissemos, era protestante.Assdua leitora da Bblia, interessavam-na em extremo as interpretaesque a profetisa dava s palavras do Texto Sagrado. Tambm ela se sentiatomada de pasmo e admirao pelas explicaes novas e surpreendentesda iluminada. No contente de se entregar vidente com uma dedicaosem limites, procurava arrrastar tambm aqueles sobre quem tinha al-gum ascendente; e, em primeira linha, figuravam os membros de sua fa-mlia. Tinham estes, como j vimos, uma instruo religiosa assaz defici-ente, e, portanto, no lhe custou muito ver coroados de bom xito osseus esforos.

    Tambm entre os seus parentes, procurou ela aliciar adeptospara a iluminada; mas nem sempre foi bem-sucedida, como o leitor vai ver.

    Era um domingo: no houvera missa, mas guardava-se religiosa-mente o dia.

    O velho Sehn, num doce cio, de p no umbral da porta, asmos para as costas, estava contemplando o azul do firmamento. No in-terior da casa, a mulher, sentada mesa, entretinha-se a ler a Bblia. Nisso,ouviu-se o tropel de cavalgadura, que se aproximava, e, instantes depois,um cavaleiro parava porta e desmontava.

    Era Filipe Sehn, irmo de nosso Joo. Era dono de uma ola-ria, distante do rio uma meia hora de caminho.

    Quando se soube ser o tio Filipe que havia chegado, houveverdadeiro rebolio no interior da casa: a pequenada correu a saud-lo, ea velha ps de lado a Bblia para o receber.

    Voc vem a calhar exclamou ela. Trago no corao algumacoisa que preciso desabafar com voc.

    Deve ser negcio de monta acudiu o interpelado e es-tou quase a adivinhar o que possa ser.

    J esteve em casa de Jacobina?

    Os Muckers 37

  • Filipe ps-se a rir: Vejo que no me enganei. Mulher! deixa o Filipe resfolgar primeiro atalhou o velho

    Sehn o coitado mal se apeou! Deixa ela continuar observou Filipe o assunto vem a

    pintar. Para falar a verdade, esse negcio do Ferrabrs traz-me o espritopreocupado e no me deixa tranqilo.

    A velha estremeceu: Mas, pelo amor de Deus! que acha voc que censurar em

    tudo aquilo? Muitssimo retrucou o outro. Primeiro, aquilo l se me

    afigura muito suspeito, e prevejo que no h de acabar bem. Em segun-do lugar, aflige-me ver que meu irmo, o seu marido, e vs todos, vosdeixastes intrujar por aquela gente do morro.

    L isso que no sabemos tornou a outra, assomada , sesomos ns os que vivem enganados, ou se so os que motejam de ns.L no morro, tudo piedade e religio; e no h sombras de intrujice. Sevoc l tivesse estado, julgaria as coisas de modo bem diverso. Mas, sempre assim: fala-se, discute-se sobre fatos que se no conhecem.

    No mister ir at l redarguiu Filipe O que se rosnapor a, basta para se concluir que as coisas, l no Ferrabrs, no vocomo deveriam ir.

    Eu s desejara saber o que h que censurar a Joo Jorge e aJacobina insistiu a mulher, j irritada. Tudo mentira dos mpios.

    Minha boa cunhada fez Filipe, acalmando. Eu sou cat-lico; meu irmo e meus filhos tambm o so. O catlico cr que o Papae os 900 bispos espalhados pelo mundo interpretam e explicam melhora Sagrada Escritura do que qualquer particular, por sbio que seja.Quem no cr nisso, deixa de ser catlico.

    Qual! bradou a mulher, cada vez mais inviperada. Qualnada! No me venha para c com o Papa e os seus bispos. A Bblia apalavra simples e pura de Deus; e, se voc pretende refutar-me, faa-ocom a Escritura.

    38 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • J sei retorquiu o outro. J me disse uma vez; e foi porisso que tratei de pr no papel certos textos da Bblia, que falam bemalto contra voc.

    E, dizendo e fazendo, tirou do bolso um papel, que desdo-brou sobre a mesa.

    A mulher puxou para perto a cadeira em que estava sentada: Estou curiosa de saber o que voc traz ali escrito.Os outros, de p ou sentados, em roda, aguardavam ansiosos

    o desfecho da discusso. Vs admitis comeou Filipe pois geralmente sabido

    que Jacobina pode ligar e dissolver matrimnios. S ento obtemperou a outra quando uma das partes se

    mostra incrdula e obstinada, rejeitando a verdadeira f. Perfeitamente retrucou Filipe. Jacobina, portanto, ensi-

    na que o casamento dissolvel; porm a Sagrada Escritura nos diz: oque Deus uniu, o homem nunca mais o separar. Como conciliar umacoisa com a outra? Sabe que mais? Se Jacobina no ensinasse seno essedisparate, bastava isto para eu no querer saber dessa mulher, nem detodo o seu mistifrio. Quantas calamidades no podem causar tais dou-trinas a uma famlia? V de hiptese que me d na veneta ir casa de Ja-cobina e abraar a sua doutrina. Acontece, porm, que minha mulher,alis bem sensata, no quer saber dela. Nesse caso, Jacobina declara nuloo meu casamento, e impe-me que v procurar outra mulher. Pois eu demim declaro que prefiro cair fulminado a dar semelhante passo.

    A mulher perdeu de todo a tramontana, e j no sabia o queresponder; mas, para no dar as mos palmatria, socorreu-se a outrognero de argumento:

    Ora vejam s que patego! vociferou ela. Bem dizia euque ele perdeu o tino! No se quer dobrar razo! Sabe que mais? melhor que voc no me ponha mais os ps aqui.

    Levantou-se, e, furiosa, abandonou a sala.Filipe, por seu turno, j havia tomado tambm a sua resoluo. Se assim disse ele no est mais aqui quem falou. Vejo

    que sou aqui demais.A estas palavras, ergueu-se, encaminhando-se para a porta.

    Os Muckers 39

  • O irmo fez meno de o deter, mas Filipe compreendeu quetambm este ardia por v-lo pelas costas.

    No! observou ele nenhum outro mvel me trouxe aquiseno o de vos ser til; mas, j que isso no me possvel, nada mais te-nho que fazer nesta casa.

    Apertou a mo a todos, montou a cavalo, e partiu.

    40 Padre Ambrsio Schupp S. J.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo VI

    A CENA DO DIA DE PENTECOSTES

    ALVOREJOU, enfim, o dia 19 de maio de 1872. Naspicadas, tangiam, alegres, os sinos, convidando os fiis igreja. Era o diade Pentecostes.

    Nesse dia, com certeza, muitos colonos deviam ter madruga-do, porquanto lhes era preciso cavalgar duas ou trs horas at ao templomais prximo, a fim de cumprirem os deveres religiosos.

    Tambm nas vizinhanas do Ferrabrs, percebia-se certo mo-vimento e animao, e muitos, a p e a cavalo, dirigiam-se para a casa deJoo Jorge.

    Como j dissemos, Jacobina, havia algum tempo, vaticinarapara esse dia, sucessos extraordinrios, que a todos haviam de encher deassombro e espanto. A curiosidade, portanto, explica, em parte, a nume-rosa afluncia de romeiros ao casal miraculoso.

    No meio da cavalgada, contava-se tambm o nosso persona-gem misterioso. Desta feita, ia ele, sem disfarce, a par dos outros; po-rm, pela estrada afora, vinha falando da sua desavena com Jacobina echasqueando os prodgios que se iam operar.

  • No Ferrabrs, j se achava uma regular multido de fiis.Quando se presumiu que ningum mais viria, deu-se comeo funoreligiosa.

    Como era praxe, principiaram-na com um cntico, entoadopor Jac Fuchs, morador da Picada dos Portugueses. Este homem,conhecido vulgarmente pela alcunha de Jac das Mulas, vivia separa-do da mulher; soubera, porm, captar as boas graas e uma particularestima de Jacobina, o que lhe valeu as honras de sacristo e chantre, nosofcios divinos.

    Ao cntico, seguiram-se preces. Estas se haviam prolongadoj por algu