os mistérios de cristo na liturgia - · pdf fileos ritos litúrgicos celebram os...

288

Upload: phunglien

Post on 05-Mar-2018

232 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

Page 1: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:
Page 2: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:
Page 3: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MISTÉRIOS DE CRISTO

NA LITURGIA

Page 4: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:
Page 5: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MISTÉRIOS DE CRISTO

NA LITURGIA

SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA

JOSÉ FERREIRA

Page 6: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

À memória de meus paisManuel Ferreira

e Maria da Costaque me ensinaram

a ler a escrever e a rezar

e deMons. Cón. Dr. José Manuel Pereira dos Reis

que me ensinou a contemplaro mistério de Cristo e da Igreja

na celebração da liturgia

e com a maior gratidão aos colegas e amigosdo Secretariado Nacional de Liturgiaque tomaram a iniciativa desta publicação.

Page 7: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:
Page 8: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

IMPRIMATUR

JÚLIO TAVARES REBIMBAS

Arcebispo-Bispo Emérito do PortoPresidente da Comissão Episcopal de Liturgia

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor.

© Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 312496 FÁTIMA CODEX

Depósito Legal nº ??????/98

ISBN 972-8286-42-2

Page 9: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

GRATA MEMÓRIA

Os ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. A história do homemtem o seu ponto de partida em Cristo – gerado, não criado, consubstancial ao Pai – e aexistência humana no tempo é o resultado duma determinada encarnação que no caso deCristo é pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria. A liturgia nasce com Cristonascido do Pai antes de todos os séculos, manifesta-se em Cristo, que por nós homens epela nossa salvação desceu dos Céus, e por Cristo é perene, cujo reino não terá fim. Oacesso humano a este mistério divino é possível porque Cristo manifestou a sua glória.Os que conheceram a Cristo por ocasião da sua vinda história, como a Virgem Maria e osApóstolos, foram por Ele iniciados nos divinos mistérios e associados à sua glória. AAscensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto: o que na vida do nossoRedentor era visível passou para os ritos sacramentais (Leão Magno, Sermão 2 da As-censão: LH 2, 822). As palavras de despedida na Ascensão do Senhor ilustram bem avocação e a missão da Igreja: «Assim como o Pai Me Enviou, também Eu vos envio avós. Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo» (Jo 20, 22-23).No Pentecostes o Espírito Santo iniciou a Igreja nos ritos sacramentais: estava realizadaa obra da redenção.

Desde então, e às portas do terceiro milénio, a Igreja procura dar cumprimento aomandamento da missão de iniciar os homens nos mistérios do reino: Cristo partilha comalguns a missão de ser enviado a muitos. Esta partilha divina é à maneira do grão de trigolançado à terra e do fermento misturado na farinha. A sementeira e o amassar da farinhasão obra humana, enquanto que o germinar e o fermentar são obra da natureza criadora.São assim as vocações sacerdotais na vida da Igreja: a sementeira não anuncia a colheita,mas a colheita pode dizer a sementeira e os tempos da germinação.

Os mestres explicam-se pelos mestres que os iniciaram e pelo desenvolvimentodos dons naturais. O bom discípulo deve propor-se alcançar o que o seu mestre iniciounele com o ensino: a glória do discípulo consiste em ser a coroa e a jóia do mestre. Ahistória regista os movimentos positivos e negativos deste processo humano de aprendi-zagem. O esforço humano é o segredo da humanidade na sua evolução.

Esta edição pretende ser uma página do livro da vida de um homem. Apenas umapágina a juntar a muitas outras já escritas: umas com as cores da natureza, outras com umgrafismo só visível em determinadas posições de luz, porque cópia duma escrita maisforte mas que apenas deixou as marcas de baixo relevo. Os oitenta anos de vida doSenhor Cónego José Ferreira são para uns como um livro aberto diante de quem não sabeler, para outros são como um livro escrito numa linguagem desconhecida, mas paramuitos outros são como um livro que alguém abre para estudar e fecha para guardar: umlivro que não começa nem acaba nas palavras, um livro iniciado e acabado com muitaspáginas em branco, um livro sem desperdícios e com espaço para outras possíveisanotações. O registo civil descreve-o com o nome de José Ferreira, filho de ManuelFerreira e Maria Costa, nascido a 29 de Maio de 1918 na localidade de Vargos, paróquiade Paço no concelho de Torres Novas: a sua folha de registo ficou-se por aí até que aúltima linha encerre a página. O registo canónico descreve-o como baptizado a 22 deJunho de 1918 e ordenado presbítero a 6 de Junho de 1941. Noutros registos aparece

Page 10: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

como seminarista no Seminário de Santarém, de 1 de Outubro 1930 a 11 de Julho de1935, e no Seminário dos Olivais, de 29 de Setembro de 1935 até 29 de Junho de 1941;prefeito e professor no Seminário de S. Paulo em Almada nos anos de 1941 a 1947 e1949-1953; coadjutor de Santa Justa e Rufina (Lisboa) nos anos de 1947-1948; membroda equipa formadora e professor de Liturgia e Canto Gregoriano no Seminário dos Olivaisdesde 1953, e responsável pela formação litúrgica desde 1970; membro de ComissãoDiocesana de Liturgia e Música Sacra desde 1965 e presidente da mesma Comissãodesde 21 de Janeiro de 1971; nos anos de 1966 a 1968 frequentou o Instituto Católico deParis; na Universidade Católica Portuguesa leccionou Liturgia, Pastoral Litúrgica e Latim;membro do Conselho Presbiteral desde 1984; e cónego capitular da Sé Patriarcal deLisboa desde 8 de Setembro de 1983.

A presente publicação contém os trabalhos feitos pelo Cón. José Ferreira para oSecretariado Nacional de Liturgia, de que é membro desde 1973, e pretende ser home-nagem de colegas e amigos, e memória para os vindouros: livro para aprender com quemtem mais assunto para ensinar do que tempo para comunicar. Nestas páginas é notória alucidez litúrgica do seu autor. As suas convicções são sólidas e profundas. O tesouro doseu coração encerra coisas novas e velhas, onde o que sobra denuncia o que falta. Estesescritos são pedaços de alma ao longo de vinte e dois anos: não resultam de uma dispo-sição de momento, mas de uma vida amadurecida na estação da reforma litúrgica. A vidado Padre Zé Ferreira merecia ser escrita, mas fica mais bem guardada no mistério da suaexistência, onde nada é por acaso, mas tudo acontece de acordo com os desígnios dadivina providência. Antes de nascer observou, a partir da tenda materna, o milagre do solna última aparição de Nossa Senhora de Fátima em Outubro de 1917: este acontecimentomarcou a vida do recém-gerado. Já nascido e crescido, recebeu do pai o ensino da oração,da leitura e da escrita. Nos anos mais decisivos da sua formação para o sacerdócio foiagraciado com a dedicação de Monsenhor Pereira dos Reis, Reitor do Seminário. Asemente da liturgia estava lançada na boa terra e não tardaria a produzir abundante fruto.A liturgia era a sua paixão. Enriquecido com o carisma do conhecimento profundo eessencial da liturgia, – que procurou cultivar com o estudo, o ensino e sobretudo com aprática celebrativa –, e dotado de grande sensibilidade litúrgica, cedo entendeu o con-ceito de liturgia, de participação e de assembleia celebrante do mistério, que o ConcílioVaticano II iria proclamar.

E agora, cumprida a Escritura no que diz respeito à vida do homem sobre a terra eapós uma vida robusta, arruma a tenda na esperança da visita amiga do Senhor quesempre o teve como ministro do culto no seu Santuário. As suas preocupações no âmbitoda liturgia situam-se na defesa da verdade, da simplicidade e da beleza. Este serviço temum valor que transcende o próprio tempo do homem e o projecta na perspectiva da eter-nidade. Enquanto os grandes deste mundo discutem as grandes questões da humanidade,há pequenos que descobriram na liturgia o bom início para se terminar bem.

Bem haja, Padre Zé. A sua humildade dispensa o nosso “obrigado”, mas a nossagratidão clama: Bendito seja o Senhor a Quem serviu com estes seus trabalhos que agorareunimos e publicamos para maior glória de Deus.

SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA

Page 11: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

PÁSCOAUMA NOVA CRIAÇÃO

Estamos em pleno tempo da Páscoa. A consciência cristã dos nossos dias precisade recuperar o sentido e de viver do espírito deste tempo litúrgico, que foi o primeiro,depois do domingo, a ser celebrado pela comunidade cristã. O Tempo Pascal é maisantigo do que a própria Quaresma, pois que dele se encontram testemunhos já desde osfins do século II.

O TEMPO PASCAL

Nascido da própria Vigília Pascal e como que a prolongar-lhe a festa, o TempoPascal é o «laetissimum spatium», o tempo cheio de alegria, aliás como o domingo,numa expressão mais ampliada, a celebrar a totalidade da nova Aliança. O Tempo Pascalé a festa prolongada durante sete semanas até se concluir com a repetição do PrimeiroDia, o dia da Ressurreição, no domingo de Pentecostes. Ele é a verdadeira oitava pascal– oitava de domingos – e todo ele um único Grande Domingo, como se exprime S.Atanásio († 373; Ep. fest. 1). Assim como o Tríduo Pascal – Sexta-feira Santa, SábadoSanto e Domingo da Ressurreição – fazem um todo único, e qualquer dos três dias nãotem consistência nem é celebrado sem os outros, assim também os cinquenta dias doTempo Pascal fazem um só grande tempo de festa, em que nenhum dos dias é por assimdizer autónomo. O Calendário Romano diz: «Os cinquenta dias desde o Domingo daRessurreição até ao Domingo de Pentecostes celebram-se na alegria e no júbilo como umúnico dia de festa, mais, como o «grande Domingo» (Cal. Rom. 22).

O ponto de partida é a ressurreição do Senhor; o seu termo é a descida do Espírito,o dom pascal por excelência, a comunicação da vida do Ressuscitado. Mas nem oDomingo da Ressurreição (no primeiro domingo), nem o Domingo de Pentecostes (nooitavo domingo), nem a Solenidade da Ascensão (no 40.º dia ou, agora entre nós, no 7.ºdomingo) constituem festas isoladas ou autónomas; são apenas momentos especialmentesignificativos dum grande tempo de festa, como as celebrações desses dias constituem asgrandes assembleias a celebrar o mesmo e único mistério, o da nova Aliança no sanguede Jesus, da vitória sobre a morte, penhor e fonte da vida na comunhão, para sempre,com o Pai.

A charneira onde se articula o Tempo Pascal com o Tríduo Pascal, donde elenasce, é a Vigília na santa noite da Páscoa. No solene «anúncio da festa pascal» que é oPrecónio, o «Exultet», o diácono refere-se ao nascer do Astro que não conhece ocaso,Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos, vivo e glorioso para sempre. Pois é este diasem ocaso, nascido com a Ressurreição, que o Tempo Pascal procura simbolizar e comoque eternizar nos limites simbólicos das sete semanas festivas, a concluir com o retornodo Primeiro Dia, no oitavo domingo, o de Pentecostes.

Page 12: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

12 PADRE JOSÉ FERREIRA

ALGUMAS ALTERAÇÕES

É a consciência, agora reencontrada, da unidade de todo o Tempo Pascal que le-vou a certas alterações na organização e na nomenclatura dos dias deste tempo. Assim:

a) Os domingos do Tempo Pascal já não se chamam como até aqui «domingosdepois da Páscoa», mas II, III, IV, etc., domingo da Páscoa, visto que todo oTempo Pascal é celebração da Páscoa, ao longo de toda a cinquentena pascal.

b) O Domingo de Pentecostes não é já considerado como uma festa autónoma,mas como o termo, diríamos a clausura, da celebração pascal (os antigos cha-mavam-lhe precisamente «clausum Paschae», a clausura da Páscoa). Trata-seainda de uma festa pascal, mesmo do vértice da Páscoa, porque o dom doEspírito é o fruto por excelência da morte do Senhor; é Ele que vem fazer a«nova criação» (2 Cor 5, 17), a humanidade nova dos que nascem «da água edo Espírito» (Jo 3, 5). Daí que o Domingo de Pentecostes voltou a não ter asua oitava; é ele que é a oitava – o oitavo domingo da Páscoa – ou, talvezmelhor, o encerramento da grande oitava, no fim das sete semanas do TempoPascal. Quanto à antiga vigília, no sentido que a palavra vigília então possuía,de preparação para a festa, até com jejum, ela era mais uma prova de que setinha perdido a consciência de unidade do Tempo Pascal e do seu carácterfestivo. O jejum do Pentecostes é a Quaresma. Mas, se por vigília enten-dermos a celebração nocturna da festa, como agora acontece na Vigília Pascal,então também o Domingo de Pentecostes pode ser celebrado em vigília,durante a noite, à maneira do Domingo da Ressurreição, e para isso o Missal eo Leccionário trazem os formulários adequados.

c) Também a Ascensão não é uma festa autónoma, mas uma solenidade daPáscoa, completamente integrada no Tempo Pascal, que aliás nem sempre foicelebrada no 40.º dia, tanto ela era considerada como mais uma maneira deexpressar a exaltação do Senhor na linha da Ressurreição. Por isso não é tãoanormal, como possa parecer à primeira vista, que a Ascensão seja agora cele-brada no sétimo domingo da Páscoa. Assim, também a Ascensão perdeu, natu-ralmente, a sua vigília e a sua oitava. Eram uma anomalia.

d) Em compensação, os textos que enchiam outrora a «oitava do Pentecostes»,passaram agora a ocupar os dias feriais da sétima semana, que ficam assimfortemente marcados pela alusão ao Espírito. Mas não se trata de preparar acelebração de outro mistério diferente do celebrado em todo o Tempo Pascal,mas apenas de ir até ao termo do mistério pascal, até à comunhão no Espírito,Aquele que há-de revelar até ao fim aos discípulos de Jesus o mistério da suaPáscoa.

Nesta perspectiva não admira que o nome de Pentecostes possa ter sido dadooutrora, não ao oitavo domingo como agora acontece, mas a todo o Tempo Pascal, «assete semanas do grande Pentecostes» (S. Atanásio, Ep. fest. 2). O nome de Pentecostes,de origem grega, significa propriamente «quinquagésimo» (dia); mas a palavra pareceter sido aplicada, talvez já desde o século II, também a todo o conjunto dos cinquenta

Page 13: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

PÁSCOA – UMA NOVA CRIAÇÃO 13

dias do Tempo Pascal, a significar a «cinquentena», o que confirmaria a consciência deunidade de todos estes dias, desde a sua origem. Talvez que a tradução da Vulgata: «Cumcomplerentur dies Pentecostes...» (Act 2, 1), no plural, e que se refere claramente a umespaço de tempo: «Ao terminarem os dias do Pentecostes», (quando o texto primitivoparece ter trazido o singular, referido a um só dia), seja mais um testemunho de que adesignação «Pentecostes» se aplicou outrora a toda a cinquentena pascal. Pentecostesseria então o primitivo nome do que chamamos hoje Tempo Pascal.

ESPIRITUALIDADE PASCAL

A redescoberta da preparação para a Páscoa, que é a Quaresma, foi certamenteuma grande graça para a Igreja, a qual foi por sua vez devida à redescoberta da própriaPáscoa. Aliás a Páscoa nunca esteve ausente da consciência cristã, pois que o MistérioPascal constitui o coração de todo o cristianismo, e a celebração da Páscoa o centro detoda a liturgia cristã. Mas o que é estranho é que esta redescoberta da Páscoa não setenha estendido ainda, ao menos na consciência de muitas comunidades cristãs, a todo oTempo Pascal. Possivelmente em razão das distorções litúrgicas atrás referidas e queduraram séculos, mas talvez mais ainda pela dificuldade que todos temos em aceitarmosque o cristianismo é antes de tudo um dom. A Quaresma prepara-nos para este dom naluta ascética e na purificação, o que é aliás exigência bem humana. A comunidade cristãnunca o ignorou. Mesmo antes de ter instituído uma Quaresma, já, e desde o princípio,ela conhecia a penitência que é conversão, e sem a qual não se pode entrar no Reino deDeus (cf. Mc 1, 15). Por consciência do próprio pecado, por experiência de uma vidacheia de negativos, pelos limites angustiantes que nos envolvem por todos os lados, fa-cilmente aceitamos, ao menos em princípio, a necessidade de purificação, de libertação,de renovação. Foi talvez ainda nesta linha que os mistérios da paixão, ao menos na suaexpressão dramática, encontraram sempre fácil aceitação entre o povo. E é ainda assimque a Semana Santa é ainda para muitos, acima de tudo, a Sexta-feira Santa, mas comoque isolada no seu quê de quase trágico. Mas penetrar no mistério do Domingo, o«primeiro dia da semana» (Jo 20, 1), ultrapassar o «drama do Calvário», reconhecer o«jardineiro» da manhã da ressurreição junto do túmulo vazio (Jo 20, 15), não ser «tardode coração» para compreender o viajante da estrada de Emaús «na tarde daqueledia» (Lc 24, 25), ser enfim capaz de reconhecer o «dom de Deus» (Jo 4, 10) na vida quesurge da morte, quedar-se na contemplação que leva à acção de graças em louvor – emeucaristia – perante «o dia que o Senhor fez» e prolongar este estado de alma para alémda Vigília Pascal, no meio das ocupações diárias de uma existência todos os dias dolorosae interrogante, encontrar para a morte a resposta da vida n’Aquele que, pela obediênciaaté à morte, foi exaltado pelo Pai até à sua direita e d’Ele recebeu um nome que estáacima de todo o nome, o nome divino de SENHOR – tudo isso, foi capaz de o descobrir jáuma Igreja sob a perseguição nos primeiros séculos, que soube inventar uma festa pascalde cinquenta dias; mas tem-nos sido a nós, parece, muito mais difícil de conseguir.

No entanto, o Tempo Pascal quer ser esta acção de graças, vivida na alegria, quese apoia no mistério pascal consumado em Cristo. O Tempo Pascal é o tempo de re-conhecere agradecer, de olhar para o sepulcro vazio, para a vitória sobre a morte, para a revelação

Page 14: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

14 PADRE JOSÉ FERREIRA

da vida na plenitude divina com que ela se manifesta em Jesus Cristo ressuscitado, parao Espírito que invade a terra inteira para dela fazer a «nova criação» (cf. I Leitura daVigília Pascal) e nela uma nova humanidade, e, ao mesmo tempo, para esta terra devas-tada e às vezes desesperada, para esta humanidade que se afadiga em libertar-se de tantaescravidão, para este mundo que sempre atrai e desilude quando não se consegue ultra-passar a si mesmo, e, ao reconhecer tudo isto, cantar, em acção de graças, cheia de amore de esperança, o Aleluia da Ressurreição.

A liturgia do Tempo Pascal sublinha muito todo este reconhecer e este agradecer.Partindo da Vigília, que é o momento de síntese de toda esta revelação e de toda estaatitude espiritual, a liturgia deste tempo perde-se, sobretudo nas primeiras semanas,como que na contemplação agradecida do Senhor que, na mesma carne que de nósrecebeu e que n’Ele foi por nós levada à morte, destruiu a morte e manifestou a vida: sãoas aparições do Ressuscitado, com aquela inefável condescendência do Senhor quemostra as mãos e os pés perfurados e o lado aberto, para que Tomé «creia» (II Dom.), éa imagem do Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas (IV Dom.), e é a vida da Igreja anascer da Páscoa, totalmente apoiada nesta fé e nesta esperança, como a seara a nascerdo grão de trigo, que morreu debaixo da terra (Actos dos Apóstolos lidos no TempoPascal). Nas últimas semanas, o pensamento volta-se mais para a promessa do Espírito:«Aquele que crê em mim, disse Jesus, de seu seio nascerão torrentes de água viva. Eledizia isto falando do Espírito que haviam de receber aqueles que n’Ele acreditassem»(Jo 7, 37-38). Para os que nascem da água e do Espírito, como é todo o cristão, o tempoda Páscoa é o tempo de recordar e renovar o Espírito de que nasceram.

Entretanto, as leituras dos Actos dos Apóstolos recordam as viagens missionáriasde Paulo e a expansão missionária da Igreja. São sempre os rios de água viva a jorraremdo trono do Cordeiro (Ap 22, 1) e a inundarem a terra inteira (cf. Ez 47, 1 ss.). É o tempode tomarmos consciência de que ser cristão é entrar nesta multidão que vai pelo mundo,como Maria de Magdala, anunciando que vimos o Senhor ressuscitado e que Ele nosdisse estas coisas (Jo 20, 18).

O Boletim de Pastoral Litúrgica nasce no Tempo Pascal.* Sinal, pequeno embora,desta vida da Igreja, que, por ser a de Cristo Ressuscitado, «não mais morrerá» (Rom 6, 9),aquela vida que nasceu do lado de Cristo aberto na Cruz e se manifestou na efusão doEspírito no dia de Pentecostes (Conc. Vat. II, SC 5 e 6). Vamos desejar-lhe que ele sejapara nós uma ajuda na descoberta dos mananciais de água viva, que de Cristo corrempara a Igreja na celebração dos mistérios da Liturgia.

O Tempo Pascal é tempo bom para nascer, e nascer do Espírito!

* Artigo para o primeiro número do Boletim de Pastoral Litúrgica, que apareceu preci-samente na Páscoa de 1976

Page 15: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

UMA IGREJA ORANTE

1. «ORAI SEM CESSAR»

Ao pensar-se em celebração litúrgica ocorrem imediatamente ao espírito, ao me-nos para quem tenha apanhado, ainda que sumariamente, a noção de Liturgia apresentadapelo Concílio Vaticano II, «o sacrifício e os sacramentos, em volta dos quais gira toda avida litúrgica» (SC 6). E, de facto, para a maior parte dos cristãos, a Liturgia limita-se àMissa e a alguns sacramentos, muitas vezes, de emergência (!).

No entanto, a Liturgia das Horas, ou seja, determinado ritmo de oração da comu-nidade cristã ligado a certos tempos e horas, foi sempre, para além da Missa e dos outrossacramentos, exigência do preceito evangélico, de que «é necessário orar sempre semnunca se cansar» (Lc 18, 1; cf. Mc 13, 33), preceito que S. Paulo há-de incutir repetidasvezes (Cf. Rom 12, 12; Ef 6, 18; I Tess 5, 17). A Igreja praticou-o desde o início: «Eramassíduos à fracção do pão (Eucaristia) e às orações» (Act 2, 42).

A maneira concreta de responder a esta exigência da consciência cristã tem e tevesempre maneiras diversas de se concretizar; mas sempre a Igreja, como comunidade,como povo de Deus, conheceu outras assembleias de oração, além da Eucaristia e dosoutros sacramentos.

Hoje quase as não conhece. E não é normal! Até porque estas celebrações – arre-pia pensá-lo, mas acontece! – não são muitas vezes contadas entre os tempos de oração!O «dizer Missa» e o «administrar os sacramentos» já se vão substituindo por «celebrar aEucaristia» e até por «celebrar os sacramentos»; mas nem por isso se pode ficar a crerque sempre se apanhe o sentido de oração, que é, em qualquer caso, o meio ambiente dacelebração litúrgica, seja ela qual for.

É coisa absolutamente normal que a assembleia cristã seja convocada emdeterminados dias, ou mesmo todos os dias, e a certas horas para a oração. A Regra deS. Bento, que pretende definir o mosteiro como «escola do serviço do Senhor»,1

consagra ao Ofício Divino, a que chama o «Opus Dei» (obra de Deus), cerca de 17capítulos; e supõe que essa celebração comum do divino louvor é, apoiada na vida inte-rior de cada um, a expressão fundamental da vida de oração da comunidade: «Nada seanteponha à Oração das Horas (ao «Opus Dei»).2 Sem pretender considerar-nos a todoscomo monges, é à assembleia da comunidade em oração que a Igreja nos convida, aooferecer-nos, agora refundida segundo moldes ao mesmo tempo tradicionais e re-novados, a Liturgia das Horas.

1 S. BENTO, Regra, Prólogo.2 Ib., cap. 43.

Page 16: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

16 PADRE JOSÉ FERREIRA

2. ORAÇÃO PARA TODO O POVO DE DEUS

Vamos pôr de parte a ideia de que a Liturgia das Horas é a «oração dos padres» ou«dos religiosos e religiosas». Vamos criar a consciência de que orar é vocação de todosos cristãos, e de que o convite para a oração comunitária é dirigido a todos os membrosdo povo de Deus.

A história da Liturgia das Horas é longa e complexa; mas, se, nos últimos séculos,ela tem sido celebrada (e, grande parte das vezes, individualmente) só por clérigos ereligiosos, isso aconteceu – podemos dizê-lo, encurtando razões – porque os outros fiéisdesertaram da celebração, deixando-os a eles sozinhos com o livro nas mãos!...

É evidente que não vamos criar a ilusão de que, de agora em diante, se vai tocar osino uma segunda vez por dia (a primeira foi para a Missa) e esperar que as pessoasvoltem todas de novo à igreja. Mas pretende-se alguma coisa de muito concreto e definido.Pretende-se oferecer ao povo de Deus um tempo de oração comunitária, que seja umsinal da «Igreja orante». Claro que é preciso uma catequese; mas esta há-de fazer-seprincipalmente a partir da própria celebração.

Mas terá de ser algo de progressivo o ir descobrindo, à medida que se vai cele-brando, a importância dos tempos (Páscoa, Natal, Quaresma, etc.) e dos dias (Domingos,festas) e das horas (princípio e fim do dia), bem como o valor dos textos de oração(salmos, cânticos bíblicos, leituras, silêncio, preces), o sentido da oração de louvor, aserenidade dos momentos de contemplação, a gratuidade da acção de graças, a belezade cantar juntos, o ritmo de toda a celebração.

3. A NOVIDADE DA REDESCOBERTA

A celebração das Horas é, para a maior parte das pessoas, uma novidade. Masestão a acontecer outras novidades no campo da Liturgia, e que vão sendo uma desco-berta feliz, até quando o tema não se apresenta talvez tão «encantador» como o louvordas Horas do Ofício Divino. Olhemos para as celebrações penitenciais não seguidas dosacramento: são praticamente uma novidade. No entanto, o novo Ritual exige-as comocoisa normal. Elas devem entrar no programa habitual dos actos religiosos de uma co-munidade cristã. E têm entrado. Vão entrando. E as pessoas procuram-nas, não porobrigação, mas por necessidade. E gostam. Descobriram uma necessidade. De modosemelhante, a celebração de certos sacramentos, até agora celebrados fora da Missa, têmvindo a articular-se com a Eucaristia, contribuindo assim para lhes descobrir um sentidonovo. É que há mesmo coisas novas para descobrir! Será que a celebração dos sacra-mentos ou mesmo os temas penitenciais despertam mais interesse ou são mais bemaceites porque deles se espera um como que «resultado prático», e na celebração dasHoras o que está em causa é só a palavra do louvor gratuito, onde pouco se pede, pareceque nada se recebe, apenas se dizem coisas cuja «relação com a vida» não aparece logoà primeira vista?...

Por certo que ninguém pretende dizer que o Senhor perdia tempo quando inter-rompia a azáfama da pregação para exclamar: «Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da

Page 17: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

UMA IGREJA ORANTE 17

terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aospequeninos...» (Mt 11, 25). Nem haverá quem pense que é supérfluo gastar tempo entre-tendo-se com os amigos, dizendo apenas amizade!

É preciso redescobrir o sentido da gratuidade!..., e considerar ganho aquilo queparece não ser ganhar!

4. TEMPOS E LUGARES DE ORAÇÃO

Os tempos de oração são as Horas. Noutro lugar se diz quais. O lugar é «ondedois ou três se reunirem em meu nome», como diz o Senhor (cf. Mt 18, 20).

Mas, «o carácter eclesial da celebração aparece-nos com toda a sua clareza...,quando realizada com a presença do bispo, rodeado dos seus presbíteros e restantesministros, por uma Igreja particular, ‘na qual está presente e operante a Igreja de Cristo,una, santa, católica e apostólica’» (IGLH 20).

Mas também «as outras assembleias de fiéis, entre as quais há que destacar asparóquias como células da diocese, localmente constituídas sob a presidência de umpastor como substituto do bispo, e que ‘de algum modo representam a Igreja universalestabelecida por toda a terra’, celebrem as Horas principais, quanto possível, na igreja eem forma comunitária» (ib. 21).

«Aos religiosos de ambos os sexos não obrigados à celebração comunitária e aosmembros de qualquer Instituto de perfeição, recomenda-se encarecidamente que se reú-nam em comum, ou entre si ou juntamente com o povo, para celebrar a Liturgia dasHoras ou alguma parte da mesma» (ib. 26).

«Os grupos de leigos, onde quer que se encontrem reunidos, seja qual for omotivo destas reuniões..., são igualmente convidados a desempenhar esta função daIgreja, celebrando alguma parte da Liturgia das Horas...

Convém, finalmente, que a família, qual santuário doméstico da Igreja, não secontente com a oração feita em comum; mas, dentro das suas possibilidades, procureinserir-se mais intimamente na Igreja com a recitação de alguma parte da Liturgia dasHoras» (ib. 27).

5. DA OBRIGAÇÃO À DEVOÇÃO

A Oração das Horas tem estado um pouco em descrédito, digamos, tanto peranteos fiéis, como até perante os clérigos. Os fiéis dos últimos séculos, porque quase a nãoconheceram; os clérigos, porque a têm considerado sobretudo como «obrigação».

Além disso, o Ofício Divino tinha praticamente deixado de ser a «Oração dasHoras», visto que o «Breviário» era considerado um todo ligado ao dia, e não umconjunto de tempos de oração distribuídos criteriosamente pelas diversas horas. O«Opus Dei» (o Ofício Divino) tinha-se transformado simplesmente, prosaicamente, no«onus diei» (a carga do dia!). Só uma pequena história, oficial! Os antigos observavamtal jejum na Quaresma, que só comiam depois da hora de Vésperas, ao entardecer. Pois,

Page 18: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

18 PADRE JOSÉ FERREIRA

os Breviários que vieram até nós chegaram a formular aquele princípio ascético da formaseguinte: Na Quaresma, «as Vésperas dizem-se antes da refeição», o que significou, naprática, que as Vésperas, Ofício do entardecer, se diziam oficialmente de manhã, antesdo almoço! Era a prática corrente! Nem ascese, nem Liturgia.

O que de novo se pretende é, acima de tudo, oferecer à comunidade cristã e acada um dos seus membros a possibilidade de tomar parte numa oração que incarne, demaneira mais total, o eco que o mistério cristão deve acordar no coração de todo o crenteem Jesus Cristo.

Daí que a Liturgia das Horas se ligue muito de perto à palavra de Deus, acom-panhe pari passu todo o desenrolar do ano litúrgico, revivendo em cada um dos seustempos, dias e horas, o mistério pascal de Jesus Cristo, e se ofereça à comunidade cristãem geral e a cada um dos seus membros – e a alguns de maneira especial, dada a suafunção no meio dessa comunidade, como são os sacerdotes e certos religiosos – como aoração de Cristo, que, pelo Espírito, ora ao Pai, na Igreja.

Daqui ainda aquele carácter objectivo, típico da oração litúrgica, que lança o cristãona contemplação da obra de Deus, mais do que o centra em si mesmo, num perigoso eguloso culto do homem.

Mas tudo isto sem deixar de ser profundamente humana, porque a Oração dasHoras é oração do homem que vive no tempo, e porque sobretudo celebra aquela«obra divina», coração da oração cristã, que se revela num homem, «o homem JesusCristo» (I Tim 2, 5).

Page 19: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

CELEBRAÇÃO LITÚRGICA E PARTICIPAÇÃO

A liturgia é toda ela celebração. A liturgia são, em concreto, as celebraçõeslitúrgicas. Da ideia que se fizer da celebração litúrgica nascerá, como que naturalmente,o conceito e a prática da participação de toda a assembleia e de cada um dos seusmembros. Celebrar a liturgia e tomar parte nela não são, evidentemente, nem doistempos diferentes, nem sequer a justaposição de duas actuações diversas; a liturgia é aprópria acção litúrgica, que é acção de toda a assembleia, porque continua a ser verdadeque «as acções litúrgicas não são acções privadas, mas celebrações da Igreja, que é o‘sacramento da unidade’, isto é, o povo santo, unido e organizado sob a direcção dosbispos. Por isso, estas celebrações pertencem a todo o Corpo da Igreja» (SC 26).

Toda a celebração litúrgica supõe, em princípio, certos elementos estruturais:1) aquilo que é celebrado, o objecto da celebração, o mistério, isto é, a realidade

divina, e que é, em última análise, o mistério pascal de Cristo, evocado, proclamado etornado presente de modo sacramental, ou seja, em sinais, na acção litúrgica, para que,por ela e nela, a Igreja se una a Cristo na sua passagem para o Pai, em constanterenovação de aliança;

2) a assembleia celebrante, integrada por todos e cada um dos seus membros,onde «cada qual, ministro ou fiel, deve fazer tudo e só aquilo que lhe compete» (SC 28),porque, se é certo, como fica dito, que as celebrações litúrgicas «pertencem a todo oCorpo da Igreja», também é certo que elas «atingem a cada um dos membros de mododiferente, continua o Concílio, conforme a diversidade das ordens, das funções e daparticipação actual» (SC 26);

3) a acção litúrgica com todos e cada um dos seus elementos – palavra e gesto,escuta e resposta, canto e silêncio, fé e expressão da mesma – tudo entendido e realizadona verdadeira significação de cada um destes elementos;

4) finalmente, um clima de festa, não imposto de fora para dentro, mas como quenascendo da consciência profunda que se há-de ter de que o que está em causa é celebrara salvação como dom de Deus em Cristo, que a todos congrega na unidade, consciênciaesta que naturalmente se há-de exprimir também, por fora, de maneira adequada.

Exigências da participação

Participar na liturgia é fazer, como ela deve ser feita, cada acção litúrgica.Participar é simplesmente celebrar, se a celebração é entendida com precisão,conscientemente assumida, oportunamente realizada.

A boa participação na liturgia requer, antes de mais, uma atitude espiritual verda-deira, para que o nosso culto seja «em espírito e verdade», tanto em relação a Deus,como em relação à Igreja, à assembleia, à comunidade de que a assembleia é sinal emanifestação.

Page 20: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

20 PADRE JOSÉ FERREIRA

Requer depois que se compreenda a estrutura da assembleia. A assembleia litúrgicanão é apenas um grupo, como a celebração não é simplesmente um convívio. A assem-bleia é imagem e sinal da própria Igreja, que é chamada «Corpo de Cristo». Assim, umaé a função da cabeça, outra a dos membros. Cristo é a Cabeça da Igreja. Na assembleia,ser sinal de Cristo enquanto Cabeça da Igreja é precisamente a função do presidente,daquele que para tal recebeu a Ordenação: bispo ou presbítero. Ele é o que preside e,como tal, a ele compete certo tipo de actuação, como formular a oração, sobretudo aoração eucarística, que só na sua boca tem pleno sentido.

Mas há outras funções ministeriais na celebração: ser leitor, salmista, portadordos dons, cantor, etc.. Desempenhar tais funções não é «encenar» a liturgia; é apenas«fazê-la» como acto de Igreja, do povo de Deus, que é uno e diversificado nos serviçosque presta e nos ministérios que desempenha.

A restante assembleia dos fiéis é o Corpo de Cristo nos seus membros; a sua par-ticipação manifesta-se activamente ao longo de toda a celebração. As suas intervençõesmais frequentes são as constantes aclamações, que surgem ao longo de toda a acção,para não falar da escuta da Palavra de Deus e da Comunhão na Eucaristia.

A boa participação na liturgia supõe igualmente a exacta compreensão da estruturada acção litúrgica, da função que desempenham os seus vários elementos e da importânciarelativa dos mesmos; supõe que se saiba encontrar a expressão própria para cada umdeles: uma coisa é o canto do celebrante, outra o dos fiéis, uma coisa é o cântico deentrada, outra, o do salmo responsorial ou o do «Santo». Desta compreensão resultará obom ritmo da celebração, que não será apenas a justaposição de elementos vários, mas odesenrolar de uma acção una, como una é a assembleia na multiplicidade e variedade dosseus membros.

A participação na liturgia terá de ter tudo isto em conta. Daí que a celebração, emconcreto, não pode ter um modelo absoluto a repetir pura e simplesmente. Mas tambémnão há-de ser lugar para fantasias caprichosas e arbitrárias, nem sobretudo sem sólidofundamento. Os livros litúrgicos continuam a ser guia e garante de autenticidade na par-ticipação que todos e cada um é chamado a ter na celebração: presidente, ministros, fiéis.Antes de tudo, eles dão a chave para a compreensão de cada acção litúrgica e, conse-quentemente, da participação por parte da assembleia celebrante. Esta participação, tantoda parte do presidente como da dos outros membros da assembleia, não está na meraexecução fria das indicações neles contidas, nem sequer na repetição material dos seustextos. Os livros litúrgicos pretendem orientar uma acção concreta para uma assembleiaconcreta; mas os livros litúrgicos não falam por si sós, têm de ser interrogados.

Esforços de participação

Observando como tem sido posta em prática, entre nós, a reforma litúrgica, podeconcluir-se que nem sempre se terá compreendido isto. É ver como na celebração daMissa, por exemplo, é frequente começar por se valorizar o periférico e nem sempre sechegar ao essencial. Se a atenção dada à palavra tem sido notável, já a celebração daEucaristia custa a descobrir; e, enquanto partes mais confiadas aos fiéis têm sido postasem relevo, os formulários do presidente ficam ainda muito na obscuridade. Mesmo nas

Page 21: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

CELEBRAÇÃO LITÚRGICA E PARTICIPAÇÃO 21

intervenções dos fiéis ficou-se muitas vezes no secundário e não se chegou ao principal:o salmo responsorial, por exemplo, nunca mereceu a atenção que tem sido dispensada aoutros cânticos, certamente menos importantes. E a oração eucarística, ponto culminanteda celebração da Eucaristia, poucas vezes mereceu a expressão mais densa do canto, queaté muitas vezes não se sabe que existe! E pode confundir-se até participação com movi-mentação, cânticos com concerto, festa com euforia, Eucaristia com convívio! Nãodizemos isto para verberar, mas para ajudar a compreender que a celebração litúrgica éuma forma específica e inconfundível de celebrar. E que é preciso descobri-la para nelase poder participar.

Page 22: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO

Quem se lembra ainda da Semana Santa antes da reforma que dela fez Pio XII? Equem não recorda a alegria com que foi recebida a Vigília Pascal restaurada (1951 edepois, de novo, 1952) e, mais tarde, toda a Semana Santa (1955)? Se essas sucessivasreformas ajudaram a redescobrir o essencial da liturgia da Páscoa, um aspecto continua-va ainda muito confuso: a determinação dos dias precisos em que se faz a celebração daPáscoa. Nessa reforma, o acento era posto sobre a Semana Santa. O respectivo livrolitúrgico então publicado chamava-se precisamente Ordo Hebdomadae Sanctaeinstauratus. Fala-se também aí, é certo, de um Tríduo sagrado; mas este é então aQuinta-feira Santa, a Sexta-feira Santa e o Sábado Santo; e o chamar-lhe tríduo pretendeapenas fazer referência a três dias que se regem por rubricas especiais. Quanto à VigíliaPascal, esta desenrola-se toda sob a epígrafe do Sábado Santo; nem uma única referênciaao Domingo da Ressurreição em todo o Ordo da Semana Santa!

Seria necessário esperar pela reforma geral da liturgia empreendida pelo concílioVaticano II para vermos levada até ao fundo e organizada com clareza a reforma dacelebração litúrgica do mistério pascal.

Segundo o novo Missal Romano, que retoma simplesmente toda a tradição cristã,a celebração anual da Páscoa ocupa três dias, designados por Tríduo Pascal. Esses diassão a Sexta-feira Santa, o Sábado Santo e o Domingo da Ressurreição. É este o tríduoda «morte, sepultura e ressurreição» do Senhor, como se exprime S. Agostinho.1

É o dia de Quinta-feira Santa que muitas vezes despista ao querer determinar-sequais os dias do Tríduo pascal. Na realidade, o dia de Quinta-feira Santa é o último dia,o 40.º, da Quaresma, começando a contar esta a partir do I Domingo.2 O entardecer,porém, da Quinta-feira, considerada como «a véspera da sua Paixão» 3 ou «a noite emque Ele ia ser entregue»,4 em que, o Senhor, na última Ceia, instituiu a Eucaristia, trazmuito naturalmente a recordação desta instituição do mistério eucarístico, que asnarrações bíblicas apresentam intimamente articulada com a Paixão. A Eucaristia é, narealidade, a celebração sacramental da própria Paixão; como tal o Senhor a instituiu.

1 Ep. 55, 14.2 Foi sempre a partir do I Domingo que se contaram os 40 dias, de tanta tradição na Bíblia. Os quatro dias

que antecedem o primeiro Domingo, da Quarta-feira de Cinzas ao Sábado seguinte, teriam sido acrescen-tados para completar os 40 dias de jejum, dado que ao Domingo nunca se jejuou, numa época em que oescrúpulo, quanto ao número de dias, desta forma de ascese, suplantou a perspectiva bíblica dos 40 diassimbólicos.

3 Cf. Missal Romano, Oração eucarística I.4 Cf. ib., Oração eucarística III.

Page 23: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO 23

Pareceu, por isso, oportuníssimo que a celebração da Páscoa se inaugurasse, como Jesusfez, com a evocação da última Ceia. Aliás, na tradição bíblica, que a liturgia cristãcontinuou, o entardecer articula-se facilmente com o dia seguinte e as celebrações ves-pertinas inauguram frequentemente a celebração do dia litúrgico que então começa.5 Éassim, numa perspectiva profundamente teológica, que «o Tríduo pascal se inauguracom a Missa vespertina da Ceia do Senhor»,6 ao entardecer de Quinta-feira Santa.Não se trata, portanto, nem de uma festa anterior ao Tríduo pascal, nem de uma espéciede quarto dia anteposto ao mesmo; é pura e simplesmente a abertura soleníssima dacelebração pascal, em que, depois do longo jejum quaresmal (!), se põe a mesa dobanquete. Como os Anjos fizeram a Jesus.7

Deste modo, desde o início da sua celebração, se afirma o sentido da Páscoa: anova aliança no Sangue de Jesus.

O Tríduo pascal é o único tempo do ano litúrgico em que se pretende seguir deperto, mesmo na liturgia, a cronologia dos factos celebrados. Assim, depois da memóriada última Ceia, os dois primeiros dias do Tríduo – a Sexta-feira e o Sábado – sãorespectivamente o dia da Morte do Senhor e do repouso na sepultura; o terceiro dia,– o Domingo –, é o dia da Ressurreição, a surgir da Vigília, o qual nela tem a suacelebração maior.

O Tríduo pascal vai até às II Vésperas do Domingo. Mas a festa continua duranteos 50 dias de alegria, ao longo do tempo que, por isso mesmo, recebe o nome de Tempopascal.

O MISTÉRIO

É fundamental recuperar o sentido do mistério celebrado neste tríduo, aquilo queé precisamente o objecto da celebração. Esse mistério é, numa só palavra, a Páscoa, aPáscoa do Senhor, a Páscoa da Igreja, a nossa Páscoa, a Páscoa eterna, o mistério pascal.O novo Calendário Romano resume assim o mistério da Páscoa: «A obra da redençãodos homens e da perfeita glorificação de Deus, realizou-a Cristo principalmente pelo seumistério pascal, pelo qual, morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, restauroua vida».8 A morte foi o limite a que a obediência de Jesus à vontade do Pai O levou;a ressurreição é o ponto de chegada, o termo dessa passagem, através da morte, nacomunhão com o Pai.

Morte e ressurreição não são, portanto, duas realidades justapostas, nem doisvalores autónomos, mas duas fases do mesmo e único mistério, intimamente ligadasentre si, de tal modo que a ressurreição nasce da morte, pelo poder de Deus, como a vidabrota do grão de trigo que morreu debaixo da terra.9 É nesta mesma lógica que a morte

5 Cf. a Missa dominical celebrada na tarde de Sábado, as I Vésperas do Domingo celebradas também aoentardecer de Sábado e ainda as I Vésperas das Solenidades.

6 Calendarium Romanum, Normae universales 19.7 Cf. Mt. 4, 11.8 Calendarium Romanum 18.9 Cf. Jo 12, 24.

Page 24: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

24 PADRE JOSÉ FERREIRA

do Senhor e a sua ressurreição não podem ser objecto de celebrações distintas, masambas se articulam na celebração única da Páscoa.

Morte e ressurreição são inseparáveis, caminham a primeira para a segunda, nacontinuidade de toda a caminhada de Jesus para o Pai. Por isso, a melhor definição domistério pascal é talvez o que S. João escreveu no princípio da sua narração da últimaCeia: «Sabendo Jesus que tinha chegado a hora de passar deste mundo para o Pai...».10

A Páscoa é esta passagem de Jesus deste mundo para o Pai. Seria talvez, por isso, maispreciso, ao procurar definir-se a Páscoa ou o mistério pascal, em vez de falar de «mortee ressurreição», dizer antes: «pela morte à ressurreição». Na verdade, a salvação nãoestá em que Jesus tenha sofrido a morte, mas em que, pela morte, Ele tenha chegado àressurreição.

Foi também levada por profunda intuição que a tradição cristã interpretou semprea palavra Páscoa como significando passagem e, mais ainda, quando entendeu que essapassagem era, em última análise, a passagem deste mundo para o Pai, na linha de S. João.

É preciso ainda ter presente que a marcha pascal de Jesus Cristo, Ele a viveucomo o Chefe de toda a humanidade, Ele que, assim como é «o primogénito de toda acriatura», é também «o primogénito de entre os mortos ».11 «Ele é a Cabeça do Corpo,isto é, da Igreja».12 Nele, feito novo Adão,13 todo o homem é chamado a passar destemundo para o Pai, a marchar confiante, desde as profundidades em que ele faz aexperiência de todas as limitações, mesmo as do pecado e da morte – experiência últimae universal –, até à participação da própria vida de Deus, na glória da ressurreição.

«Quem me libertará deste corpo que me leva à morte?» – pergunta S. Paulo.14

E responde noutro lugar: «O último inimigo a ser destruído será a morte».15 E oApocalipse acrescentará: «Não haverá mais morte».16 É o reino da Vida! «Eis que faço ouniverso novo!»17 – diz o Senhor.

Tudo isto é a «nova criação»,18 que, mais maravilhosamente do que a primeira,surge com o Ressuscitado, que, ao aparecer, num dia de Domingo, a S. João, na ilha dePatmos, faz de Si esta apresentação única: «Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive!Estive morto, mas eis que vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte edo Hades (a morada dos mortos)».19

O Símbolo da fé cristã, fazendo eco a esta palavra, professa: «Espero a ressur-reição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir».

Tal é, em síntese, o mistério que a Igreja de Jesus Cristo celebra nas solenidadespascais!

10 Jo 13, 1.11 Col 1, 15 e 18.12 Ib. 1, 18.13 Cf. I Cor. 15, 45.14 Rom. 7, 24.15 I Cor. 15, 26.16 Ap. 21, 4.17 Ib. 21, 5.18 II Cor. 5, 17.19 Ap. 1, 18.

Page 25: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO 25

A CELEBRAÇÃO

A Páscoa celebra-se nos três dias do Tríduo pascal, que devem ser consideradoscomo fazendo uma unidade. O «centro» de todo o Tríduo é a Vigília, na noite da Páscoa,de Sábado para Domingo. Na origem, a única liturgia da Páscoa foi a desta vigília. Erigorosamente ainda hoje assim é. A Sexta-feira Santa e o Sábado Santo ainda hoje sãodias alitúrgicos, isto é, sem Eucaristia. A Eucaristia de todo o Tríduo pascal é a daVigília. Os dois primeiros dias encaminham-se para esta Vigília como para o seu vértice,e, dentro da Vigília, tudo culmina na Eucaristia, como sinal último que é da comunhãocom Deus e em Deus, na qual atinge a sua plenitude a passagem deste mundo para o Pai.

Os dias de Sexta-feira Santa e de Sábado Santo celebram-se no jejum e na absten-ção dos sacramentos: «Seja coisa sagrada o jejum pascal, que deve ser observado, emtoda a parte, na Sexta-feira da Paixão e Morte do Senhor e, se for oportuno, prolongadotambém pelo Sábado Santo, para que se chegue com o coração elevado e liberto às ale-grias da Ressurreição do Senhor».20 Este jejum não é propriamente o jejum ascético,digamos assim, como na Quaresma, mas atitude de quem significa a comunhão com oSenhor que morre e é sepultado, ao mesmo tempo que a expectativa da festa, que aVigília irá celebrar. É um jejum de sentido escatológico, significativo da tensão pascalcontida na morte do Senhor e cujo fruto se revela na Ressurreição.

Mas o jejum mais significativo é o da Eucaristia. Os «dias da amargura», comochama S. Ambrósio à Sexta-feira Santa,21 vão melhor com esta ausência da festa que todaa Eucaristia supõe; ou antes, como já foi dito, essa Eucaristia virá, mas no terceiro dia,na Vigília, como ponto de chegada da passagem pascal celebrada em todo o Tríduo.

A Sexta-feira Santa tem, no entanto, uma liturgia da palavra, segundo o esquematradicional em celebrações deste tipo. O tema é naturalmente a Paixão do Senhor, pro-clamada, de maneira particular, na leitura de S. João.

À liturgia da palavra seguem-se dois ritos: a adoração da Cruz e a comunhão. Oprimeiro é um rito de inspiração popular, originário de Jerusalém, mas que, na suaexpressão um tanto dramatizada, sublinha desde já o sentido pascal da Cruz: a Morteconduz à Vida. É de toda a conveniência que o rito possa dar lugar a certa manifestaçãopor parte da assembleia, porque é essa mesma a sua razão de ser. Quanto à comunhão, elatem oscilado entre o ter lugar ou não neste dia. Pode parecer, na lógica do que acima foidito sobre a ausência de Eucaristia nestes dias, que este rito poderia não existir. Emqualquer caso, a distribuição da comunhão não é suficiente para destruir o carácter ali-túrgico do dia. A comunhão pretende estabelecer uma união maior com o Sacrifício doCalvário, tema maior neste dia, e é uma como que segunda participação na Eucaristiacelebrada na véspera, ao abrir a celebração do Tríduo.

O Sábado Santo não comporta nenhuma celebração. Mas não é um dia vazio; pelocontrário. É o dia do grande repouso. É um verdadeiro sábado (sábado significa preci-samente repouso). Como Deus repousou no sétimo dia depois de terminada a obra

20 Concílio Vaticano II, Constituição sobre a sagrada Liturgia (SC) 110.21 Cf. S. AMBRÓSIO, Ep. 23.

Page 26: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

26 PADRE JOSÉ FERREIRA

da primeira criação, assim agora Jesus descansa na paz do túmulo, uma vez terminada aobra da nova criação. Como as mulheres, que ficaram sentadas em frente do sepulcro,assim a Igreja se queda hoje no silêncio da meditação, contemplando: «O nosso Pastor,fonte das águas vivas, apartou-Se de nós e o sol obscureceu-se na sua morte. Hoje foipreso aquele que mantinha prisioneiro o primeiro homem. Destruiu as prisões do infernoe esmagou o poder do demónio. Hoje o nosso Salvador quebrou as portas e as cadeias damorte».22

O dia de Sábado Santo é o dia do grande silêncio, o dia da grande paz. Mas é, aomesmo tempo, o dia da grande expectativa: o grão de trigo que caiu à terra «dará muitofruto»:23 «Ó morte, eu serei a tua morte! Serei o teu aguilhão, ó inferno!».24 Esta paz eesta expectativa deverão ser saboreadas e alimentadas na oração. Não havendo celebraçãoda Eucaristia, – e percebe-se que é normal que não haja –, deveria convocar-se a comuni-dade, de manhã para o Ofício de Leitura e a Hora de Laudes, e ao entardecer para a Horade Vésperas. Estaremos assim em continuidade com os antigos Ofícios de Trevas, quenão serão já de «trevas». O mesmo se diga para a manhã da Sexta-Feira Santa em que éoportuno celebrar também a Liturgia das Horas.

A GRANDE VIGÍLIA

A grande celebração pascal é a Vigília, «mãe de todas as santas vigílias».25 Esta éa noite «em que todo o mundo está em vigília». S. Agostinho interroga-se: «Porque é queos cristãos estão hoje em vigília, numa solenidade anual? – É que hoje é a nossa maiorvigília e não se pensa noutra solenidade do ano, quando perguntamos com impaciência:«Quando será a vigília?» – Dentro de tantos dias será a vigília». Como se, em comparaçãocom esta, as outras nem se devam considerar vigílias».26 Sempre, mas sobretudo nestanoite, a vigília tem para a Igreja uma grande significação: é o sinal da sua expectativa doSenhor que há-de vir. E virá, como Senhor glorioso, tornar todo o universo participanteda sua glória de Ressuscitado. A Vigília pascal é o sinal da passagem definitiva destemundo para o Pai; é a passagem pela água do Baptismo e a entrada na Terra prometida,onde, à mesa da ceia do Cordeiro, a Igreja saboreia o leite e o mel da Eucaristia, nofestim nupcial da nova e eterna Aliança.

A celebração da Vigília é também o modelo de todas as celebrações cristãs:«depois de um breve Lucernário», a palavra e o rito. Este último é, nesta noite, o rito dainiciação completo: o Baptismo (e Confirmação) e a Eucaristia.

22 Responsório do Ofício de Leitura do Sábado Santo.23 Cf. Jo. 12, 24.24 Antífona do Ofício de Vésperas do Sábado Santo.25 S. AGOSTINHO, Sermão 219 (PL 38, 1088).26 Idem, Sermão sobre a Noite santa (Serm. Guelf, 5).

Page 27: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO 27

O Lucernário é um Ofício que acompanha o acender da lâmpada (lucerna) aoentardecer, no qual se celebra o triunfo da luz – Cristo ressuscitado – sobre as trevas quea noite vai trazer. O fundamental do Lucernário é o acender do Círio, a procissão deentrada, guiada pelo Círio aceso, e o precónio ou anúncio da Páscoa. O precónio estáconcebido à maneira de uma oração eucarística, que, partindo da recordação dasmaravilhas de Deus, desabrocha em louvor e acção de graças, ao mesmo tempo que vaifazendo a apresentação da festa: «Esta é a noite...; ó noite feliz...».

O corpo da Vigília começa depois, com a celebração da palavra. Nela «a santaIgreja medita as maravilhas que Deus, o Senhor, desde o princípio fez em favor do seupovo e, nesta meditação, ela se entrega com confiança à sua palavra e à sua promessa».27

Das origens (o Génesis, a criação, 1ª leitura) ao fim dos tempos (a Ressurreição, últimaleitura), a Vigília faz a síntese de toda a história da salvação, dando-lhe, como coroa,Cristo Ressuscitado. À luz do Círio pascal, a Bíblia, mais do que um livro do passado, éo livro do futuro. A celebração desta noite vai ensinar-nos a escutar a palavra de Deuscomo aquela que dá o sentido último à história dos homens.

A Vigília pode ser mais ou menos longa, conforme «as circunstâncias pastorais» oaconselharem.28 Há hoje circunstâncias várias, em que os fiéis são convocados, e estãopresentes, para veladas de oração, até durante toda a noite. Será bom redescobrir osentido único da Vigília pascal, antes de tomar resoluções sobre a abreviação ou não damesma, pois que «circunstâncias pastorais» não é necessariamente o mesmo que desistirde nivelar por cima!

Depois da palavra, o rito. Em primeiro lugar, o Baptismo. Em princípio, a liturgiabaptismal desta noite orienta-se para o baptismo dos catecúmenos. Dado, porém, que acelebração do Baptismo pode acontecer noutras épocas do ano, pode também acontecerque a liturgia baptismal desta noite se oriente tão só para a renovação das promessas doBaptismo dos fiéis. Neste caso, apenas se prepara nesta altura a água baptismal quehá-de vir a ser usada na celebração do Baptismo ao longo do Tempo pascal, pretendendoassim marcar, até ritualmente, a unidade de todo esse tempo, como prolongamentofestivo da Páscoa.

Se houver adultos para receber o Baptismo, estes recebem também a Confirmaçãoimediatamente depois do Baptismo, mesmo que não esteja presente um bispo.29 «Por estaconexão pretende significar-se a unidade do mistério pascal, a relação necessária entre amissão do Filho e a efusão do Espírito Santo e a união entre os sacramentos pelos quaisuma e outra das pessoas divinas vem aos baptizados juntamente com o Pai».30

27 Missal Romano, Domingo da Ressurreição, Vigília pascal 2.28 Ib. 21.29 Cf. Ritual da Confirmação, Preliminares 7 b).30 Ritual do Baptismo dos Adultos, Preliminares 34.

Page 28: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

28 PADRE JOSÉ FERREIRA

Por último, celebra-se a Eucaristia. Não se trata de uma Missa acrescentada àVigília, mas do seu momento culminante. A Eucaristia é o termo da iniciação cristã. Doponto de vista ritual, alguém só acabou de entrar completamente na comunidade cristã,quando, depois de ter renascido da água e do Espírito Santo e de ter sido marcado com osinal deste mesmo Espírito, se sentou finalmente à mesa do Senhor, a Eucaristia.

Além disso, a Eucaristia é o sacramento pascal por excelência, porque ela é oanúncio da morte e da ressurreição do Senhor, com que os cristãos celebram o mistériopascal «até que Ele venha»,31 ao mesmo tempo que é, e por isso mesmo, o sinal sacra-mental do banquete celeste, o «banquete de núpcias do Cordeiro»,32 termo da passagempascal, celebrada em toda a Vigília. O Corpo e o Sangue do novo Cordeiro pascal éaquele leite e mel, que saboreiam os que entram na Terra prometida, na Igreja de Cristo,enquanto se não sentam, de novo, à mesa com o Senhor, no reino do Pai.33

31 I Cor. 11, 26.32 Ap. 19, 9.33 Cf. Mt. 26, 29.

Page 29: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESPIRITUALIDADE PASCAL

A palavra «espiritualidade», falando de determinado tempo litúrgico, podesugerir, à primeira impressão, qualquer coisa de vago e indeterminado; no entanto, elareveste sentido bem definido, se a entendermos como designativo daquela irradiação domistério cristão celebrado na liturgia desse tempo, capaz de fomentar e alimentar a vidacristã em consonância com aquele mistério. Trata-se, antes de mais, de fomentar e ali-mentar as atitudes interiores de fé, de esperança e de amor, como expressão da vida doEspírito de Cristo; mas logo, e consequentemente, de determinar os comportamentoscristãos em todas as expressões da vida, pois é verdade que «os que são conduzidos peloEspírito de Deus é que são filhos de Deus» (Rom 8, 14).

«Espiritualidade» relaciona-se com o Espírito Santo. A «vida espiritual» é, antesde mais, a vida do Espírito de Deus em nós manifestada, desse «Espírito que nos foidado» (Rom 5, 5), pois «o próprio Espírito (de Deus) se une ao nosso Espírito paraatestar que somos filhos de Deus» (Rom 8, 16).

Mas é principalmente na liturgia que o Espírito Santo actua; tudo aí é acção doEspírito Santo. É esta uma das afirmações mais constantes da própria liturgia, sobretudoentre os cristãos do Oriente. A liturgia ocidental, mais contida e menos mística nas suasexpressões, insiste, de preferência, noutros aspectos, como, e naturalmente, na mediaçãode Jesus Cristo. Todavia, nunca a liturgia romana deixou de sublinhar o que já a epístolaaos Hebreus acentua, ao afirmar de Cristo que, «movido pelo Espírito eterno, Ele Seofereceu a Deus como vítima sem mancha» (Heb. 9, 14). E, em nossos dias, estaconsciência tende a afirmar-se cada vez mais, como o podem demonstrar dois momentosimportantíssimos da reforma litúrgica em curso: uma, foi a introdução de uma epiclese(invocação do Espírito Santo) dentro das novas orações eucarísticas da Missa, de sorte aficar bem claro que o mistério eucarístico é celebrado pela virtude e acção do EspíritoSanto; outra, foi a substituição da anterior fórmula da Confirmação, sacramento do domdo Espírito, pela nova, aliás bem antiga entre os cristãos orientais, donde ela proveio.Esta nova fórmula sublinha fortemente a acção do Espírito Santo, mais do que a anterior,que insistia de preferência na acção do ministro: «N., recebe, por este sinal, o EspíritoSanto, o dom de Deus»! (A fórmula anterior dizia: «Eu te assinalo com o sinal da cruz ete confirmo com o Crisma da salvação»).

Em qualquer caso, a liturgia é o lugar privilegiado, e sempre o mais seguro, parase poder captar a espiritualidade cristã, tanto no mistério que nela se celebra, como aténas expressões com que esse mistério é celebrado.

Page 30: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

30 PADRE JOSÉ FERREIRA

O «feliz Pentecostes»

A espiritualidade dos cristãos é sempre uma espiritualidade pascal. Não podedeixar de o ser, pois que tudo, no cristianismo, se condensa no mistério pascal. E, seassim é, também parece normal que seja o Tempo da Páscoa aquele que mais há-de pôrem evidência a presença e a acção do Espírito que acompanha toda a existência cristã.

O Tríduo Pascal termina com as II Vésperas do Domingo da Ressurreição;mas não a festa da Páscoa. Uma grande oitava de Domingos, do 1.º Domingo, o daRessurreição, ao 8.º, o do Pentecostes, prolonga, como que a não querer deixá-ladesaparecer, a solenidade grande da Páscoa. «Os cinquenta dias que vão do Domingo daRessurreição ao Domingo do Pentecostes celebram-se na alegria e na exultação comoum só dia de festa, como um «grande Domingo». Esta última expressão é, nada menos,do que tirada de S. Atanásio de Alexandria († 373).

Foi a esta longa oitava pascal de 8 Domingos, ou seja, de 50 dias (7 Domingoscom os dias feriais que se lhes seguem, mais a repetição do primeiro dia, o 8.º Domingo),que, em certa altura, se aplicou o nome de Pentecostes, palavra de origem grega, que, àmaneira latina, é, como quem diz, a Cinquentena.1

Se a Páscoa foi «a passagem deste mundo para o Pai», o Tempo Pascal é acelebração e como que a experiência da vida pascal inaugurada nessa «passagem» com oSenhor. Ora, a festa da Páscoa não foi celebrada apenas à maneira de memória ou come-moração de um acontecimento, como o é, um tanto mais, o Natal. A Páscoa é celebradanos sacramentos (in mysterio). Nestes, o acontecimento histórico não é apenas recor-dado, evocado, imitado, mas celebrado, tornado presente em sinal e participado, de sorteque aquele que foi iniciado fez também, com Cristo e em Cristo, a «passagem» destemundo para o Pai. Daí que a Vigília na Noite Santa, depois da leitura da Palavra de Deus,que proclama, de várias maneiras, o mistério pascal, celebra (seria normal que cele-brasse!) os sacramentos da iniciação cristã: o Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia.Por estes sacramentos, os homens são iniciados na vida pascal: «mortos com Cristo, ecom Ele sepultados e ressuscitados, recebem o Espírito de adopção filial e celebram,com todo o povo de Deus, o memorial da morte e ressurreição do Senhor».2

Com todo o povo de Deus

Um dos temas fundamentais da espiritualidade pascal é a pertença ao povo deDeus. Morrer e ressuscitar com Cristo nos sacramentos da iniciação, ou na renovação dagraça dos mesmos, é entrar, ou renovar a consciência da entrada, na Igreja de Deus. É-semembro da Igreja pelo facto de se ser baptizado, de se ter passado com Cristo destemundo para o Pai nos sacramentos da iniciação cristã. Também a consciência destasituação eclesial faz parte da renovação das «promessas» baptismais e, por consequên-cia, da espiritualidade pascal. A Igreja «nasceu do lado de Cristo adormecido na Cruz»

1 Cf. supra, pp. 11-122 Ritual da Iniciação Cristã, Preliminares Gerais, 1.

Page 31: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESPIRITUALIDADE PASCAL 31

para «se manifestar ao mundo no dia do Pentecostes».3 O Tempo Pascal é tempo deaprofundar esta pertença à Igreja e as consequências que daí derivam, como povo que éenviado a testemunhar no meio dos homens a morte e a ressurreição do Senhor, impelidopelo sopro do Espírito que o mesmo Senhor lhe envia. Para os neófitos o Tempo Pascalé o tempo de ensaiar os primeiros contactos profundos com o povo dos baptizados. É,pois, com os membros já adultos desse mesmo povo que hão-de aprender a tornar-se,também eles, adultos na Igreja.

A espiritualidade do cristão brota assim, antes de mais, da sua vida pascal. Espiri-tualidade pascal será aquela forma de sentir, de viver e de celebrar a situação cristã, quedimana, primordialmente, dos sacramentos da iniciação, pelos quais o cristão se tornouparticipante do mistério pascal e, por isso mesmo, membro do povo de Deus. O cristãofoi baptizado, confirmado, participou na Eucaristia, e assim passou, com Cristo, destemundo para o Pai: com Cristo morreu e foi sepultado, com Ele ressuscitou (cf. Rom 6, 3),como Ele e por Ele recebeu a unção do Espírito Santo, (cf. 1 Jo 2, 20 e 27), e, na Ceia doSenhor, come o seu corpo e bebe o seu sangue, à mesa comum com os seus irmãos.Nestes, como nos demais sacramentos, é o Espírito de Deus quem dá significação à acçãolitúrgica e a torna eficaz, de sorte que os sacramentos são realmente acções de JesusCristo. Os sacramentos são acções espirituais por excelência. São sinais da vida noEspírito Santo e, por isso mesmo, eles são fonte de vida espiritual, de vida segundo oEspírito, para o cristão. E esta vida é uma vida pascal.

Os Padres da Igreja, isto é, os bispos das comunidades cristãs antigas, como S.Ambrósio em Milão († 397), S. João Crisóstomo em Antioquia († 404), S. Agostinho emHipona († 430) ou os bispos de Jerusalém do século IV, passavam a semana a seguir àVigília Pascal a explicar aos que tinham sido baptizados nessa Vigília os mistérios, istoé, os sacramentos da iniciação cristã. Eram as célebres catequeses mistagógicas oucatequeses sobre os mistérios, os sacramentos celebrados aquando da iniciação na NoiteSanta. Aí lhes explicavam o que eles agora eram, e, consequentemente, como deviamviver a partir dos sacramentos que os tinham feito cristãos; porque a vida vive-seconforme ao que se é.

Na Vigília Pascal, todos os cristãos são hoje convidados a renovar o que passou aser costume chamar-se «as promessas do Baptismo». Na realidade, não é de «promessas»que se trata, mas de renovar a graça da iniciação cristã (o nome de Baptismo designa,muitas vezes, todo o conjunto dos sacramentos do Baptismo e da Confirmação), actuali-zando a consciência de que se pertence ao povo dos baptizados e confirmados. Mas nãose trata apenas de fazer referência a um acto passado; não se foi apenas baptizado econfirmado; é-se baptizado e é-se confirmado, vive-se hoje como filho de Deus da vidado seu Espírito na Igreja. Por isso, todos somos, hoje também e sempre, como na VigíliaPascal, os felizes convidados para a Ceia das núpcias de Cordeiro (Ap. 19, 9).

Realmente, a Páscoa celebra-se nos sacramentos. É mais do que uma comemoraçãoou memória; ela é um mistério, uma realidade divina que vem ao meio de nós nos sinaisque são os sacramentos.

3 Concílio Vaticano II, Constituição sobre a sagrada Liturgia, nn. 5-6.

Page 32: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

32 PADRE JOSÉ FERREIRA

Donde se conclui que a celebração da Páscoa não é uma festa para se ver, mas ummistério para se celebrar. Não basta ir à igreja assistir às cerimónias, nem segui-las pelatelevisão ou pela rádio. Sem dúvida que isso é bom, quando não se pôde estar lá mesmona celebração. Mas, em qualquer caso, é preciso renovar a graça pascal, que é comoquem diz, a graça do Baptismo e da Confirmação; e não apenas naquela noite, mas emtodo o Tempo Pascal, sobretudo para quem não pôde estar presente na grande Vigília. Senão pôde, que não se sinta frustrado por isso, nem dispensado de renovar em si a graçapascal. Ainda é Páscoa, (a Páscoa é aliás todos os dias!); renove hoje ainda, ou mesmo denovo, as «promessas» do Baptismo, invoque o Espírito de Deus que está em si comofonte que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4, 14 e 7, 37-39), e venha à mesa do Senhor,porque para ela todos os dias todos somos convidados (cf. rito da Comunhão na Missa).

O dom do Espírito Santo

Uma das tónicas mais impressionantes da liturgia pascal é que ela nos incute aconsciência profunda de que a salvação que a Páscoa nos traz é dom de Deus. Não é ohomem que cria esse dom ou o arrebata ou o conquista; ele é dom, que vem de Pai porJesus Cristo no Espírito Santo.

Na liturgia pascal, a Igreja sente-se invadida pelo fogo do Espírito. As apariçõesdo Ressuscitado, aparições que a princípio perturbaram, vão abrindo caminho à fé: MariaMadalena, as outras santas mulheres, o discípulo que Jesus amava, Pedro, os discípulosde Emaús, os Apóstolos reunidos no cenáculo, por fim até o meio-racionalista Tomé,depois a multidão nas ruas de Jerusalém no dia do Pentecostes, vinda do Ponto, da Galá-cia, da Panfília, e até dos confins do Oriente e do Ocidente, o oficial romano Cornélio, osantigos discípulos de João Baptista, e, mais do que todos, Paulo de Tarso, que virá a sero Apóstolo dos gentios, e, através de todos estes, os de perto e os de longe vão sentindoa força avassaladora do Espírito. Não é conquista dos homens, nem fruto da eloquênciaou da sabedoria humanas, mas da «loucura da Cruz», como S. Paulo se orgulhará deproclamar (cf. 1 Cor 1, 17 segs.), esta acção que mais simplesmente se chama acção doEspírito de Deus. Ele é o novo sopro de vida, procedente da boca de Deus, pairandosobre o caos último do mundo, o sepulcro de Jesus crucificado, para d’Ele surgir como onovo Adão, princípio de uma humanidade nova. «Se conhecesses o dom de Deus»!

É este «crescendo» que a liturgia do «feliz Pentecostes», no sentido antigo, isto é,todo o Tempo Pascal, vai desenvolvendo diante de nós (particularmente na leitura dosActos dos Apóstolos, no Apocalipse e no Evangelho de S. João), até culminar, no quin-quagésimo dia, na vinda carismática do Espírito, para manifestar que a Igreja de Deus,o povo da nova Aliança, está presente já no meio deste mundo.

Uma espiritualidade pascal será, por isso, uma espiritualidade que sabe re-conhecer o dom de Deus e responder-lhe em acção de graças, que, por sua vez, se há-detraduzir na vida vivida segundo o Espírito de Deus.

Page 33: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESPIRITUALIDADE PASCAL 33

A clausura da Páscoa

O Dia de Pentecostes não é outra festa diferente da da Páscoa; é o seu vértice e oseu termo. Os antigos chamaram-lhe a «Clausura da Páscoa».

A Páscoa não se reduz a nada deste mundo; ela é a revelação do «mundo quehá-de vir» (Hebr. 6, 5), desse mundo novo que já se revelou em Jesus Cristo ressuscitadoe se prolonga na Igreja dos baptizados, que é o seu Corpo, e em cada cristão, membro deCristo, «outro Cristo», aviventado, como Cristo, pelo Espírito Santo. A Páscoa nãoacaba; inaugura um mundo novo. O Pentecostes é o seu lançamento através dos tempose dos lugares. É a revelação última da Páscoa, do seu dinamismo, da sua força, do seupoder, da sua espiritualidade, da sua esperança e já da sua consumação.

O Pentecostes manifesta o próprio âmago do mistério pascal. Do primeiro aoquinquagésimo dia, a Páscoa vai-se revelando, até culminar na «embriaguês do Espírito»,predita pelo profeta Joel e que algumas das primeiras testemunhas, em Jerusalém, tãorudemente interpretaram, mas que Pedro esclareceu sem rodeios: a «embriaguês» nãoera de «vinho doce», mas do Espírito de Deus (Act 2, 12 segs.). A celebração anual daPáscoa, ao longo de todo o tempo pascal, e, de modo particular, no seu último dia, no Diade Pentecostes, é, para toda a Igreja e para cada cristão, novo insuflar de espiritualidadepascal, novo sopro do Espírito sobre a face do homem, morto e ressuscitado em Cristo.

A espiritualidade pascal há-de lançar o cristão no caminho que conduz ao Deusuno e trino, ao Princípio e Fim de todas as coisas; há-de fazer redescobrir o sentido davida em Cristo na Igreja, vida que não é círculo fechado, mas caminho sempre para maisalém, para o Pai.

A solenidade da Santíssima Trindade, no primeiro Domingo logo a seguir ao TempoPascal, significará, bem a propósito, esse termo de toda a vida pascal. E como é o fimque determina o comportamento da existência, o cristão, redescobrindo constantementeesse termo último da sua vida, poderá alimentá-la, ao longo de todo o tempo que andaneste mundo, de uma espiritualidade haurida na celebração e na meditação do mistériopascal.

Page 34: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

POSSÍVEIS ELEMENTOSPARA A CELEBRAÇÃO DAS FESTAS

A festa exprime-se necessariamente em tempos festivos e em actos festivos. Aofalar-se nos elementos da festa, apontam-se sempre a interrupção do ritmo habitual dasocupações da vida, quer dizer, a festa supõe o repouso, e a presença do rito, ou seja, aacção ou acções de ordem simbólica, por meio dos quais se celebra o tema que deuorigem à festa.

No caso das nossas festas religiosas – e é este o suposto – os dias de festas têmnormalmente uma parte dita religiosa e outra chamada profana em volta de um tema. Éuma distinção prática, que, na origem, não supunha certamente oposição, mas comple-mentaridade. (Basta pensar no calendário de grande parte das festas, ainda hoje designadaspelo nome do mistério ou do Santo a cuja festa andaram ligadas, mesmo quando hoje jánada resta da celebração religiosa!

O TEMA DA FESTA

A festa tem como tema um mistério ou uma pessoa do calendário cristão,universal ou local. As grandes festas cristãs são as solenidades da Igreja universal.Todos os cristãos, em toda a parte, as sentem e as celebram. Muitas destas festas não têmmanifestações festivas para além da celebração litúrgica. Muitas comunicam ao dia – eaté aos dias mais próximos – o seu clima festivo, mesmo que não venham a prolongar-seem manifestações profanas, do tipo de arraial, como o Natal e a Páscoa, para não falar jáde cada Domingo.

São estas, sem dúvida, as festas que, por si mesmas, em razão do mistério quecelebram, devem ser celebradas como dias verdadeiramente festivos por toda acomunidade cristã.

Mas as festas que neste momento temos mais em mente são as locais, organizadasa partir da festa do orago ou padroeiro de cada terra, segundo o calendário particular decada lugar ou até completamente desarticuladas de qualquer calendário mesmo particu-lar. Umas vezes trata-se de festas tradicionais, que se originam realmente no calendáriolitúrgico, universal ou particular, mas outras vezes – e isto tem-se verificado sobretudonos tempos mais recentes – a festa não tem tema especial, é uma festa da comunidadelocal, a que, quando muito, se atribui um tema religioso, geralmente o Santo de«devoção» no lugar. Neste caso, a motivação festiva não é a celebração de um mistérioou de uma figura do hagiológio cristão; pode então dizer-se que, no fundo, o que está emevidência não é a celebração litúrgica, mas o ambiente festivo. Quando muito, a festaconta também com um tempo de celebração religiosa, normalmente a Missa. Duassituações, que vão determinar dois tipos de celebração.

Page 35: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

POSSÍVEIS ELEMENTOS PARA A CELEBRAÇÃO DAS FESTAS 35

A FESTA RELIGIOSA

É impossível, a priori, fazer um esquema completo das diferentes hipóteses defestas que se apresentam por esse Portugal além. Cada um terá de analisar a sua situaçãoe tentar dar-lhe a solução que julgar mais adequada.

Parece, no entanto, que há um certo número de princípios que merecem ser tidossempre em conta.

Naquelas festas que têm ainda por ponto de partida e até por centro o temareligioso é certamente da máxima oportunidade dar atenção a esse tema.

A MISSA DA FESTA

A celebração central de festa religiosa é ainda a Missa; e o interesse que a partici-pação na Missa tem merecido, nos últimos anos, reflecte-se já também nas Missas dasfestas. E bem! Já certo estilo de «Missas de festa», ou seja, aquele estilo a que certasfestas levaram as suas Missas, sem participação inclusive pela comunhão, terá de sofrerprofunda revisão. Esta revisão não será apenas a acomodação a um certo número derubricas ou de leis novas, fruto da reforma litúrgica em curso, mas o ajustamento dacelebração litúrgica a uma compreensão da celebração, agora mais esclarecida por essamesma reforma litúrgica, ou antes, pelos princípios teológicos que lhe servem de base.

Assim, não terá já hoje sentido, pelo menos em princípio, a distinção outroraquase de preceito, entre a «Missa de comunhão (geral)» e a «Missa da festa», como se acomunhão não fosse o primeiro elemento da participação festiva na Missa. Aliás, essadistinção de outrora era possivelmente devida às exigências do jejum eucarístico, quenão permitiam estar em condições de comungar, à maior parte das pessoas, até muitotarde. Mas o certo é que esse facto levou a definir dois tipos de Missa dentro do diafestivo, ambos incompletos e em oposição um ao outro.

Também o sermão da festa já não será uma peça oratória, desarticulada da Missaonde se há-de integrar, mas elemento agora inserido na sua celebração. A Palavra deDeus proclamada na Missa vem agora ocupar o lugar da citação bíblica que foi costumeoutrora servir de tema ao sermão, que muitas vezes não havia sequer intenção dearticular com aquela proclamação. O púlpito barroco, no meio da nave, à maneira daépoca da Reforma, pode não ter já hoje a mesma função e pode talvez mais oportuna-mente ceder o lugar ao sítio da proclamação das leituras e da homilia, integrando-seassim melhor no ritmo geral da celebração da Palavra. O antigo subdiácono não pode jáaparecer, porque já não existe – foi suprimida a Ordem correspondente –, e até... porquequase nunca existiu no nosso tempo: os nossos subdiáconos, bem como os diáconos naMissa cantada, eram nada menos do que presbíteros vestidos com as vestes daquelasOrdens, anomalia hoje impossível. Mas os diáconos podem e devem ter o seu lugar, se defacto os há. Os presbíteros nunca farão de diáconos, (não se fala mais de subdiáconos!);os presbíteros, quando muito, concelebram; mas não parece normal recorrer a concele-brantes só para solenizar a festa; a concelebração não serve para solenizar; a conce-lebração é a celebração normal numa assembleia onde, de facto, há vários sacerdotes,mas que não se convidam só para solenizar.

Page 36: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

36 PADRE JOSÉ FERREIRA

O grupo coral tem toda a sua razão de ser; a sua, mas não a dos outros, e nãopode, por isso, absorver a participação que for possível obter da assembleia; e algumasempre o será.

A celebração da Eucaristia deveria ser sentida como o centro feliz da festa dacomunidade; aí ela se reúne, aí ela escuta o Senhor, presente no meio de si, aí ela ofereceo sacrifício da comunidade, aí ela se senta à mesa para participar da Ceia do Senhor, aíela canta a sua fé, a sua alegria, a sua esperança, daí ela parte em festa para os outrosmomentos da sua festa, em casa, na rua, no arraial até, por onde quer que a festa seprolongar...

A PROCISSÃO

Grande parte das nossas festas têm, como um dos seus «números», a procissão.Muitas das procissões degradaram-se. A impressão que daí resultou foi uma crítica,muitas vezes quase totalmente negativa, contra as procissões. Elas, no entanto,acontecem! Como vamos continuar a olhar para a procissão? Defendê-la? Condená-la?Suportá-la? Entendê-la para a saber fazer ou para a não fazer?...

A procissão é uma assembleia religiosa em marcha de um lugar para outro.Pode ter diversos fins específicos: súplica, penitência, acção de graças, proclamação dosbenefícios de Deus, etc.. Mas é uma assembleia cristã. É esta uma das notas que logo adistingue de qualquer outro cortejo. Ela é uma assembleia de fé. E é uma assembleia emmarcha, caminhando. Por este aspecto, a procissão lança mão de um sinal dos maishumanos: o caminhar em grupo; mais ainda, como assembleia. Tão humano é este sinal,que ele surge espontaneamente por toda a parte, com as mais diversas significações. Ocaminhar em procissão permite até uma interiorização muito própria, que se torna, aomesmo tempo, meditação, expressão e assimilação de determinado tema espiritual, desdeo mais doloroso, como no funeral, até ao mais festivo, exuberante, aclamativo, como naprocissão de festa. Na procissão as pessoas mantêm-se necessariamente activas como nacelebração dentro da igreja, embora com uma participação própria deste tipo de assem-bleia: o canto é a forma mais indicada. Se se recorre a fórmulas para serem ditas, a formalitânica está naturalmente indicada.

Daqui resulta que a procissão supõe a incorporação nela; a procissão não é paraser vista ou presenciada, mas para nela se tomar parte, activamente, cantando, rezandoou simplesmente marchando, em assembleia, em igreja, até porque a procissão permite,de maneira feliz, expressar e como que fazer sentir a situação da Igreja que caminha,peregrina, «para a casa do Senhor» (Salmo 121).

Apesar de todas estas considerações terem, sem dúvida, muito de lindo, asprocissões põem sérios problemas pastorais. Logo o primeiro é o de saber-se se elasdevem ter lugar, hoje, nas nossas vias públicas, dado o ambiente tantas vezes poucocristão. Sendo manifestação de fé cristã, parece que elas supõem o mínimo de ambientecristão. Talvez devêssemos distinguir entre procissões e procissões. A procissão com aSantíssima Eucaristia não é certamente da mesma natureza que uma procissão de súplicae penitência ou a procissão com imagens de Santos. Enquanto que a primeira supõe certainiciação no mistério eucarístico, no prolongamento da Missa, a segunda toca mais

Page 37: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

POSSÍVEIS ELEMENTOS PARA A CELEBRAÇÃO DAS FESTAS 37

facilmente o coração de quem se sente necessitado ou em aflição (o que não é difícil defazer sentir) e a última se apoia na expressão aclamativa e de glorificação dos Santos,nascida do sentimento de festa e de alegria, nem sempre profundo e esclarecido.

Estas manifestações populares têm o seu sentido, como têm também tendência afácil degradação. Exigem atenção constante, catequese adequada e celebração bem es-truturada e bem realizada. A repetição, ano a ano, de tais manifestações, a competiçãomais ou menos intencional das comissões responsáveis em cada ano, a evolução da vidade fé ao longo de toda a vida da comunidade vai reflectir-se também nestas e em outrascelebrações mais espaçadas dentro do ano.

Mesmo no caso de deterioração, a supressão pura e simples não parece normal-mente de aconselhar, a não ser em casos-limite. Dado que se trata de uma coisa boa emsi, o ideal será a recuperação a partir da formação das pessoas, de uma catequese exactae de uma celebração tanto quanto possível certa, em que o secundário se não sobreponhaao principal, o aparato à celebração, a ostentação à fé, a riqueza, quando não o desperdí-cio, ao bom gosto e à «nobre simplicidade» (cf. Concílio Vat. II, SC 34). Tudo isto é maisfácil dizê-lo do que fazê-lo; mas é já muito reflecti-lo antes de o ter de fazer.

PARA ALÉM DA LITURGIA DAS FESTAS

As nossas «festas de Igreja» com frequência transvasam para a rua e prolon-gam-se no arraial. É coisa velha e não é necessariamente um mal. Tudo está em que oprofano seja a manifestação profana do sentido da festa religiosa, (se este falar não sepresta a equívocos, que se não querem levantar). Um pouco à maneira do Domingo, oDia do Senhor, dia da Ressurreição, dia da assembleia eucarística, do qual está dito que,por isso mesmo, se há-de tornar «também dia de alegria e de descanso do trabalho»(ib., 106), com as manifestações que lhe correspondam. O calendário popular está cheiode feiras e festas profanas, na origem ou ainda hoje ligadas a festas litúrgicas e que, emgrande parte, ainda como tais são designadas. E o nosso folclore, principalmente no querespeita à música, é um repertório que largamente testemunha a sua origem litúrgica. Eaté tradições pagãs e pré-cristãs, (como as fogueiras do Natal e de S. João, nos doissolstícios do inverno e do verão), puderam ser integradas no calendário dos cristãos, emligação muito próxima com a celebração litúrgica; (há ainda no Ritual Romano umabênção para a fogueira de S. João: R. R., IX, III, 13).

A pastoral dos tempos passados soube fomentar ou integrar estas e outrasexpressões festivas no prolongamento das festas cristãs; certamente nem sempre demaneira feliz e sem perigos. Estes continuam, e serão talvez até maiores em nossos dias.A solução não há-de todavia procurar-se tanto nessas manifestações em si mesmas, comona consciência da festa que há-de existir nos cristãos que a celebram. Todo o homem quenasce é mais um que precisa do Baptismo; assim também os seus costumes e as suasfestas: em cada ano em que se celebram, precisam de ser recuperadas na pureza da fé ena santidade da celebração. A isso também se destinavam as tradicionais preparaçõesdas festas, em tríduos ou novenas, que, mais do que antecipações festivas do dia da festa,deviam funcionar como momentos calmos de catequese e oração sobre o tema que a festahá-de celebrar.

Page 38: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR”o memorial

a fracção do pãoo penhor da glória futura *

Em quatro lugares da Sagrada Escritura se fala da instituição da Eucaristia: naPrimeira Epístola aos Coríntios, cap. 11, vv. 23 a 26, e nos três primeiros Evangelhos,os chamados sinópticos: em S. Mateus, cap. 26, vv. 26 a 30, em S. Marcos, cap. 14, vv.22 a 26, e em S. Lucas, cap. 22, vv. 14 a 20.

São as chamadas «narrações da Ceia».Destas, a mais antiga é a de S. Paulo, visto que a Primeira Epístola aos Coríntios

foi escrita antes de qualquer dos Evangelhos, ao menos tal como eles chegaram até nós;é de cerca do ano 55.

S. Paulo faz a narração da instituição da Eucaristia a propósito do modo, aliáspouco edificante, como decorria a sua celebração na Igreja de Corinto. Os Evangelhosfazem-na em ligação muito estreita com a Paixão; a Eucaristia aparece como que ainaugurar a Paixão de modo sacramental. Aliás, o próprio S. Paulo também não esquece estaligação ao dizer que Jesus instituiu a Eucaristia «na noite em que foi entregue» (1 Cor 11, 23).

Vamos percorrer os dados fundamentais que a Sagrada Escritura nos oferece e quesão retomados nas Orações Eucarísticas da Missa.

I - O MEMORIAL

A primeira Eucaristia na última Ceia de Jesus

A Eucaristia é instituída durante a última Ceia. De que ceia se trata? E que impor-tância tem essa circunstância? De que significação ela se reveste por isso?

A tendência mais espontânea para explicar o facto será talvez a de explorar osignificado da refeição na vida humana, o sentido comunitário e de comunhão que arefeição em si encerra e que frequentemente é sublinhado na própria Escritura. É aliástendência não rara na catequese do nosso tempo, concluindo daí o sentido de «partilha»,como costuma dizer-se, contido na Eucaristia, e que é certamente profundo. Mas, a Ceiareferida na Sagrada Escritura a propósito da instituição da Eucaristia é bem mais signifi-cativa do que tudo isso.

* Conferência e mesa redonda, no III Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica, realizado em Fátima de 20 a24 de Setembro de 1977.

Page 39: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR” 39

A última Ceia de Jesus com os seus discípulos fazia parte de certo tipo de refeiçõesentre os membros do Povo de Deus, marcadas por determinado carácter religioso.Para além de encontro familiar e fraterno, essas refeições revestiam-se de ambientequase litúrgico, diríamos hoje. Eram autênticas celebrações de certos acontecimentos daHistória da Salvação.

Entre essas refeições encontra-se a chamada Ceia pascal. Trata-se de uma refeição,celebrada todos os anos ao cair da tarde que inaugura a noite da Páscoa. Falamos da Páscoado Antigo Testamento, da Páscoa judaica, porque a Páscoa já vem de muito longe!

A Páscoa do Antigo Testamento

A Ceia pascal, para o povo judeu, celebra, – e digo intencionalmente celebra,porque os judeus ainda hoje celebram, todos os anos, a Páscoa no ambiente de uma ceia,a ceia pascal –, digo, a Ceia pascal celebra a Páscoa, ou seja, a saída do Egipto e aentrada na Terra Prometida. O acontecimento é conhecido de todos; mas convém recordarque ele é o acontecimento fundamental da História da Salvação no Antigo Testamento,sobre o qual se alicerça toda a espiritualidade do povo de Israel. A esse acontecimentochamou-se já então a Páscoa, palavra que significa, numa explicação mais teológica doque etimológica, a passagem, a passagem libertadora da terra da escravidão para a Terra,prometida a Abraão e à sua descendência.

Tão fundamental era esse acontecimento que ele devia ser recordado, reconhecido eagradecido todos os anos na data aniversária do mesmo, ou seja no equinócio da prima-vera, isto é, na primeira lua cheia da primavera. Era a celebração anual da Páscoa.

Esta celebração constava e consta fundamentalmente de uma ceia festiva, todaenvolvida pela recordação do acontecimento pascal, durante a qual se come o cordeiropascal, se cantam os salmos e se faz a proclamação de uma grande acção de graças,motivada pelo acontecimento celebrado.

Porquê uma ceia e um cordeiro? Todos o sabemos: a Bíblia apresenta assim anoite da primeira Páscoa, quando Deus fez sair o seu Povo da terra do Egipto, «com mãoforte e braço estendido» (Sl 135, 12). Conhecemos todos a história do cordeiro pascal,da unção das portas com o sangue do mesmo, da morte dos primogénitos dos egípcios ede como foram poupados os filhos do Povo de Deus graças ao sangue desse cordeiro. Oacontecimento é celebrado em acção de graças no salmo 135, hoje frequentementecantado.

Algum tempo depois da saída do Egipto e da travessia do Mar Vermelho – outraetapa da passagem de libertação –, o povo está acampado em pleno deserto junto doMonte Sinai. Aí o Senhor celebra com ele a Aliança. Moisés oferece o sacrifício deanimais e, com o sangue desse sacrifício, faz a aspersão de toda a assembleia com estaspalavras: «Este é o sangue da Aliança que o Senhor conclui convosco» (Ex 24, 8).

Muito naturalmente, o acontecimento salvífico que a Páscoa representava seriarecordado e celebrado no futuro, como de facto o foi, também no meio de uma ceia, queviria a chamar-se, também ela, ceia pascal. A Bíblia assim o prescreve: «Conservareisa memória deste dia, comemorando-o com uma solenidade em honra do Senhor:celebrá-lo-eis como instituição perpétua, de geração em geração» (Ex 12, 14).

Page 40: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

40 PADRE JOSÉ FERREIRA

Jesus, filho do povo de Israel, «ia todos os anos, com seus pais, a Jerusalém, pelaPáscoa» (Lc 2, 41), para aí celebrar a festa. No último ano da sua vida, agora rodeadodos seus discípulos, com eles celebrou também, e pela última vez, a Páscoa judaica, nacidade santa, no andar de cima, talvez da casa da mãe de João Marcos (Cf. Act 12, 12),numa sala grande, mobilada e já pronta para a função (Cf. Mc 14, 15). Aí celebrou Jesuso memorial da primeira Páscoa, da Páscoa do Antigo Testamento, e da Aliança que elasignificava, a Ceia pascal em memória da noite em que o Senhor fizera sair os seusantepassados da terra do Egipto. «Esta noite, durante a qual o Senhor velara para osfazer sair do Egipto, será de vigília em honra do Senhor para todos os filhos de Israel, degeração em geração (Ex 12, 42).

Vamos reter o essencial: a ceia pascal é a memória anual da Páscoa antiga, dapassagem do Egipto para a Terra Prometida, e da Aliança selada entre Deus e o seu povopelo sangue do cordeiro pascal e depois pelo sangue do sacrifício celebrado por Moisésjunto do Sinai.

A Nova Páscoa

Jesus está «na véspera da sua Paixão», «na noite em que vai ser entregue». Elesabe que a verdadeira passagem e definitiva da escravidão à libertação é a que Ele vairealizar ao passar deste mundo para o Pai, da morte à vida, pela morte à ressurreição.Esta é a verdadeira Páscoa. A verdadeira Aliança, a nova e eterna Aliança, é a que vai seragora selada com o Sangue do seu sacrifício na Cruz. Mais eloquente que o sangue doantigo cordeiro ou o dos animais no sacrifício oferecido por Moisés é o seu próprioSangue. O verdadeiro Cordeiro pascal é Ele próprio; a sua passagem da morte à vida daressurreição é a verdadeira Páscoa. S. João, ao introduzir a última Ceia e a Paixão,começa exactamente com estas palavras: «Sabendo Jesus que era chegada a hora depassar deste mundo para o Pai...» (Jo 13, 1), como se dissesse: «Sabendo Jesus que erachegada a hora da sua Páscoa...», a nova Páscoa, a Páscoa da nova Aliança.

A Ceia pascal de Jesus

Jesus põe-se à mesa com os seus discípulos. As narrações do Novo Testamentonão nos contam tudo o que aconteceu nesta Ceia. Essas narrações são certamente o teste-munho das liturgias em uso nas comunidades, ao ser celebrada a Eucaristia, ao tempo emque S. Paulo e os evangelistas escreviam, mais do que a descrição completa de tudo oque tinha acontecido na última Ceia. Mas nós conhecemos, por outras fontes, como era aceia pascal entre os Judeus, no tempo de Jesus.

A refeição abria com um como que aperitivo, considerado ainda anterior à ceiapropriamente dita, feito à base de ervas amargas, em memória das amarguras que os seuspais tinham experimentado no Egipto. Enchia-se a primeira taça de vinho antes destealimento, e uma segunda depois. Vinha em seguida a evocação dos acontecimentos cele-brados naquela noite, o Haggadá, espécie de homilia em que o pai de família evocava asmaravilhas que Deus realizara na noite da primeira Páscoa. E, depois do canto da primeiraparte do Hallel (Salmos 112-113, 8, na Vulgata), começava a ceia propriamente dita.

Page 41: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR” 41

No início, o partir do pão. É o gesto que inaugura a refeição. Este partir do pão ésempre acompanhado de uma oração de bênção. Antes de se servir dos bens que Deuslhe dá, o homem da Bíblia bendiz a Deus, fonte de todos os bens, de quem procede todoo dom. Esta noção de bênção não é exactamente a mesma que hoje temos, pelo menos nalinguagem comum e na prática mais frequente. Mas deixemos para mais adiante o examemais minucioso da «bênção» na Bíblia. Voltemos à Ceia.

Da última Ceia de Jesus diz-se também que Ele «tomou o pão, o partiu e deugraças». Foi também assim que Jesus inaugurou a sua refeição pascal. Foi certamenteneste momento, ao começar a refeição pascal, que Jesus tomou o pão, disse: «Tomai ecomei: isto é o meu Corpo, que é entregue por vós». De facto, existe também umafórmula com que, na ceia judaica, o pai de família acompanha este partir do pão e que dizassim: «Este é o pão da tristeza que os nossos pais comeram na terra do Egipto».Não esqueçamos que o pão da Páscoa é, ainda hoje, entre os judeus, o pão ázimo, um pãodesagradável, o tal «pão da tristeza». De facto, a Escritura afirma que Jesus disse:«Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós», o que acrescenta à ideia da presençareal a de um corpo oferecido em sacrifício doloroso. Aquele pão é o seu Corpo, mas oCorpo «entregue», ou, como diz outro texto, um corpo «triturado».

Na ceia, vem depois a manducação do cordeiro pascal, o prato forte da refeição,que se desenrola aliás sem ritos especiais.

Terminada a manducação do cordeiro, dir-se-ia que a ceia terminou também. Maso que vai seguir-se é o momento culminante, que dá todo o sentido religioso àquelarefeição, que, aliás, desde o início, é claramente uma refeição religiosa. O pai de famíliapõe-se de pé, toma a sua taça com vinho, a terceira taça, e diz outra oração de bênção,outra acção de graças, agora mais longa e que tem por motivo o próprio motivo da Pás-coa, a saída do Egipto e a entrada na Terra Prometida. É uma oração que recorda e quelouva, em que se reconhece o que Deus fez pelos homens na Páscoa e em que se Lhe dãograças por tudo quanto Ele fez. É a grande bênção, a grande acção de graças.Demoremo-nos um pouco nesta «bênção».

A «bênção» na Bíblia e na Ceia

A «bênção» da Bíblia dirige-se mais a Deus do que às coisas e às pessoas.«Bênção» está relacionada com o verbo «bendizer», e assim «bênção» é, antes de mais,a palavra com que se «bendiz» a Deus, ao reconhecermos as maravilhas que Ele fez emnosso favor. É, portanto, antes de mais, uma palavra de louvor. Habitualmente hojeligamos mais a palavra «bênção» ao verbo «abençoar» ou ao verbo «benzer». Para nós,«fazer uma bênção» é «benzer» ou «abençoar». (Em latim, a palavra é a mesma paradizer o que em português exprimimos com estas três palavras: «bendizer», «benzer» e«abençoar». É o verbo «benedicere»).

Ao descrever a última Ceia, a Sagrada Escritura diz que Jesus «pronunciou abênção». A palavra que lá está significa que Jesus «bendisse» ao Pai, pronunciou umapalavra de louvor e acção de graças sobre o pão que ia partir. Podemos dizer que Jesus«deu a bênção», mas não tanto no sentido de que «abençoou» o pão, como no sentido deque «bendisse» a Deus pelo pão. De facto, o pão também foi abençoado por Jesus, etanto que se tornou no seu Corpo. De uma maneira mais analítica e que pode facilitar a

Page 42: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

42 PADRE JOSÉ FERREIRA

compreensão, podemos dizer que a palavra «bênção» tem dois sentidos: um ascendente,o de bendizer a Deus, outro descendente, o de abençoar as pessoas e as coisas. Mas esteúltimo sentido, esta bênção que nós pedimos a Deus que «desça sobre nós e permaneçapara sempre», é como que o fruto e a consequência da bênção que sobe até Deus emreconhecimento, louvor e acção de graças.

Já antes, ao tomar o pão, Jesus pronunciou uma oração de bênção, mais breve, eque muito provavelmente foi semelhante à que entrou agora no novo Missal Romanopara acompanhar o rito da apresentação dos dons: «Bendito sejais, Senhor, pelo pão quenos dais, fruto da terra...». Mas a grande bênção era a que acompanhava a terceira taça,por isso mesmo chamada «a taça da bênção» (Cf. I Cor 10, 16). Ora, a palavra que aEscritura emprega para designar esta grande bênção ou acção de graças que Jesuspronunciou sobre o cálice «no fim da ceia» é precisamente uma palavra relacionada coma palavra «eucaristia», palavra esta que significa exactamente «bênção» ou «acção degraças».

A Eucaristia, sacramento da Páscoa da Nova Aliança

Uma vez terminada, na ceia pascal judaica, esta bênção, o pai de família bebe dataça e passa-a aos outros, que, desta vez, bebem todos da mesma. Este gesto de beberemtodos da mesma taça é bem significativo da comunhão de todos no reconhecimento dodom de Deus, no louvor em comum pelo reconhecimento desse dom, na consciência deunidade de um povo que se proclama salvo pelo Senhor.

Teria sido certamente neste momento que o Senhor, depois da grande bênção pas-cal, já podemos dizer, depois da grande eucaristia pascal, lhes entregou a taça, dizendo:«Bebei dela todos, porque este é o meu Sangue, Sangue da Aliança, que vai ser derramadopela multidão dos homens para remissão dos pecados» (Mt 26, 37-38), ou, como escreveoutro evangelista: «Esta taça é a nova Aliança no meu Sangue, que vai ser derramado porvós» (Lc 22, 20). De facto, a Escritura explica que Jesus lhes entregou a taça, acompa-nhando o gesto com aquelas palavras, «depois da Ceia».

Deste modo, a última Ceia de Jesus foi, ao mesmo tempo, a ceia tradicional daPáscoa antiga e a Ceia de uma Páscoa nova. Jesus diz que o pão, o pão daquela ceia, é oseu Corpo, mas Corpo «que vai ser entregue» (triturado), e que o vinho é o seu Sangue,mas Sangue «que vai ser derramado». Trata-se, portanto, de um sinal que se relacionacom o futuro, certamente muito próximo, mas ainda não totalmente conhecido. Essefuturo será dentro de poucas horas, quando o seu Corpo for triturado e o seu Sanguederramado na Paixão, porque já estamos «na noite em que Ele vai ser entregue» (cf.1 Cor 11, 23 e Or. Eucar. III).

Não resta dúvida: o que Jesus pretende é deixar um sinal da sua Páscoa, da suapassagem deste mundo para o Pai, da sua morte e ressurreição, dessa vitória única edefinitiva sobre o pecado e sobre a morte, sobre todo o mundo velho que, n’Ele e comEle, morre na cruz e é sepultado no sepulcro de José de Arimateia, para reaparecer, novo,na glória do Pai, na plena comunhão de uma Aliança nova e eterna, que a ressurreiçãorevelará na manhã do primeiro dia. É a nova Páscoa, a nova saída do Egipto, a novaentrada na Terra Prometida, na nova Jerusalém, na Jerusalém celeste. E aquela últimaCeia é de tudo isto o sacramento, o sinal vivo e eficaz. Tudo isto Jesus o disse ainda à

Page 43: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR” 43

mesa, quando, depois de lhes dar a beber o cálice do seu Sangue, acrescentou: «Fazeiisto em memória de Mim». Duas afirmações da máxima importância aqui estão contidas:a primeira, «fazei isto»; e a segunda, «em memória de Mim».

«Fazei isto...»

«Fazei isto... ». «Fazer aquilo» é repetir, no futuro, o gesto de Jesus. De facto,aquela Ceia é mais do que uma ceia vulgar, mesmo mais do que uma ceia de despedida,o que a deixaria para sempre ligada a certo pensamento sinistro!... Aquela Ceia é umsinal, significa mais, infinitamente mais, do que uma reunião de amigos em volta do seuMestre, em momento decisivo da sua vida, e precisamente no da sua morte.

Aquela Ceia está carregada com todo o sentido com que, horas depois, vai estarcarregada a morte do Senhor no alto do Calvário, e que vai ser o gesto significativo daobediência total do Filho de Deus ao amor do Pai, por amor dos homens, seus irmãos. S.Paulo explica na citada Epístola aos Coríntios que, «sempre que comerdes este pão ebeberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor» (1 Cor 11, 26).

«Fazer aquilo», isto é, renovar a Ceia do Senhor, não vai ser só pensar no Senhor,recordar-se do Senhor, evocar o Senhor, meditar no Senhor; «fazer aquilo», isto é,renovar a Ceia do Senhor, será tornar presente, no meio da assembleia dos discípulos deJesus reunida, a sua própria Páscoa, a sua passagem deste mundo para o Pai, não certa-mente de maneira histórica, natural, porque, no fim de contas, a história não se repete; oque passou, passou. Mas o sentido do que algum dia aconteceu não desaparece de todo;e, diante de Deus, a Páscoa de Jesus é uma realidade permanente. E a Epístola aosHebreus diz que Jesus, «porque permanece para sempre, tem um sacerdócio eterno»(Hebr 7, 24). Pois, o que para Deus está sempre presente, o sacrifício de seu Filho,torna-se presente a nós sempre que renovamos o sinal sacramental desse gesto, dessesacrifício, que é a Ceia, a Eucaristia.

«...em memória de Mim»

Por isso, Jesus acrescentou: «Fazei isto em memória de Mim». Talvez que oessencial deste mandato do Senhor esteja precisamente na segunda parte da frase: «Emmemória de Mim». Os discípulos não recebem apenas ordem de renovar, no futuro,aquela Ceia. Isso eles certamente o fariam, como, agora, ali estavam renovando a ceiapascal, uma vez mais. A novidade estava em que, de ora em diante, a haviam de fazer«em memória d’Ele». A Ceia pascal, que já tinha séculos de tradição, continuaria a sercelebrada; o povo judeu ainda hoje o testemunha; mas, desde aquele momento, ela nãoseria já celebrada em memória do dia em que Deus «feriu o Egipto, enquanto poupava asnossas casas» (Ex 12, 27), em memória da Páscoa antiga, mas «em memória de Mim»,que é como quem diz, da minha Páscoa, da minha passagem deste mundo para o Pai», damorte e ressurreição do Senhor, ou, por outras palavras, do seu sacrifício pascal. Defacto, o vinho do cálice é o Sangue da nova Aliança, «nova» em oposição à «antiga», à dotempo de Moisés. Aqui se pode aplicar a bela palavra de Jeremias: «Dias virão em quenão se dirá: Viva o Senhor, que tirou do Egipto os filhos de Israel» (cf. Jer 16, 14-15),porque o que o Senhor agora faz por nós é mais, muito mais, do que os prodígios ligados

Page 44: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

44 PADRE JOSÉ FERREIRA

à Páscoa do Antigo Testamento. É assim que S. Paulo insiste em que «sempre que co-merdes este pão e beberdes deste cálice anunciareis a morte do Senhor» (1 Cor 11, 26),e não outra qualquer coisa. O mesmo S. Paulo, ao referir as palavras paralelas às queestamos a comentar, formula-as desta outra maneira, talvez mais esclarecedora: «Todasas vezes que beberdes este cálice, fazei-o em memória de Mim» (ib. v. 25), como sedissesse: «Não em memória de qualquer outro ou de qualquer acontecimento diferentedo meu acontecimento pascal, mas em memória de Mim».

Podemos talvez dizer que a Ceia do Senhor, a celebração da Eucaristia, está paraa Páscoa de Jesus, para a sua morte e ressurreição, como a ceia pascal dos Judeus estápara a Páscoa da Antiga Aliança, a saída do Egipto. Cada qual renova, à sua maneira, oacontecimento da história da salvação a que se refere, para que, no respectivo sinal, norespectivo sacramento, o reconheçamos, e por ele, demos graças ao Senhor que por elenos salvou. Dizemos «cada qual à sua maneira», porque a Ceia do Senhor leva o realismoda memória até ao ponto de o que nela é imolado e servido ser o próprio Corpo e Sanguede Jesus.

«Celebrando agora o memorial»

Tudo isto a Igreja o entendeu desde logo, como o provam os próprios textos quetemos estado a comentar, e que são certamente, como dissemos, testemunhos da maneirade agir das primitivas comunidades cristãs, de maneira especial o texto da Epístolaaos Coríntios. São Paulo começa, de facto, por dizer: «Quando vos reunis, não ofazeis para comer a Ceia do Senhor», tal era a maneira tão inconveniente como ofaziam (1 Cor 11, 20). «Quando vos reunis...»: trata-se, portanto, da assembleia que sereúne para celebrar a Ceia do Senhor, a Eucaristia.

Concluindo esta primeira parte, digamos que a celebração da Eucaristia é a reno-vação da Ceia do Senhor; e é, por isso mesmo, a celebração sacramental, o sacramento,da Páscoa de Jesus Cristo, da sua passagem deste mundo para o Pai, da oblação que aoPai Ele fez da sua vida, numa palavra, do seu sacrifício redentor.

Vista do nosso lado, a celebração da Eucaristia é o acto pelo qual reconhecemosessa Páscoa do Senhor Jesus e a atitude de amor do Pai para com os homens, o qualacolhe o sacrifício de seu Filho em favor de todos os que entram na Aliança seladapelo Sangue desse mesmo sacrifício, o povo dos baptizados. E o reconhecer tudo istoexprime-se necessariamente em acção de graças, em «eucaristia», em atitude de quembendiz a Deus pelo dom que nos fez em seu Filho e pela aceitação que d’Ele fez e de nóscom Ele, uma vez que somos incorporados n’Ele, com Ele passámos da morte à vida esomos vivificados pelo mesmo Espírito.

A Eucaristia é sempre para nós o memorial da morte e ressurreição de JesusCristo. Assim o exprimimos, sempre que a celebramos, naquela parte da Oração Euca-rística que se segue imediatamente à narração da Ceia e na aclamação que se intercalaentre ambas: «Celebrando agora Senhor (o Pai), o memorial da morte e ressurreição devosso Filho...»; «Anunciamos, Senhor (o Filho), a vossa morte, proclamamos a vossaressurreição...». E assim em todas as Orações Eucarísticas. É aliás uma parte fundamen-tal esta – a anamnese – em que se exprime o sentido que a Igreja dá à renovação da Ceia

Page 45: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR” 45

do Senhor em cada Missa e manifesta a sua participação actual no sacrifício do Senhor,oferecendo-o com Ele – «...nós Vos oferecemos...» –, levada no dinamismo pascal que acelebração eucarística torna presente para nele nos arrastar.

II - A FRACÇÃO DO PÃO

Desta primeira e fundamental significação da Eucaristia, a sua total referência àmorte e ressurreição de Jesus Cristo, resulta outra, a sua significação eclesial, a suareferência aos homens, que, unidos a Cristo e em Cristo, formam a Igreja que celebra aEucaristia. Esta significação não é oposta à anterior, nem sequer diferente, porque nadahá em Cristo que não seja da Igreja, nem na Igreja que não seja de Cristo.

A dimensão eclesial da Eucaristia é sugerida pelo nome mais antigo que lhe foidado depois do de «Ceia do Senhor», ou seja, o de «fracção do pão». É assim que S.Lucas designa a Eucaristia nos Actos dos Apóstolos. Ao referir-se à vida da primeiracomunidade dos cristãos de Jerusalém, diz que eles «eram assíduos à doutrina dos Após-tolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações» (Act 2, 42). E logo pouco depoisacrescenta: «Todos os dias frequentavam o Templo, numa só alma, partiam o pão emsuas casas e tomavam alimento com alegria e simplicidade de coração» (ib., 46). «Partiro pão» é aqui o mesmo que realizar «a fracção do pão». Mais adiante nos mesmos Actosdos Apóstolos, a propósito da vigília dominical celebrada em Tróade, na véspera dapartida de Paulo, escreve S. Lucas: «No primeiro dia da semana, estando nós reunidospara partir o pão, Paulo começou a falar com eles e prolongou o seu discurso até à meianoite... Depois, partiu o pão, comeu e falou demoradamente até de madrugada»(Act 20, 7-11).

É a mesma expressão que já tinha sido usada para fazer referência ao gesto deJesus na última Ceia: «Tomou o pão, partiu-o e deu-o». Ora, o gesto de partir e dar é,entre os gestos da celebração eucarística, ao menos na origem e durante muito tempoainda, o mais espectacular, no sentido de que é o que mais dá nas vistas e, embora nãoexprima todo o sentido do que está a ser feito, pode facilmente designar a celebração emque tal acontece. Podia, por isso, dizer-se que os cristãos se reuniam para partir o pão,como está dito dos de Tróade, ou que iam à fracção do pão, como hoje se diz que elesvão à Missa. Seja como for, «fracção do pão» foi um dos primitivos nomes que se deramà celebração da Eucaristia.

Sinal de comunhão com Deus

A expressão, como ficou dito, exprime, muito felizmente, um dos aspectos funda-mentais da Eucaristia, que aliás é já fortemente sugerido pelo de «Ceia do Senhor», ouseja, o de ela ser banquete ou refeição de comunhão. E, dentro do banquete eucarístico,este aspecto exprime-se ainda, da maneira mais realista possível, na comunhão sacra-mental, na manducação da vítima oferecida em sacrifício, nada menos do que o próprioSenhor Jesus. Comer o «pão da vida» e beber do «cálice da salvação» é rito integrante dacelebração da Eucaristia e é ele que dá o sentido último à celebração da mesma. A Ceia

Page 46: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

46 PADRE JOSÉ FERREIRA

do Senhor não existe para a ela se assistir, mas para ser participada, dela comendo ebebendo. Que pretende, em última análise, significar-se com a celebração do sacrifícioeucarístico? O mesmo que Jesus quis significar na cruz: levar o homem à comunhão comDeus, passar deste mundo para o Pai, entrar na Aliança selada com o seu próprio Sangue.

A Oração Eucarística, oração de comunhão

Na celebração da Eucaristia, já toda a Oração Eucarística, (na qual, ao fazer-se anarração da Ceia, se realiza o mistério da consagração), é uma oração de comunhão.Como na ceia pascal judaica, quando o pai de família pronuncia a solene oração debênção, de eucaristia, de pé, no meio de todos os convivas, que o seguem, com fé, em seucoração, assim agora na Missa, a Oração Eucarística é já uma forma de toda a assembleiaentrar em comunhão com o Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, em Igreja, ao dar graçaspelo sacrifício pascal do Senhor. Responder aos convites do presidente: «Corações aoalto», «Dêmos graças ao Senhor nosso Deus», com aclamações como estas: «O nossocoração está em Deus», «É nosso dever, é nossa salvação», e sobretudo aclamar no fimde toda a Oração Eucarística com o «Amen» da adesão total à grande eucaristia dereconhecimento, de acção de graças e de louvor, dizer tudo isto é mostrar que se com-preendeu que ao proclamar-se a Oração Eucarística se entra em comunhão com Deus porCristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo. Não exige menos presençade espírito, menos atitude de fé, menos calor de devoção, tomar parte na Oração Eucarís-tica, proclamada pelo sacerdote que levanta a voz no meio da assembleia silenciosa,como Jesus fez na última Ceia no meio dos discípulos recostados em volta da mesa, nãoexigem menos comunhão de espírito e de coração esses momentos de oração, do que,logo depois, o momento em que vamos comungar o Corpo e o Sangue do Senhor. Aliásesta convicção está bem expressa na aclamação que toda a assembleia pronuncia depoisda narração da Ceia, ao passar-se à anamnese, quando o presidente exclama, como queem contemplação: «Mistério da fé»! Toda a assembleia responde com uma aclamação emque exprime a sua comunhão com Deus, que é precisamente o fruto da celebração euca-rística: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição», comose dissesse: «Convosco, Senhor Jesus, nós passamos da morte à vida, deste mundo parao Pai, e entramos em comunhão de vida com o Pai, por Vós, seu Filho, no EspíritoSanto». Quem assim exclama mostra sentir que está já em comunhão, que está já acomungar. E mais claramente, na parte da oração que se segue, na anamnese, quando serecorda a morte e a ressurreição do Senhor, a sua Páscoa, logo se acrescenta:«...oferecemos...», para entrarmos em comunhão.

O rito da comunhão

Por definição, toda a celebração é um rito, uma acção simbólica; no caso da Eu-caristia, ela toma a forma de uma refeição. E assim, esta comunhão com Deus, que osacrifício significa e realiza, vai ser também traduzida numa acção, num rito; e esse ritoé a comunhão, o comer do «pão da vida» e o beber do «cálice da salvação». Se o sacrifí-cio toma a forma da refeição, o comungar nele revestirá espontaneamente a forma decomer e de beber dessa refeição. Assim o disse o próprio Senhor Jesus: «Tomai e

Page 47: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR” 47

comei», «tomai e bebei». O altar do sacrifício é simultaneamente, e por isso mesmo,mesa de comunhão. Ali Cristo Se oferece ao Pai; ali nos aproximamos da mesa dosacrifício, que assim se afirma sacrifício de comunhão. A Sagrada Escritura comparafrequentemente a comunhão com Deus à aliança matrimonial e ao banquete nupcial.Estar com Deus, em comunhão com Deus, é sentar-se à mesa de Deus: «Muitos virão doOriente e do Ocidente sentar-se à mesa com Abraão, Isaac e Jacob» (Mt 8, 11). E a uniãoúltima e definitiva com Deus na glória da ressurreição de Cristo é-nos apresentada naimagem da «ceia das núpcias do Cordeiro (Ap 19, 9), texto que a liturgia da Missa adop-tou (e que a tradução portuguesa empobreceu adaptando-o; mas o essencial ficou claro):«Felizes os convidados para a Ceia do Senhor». Deus convida-nos para a sua mesa, paratomarmos parte no banquete daquelas núpcias em que Jesus entrou pela sua morte eressurreição e que na Ascensão claramente se manifestam. Deus convida-nos para aunião consigo, fruto da Páscoa de seu Filho e que é agora significada e realizada pelaEucaristia, e particularmente pelo rito da Comunhão que se segue à Oração Eucarística.

Talvez que muito simplesmente se possa dizer: O que humildemente trouxemosao altar para o sacrifício de Cristo, os dons que d’Ele nos vieram, de tudo isso, infinita-mente enriquecido, porque eles são agora o Corpo entregue e o Sangue derramado de seuFilho, de tudo isso o Pai faz o manjar da sua mesa, a mesa do banquete das núpcias deseu Filho. E para ele nos convida, para que também nós entremos nessa festa nupcial,banquete de Aliança e de comunhão com o Pai e o Filho e o Espírito Santo. Outra coisa,aliás, não pretende o sacrifício de Jesus Cristo e a nossa participação nele.

«A fracção do pão», o pão que Deus nos reparte, faz-nos assim entrar emcomunhão com Deus.

Comunhão em Igreja

A comunhão com Deus é também sempre, e inseparavelmente, união em Igreja.«O pão de Deus», repartido, é sinal de comunhão e fonte de unidade. S. Paulo escreve:«Uma vez que há um só pão, nós, sendo embora muitos, formamos um só corpo, porquetodos participamos do mesmo pão» (1 Cor 10, 17).

A alegria humana de comer do mesmo pão é já motivo bastante para estabelecerum laço de unidade entre os que participam desse pão. Mas esta razão, humanamentebem forte e válida, torna-se infinitamente mais exigente na Eucaristia, porque o pão aque S. Paulo se refere «é a comunhão do Corpo de Cristo», como «o cálice da bênção queabençoamos é a comunhão do Sangue de Cristo», como ele próprio escreveu no versículoimediatamente anterior (v. 16).

Se «Cristo morreu para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos»,como escreve S. João (Jo 11, 52), é natural que o sacramento do seu sacrifício, que essamorte realizou, seja também o sacramento daquela unidade dos filhos de Deus, a quem opecado dispersara, mas que Jesus trouxe à unidade.

Esta unidade não é apenas o encontro exterior das pessoas que vêm ao mesmolugar para tomar parte na mesma celebração; nem o encontro amistoso, fundado sobrequalquer motivo puramente humano, que bem poderia ser significado por uma outraqualquer refeição de amigos. Sem dúvida que este sinal, tão humano e tão belo, darefeição como lugar de encontro de amigos, está sempre subjacente também no banquete

Page 48: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

48 PADRE JOSÉ FERREIRA

eucarístico. Mas a Eucaristia é mais do que um banquete de anos ou de casamento, e acelebração mais do que um encontro de amigos. A Eucaristia, é ela que provoca o encontrode amizade entre aqueles que são capazes de reconhecer, no mistério da Ceia mística, oSenhor que morre e ressuscita e assim Se torna para todos eles o centro da sua unidade.S. Paulo chama a Cristo «a Cabeça do corpo da Igreja» (Col 1, 18), Aquele em quem, porisso, todos os membros da Igreja encontram a unidade.

Celebrar «a fracção do pão» foi sempre na Igreja o sinal máximo da sua unidade,como também celebrá-la em ambiente ou em espírito de separatismo foi sempre o selo docisma e da divisão. É, por isso, que nunca os cristãos de confissões religiosas diferentesquiseram participar na Eucaristia uns dos outros. Seria usar mentirosamente o sinal daunidade.

Sem se tratar ainda nem de cisma nem de seita, é impressionante notar como otexto de S. Paulo citado no princípio, e que é o mais antigo sobre a Eucaristia, foi escritopara chamar a atenção dos cristãos de Corinto para a celebração que andavam fazendoem ambiente de divisão e discórdia.

A Eucaristia é o sacramento, o sinal, por excelência, da comunhão da Igreja e naIgreja. A Eucaristia celebra-se na Igreja, e não fora dela, porque é a Igreja quem faz aEucaristia, como é também a Eucaristia que faz a Igreja. Ao contrário da comunidade deCorinto, os cristãos de Jerusalém, segundo os Actos dos Apóstolos, «tinham todosum só coração e uma só alma» (Act 2, 46) e «eram assíduos à fracção do pão» (ib. v. 42).E já a Igreja da Didakhé (livro cristão de cerca do ano 100) rezava desta maneira impres-sionante: «Assim como este pão que partimos, outrora disperso sobre os montes, foirecolhido para se tornar um só, assim se reúna a tua Igreja dos confins da terra no teureino» (Did 9).

São três os sacramentos da iniciação cristã: o Baptismo, a Confirmação e a Euca-ristia. Será que, de facto, os que na Igreja já atingimos esta plenitude da iniciação na vidade Cristo e nos sentamos, e tão frequentemente, à mesa da Ceia do Senhor para a fracçãodo seu pão, será que nós a celebramos na comunhão com Deus e na comunhão entre nós,como ela pretende significar?

III - O PENHOR DA GLÓRIA FUTURA

Um último aspecto queria sublinhar ao falar da Eucaristia, porque ele é funda-mental e encerra a sua significação última.

A Eucaristia, como aliás todos os outros sacramentos, pertencem ao «tempo daIgreja». É conhecida a expressão da sequência da solenidade do Corpo e Sangue deCristo, que chama à Eucaristia «cibus viatorum», «o alimento dos caminheiros».

Por mais sublime que seja este sacramento, a ponto de conter em si o próprioAutor da graça, tudo nele é, de facto, ainda sacramento, de algum modo provisório, sinalvisível de uma realidade ainda invisível. Nada nele é falso, vazio ou meramente exterior.Ele encerra, realmente, um mistério de vida celeste e de comunhão com o Deus invisívele imortal. Mas tudo é ainda apenas palpável e visível à luz obscura da fé. No entanto,

Page 49: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“A MISSA OU CEIA DO SENHOR” 49

tudo nele é também esforço por traduzir e apresentar esta realidade divina em termosacessíveis ao homem mortal, sempre no prolongamento do que já fora o mistério daEncarnação. Como «o Verbo Se fez carne», assim agora o seu Corpo se apresenta sob osinal do pão e o seu Sangue sob o do vinho, e a sua Páscoa é presente numa refeição:«Tomai e comei», «Tomai e bebei», «Fazei isto em memória de Mim».

Mas S. Paulo acrescenta a estas palavras de Jesus estoutras: «...até que Ele venha»(1 Cor 11, 26). Certa Oração Eucarística de uma liturgia oriental transpõe até esta pala-vra e coloca-a na boca do próprio Jesus: «Fazei isto em memória de Mim, até que Euvenha». A Eucaristia é, de facto, sacramento deste tempo da Igreja, até que o Senhorvenha.

A Eucaristia aparece-nos assim bem figurada na célebre passagem do PrimeiroLivro dos Reis, quando Elias recebe do Anjo a indicação de comer do pão e beber daágua que misteriosamente lhe aparecem à cabeceira, ao acordar do sono que dormiradebaixo do junípero, quando fugia pelo deserto à perseguição de Jezabel: «Levanta-te ecome, que tens grande caminho a percorrer». E o texto continua: «Elias levantou-se,comeu e bebeu. Depois, fortalecido com o alimento, caminhou durante quarenta dias equarenta noites até ao monte de Deus, o Horeb» (1 Re 19, 7-8). O «até ao monte deDeus» corresponde à palavra de S. Paulo: «Até que Ele venha». Quando Ele vier, serácomo quando Elias, no termo da sua jornada no monte de Deus, sentiu na brisa quesoprava à entrada da gruta a suavíssima presença de Deus (vv. 12-14), ou como quandoos Israelitas entraram finalmente na Terra Prometida: celebraram a Páscoa (a festa dapassagem) e o maná (o pão da travessia do deserto é outra figura da Eucaristia) logodeixou de cair (Jos 5, 10-12). Agora comeriam dos frutos da sua nova terra. Quando Elevier, cessará o sacramento da Eucaristia, porque chegou a eucaristia perene, o lausperene,o louvor perpétuo. É precisamente neste contexto do tempo da Igreja que a Eucaristianos aparece como sacramento do «mundo que há-de vir» (Hebr 6, 5), sacramento como éda passagem deste mundo para o Pai. Cada vez que a celebramos no tempo – e ela é bemdeste tempo – anunciamos a passagem deste mundo para o Pai, anunciamos já o novo«mundo que há-de vir». Quanto mais celebrarmos a Eucaristia ao longo da vida, destanossa vida, mais proclamamos que esta vida tem um sentido e já uma presença em si davida eterna. Quanto mais levamos a nossa vida para a Eucaristia, mais proclamamos queesta vida é caminhada para a casa do Pai: «O Corpo de Cristo (o Sangue de Cristo) meguarde para a vida eterna», diz a palavra que acompanha o rito da comunhão.

O Viático

O culto eucarístico, quer se trate da celebração da Missa, quer de qualquer outraforma de culto do mistério eucarístico fora da Missa, é um dos meios mais eloquentes deafirmar o sentido escatológico de toda a fé e de toda a vida cristã. A Eucaristia estáfortemente marcada pelo sentido da libertação plena e total, como a Páscoa de que ela éo sacramento. O Viático ou a comunhão aos moribundos – o Viático, e não a Santa Unção,é que é o sacramento dos moribundos; a Santa Unção é o sacramento dos doentes – oViático sublinha este sentido de participação do cristão na vitória de Cristo, precisamentena hora em que o homem se dispõe a perder a vida e a sair deste mundo para passar parao Pai e aí a reencontrar.

Page 50: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

50 PADRE JOSÉ FERREIRA

Quando é que os nossos cristãos verão na chegada dos últimos sacramentos osinal da vida que vence a morte e da glória que triunfa da dor e do sofrimento?

A Eucaristia e a ressurreição

Na mesma ordem de ideias, a Eucaristia é o sinal e o penhor da ressurreição.Assim dela falou precisamente Nosso Senhor, quando na sinagoga de Cafarnaumexplicou, no dia seguinte ao da multiplicação dos pães, o mistério do pão da vida:«Eu sou o pão da vida. Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Mas esteé o pão que desceu do céu e quem dele comer não morrerá... Quem come a minha Carnee bebe o meu Sangue tem a vida eterna e Eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6, 48-49.54). Jesus articula a ressurreição directamente com a Eucaristia.

A liturgia dos defuntos continua a mesma ideia: faz ler esta passagem do Evange-lho nas Missas de defuntos; e numa oração das exéquias, ao apresentar a certa altura aperspectiva da ressurreição, refere-se ao cristão defunto como àquele que se alimentoucom o Corpo e Sangue do Senhor. A Eucaristia é assim apresentada como semente deressurreição. E nada mais lógico, pois que ela é o sacramento da Paixão do Senhor, cujofruto é a ressurreição.

Assim se compreende que a Igreja sempre tenha celebrado a Eucaristia noambiente festivo da acção de graças, acção de graças que brota feliz do coração de quemnela sabe reconhecer o sacramento da Páscoa do Senhor Jesus, o sinal da comunhão como Pai e da unidade de todos os seus membros entre si na unidade do mesmo corpo quetem Cristo como Cabeça, e o penhor da sua glória futura.

E apetece-me terminar, interrogando:Que celebramos nós em nossas Eucaristias?De que são elas sinal para nós que as celebramos e para os que no-las vêem

celebrar?Donde nasce o sentido de festa que nelas queremos exprimir?E porque tantos se dizem e se mostram cansados delas, se a Eucaristia nos foi

deixada para que façamos «aquilo» em memória d’Ele, alimentando em nós a esperançaaté que Ele venha?

«Felizes os convidados para a Ceia das núpcias do Cordeiro», e que, ao contráriodos convidados do Evangelho, sabem encontrar razão bastante para nunca se escusaremao convite!...

Page 51: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSAOs elementos fundamentais da liturgia cristã são a palavra e o rito, este no sentido

de acção simbólica. No caso da Missa, podemos dizer que, de maneira geral, a Palavraé a primeira parte – a Liturgia da Palavra – e o rito é a segunda – a liturgia eucarística.(Todavia, também, dentro do próprio rito eucarístico podemos falar de palavra e de rito).Outros falaram já da celebração da Palavra na Missa; falemos agora do rito, que é, comodissemos, a Eucaristia, isto é, a segunda parte ou a liturgia eucarística. Por uma questãodidáctica, sempre que falar de Eucaristia ou de liturgia eucarística refiro-me a esta segun-da parte da Missa somente. Para o conjunto da celebração direi, de preferência, Missa,sem entrar na questão de saber se é melhor chamar a esta, assim mesmo, «Missa» ouantes «Eucaristia».

Dados bíblicos e expressão litúrgica

A liturgia eucarística da Missa renova a Ceia do Senhor, tanto no seu mistério,como até no modo de o celebrar. Já anteriormente se tratou aqui desse mistério; agorafalemos, ainda que sumariamente, da sua celebração.

Os textos da Sagrada Escritura que se referem à instituição da Eucaristia encerramo essencial dessa instituição em quatro verbos:

Jesus a) tomou o pão, tomou o cálice com vinho,b) pronunciou uma oração de acção de graças,c) partiu o pão,d) deu-o aos discípulos

e o vinho igualmente.A celebração da Eucaristia na Missa vai reproduzir estes quatro tempos:a) Jesus tomou o pão, tomou o cálice com vinho: a isto corresponde, na Missa, o

rito da apresentação dos dons, vulgarmente chamado «ofertório»;b) Jesus pronunciou uma acção de graças: a isto corresponde a oração eucarística;c) Jesus partiu o pão: corresponde-lhe, na Missa, a fracção do pão consagrado;d) Jesus deu o pão e o vinho consagrados: corresponde-lhe a comunhão.

Podíamos, por isso, estabelecer o seguinte quadro paralelo:

Na Ceia

Jesus 1 tomou o pão,tomou o cálice

2 pronunciou a acção de graças,3 partiu o pão,4 deu-o

e do mesmo modo,o cálice.

Na Missa

1. Apresentação dos dons

2. Oração eucarística3. Fracção do pão consagrado4. Comunhão

Page 52: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

52 PADRE JOSÉ FERREIRA

Estes quatro tempos não têm todos a mesma importância nem a mesma auto-nomia. Assim, a apresentação dos dons (ofertório) está toda orientada para o que segue;e a fracção faz quase uma unidade com a comunhão, em ordem à qual se realiza.

A «Ceia do Senhor» da liturgia cristã deixou cair os outros ritos da ceia pascaljudaica, agora sem interesse, visto que o Cordeiro pascal desta nova Ceia da nova Aliançaé agora o Corpo e o Sangue do Senhor, sob as aparências do pão e do vinho consagrados.Daí que a oração de acção de graças, a «bênção», seja, na Missa, uma só sobre o pão e ovinho, a oração eucarística, e que o tomar o pão e o cálice se tenham reunido tambémnum único rito inicial, que veio a ser a apresentação dos dons, o «ofertório».

Vou passar a analisar, ainda que rapidamente, os dois primeiros tempos da cele-bração eucarística, isto é, a apresentação dos dons e a oração eucarística.

I - A APRESENTAÇÃO DOS DONS

Nome e significação

O nome de «ofertório», que tem estado em uso nos últimos tempos, é termo umtanto equívoco para este momento, que é ainda só um momento de preparação, todoorientado para o que virá a seguir, e que será o verdadeiro momento da oblação ou doofertório. De facto, a partir de tempos já recuados, a liturgia, para além do que é essen-cial à estrutura de cada celebração, começou a admitir elementos vários, de ordem se-cundária, por vezes mesmo paralelos e até estranhos àquela estrutura, e que nem sempreforam muito bons intérpretes do sentido genuíno da celebração em que apareceram. Umdos casos mais significativos foi precisamente o desta parte da Missa. Apesar de simpli-ficado aquando da reforma litúrgica que se seguiu ao Concílio de Trento (o Missal refor-mado a seguir ao Concílio é de 1570), o «ofertório», tal como nós o conhecemos até1969, ano em que foi publicado o Ordinário da Missa do Missal reformado a seguir aoConcílio Vaticano II, era uma como que antecipação precipitada da celebração eucarística.Recordemos as antigas orações, como: «Recebei, Pai Santo, esta hóstia imaculada»,«Nós Vos oferecemos, Senhor, o cálice da salvação», «Recebei, Trindade Santíssima,esta oblação», que antecipavam o que depois seria repetido no Cânon. Houve quem lhechegasse a chamar «o pequeno Cânon».

Paralelamente a estas fórmulas, a espiritualidade que delas nasceu (e isso não foisem interesse como sinal da ligação entre a espiritualidade e a liturgia!) centrou tambémnesta altura da Missa um dos momentos máximos da participação activa, enquanto fezdele o momento principal para expressar o seu desejo de «oferecer» e de «oferecer-se».A «oração eucarística» que vem a seguir é que é a oração ofertorial por excelência,como lá expressamente se diz: «Celebrando agora, Senhor, o memorial da morte e res-surreição de vosso Filho, nós Vos oferecemos...». Mas tal não se podia ouvir, porque oCânon era dito em silêncio e em latim, e tinha-se a impressão que o momento de partici-pação para os fiéis já tinha passado (no ofertório) ou ainda não tinha chegado (na comu-nhão) e que aquele era só para o sacerdote!

Page 53: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSA 53

Os cânticos chamados de ofertório, e até «coros falados», «cortejos de ofertório»e outras formas expressivas de participação oblativa fizeram deste momento quase queum rito autónomo e como que um pequeno sacrifício pré-eucarístico.

Na realidade, se a intenção foi boa, já assim não o foi a sua realização. O «ofer-tório» é acima de tudo a apresentação dos dons sobre os quais a «oração eucarística»renovará o sacrifício do Senhor, a Ceia do Senhor, que há-de ser depois participada nacomunhão. Por isso, o nosso Missal, sem abandonar totalmente o nome de «ofertório»,chama a este primeiro tempo da celebração da Eucaristia a preparação das oferendas.

A densidade espiritual que o passado lhe atribuiu não é de deitar fora. Diria queela é antes digna de ser prolongada por toda a oração eucarística, porque o ofertório,sendo tempo de preparação, está já carregado de toda a densidade espiritual de que há-deestar o tempo da oração eucarística e da comunhão. Ao ofertório prepara-se o altar,preparam-se os dons, e preparam-se as pessoas.

Quanto às expressões rituais a utilizar, é preciso adaptá-las ao momento, não em-polgando desmesuradamente os ritos, não antecipando atitudes, não desfazendo o essencial.O rito foi muito simplificado e a nova estrutura é guia seguro para a sua celebração.

O silêncio da assembleia ou um fundo musical repousante, o estar sentado emexpectativa podem favorecer o repouso espiritual e a concentração que preparam a en-trada, com toda a densidade e calor, na solene proclamação da «oração eucarística».

Evolução do rito da apresentação dos dons

Tomar o pão e o vinho e a água para a celebração da Eucaristia é, primariamente,um gesto utilitário. São trazidos, porque são necessários; sem eles não se pode fazer aCeia do Senhor. Daí que S. Justino († c. 165), o primeiro a descrever-nos o rito da cele-bração eucarística, diga simplesmente: «Em seguida, quando acabámos de orar (a oraçãodos fiéis), apresenta-se pão e vinho e água, e o que preside eleva orações e acções degraças...». Tudo se reduz a «apresentar ao que preside» os dons para a celebração, comoele se exprime noutra passagem paralela. De facto, no século II, o rito que, muito maistarde, chegou a ter o nome de «ofertório» reduzia-se a apresentar os dons ao que presideem ordem a ele pronunciar sobre eles a oração eucarística e depois os distribuir emcomunhão. E aliás esta é a estrutura ritual essencial de toda a celebração da Eucaristia.

Cerca de oitenta anos depois, S. Hipólito († 235) já se refere a este momento dacelebração nestes termos: «Os diáconos apresentam-lhe (ao bispo) a oblação e este,impondo sobre ela as mãos, juntamente com todo o presbitério, diz, dando graças...».E segue a oração eucarística.

Os dons são já apresentados pelos diáconos e são chamados oblação, termo quetem já uma cor nitidamente sacral; mas não parece que esta «apresentação da oblação»seja tida já como um rito, como uma acção ritual.

Simultaneamente existe o hábito de trazer, por ocasião da celebração, dons comque depois se possam «socorrer todos os que se encontram em necessidade», comoescreve ainda o mesmo S. Justino. Mas isso não está ligado com o «ofertório» em ordemao rito da Eucaristia.

Page 54: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

54 PADRE JOSÉ FERREIRA

Todavia, S. Cipriano († 258), bispo de Cartago, testemunha já do costume de osfiéis trazerem os dons para a celebração da Eucaristia e chama-lhes «sacrifício», porquesão coisas destinadas ao Sacrifício do Senhor.

Mais tarde encontramos, bem estabelecido, o costume de fazer da apresentaçãodos dons um rito litúrgico, que, a seu modo, signifique o destino desses dons – aEucaristia – e disponha os fiéis para a celebração da mesma. O rito desenvolveu-se, porvezes, de maneira excessiva, como vimos; hoje tentou-se a sua simplificação, sobretudoprocurou-se que ele, por um lado, não antecipasse indevidamente o que vai ser expressona oração eucarística, por outro, que ele colocasse desde já a assembleia na perspectivae quase no clima eucarístico daquela oração. Não é o que se exprime já nas pequenas«bênçãos» uma sobre o pão, outra sobre o vinho: «Bendito sejais, Senhor, pelo pão quenos dais..., pelo vinho que nos dais...»?

Estrutura do rito

Apesar da simplicidade da sua significação, o rito pode parecer ainda um tantocomplexo. Podemos agrupar assim os seus elementos: (entre parêntesis indicam-se osnúmeros da Introdução Geral do Missal Romano (IGMR) que a eles se referem):

1. Preparação do altar: colocação do corporal, do cálice e da patena, dosanguíneo e do missal sobre o altar (100).

2. Recolha dos dons e outras ofertas dos fiéis e aceitação dos mesmos pelosacerdote e ministros, possivelmente acompanhada de um cântico (100 e 101).

3. Deposição do pão e do vinho com água sobre o altar acompanhada dosrespectivos formulários (102-104 e 105).

4. Incensação das oblatas, do altar, do sacerdote e do povo (105), (semprepossível, nunca obrigatória: 235).

5. «Lavabo» (106).6. Oração sobre as oblatas, introduzida pelo invitatório: «Orai, irmãos» (107).Todo este conjunto se pode ainda reduzir a dois elementos principais, que

determinam aliás a linha estrutural do rito do ofertório:– a deposição dos dons sobre o altar;– a oração presidencial sobre as oblatas que a conclui.Rito de preparação, o ofertório deveria ser o momento imediatamente preparató-

rio para a densidade espiritual da oração eucarística.

II - A ORAÇÃO EUCARÍSTICANa última Ceia, Jesus deu graças, quer dizer, proclamou a grande bênção ou euca-

ristia, no sentido de oração de louvor e acção de graças.Na Missa, corresponde-lhe hoje a Oração Eucarística, (a que até há pouco se

chamou Cânon, quando era uma só), e a que também se dá o nome de anáfora, por que édesignada entre os cristãos dos ritos orientais.

Page 55: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSA 55

O nome e a significação

Já ficou explicado que «eucaristia» significa, primariamente, oração de louvor eacção de graças; só depois, mas consequentemente, se aplicou ao mistério que nessaoração é celebrado, o mistério eucarístico, a Eucaristia. As duas significações aparecemjá em S. Justino, cerca do ano 150: «O que preside fez uma longa eucaristia... Quandoele termina... a eucaristia, todo o povo presente diz a aclamação: «Amen»... Estealimento [o pão e o vinho consagrados pela eucaristia] chama-se entre nós Eucaristia».(Apol. I 65-66). A oração chamada «eucaristia» é uma oração na qual se faz a evocaçãodas maravilhas de Deus, e em particular da maior de todas elas, a que dá sentido a todasas demais, a morte e a ressurreição do Senhor, a Páscoa de Jesus, e na qual se dão graçasa Deus por essas maravilhas, actualizando-as para nós, hoje, para que também nós possa-mos participar na sua Páscoa.

Esta parte central de toda a celebração eucarística é, antes de mais, uma oração.Tudo se passa em oração. É uma oração que parte da contemplação das maravilhas deDeus ao longo da história da salvação. A evocação dessa história de salvação faz-selogo, em parte, no início, no que chamamos o prefácio. Aí se evoca, em cada dia, um ououtro aspecto da história da salvação: no Natal, o nascimento; na Epifania, a mani-festação; no tempo da paixão, a paixão e morte; na Páscoa, a morte e ressurreição, eassim por diante. O ideal seria fazer sempre a evocação de toda a história da salvação,mas tal não é possível em cada dia; por isso, nos limitamos a um ou outro aspecto, emconsonância com o dia ou o tempo litúrgico. Na actual Oração Eucarística II apenas sefaz referência à história de Jesus Cristo; já na Oração Eucarística IV há uma longa refe-rência à história desde o princípio até à vinda do Espírito Santo. Mas há um momentodessa história que nunca pode ser omitido: é a Páscoa do Senhor, a sua morte eressurreição, e, naturalmente, o momento em que o Senhor instituiu a Eucaristia comosacramento que havia de perpetuar a memória dessa morte e ressurreição.

A oração eucarística é uma oração, mas oração de louvor e acção de graças,justamente porque o reconhecimento que fazemos, na fé, da Páscoa do Senhor no-laapresentam como mistério de libertação, de salvação, de modo que não o podemosevocar e celebrar senão dando graças ao Pai que nos salvou por seu Filho. Logo desde oinício fica bem clara esta perspectiva da oração eucarística. O último invitatório que opresidente dirige a toda a assembleia anuncia sem rodeios: «Demos graças ao Senhornosso Deus». E depois da resposta do povo, que manifesta a comunhão no mesmosentimento, a grande oração, retomando a deixa da aclamação da assembleia, começaafirmando claramente o seu carácter de acção de graças: «É nosso dever, é nossasalvação dar-Vos graças, Senhor...».

O coração da celebração eucarística

A oração eucarística é o coração de toda a celebração que nela encontra também oseu ponto culminante. De facto, o que na liturgia da Palavra foi anunciada nas leituras,no salmo, na homilia, na profissão de fé, na oração universal, é agora proclamado emlouvor e acção de graças. Deus falou-nos, em revelação; agora nós respondemos emoração. O mistério até aqui anunciado na Palavra é agora representado no rito, que, por

Page 56: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

56 PADRE JOSÉ FERREIRA

sua vez, vai ser também acção que se faz e palavra que o diz; e essa palavra é a oraçãoeucarística sobre a mesa da Ceia do Senhor, a verdadeira bênção da mesa, e mesa que éaltar.

Nada deveria ser mais consciencializado do que esta oração, quer por parte dopresidente, quer por parte de toda a assembleia. Como na aparição de Jesus ressuscitadoaos discípulos de Emaús, até este momento a Palavra deverá ter aquecido os corações, eesse calor terá de encontrar a sua expressão mais quente nesta oração (e na comunhãoque se lhe segue) e aí reconhecer plenamente o Senhor, como eles O reconheceram nafracção do pão.

O clima espiritual da oração eucarística é o de contemplação, de serenidade,de quem reconhece e agradece o dom inefável do Pai em seu Filho no Espírito. Todae qualquer forma de participação que pretenda ser activa por outros meios que não sejamos que levam a este ambiente espiritual, tal como ele se manifesta no texto da oraçãoeucarística e no modo de o proclamar, será... uma piedosa distracção (!), mas nãoparticipação activa. Isto deve pensar-se sobretudo em relação às aclamações dos fiéis,particularmente a do «Santo».

Oração presidencial

É uma das principais funções do sacerdote presidente da celebração (bispo oupresbítero) formular a oração. Até este momento, têm sido vários os intervenientes naacção litúrgica: leitores, cantores, acólitos. Agora, como aliás sempre que a oração deveser formulada em nome de toda a assembleia, é o presidente que a formula. Ele é no meioda assembleia o sinal de Cristo como Cabeça da Igreja; assim ele é a cabeça da assem-bleia litúrgica, que é, por sua vez, o sinal local da Igreja dispersa por toda a Terra. Aoração eucarística é oração de toda a assembleia, mas que a proclama pela boca do seupresidente; é oração da Igreja proclamada pela boca de Cristo, sua Cabeça e Sacerdote.

Até aqui, a celebração como que veio de fora para dentro, da periferia para ointerior; agora ela atinge o coração, o centro e o vértice. Por isso, como Jesus na últimaCeia foi quem pronunciou a grande bênção pascal, assim agora na Eucaristia da Igreja,ela é pronunciada por aquele, que no meio da Igreja, é o sinal de Cristo, como sua Cabeça.

Os próprios concelebrantes que circundam o altar a escutam em silêncio, sen-tindo-se a proclamá-la pela boca daquele que preside. Só juntarão a sua voz na partecentral, certamente por uma exigência mais canónica de que teológica, em virtude daaquisição dos últimos séculos e que a Igreja mantém; por isso, exigência que exige,indiscutivelmente.

Daí que é coisa sem sentido atribuir a outros que não ao presidente (ou aosconcelebrantes na parte que lhes toca, como fica dito) o todo ou alguma parte da oraçãoeucarística, além, é evidente, das aclamações, de que falaremos em seguida.

Oração de toda a assembleia

O facto de ser proclamada pelo presidente não faz com que a oração eucarísticadeixe de ser oração de toda a assembleia. Pelo contrário; é justamente por ser de toda aassembleia que ela é proclamada pelo seu presidente.

Page 57: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSA 57

E é assim pela própria natureza dessa oração: ela é a resposta da Igreja, em louvore acção de graças, ao Pai pelo dom da salvação em seu Filho.

O silêncio da assembleia durante a oração eucarística não é passividade; há-de serantes comunhão de espírito e de coração que se diz pela boca daquele que lhe preside elhe foi dado como ministro dos mistérios de Deus. A própria atitude exterior da assem-bleia pretende significar a união com o celebrante durante toda a oração.

Mas a assembleia também se manifesta para exprimir essa união interior com osacerdote e a sua participação activa na oração que ele vai proferindo. A maneira normal(e mais eficaz) de a assembleia manifestar a sua participação na oração presidencial sãoas aclamações. Dá-se o nome genérico de aclamações às diversas fórmulas, geralmentebreves e incisivas, por vezes mais contemplativas, consoante os casos, com que a assem-bleia interfere nos formulários do presidente ou dos ministros.

Na oração eucarística, pelo menos por quatro vezes, a assembleia faz ouvir assuas aclamações: no diálogo inicial, antes do prefácio; no fim do prefácio, com o«Santo»; depois da Consagração, com a chamada aclamação da anamnese; e no fim,com o «Amen» conclusivo de toda a oração eucarística.

O primeiro grupo de aclamações, porque são três neste momento, o diálogoinicial no princípio da oração, pretende pôr toda a assembleia consciente daquilo que vaifazer, «dar graças ao Senhor nosso Deus», como se dissesse: proclamar a eucaristia delouvor, renovando, na Ceia do Senhor, o mistério da sua Páscoa, para nele poderparticipar aqui e agora.

A segunda aclamação é o Santo. O «Santo» é a continuação, quanto ao pensa-mento e até quanto à forma literária, do hino que é o prefácio. O «Santo» não é uma peçaque se apõe ou se sobrepõe à oração eucarística; «esta aclamação constitui parte daprópria oração eucarística» (IGMR 55 b), e deve, por isso mesmo, «ser proferidapor todo o povo juntamente com o sacerdote» (ib.). «É a conclusão do prefácio»(Ord. Miss. 27). O texto é nada menos do que a célebre aclamação do Livro de Isaías(Is. 6, 3), depois retomada no Apocalipse (Ap 4, 8), usada na oração cristã desde tempostão antigos, e não se vê muito bem que ela possa facilmente ser substituída por qualqueroutra coisa, mesmo parecida!

Quanto à melodia do «Santo», a melhor é aquela que melhor prolongue oambiente do prefácio e melhor proporcione a continuação, depois, da mesma oraçãoeucarística. Mas as saudades são tão portuguesas, que, apesar de todas as reformaslitúrgicas, não podemos esquecer os tempos em que o Sanctus era uma peça musicalextra, e tão extra que passava por cima da oração eucarística, a ponto de o seu últimoversículo, o Benedictus, ir cair para lá da consagração! Muitos dos actuais «Santo»,embora a outros títulos, não serão muito melhores. Às vezes, aparecem ali, entre oprefácio e o que segue, como Pilatos no Credo!

Outro momento de intervenção da assembleia é a aclamação da anamnese, aquelaque se segue à narração da Ceia e consagração. «Anamnese» quer dizer «lembrança»,«memória». Dá-se este nome à parte da oração eucarística que, nas palavras do sacerdote,se segue imediatamente à narração da Ceia e que começa: «Celebrando agora, Senhor, omemorial...». Esta parte da oração eucarística faz eco ao mandato do Senhor, referidoimediatamente antes: «Fazei isto em memória de Mim». A Eucaristia é a celebração do

Page 58: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

58 PADRE JOSÉ FERREIRA

memorial da morte e ressurreição de Jesus, como Ele mandou. O celebrante di-loclaramente, em oração, na parte citada. A assembleia proclama-o, em aclamação:«Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição».

Esta aclamação é muito importante, porque, por meio dela, a assembleia tomaconsciência do mistério que está a celebrar e proclama-o de forma muito directa, quasecom as mesmas palavras com que o sacerdote o vai proclamar na parte da oração quesegue.

A aclamação dos fiéis é introduzida pela exclamação do celebrante: «Mistério dafé!», que não pretende significar, de maneira directa, a presença real do Senhor sobre oaltar, mas, mais do que isso, que o que estamos a celebrar é o «mistério da fé», a saber, omistério pascal da morte e ressurreição do Senhor. É isto que o povo proclama na acla-mação. É, por isso, interpretação errada introduzir gestos ou atitudes que pretendaminduzir, neste momento, à adoração do Senhor, como seja o erguer a patena e o cálice, oabrir dos braços apontando para o altar, enquanto se diz aquela exclamação. A adoraçãoacabou de ser feita imediatamente antes, logo a seguir à elevação.

A última aclamação da oração eucarística é o «Amen» final. Este «Amen» aparecejá referido no texto de S. Justino, atrás citado; é até a única palavra que ele cita aoreferir-se à oração eucarística. «Amen» é aclamação de origem bíblica, que significa oacordo, a adesão total da assembleia à oração que acaba de ser proclamada. S. Agostinhodiria que ele é a assinatura do povo cristão no fim da grande eucaristia. É o «sim» deCristo à glória do Pai, ressoando na boca da Igreja, na boca, porque no coração, do povode Deus. S. Paulo escreve: «Todas as promessas de Deus têm em Cristo o seu «Sim»; étambém por Cristo que nós dizemos o nosso «Amen» à glória de Deus» (2 Cor 1, 20). Eo Apocalipse: «Assim fala o Amen, a Testemunha fiel e verdadeira, o Príncipe das obrasde Deus» (Ap 3, 14), referindo-se a Cristo. É conhecida a referência de S. Jerónimo ao«Amen» do povo que enchia todo o templo.

Já quando o Cânon era em silêncio, o celebrante levantava a voz no fim do «Peripsum», para que o povo pudesse responder o «Amen», como aliás acontecia sempre queas orações eram ditas em silêncio. Os Gregos seguem o mesmo critério.

A solução hoje frequentemente utilizada nalguns lugares de fazer dizer a toda aassembleia a doxologia final da oração eucarística: «Por Cristo,...» é um erro, que nãotem justificação, nem na estrutura da oração, isto é, não cabe na função dessa parte noconjunto de toda a anáfora, nem na origem desse elemento, nem na tradição litúrgica quenunca assim fez.

A doxologia, como se chama essa parte última da oração eucarística, é a fórmulaque tradicionalmente retoma, antes de concluir as orações deste tipo, o sentido laudativoda mesma, como que resumindo e concluindo, e a que o povo responde com a aclamaçãofinal. Mas a doxologia faz ainda parte do corpo da oração presidencial. Estou em suporque o costume, recente, de a atribuir a toda a assembleia partiu do desejo de lhe pôr naboca uma aclamação mais aclamativa que o breve «Amen», habitualmente pouco sonoro.A solução está em encontrar forma expressiva para o «Amen». Algumas tentativasactuais têm-no conseguido com bastante felicidade. Seria questão para imaginar comoterá sido o «Amen» do tempo de S. Jerónimo!

Page 59: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSA 59

Ainda quanto às aclamações, lembro que as novas orações eucarísticas para asMissas com crianças contêm várias outras aclamações adaptadas às crianças, para asajudar a penetrar no sentido das mesmas; mas estão sempre nelas bem integradas, semlhes perturbar a estrutura nem desviar a atenção do seu sentido fundamental?

Estrutura da oração eucarística

A propósito dos vários aspectos da oração eucarística e de problemas a elaligados, já se disse alguma coisa sobre a estrutura da mesma. Por isso, limitar-me-ei aoesquema da mesma e a breves comentários, julgados mais oportunos.

Apesar de a oração eucarística ser uma peça una, podem distinguir-se nela várioselementos.

a) Prefácio.

O sentido fundamental de oração de acção de graças a partir da contemplação dasmaravilhas de Deus na história da salvação é apresentado sobretudo, e logo desde oinício, no prefácio. Ele é, como disse, um verdadeiro hino ao Pai pelo Filho, unindo numsó louvor a voz da Igreja da Terra e do Céu. Não se trata de retórica ou de poesia de fácilinspiração, mas de uma verdade fundamental: Cristo é o Mediador universal, por quemDeus realiza a reconciliação de todas as coisas, tanto as da Terra, como as do Céu peloSangue de Jesus, cujo mistério vamos renovar (Col 1, 20). É este o desígnio de Deusrealizado em Cristo de uma vez para sempre. No prefácio, em cada dia se evoca umaspecto particular desse desígnio ou mistério de Deus manifestado em Cristo. Por isso, oprefácio é uma peça móvel dentro do conjunto da oração eucarística. Hoje são já paracima de cento e vinte prefácios, alguns muitos belos e cheios de riqueza espiritual.O encontro de todos eles daria a súmula do mistério da salvação.

Dada a sua natureza hímnica, o prefácio admite muito bem a expressão cantada,numa cantilação que será a forma de o proclamar de maneira mais vibrante e entusiasmadae mais contemplativa. Será necessário lembrar que as partes cantadas mais importantessão as que pertencem ao sacerdote (e aos ministros), e não primariamente ao coro oumesmo aos fiéis? A Missa não é um concerto, mas uma celebração! E a música antes deser um adorno é uma expressão dos textos litúrgicos; para os mais importantes, a maisimportante.

b) Santo.

A aclamação «Santo» já foi apresentada mais acima; mas convém insistir na arti-culação absoluta entre o «Santo» e o prefácio, que ele continua e de que é parte. Isto temincidência nas formas musicais respectivas e na sua execução.

c) Depois do «Santo».

Para fazer a passagem entre o «Santo» e a parte que se lhe segue, a epiclese,aparece sempre uma peça de transição que os antigos chamavam simplesmente «Depoisdo Santo» ou o «Vere sanctus», porque começava por estas palavras. A epiclese, comovamos ver, é uma invocação ao Espírito Santo para que santifique os dons presentes no

Page 60: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

60 PADRE JOSÉ FERREIRA

altar. Acabámos de proclamar que Deus é Santo. A partir da ideia de santidade, estabele-ce-se a articulação lógica: «Santo, santo, santo... . Vós sois verdadeiramente santo...»;«Santificai estes dons...». A sequência é perfeita e cheia de beleza; ao mesmo tempo quefornece ponto de partida para uma espiritualidade cristã e base para uma catequese sobrea Eucaristia.

Algumas liturgias usam um texto semelhante ao que o latim ainda usa: «Pleni suntcaeli et terra», e ao que nós já usámos, e fazem então a passagem do Santo à epiclese pormeio da palavra cheio, que se encontra no «Santo»: «O céu e a terra estão cheios davossa glória. Enchei, Senhor», este altar...

Esta peça de transição é normalmente muito breve; mas, na Oração Eucarística IV,atinge uma dimensão desusada. Mas então ela já não é uma peça de simples transição,mas verdadeira evocação da história da salvação. No entanto, ela vai conduzir final-mente também à acção de Espírito Santo na celebração da Eucaristia.

d) Epiclese (da consagração).

A palavra significa «invocação». É a parte da oração eucarística na qual se invoca«o poder divino, para que os dons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto é, setornem o Corpo e o Sangue de Cristo; e para que a hóstia imaculada, que vai ser recebidana Comunhão, opere a salvação daqueles que dela vão participar» (IGMR 55c). A epi-clese é normalmente dirigida ao Espírito Santo. Esta invocação não existia, ao menos deforma tão expressa como agora existe, até ao aparecimento das novas anáforas em 1968.A epiclese é a proclamação de que o fruto da acção sacerdotal realizado na consagraçãoe depois participado pela comunhão é obra do Espírito de Deus, e não provém de qual-quer outra origem, e que o «poder» sacerdotal é «graça» do poder de Deus.

A epiclese está repartida por dois momentos, um antes da narração da Ceia – é aepiclese de consagração –, outro depois – é a epiclese de comunhão –. Durante a primeira,o presidente, e todos os concelebrantes, estendem as mãos sobre o pão e o cálice, emgesto de invocação sobre os dons destinados à renovação da Ceia do Senhor. No Cânonromano (Oração Eucarística I), à epiclese de comunhão está previsto que o celebrante adiga, inclinado diante do altar. Como entre os Orientais.

e) Narração da instituição e consagração.

É o coração da oração eucarística; aí se evoca e se renova o essencial da Ceia doSenhor, e se torna tão denso o sinal do sacrifício pascal do Senhor, que o pão e o vinhopassam a ser o seu Corpo e o seu Sangue. Assim se renova, no meio da assembleia, sob ossinais do pão e do vinho, o sacrifício da Nova Aliança.

É a força das palavras do Senhor, por Ele pronunciadas no momento da instituiçãodeste sacramento na última Ceia, e agora retomadas pelo sacerdote, que realizam aconsagração e são para nós testemunho desse mistério. S. Justino diz, escrevendo, nolugar citado, para os pagãos do seu tempo: «Assim como, pelo poder do Verbo de Deus,Jesus Cristo nosso Salvador tomou carne e sangue para nossa salvação, assim o alimentoconsagrado pelas palavras da oração que vêm d’Ele, alimento de que se hão-de alimentaro nosso sangue e a nossa carne, para os transformar, é a Carne e o Sangue de Jesus

Page 61: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSA 61

encarnado. Assim nos foi ensinado» (Apol 1, 66). Presença real do Senhor Jesus sob asespécies do pão e do vinho consagrados, em ordem à renovação no meio de nós, por nóse para nós do mistério da sua Páscoa redentora!

Um gesto de adoração sublinha este momento central da oração eucarística; masnão há-de interromper a densidade e a interiorização da mesma.

f) Aclamação

A oração eucarística que se eleva, do princípio ao fim, como oração dirigida aoPai por Jesus Cristo é agora como que suspensa, não interrompida, por um momento paradeixar lugar a uma aclamação da assembleia. É a aclamação da anamnese. Com ela, aassembleia exprime a sua fé no mistério da Eucaristia, reconhecendo e proclamando neleo «mistério da fé», o mistério da morte e ressurreição do Senhor, o mistério da sua enossa Páscoa.

A aclamação é como que provocada pela exclamação do próprio presidente:«Mistério da fé».

É de notar que, enquanto a oração eucarística é, toda ela, dirigida ao Pai por JesusCristo, esta aclamação do povo é dirigida a Jesus Cristo, o que faz que ela não seja parteda Oração Eucarística (como o é o «Santo»). De facto, esta aclamação é uma aclamaçãolateral à oração eucarística, própria de quem, tomando consciência do que diante de seusolhos está sendo celebrado e em que se sabe participante, não pode deixar de irromperem aclamação: «Anunciamos, Senhor (Jesus), a vossa morte, proclamamos a vossa res-surreição!» A palavra final: «Vinde, Senhor Jesus»! é uma tradução adaptada do textooriginal, proveniente de S. Paulo, onde ele aparece em continuidade com o anterior,assim: «Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição até àvossa vinda», isto é, até ao fim dos tempos, quando de novo vireis. É que a Eucaristia édeste tempo da Igreja, na expectativa do «mundo que há de vir»!

Duas observações derivadas do que fica dito: – 1) O «Vinde, Senhor Jesus»! nãotem, portanto, nada a ver com qualquer coisa como uma invocação ao Senhor para quevenha tornar-Se presente na Eucaristia. Aliás já lá está. A perspectiva é toda escatológica,como acabou de explicar-se; – 2). Os concelebrantes não devem dizer esta aclamação,visto que ela não é parte da anáfora, mas uma aclamação dos que não estão a dizê-la, masa escutá-la, o povo. Além disso, não teria sentido passar da oração, dirigida ao Pai,à aclamação, dirigida ao Filho, e voltar de novo à oração ao Pai. E ainda, e não será arazão menos evidente, o que a assembleia diz aqui em aclamação é precisamente o que opresidente e os concelebrantes vão dizer imediatamente a seguir em oração, ao prosse-guirem a anáfora: «Celebrando agora, Senhor (o Pai), o memorial da morte e ressurrei-ção de vosso Filho,...». Pela mesma razão, nas concelebrações sem presença de fiéisalém dos concelebrantes, a aclamação deve igualmente ser omitida, bem como a excla-mação do presidente que a introduziria.

Como todas as aclamações, também esta deveria ser frequentemente cantada. Hámelodia, e oficial, para ela (como para tudo o que na anáfora poderá ser cantado). Estáno próprio Missal.

Page 62: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

62 PADRE JOSÉ FERREIRA

g) Anamnese

Já acima foi explicado que «anamnese» quer dizer «lembrança», «memória».De maneira genérica, pode chamar-se anamnese à primeira parte de grande número deorações em que se faz a evocação das maravilhas de Deus, antes de passar à invocaçãoou súplica. Mas, no sentido mais restrito, «anamnese» é o nome que se dá à parte daoração eucarística que se segue à consagração, depois da aclamação de que se acabou defalar. Jesus acrescentou às palavras da instituição: «Fazei isto em memória de Mim».Neste momento, a Igreja confessa, em oração ao Pai, que, o que ela está fazendo aocelebrar a Eucaristia, é precisamente dar cumprimento ao mandato do Senhor, fazendo«aquilo», a renovação da Ceia, como «memorial» d’Ele. «Memorial» é uma acção sim-bólica que evoca e torna presente, real mas simbolicamente, uma outra realidade, nãoimediatamente acessível, para nela podermos participar. No caso da celebração da Euca-ristia, ela é o «memorial», a evocação e a presença, da Páscoa do Senhor, da sua morte eressurreição, do seu sacrifício redentor. «Memorial» não é apenas «recordação»,«evocação», mas presença, embora de maneira simbólica, isto é, através de um sinal;o que não quer dizer que seja por isso menos real. E esta celebração do memorial é emordem à participação da assembleia que o celebra. Por isso, a anáfora continua:«Celebrando o memorial..., nós Vos oferecemos...» Celebra-se o memorial para que,celebrando-o, ofereçamos o sacrifício do Senhor. Celebrá-lo é oferecê-lo, e para o ofe-recermos só celebrando-o. Tal é a unidade que liga Cristo à sua Igreja que ela não temoutro sacrifício para oferecer senão o que o seu Senhor, Jesus Cristo, lhe entregou paraque ela o celebrasse.

Celebrando o memorial, que é a Eucaristia, a Igreja faz seu o sacrifício de Cristo.É Ele a sua vítima, o seu dom para ela oferecer ao Pai o preço da sua redenção; mas,oferecendo-O («oferecemos este sacrifício santo, esta hóstia imaculada»), ela oferece-sea si mesma n’Ele e com Ele. Cristo é inseparável da sua Igreja e a Igreja é inseparável deJesus Cristo. Se a Igreja renova, hoje, o memorial do Senhor é justamente para que elapossa, hoje, passar deste mundo para o Pai, entrar hoje na Páscoa de Cristo, para seencontrar com o Pai.

A anamnese faz necessariamente referência à morte e à ressurreição do Senhor, e,por vezes, alarga esta referência a outros aspectos do mistério pascal, como a Ascensãoe a última vinda.

Esta parte é indispensável à oração eucarística, pois é nela que a Igreja afirma asua participação no sacrifício do Senhor.

h) Epiclese (da comunhão)

Já acima se apresentou esta segunda parte da epiclese que se orienta para a comu-nhão. Com ela termina a parte considerada central da anáfora; por isso os concelebrantesintervêm até este momento.

A Oração Eucarística I tem estrutura um pouco especial. Nela, o equivalente aesta parte da epiclese é a terceira oração depois da consagração: «Humildemente Vossuplicamos...».

Page 63: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA EUCARÍSTICA DA MISSA 63

Pelo contrário, na Oração Eucarística III, a terceira parte já não é epiclese, masinício das intercessões. Por vezes origina-se certa confusão por ela começar com umareferência ao Espírito Santo, aparentemente na continuação da epiclese imediatamenteanterior: «O Espírito Santo faça de nós uma oferenda permanente...». Mas, de facto, estaparte já não pertence à epiclese.

i) Intercessões

Chama-se «intercessões» à última parte da anáfora, em que se faz a evocação dosdiversos sectores da Igreja. As «intercessões» não são nem uma repetição da oração dosfiéis, nem o seu prolongamento; são um modo de evocar e significar a unidade da Igreja,de que a celebração da Eucaristia é o sacramento por excelência. As «intercessões» nãosão tanto para rezar por, como para rezar em união com. É isto mesmo que o textofrequentemente diz: «Lembrai-Vos, Senhor, da vossa Igreja..., e em comunhão com oPapa, o nosso bispo,...»; «Confirmai a vossa Igreja na fé e na caridade,... com o vossoservo o Papa...».

É esta a razão por que sempre se nomeia o Papa, sinal visível da unidadeuniversal, e o Bispo do lugar, sinal local da comunhão de fé de todas as assembleiasque se reúnem dentro de cada diocese, sejam elas quais forem e provenham elas dondeprovieram. É por isso anormal ou omitir o nome do Bispo do lugar onde se celebra,por não ser o nosso Bispo, ou referir-se, de maneira geral, aos «nossos Bispos». OEpiscopado universal ou «todo o Colégio episcopal» torna-se presente e visível em cadalugar por meio do Bispo de cada lugar. A liturgia é expressão viva da situação concretada Igreja. Ela não pretende fazer teologia, mas é lugar teológico da melhor raiz; é aoração da Igreja, como ela se reconhece à luz da revelação de Deus!

A referência a «todos aqueles que estão ao serviço do vosso povo», (o texto latinodiz: «universo clero») não é clericalismo, mas prolongamento do ministério da Igreja,que está no Bispo em plenitude.

Convém não alargar a referência aos defuntos, até para não fomentar nas pessoasa ideia de que a Missa é sobretudo oração pelos mortos. A referência aos «que partiramdeste mundo» é ainda maneira de estender a unidade da Igreja aos que, sendo embora osque «partiram deste mundo», partiram «marcados com o sinal da fé», que é o Baptismo,e são, por isso, da mesma Igreja una, desta Igreja que se encontra sempre toda no sinal daunidade que é a Eucaristia.

É pela mesma razão que se evocam os Santos do céu: são a Igreja já no céu,membros da mesma comunhão com o Pai, por Cristo, como nós agora ao celebrarmos aEucaristia.

Todos os demais a que se faz referência entram, na mesma perspectiva de comu-nhão, na unidade, que a Eucaristia significa.

j) Doxologia

«Doxologia» quer dizer «palavra de louvor», de «glorificação». Como já ficoudito, a doxologia é o remate da oração eucarística; por isso, ela retoma a ideia central da

Page 64: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

64 PADRE JOSÉ FERREIRA

mesma, que é o louvor e acção de graças. E, depois das «intercessões», é até oportunoretomar o sentido «eucarístico» de toda a oração.

A doxologia é parte do corpo da oração eucarística; é, portanto, ainda oraçãopresidencial e não deve ser atribuída ao povo.

A expressão trinitária atinge aqui rara beleza, e nela fica bem acentuada a media-ção sacerdotal de Cristo, assim como o lugar de Cabeça do Corpo da Igreja, em quem epor quem ela rende ao Pai, no Espírito Santo, toda a honra e toda a glória.

O gesto de elevar a patena e o cálice com o Corpo e o Sangue do Senhor sublinha,de maneira bem expressiva, o sentido oblativo da celebração eucarística; não é, por isso,gesto de ostensão, nem uma segunda elevação.

l) Aclamação

A aclamação «Amen» está aqui no lugar que lhe é mais próprio em toda a liturgia.Com ela, o povo ratifica e conclui a oração eucarística (IGMR 55 h). Mas, do «Amen», edeste em particular, já se disse bastante, ao falar-se das aclamações da assembleia.

Page 65: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MINISTÉRIOS NA LITURGIA

Não vai longe o tempo, em que um padre, quando queria celebrar Missa, entreoutras circunstâncias de que tinha de se rodear, era a de um ajudante. Desde quehouvesse um padre e um ajudante, existia a «assembleia» mínima indispensável para sepoder celebrar Missa. Mas falar de «assembleia» em tais circunstâncias era comprometerdemasiado as palavras; na realidade não se tratava de assembleia. Por isso, tambémnão seria fácil descobrir, em tais circunstâncias, o sentido de ministérios ou serviçoslitúrgicos, nem notar consequentemente a falta de quem os desempenhasse. Estava-seentão, quando muito, numa assembleia-limite, reduzida à sua expressão mais simples,incapaz de nos fornecer a imagem de uma assembleia autêntica, na qual pudessemaparecer várias funções, desempenhadas pelos respectivos ministros.

Tal situação deseducou-nos, antes ainda de termos sido educados, quanto aosentido, à estruturação e ao funcionamento de uma assembleia litúrgica normal. Por isso,hoje temos necessidade de procurar descobrir, antes de mais, a assembleia litúrgica, asua significação, a sua estrutura, para podermos descobrir nela os seus diversos partici-pantes e a função e actuação de cada um deles. A finalidade de quanto vai ser exposto éajudar a transpor para a celebração litúrgica os princípios teológicos sobre os ministériosna Igreja, em ordem a obtermos assembleias onde a celebração seja verdadeira epifaniaou manifestação da mesma Igreja a participar, de maneira correcta, isto é, como diz oConcílio, da maneira inteligente, consciente, activa e piedosa, nessa mesma celebração.

I - A ASSEMBLEIA CELEBRANTE

«Assembleia celebrante», eis uma expressão que, há alguns anos atrás, nãodeixaria de causar certa impressão desagradável, senão mesmo um tanto escandalosa.Celebrante era palavra que só se dizia do sacerdote que presidia à celebração. Mas aconsciência que progressivamente se foi desenvolvendo de que a celebração não éapenas acção do sacerdote, mas de toda a assembleia, permitiu que se pudesse vir a falarde assembleia celebrante, isto é, assembleia que celebra. «Celebrante» não é, portanto,aqui o mesmo que «presidente». A assembleia terá um presidente, mas toda ela celebra,toda ela é celebrante.

Esta afirmação não é mais do que a consequência da doutrina do Corpo místico,que nos apresenta a Igreja como o Corpo de Cristo, Corpo este que Cristo associa semprea Si na celebração da liturgia (SC 7).

Ao falarmos aqui de assembleia não se quer dizer multidão, nem sequer simples-mente agrupamento. Chamando à Igreja Corpo de Cristo (Ef 1, 23; Col 1, 18), S. Paulopretende sobretudo sublinhar a relação mútua entre os diversos membros desse Corpo eentre estes e Cristo. Começa ele logo por dizer que a Cabeça da Igreja é Cristo e que nóssomos os membro. A assembleia litúrgica vai reproduzir uma certa imagem deste Corpode Cristo, que é a Igreja.

Page 66: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

66 PADRE JOSÉ FERREIRA

Daí que a assembleia litúrgica, como a própria Igreja, há-de aparecer una no seutodo, diversificada nos seus membros. Não me refiro aqui à diversidade das pessoas quenela tomam parte em razão da origem, da idade, da cultura, do grau de preparação ou dequalquer diferenciação social. Quando falo de diferenciação nos membros da assem-bleia, refiro-me aqui à diversidade de funções ou serviços no meio da assembleia, aquiloa que chamamos ministérios litúrgicos.

Os ministérios litúrgicos

É tendência muito espontânea e generalizada supor-se que os ministérios nas-ceram e existem na Igreja em função da liturgia. E não é assim. A liturgia não é a únicaactividade da Igreja. Certamente que há ministérios especialmente destinados à liturgia:um ministro da comunhão não foi nomeado para tal para responder a problemas deadministração na Igreja, embora o possa fazer cumulativamente. Mas, se ao falarmos deministérios pensamos logo em actividades de ordem litúrgica, é certamente porque aliturgia é realmente o «vértice» e a «fonte» de toda a actividade da Igreja (SC 10) e aindaporque a liturgia se tornou, muitas vezes, a actividade quase única na comunidade cristãcomo tal. Mas não foi sempre assim.

Em qualquer caso, a celebração litúrgica exige a presença de diversos ministros eministros de vária ordem.

Suposto dos livros litúrgicos

A presença de ministros na celebração litúrgica é suposição constante dos livrosque a orientam, porque é a própria estrutura da celebração que os exige: a serviçosdiversos hão-de corresponder diversos servidores ou ministros. Por vezes até, como háalguns anos atrás no «Rito simples da celebração da Semana Santa», determinadonúmero de ministros era absolutamente requerido, bem como certa formação básica dosmesmos, para que se pudessem realizar certas celebrações, como a Vigília pascal, e«os bispos devem velar por que esta dupla condição seja perfeitamente observada». Apresença de ministros na celebração não é uma questão de luxo ou elemento decorativo,mas exigência da própria estrutura da assembleia por um lado, e, por outro, da cele-bração, como veremos.

As razões de tal disposição podemos encontrá-las nos enunciados que se seguem.Elas são de ordem teológica, de ordem histórica, de ordem prática. Aliás, estas diversasordens sobrepõem-se umas às outras, de modo que o que acontece por razão prática, denecessidade, por exemplo, a presença de um sacerdote para presidir à Eucaristia, de umleitor para proclamar a leitura, de um cantor para cantar, tem igualmente a sua razãoteológica, testemunhada pela tradição histórica.

Razões de ordem teológica

A assembleia litúrgica é, como se disse, a mais significativa expressão da Igreja, écomo que a sua epifania. A celebração litúrgica é a assembleia orante da comunidadecristã, assembleia que revela o dinamismo íntimo dessa mesma comunidade, diria a suapersonalidade profunda. A comunidade cristã, o mesmo é que dizer a Igreja, é um sinal:

Page 67: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MINISTÉRIOS NA LITURGIA 67

para além do que nela é visível oculta-se um mistério. Ela é o Corpo de Cristo. Cristo éa sua Cabeça e nós os seus membros. Esta maneira de falar é uma comparação, é certo,mas inspirada e elucidativa. E a celebração litúrgica é o momento maximamenterevelador desse mistério; e não só na Palavra de Deus que é proclamada, nem só tambémnos sinais sacramentais, seja ele o da Eucaristia, mas já na assembleia celebrante em simesma. Como na própria Igreja, assim na assembleia se manifesta aquele Corpo místico,Cristo Cabeça e membros, diferenciados estes uns dos outros, na pluralidade das suasfunções, na unidade do mesmo Corpo, da mesma assembleia. O Concílio Vaticano II nãoteve receio de afirmar que «Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nasacções litúrgicas» (SC 7). E concretizando, especifica: «no sacrifício da Missa,tanto na pessoa do ministro,... como e sobretudo sob as espécies eucarísticas,... nossacramentos,... na sua palavra, e... quando a Igreja reza e canta...» (ib.). A assembleiacelebrante, e nela também a pessoa do ministro, são também lugares da presença deCristo, onde Ele actua, onde Ele Se revela. Ora, se a Igreja é toda ela ministerial, é-odiferenciadamente em cada um dos seus membros.

É, pois, normal, consentâneo com a própria natureza da assembleia litúrgica,imagem e manifestação da Igreja, que nela apareçam serviços diferenciados, com a cor-respondente diversidade de ministros. Não é normal que o presidente absorva todos osserviços que integram a celebração; a cada serviço o seu servidor, o seu ministro.Naturalmente, não se trata de inventar necessidades para colocar pessoas; mas é,por outro lado, normal que, pelo menos, os ministros da ordem sacra – bispos, pres-bíteros e diáconos – apareçam na celebração litúrgica, ocupando o lugar da sua ordem e,se necessário, desempenhando as funções do seu ministério. É este princípio quejustifica, por exemplo, a concelebração.

Uma tradição constante

Escreve o P. Jounel: «As funções (litúrgicas) evoluíram, os ministérios variaram,mas o exercício dos mesmos faz parte da tradição universal da Igreja no tempo e noespaço». Depois demonstra a afirmação em longa exposição histórico-geográfica, quetenho a tentação de resumir.

No século II

O testemunho mais antigo da presença de ministros na celebração vem-nos de S.Justino († c. 165) e o mais recente do Missal Romano promulgado por Paulo VI em1969, com uma nova edição em 1975.

S. Justino, ao descrever a celebração da Eucaristia, fala do presidente, «aqueleque preside», dos diáconos, «aqueles de entre nós que se chamam diáconos» e «quelevam a Eucaristia aos ausentes», do «leitor», que lê «as Memórias dos Apóstolos e osescritos dos profetas». Entre o presidente e os fiéis, há portanto dois ministérios: o dodiácono e o do leitor.

O diácono tinha sido já referido anteriormente por S. Inácio de Antioquia († c. 107),mas não lhe é expressamente atribuído nenhum ministério litúrgico; S. Inácio diz apenas:«Sem bispo, presbíteros e diáconos não há Igreja».

Page 68: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

68 PADRE JOSÉ FERREIRA

Quanto ao leitor, é a primeira vez que se fala dele. Pelo termo empregado por S.Justino parece tratar-se já de um ministério fixo, permanente, oficial; isto apesar dasassembleias serem, nesta época, reduzidas, limitadas ao espaço de uma casa particular;ainda não há igrejas; a Igreja não tem ainda direito de cidade.

No século III

Nesta época aparecem o que os autores chamam as «Casas da Igreja», lugaresmais espaçosos, podendo receber assembleias até 400 pessoas. O lugar da celebração vaiter influência determinante no desenvolvimento das funções ministeriais.

Nesta época os diáconos e os leitores são os ministros por excelência ao lado dopresidente. A descrição mais completa da assembleia litúrgica do século III é a que sepode ler na Didascália dos Apóstolos, escrito de origem siríaca do meado do século III.Aí se encontram o bispo que preside, e até fez a leitura, os presbíteros junto dobispo, os diáconos, que velam pela boa ordem na assembleia, os leitores, que não têm omonopólio das leituras, enfim, os fiéis, homens e mulheres, jovens de ambos os sexos ecrianças, onde cada qual tem previsto o seu lugar e está no lugar previsto.

Em relação a Roma, temos dois documentos fundamentais: a Tradição Apostólicade S. Hipólito, de cerca do ano 220, e a Carta do papa S. Cornélio a Fábio de Antioquia,do ano 251.

No primeiro, além do diácono e do leitor, aparece o subdiácono, que parece nãodesempenhar ainda uma função litúrgica, mas ser apenas um ajudante do diácono nassuas funções administrativas. Quanto ao diácono, ele tem a seu cargo vários ministérioslitúrgicos, aos quais se vêem juntar o de «instruir os que se encontram na assembleia»;têm, além disso, pesados encargos administrativos e sociais. O leitor continua o seuministério tradicional.

Grande novidade é o que nos vai revelar a Carta de Cornélio a Fábio de Antio-quia, trinta anos mais tarde: em Roma, o papa tem, nessa altura, reunidos em volta de si46 presbíteros, 7 diáconos, 7 subdiáconos, 42 acólitos e 52 exorcistas, leitores e portei-ros. É exactamente a lista das ordens referida numa das orações de Sexta-feira Santa, emuso desde o século V, e introduzida no Pontifical Romano desde o século XI, e em vigoraté aos nossos dias.

O diácono deixou de ter a seu cargo o manter a ordem na assembleia; para tal,foram criados os porteiros (ostiários). Os acólitos, em grupos de 6, encabeçados por umsubdiácono, (poderíamos dizer: um protoacólito) são a equipa do diácono, compostaassim de sete membros, mas que não têm necessariamente funções litúrgicas, senãoadministrativas. Ficam os exorcistas, cujas funções nos são mal conhecidas; sabemosapenas que o exorcista fazia a imposição das mãos para afastar os demónios. Os leitores,na lista da Carta do papa Cornélio, são apenas um sector, entre os exorcistas e osporteiros, no meio dos 52 clérigos inferiores.

Em África, porém, o testemunho de S. Cipriano († 258) mostra o leitor rodeadode grande respeito; não fala de porteiros, só acidentalmente se refere ao exorcista;subdiáconos e acólitos continuam a ter ocupações não litúrgicas. Por outro lado,Cipriano não tem escrúpulo de convidar para fazer a leitura no dia de Páscoa um leigo,Sáturo, que, aliás, algum tempo depois nomeará leitor. O leitor lê a palavra de Deus na

Page 69: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MINISTÉRIOS NA LITURGIA 69

assembleia, ajuda na instrução a dar aos catecúmenos (Ep. 29) e é o detentor dos LivrosSantos, honra perigosa em tempo de perseguição, como se pôde observar quando doprocesso verbal da Igreja de Cirta, a actual Constantina, em 19 de Maio de 303, em queseis leitores são obrigados a entregar às autoridades 22 volumes das Escrituras. Estesclérigos tinham a sua profissão pessoal: um trabalhava em mármore, outro era náutico.Quando o leitor subia a outro cargo, entregava os Livros ao seu sucessor.

De tudo isto se pode concluir que no fim do século III, em Roma, em África ou noOriente, a assembleia litúrgica se encontrava bem estruturada.

Todas aquelas diversas «ordens», sem procurar ser demasiado exigente na signifi-cação desta palavra, desempenham as diversas funções na assembleia litúrgica ou osdiversos serviços administrativos e de caridade na comunidade, e são reconhecidoscomo tais. Na hora da perseguição, serão procurados como sinal da Igreja e vão serencontrados em volta do bispo, prontos a dar o testemunho do sangue à sua fé em Cristo,como sucedeu a 6 de Agosto de 258, quando o bispo de Roma, o papa Sisto II, foi presoem plena assembleia litúrgica e decapitado com 6 dos seus diáconos; quatro dias depois,a 10 de Agosto, seria a vez do arquidiácono Lourenço, e de mais um presbítero, umsubdiácono, um leitor e um porteiro.

Do século IV ao VII

Não é aqui a ocasião de fazermos a história de todos os ministérios litúrgicos. Elanão é aliás muito simples, nem se processa em continuidade absoluta, como já tivemosocasião de observar. Bastem-nos somente algumas afirmações à maneira do que poderiaser a conclusão de uma análise histórica que não será feita.

As coisas não se passaram de maneira idêntica no Oriente e no Ocidente; nem, emcada uma destas regiões, da mesma maneira em todos os lugares.

Enquanto no Ocidente, em Roma, já no século III tínhamos toda aquela lista deministérios que nos é exposta na Carta do papa Cornélio, o Oriente nunca conheceu,abaixo do diácono, senão o subdiácono e o leitor; em compensação conheceu o salmistaou cantor do salmo, função que, nos outros lugares, era substituída pelo leitor ou até,como em Roma até ao tempo de S. Gregório, pelo diácono.

Outra ideia que é bom esclarecer é que ministérios litúrgicos e Ordens, (maioresou menores) não vão necessariamente a par. Deram-se, além disso, mudanças e proce-deu-se a trocas no exercício das diversas funções: a leitura do Evangelho passou doleitor para o diácono, a da epístola para o subdiácono, os acólitos tomam lugar cada vezmais importante na celebração da Eucaristia.

A partir do século IV, uma vez reconhecida a existência legal da Igreja erestabelecida a paz no tempo de Constantino (313), a assembleia litúrgica não se reúne jánas casas particulares nem na sala grande das Casas da Igreja, mas em vastas basílicasque se erguem por toda a parte. Um dos elementos que mais vai dar nas vistas nestascelebrações é a abundância de pessoal: para assembleias numerosas muitos ministrosintervenientes. Uma das funções que continuou a merecer particular atenção foi oacolhimento aos irmãos, dada a grande afluência às celebrações e até as frequentespessoas de passagem. A maior vítima destas mutações foi o leitor, a quem foramsubtraídas as leituras principais. O diácono confia ao acólito o levar a Eucaristia aos

Page 70: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

70 PADRE JOSÉ FERREIRA

ausentes; em compensação, acompanha a distribuição da comunhão, oferecendo aoscomungantes o cálice com o Sangue do Senhor, torna-se o ordenador da assembleia,convidando-a a escutar, a guardar silêncio, a inclinar-se para a bênção, a retirar-se umavez terminada a celebração. Chegará mesmo a ser o guia de oração, ao menos no Oriente,porque, em Roma, é o presidente que pronuncia os convites ou invitatórios antes daoração.

O acólito tem como função levar a Eucaristia aos ausentes; mas também vai serampliado o seu ministério: toma parte nos exorcismos preparatórios para o baptismo e,na Missa papal, é o ministro da luz; intervém ainda no serviço do altar: leva os vasospara a Eucaristia, vem ao altar com os seus sacos buscar o pão consagrado e apresenta-oaos bispos concelebrantes, colocados em volta do papa, para que estes façam a fracção.Assim, em Roma, no século VII. Muitos destes vestígios conservaram-se até hoje.

O leitor, porém, nem sequer é nomeado nesta missa papal.

Do século VIII ao XX

Depois do tempo que temos estado a observar até ao concílio Vaticano II aevolução foi sobretudo no sentido de empobrecimento dos ministérios litúrgicos. Nãovale a pena demorarmo-nos na análise dos factos. Basta pensar que o ministério diaconaldesapareceu, porque... já não havia diáconos. Quando muito, pedia-se a um presbíteroque vestisse a dalmática e que «fizesse de diácono»! De modo semelhante, o subdiácono,elevado agora à categoria de ordem maior, vestindo praticamente como o que faz dediácono, leva a que fiquem completamente esbatidas as respectivas funções.

Quanto ao acólito, acabou por ter, na missa rezada, agora a mais frequente, oúnico ministério exercido, além do do presidente: o de ajudante da Missa!

Nos últimos anos do pontificado de Pio XII assistimos ao princípio da grandereforma litúrgica, que o Concílio havia de prosseguir e levar a seu termo. Aí assistimos àrevalorização do diácono, na Missa cum diacono, e do leitor.

Depois, o Concílio abriu a possibilidade da restauração do diácono permanente.E a reforma pós-conciliar extingue o subdiácono, o exorcista e o ostiário (o porteiro),mantém o acólito e o leitor, restitui-os igualmente a ministros permanentes, mas acabacom a sua ordem, passando a ordenação dos mesmos a instituição, e mantém-nos entre osleigos. Admite ainda a possibilidade de ministros extraordinários da comunhão, mais oumenos permanentes ou simplesmente ocasionais, bem como aceita que outros leigos,mesmo não instituídos, possam exercer a função de acólitos, leitores, salmistas ecantores.

Exigências da própria celebração

O que a tradição litúrgica nos diz sobre os diversos ministérios é já resposta àsexigências da celebração. Não se criam ministros por si mesmos, nem apenas para fazeruma como que manifestação visual da estrutura da assembleia, mas porque a estrutura dacelebração o exige e isso condiz com a natureza da assembleia. Se há um presidente, éporque há uma assembleia que é necessário ser presidida; se há um leitor, é porque háuma leitura que precisa de ser lida; se há um cantor, é porque há um cântico que deve ser

Page 71: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MINISTÉRIOS NA LITURGIA 71

cantado. Donde, a melhor maneira de compreender os ministérios litúrgicos écompreender a acção litúrgica onde eles terão de intervir. A definição do ministériode cada um deriva da resposta que é preciso dar a determinado serviço na celebração e,na celebração, a cada caso concreto. Os ministros da liturgia basilical não são os mesmosque os da liturgia doméstica. Não se trata, de maneira nenhum, de abrir o campo à imagi-nação e à aventura, mas de compreender o que é a celebração e o que é a assembleia, emcada caso concreto e em cada espaço determinado, e de dar resposta ao que cada casoexige. É para tanto que as reflexões anteriores hão-de servir.

II - OS VÁRIOS MINISTÉRIOS

A celebração, toda ela serviço divino

Passemos agora a situações mais concretas do presente com as luzes trazidas dassituações concretas do passado. E comecemos por explicar as palavras.

Ministério vem de ministro. Ministro significa etimologicamente aquele que émenos, e diz-se de alguém em comparação com outro que lhe é superior. Ministros,na liturgia, são todos aqueles que desempenham determinadas funções ou serviços ouministérios, colocados abaixo dos do presidente da assembleia litúrgica. Neste sentido,o presidente não é rigorosamente um ministro. Digo que os ministros desempenhamdeterminadas funções ou serviços. Por isso, na realidade, ministro é o mesmo que servo(donde deriva serviço). Em grego, a palavra que corresponde a servo é precisamentediácono; e o diácono continua justamente a ser o ministro por excelência na liturgia.

Paralelamente, como acima se adiantou, ministério quer dizer serviço, função queo ministro desempenha. No entanto, na prática corrente, ministério não designa só oserviço de um ministro, de um subalterno, e pode muito bem dizer-se também da funçãodo presidente, e assim fala-se do ministério de presidente, como se fala do ministérioepiscopal ou do ministério do leitor. Mas, como vimos, já não é muito normal chamarministro ao presidente da assembleia. É uma questão de uso. Todavia, é muito tradi-cional dizer-se o serviço divino para designar a liturgia em geral.

Ao falarmos de ministérios litúrgicos, de serviços na liturgia, convém começarpor afirmar que a celebração é, toda ela, um serviço divino, um ministério cultual.Os nossos irmãos protestantes ainda conservam a expressão serviço religioso paradesignar certos actos do seu culto.

A celebração litúrgica é, no seu todo, serviço, ministério, o serviço dos servos, oministério dos ministros do culto, que são todos os membros do povo de Deus, todo elepovo sacerdotal, povo que celebra, povo que é, todo ele, celebrante.

Mas, como no princípio ficou dito, neste povo, como num corpo, cada membrotem a sua função, e, no serviço litúrgico, alguns terão serviços especializados pararealizarem a acção comum a todos. Por isso, alguns poderão ser chamados, com razãoespecial, «ministros da liturgia».

Page 72: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

72 PADRE JOSÉ FERREIRA

A assembleia celebrante

Uma das concretizações mais profundas da reforma litúrgica conciliar foi a resti-tuição da assembleia litúrgica ao seu pleno funcionamento. A assembleia litúrgica cristãnão é multidão passiva que assiste, mas assembleia orgânica que vive, e toma parte activana celebração. Os princípios enunciados na Constituição conciliar passaram depois àprática e tomaram corpo na maneira como se organizaram as celebrações nos diversoslivros litúrgicos. Para o caso especial da celebração da Missa, esses princípios en-contram-se explicitados e aplicados na Instrução Geral do Missal Romano, que serve deintrodução ao mesmo. Mas eles vêm já assim anunciados na Constituição conciliar:«A acção litúrgica não é acção privada, mas celebração da Igreja, que é «sacramento deunidade,» povo santo reunido e ordenado sob a acção dos Bispos. Por isso, tal acçãopertence a todo o Corpo da Igreja, manifesta-o, implica-o, atingindo porém cada um dosmembros de modos diversos segundo a variedade dos estados, das funções e da actualparticipação» (SC 26).

Quer dizer, as acções litúrgicas são acção da Igreja, mas tocam cada membro damesma, segundo a situação efectiva de cada um.

E continua a Constituição sobre a Liturgia: «Nas celebrações da sagrada Liturgia,limite-se cada um, ministro ou fiel, ao exercer o seu ofício, a fazer tudo e só o que é dasua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas» (n. 28). Donde se con-clui que uma assembleia, para participar de maneira activa na celebração, deve participar demaneira orgânica, isto é, cada um conforme o lugar que ocupa, o estado em que se encontraem relação à assembleia, a função que desempenha, a participação que é chamado a dar.

Entrevê-se logo aqui a diversidade de ministérios e de ministros que pode entrarna assembleia celebrante e que cada livro litúrgico se encarrega, por sua vez, de especi-ficar para cada caso. Alguns deles são comuns a todas ou quase todas as celebrações;outros só aparecem em determinadas celebrações. Cada celebração deve ter os ministrosque lhe competem, estes devem fazer o que lhes pertence, nenhum há-de ultrapassar asua função, todos têm de conhecer bem o seu papel, executá-lo com perfeição, animá-lode verdadeiro espírito, porque a liturgia é a oração da Igreja, o mesmo que é dizer, aoração de Jesus Cristo na sua Igreja.

Enumeremos, pois, esses ministérios, para falarmos dos diversos ministros que oshão-de desempenhar.

O ministério da presidência

A assembleia cristã é presidida por um presidente. O presidente nato da assem-bleia é o bispo, porque o bispo é o chefe, a cabeça, da Igreja, da comunidade. O bisponão preside para dar solenidade à celebração; quando muito, a celebração recebe soleni-dade do facto de o bispo presidir a ela; mas então é preciso entender «solenidade» nãocomo qualquer coisa de exterior, mas como revelação mais perfeita do mistério celebradoe do mistério da Igreja que o celebra.

Na ausência do bispo, substitui-o o presbítero. Presidir é o primeiro ministério naliturgia; no entanto, na linha do que fica exposto, não se costuma chamar ministro aopresidente; ao menos, no sentido mais técnico.

Page 73: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MINISTÉRIOS NA LITURGIA 73

A função do presidente é, antes de mais, ser o sinal de Cristo como Cabeça daIgreja no meio da assembleia. A Igreja é o Corpo de Cristo; Cristo é a Cabeça. A assem-bleia litúrgica é sinal de Igreja; na assembleia, o presidente é o sinal de Cristo, enquantoCabeça da Igreja.

Com esta significação, de ser sinal de Cristo enquanto Cabeça, o presidente, nalinha da acção, o que faz é, antes de mais, presidir, isto é, estar à frente – por isso, tomalugar à cabeça da assembleia; depois, dirigir-lhe a palavra, – por isso faz a homilia;formular a oração e convidar para ela, – por isso, faz os invitatórios, diz as orações,sobretudo a oração eucarística; dar aos sinais sacramentais a autenticidade e daí garan-tir-lhes a eficácia, – por isso, realiza os actos essenciais da consagração eucarística e dosdemais sacramentos; fazer a unidade da assembleia e imprimir-lhe o ritmo próprio deIgreja em oração, – por isso, ele é o condutor nato da mesma.

Os ministérios dos ministros – O diácono

Como já ficou explicado, rigorosamente falando, ministros são os que intervêmna celebração ao lado do presidente ou de outros ministros, ou entre estes e a assembleia.

O ministro por excelência é o diácono, como até o nome indica. Assim, vemo-lojá em S. Justino (séc. II) a levar a Eucaristia aos ausentes e, na Tradição Apostólica de S.Hipólito (séc. III), a trazer a oblação ao altar. O diácono, mesmo quando esteveincumbido de outros serviços não litúrgicos, teve sempre alguns serviços litúrgicos: elefoi o superintendente da ordem na assembleia e também o seu condutor ao lado dopresidente, foi ministro de distribuição da Eucaristia e, a partir de certa altura,especialmente do Sangue do Senhor; tornou-se o leitor do Evangelho, serviços estesque ainda hoje são seus.

Quando hoje se fala na criação de diáconos permanentes, a pergunta que imedia-tamente surge é esta: «Que fazem os diáconos diferente dos padres? Só não dizem Missa,nem confessam!» É uma maneira de reflectir excessivamente pragmática que parecepretender “empurrar” os diáconos para que dêem mais um passo e cheguem a padres; eevitar que haja assim um «padre desperdiçado»! Mas não será maneira de raciocinar todainfluenciada pelo hábito em que estamos de ser o padre a fazer tudo, a tomar conta detudo, e quando muito, a ser coadjuvado por outros, mas a título de simples ajuda? Semdúvida que o sacerdote – o bispo ou o presbítero seu delegado – é a cabeça da comunidadee, na celebração litúrgica, da assembleia reunida; mas outros terão outras funções, quelhes competirão como próprias também, e que os integram no conjunto da comunidade edepois da assembleia; entre eles, e antes de mais, estão os diáconos. A presença e aactuação do diácono na celebração litúrgica será o sinal mais significativo da sua presençae da sua acção em toda a vida da comunidade, mesmo fora da liturgia.

O ministério do leitor

Já ficou apontado como o leitor aparece na primeira descrição da celebraçãoeucarística em S. Justino, e como o seu papel se foi ofuscando, cedendo a leitura doEvangelho ao diácono, a da epístola ao subdiácono, a ponto de deixar praticamente deexercer o seu ministério, que o século XX viu, de novo, reaparecer.

Page 74: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

74 PADRE JOSÉ FERREIRA

A importância do ministério do leitor vem da importância que reveste, naassembleia litúrgica, a proclamação da Palavra de Deus, porque o seu ministérioconsiste em proclamar a Palavra de Deus na assembleia. Mas os leitores de Cartago, que,no tempo de S. Cipriano, entregaram os 22 livros sagrados quando da devassa policial,não os guardaram certamente apenas para depois carregarem com eles até ao lugar dacelebração na altura da Missa! Aliás, encontramos leitores que são também catequistas.Hoje em dia voltamos a encontrá-los até a “presidirem” a assembleias reunidas paracelebrar a Palavra, quando não se lhe segue a celebração da Eucaristia. Parece, pois, quenovos caminhos se abrem aos leitores.

O salmista

Ainda orientado para a Palavra há outro ministro que desapareceu completamentedas celebrações habituais, por falta de ministério: o salmista. O salmista é o cantor dosalmo que, em muitas circunstâncias, se segue à leitura. Este ministério não é atestadopor S. Justino; mas outras fontes no-lo atestam como muito antigo. A palavra proclamadana leitura provoca na assembleia uma resposta lírica no canto dos salmos. O salmo étambém palavra inspirada, palavra da Escritura. Proclamá-lo é continuar, de outramaneira, a proclamação da Palavra. Que isto se faça cantando é, ao mesmo tempo,exigido pela natureza do salmo, um poema, e pela necessidade que a assembleia tem dese exprimir de forma lírica, que o canto naturalmente favorece. Quando a maneiraresponsorial de cantar o salmo foi substituída por outras formas mais complexas, comoaquelas de que dão testemunho as melodias gregorianas – aliás belíssimas –, o salmistaou teve de ser um virtuoso de capacidades musicais extraordinárias ou foi simplesmentesubstituído pelo coro. E o salmista morreu.

O salmo responsorial ressuscitou, graças a Deus, nos novos Leccionários; mas osalmista ainda não. E já lá vão alguns anos depois que estas coisas aconteceram!Por isso, e também porque se não entendeu ainda a estrutura da celebração da Palavra,e talvez também ainda porque as músicas nem sempre estão acessíveis, o salmoresponsorial acaba, a maior parte das vezes, por ser substituído por um cântico qualquer.E não está certo!

O acólito

Em relação ao acólito, acontece que a palavra não correspondeu sempre à mesmaideia. Desde o acólito, membro do grupo de auxiliares do diácono, na Roma antiga, atéao actual, que substitui, em parte, o antigo subdiácono agora desaparecido, percorreu-seum grande caminho.

De um modo geral, o acólito é ministro do altar. O Missal concretiza assim as suasfunções: leva a cruz na procissão de entrada a caminho do altar; durante a celebraçãoestá ao serviço do sacerdote ou do diácono para o que for necessário, como apresentar-lheso livro; no momento da apresentação dos dons (ofertório) prepara o altar; se for necessá-rio, ajuda o sacerdote a receber os dons do povo e possivelmente leva ao altar e entregaao sacerdote o pão e o vinho; se houver incenso, entrega ao sacerdote o turíbulo eassiste-o durante a incensação; pode ajudar o sacerdote a distribuir a comunhão, como

Page 75: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

OS MINISTÉRIOS NA LITURGIA 75

ministro extraordinário e, se a comunhão se fizer sob as duas espécies, serve o cálice aoscomungantes ou segura-o, se a comunhão for por «intinção»; ajuda o sacerdote ou odiácono na purificação e arrumação dos vasos sagrados, e, na ausência de diácono, elemesmo leva os vasos sagrados para a credência, e aí os purifica e arruma.

Como são várias as funções que o acólito pode exercer e algumas delas podemocorrer simultaneamente, convém distribuir as diversas funções pelos vários acólitos.Mas se está presente um só acólito, este desempenhará por si a função mais importante,deixando as outras para outros ministros (cf. IGMR 142-147).

Em princípio, a palavra «acólito» refere-se, neste contexto, aos acólitos propria-mente ditos, ou seja aos que foram «instituídos», segundo o rito da Instituição dosAcólitos do Pontifical Romano.

O coro

«Entre os fiéis exerce um ofício litúrgico próprio a schola cantorum ou grupocoral, a quem compete executar com perfeição, segundo os diversos géneros de cânticos,as partes musicais que lhe estão reservadas e animar a participação activa dos fiéis noscânticos. O que se diz da schola cantorum aplica-se, nas devidas proporções, aosrestantes músicos e de modo particular ao organista» (IGMR 63).

«É conveniente que haja um cantor ou mestre do coro encarregado de dirigir efomentar o canto do povo. Na falta da schola, a ele compete dirigir os diversos cânticos,enquanto o povo toma a parte que lhe corresponde» (Ib. 64).

O coro é, portanto, parte da assembleia dos fiéis, e, como tal, é entre os fiéis quedeve ocupar o seu lugar, à frente da mesma, não longe do santuário, mas de maneira quepossa desempenhar o seu papel com discreção.

Quanto à sua função, ela fica sintetizada nos números do Missal atrás citados.Poderia certamente desdobrar-se um pouco mais, dizendo que a função do coro édialogar com a assembleia, reforçar o canto da mesma, e até, em certos casos, cantarpara oferecer à assembleia tema de meditação ou mesmo para a substituir, no caso de aassembleia não poder cantar.

Fica portanto excluído o tipo de conjunto coral cuja função fosse primariamente«abrilhantar» festividades, quer ele cante música mais ou menos clássica, quer cantemúsica moderna; com maioria de razão, os conjuntos instrumentais de característicassemelhantes.

O comentadorEsta personagem viu a sua entrada entre os ministros na Instrução «De musica

sacra et liturgia» de 3 de Setembro de 1958. Dizia então a mesma Instrução, no n. 96: «Aparticipação activa dos fiéis, especialmente na santa Missa e em certas acções litúrgicasmais complexas, pode conseguir-se mais facilmente, se intervier um «comentador...».Nesse momento, estava-se ainda no tempo da liturgia quase toda em latim, e a função dopresidente como condutor nato da assembleia não estaria então ainda tãoconsciencializada como hoje o está. Assim, a função do «comentador» diminuiucertamente desde então para cá, mas pode ter ainda a sua oportunidade. O Missal

Page 76: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

76 PADRE JOSÉ FERREIRA

refere-se-lhe nestes termos: «Entre os ministros que exercem o seu ofício fora do presbi-tério, está o comentador, incumbido de fazer aos fiéis explicações e admonições, a fimde os introduzir no sentido da celebração e os dispor a compreendê-la melhor. As admo-nições do comentador sejam muito bem preparadas e muito sóbrias. No desempenho dasua função, o comentador deve colocar-se em lugar adequado, à frente dos fiéis, mas nãoconvém que suba ao ambão» (IGMR, 68 a)).

Em qualquer caso, tenha-se presente que a celebração é o momento de celebrar, enão de explicar a celebração.

Ministros do acolhimento

Pode haver lugar para ministros «encarregados de receber os fiéis à porta daigreja, de os conduzir aos seus lugares, de ordenar as procissões» (IGMR, 68 b)); assimse exprime o Missal. De facto, a assembleia pode ganhar muito, se, logo desde o início,as pessoas se sentirem acolhidas e como que introduzidas na reunião da assembleia porquem lhes possa indicar os lugares, distribuir uma folha com os cânticos ou outroselementos destinados à celebração, etc..

Ministro da recolha das ofertas

O Missal (IGMR, 68 c)) limita-se a referir estes possíveis ministros. Não hácelebração de Missa dominical em que a recolha das ofertas não ocupe um momento,e geralmente significativo, da celebração. Nem se trata de uma «cobrança», mas derecolha de ofertas, algumas das quais, dentro de momentos, serão «oblatas» no al-tar. A entrega de dons ao presidente é já referida por S. Justino na Missa do séculoII. Este gesto corresponde, de facto, a uma exigência da consciência dos fiéis departiciparem no apoio a prestar à comunidade local ou a outras. Para sublinhar o sentidoritual desta entrega e para facilitar a boa ordem neste momento, é oportuno que hajaministros próprios para esta função.

E a Instrução Geral do Missal Romano termina este capítulo com a seguinterecomendação: «Sob a orientação do reitor da igreja, deve ser feita uma preparaçãoeficiente de cada celebração litúrgica, de comum acordo entre todos os que nela sãochamados a intervir, tanto no que se refere aos ritos como no que se refere ao aspectopastoral e musical; devem ser ouvidos também os fiéis naquilo que lhes diz respeito»(IGMR 73).

Page 77: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A INICIAÇÃO CRISTÃNA TRADIÇÃO DA IGREJA

Explicação de certos termos

Iniciação é o acto de iniciar; iniciar leva consigo a ideia de início, de começo. Natradição cristã, dá-se o nome de iniciação ao conjunto de acções pelas quais alguém éadmitido na comunidade dos cristãos, na Igreja de Cristo. Estas acções são essencial-mente os sacramentos da iniciação, a saber, o Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia.Estes são os ritos fundamentais da iniciação. Mas os ritos cristãos são sempre expressãoda fé, e a fé vem pela palavra; por isso, os ritos vêm sempre articulados com a palavra.Palavra e rito são, aliás, os elementos fundamentais de toda a liturgia cristã.

A iniciação de alguém na vida da comunidade dos cristãos vai, por isso, englobaro anúncio da palavra de Deus, desde a primeira evangelização até ao aprofundamento damesma na catequese, as quais levam à fé e à conversão, e um conjunto de ritos, desde osque acompanham todo o tempo que precede a celebração dos sacramentos até à celebraçãodestes, que serão o ponto culminante de toda a iniciação, o Baptismo, a Confirmação e aEucaristia, por isso justamente chamados sacramentos da iniciação.

A iniciação cristã dos adultos, entendida no seu sentido mais lato, não se faz,portanto, num acto único nem, consequentemente, num só momento. Consta de elementosdiversos e desenvolve-se ao longo de certo tempo, que pode chegar a ser, e normalmenteé, de vários anos. A todo esse conjunto chama-se-lhe a disciplina da iniciação cristã.

Os candidatos aos sacramentos da iniciação, quando adultos, hão-de percorreruma longa caminhada de formação durante o tempo que se chama o catecumenado. Du-rante este tempo os candidatos recebem o nome de catecúmenos. O catecúmeno é consi-derado já como cristão, mas não ainda como fiel. O catecumenado constitui um tempoeclesial específico, com o seu estatuto próprio; é um estádio da vida cristã, a que osantigos chamavam mesmo Ordem, a Ordem dos catecúmenos. O Ritual actual nãorecuperou esta terminologia.

Mas tudo isto se compreenderá melhor percorrendo a história da iniciação cristãtal como ela se tem processado desde o início até aos nossos dias. O Ritual da IniciaçãoCristã dos Adultos, recentemente publicado entre nós, constitui precisamente a últimafase desta longa história.

Esta disciplina foi-se estruturando através dos tempos, mas apareceu, desde oinício, com o que lhe é essencial. Apresenta-se sumariamente já nos livros do NovoTestamento; encontra-se descrita com grande desenvolvimento no século III, naTradição Apostólica de S. Hipólito de Roma; adapta-se depois às circunstâncias domeio donde provêm os candidatos, se de meio pagão, até ao século VI, se de meio cris-tão, a partir dessa época, adaptação esta que, em muitos casos, não passou do abandonoquase total dos outros elementos além dos sacramentos propriamente ditos, e estes mes-mos celebrados, por vezes, sem a consciência de que se tratava de sacramentos de

Page 78: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

78 PADRE JOSÉ FERREIRA

iniciação, sobretudo no caso da Confirmação, e até da Eucaristia. A reforma litúrgicaactual pugna pela restauração da disciplina da iniciação e da consciência do que elasignifica.

Podemos assim dividir a história da iniciação cristã em dois grandes períodos: atéao século VI, em que predominam os candidatos adultos; a partir daquela época, em quepredominam os candidatos crianças. No entanto, desde o princípio se deu o Baptismo àscrianças.

Enquanto os candidatos foram adultos, deu-se grande relevo ao tempo anterior àcelebração dos sacramentos da iniciação. Este tempo, o catecumenado, conduz aossacramentos da iniciação, – Baptismo, Confirmação e Eucaristia –, celebrados todosnuma única acção litúrgica, normalmente na Vigília pascal. Mas o catecumenado ficarámal definido, se lhe chamarmos simplesmente preparação para o Baptismo; ele é já, emsi mesmo, tempo cristão, porque nele se entra por uma fé inicial, fé essa que se destina acrescer e frutificar ao longo do catecumenado, até que, pelos sacramentos, se renascepara a nova situação de filhos de Deus. Talvez melhor do que preparação, poderíamoschamar-lhe, com S. Agostinho, o tempo da gestação cristã, como a hora dos sacramentosserá o tempo do nascimento cristão.

Mas será melhor fazer a análise destes diversos tempos da iniciação à medida quelhe formos contemplando a evolução através das idades.

1. Nos livros do Novo Testamento

Há nos livros do Novo Testamento muitas referências ao Baptismo de váriaspessoas. É certo que não se apresenta ainda aí uma disciplina de iniciação estruturadacomo ela vai aparecer algum tempo mais tarde, mas já lá se encontram os seus elementosessenciais. Estamos ainda no início da vida da Igreja, e a finalidade dos livros do NovoTestamento não é apresentar-nos um manual de pastoral ou de liturgia das comunidades,como o vai ser, no século III, a Tradição Apostólica de S. Hipólito, embora contenhamalusões a essa disciplina.

Fala-se de Baptismo nos Actos dos Apóstolos e nas Epístolas de S. Paulo. Aí sefaz frequentemente alusão ao anúncio do mistério cristão, à fé do candidato e aobaptismo de água. A fé do candidato não é apenas a adesão intelectual ao que lhe foianunciado, como se se tratasse da resposta de um examinando ao seu examinador, masleva consigo a conversão interior ao mistério que lhe foi revelado, Deus e Aquele queEle enviou, Jesus Cristo.

Assim, na primeira pregação apostólica, feita por S. Pedro no dia de Pentecostes,encontramos este esquema completo. Pedro proclama o mistério da salvação, partindodo Antigo Testamento, de Joel (falava a Judeus), e centra-se em Jesus Cristo, no seumistério pascal: «Este homem, vós O fizestes crucificar..., mas Deus ressuscitou-O...»;os que o escutavam «emocionam-se até ao fundo do coração e perguntam a Pedro e aosoutros apóstolos: ‘Que havemos de fazer, irmãos?’» Sentem-se tocados pela palavra.«Pedro respondeu-lhes: ‘Convertei-vos e peça cada um de vós o baptismo em nome doSenhor Jesus, para a remissão dos seus pecados; recebereis então dom do Espírito

Page 79: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A INICIAÇÃO CRISTÃ NA TRADIÇÃO DA IGREJA 79

Santo’» (Act 2, 37-38). Encontramos aqui a proclamação da palavra, a fé, a conversão, obaptismo, explicitando-se a sua significação, «a remissão dos pecados», e refere-seainda «o dom do Espírito Santo», que é o dom da Confirmação.

A ligação entre a fé e o baptismo pode verificar-se em todos os outros casos.A própria expressão usada para designar o baptismo cristão, e que o distingue de todosos outros baptismos em uso na época, como o de João Baptista, ou seja, baptismo«em nome de Jesus «Cristo» (Act 2, 38; 8, 16; 10, 48; 19, 5), exprime claramente aatitude de fé que anima o baptizando e o conteúdo dessa fé: o mistério de Jesus Cristo.A expressão «em nome de Jesus Cristo» não é necessariamente uma fórmula litúrgica;exprime tão-somente o objecto da fé.

Pode parecer-nos, à primeira vista, que estes baptismos foram dados sempreparação. Não o foram certamente, dado que eles supõem sempre a fé e a conversão,coisas que se não improvisam. Fizemos já notar que os livros do Novo Testamento nãosão nem contêm manuais de disciplina baptismal. Por outro lado, tratando-se de Judeus,eles estão suficientemente preparados até à descoberta de Jesus Cristo, Aquele mesmoque eles esperavam. Ora, é precisamente Jesus Cristo que lhes é anunciado na pregaçãoapostólica e que vem finalmente responder à expectativa da sua fé e culminar neles adivina revelação.

Quanto aos pagãos, como Cornélio, baptizado por Pedro (Act 10), ou o etíope,baptizado por Filipe (Act 11), eles deviam manter contacto profundo com o judaísmo.Cornélio vivia em Cesareia marítima, era piedoso e temente a Deus, dava largas esmolase rezava continuamente a Deus (Act 10, 2); e o etíope regressava de Jerusalém, ondetinha ido em peregrinação, ia no carro lendo o profeta Isaías e soube interrogar Filipesobre o significado da leitura, que logo supôs ter maior alcance do que o que lia naaparência da letra do texto profético (Act 8, 27-31). Sem fé no Senhor Jesus Cristo nãoteria, evidentemente, sido possível dar o baptismo a ninguém, sobretudo nestes temposem que a nova religião apresentava perspectivas tão diferentes, mesmo tão contrárias, aoque lhes era tradicional.

2. Do século II ao século V

Mas era normal que toda esta caminhada, desde o anúncio do mistério de Cristoaté à fé, à conversão e à celebração dos ritos sacramentais, os mistérios, como se dizia,exigisse estruturação própria, ambiente propício, disciplina condizente. E foi o queaconteceu.

Sobre tudo isto estamos bastante bem documentados, logo desde o começo doséculo II, mas sobretudo a partir do século III. Até ao princípio do século VI, cerca doano 500, a disciplina da iniciação cristã vai estar toda orientada para catecúmenos adultos.As crianças são, sem dúvida nenhuma, baptizadas, quando filhas de pais cristãos, isto é,quando se tinha por normal que elas viriam a receber, no futuro, a educação cristã dospais; quanto aos ritos da liturgia da iniciação, eles são os mesmos que para os adultos,como continuam hoje a sê-lo, visto que esses ritos são apenas os dos sacramentos, não osdo catecumenado, que para eles não existe.

Page 80: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

80 PADRE JOSÉ FERREIRA

O meio humano donde estes adultos provêm é geralmente, sobretudo noprincípio, pagão. Por isso, a disciplina da iniciação vai ocupar um tempo longo antes deeles chegarem aos sacramentos. A este tempo, o catecumenado como lhe vamos chamar,não gostaria de insistir em chamar-lhe preparação para o baptismo. Certamente que é nobaptismo que ele encontra a plenitude do sentido; mas ele é já tempo de iniciação cristã,é já mesmo tempo cristão, tempo de evangelização, de fé, de conversão, até de oração ede celebração de certos ritos litúrgicos, ao nível de catecúmenos. Eles próprios, oscatecúmenos, são já chamados cristãos, embora não ainda fiéis.

Por outro lado, o catecumenado não é preparação exclusivamente para os sacra-mentos a que ele directamente conduz, mas para toda a futura vida cristã, na comunidadeeclesial.

a) No século II

Do século II, temos, entre outros testemunhos, o de S. Justino. Na sua época afutura disciplina do catecumenado está ainda em embrião, mas já se lhe desenham asgrandes linhas. O catecúmeno do tempo de S. Justino toma parte no ensinamento, e nasproximidades do baptismo, na oração e no jejum. O ensinamento tem carácter duplo:doutrinal e moral. O ensinamento doutrinal expõe o objecto da fé que há-de ser professadano momento do baptismo. O ensinamento moral pretende assegurar que a vida do catecú-meno seja vivida, cada vez mais, de maneira conforme à fé que professa. A oração e ojejum coincidem com a oração e o jejum da comunidade cristã, certamente às quartas esextas-feiras, os dois dias de jejum já mencionados na Didakhê (Did VIII, 1).

Estando ainda em estado embrionário o que, mais tarde, se virá a chamar anolitúrgico, não se pode procurar, nesta época, qualquer coincidência entre temposlitúrgicos e os diversos momentos da iniciação cristã.

b) No século III

No princípio do século III, diferentemente do que sabemos do século anterior,encontramos, pela primeira vez, a disciplina da iniciação cristã perfeitamente orga-nizada. É a Tradição Apostólica de S. Hipólito, já citada, que nos fornece, cerca do ano215, a primeira descrição completa dessa disciplina, bem como da restante liturgia daIgreja dessa época, em Roma.

Segundo a Tradição Apostólica, o tempo que antecede a celebração dos sacra-mentos da iniciação, isto é, o catecumenado, está distribuído por dois períodos: um maislongo, o catecumenado propriamente dito, e outro mais breve, o que antecede imediata-mente a celebração dos sacramentos da iniciação.

O catecumenado propriamente dito dura, em princípio, três anos, a não ser que asdisposições do candidato orientem noutro sentido. É este o tempo da formação cristã docatecúmeno. É, como já foi lembrado, o tempo da gestação do futuro baptizado, como obaptismo será o seu nascimento.

No início, haverá um momento em que o candidato se apresenta para ser feitocatecúmeno. Ele apresenta-se, mas é a Igreja que o fará catecúmeno. É o momento quemais tarde se designará por Entrada em catecumenado. O que se apresenta para ser feito

Page 81: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A INICIAÇÃO CRISTÃ NA TRADIÇÃO DA IGREJA 81

catecúmeno, S. Hipólito dirá «para escutar a palavra», é levado a um «doutor» ou mestre,antes do povo chegar, e pergunta-se-lhe por que razão «vem à fé»; diríamos hoje, paradescobrir as suas motivações. Com este mesmo sentido, os candidatos são apresentadospor alguém que dará testemunho a respeito deles, «a fim de se saber se eles são capazesde escutar» (a palavra). São depois sujeitos a um exame sobre o seu estado de vida e asua profissão. Há, de facto, estados e profissões incompatíveis com a vida cristã.

Começam então os três anos do catecumenado. O ensino é feito em sessões decatequese. No fim da catequese, os catecúmenos rezam, separados dos fiéis; mas nãotrocam ainda entre si o beijo da paz, como farão depois os fiéis, isto é, os baptizados, aoterminarem a oração, porque o seu beijo, explica S. Hipólito, ainda não é santo. Os fiéis,esses saudar-se-ão, os homens aos homens, as mulheres às mulheres. A reunião terminacom a imposição da mão do catequista, a oração do mesmo e a despedida.

Chegando ao fim do catecumenado, faz-se a eleição ou escolha dos que hão-dereceber o baptismo. Para isso, são sujeitos a um exame sobre a maneira como viveramdurante o tempo do catecumenado: se ajudaram as viúvas, se visitaram os doentes, sepraticaram boas obras. Se os que os trouxeram dão bom testemunho acerca deles, ouvi-rão o Evangelho. A partir deste momento, são colocados à parte e recebem todos os diaso exorcismo por meio da imposição da mão. Nas proximidades do dia do baptismo é opróprio bispo quem fará o exorcismo ao catecúmeno, para saber se ele é puro. Se não ofor, é porque não escutou a palavra com fé.

Não se precisa nunca em que época do ano isto acontece; mas precisam-se agoraos dias da semana. Na quinta-feira devem tomar banho, jejuam na sexta-feira, têm umaúltima reunião, a que presidirá o bispo, no sábado. Nesta reunião, rezam de joelhos e obispo faz sobre eles um exorcismo, intimando a todo o espírito estrangeiro que os aban-done e não volte mais a eles; por fim, soprará sobre eles, far-lhes-á o sinal da cruz nafronte, nos ouvidos e nas narinas, e manda-os pôr de pé. Passarão depois toda a noite emvigília, em que escutam leituras e são instruídos.

Ao cantar do galo, faz-se a oração sobre a água. Os baptizandos tiram as vestes esão baptizados, primeiro as crianças, depois os homens e em seguida as mulheres. Obispo dá ainda graças sobre o óleo, que é chamado óleo de acção de graças, e exorcizaoutro óleo, que será chamado óleo de exorcismo. Um diácono toma o óleo de exorcismoe coloca-se à esquerda do presbítero, outro diácono toma o óleo de acção de graças ecoloca-se à direita dele. O presbítero manda-lhe fazer a renunciação, e ele diz: «Renun-cio a ti, Satanás, a toda a tua pompa e a todas as tuas obras». E o presbítero faz-lhe aunção com o óleo de exorcismo, dizendo: «Todo o espírito se afaste de ti». E assim oconfia, nu, ao bispo ou ao presbítero que está perto da água. O baptizando desce à água.Aquele que o baptiza diz: «Crês em Deus Pai todo-poderoso?» E o que é baptizado diz:«Creio». E aquele que baptiza, mantendo a mão sobre a cabeça dele, baptiza-o uma vez.Em seguida, diz: «Crês em Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu pelo Espírito Santoda Virgem Maria, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, morreu, ressuscitou ao terceiro diavivo de entre os mortos, subiu aos céus e está sentado à direita do Pai, e que virá julgaros vivos e os mortos?»

E, quando ele tiver dito: «Creio», baptiza-o segunda vez. De novo, o que baptizadirá: «Crês no Espírito Santo, na santa Igreja?» O que é baptizado dirá: «Creio», e assim

Page 82: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

82 PADRE JOSÉ FERREIRA

será baptizado uma terceira vez. Depois é ungido com o óleo de acção de graças comestas palavras: «Eu te unjo com óleo santo em nome de Jesus Cristo». Depois de se teremenxugado e vestido, entram na igreja. O bispo impõe-lhes a mão, dizendo uma in-vocação. Depois, derrama-lhes o óleo de acção de graças com a mão, impondo-a sobre acabeça deles, e diz: «Eu te unjo com óleo santo em Deus Pai todo-poderoso e em CristoJesus e no Espírito Santo». Faz-lhe o sinal da cruz sobre a fronte e dá-lhe o beijo da paz,dizendo: «O Senhor esteja contigo». E ele responde: «E com o teu espírito».

Em seguida, rezarão com todo o povo, pois antes de terem obtido tudo isto nãorezam com os fiéis. No fim da oração, dão uns aos outros o beijo da paz. Segue-se acelebração da Eucaristia. Mas ao cálice do Sangue do Senhor virá juntar-se uma taça deleite e mel, para indicar o cumprimento da promessa feita aos nossos pais, de que haviamde entrar na terra onde corre o leite e o mel, terra na qual agora os baptizados acabam deentrar. Depois da fracção do pão, o bispo apresenta-o a cada um, dizendo: «O pão do céuem Cristo Jesus». E o que o recebe responde: «Amen». O mesmo sucede com os cálices.

Quando isto tiver terminado, cada um se aplicará a fazer boas obras, a agradar aDeus e a portar-se bem, a ser zeloso para com a Igreja, fazendo o que aprendeu eprogredindo na piedade.

Perdoai ter-me demorado com esta transcrição quase literal, mas não completa, daTradição Apostólica sobre a iniciação cristã nos princípios do século III. Mas este teste-munho é irresistível e único. Trata-se realmente de uma iniciação, primeiro na palavra,que revela o mistério, depois no rito, que o celebra e nele faz participar. Os antigoscristãos tinham consciência de que se tratava de uma iniciação no mistério, isto é, nosegredo divino, que a eles gratuitamente se revelava. Para os de fora, enquanto não esti-vessem dentro, admiti-los impreparadamente nesta intimidade seria uma profanação,porque para eles seria tido como que uma loucura. Por isso, S. Hipólito acrescenta:«Transmitimo-vos estas coisas brevemente sobre o santo baptismo e a santa oblação,porque já tínheis sido instruídos sobre a ressurreição da carne e sobre outros ensi-namentos segundo o que está escrito. Mas se for conveniente recordar qualquer outracoisa, o bispo o dirá sob o selo do segredo àqueles que receberam a Eucaristia. Os infiéisnão tenham conhecimento disto, senão quando tiverem recebido a Eucaristia. Trata-se dapedra branca, acerca da qual João diz: «Um nome novo aí está escrito, que ninguémconhece, a não ser aquele que o receber» (Ap 2, 7).

Na Tradição Apostólica de S. Hipólito encontramos o ritual completo da disciplinada iniciação cristã. Não houve outro em toda a história desta iniciação, a não ser o queresultou da simplificação ou adulteração deste ritual primitivo. E o Ritual agorareformado outra coisa não é senão o regresso, com ligeiras adaptações que a evoluçãodos tempos impunha, ao ritual de S. Hipólito, tão completo e actual ele é.

c) Nos séculos IV e V

É-nos relativamente fácil reconstituir a disciplina da iniciação cristã deste períodoa partir dos vários testemunhos dos Padres, sobretudo das suas catequeses, de uma cartado Diácono João a Senário de Siracusa e do ritual conservado num dos mais antigosSacramentários romanos, o Sacramentário Gelasiano.

Page 83: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A INICIAÇÃO CRISTÃ NA TRADIÇÃO DA IGREJA 83

Tal como no século anterior, continua a existir o catecumenado distribuído emdois períodos, um primeiro mais afastado da celebração dos sacramentos e mais longo,outro mais próximo e mais breve, destinado exclusivamente aos «eleitos» para obaptismo, e que, a partir do século IV, vai coincidir com o tempo da Quaresma, instituídaespecialmente para eles.

A entrada em catecumenado processa-se de maneira semelhante à descrita porHipólito na Tradição Apostólica.

O catecumenado continua a durar, em princípio, três anos; todavia são muitos,como veremos, os que, uma vez inscritos, se desinteressam desmesuradamente do pedidode inscrição para os sacramentos. Quando esse dia finalmente chegar, entram na segundae última fase do catecumenado, pelo rito da eleição ou inscrição do nome, e passam a serdenominados «eleitos» ou «competentes» (em latim); ainda se lhes dá o nome, sobretudono Oriente, de «illuminandi» (em tradução latina), isto é, os que se preparam para serem«iluminados», pois que o baptismo também é chamado «iluminação». Dada a poucadecisão que haviam mostrado no período anterior, este segundo período vai tentar supriro que faltou nesse período.

O século IV foi, de facto, um século de crise no que se refere à iniciação dosadultos. Começa a sentir-se certa desafectação por parte destes em relação ao baptismo.Mesmo quando os candidatos ao baptismo se inscreviam no número dos catecúmenos, efrequentemente isso acontecia desde tenra idade, não foi raro que o tempo do catecume-nado se arrastasse indefinidamente e os candidatos nunca mais se decidissem a pedir ossacramentos. Ficava-se pelo caminho! Os pastores frequentemente insistem com elespara que peçam o baptismo. Testemunho desta crise é que a maior parte dos grandesPadres da Igreja deste século foram baptizados em idade bastante avançada. Recorde-mos o caso bem conhecido de S. Agostinho, baptizado aos 33 anos e depois de que lutasinteriores! No entanto, ele tinha sido alistado entre os catecúmenos desde criança.

Uma vez eleitos e inscritos para o baptismo, estes catecúmenos recebem, ao longoda Quaresma, uma preparação muita intensa. Consta ela de formação moral, doutrinal ede celebrações litúrgicas. S. Leão Magno fala de exorcismos (liturgia), jejuns (ascese) epregações (catequese). É a estas pregações que pertencem as célebres catequeses bap-tismais, bem conhecidas. Pretendem todas elas fazer a iniciação no mistério de Deus queSe revela e Se comunica na história da salvação. O catecúmeno é alguém que vai entrarhoje na história da salvação, a qual já vem de longe, mas nele se vai agora continuar. OsPadres sentem gosto em estabelecer o paralelo entre a história da salvação proclamadana Bíblia e a ordem sacramental da Igreja. A interpretação tipológica, segundo a qual oque se lê na Bíblia, como realizado outrora para a salvação de outros, se verificarealizado hoje nos sacramentos da Igreja, é forma de catequese muito ao gosto dosPadres destes séculos e encontra frequente testemunho na liturgia, particularmente nostextos da liturgia da iniciação. Basta-nos recordar a aproximação que uns e outros fazementre o Êxodo e o baptismo. Mas de toda a história da salvação é a de Jesus Cristo a quemais é comentada aos eleitos. Assim se prepara a profissão de fé que eles hão-de fazerantes de serem baptizados. O resumo da fé encontra-se justamente no Símbolo da fé, oCredo, que lhes era solenemente entregue no V Domingo da Quaresma. É o que se chama

Page 84: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

84 PADRE JOSÉ FERREIRA

a tradição (ou entrega) do Símbolo, como depois se chamará a redição do Símbolo aoacto pelo qual o hão-de recitar de cor no Sábado Santo, durante o último escrutínio.

Ao lado das catequeses, há as celebrações litúrgicas, entre as quais se destacam osescrutínios. Nesta época, os escrutínios são ainda três, e têm lugar no III, IV e V Domingoda Quaresma, na assembleia de toda a comunidade. Servem-lhes de ponto de partida asleituras bíblicas, principalmente as do Evangelho, escolhidas precisamente em ordem aoescrutínio: no III Domingo, o Evangelho da Samaritana, no IV, o do cego de nascença, eno V, o da ressurreição de Lázaro. Estes textos ficaram considerados, desde esse tempo,como fundamentais na preparação imediata para o baptismo, e voltaram, por isso, aser agora atribuídos a estes mesmos Domingos no ano A; mas podem ser igualmenteutilizados nos Anos B e C nestes mesmos Domingos, sobretudo onde houver catecú-menos. E, no caso de não virem a ser utilizados nestes Domingos nos Anos B e C, podemsê-lo durante as semanas que se lhes seguem, em qualquer dia das mesmas, substituindoentão as leituras previstas para esse dia, tal a importância que se lhes atribui. OLeccionário Ferial prevê esta opção no início da III, IV e V semana da Quaresma,antes da Missa das Segundas-feiras.

Os escrutínios têm como elemento específico o exorcismo. O exorcismo é um actopelo qual, numa fórmula solene, se põe diante dos olhos do catecúmeno a verdadeiracondição da vida espiritual do cristão, a luta entre a carne e o espírito, a importância darenunciação para alcançar as bem-aventuranças do Reino de Deus, e a contínua necessi-dade do auxílio divino (Rit. da Inic. Crist. dos Adult., 101; cf. nn. 154-157, sobret. 156).

O baptismo é ainda celebrado como se descreve na Tradição Apostólica, fazendoacompanhar a tríplice imersão com a tríplice profissão de fé, em diálogo entre o ministroe o que é baptizado.

O baptismo é imediatamente seguido da Unção da Confirmação e da participaçãona Eucaristia, cuja celebração culmina todo o rito. Tal como em S. Hipólito.

Os recém-iniciados chamam-se neófitos. Estes são objecto de cuidados especiaisdurante as primeiras semanas do seu neofitado. Durante elas, recebem um outro tipo decatequese chamada mistagógica.

3. Do século VI ao século XVI

A partir dos começos do século VI, a maior parte dos catecúmenos são crianças,às quais não é possível nem teria sentido aplicar a disciplina catecumenal como ela tinhasido pensada para os adultos nos períodos anteriores. Os catecúmenos de agora sãopassivos, incapazes de fazerem uma caminhada catecumenal. Podem, sim, ser bapti-zados, porque o dom do baptismo é gratuito; o que não lhes é aplicável é uma disciplinapensada para adultos e só para eles justificável.

Como vai então ser celebrada a iniciação destas crianças?Do ponto de vista dos ritos sacramentais propriamente ditos, eles foram

substancialmente conservados. Foi a disciplina e a liturgia do catecumenado que foisofrendo sucessivamente muitas alterações, mas sempre a partir daquela primeiraestrutura já de nós conhecida. Eis algumas adaptações:

Page 85: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A INICIAÇÃO CRISTÃ NA TRADIÇÃO DA IGREJA 85

a) as interrogações que, na antiga disciplina, se faziam no próprio momento dobaptismo: «Crês em Deus Pai..., etc.», foram antecipadas para antes do baptismo esubstituiu-se-lhes uma fórmula pronunciada pelo ministro, de carácter declarativo:«Eu te baptizo...»;

b) à antiga tradição do Símbolo, veio juntar-se, primeiro, a tradição da oraçãodominical, o «Pai nosso», e, mais tarde, a dos Evangelhos, que, de algum modo,substituía as antigas catequeses, agora impraticáveis;

c) elevou-se o número de escrutínios, que passaram de três para sete, para, decerta maneira, compensar pela invocação da acção divina a incapacidade de participaçãodo catecúmeno;

d) tanto o rito de admissão, como os vários escrutínios vão sendo sucessivamenteagrupados, a ponto de acabarem por se juntar ao próprio rito do baptismo, numa únicacelebração;

e) a partir do segundo milénio, a entrega da veste branca passa a ser acompanhadade uma fórmula própria;

f) aparece a entrega da vela acesa;g) e, a mais profunda talvez, dentro do próprio rito baptismal, a imersão, a única

maneira perfeitamente expressiva do descer com Cristo à sepultura para dela surgircomo nova criatura, segundo S. Paulo, foi substituída pela infusão.

Desta rápida excursão pode concluir-se que nunca existiu um Ritual de Baptismodas Crianças, senão no nosso tempo. As crianças sempre se baptizaram como os adultos,à parte o catecumenado.

Quando se chegou ao século XVI, mais precisamente em 1523, Alberto Castellaniorganizou um Ritual, com o nome de Liber Sacerdotalis, em que se continham doisrituais de baptismo, um mais longo, outro mais breve. Estava-se ainda antes do Concíliode Trento, e tentavam-se experiências sentidas necessárias, como o futuro veio ademonstrar. Terminado o Concílio, que confiava ao Papa a reforma da liturgia que elenão tinha tido tempo de realizar, embora a começasse, Paulo V publicou em 1614, oRitual Romano, e nele atribuía o Ritual maior de Castellani aos adultos, e o menor,às crianças. Em qualquer desses rituais, com os quais se baptizaram as gerações dosúltimos séculos, e nós com elas, se podiam adivinhar os antigos elementos do ca-tecumenado e dos sacramentos da iniciação já presentes na Tradição Apostólica deHipólito; mas, quão atrofiados e quase irreconhecíveis!

Em 1962, certamente por influência e pressão dos missionários, que tinham a seucuidado, nas Missões, milhares de catecúmenos adultos e que sentiam a falta de umaliturgia que acompanhasse a caminhada desses catecúmenos até aos sacramentos dainiciação, a Santa Sé propôs a utilização do Ritual do Baptismo dos Adultos desdobrado,como outrora, em diversas celebrações. Os elementos estavam lá; era só questão de osseparar e os distribuir ao longo do tempo do catecumenado. Os missionários já antesdisso tinham tentado algumas experiências paralitúrgicas, na ausência de uma liturgiapensada para os seus casos.

O Concílio Vaticano II prevê agora, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nosnúmeros 66 a 70, a reforma dos Rituais do Baptismo: «Revejam-se ambos os ritos do

Page 86: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

86 PADRE JOSÉ FERREIRA

Baptismo de adultos, tanto o mais simples como o mais solene, tendo em conta arestauração do catecumenado». Foi o que se fez com o Ordo Initiationis ChristianaeAdultorum, publicado em Roma no dia 6 de Janeiro de 1972, e agora aparecido entre nósem língua portuguesa.

Algumas conclusões

1. As verificações que temos vindo a fazer podem trazer-nos, entre outras, umaperspectiva importante para a catequese pós-baptismal, que é a maior parte da catequeseque temos hoje para fazer entre nós. Ela deverá ser, até certo ponto, uma mistagogia,pois que ela tem como missão levar a descobrir o que somos por termos sido iniciadospor meio dos sacramentos que nos constituíram cristãos. A vida cristã descobrir-se-áassim, antes de mais, como o acto de reconhecer e agradecer o dom recebido, e corres-ponder ao que se é por graça de Deus. O pelagianismo é tentação de todos os tempos;mas os sacramentos que nos marcaram com o sinal da fé são a fonte donde dimana todaa nossa situação de cristãos e, por isso, o ponto de partida para a descoberta, cada vezmais profunda se mais actualizada, do que devemos querer ser.

2 A disciplina da iniciação, tal como a Igreja a instituiu desde os primeirostempos da sua experiência pastoral e que, de novo, nos propõe, é sempre um modelo,mesmo para a formação dos que já foram iniciados pelos sacramentos da iniciação;mas nunca se poderá assimilar a situação espiritual de um baptizado, praticante ou não,à de um não baptizado, pagão ou catecúmeno. O baptizado tem a descobrir o que é, o queDeus nele realizou; o não iniciado tem a desejar o que poderá vir a ser.

3. Os sacramentos da iniciação são o complexo sacramental formado peloBaptismo, Confirmação e Eucaristia, complexo inseparável, mesmo que, por razõessempre excepcionais, estes sacramentos sejam celebrados separadamente. Por isso,em princípio, nenhum destes sacramentos exige maior preparação do que qualquer dosoutros dois; mas, se forem celebrados separadamente, e a algum deles faltou a devidapreparação, esta deverá ser feita para os outros sacramentos que ainda não foramcelebrados.

4. Os sacramentos da iniciação, de per si, não estão ligados a nenhuma idadeparticular, não se destinam a nenhuma época especial da vida. Mas a experiênciapastoral pode dilatar qualquer destes sacramentos até ao momento achado oportuno,tendo-se sempre o cuidado de evitar que tal venha a perspectivar erradamente os sacra-mentos da iniciação.

5. Devem ser valorizadas todas as circunstâncias que podem tornar mais signifi-cativos os ritos sacramentais, na linha da recta interpretação dos mesmos. Em particular,é de fomentar o baptismo por imersão, o mais expressivo, o mais tradicional, e previsto,sempre em primeiro lugar, nos novos livros litúrgicos.

Page 87: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃODA LITURGIA DAS HORAS

I - ESTRUTURA DA LITURGIA DAS HORAS

Introdução

A Liturgia das Horas, como toda a Liturgia, é, antes de tudo, celebração. Ela sóexiste quando está a ser celebrada. Toda a reflexão, todo o seu estudo prévio se orientapara essa celebração. Por isso, talvez que nenhum dos nossos encontros de PastoralLitúrgica tenha alcançado tanta unidade como este que está a decorrer, porque o estudoe a reflexão que estamos fazendo sobre a Liturgia das Horas vai encontrar concretizaçãoimediata na celebração dessas mesmas Horas.

Esta conferência, intitulada «Estrutura e celebração da Liturgia das Horas», vaitambém orientar-se para essa celebração. Trataremos primeiro da estrutura do Ofíciodivino em geral, e de cada uma das Horas, em particular; depois, faremos algumas consi-derações sobre a celebração em si mesma. Num e noutro destes dois pontos nosinspiraremos directamente da Instrução Geral da Liturgia das Horas (IGLH), que cita-remos a cada passo. Não serão regras o que se pretende expor, mas somente ajudar acelebrar melhor e mais conscientemente as Horas do «Opus Dei», como S. Bento chamaao Ofício divino, ao qual, como ele diz, nada se há-de antepor. Ou, como diz a própriaInstrução Geral, «o que acima de tudo interessa é não tornar a celebração rígida e artifi-cial, nem se preocupar com a observância meramente formalística de certas normas;mas, sim, que ela corresponda verdadeiramente à realidade. É nisto que antes de mais sehá-de concentrar todo o esforço, para que os espíritos se sintam possuídos do desejo dagenuína oração da Igreja e tenham gosto em celebrar os louvores de Deus» (IGLH, 279).Isto pode ler-se quase no fim da Instrução; é o objectivo que se pretende; mas para oalcançar é necessário ler os números anteriores da mesma Instrução. É o que vamostentar fazer, ao menos alguns dos principais, que mais interessam ao nosso trabalho.

1. A LITURGIA DAS HORAS É A ORAÇÃO DA IGREJA.

1.1 A Liturgia das Horas estrutura-se sobre o tempo e as suas divisões naturais

A Liturgia das Horas, como já foi dito, organiza-se, antes de mais, em relação como tempo natural e, em particular, com as diversas horas de cada dia. O primeiro elementocom que a sua estrutura conta são as horas do relógio. Não é sem razão que os cristãosorientais chamam a esta liturgia Horologion, o relógio. A sua finalidade é precisamentepôr a comunidade cristã em oração às diversas horas do dia e da noite, para assim dar

Page 88: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

88 PADRE JOSÉ FERREIRA

cumprimento, o mais fielmente possível, ao mandato do Senhor: «Orai», que o Apóstoloexplicitou mais: «Orai sem interrupção».

A Liturgia das Horas estruturou-se assim com este esquema diário: Vigília (Ofícionocturno de leitura), Laudes matutinas (oração da manhã), Tércia (à terceira hora, meioda manhã), Sexta (à sexta hora, meio dia) Noa (à nona hora, meio da tarde), Vésperas(ao entardecer, à hora do aparecimento da estrela Vésper, a estrela da tarde) e Completas(ao deitar). É este o esquema completo, que poucos celebrarão integralmente masque a todos é proposto como ideal e a todos é oferecido como oportunidade.

Uma vez que esta estrutura está pensada como Liturgia das Horas «importarecitá-las no momento próprio, quer dizer, naquele que mais se aproxime do tempoverdadeiro correspondente a cada Hora litúrgica» (n.º 11).

1.2 As diversas Horas e sua importância relativa

a) Laudes e Vésperas

É evidente que poucas pessoas terão oportunidade de rezar todas Horas da oraçãolitúrgica todos os dias e a estas horas. Mas muitos são os que sentem a necessidade derezar a certas horas, particularmente ao princípio e ao fim do dia. Sempre assim foisentido pela maior parte dos cristãos. Isto corresponde até ao ritmo natural da vidadiária. Foi assim que nasceu a oração das Horas da manhã e da tarde, hoje chamadasrespectivamente Laudes e Vésperas. O nome autêntico da primeira é Laudes matutinas,isto é, louvores da manhã. Vésperas é a palavra latina que significa o entardecer (não avéspera do dia seguinte).

Estas duas Horas são, por natureza e por tradição, «como que os dois pólos doOfício quotidiano; por isso, devem considerar-se como Horas principais» (n.º 37). Quemse limitasse a rezar diariamente estas duas Horas já estaria em situação de saborear aoração diária da Igreja e poder acompanhar a espiritualidade da sua liturgia.

b) Vigília e Ofício da Leitura

A palavra «vigília» significa «estar de vela», estar acordado de noite. Em liturgia,é o nome que se dá ao tempo de oração durante a noite. No nosso caso concreto, é onome do Ofício previsto para durante a noite. Sabemos como as horas da noite foramfrequentemente consagradas à oração, tanto pelo próprio Senhor Jesus Cristo, comodepois pela tradição cristã. Entre todas, foi desde sempre célebre a Vigília pascal, «mãede todas as santas vigílias», como disse S. Agostinho. Foram sobretudo as comunidadesmonásticas que gostaram de manter viva esta tradição.

Como, por um lado, são hoje relativamente poucos os que celebram habitualmenteo Ofício vigilial, e como, por outro lado, este Ofício dá lugar especial à leitura, a novareforma da Liturgia das Horas prevê que o Ofício da vigília diária, fora do coro, possaser celebrado não como vigília, isto é, não de noite, mas a qualquer hora da noite ou dodia, como Ofício da Leitura. É por isso que ele não é chamado Hora, como todas asdemais Horas, mas simplesmente Ofício, Ofício da Leitura. No entanto, fica sempre de

Page 89: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 89

pé o convite, e até convite insistente, para que se celebre a Vigília nocturna, sobretudonas grandes Solenidades, aos Domingos e até nas Festas. Entre as Solenidades a InstruçãoGeral refere, em particular, o Natal e o Pentecostes.

Aconselha-se até uma Vigília mais longa, precisamente Vigília prolongada. EstaVigília prolongada segue a mesma estrutura da Vigília simples, isto é, a do Ofício daLeitura, mas acrescida de mais alguns elementos: três cânticos do Antigo Testamentodepois das leituras e responsórios, a leitura do Evangelho, que, aos Domingos, serásempre o da Ressurreição, e, nos outros dias, o da Missa desse dia, terminando tudo como Te Deum (nn. 70-73).

c) As Horas «menores» e a Hora Intermédia

Rezar a certas horas, como que para reanimar o espírito de oração e manter oritmo de união a Deus ao longo do dia, foi hábito em toda a tradição cristã e daí nasceuo costume que veio a dar origem às Horas de Tércia, Sexta e Noa. Chegou até aencontrar-se para elas apoio no horário da Paixão do Senhor e na vida dos Apóstolos eda Igreja primitiva. À hora de Tércia, foi Jesus crucificado e o Espírito desce sobre osApóstolos no dia de Pentecostes; à hora de Sexta, o Senhor está sobre a Cruz e as trevascobrem o Calvário, e Pedro ora e é chamado para ir ao encontro do centurião Cornélio; àhora de Noa, Jesus expira na Cruz e Pedro e João sobem ao Templo «para a oração dahora nona». Estes e outros acontecimentos da história da salvação são frequentementeevocados nos textos destas Horas, particularmente em certos dias, como os episódios daPaixão à sexta-feira.

A celebração destas Horas mantém-se no coro; para as outras pessoas propõe-se,ao menos, uma Hora ao longo do dia, que, por não ficar ligada a nenhum momentoespecial, recebe agora o nome de Hora Intermédia.

d) Completas

Completas é a última oração, antes do deitar. Não tem quase nenhuma ligaçãocom o Ofício que foi celebrado nesse dia; apenas ao sábado e Domingo, a oração fazreferência à Ressurreição. É simplesmente uma oração do deitar. Por isso, pode rezar-seseja a que hora da noite for, para que seja ao deitar. (nn. 84-91).

1.3 Liturgia das Horas e Eucaristia

a) Dois tipos de celebração

Toda a liturgia é oração, é a Oração da Igreja, ou, mais concretamente, a Igrejaem Oração. Mas cada forma de oração tem o seu sentido próprio. Na Liturgia das Horasa oração assume um tom especificamente laudativo e passa-se toda na proclamaçãodesse louvor. É uma liturgia exclusivamente da palavra, e da palavra de louvor. AEucaristia é a celebração do momento culminante da história da salvação, mas,como acontece nos outros sacramentos, a palavra vem aí unida à acção. Na Eucaristia,essa acção é a Ceia do Senhor.

Page 90: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

90 PADRE JOSÉ FERREIRA

Liturgia das Horas e Eucaristia são duas maneiras diferentes de celebrar o mesmomistério, mas cada uma com o seu lugar próprio e o seu momento particular. Maspoderia dizer-se que a Liturgia das Horas envolve e desenvolve o louvor da Euca-ristia; prepara-o e prolonga-o. «A Liturgia das Horas alarga aos diferentes momentosdo dia o louvor e acção de graças, a memória dos mistérios da salvação, as súplicas,o antegozo da glória celeste, contidos no mistério eucarístico». Ao mesmo tempo,«a celebração eucarística tem na Liturgia das Horas a sua melhor preparação» (n. 12).

b) A ligação ocasional do Ofício com a Missa

«Em casos particulares, quando as circunstâncias o pedirem, na celebraçãopública ou comunitária, pode fazer-se uma ligação mais estreita da Missa com uma Horado Ofício», dentro de determinadas normas que a Instrução Geral aponta (nn. 93-99). Énecessário, por exemplo, que «a Missa e a Hora pertençam ao mesmo Ofício»; não tem,por isso, sentido celebrar as Vésperas unidas à Missa, se as Vésperas são as Primeiras dodia seguinte e a Missa é do dia em que se está.

1.4 A Liturgia das Horas e os tempos litúrgicos

Além de ser o meio de santificar as horas de cada dia, a Liturgia das Horas,celebrando-se em todos os dias do ano litúrgico, é, ao lado da Missa, a melhor maneirade entrar em contacto com os mistérios desse mesmo ano litúrgico, de os celebrar, delhes captar o espírito e de lhes colher o alimento e a doçura espiritual que eles contêm.Conservando sempre a mesma estrutura interna, o Ofício divino enriquece-se em cadatempo com elementos próprios que lhe vêm desses mesmos tempos, na escolha dossalmos e leituras, nas antífonas, responsórios e orações, nos hinos e outros cânticos. E éaté muito difícil penetrar no conhecimento e na vivência do ano litúrgico, se não se tomacontacto com a Liturgia das Horas de cada tempo litúrgico. Só o Missal não é suficientepara o conseguir.

2. ESTRUTURA GERAL DE CADA HORA

Cada Hora do Ofício divino tem a sua estrutura própria, que a experiência daIgreja ao longo dos séculos lhe ensinou. Esta estrutura ou organização dos diversoselementos de que cada uma delas se compõe não é arbitrária; obedece a uma exigênciaque a teologia inspirou e que até a psicologia aconselhava. Há portanto uma determinadaestrutura, que é, no fundo, comum a todas as Horas, embora certos elementos sejam maisdesenvolvidos numa Hora, menos pronunciados noutra Hora.

2.1 Análise da estrutura de uma Hora a partir de Vésperas

Para nos ser mais fácil compreender esta estrutura, vamos partir do exemploconcreto de uma Hora. Tomemos a Hora de Vésperas. A sua estrutura é como segue:

Page 91: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 91

1. Introdução: versículo: «Deus, vinde em nosso auxílio». Glória ao Pai...2. Hino3. Salmodia: dois salmos e um cântico do Novo Testamento, cada qual com a sua antífona4. Leitura breve5. Responsório breve6. Cântico evangélico7. Preces8. Oração dominical: «Pai nosso»9. Oração conclusiva

10. Conclusão: bênção e despedida

Este todo faz uma unidade e não há que estar a estabelecer nela divisões; mas,para melhor o compreendermos, podemos encontrar, neste conjunto, certos blocos, maisou menos completos. Assim:

– Os números 1 e 2 são uma espécie de introdução a toda a Hora, um pouco comoacontece na Missa com o cântico de entrada e alguns outros ritos que se lhe seguem;

– o numero 3, a salmodia, constitui o bloco central do louvor;– os números 4, 5 e 9 constituem uma pequena celebração da palavra, com os três

elementos típicos de uma celebração desse género: leitura, cântico (salmo responsorial)e oração;

– o numero 6, o cântico evangélico, é próprio desta Hora e da de Laudes, com adiferença que, em Vésperas, é o Magnificat e, em Laudes, é o Benedictus. São doiscânticos, especialmente solenes, de louvor e acção de graças, um ao terminar o dia, outroao principiá-lo;

– os números 7 e 8, que antecedem imediatamente a oração final, como queampliam o momento de oração, com que terminam sempre todas as celebrações. Osnúmeros 7, 8 e 9 cabem todos dentro do que se poderia designar globalmente por «otempo de oração», para onde toda a Hora caminha.

Observando este simples esquema, afigura-se-nos estarmos diante de dois gruposde elementos, vindos de origens diferentes: a salmodia e a celebração da palavra.Deixemos de parte a Introdução (nn. 1 e 2) e a Conclusão (n. 10). A salmodia (n. 3) éuma forma de oração tradicionalíssima desde a antiguidade cristã, que se reza por simesma. A oração das Horas, centrada sobre os salmos, deve ter recebido este corpocentral dos eremitas e dos monges, que deles se serviram desde os tempos mais recuadoscomo quem hoje passa as contas do seu Rosário, meditando, em diálogo com Deus, nas«maravilhas que Ele fez em favor dos filhos dos homens» (Sl 106).

A este primeiro bloco composto pelos salmos vem juntar-se um segundo grupo(nn. 4, 5 e 9) que constitui, como dissemos, uma breve celebração da palavra. Estasegunda forma de oração é a forma típica das comunidades «catedrais», como secostuma dizer, mas que nós podemos dizer hoje comunidades «paroquiais» e se-melhantes. Leitura, responsório e oração são os três elementos basilares de toda acelebração da palavra. Tratando-se de uma celebração da palavra breve como é o casodas Horas, a leitura será breve, e breve será o responsório.

Page 92: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

92 PADRE JOSÉ FERREIRA

2.2 Confronto com as outras Horas do Ofício divino

a) A Hora de Laudes segue exactamente o mesmo esquema que a Hora deVésperas, apenas com a diferença de que o cântico bíblico, que se reza ao lado dossalmos, é tirado do Antigo e não do Novo Testamento, e, por isso, vem, não depois dossalmos, como em Vésperas, mas entre os dois salmos. A ordem é, portanto: salmo, cân-tico, salmo, enquanto que em Vésperas é: salmo, salmo, cântico. Explica-se a razão. EmLaudes, o último lugar é ocupado por um salmo de louvor, geralmente começado por:«Louvai», «cantai», ou semelhante; mas trata-se do mesmo Antigo Testamento, ao passoque em Vésperas o cântico vem depois dos salmos, em razão do princípio geral de que oNovo Testamento vem sempre depois do Antigo.

O cântico evangélico ocupa nas duas Horas o mesmo lugar, entre o responsóriobreve e as preces.

b) O Ofício da Leitura é o que aparentemente mais se distancia desta estrutura,porque, depois da salmodia, hoje também de três salmos, (outrora era de nove, por vezesaté de doze), desenvolve muito a segunda parte, a da leitura. É que é essa precisamente asua característica, ser Ofício da Leitura. Por isso, aqui, tanto a leitura como o responsó-rio que lhe corresponde não serão breves, como nas outras Horas, mas longos. Todavia,no fundo, a estrutura continua a ser a mesma: leitura, cântico, oração.

Um elemento próprio deste Ofício é o famoso hino Te Deum com que ele terminaaos Domingos fora da Quaresma, nas solenidades e festas.

c) As Horas «menores» têm também a mesma estrutura, mas de maneira simpli-ficada: introdução, hino, salmodia com três salmos, leitura breve, um simples versículoem vez do responsório breve, e oração. Comparando com Vésperas e com Laudes, estasHoras, além de simplificarem o cântico responsorial, um simples versículo, não desen-volvem o tempo final de oração, aqui limitado à colecta de conclusão.

A Hora intermédia não é mais do que uma destas Horas «menores» à escolha dequem a celebra.

d) Completas, o último tempo do Ofício diário (não é propriamente uma Hora),segue ainda o mesmo esquema fundamental, semelhante ao da Hora Intermédia, comalgumas diferenças: só tem um salmo, excepto ao sábados, que tem dois salmos peque-nos; depois da leitura breve, em lugar de um versículo, como a Hora Intermédia, tem umresponsório breve, como em Vésperas e Laudes; no fim deste, integra um cântico evan-gélico, o Cântico de Simeão, o Nunc dimittis, aproximando-se, neste ponto, da Hora deVésperas ou da de Laudes; no fim, à maneira de bênção antes do deitar, insere um versí-culo especial, a pedir a graça de «uma noite tranquila e, no fim da vida, uma santa morte».

Temos assim diante dos olhos o esquema geral do Ofício de cada dia e do de cadauma das suas Horas. Mas, até este momento quase só enumeramos os elementos dessesofícios. Precisamos agora de ver mais de perto alguns desses elementos em particular.

Page 93: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 93

3. OS VÁRIOS ELEMENTOS DE CADA HORA

A) Ritos iniciais

3.1 Introdução a todo o Ofício diário: Invitatório

É exigência psicológica muito natural que as coisas não comecem de repente, massejam introduzidas de maneira gradual, que, de algum modo, nos vá preparando paraelas, sobretudo quando se trata de actividades de ordem espiritual. Não se salta abrupta-mente da rua para a igreja; entre os dois fica o adro. O “adro” do Ofício divino de cadadia é o Invitatório. Invitatório quer dizer convite. Antes da primeira Hora do dia, reza-seo invitatório. Consta ele de um versículo: “Abri, Senhor, os meus lábios” com a suaresposta, e de um salmo de convite ao louvor, acompanhado de uma antífona, tambémela do género de convite: “Vinde, adoremos o Senhor” ou semelhante. O salmo doinvitatório pode ser o 94, o mais normal, ou os salmos 99, 66, ou 23.

Em princípio, o invitatório diz-se antes da primeira Hora que for rezada; se estaHora for a de Laudes, o invitatório pode então ficar reduzido ao versículo, omitindo-se osalmo e a sua antífona (n. 35).

Por outro lado, a Hora antes da qual se diz o Invitatório não terá outra Introdução(nn. 34-36; 41).

3.2 Hino

Os hinos são composições poéticas, de origem eclesiástica e frequentemente decarácter mais popular. São como um canto de entrada na celebração da Hora, e marcam,logo desde o início, o carácter peculiar dessa Hora ou da festa do dia, porque há hinosque se referem mais à Hora, como são, em geral, os da Hora Intermédia, e há hinos quese referem mais ao mistério ou à festa celebrada.

Os hinos deveriam ser de inspiração bíblica; dado que nem sempre o conseguemser, merece especial cuidado a sua selecção.

Atenção semelhante deveria merecer também a sua forma literária. Não équalquer poema, mesmo de inspiração e temática religiosa, que serve para hino litúrgico(nn. 173-178).

B) A palavra de Deus

3.3 Salmodia: salmos, cânticos e antífonas

Os salmos constituem a parte central e a mais importante, ao menos da primeiraparte de cada Hora do Ofício divino.

a) Repartição dos salmos pelas diversas Horas

Um dos pontos mais atingidos em todas as reformas do Ofício divino é sempre adistribuição dos salmos. S. Bento pede aos seus monges que rezem todo o saltério, isto é,

Page 94: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

94 PADRE JOSÉ FERREIRA

os 150 salmos que constituem o Livro dos Salmos na Bíblia, ao longo de cada semana, epede-lhes que façam ao menos isto, já que os seus antepassados rezavam todos os salmostodos os dias. Na reforma actual, os salmos foram distribuídos por quatro semanas. Quediria hoje S. Bento! Mas era a única solução possível dado que, nalgumas Horas, o númerode salmos foi muito reduzido em relação ao número anteriormente em uso. Actualmente, onúmero e a distribuição dos salmos pelas diversas Horas de cada dia é o seguinte:

Um salmo no invitatório; três, no Ofício da Leitura; dois em Laudes; três na HoraIntermédia, nove para quem rezar as três Horas «menores», mas então seis de entre elesrepetir-se-ão todos os dias; dois em Vésperas; um em Completas (dois aos sábados). Umtotal diário de apenas doze salmos. Antes da reforma eram trinta e quatro. Mas écertamente mais importante reconhecer os critérios a que obedeceu tal distribuição.

1) Ao fazer-se a reforma, depois de muito hesitar, omitiram-se na Liturgiadas Horas três salmos de carácter imprecatório, isto é, em que apareciam palavras demaldição, embora estes fossem dirigidos contra os inimigos de Deus. Estes salmosaproximam-se até das palavras de condenação usadas por Jesus no Evangelho e sãocitados no Novo Testamento. Mas era preciso ter em conta a falta de preparação daspessoas para os entender e o choque psicológico que resultaria do seu uso na liturgia.São eles os salmos 57, 82 e 108.

Pelas mesmas razões, foram suprimidos alguns versículos, com carácter seme-lhante, no meio de outros salmos. O conhecimento do género literário do salmo, ocontexto em que esses versículos aparecem e até a fidelidade à integridade da palavra deDeus justificariam que eles continuassem em uso na Liturgia das Horas. Mas muita gentese sentiria arrepiada se tivesse que dizer no fim do salmo 136: «Feliz daquele queesmagar os teus filhos contra as pedras», embora se trate do tão poético salmo «Sobre osrios de Babilónia», que toda a gente está desejosa de encontrar como salmo responsorialcom o refrão: «Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém,...».

2) Não se pode encontrar uma razão justificativa para o lugar que ocupa cada umdos salmos em tal ou tal Hora do Ofício. Os salmos rezam-se em razão de si mesmos,porque cada um tem o seu sentido e o seu valor próprio. Os antigos rezavam-nos, muitasvezes, todos a seguir, sem preocupação de encontrarem qualquer ligação entre eles. Essecritério é largamente testemunhado por S. Bento e ainda hoje em alguns lugares da actualdistribuição dos salmos nas diversas Horas. No Ofício da Leitura do Domingo da Isemana, que, de algum modo, começa a série dos salmos de todo o saltério litúrgico,encontram-se precisamente os salmos 1, 2 e 3, bem diferentes uns dos outros e sem liga-ção especial com o Domingo, ao menos alguns deles. Segundo a tradição, não havendoespecial razão em contrário, os salmos são escolhidos pela sua ordem numérica.

3) Mas essas razões existem a cada passo. Assim:– Para as Horas «que se destinam mais particularmente à celebração com o povo,

foram escolhidos salmos que se prestam melhor a este modo de celebração», diz aInstrução Geral, a propósito de Laudes e Vésperas (cf. n. 127).

– Em Laudes, o primeiro salmo é, quanto possível, de carácter matinal. Veja-se,por exemplo, no I Domingo o salmo 62, na I segunda feira, o salmo 5, etc. O terceirosalmo de Laudes é sempre de carácter laudativo, e começa até normalmente pela palavra

Page 95: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 95

«Laudate», «Cantate» ou equivalente; foi até este carácter laudativo que deu o nome àHora: Laudes, os louvores (n. 43). O último salmo de Laudes dos Domingos vem sempredo conjunto que já S. Bento chamava simplesmente as «Laudes», o conjunto dos salmos148 a 150. Assim, encontramos o salmo 149 no I Domingo, o 150, no II e IV, e o 148 noIII. Trata-se de salmos especialmente laudativos, que até no Saltério bíblico trazemindicado o refrão: «Aleluia». São salmos aleluiáticos.

– Em Completas, reza-se um salmo de confiança, como convém a uma Hora que,instintivamente, faz pensar na fragilidade e na morte. O salmo mais tradicional de Com-pletas é o 90, o dos Domingos, que pode ser rezado em qualquer dia, em substituição doque vier indicado para esse dia (n. 88).

– Significativa é a escolha para os Domingos de salmos mais tipicamente pascais,inclusive no Ofício da leitura e na Hora Intermédia. Assim, temos o salmo 109 e 113 nasII Vésperas, o 117 em Laudes e, na Hora Intermédia, também o 117 e o 22, alguns destesrepetidos em mais de uma semana (n. 129).

– As sextas-feiras fazem frequentes referências à Paixão ou à penitência. Assim,escolheram-se os salmos 21 e 139, onde perpassa o mistério da Paixão, sobretudo noprimeiro, e o salmo 50, o salmo penitencial por excelência, para primeiro salmo deLaudes todas as sextas-feiras do ano.

– Há um certo número de salmos que celebram, em especial, a história do povo deDeus, como história de salvação, e são, por isso, chamados salmos históricos. Há quemencontre nesses salmos, como nos salmos imprecatórios de que falámos, certa dificuldadeem os assumir como oração. Mas essa dificuldade deve provir de se dar à oração umcunho demasiado individual, e não se ter sido habituado a dar à sua oração, como ali-mento primordial, a salvação que Deus nos oferece na história da mesma salvação, eassim dizer o louvor, a acção de graças, a súplica e a esperança que essa história nosgarante e nos inspira. Dado, porém, que nesses salmos se encontram muitas alusõeshistóricas e geográficas, nem sempre muito conhecidas, foram eles reservados para ostempos privilegiados, mais evocativos da história da salvação, a saber, o Advento, oTempo do Natal, o da Quaresma e o da Páscoa. Esses salmos são o 77, o 104 e o 105.Foram colocados, o 104 no Ofício da Leitura do sábado da I semana, o 105 no sábado daII semana e o 77, divido por dois dias, na sexta-feira e sábado da IV semana. Escolhe-ram-se estes dias, próximos do Domingo, para que a história do Antigo Testamento, queeles cantam, pudesse vir a desabrochar muito naturalmente no mistério pascal que oDomingo celebra. O salmo 77 foi colocado na sexta-feira e no sábado da IV semana, massempre no Ofício da Leitura, para que as pessoas que rezam todas as Horas pudessemencontrar a sua continuação na mesma Hora em dois dias seguidos. A mesma solução epela mesma razão foi encontrada para dois outros salmos também bastante longos,embora estes não tenham carácter especialmente histórico: o salmo 17, colocado noOfício da Leitura da quarta e quinta-feira da I semana, e o salmo 88, o proféticosalmo 88, distribuído pelo Ofício da Leitura da quarta e quinta-feira da III semana.

Para se ser mais ou menos completo, interessa referir a distribuição dos salmospelas solenidades e festas. Aí, o critério fundamental é sublinhar, tanto quanto possível,o aspecto do mistério pascal contido nessa solenidade ou festa, ou criar o tom festivopróprio dessa celebração. Mas não é possível nem louvável limitar a capacidade

Page 96: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

96 PADRE JOSÉ FERREIRA

expressiva de um salmo a um só aspecto de uma festividade. Os salmos são poemas, e apoesia não é um tratado de lógica, mas expressão afectiva, feita de imagens, que nãopretendem limitar os horizontes, mas antes abri-los até à distância que cada qual tiver acapacidade de abarcar. Por exemplo, as «portas eternas», que convidamos a erguerem-secom as palavras do salmo 23, evocam bem as portas fechadas do paraíso, que aEncarnação do Filho de Deus vem, de novo, transpor ao entrar neste mundo, no Natal,como também as portas da morte, que Cristo, ao ressuscitar, vai, de novo, abrir, comocantamos já no Ofício de Sábado Santo, ainda sobre o sepulcro do Crucificado; ecantamo-las ainda ao celebrar Maria Santíssima, a «porta» por onde Cristo veio até nós.Mas todos estes mistérios são ressonâncias do mesmo e único mistério, pelo qual Deusvem até ao homem, a fim de o reconduzir até Si, em Cristo, através de toda a história dasalvação, porque em toda essa história é Deus que anda reconciliando o mundo consigoem Cristo.

b) Os cânticos bíblicos na Liturgia das Horas

Chamam-se «cânticos» várias composições poéticas, semelhantes, na forma, aossalmos, mas que não fazem parte do Livro dos Salmos e se encontram dispersos porvários outros livros da Bíblia.

Os cânticos sempre estiveram em uso na Liturgia, dentro e fora do Ofício divino.Pensemos, por exemplo, nos cânticos de Moisés na Vigília pascal, depois de duas dasleituras. No Ofício divino, tal como ele se apresentava anteriormente, estavam em uso,na Liturgia das Horas, 14 cânticos, dos quais 7 se usavam apenas em determinadostempos, os chamados penitenciais. Actualmente, depois da nova reestruturação do salté-rio litúrgico, foi necessário recorrer a maior número destes cânticos. São actualmente35, não contando os três cânticos evangélicos. Aumentou-se o número da colecção decânticos do Antigo Testamento, e, pela primeira vez, foram buscar-se cânticos do NovoTestamento. Os cânticos do Antigo Testamento cantam-se em Laudes, entre os doissalmos, como já se disse, ao longo das quatro semanas. Novidade é agora o uso litúrgicode cânticos do Novo Testamento, tirados das Epístolas e do Apocalipse. Estes cantam-seem Vésperas, depois dos dois salmos, como já se explicou. Estes, como são apenas sete,repetem-se todas as semanas nos mesmos dias de cada semana. Na Quaresma, nas IIVésperas do Domingo, em lugar do cântico do Apocalipse todo cheio de aleluiasesplendorosos, diz-se o cântico da I Epístola de S. Pedro. Para a solenidade da Epifaniae para a festa da Transfiguração (6 de Agosto), houve a feliz ideia de introduzir omisterioso mas belíssimo cântico da I Epístola a Timóteo, que celebra o mistério damanifestação do Filho de Deus feito homem, aparecido aos homens, proclamado nomundo, assumido e transfigurado na glória do Pai.

c) As antífonas

Em geral, todo o salmo ou cântico é introduzido por uma antífona. A antífonaé um pequeno refrão, extraído do salmo ou cântico ou de outra origem, normalmentebíblica, que ajuda a recitar melhor o salmo, tanto do ponto de vista espiritual, colo-cando-o em determinada perspectiva litúrgica, como do ponto de vista musical, dando otom e criando o ambiente musical em que depois o salmo há-de ser cantado. É atéprovável que seja esta a origem da antífona.

Page 97: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 97

Quando a antífona é tirada do próprio salmo, ela serve para pôr em relevodeterminado pensamento desse salmo mais significativo e a ajudar assim a captar-lhemelhor o sentido; quando é tirada de outro livro bíblico ou ainda de outra procedência,sobretudo nas festas, a antífona facilita a integração do salmo ou cântico no espíritodessa festa.

A antífona deve cantar-se antes do salmo para o introduzir. Pode tambémcantar-se no fim a concluí-lo. Pode ainda reaparecer no fim de cada secção do salmo,quando ele está dividido em várias secções e não há antífona própria para cada umadessas secções. Pode ainda repetir-se depois de cada estrofe.

A antífona, se acaso não está musicada e se deseja cantar, pode ser substituída poruma de carácter semelhante (n. 274).

A antífona dá, por vezes, mais trabalho a ensinar do que o salmo. É até natural queseja assim. Todavia, o salmo é mais importante do que a antífona. Por isso, ela há-demanter-se sempre dentro do ambiente discreto que lhe convém, sem, por isso, deixar deser bela e expressiva; mas não excessiva. A tradição gregoriana é, neste ponto, como emmuitos outros, mestra segura embora nem sempre. Há antífonas excessivamente longas.Mas a culpa não é só da música, ao menos, no canto gregoriano.

Os salmos e os cânticos com as suas antífonas são o momento particularmenteinteriorizante da Oração das Horas. São momentos que existem por si próprios. Eles sãoproclamação da palavra, são escuta, são resposta, são, numa palavra, diálogo de Deuscom o homem, em que se concretiza a oração cristã (cf. nn. 110-125).

3.4 As leituras e os responsórios

a) Leituras

Todas as Horas do Ofício divino têm um momento de leitura, mais longo ou maisbreve, da Sagrada Escritura. À leitura responde um responsório, também mais longo oumais breve, ou, pelo menos, um versículo com função de responsório. Trata-se semprede uma verdadeira celebração da palavra de Deus, como a conhecemos de outroslugares, particularmente da Missa, embora aqui com o seu estilo específico. É certo que«a Liturgia das Horas, embora enriquecida de leituras, é, antes de mais, oração de louvore de súplica», diz a Instrução Geral (n. 2). Verificámo-lo no uso tão abundante dossalmos. No entanto, e apesar dos salmos serem, também eles, já palavra de Deus, oOfício divino tem os seus momentos de leitura. São dois, como dissemos, esses tipos deleitura, um longo, outro breve.

A leitura longa é o elemento central do Ofício da Leitura, Ofício que «visa pro-porcionar ao povo, e muito especialmente àqueles que, de modo peculiar, estão consa-grados ao Senhor, uma meditação mais rica da Sagrada Escritura e das mais belas páginasdos autores espirituais» (n. 55). De facto, ao lado de uma leitura longa da Sagrada Escritura,o Ofício da Leitura tem também uma segunda leitura dos Santos Padres ou de outrosautores espirituais cristãos.

A leitura da Sagrada Escritura segue normalmente o tipo de leitura contínua ousemi-contínua de um livro da Bíblia. Este Leccionário do Ofício obedece, como o da

Page 98: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

98 PADRE JOSÉ FERREIRA

Missa, a determinados critérios, como seja o que atribui determinados livros bíblicos adeterminados tempos litúrgicos. Este Leccionário é naturalmente diferente do da Missa,mas combina-se com ele, «de forma que a leitura da Sagrada Escritura no Ofício venhacompletar a que se faz na Missa. Deste modo, ter-se-á uma visão geral da história dasalvação» (n. 143).

Está preparado, mas ainda não publicado, um segundo ciclo de leituras, tanto daSagrada Escritura como da Tradição, facultativo, para alternar com as que vêm naLiturgia das Horas, e que será apresentado num Suplemento. «O ciclo bienal de leiturasestá organizado por forma a lerem-se em cada ano quase todos os livros da SagradaEscritura, reservando para a Liturgia das Horas os textos mais extensos ou mais difíceisque não é possível ler na Missa. O Novo Testamento é lido integralmente todos os anos,parte na Missa, parte na Liturgia das Horas. Quanto aos livros do Antigo Testamento,foram escolhidas aquelas partes que têm maior importância quer para compreender ahistória da salvação quer para alimentar a piedade» (n. 146).

Nas Horas propriamente ditas, isto é, fora do Ofício da Leitura, há depois dasalmodia uma leitura breve, também chamada capítula. Apresenta ela «um pensamentoou uma exortação em forma concisa e clara» (n. 156) e «incisiva» (n. 45), mas que«há-de ser lida e escutada como verdadeira proclamação da palavra de Deus» (n. 45). Oleitor deverá, por isso, proclamá-la «de pé, no lugar próprio» (n. 259).

«Na escolha das leituras breves seguiram-se estes critérios:– excluíram-se os Evangelhos, como é de tradição;– atendeu-se, na medida do possível, ao carácter peculiar do domingo, da

sexta-feira e das próprias Horas;– as leituras de Vésperas, como vêm a seguir a um cântico do Novo Testamento,

são tiradas exclusivamente do Novo Testamento» (n. 158).No Ofício da Leitura há, como se disse, uma segunda leitura, tirada dos Santos

Padres ou de outros escritos eclesiásticos. Estas leituras têm uma função particularmenteimportante no Próprio do Tempo. E que belas descobertas não têm sido já feitas porquem nunca tinha podido contactar com textos tão impressionantes! É bom irmos desco-brindo que as raízes da nossa fé vêm de longe, e com que vitalidade!

Nas celebrações dos santos, a segunda leitura é sobretudo hagiográfica, querdizer, refere-se ao santo. Não se trata, em geral, da vida do santo, embora isso possaacontecer; apresentam-se antes escritos do próprio santo que é celebrado ou algum textode um Padre da Igreja ou escritor cristão que dele fale ou que a ele se possa aplicar.Evitou-se rigorosamente tudo o que não tivesse sólido fundamento histórico, como oConcílio o exigia (n. 166; cf. SC, 92 c), (em oposição às antigas leituras do segundonocturno, tantas vezes puramente legendárias).

b) Responsórios

As leituras vêm sempre seguidas de um responsório, longo no Ofício da Leitura,breve em Laudes, Vésperas e Completas; na Hora Intermédia, um simples versículosubstitui o responsório, como já se disse. Depois da leitura bíblica do Ofício da Leitura,«a finalidade do responsório é projectar sobre a leitura precedente nova luz que ajude acompreendê-la melhor, enquadrar esta leitura na história da salvação, estabelecer a

Page 99: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 99

transição do Antigo para o Novo Testamento, fazer que a leitura se transforme emoração e contemplação, finalmente imprimir, com sua beleza poética, uma nota de agra-dável variedade» (n. 169). Na verdade, os responsórios são, em geral, verdadeiras jóiasliterárias! É curioso notar como muitos responsórios são compostos de citaçõesprovindas de livros diferentes, testemunho de verdadeira ciência bíblica, teológica epoética, sobretudo quando justapõem, interpretando umas pelas outras, passagens dosdois Testamentos. É o que se pode chamar o comentário da Bíblia pela Bíblia.

O nome de responsório vem-lhe da maneira como é executado, ou seja, em formaresponsorial, em que a assembleia responde com um refrão ao canto do coro ou do solista.

O responsório que segue a segunda leitura não pretende ter tão grande ligaçãocom a leitura precedente. É, por isso, de composição mais livre, o que não significa quenão possa ser tão belo como o outro.

Depois das leituras breves de Laudes, Vésperas e Completas, um responsóriobreve desempenha função paralela à do responsório longo em relação à leitura longa.

Na Hora Intermédia, esta função é desempenhada, como foi dito, por um simplesversículo «à maneira de aclamação» (n. 172).

Os responsórios breves são um belo exemplo do diálogo aclamativo, maneirasimples e viva de manter o espírito deste e de o exprimir com alegria, como é carac-terística desta segunda parte de qualquer Hora, depois do tempo mais longo e maisinteriorizante que a salmodia proporcionou.

O responsório breve pode ser substituído por outros cânticos «da mesma índole»(IGLH, n. 49).

3.5 O cântico evangélico

Nas Horas de Laudes e Vésperas, intercala-se, entre o responsório breve e otempo de oração que se inicia com as preces, um cântico tirado do Evangelho. Estecântico é, em Laudes, o cântico de Zacarias, o pai de S. João Baptista, o Benedictus, e,em Vésperas, o cântico de Nossa Senhora, o Magnificat. São ambos cânticos de louvor eacção de graças pela obra da redenção; o primeiro celebra a aurora dessa redenção, e foi,por isso, bem atribuído à oração da manhã; o segundo ressoa todos os dias na boca daIgreja como uma «eucaristia» vespertina, à hora em que o Senhor Se ofereceu na Ceia edepois na Cruz.

A ideia do louvor e da acção de graças, que estes cânticos exprimem, pode sersublinhada e traduzida no rito do incenso que perfuma e sobe, como a oração, até aotrono de Deus. Está previsto que possam ser incensados o altar, o sacerdote e o povodurante estes cânticos (n. 261).

3.6 O tempo de oração

a) As preces

Segundo o esquema tradicional da celebração da palavra de Deus, da leiturapassa-se ao salmo responsorial, e daqui à oração. A oração é a resposta do homem àpalavra de Deus, e é, na celebração, o tempo para o qual toda ela se encaminha. Mas com

Page 100: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

100 PADRE JOSÉ FERREIRA

esta análise não se pretende, de maneira nenhuma, contrapor, muito menos opor uns aosoutros os diversos momentos da celebração; somente se deseja ajudar a descobrir-lhe odinamismo interno, porque também isso é educativo.

A oração de louvor converte-se naturalmente em súplica (n. 179). Foi assim que,do mesmo modo que na Missa foi restaurada a oração universal ou dos fiéis, assimtambém se introduziu em Laudes e em Vésperas um tempo de oração alongado nas chamadaspreces. A natureza desta oração é um pouco diferente em Laudes e em Vésperas.«Em Laudes, fazem-se invocações para encomendar e consagrar o dia inteiro ao Senhor»(nn. 181-182). Estas invocações de Laudes têm com frequência carácter mais acentuada-mente de louvor. Estamos em Laudes, «louvores». Mas, por outro lado, ao consagrarema Deus o dia que começa, elas retomam, em parte, o pequeno ofício de bênção dotrabalho, anteriormente incluído na desaparecida Hora de Prima.

Em Vésperas, estas preces revestem carácter mais suplicante e chamam-se atéintercessões. O entardecer traz consigo «o peso do dia e do calor», como aos operáriosda vinha (Mt 20, 12). É em Vésperas, e pela mesma razão, que se reza pelos defuntos.Laudes respira antes a frescura da Ressurreição.

As preces admitem sempre outras intenções além das previstas na Liturgia dasHoras, mas, ao fazê-las, convém atender ao modo como são formuladas, para não seafastarem do estilo das que foram feitas anteriormente. Em qualquer caso, hão-de serdiscretas, breves, não excessivamente morosas, evitando repetições, como é próprio daoração litúrgica (SC 34). E não se transformarão nem em revisão de vida nem emdesabafos espirituais de almas angustiosas!

b) A oração dominical

No fim das preces, a oração dominical vem culminar todas as possíveis intenções.Este lugar dado à oração dominical é tradicionalíssimo. Assim, agora restaurado, o Painosso «dir-se-á doravante três vezes ao dia: na Missa, em Laudes e em Vésperas»(n. 195). Era já assim que o exigia a Didakhê, no final do século I (Did VIII, 3). Atradição monástica sempre conservou lugar de especial relevo para o Pai nosso no fimdestas duas Horas do Ofício divino.

c) A oração conclusiva

Como sempre acontece, o tempo de oração conclui-se com uma colecta presiden-cial. A reforma da Liturgia das Horas enriqueceu muito a colecção destas orações. Nosdias feriais, Laudes e Vésperas têm uma oração própria para cada uma destas Horas epara cada dia das quatro semanas em que se divide o saltério, com uma alusão expressaao sentido dessas Horas; no Ofício da Leitura do Tempo Comum, também nos dias feriais,a oração é uma, à escolha, de entre as trinta e quatro de qualquer dos domingos dessetempo, e não necessariamente a que vem indicada no fim das leituras na tradução portu-guesa; na Hora Intermédia, fora das solenidades e festas, é própria para cada Hora, comfrequentes referências aos acontecimentos da história da salvação ligados a essa hora. Assolenidades e festas, em todas as Horas, bem como as memórias, nas Horas «maiores», têmorações próprias ou, quando muito, do Comum. Completas tem uma oração própria paracada dia; merecem especial referência as do Domingo, como já foi recordado.

Page 101: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 101

II - CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS

Como toda a liturgia, também a Liturgia das Horas é para ser celebrada; a Liturgiasó existe quando está a ser celebrada. Depois de termos observado a estrutura da Liturgiadas Horas, vejamos agora algumas características e perspectivas deste tipo particular decelebração, em ordem a podermos fazer dela o que ela é em realidade: a Oração dasHoras.

1. A Liturgia das Horas, oração bíblica

Uma das características da Liturgia das Horas e que lhe dá particular valor e en-canto é que ela é uma oração toda feita de elementos bíblicos. Na Liturgia das Horas, ohomem fala a Deus com a própria palavra de Deus. Sem dúvida que são os seus própriossentimentos que ele exprime, mas hão-de ser sentimentos cristãos, sentimentos de Cristonele ou, se preferirmos, sentimentos dele, homem, em Cristo. E, para melhor o con-seguir, o homem cristão serve-se das palavras de Deus para orar a Deus. Por outraspalavras, a oração cristã é essencialmente uma oração de fé, isto é, oração de quemescutou a palavra de Deus, nela reconheceu e acolheu o Dom de Deus e a Deus responde,em louvor e acção de graças, com a própria palavra de Deus.

É assim a oração da Liturgia das Horas. Por isso, ela é uma oração objectiva, istoé, uma oração que tem por objecto Deus e o seu Dom, que se apoia totalmente em Deuse na sua palavra, e não apenas no sentimento e na experiência do homem. Oração bíblica,oração objectiva, a oração da Liturgia das Horas liberta do acanhado subjectivismo emque, entregues à nossa simples experiência psicológica, facilmente caímos. Assim já nãoseria oração; não passaria de desabafo!

Concretizando mais, a Liturgia das Horas tem como centro o próprio mistério deCristo. Ela proclama o mistério de Cristo, dá graças por ele e suplica para que essemistério da Páscoa de Jesus se realize em nós, no mundo de hoje, onde Cristo continuavivo, e actuante pelo seu Espírito.

Deste modo, a Liturgia das Horas é um dos momentos altos da acção do Espíritona Igreja, ela é a mais espiritual das formas de oração, nela se encontra a maiscarismática obra do Espírito, depois da acção dos sacramentos.

2. A Liturgia das Horas, oração de todo o povo de Deus

Ao falar-se de Liturgia das Horas, quem começasse por pensar no antigo Breviá-rio, pensaria logo na reza a que estavam «obrigados» os padres e os monges. De facto,quase só eles o rezavam, porque quase só eles estavam «obrigados» a isso. Estava-seentão no tempo das «obrigações»: os fiéis «obrigados» a irem à Missa, os padres«obrigados» a rezar (ou a ler!) o Breviário. Hoje estamos no tempo das «acções», acçõeslitúrgicas, como sempre o Concílio a elas se refere, e que são por natureza, acções detodo o povo de Deus. A Liturgia das Horas, agora reformada, foi-o, em grande parte,para poder ser mais acessível a todo o povo cristão. A Liturgia das Horas não é

Page 102: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

102 PADRE JOSÉ FERREIRA

especialidade de ninguém, ou, se se quiser, é especialidade de toda a Igreja. Tudo isto éinsinuado e afirmado a cada passo na Instrução Geral da Liturgia das Horas (p. ex.,para catequizar o povo cristão sobre esta forma de oração e o levar a celebrá-la). Não é,portanto, luxo, mas apostolado normal e necessário que os que têm essa responsabilidadeorganizem e dirijam a celebração da Liturgia das Horas com os fiéis, mormente nosDomingos e festas (cf. n. 23).

Dentro deste povo de Deus, alguns há que, em razão da função que desempenhamno meio dele, estão especialmente responsabilizados por manterem constantemente vivaa chama deste sacrifício de louvor. A Instrução Geral fala mesmo de «deputação» que aIgreja neles deposita para que eles celebrem a Liturgia das Horas, «para que esta funçãode toda a comunidade seja desempenhada ao menos através deles, de uma forma certa econstante, e se continue na Igreja, ininterruptamente, a oração de Cristo» (n. 28). Sãoeles os ministros sagrados, bispos, presbíteros e diáconos. Há outros que, em virtu-de da situação que tomaram dentro da Igreja, por uma consagração especial ao serviçodo Senhor, tomam sobre si igualmente esta responsabilidade. Estão neste caso os mem-bros das comunidades monásticas, das comunidades de vida religiosa de vários génerose outros.

Quando virmos um padre a rezar o Ofício divino sozinho, não digamos: «Lá estáele agarrado à sua obrigação»; digamos antes: «Lá o deixámos nós sozinho na obrigaçãoque é a nossa»!

3. A Liturgia das Horas, oração comunitária

Se comunitário é o dever da oração da Igreja, comunitária é a forma normal da suacelebração. De si, tão normal é a celebração comunitária do Ofício, como é normal acelebração comunitária da Missa. E desta já poucos duvidam, embora ainda alguns!

Nas Horas do Ofício, muitas hipóteses são possíveis, desde a celebração a quepreside o bispo, «rodeado dos seus presbíteros e restantes ministros», «com a partici-pação do povo» (n. 20), até «às outras assembleias de fiéis, entre as quais há que destacaras paróquia como células da diocese, localmente constituídas sob a presidência dumpastor como substituto do bispo» (n. 21), «às comunidades de cónegos, de monges, demonjas e de outros religiosos» (n. 24), «aos membros de qualquer Instituto de perfeição»(n. 26), aos «grupos de leigos, onde quer que se encontrem reunidos, seja qual for omotivo destas reuniões» (n. 27), até «à família, qual santuário doméstico da Igreja»(n. 27). Se a Liturgia das Horas é a oração de toda a Igreja, ela é também a oração decada grupo de cristãos e até de cada cristão que, mesmo «no seu quarto, onde o Pai vê nosegredo» (cf. Mt 6, 6) se une ao sentir de toda a Igreja, rezando a oração que a mesmaIgreja lhe põe nas mãos.

4. A Liturgia das Horas, oração rica, variada, cheia de possibilidades

O facto de ser oração litúrgica não faz, de modo algum, que a Liturgia das Horasse torne formalista e exterior, rígida e artificial. Ela é, sim, oração comunitária; por isso,

Page 103: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 103

tem de ter em conta a comunidade. É oração eclesial; por isso, não está ao sabor subjec-tivo de cada indivíduo, ou de qualquer grupo de indivíduos. É oração que celebra omistério de Cristo, e dentro do ritmo dos tempos litúrgicos; por isso, há-de ter em contaas características desses tempos e não se sobrepor a eles. É oração bíblica; por isso, aBíblia lhe empresta as palavras com que há-de dizer «o que nem os olhos viram, nem osouvidos ouviram, nem jamais passou pelo coração dos homens» (cf. I Cor 2, 9), mas queDeus revelou e comunicou.

No entanto, a forma de oração litúrgica que nos é proposta obedece ainda a umaprofunda exigência psicológica, é fruto de longa experiência de vida cristã na Igreja e é,ao mesmo tempo, um maravilhoso instrumento de catequese. Também aqui é verdadeiroo ditado clássico: Lex orandi lex credendi, «a regra da oração é a regra da fé».

Mas é preciso saber lançar mão de cada um dos elementos que constituem estaoração para com eles organizar a verdadeira celebração da Liturgia das Horas. A Instru-ção aponta muitos caminhos, que não é possível resumir aqui, para uma celebração ver-dadeira, profunda, viva, agradável, proveitosa. Quase que basta para o descobrir saberler todas e cada uma das indicações rituais que se distribuem pela Instrução Geral e aolongo de cada uma das Horas no corpo do livro da celebração, e antes de mais os várioselementos da estrutura de cada ofício.

Apontemos apenas algumas indicações:

a) A assembleia que celebra a Liturgia das Horas pode ir, como já vimos, desde amais bem estruturada até à mais restrita e mais simples. O essencial não é o aparato, masa celebração, o que se celebra e como se celebra. A celebração não é uma encenaçãoteatral, é uma acção do povo de Deus, daquele povo concreto que ali está para celebrar.

b) Mas é normal que a celebração das Horas se faça, tanto quanto possível, commaior ou menor solenidade. Palavra perigosa esta, mas que deixará de o ser, desde que seexplique. Solenidade não é o aparato exterior em si mesmo, mas a expressão dada aosdiversos momentos da celebração, segundo a natureza de cada um e segundo as capaci-dades de cada assembleia, enquadrados no ambientes do dia e do tempo litúrgico. Sendoassim, a Instrução Geral não receia afirmar, por exemplo, que é de recomendar umacelebração integralmente cantada (n. 273). O canto é, sem dúvida, um dos elementosmais significativos da solenização. O que importa não é obter um belo concerto musical,mas recorrer ao canto como «a forma mais condizente com a natureza desta oração»(n. 268; cf MS, 37). Por outro lado, como ninguém nasce ensinado, «pode ser vantajosoaplicar o princípio de uma solenização «progressiva»; e isto, tanto por motivos de ordemprática, como também porque não se devem equiparar indiscriminadamente os diversoselementos da celebração litúrgica; antes, deve cada um deles ser restituído ao seu sentidooriginário e à sua verdadeira função» (n. 273).

Além disso, a «solenização progressiva admite graus intermédios entre um Ofíciointegralmente cantado e a simples recitação de todas as partes. Esta solução permite umagrande e agradável variedade, que se avaliará em função da tonalidade do dia ou da Horaque se celebra, da natureza de cada elemento constitutivo do Ofício, da importâncianumérica e características da comunidade celebrante, finalmente, do número de cantoresde que é possível dispor no caso concreto» (n. 273).

Page 104: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

104 PADRE JOSÉ FERREIRA

c) A variedade de soluções pode notar-se principalmente na recitação dossalmos. Há muitas maneiras de os rezar. Para começar, estes podem ser recitados oucantados, embora esta última forma seja a mais conforme à natureza dos mesmos.

E, neste caso, podem sê-lo de diversas maneiras (cf nn. 121-125):

1) recitação toda seguida, o que os antigos chamavam, e a Instrução ainda chama(n. 122), forma «directanea» ou «in directum». Consiste em um solista recitar todo osalmo até ao fim, escutado pela assembleia. Este modo de execução está especialmenteindicado para os salmos sapienciais e históricos (n. 279). Antes e depois do salmo, todosdizem a antífona (n. 123).

2) salmodia antifonada, isto é, dialogada entre dois coros ou duas partes daassembleia. Cada um dos coros dirá um versículo ou uma estrofe alternadamente.Embora a recitação por estrofes seja, por vezes, mais lógica, nem sempre será a maisprática.

A salmodia antifonada pode ainda tomar outras formas mais complexas, nemsempre fáceis, embora fossem, em tempos, muito tradicionais, sobretudo no Oriente. Foido Oriente que nos veio este género de salmodiar.

3) salmodia responsorial, a mais tradicional na Igreja do Ocidente, consiste em aassembleia responder (daí o seu nome) com um refrão ou uma aclamação a cadaversículo ou estrofe lançada por um solista. É o que se faz no cântico do Apocalipse dasII Vésperas dos Domingos fora da Quaresma e no salmo responsorial da Missa. É omodo mais prático para uma assembleia que não tenha na mão o texto dos salmos.

Cada salmo pode ser seguido de um tempo de silêncio, e ainda de uma oraçãosálmica. Os antigos usavam muito este método para rezar os salmos.

d) A oração mais solene pode lançar mão de certos sinais, hoje um pouco aban-donados, por vezes sem grande razão, ou por razões erradas, mas nem por isso semsignificação; antes pelo contrário. A Instrução Geral menciona alguns, como a maneirade o presidente se paramentar para o Ofício, a presença de outros presbíteros revestidosde pluvial e de diáconos de dalmática, o uso do incenso em Laudes e Vésperas durante ocântico evangélico, as atitudes e gestos dos fiéis, etc. (nn. 253-266).

A celebração da Liturgia das Horas é um momento especialmente belo da Liturgiada Igreja; belo e penetrante. Olhemos para a Hora de Vésperas. Depois da introdução,como na Vigília pascal depois do algo espectacular rito da luz, todos se sentam para, decoração sereno e pacífico, como que dedilhar a palavra de Deus no Saltério e fazerdescer sobre a igreja em oração um clima de imensa paz e serenidade, sem dúvida, maisprofunda do que a que o Sol vai deixando cair sobre a Terra, na sua trajectória diária donascer ao morrer, porque «do nascer ao pôr do Sol é bendito o nome do Senhor» (Sl 112).

Mas, porque nem tudo pode ser neste mundo contemplação imperturbada,segue-se a rápida liturgia da palavra, com a leitura breve, a breve resposta do res-ponsório, ainda sentados, caminhando para o esplendor do cântico do grande louvor queas volutas do incenso querem levar consigo do altar para o Céu. Tudo, por fim, se enca-minha para o tempo de oração, primeiro repartida pelas diversas situações dos homens,depois centrando-se na oração do Senhor, para finalmente o presidente tudo apresentar

Page 105: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURA E CELEBRAÇÃO DA LITURGIA DAS HORAS 105

ao Pai, por Cristo, no Espírito, em Igreja, na colecta conclusiva. Tudo forma um granderitmo crescente, em unidade que se multiplica para tudo abarcar, e, juntando o coração àvoz, dizer ao Senhor, no fim de cada dia, o que os Anjos continuamente Lhe cantam noCéu: «Santo, santo, santo, Senhor Deus do Universo!»

E, porque o tempo corre e as Horas se vão e a gente se desconcentra e tem devoltar, de novo, à azáfama da vida, sete vezes ao dia somos convidados a retornar àassembleia e a retomar o mesmo louvor, para que ele seja, tanto quanto o puder ser, um«lausperennis».

Page 106: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL

I - INTRODUÇÃO

Já anteriormente nos foram apresentados os dois primeiros dias do Tríduo Pascal,ou seja, a Sexta-feira Santa e o Sábado Santo. Parece que logicamente nos deveríamosocupar agora do terceiro dia. O programa diz simplesmente «Vigília Pascal». Todavia,antes de olharmos propriamente e exclusivamente para a Vigília, localizemo-la naquele«terceiro dia».

O terceiro dia

A Sagrada Escritura coloca a Ressurreição do Senhor no terceiro dia: «Olhai quevamos subir a Jerusalém e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes eaos escribas. Eles hão-de condená-l’O à morte, hão-de entregá-l’O aos pagãos, para queestes O escarneçam, açoitem e crucifiquem. Mas Ele, ao terceiro dia, ressuscitará(Mt 20, 8-19), diz Jesus aos seus discípulos. O Símbolo da fé retoma a mesma lin-guagem: «Creio em Jesus Cristo, o qual... foi crucificado, morto e sepultado. Ao terceirodia, ressuscitou dos mortos». Na mesma ordem de ideias, a Vigília situa-se precisamenteno terceiro dia do Tríduo pascal, ou, com mais exactidão, é a Vigília que dá origem aoterceiro dia.

Uma celebração vigilial

Para se compreender a celebração da Vigília pascal é necessário, antes de mais,compreender o que é uma vigília, uma vigília em geral, e esta, em particular.

Vigília significa exactamente tempo da noite em que se não dorme, mas se vigia,em que se está de vela, e, no caso da liturgia, uma celebração nocturna. A noite foisempre tempo preferido para a oração. Jesus deu exemplos frequentes de oração durantea noite, e a tradição cristã continuou a mesma prática.

No que se refere à Vigília pascal, pode haver a tendência de julgar que ela secelebra de noite por ter sido de noite que o Senhor ressuscitou. Mas não é assim. Por umlado, do ponto de vista histórico, ninguém conheceu a hora da Ressurreição, nem a ela sefaz referência na Sagrada Escritura. Fala-se das aparições do Senhor ressuscitado, masestas ocorrem de manhã, não de noite. Por outro lado, do ponto de vista litúrgico, nem ocalendário nem o horário litúrgicos pretendem seguir materialmente os dias e as horasem que se deram os acontecimentos da história da salvação que a liturgia celebra. Aliturgia não é de ordem histórica, mas sacramental; ela celebra o mistério da salvação enão apenas o acontecimento histórico como tal, isto é, ela celebra a salvação que o acon-tecimento nos trouxe e de que ela, a liturgia, continua a ser hoje o sinal. O acontecimentopassou, a salvação permanece. Hoje os sinais dessa salvação são os da liturgia. Por isso,se pode dizer que a liturgia é a celebração sacramental do mistério da salvação.

Page 107: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 107

Apliquemos tudo isto à Vigília pascal. Recordemos que a Vigília pascal vem demais longe do que o próprio cristianismo. Ela remonta até à noite da saída do povo deDeus do Egipto, a noite da primeira Páscoa, no tempo de Moisés. No Egipto, antes desaírem e de partirem para a Terra prometida, os Israelitas comeram o cordeiro pascalnuma vigília nocturna, à pressa, vestidos já de hábitos de emigrantes: túnica cingida,sandálias nos pés, bordão nas mãos. Comeram a Ceia pascal e partiram para passar oMar Vermelho. E receberam esta ordem da parte de Deus: «Esta noite, durante a qual oSenhor velou para os fazer sair do Egipto, deve ser para todos os filhos de Israel umavigília para o Senhor em todas as suas gerações» (Êx 12, 42). Desde então até hoje, opovo de Deus não deixou de celebrar essa noite, essa vigília. Porquê esta repetição?Porque o fizeram e fazem ainda hoje os Judeus, referindo-se à primeira Páscoa, e porquêo fazem hoje os cristãos, lembrando a Páscoa de Jesus? Para o povo de Deus, quer doAntigo Testamento quer do Novo, a Páscoa é a «passagem», a saída do lugar da escravidão eda morte e a entrada na terra da libertação e da vida. Para o povo do Antigo Testamento,a repetição anual da vigília pascal não constituía simplesmente a evocação de umacontecimento passado, mas celebrava, ano a ano, a expectativa de um novo êxodo,completo e definitivo, no futuro. Esperava-se que Deus, de novo, «passasse» no meiodo seu povo e o conduzisse da escravidão à liberdade, das trevas à luz, da expectativaà posse definitiva da Terra onde corre o leite e o mel. O povo do Antigo Testamentoesperava o Messias libertador: «Ele nos há-de ensinar todas estas coisas», dizia a Sama-ritana a Jesus (Jo 4, 25). A vigília pascal do povo de Israel, evocando o passado, a noiteda Páscoa do tempo de Moisés, estava cheia da expectativa do futuro. S. Jerónimo teste-munha-o, quando escreve: «É tradição entre os Judeus que Cristo havia de vir à meianoite, à semelhança do que aconteceu no tempo do Egipto» (S. JERÓNIMO, Coment.in Evang. Math., 1. 4, 25).

A insistente mensagem dos profetas dos séculos antes de Cristo não faz outracoisa senão erguer os olhos do povo para essa futura Jerusalém, restaurada, recreada,erguida no cimo dos montes, resplandecente da luz de Deus, não mais aquela que chamam«abandonada» ou «estéril», mas a «desposada», a Mãe fecunda rodeada de muitos filhos.Os momentos trágicos do povo de Deus – e foram tantos! – são apresentados pelos pro-fetas como momentos privilegiados para avivar a esperança e a expectativa da libertação.São quase como a noite do Egipto, que o braço erguido do Senhor transformará, de novo,em noite de Páscoa.

E os Salmos irão frequentemente buscar ao primeiro êxodo a esperança e a garan-tia que hão-de animar a fé num êxodo novo que a mão poderosa do Senhor vai realizar.

Se o povo de Deus celebrou anualmente a vigília pascal foi para se manter alertana expectativa deste novo êxodo. Jesus celebrou também a vigília pascal. E celebrou-a,pela última vez, «na noite em que Ele ia ser entregue». Celebrou-a com todos os ritossimbólicos da Páscoa antiga, como ela vinha sendo celebrada desde Moisés até àquela«plenitude dos tempos», que era o seu tempo. E, sabendo que essa era a sua hora, a horade «passar deste mundo para o Pai» (Jo 13, 1), entrega-Se aos seus como verdadeiroCordeiro pascal, e manda que eles celebrem aquela nova Ceia em memória d’Ele, emmemória da sua passagem, da sua Páscoa, «até que Ele venha» (I Cor, 11, 26), comooutrora tinha mandado aos que se preparavam para sair do Egipto que celebrassem a ceia

Page 108: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

108 PADRE JOSÉ FERREIRA

antiga em memória daquela antiga Páscoa. Os discípulos assim o fizeram, e assim ofarão «até que Ele venha». E porquê «até que Ele venha»? Justamente porque a Ceiapascal do Novo Testamento continua a ser a Ceia da expectativa da passagem definitiva«deste mundo para o Pai»; assim ela o é, em particular, na Vigília da Páscoa de cada ano.

É este o sentido profundo e último da Vigília pascal: uma noite de expectativa davinda do Senhor, para dar cumprimento pleno ao êxodo pascal do seu povo.

Na expectativa do Dia do Senhor

A celebração faz-se de noite, pois nela se aguarda o Dia, o Dia do Senhor, tãoanunciado pelos profetas, e já presente no dia da Ressurreição. É este dia que, em cadasemana, insistimos em chamar «Dia do Senhor», e que, em cada ano, é celebrado, deforma mais expressiva, no Domingo da Ressurreição, Domingo que começa precisamentena Vigília pascal, mas dia que, pelo próprio facto de lhe repetirmos a celebração, bemtestemunha que ele ainda não chegou de maneira definitiva. Por isso, «a Vigília pascalficou sendo, e deve tornar-se cada vez mais, a grande ocasião anual em que toda a Igrejase reúne, chamada pela recordação das expectativas passadas, para se revitalizar na ex-pectativa última, que deve ser incessantemente a sua. Na Páscoa, na noite da Páscoa, aIgreja, ao menos uma vez em cada ano, é visivelmente aquilo que invisivelmente ela ésempre: a Esposa desperta na noite, esperando o Esposo que, por momentos, se afastou,e em que ela não consegue adormecer, enquanto Ele não aparece, de novo, e a manhãapareça com Ele, a manhã da primavera eterna: ‘Ergue-te, minha amada, minha esposa,ergue-te e vem’», escreve, não sem inspiração primaveril, o P. L. Bouyer.

Não foi este o aviso que o Senhor lhe deixou: «À meia noite, ouviu-se um brado:‘Aí vem o Esposo’» (Mt 25, 6)? E é assim a última palavra do Apocalipse, na últimapágina da Sagrada Escritura: «O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem’!» (Ap 22, 17).Assim é também o desejo e a expectativa da assembleia cristã na vigília da noite pascal.

II - A SANTA VIGÍLIA

Segundo a indicação expressa do Missal, a Vigília deve fazer-se toda de noite:nem antes do Sol posto nem depois do Sol nado, mas de noite, a «noite em que todo omundo vigia», no dizer de S. Agostinho (Serm 220, 2). No passado, em alguns lugares, aVigília chegou a ocupar a noite inteira.

A celebração da Vigília é um acto único, do princípio até ao fim; mas podemosdistinguir nela elementos fundamentais e outros menos importantes. Como em geralacontece, os elementos mais importantes são também os mais primitivos. Começa-sesempre pelo essencial, só depois é que vem o secundário. Por isso, também na liturgia ahistória é grande mestra.

Page 109: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 109

A. SOLENE INÍCIO DA VIGÍLIA OU LUCERNÁRIO

O centro da Vigília é constituído pela Liturgia da Palavra de Deus e pelos Sacra-mentos da Iniciação Cristã, do Baptismo à Eucaristia. Mas antes de nos sentarmos paraescutar, «de coração tranquilo», a palavra de Deus, como nos há-de dizer o presidenteantes de darmos início à celebração da palavra, a noite pascal abre com o rito do Lucer-nário, o rito da luz, no qual também podemos descobrir elementos de origem e de épocasdiferentes, hoje todos integrados na mesma significação.

Uma luz na noite

Caiu a noite. E, embora o céu se ilumine com a serena claridade da primeira Luacheia do equinócio da primavera, que, ainda hoje, como no tempo de Moisés, determinaa data anual da Páscoa, a igreja entra na escuridão. Mas a assembleia convocada para agrande Vigília precisa de luz. Ao cair de todas as noites, toda a gente precisa de luz. Odesaparecimento da luz do dia deixou atrás de si certa angústia e como que um sabor amorte. O aparecimento da luz traz consigo a alegria, anuncia uma esperança. Particular-mente em certos momentos mais significativos.

É assim que, já entre os Judeus, que contam os dias de Sol posto a Sol posto, oacender da lâmpada ao entardecer da sexta-feira constitui o primeiro rito religioso dacelebração do sábado, o seu dia santo semanal. Seguindo idêntica tradição, os cristãos,desde o início, acendiam a lâmpada familiar, a lucerna, como se chama a essas lâmpa-das, dando graças ao Senhor, que, pela sua Ressurreição, Se tornou vencedor da noite edas trevas, e introduziu neste mundo a Luz que não mais se apagará. Este gesto tornou-serito sagrado, e a Tradição Apostólica de S. HIPÓLITO, no século III, refere-se a esterito, presidido pelo bispo, rito que foi conhecido pelo nome de Lucernário, isto é, Ritoou Ofício do acender da lucerna. (Trad. Apost., 25). É conhecido o célebre hino Luzesplendente da santa glória do Pai celeste imortal, Jesus Cristo, que os cristãos doOriente sempre têm conservado na sua liturgia e que a nossa liturgia ocidental agoraintroduziu como hino de Vésperas, sobretudo nas I Vésperas do Domingo, ao menos naversão portuguesa, hino de que já S. Basílio, no século IV, diz desconhecer as origens,perdidas como eram tão longe no passado.

Se em qualquer dia, e sobretudo ao iniciar a vigília de qualquer Domingo, o Lu-cernário podia ter o seu lugar, como não haviam os cristãos de o acolher na Vigília pascal?

Elementos do Lucernário

Inicialmente, o Lucernário consiste em acender a lâmpada, que, nesta noite, pelomenos desde o século IV, é o Círio. O gesto de acender o círio é celebrado no tradicionalLaus cerei, o louvor do círio, o nosso precónio pascal. A forma actual, o Exsultet, comoele começa no texto latino, é uma das muitas que no passado existiram. O texto é umverdadeiro poema, à maneira de uma oração eucarística ou de acção de graças, paracelebrar o mistério daquela noite, que renova hoje o mistério do primeiro êxodo, liber-tando o povo de Deus do cativeiro do Egipto e fazendo-o atravessar o Mar Vermelho acaminho da Terra prometida. Esta é a verdadeira noite que dissipa as trevas do pecado

Page 110: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

110 PADRE JOSÉ FERREIRA

com o fulgor da coluna de fogo, Cristo ressuscitado, à semelhança do que outrora foi anuvem luminosa para o povo de Israel durante a travessia do deserto, noite que foi aúnica a ter conhecimento do tempo e da hora em que Cristo ressuscitou vivo do sepulcro,noite que, brilhando como o dia, faz as delícias da Igreja reunida, noite em que se reuneo Céu e a Terra, o divino e o humano. O louvor do círio, no seu lirismo exuberante, queirritava o mau humor de S. Jerónimo mas encantava as massas populares, é o louvor deCristo glorioso, o Astro da manhã sem ocaso, e, ao mesmo tempo, a expressão do encantoagradecido da Igreja perante o mistério da Páscoa, sua esperança, sua glória, dom maiorque o Senhor lhe deixou. O precónio pascal, como o nome indica, é, ao mesmo tempo, oanúncio da festa pascal, logo desde o início da noite santa, embora a Vigília não deva serentendida, desde o início, como uma simples festa da Ressurreição.

O acender do círio e o precónio ou pregão pascal que o acompanha foi posterior-mente rodeado por outros elementos, alguns dos quais podem ser simplificados, se ascircunstâncias o aconselharem: o acender do lume novo, a bênção do mesmo, a pre-paração do círio, gravando nele a cruz, o Alfa e o Ómega, primeira e última letra doalfabeto grego, em referência às palavras do Senhor no Apocalipse, onde Ele Se chama aSi próprio o Princípio e o Fim, e, entre os braços da cruz, os algarismos do número doano corrente, acompanhando estes gestos com fórmulas que reproduzem as citadaspalavras do Apocalipse. Só depois de assim preparado o círio se acende.

Além do conjunto destes pequenos ritos, que «podem ser usados no todo ou emparte segundo as circunstâncias pastorais», como diz o Missal, introduziu-se outro ele-mento, este certamente de maior significação e beleza: a procissão, seguindo o círio eintroduzindo a assembleia na igreja. Infelizmente, em muitos lugares, sobretudo nosmeios urbanos, esta procissão não é fácil de realizar, nem, por vezes, possível. Os fiéislimitam-se então a acompanhar, com o olhar e com o acender das suas velas no tempodevido, o cortejo do presidente e ministros pelo meio da assembleia até ao santuário. Opossível é sempre o melhor. Em qualquer hipótese, o momento é denso de expectativacomo é o começo de todas as grandes acções. E ali a acção é um crescendo, que cresce ese desenvolve da rua para o templo, das trevas para a luz, da noite para o dia que lenta-mente irá surgindo.

O cortejo faz-se em silêncio; mas irá sendo entrecortado com as três grandes acla-mações de acção de graças pela luz de Cristo, que vence as trevas da noite. É precisopreparar tudo para que este momento não resulte numa frustração: os fiéis terão cada uma sua vela, o som deve tornar possível que todas as palavras se percebam, os ministros eministrantes estarão suficientemente adestrados. Quanto mais grave é o momento, tantomais grave seria qualquer deficiência.

A procissão avança atrás do círio até ao presbitério. Da sua luz se iluminam asvelas dos fiéis e toda a igreja: «da sua grande luz nascem as nossas luzinhas», diz umtexto antigo. O círio é colocado ou no meio do presbitério ou junto do ambão. Não meparece pior este último lugar, para que toda a proclamação da palavra, que vai seguir-se,normalmente feita do ambão, se faça à luz do círio. É, de facto, à luz da Ressurreição deCristo que toda a Escritura pode ser entendida. Aliás o lugar tradicional do candelabrodo círio pascal é junto do ambão.

Page 111: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 111

Para além do círio, convinha que toda a igreja refulgisse de luz, como aconteciano ofício do lucernário em Jerusalém, no século IV, segundo o testemunho de Etéria:«Acendam-se todas as velas e círios, e é uma luz infinita».

B. LITURGIA DA PALAVRA

Apesar de muito solene e muito belo, o Lucernário pascal não passa de um rito deabertura da grande Vigília, como aliás o designa o próprio Missal. Introduziu a assem-bleia na igreja, anunciou a festa e o seu mistério, colocou-nos na expectativa. Agora,terminado o precónio, «todos os presentes apagam as suas velas e se sentam» (Miss 22),não para pôr fim a qualquer coisa, mas para lhe dar início. O presidente, que já tinhafeito uma monição no princípio do lucernário, faz outra neste momento, para convidar aassembleia a escutar «de coração tranquilo» a Palavra de Deus. Esta monição indica aautêntica atitude que a assembleia há-de manter a partir deste momento: tranquilidade, jásignificada pela posição de quem está sentado, atenção e silêncio de coração, porque oque vai acontecer é muito importante.

À luz do Círio

«Nesta Vigília, mãe de todas as santas vigílias, propõem-se nove leituras: sete doAntigo Testamento e duas do Novo (Epístola e Evangelho). Por motivos de ordem pas-toral, pode reduzir-se o número de leituras do Antigo Testamento. Mas tenha-se sempreem conta que a leitura da palavra de Deus é parte fundamental desta Vigília pascal», dizo Missal (n. 20-21). Também o Calendário Romano insiste em explicar que os ritos doLucernário, «os ritos da bênção do fogo, da procissão do círio pascal e do Precóniopascal foram abreviados, para que se conceda tempo mais longo às leituras» (Cal. Rom.,Comment., cap. I, 2, A 2).

Estamos, portanto, numa parte fundamental da santa Vigília. «Na noite pascal, oSenhor quer tornar-Se pacientemente o nosso pedagogo para nos ensinar a reler toda ahistória da salvação à luz da sua Morte e Ressurreição. Quer caminhar connosco aolongo das horas, como o fez, na tarde da Páscoa, na estrada de Emaús com os doisdiscípulos: ‘Começando por Moisés e percorrendo todos os profetas, interpretou emtodas as Escrituras o que a Ele dizia respeito’ (Lc 24, 27)», escreve o P. Jounel. Naverdade, a celebração da palavra nesta Vigília pretende, em certo modo, fazer como queo apanhado da história da salvação, da primeira criação (I leitura) à Ressurreição (últimaleitura), termo de chegada de todo o Universo, saído, no princípio, das mãos de Deus.

Esta compreensão da Escritura só é finalmente possível à luz da Morte e Res-surreição do Senhor, porque o mistério pascal é o vértice e a síntese de toda a história domundo criado. Por isso, logicamente, a palavra de Deus vai ser proclamada, nesta noite,à luz do círio pascal, à luz de Cristo ressuscitado. É Ele, e só Ele, a chave das Escrituras,como foi Ele, e só Ele, que, no Apocalipse, mereceu abrir os selos do livro que maisninguém podia abrir, o livro dos desígnios de Deus (Ap 5-6 e ss.).

Page 112: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

112 PADRE JOSÉ FERREIRA

Estrutura da Liturgia da Palavra

A apresentação da liturgia da palavra desta noite conserva a estrutura maisprimitiva e mais pura da celebração da palavra de Deus: um conjunto composto de umaleitura, seguida de um salmo, concluindo com uma oração, conjunto este que se vairepetindo as vezes que forem necessárias. É este o esquema básico de toda a celebraçãoda palavra: leitura, salmo e oração. Na leitura, Deus fala-nos; no salmo, que continua aser ainda palavra de Deus, retoma-se, de forma lírica, a mensagem da leitura, transfor-mando-a já em oração; na colecta ou oração presidencial, somos nós que falamos agoraa Deus, fazendo subir até Ele em oração a resposta ao que Ele nos disse em revelação. JáS. Agostinho assim se explicava, e precisamente numa das suas homilias da Vigília pas-cal: «Deus fala-nos nas suas leituras; falamos nós a Deus nas nossas orações» (Serm. 219).

As sucessivas reformas da Vigília pascal deixaram-nos actualmente nove leituras,sete do Antigo Testamento e duas do Novo. Algumas destas leituras estão em uso emtodas as liturgias cristãs e têm permanecido através de todos os tempos. São elas, pelomenos, a da criação (I leitura) e a do Êxodo (III leitura). As restantes têm sofrido altera-ções ao longo das idades, mas são, na maior parte, muito tradicionais. Isto mostra-nos asperspectivas em que a Igreja entende o mistério da Páscoa, e evita que nos percamos eminterpretações demasiado subjectivas, certamente menos seguras.

Os temas das Leituras

Enganar-se-ia redondamente quem pretendesse ver na Vigília pascal uma purafesta da Ressurreição, à maneira da Missa do galo na noite de Natal, para celebrar oNascimento do Senhor. Já S. Agostinho dizia também que o Natal se celebrava numacomemoração, a Páscoa no mistério, isto é, nos sacramentos. Embora esta distinçãomerecesse ser mais aprofundada, o certo é que a Páscoa é, por um lado, um mistériocomplexo, o mistério pascal da Morte e Ressurreição, e que, por outro, a sua celebraçãoanda, desde longa data, ligada à celebração dos sacramentos da iniciação cristã: Baptis-mo-Confirmação e Eucaristia. Em consequência disso, a Vigília pascal é uma vigíliainiciática, vigília de iniciação, acentuadamente baptismal, mais do que comemorativa.

É certo que quem diz baptismal diz logo renovação do homem velho à imagemdo homem novo, Cristo ressuscitado, pelos sacramentos da iniciação, mas tambémrenovação dos que, já baptizados, todos os dias precisam de mergulhar na piscina daságuas vivificantes, as águas da vida do Espírito de Deus, que brotam do lado do Senhoraberto na Cruz. Por isso, a liturgia da palavra da Vigília pascal é a última preparaçãopara o Baptismo dos catecúmenos, como é a última preparação para os baptizados querenovam, nesta noite, as suas disposições baptismais, e, a uns e a outros, encaminha paraa Eucaristia, enquanto não chega a Ceia celeste das núpcias do Cordeiro. Por isso, asleituras não nos vão falar simplesmente do facto da Ressurreição, mas antes do mistérioda Páscoa, no seu sentido mais amplo e total, qual é o da renovação de todo o Universoem Jesus Cristo morto e ressuscitado, mistério de morte e de vida, ou melhor, dapassagem da morte à vida, do pecado à graça, do Egipto à Terra prometida, das trevas àluz, da noite ao dia, da Terra ao Céu, como todo o ritmo desta noite o deixa perceber:desta noite que começou na escuridão vai surgir o dia sem ocaso, o Dia do Senhor.

Page 113: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 113

A primeira leitura é a primeira página da Bíblia (Gén 1, 1-2, 2). É o poema dacriação. Escusado será dizer que não se trata da história da criação, mas de um poemasobre a origem divina de tudo quanto existe. Deus está no princípio de tudo; a Páscoa deJesus tudo reconduzirá a esse princípio que é também o seu fim. Na leitura, tudo apareceorganizado no ritmo de sete dias, como numa semana. Cada dia caminha da noite para odia, da tarde para a manhã. É sempre este o ritmo da Bíblia, o ritmo da vida animado peloEspírito de Deus; como na Páscoa de Jesus: da morte à ressurreição; como no Baptismo:do pecado à graça. À medida que o leitor avança na leitura, cai como um refrão aqueleolhar complacente de Deus sobre o mundo: «Deus viu que isto era bom», porque tudod’Ele saiu, d’Ele, que é bom. A Páscoa de Jesus vem revelar esta bondade profunda detudo quanto Deus fez.

Depois da leitura, que já é quase um poema, vem o salmo, cantado à maneiraresponsorial, isto é, em que ao salmista a assembleia responde com um refrão. OLeccionário propõe dois salmos à escolha: o salmo 103, que celebra a criação comoobra de Deus, com o refrão que invoca o Espírito para que renove a face da Terra; ou osalmo 32, um hino ao Deus criador, cujo refrão continua fazendo eco à leitura: «Abondade do Senhor encheu a Terra», pois «Deus viu que era tudo muito bom».

A leitura e o salmo conduzem à oração. As orações da Vigília pascal sãoexcepcionalmente importantes. Nelas nos é dado o sentido cristão das leituras. Assim,depois da leitura da criação, a oração pede a Deus que nos faça compreender que, se, noprincípio, a criação é obra admirável, mais admirável é ainda a redenção, fruto dosacrifício de Cristo, nossa Páscoa, na plenitude dos tempos. Quer dizer, a criação, queDeus viu ser boa, é o ponto de partida daquele movimento de vida que há-de atingir o seutermo, a sua realização plena, na Páscoa do Senhor Jesus, «Primogénito de toda a cria-ção» e «Primogénito de entre os mortos», como O proclamará S. Paulo (Col 1, 15. 18).

No caso de se fazer a leitura na forma breve, que se refere apenas à criação dohomem, o Missal apresenta outra oração, que sublinha igualmente o contraste entre aobra da criação do homem e a da sua redenção por Cristo.

A segunda leitura (Gén 22, 1-18) apresenta o sacrifício de Abraão. O pai queoferece o filho único em sacrifício e o recupera, pela acção de Deus, vivo e destinado aser, ele também, pai de longa posteridade, é uma figura de Deus que entrega à morte oseu Filho único, Jesus, vítima no sacrifício da Cruz, e O recupera, exaltado na glória daRessurreição, como o explica a Epístola aos Hebreus (He 11, 17-19). A liturgia dapalavra da noite da Páscoa continua a ser a leitura cristã de toda a história da salvação,na esteira aliás do que a própria palavra de Deus nos ensina.

O salmo 15 é tradicionalmente um salmo referido à Ressurreição de Jesus, comojá o foi por S. Pedro, no seu primeiro discurso, naquele versículo que diz: «Vós nãoabandonareis a minha alma na mansão dos mortos, nem deixareis o vosso fiel sofrer acorrupção» (Act 2, 27).

A oração aplica toda esta mensagem pascal ao Baptismo, ao dizer que «pela graçada adopção multiplicais os filhos da promessa», a promessa feita a Abraão, de que eleseria «pai de todas as nações». O Baptismo lhe continuará a dar, hoje, esses novos filhos,não pela carne, mas pelo Espírito.

Page 114: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

114 PADRE JOSÉ FERREIRA

A terceira leitura (Êx 14, 15-15, 1), a única do Antigo Testamento estritamenteobrigatória, apresenta a narração da travessia do Mar Vermelho, momento especialmentesignificativo da Páscoa do povo de Deus, quando este saía do Egipto. Trata-seprecisamente do êxodo, a saída. A narração é, de novo, um poema épico. Mas, como sepoderia cantar coisa tão grande e tão maravilhosa que não fosse num poema? A passa-gem do Mar Vermelho é das figuras mais tradicionais do Baptismo, porque o Baptismo étambém a passagem pela água, que liberta da escravidão do pecado e introduz na terra daliberdade. Os gestos repetem-se, vão-se esclarecendo uns aos outros, a história continua,mas a salvação vem sempre de Deus e a Ele conduz. Hoje, porém, nós temos um Guiamaior do que Moisés, o Filho de Deus feito homem, morto connosco e por nós, para nosressuscitar em Si e consigo, e fazermos a passagem do Mar e entrarmos na Terraprometida, onde corre o leite e o mel.

O cântico responsorial é aqui, e muito naturalmente, o célebre cântico de Moisés,que celebra, agora em forma lírica, o acontecimento que a leitura acabou de proclamar. Éo cântico dos libertos. O Apocalipse coloca este cântico na boca dos eleitos, no Céu,como cântico dos remidos (Ap 15, 3-4). O Deus que salvou salva e salvará. É assim ahistória da salvação. «Deus fez maravilhas; o seu nome é Senhor», diz o refrão. É desta«Senhoria» divina que participa Cristo ressuscitado, bem como os baptizados em seunome, porque «também em nossos dias vemos brilhar as vossas antigas maravilhas»,«fazendo renascer pela água do Baptismo» todas as nações, diz a oração que se lhesegue. É impressionante esta catequese bíblico-litúrgica!

Uma segunda oração, à escolha, diz com toda a clareza «que Deus revela no MarVermelho a imagem da fonte baptismal e no povo libertado da escravidão do Egipto osmistérios do povo cristão».

Na quarta leitura (Is 54, 5-14), Deus dirige-se a Jerusalém como à sua Esposa,«abandonada e de alma aflita», e jura-lhe, à semelhança do que já fizera a Noé depois dodilúvio, não tornar a irritar-se contra ela. «A minha misericórdia não te abandonará, aminha aliança de paz não vacilará, diz o Senhor compadecido de ti». É a promessa darestauração, da salvação reencontrada, como o canta igualmente o salmo 29, oração dodoente curado e, por isso, agradecido.

E a oração presidencial interpreta depois claramente a realização desta promessade Deus naqueles que, pelo Baptismo, se tornaram seus filhos adoptivos, segundo apromessa feita a Abraão: «Aumentai os filhos da promessa, de modo que a vossa Igrejapossa ver como já se cumpriu o que os santos patriarcas esperaram e creram». «Emgrande medida», dizia a oração, mas não ainda na totalidade. De facto, a Vigília pascal énoite de expectativa da salvação, que a Igreja ainda celebra na fé e na esperança, nossacramentos da fé.

A quinta leitura (Is 55, 1-11) é, logo desde o início, um pregão baptismal: «Todosvós que tendes sede, vinde à nascente das águas». Mas o Baptismo não é apenas um gestoexterior; é sinal de aliança: «Firmarei convosco uma aliança eterna», diz o Senhor,aliança que Deus continua a oferecer aos homens e que deles exige aceitação, conversão,reconhecimento e acção de graças, na alegria agradecida, como o afirma o cântico de

Page 115: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 115

Isaías que se segue à leitura: «Das fontes da salvação saciai-vos na alegria». Afinal, tudo,neste inimaginável mistério pascal da salvação, é dom de Deus «que na palavra dosProfetas anunciava os mistérios dos tempos presentes», como reza a oração.

A sexta leitura (Bar 3, 9-15. 32-4, 4) é um apelo lindíssimo a deixar-se guiar pelaSabedoria. Foi por ter abandonado «a fonte da sabedoria» que o povo de Deus foi levadopara o exílio. A ordem que podemos observar na natureza é a primeira página do livro dasabedoria que Deus nos revela. «Depois, diz a leitura, ela, a sabedoria, apareceu sobre aterra e habitou no meio dos homens. Ela é o livro dos mandamentos de Deus e a lei quepermanece eternamente». Que teria dito Baruc, se tivesse chegado à «plenitude dostempos», em que «o Verbo Se fez carne e habitou entre nós», em que Deus Se fez homempara que o homem se tornasse filho de Deus?

O salmo 18 deixa-nos, em seguida, a meditar na sabedoria da lei de Deus, dosseus preceitos, que «são rectos», «iluminam os olhos», «alegram o coração», porque,«Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna».

A sétima leitura e a última do Antigo Testamento (Ez 36, 16-28) é quase umajustificação que Deus faz da sua maneira de proceder com o seu povo. «Os da casa deIsrael mancharam-na com o seu proceder e as suas obras... . Então, dispersei-os entre asnações. Em todas as nações para onde foram, profanaram o meu santo nome; ... quisentão salvar a honra do meu santo nome». É este o quadro do mundo no meio do qual oshomens, em vez de serem, diante uns dos outros, sinal vivo do Senhor, se tornaram adesonra do nome santo de Deus. Mas é precisamente a estes homens assim manchadosque o Senhor diz: «Derramarei sobre vós água pura... . Dar-vos-ei um coração novo einfundirei em vós um espírito novo». É a renovação que a Páscoa oferece ao mundo; é anova criação que o Baptismo realiza; é a fonte da vida que, de novo, se oferece a quemsaiba ter sede: «Como suspira o veado pelas correntes das águas, assim minha almasuspira por Vós, Senhor», diz, a seguir, o salmo 41.

E a oração sublinha os contrastes: «Todo o mundo veja e reconheça como o aba-tido se levanta, o envelhecido se renova, e tudo volta à sua integridade original». É nestafé que, em cada ano, a Igreja se reune na santa expectativa do «mundo que há-de vir»,para o qual Deus a vai já preparando, no presente, por meio da sua palavra e dos sacra-mentos. E assim ela pede, com uma confiança quase infantil: «Senhor nosso Deus, poderimutável e luz sem ocaso, ... confirmai na paz... a obra da salvação humana...». Nãodesistais, não desanimeis! «Todo o mundo veja...» Em lugar desta oração, propõe-seoutra na qual se pede que os ensinamentos das duas alianças nos preparem «paracelebrarmos o mistério pascal, a fim de que, ao recebermos os dons presentes, seconfirme em nós a esperança dos bens eternos».

No caso de haver catecúmenos para receberem o Baptismo, usar-se-á outra oração.Termina aqui o conjunto das leituras do Antigo Testamento. «Circunstâncias

pastorais» podem justificar que se não façam todas estas leituras antes de se passar às doNovo Testamento. Mas seria abusivo partir do princípio que se não deverão fazer todas.A Vigília pascal não é uma Missa nocturna; é uma vigília, que, nas origens, ocupava comas leituras toda a primeira parte da noite, até ao cantar do galo, hora em que se

Page 116: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

116 PADRE JOSÉ FERREIRA

celebravam os sacramentos da iniciação. Em todo o caso, do Antigo Testamento, três,pelo menos, continuam obrigatórias, «e, em casos muito especiais, ao menos duas». Mas«nunca se deve omitir a leitura do capítulo 14 do Êxodo», a travessia do Mar Vermelho.

Depois desta visão panorâmica das leituras do Antigo Testamento, com seussalmos e orações, podemos facilmente concluir que a Vigília pascal não é propriamenteuma festa da Ressurreição. É, sim, a celebração a que conduziu o jejum pascal dos doisdias anteriores, vigília que faz reviver, em síntese, toda a história da salvação, atéculminar na Páscoa do Senhor e na participação que nela têm os homens pelos sacra-mentos da iniciação cristã, o Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia.

As leituras do Novo Testamento

Mas a liturgia da palavra não acaba ainda aqui. Vamos passar ao Novo Testamento.A separá-los, ou melhor, a uni-los, cantamos, neste momento, o antiquíssimo e célebrehino «Glória a Deus nas alturas», hino verdadeiramente pascal, como claramente aparecena parte central dirigida a «Jesus Cristo, Cordeiro de Deus», que tira o pecado do mundo.Por isso, ele foi outrora próprio da Vigília pascal.

O hino conduz a uma nova oração, que faz referência directa aos que vão serbaptizados.

A oitava leitura (Rom 6, 3-11) é certamente o lugar bíblico mais significativo paraexplicar o sentido do Baptismo: «Sepultados com Cristo pelo Baptismo na sua morte,para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos... também nós vivamos uma vidanova». Morremos com Cristo... viveremos com Ele. O tema desta leitura será retomado,mais adiante, na monição que o presidente há-de fazer à assembleia antes da renovaçãodas promessas do Baptismo. Notemos que a imagem da sepultura com Cristo justificabem o uso muito tradicional, embora durante muito tempo abandonado, mas semprepossível, do Baptismo conferido por imersão, como ainda hoje se conserva no Oriente ede novo se pode retomar.

O salmo responsorial desta leitura, o salmo 117, é, muito naturalmente, um salmoaleluiático. Ouve-se, pela primeira vez, depois do longo jejum quaresmal, o Aleluia,aclamação que para nós, os da Igreja latina, conservou o sentido de aclamação pascal. OAleluia é, em princípio, entoado pelo presidente. Trata-se, não apenas de um cântico,mas de uma solene proclamação, que, neste momento, é bem natural seja posta na bocado presidente da assembleia. É como que uma grande boa nova que ele nos quer comunicar.

Aqui vai quebrar-se agora o ritmo completo da celebração da palavra, que, desdeo princípio, nos tem acompanhado: esta leitura e salmo não serão seguidos da oração. Éaliás o ritmo seguido habitualmente na liturgia da Missa.

E chegamos ao ponto culminante desta soleníssima liturgia da palavra: oEvangelho da Ressurreição. É ele que tem projectado já a sua luz sobre tudo o que foilido anteriormente. Foi já essa luz que, logo no princípio da Vigília, brilhou na chama doCírio pascal, nos introduziu na igreja, foi aclamada na voz do povo reunido, trans-pareceu nas leituras do Antigo Testamento e agora refulge na palavra do Evangelho:«Jesus, o Crucificado, ressuscitou». É esta a grande Boa Nova. Ergueu-se o Sol, depois

Page 117: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 117

da longa noite. É, de facto, o primeiro dia, o primeiro dia da nova criação: «O mundoantigo desapareceu. Vou renovar todas as coisas» (Ap 21, 4-5).

Todo este conjunto da celebração da palavra não dispensa, antes exige, a homilia.Os leitores leram, os salmistas salmodiaram, toda a assembleia aclamou, o presidentetem presidido, sobretudo nos momentos de oração: mas falta ainda a sua palavra, ele queé ali, para aquela assembleia concreta, o mensageiro, o anjo da Boa Nova da Res-surreição.

C. LITURGIA BAPTISMAL

A parte que se segue é intitulada no Missal «Liturgia baptismal»; poderiaigualmente chamar-se, de maneira ampla, «Liturgia da iniciação cristã», estendendo estetítulo até à própria celebração da Eucaristia.

Noite da iniciação cristã

Já Tertuliano, no século III, indica a Páscoa como o tempo mais conveniente paraa celebração do Baptismo. No entanto, é a partir do século IV que, em Roma, a noitepascal se tornou a noite baptismal do ano. A conveniência desta opção é evidente. Expli-cou-a já S. Paulo no texto aos Romanos acima referido. E explicam-na igualmente ascatequeses baptismais e mistagógicas daquele século, que chegaram até nós, ilustradaspelos nomes de S. Ambrósio de Milão, de S. Cirilo de Jerusalém, de S. João Crisóstomode Antioquia, de Teodoro de Mopsuéstia, de S. Agostinho de Hipona. E S. Leão Magno,no meado do século V, afirma, num sermão da Quaresma, que «em toda a face da Terramilhões de homens se preparam para a sua regeneração em Cristo» (Serm. 2 sobre aQuaresma, 2). Em Constantinopla, na noite da Páscoa do ano 403, foram baptizados3000 catecúmenos segundo refere Palladius.

Noite da Páscoa, noite da iniciação cristã! Recordemos duas de entre elas particu-larmente célebres: a noite de 25 de Abril de 387, em que, em Milão, S. Ambrósio mergu-lhou nas águas do Baptismo a Agostinho, depois daquele longo e atribulado catecumenado,que ele nos descreveu nas suas Confissões; e a noite de 5 de Abril de 397, dez anosdepois, em que o mesmo S. Ambrósio presidia, pela última vez, mas agora já nos seusrestos mortais, à liturgia da Vigília pascal na basílica maior de Milão. Que ofício decorpo presente, este! Era verdadeiramente para ele a Páscoa da passagem!

Desde então, e já desde tempos mais distantes, a iniciação cristã andou particu-larmente ligada à noite pascal. E lá está ainda hoje, embora o estado actual do nossocalendário pastoral nem sempre lhe atribua grande importância!

Vejamos como se desenrola a liturgia baptismal.O presidente introduz, de novo, com uma monição, o conjunto desta liturgia. Co-

meça ela com o canto das Ladainhas, forma de oração muito tradicional e muito ao gostopopular. A celebração de um sacramento é sempre momento de oração intensa, e todo orito se há-de sentir envolvido em ambiente de oração.

Page 118: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

118 PADRE JOSÉ FERREIRA

A oração das Ladainhas introduz, portanto, muito naturalmente na soleníssimaBênção das fontes baptismais. Esta bênção toma a forma de todas as orações deste género.Numa primeira parte, faz-se a evocação dos grandes momentos da história da salvação,em que a água tenha sido o instrumento de Deus na salvação dos homens. Deste modo, oque até este momento foi anunciado em leitura é agora proclamado em oração e feito nosacramento. A palavra e o rito são, de facto, os elementos fundamentais da liturgia. Estaevocação ou anamnese é, só por si, uma proclamação agradecida, uma acção de graças,uma eucaristia, no sentido original da palavra. Depois desta parte anamnética, vem asúplica, a epiclese, pedindo a Deus que a obra de salvação que Ele outrora realizou emfavor do seu povo, a realize agora, de novo, em favor deste povo, que é a assembleia alipresente; ou, de outra maneira, pede-se que este nosso momento actual entre, tambémele, na história da salvação, seja, ele também, mais um tempo dessa história: «Olhai,agora, Senhor, para a vossa Igreja e dignai-Vos abrir para ela a fonte do Baptismo...», diza oração.

O Missal apresenta uma aclamação para ser dita pela assembleia no fim destaoração de bênção. Seria bom que ela não deixasse de se fazer. São as aclamações quemais manifestam a participação da assembleia, no que se refere ao dizer ou ao cantar.

Sacramentos da iniciação

E segue-se o Baptismo dos catecúmenos.Convém ter presente que sempre que aqui se tem falado em Baptismo se deve

entender o conjunto Baptismo-Confirmação. Na antiguidade era impensável um sem ooutro, mesmo que se dissesse simplesmente Baptismo. Hoje, de novo, está expressamentedito que não se baptize um adulto ou criança em idade de catequese sem que lhe sejaconferida a Confirmação, a não ser que razões pastorais aconselhem outra coisa. Mesmoque não esteja presente um Bispo, o presbítero que baptiza deve, ele mesmo, confirmar oque acaba de ser baptizado.

A Páscoa celebra-se nos sacramentos, dizia S. Agostinho, não numa simples co-memoração. A Igreja está em vigília na expectativa do Senhor que vem. Os sacramentossão já a vinda do Senhor, são já a entrada no Reino, embora ainda na penumbra luminosada fé. Os sacramentos da noite da Páscoa não vão deixar frustrado o povo, que vigiaesperando o seu Senhor. O Ritual do Baptismo apresenta-o como «porta da vida e doreino» (RBC 3). Por ele se entra já na sala do banquete nupcial, onde a Esposa encontrao seu Esposo.

Depois do Baptismo dos catecúmenos, foi introduzida, logo na primeira reformada Vigília pascal em 1951, a Renovação das promessas do Baptismo, iniciativa feliz, queveio permitir a toda a assembleia cristã, e não apenas aos catecúmenos, participaremmais profundamente no carácter baptismal da Vigília. Mas isto só acontecerá, de facto,se essa renovação não se limitar àquele diálogo improvisado à última hora entre o presi-dente e a assembleia. A renovação das promessas do Baptismo, ou, talvez melhor, daconsciência da situação de baptizados, é feita «tendo terminado os exercícios da obser-vância quaresmal», como diz a monição que o presidente dirige à assembleia imediata-mente antes. A Quaresma, que é para os catecúmenos o último tempo de preparação parao Baptismo, devia ser para os já baptizados orientada para este momento da Vigília,

Page 119: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIGÍLIA PASCAL 119

como nova tomada de consciência da sua situação de baptizados em Cristo. As respostasàs perguntas do celebrante devem ser dadas no singular, embora ele formule as perguntasno plural colectivo.

Segue-se a aspersão da água baptismal sobre toda a assembleia. Esta aspersão,neste momento, em noite de Páscoa e ligada ao Baptismo, pode fazer redescobrir osentido perdido da água benta em nossas igrejas, também ela, infelizmente, perdida!

O rito baptismal conclui-se com a Oração dos fiéis. Se houve catecúmenos quereceberam o Baptismo, é esta a ocasião que melhor se oferece para entender a expressão,hoje tão divulgada, mas frequentemente mal compreendida: «Oração dos fiéis». «Dosfiéis» significa exactamente «dos baptizados», em oposição a «dos catecúmenos». Os«fiéis» são, neste sentido, os «baptizados», aqueles que a Oração Eucarística I designapela expressão: «Marcados com o sinal da fé». Até aqui os catecúmenos não rezavamjuntamente com os fiéis, não participavam na oração destes; estavam noutra «ordem», aordem dos catecúmenos. Agora entraram na dos fiéis. O Ritual da Iniciação Cristã dosAdultos traz, depois do Baptismo e da Confirmação, esta indicação: «Segue-se imediata-mente a Oração universal, na qual os neófitos participam pela primeira vez» (RICA 232).Convém marcar esta passagem dos catecúmenos à assembleia dos fiéis na consciência dopovo de Deus, povo sacerdotal, cujo sacerdócio esta oração manifesta.

D. LITURGIA EUCARÍSTICA

Na mais primitiva celebração da Páscoa, o jejum devia prolongar-se até à celebra-ção da Eucaristia. É com a Eucaristia que se põe termo ao jejum. A Tradição Apostólicade S. HIPÓLITO, do século III, diz a este propósito: «Não se tome nada na Páscoa antesque tenha lugar a oblação» (Trad. Apost. 5). É este mais um sinal de que a Vigília se situana passagem do jejum à festa, do luto e tristeza à alegria, da morte à vida.

Se houve quem tenha recebido o Baptismo (e a Confirmação), a Eucaristia é paraesses o termo e o ponto culminante da sua iniciação cristã: da fonte baptismal àunção-confirmação, e daí à mesa do festim, porque «chegaram as núpcias do Cordeiro ea sua Esposa está preparada».

E para os demais, já baptizados de há mais tempo, é na Ceia do Senhor que todosencontram o banquete da Aliança, penhor da Páscoa eterna junto do Pai, a acção degraças, grande e larga como o Coração do Filho de Deus, para dizerem ao Pai, que «pararesgatar o escravo entregastes o Filho», como estamos reconhecidos, como queríamosjuntar-nos a todos os homens, a todo o Universo, para cantarmos, como a Igreja continuaa cantar nos dias que vão seguir-se: «Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque éeterna a sua misericórdia» (Sl 117).

Muitas gerações esperaram acolher nesta Vigília a vinda do Senhor. A parusiaainda não chegou. Mas o Senhor vem; vem no sacramento: «Sempre que comerdes estepão e beberdes este cálice, anunciareis a Morte do Senhor, até que Ele venha» (I Cor 11, 26).A Eucaristia da noite da Páscoa é, mais do que nunca, a «Ceia das núpcias do Cordeiro».Por isso, a Eucaristia é o ponto culminante da Vigília pascal.

Page 120: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

120 PADRE JOSÉ FERREIRA

De entre os fiéis, os neófitos serão os primeiros a oferecer e os primeiros acomungar, e serão objecto de especial atenção por parte da comunidade cristã durantetodo o Tempo pascal.

Depois da Eucaristia

Com a Eucaristia terminou o jejum pascal. No século III, começava então a festapopular: «Comei, estai felizes, alegres e contentes, porque o Messias, penhor da vossaressurreição, ressuscitou», lê-se na Didascália dos Apóstolos.

A Missa do Dia, a que foi durante muito tempo considerada a missa principal daPáscoa, quando a Vigília se celebrava no Sábado de manhã, é, na realidade, uma segundaMissa no Domingo de Páscoa. Sem dúvida que não é demais marcar, de novo, este diacom nova celebração, este «dia que o Senhor fez», o dia que o Ressuscitado encheu comas suas aparições gloriosas. É bem normal que, depois de algumas horas de sono, após aVigília, voltemos, com santo alvoroço, à celebração festiva das nossas comunidades,tanto mais que a celebração da Vigília não se pode multiplicar como a Missa do dia, nem,por isso mesmo, é acessível a todos os fiéis. Será, no entanto, bom torná-los conscientesda prioridade da Vigília sobre qualquer outra celebração.

As Vésperas pascais

Celebração muito tradicional na Igreja são as Vésperas pascais, «na tarde daqueledia, o primeiro da semana», à hora em que o Senhor caminhou com os dois discípulospela estrada de Emaús. Se houver neófitos, é ocasião de os convidar para nelasparticiparem e fazer com eles a visita às fontes baptismais, segundo uma antiga tradiçãoda Igreja de Roma, e aí lembrar, e agradecer de novo, a celebração da Noite Santa comque eles foram regenerados.

Se houver Missa vespertina, o Evangelho será o da aparição do Senhor aosdiscípulos de Emaús.

Com as Vésperas termina o Tríduo Pascal. Mas a festa vai continuar durante setesemanas até ao oitavo Domingo, o de Pentecostes. É o Tempo Pascal, prolongamentolitúrgico que parece querer eternizar o Dia da Ressurreição, para que o Sol da Páscoanão mais venha a declinar. É o sabor de eternidade que está contido e garantido naRessurreição do Senhor.

Mas, o TEMPO PASCAL ficará para próximo Encontro de Pastoral Litúrgica.

Page 121: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA ANTES DOCONCÍLIO VATICANO II

Pela primeira vez na história, a Santa Igreja se propôs fazer uma «reforma geralda Liturgia». Decretou-a o Concílio Vaticano II (SC 21) e tem vindo a ser executada nosanos que se lhe seguiram. E porquê? Porque a Liturgia não estava sendo já, para o povocristão, aquilo que constitui a sua própria definição, a «Oração da Igreja». Não o estavasendo, não dizemos em princípio, mas de facto, em relação à vida corrente das pessoas edas comunidades cristãs. Na realidade, a Liturgia não estava sendo já olhada pelos fiéiscomo a forma principal e normal da sua oração, como o fora no princípio.

Nas origens da Liturgia cristã

Desde o início que os discípulos de Cristo, logo conhecidos pelo nome de«cristãos» (Act. 11, 26), se reuniam para a oração. Esta reunião recebeu o nome deecclesia, assembleia, «igreja». A pregação dos Apóstolos, a fracção do pão (a Euca-ristia), as orações, o sentido da comunhão fraterna, eram os elementos fundamentais detais assembleias (Act. 2, 42 e 46).

Notemos a presença destes dois elementos: os crentes reúnem-se e reúnem-separa celebrarem os mistérios da sua fé, ou, dito de maneira genérica, para a oração. Esta«oração» é a oração de todos e de cada um. É a assembleia da oração, a Igreja em oração.Não há dois planos de celebração: um litúrgico, oficial, tido como distante dos fiéis edirectamente acessível quase só aos que viriam a ser designados com o nome de clérigos,e outro verdadeiramente de oração, paralelo ao primeiro, destinado então aos que viriama ser ditos os «leigos». Há a oração da assembleia cristã, presidida pelos Apóstolos,futuramente pelos seus sucessores ou seus delegados, a oração da «ecclesia», a oração daIgreja. Há simplesmente «Liturgia», e esta é a «Oração da Igreja».

É evidente que os cristãos oravam também individualmente, porque bem en-tendiam que é preciso «orar sem interrupção», como já se lê na primeira carta saída dasmãos de S. Paulo e dirigida a uma comunidade cristã (I Tes. 5, 17); mas aquela oraçãodas assembleias em que tomavam parte era verdadeiramente oração de cada um, a suaoração. Era então verdade, de facto, mais do que viria a sê-lo no futuro, que a «Liturgia»(antecipemos o vocábulo, mas não a realidade) constituía a oração da Igreja, da assem-bleia dos cristãos reunidos em oração, quer fosse para ouvir a Palavra, quer para asorações, quer para a «Ceia do Senhor» (I Cor. 11, 20). E a unidade de vida em «um sócoração e uma só alma» (Act. 4, 32) nascia da união na assembleia celebrante e nela semanifestava.

Mas os tempos e os lugares trouxeram perspectivas novas.

Page 122: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

122 PADRE JOSÉ FERREIRA

Evoluções posteriores

A Liturgia da Igreja nasceu com a «Igreja», em Jerusalém, se não quisermos irbuscar muitos dos seus elementos à «Sinagoga» do povo de Deus do Antigo Testamento.Mas à medida que a pregação do Evangelho ia atingindo outros lugares – e issoaconteceu desde muito cedo – a vida litúrgica das diversas Igrejas foi-se diversificando,sem por isso se fragmentar, o que só prova que ela, a Liturgia, era realmente a expressãoviva da oração de cada uma dessas Igrejas. E assim foi durante muito tempo. O que é,todavia, impressionante é a unidade fundamental da Liturgia em Igrejas tão diferentes etão distantes entre si, desde as costas do Atlântico até ao rio Eufrates, desde a África doNorte até ao Norte da Europa. Unidade no mistério celebrado e nos ritos fundamentaisda sua celebração, ao mesmo tempo que grande diversidade na organização desses ritos.

Mas os tempos iam passando, e com eles as gentes e as circunstâncias da vida daspróprias comunidades cristãs. No fim do século V, por exemplo, a sociedade do antigoimpério romano é, na sua maioria, cristã. A vida litúrgica deixa de ser descoberta dequalquer coisa de novo, para ser herança legada de geração em geração. Desaparece ocatecumenado, porque os sacramentos da iniciação são agora dados, na maior parte dasvezes, a crianças; o sistema penitencial afasta muitos da Eucaristia; as invasões dos po-vos bárbaros modificaram por completo a face da terra europeia e do seu modo de vida.

A partir do século VIII-IX, a língua latina mantida na Liturgia deixa de ser enten-dida pelo povo. É certamente esta uma das causas maiores do distanciamento do povoem relação à Oração da Igreja.

Oração litúrgica, oração individual e orações populares

Em razão do seu conhecimento da língua latina e da especial consagração aoserviço de Deus, a oração litúrgica ia-se tornando, cada vez mais, oração dos clérigos,que tomaram à sua conta a participação directa e mais activa na celebração litúrgica. Opovo reserva para si o papel de «espectador» e «assistente». Da «assembleia» celebrantepassa-se à assembleia «assistente». O grande modo de participar é ouvir e ver. «Ver ahóstia» foi a grande devoção do século XIII. Nasce então a elevação da hóstia e do cálicee as genuflexões do celebrante em plena oração eucarística. Mas quase se não comunga;foi necessário então que aparecesse o preceito da comunhão anual, pela Páscoa (1215).

Paralelamente ao abandono da participação por parte do povo na Liturgia, existeforte movimento espiritual que havia de ver surgir toda a plêiade das Ordens chamadasMendicantes e de influenciar, de maneira decisiva, a piedade popular, mais apoiada nasensibilidade e no subjectivismo, do que na linguagem bíblica, directamente inspiradorada oração litúrgica.

O povo cristão rezava, e muito; mas sobretudo à margem da Liturgia, ou atédurante a Liturgia, mas sobrepondo-se a ela, porque esta já não era para ele a suaoração. E assim nasceu aquela infinidade de fórmulas que ou os fiéis ou os própriosministros, incluindo o presidente, recitavam intercaladas nos textos normais da ce-lebração, algumas das quais vieram até ao nosso tempo.

Page 123: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA ANTES DO CONCÍLIO VATICANO II 123

No que se refere à compreensão que se tinha da celebração litúrgica bastaobservar como se explicava a celebração da Missa e como se rezava durante ela. Desdeos princípios do segundo milénio que se começou a ver na celebração da Missa comoque a encenação da Paixão. Palavras e ritos foram interpretados como momentos simbó-licos evocativos dos diversos passos da Paixão do Senhor. Tais explicações vieram atéao nosso tempo. Tinha-se perdido o sentido da sacramentalidade, na sua significaçãomais profunda. Tudo era jogo cénico, evocação psicológica, subjectivismo sentimental.Tudo, não. A vida de fé das pessoas servia, grande parte das vezes, de suporte firme a taisexpressões. Contemporâneas do renascimento clássico e pagão, foram as extraordináriasfiguras de santidade que avultaram, grandes, nos séculos XV, XVI e XVII. O Espíritonão se apagava, e agia na acção litúrgica; mesmo se a sua acção não era muito per-ceptível através dos sinais da Liturgia.

O Concílio de Trento

O século XVI foi doloroso para a Igreja. Não era só na Liturgia que as coisas nãoiam bem. No entanto, muitos não conseguiram contestar a Igreja na única perspectivadonde ela o pode ser de maneira autêntica e eficaz, a saber, partindo de dentro delamesmo. Foi o que procurou fazer o Concílio reunido em Trento (1545-1563). Entreoutras, também a área da Liturgia precisava de ter a sua reforma. E bem dela necessitava.O elenco de «abusos» relacionados com a celebração da Eucaristia apresentado aoConcílio é disso a prova suficiente. É certo que o Concílio não chegou a ocupar-se muitodirectamente de Liturgia. Apesar disso, as definições dogmáticas sobre vários pontos dafé cristã não podiam deixar de trazer implicações litúrgicas.

Para obviar aos «abusos» que desfiguravam a sua verdadeira face, o Concíliopropôs-se reencontrar a Tradição genuína da Liturgia, reconduzindo-a «à norma dosSantos Padres». Com os elementos de que então se podia dispor sobre a história daLiturgia dos primeiros séculos, começou a fazer-se a revisão dos livro litúrgicos. Areforma litúrgica tridentina não iria aliás muito além da reforma dos livros. Estes foramsendo sucessivamente publicados ao longo dos 50 anos seguintes. A descoberta daimprensa facilitava esta publicação.

Os livros litúrgicos do século XVI eram fundamentalmente livros dos ministrosda Liturgia, e quase exclusivamente do presidente. Da assembleia quase se não falava.

Por outro lado, estes livros, se purificaram e reorganizaram a celebração, comcritérios de maior simplificação e clareza, uniformizaram também e fixaram definitiva-mente a Liturgia no imobilismo que nunca antes ela tinha conhecido. Começava a «erados rubricistas». Toda a actividade litúrgica dos séculos seguintes ao Concílio quase sereduziu a comentários jurídicos e rubricistas feitos aos livros litúrgicos e aos Decretosda S. Congregação dos Ritos, criado a seguir ao Concílio de Trento (1588) paraacompanhar a execução da reforma litúrgica empreendida pelo mesmo.

Esta situação percorreu todos os 4 séculos, exactamente 4 séculos (4 de De-zembro de 1563 – 4 de Dezembro de 1963) que separaram o Concílio de Trento doConcílio Vaticano II. Caberia a este último realizar o que o primeiro desejou, mas, porentão, não conseguiu.

Page 124: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

124 PADRE JOSÉ FERREIRA

O movimento litúrgico

No final do século XIX, a Liturgia voltou a ser objecto de especial atenção, mas,desta vez, em perspectivas que, dentro em breve, seriam o que hoje se chamariampastorais. Começou esse notável movimento aliado à restauração, em França, da ordembeneditina, sob o impulso de D. Guéranger, restaurador do mosteiro de Solesmes (1837).O movimento, a princípio monástico e bastante voltado para o passado, voltou-se depoispara o mundo dos leigos. Tomou corpo sobretudo na Bélgica, onde, em 1909, seproclamou, quase oficialmente, Movimento litúrgico. Ficou a dever-se este movimentoao dinamismo espiritual de D. Lambert Beauduin (1873-1960), antigo capelão demineiros, agora monge beneditino do recente mosteiro de Mont-César (1899), emLouvaina. O objectivo deste movimento era trazer o povo cristão à participação activano mistério e na celebração da Liturgia.

Este movimento tinha sólidos alicerces na palavra enérgica do grande pastorque foi S. Pio X (1904-1914). Três meses depois de eleito, no seu primeiro grandedocumento pontifical, o célebre Motu proprio sobre a Música sacra, de 22 de Novembrode 1903, o Papa apresentava a participação dos fiéis nos mistérios da Liturgia como«a fonte primária e indispensável do espírito verdadeiramente cristão», palavra queo Concílio Vaticano II fez sua e introduziu na Constituição sobre a Sagrada Liturgia(SC 14).

O movimento cresceu, mas foi sobretudo a partir da primeira Grande Guerra(1914-1918) e, mais ainda, durante e depois da segunda (1939-1945) que se foi sentindo,cada dia mais, a necessidade de levar os fiéis a participarem directamente na Liturgia, desorte que ela fosse para eles, em princípio e de facto, a sua oração, como membros queeram da Igreja orante.

Nalguns países mais do que noutros, sentia-se, de dia para dia, o entusiasmocrescente pela redescoberta da Liturgia como expressão normal da Igreja em oração.Foi-se ultrapassando a oposição, a princípio dolorosa, entre oração pessoal e oraçãolitúrgica, entre oração individual e oração comunitária. E, simultaneamente, ia-sedesvendando o mistério da própria Igreja.

Pio XII (1938-1958), que não era, por formação, homem da liturgia, mas o era porsituação eclesial, – era o Papa –, lançou as raízes doutrinais, para aquele tempo, dasfuturas grandes reformas. As encíclicas Mystici Corporis sobre a Igreja, Corpo místicode Cristo (1942), e Mediator Dei sobre a Liturgia (1947) foram marcos muito importantesna pré-história próxima da reforma litúrgica, que ele próprio iria em breve encetar. Foi,de facto, Pio XII quem começou a reforma da Liturgia. Lembremos alguns momentos damesma: a admissão da língua vernácula (Rituais bilingues e Missal bilingue), a reformada Vigília pascal (1951), seguida da de toda a Semana Santa (1955), a simplificação dojejum eucarístico, as missas vespertinas (quotidianas), uma nova tradução do Saltérioadmitida na Liturgia, a encíclica Musicae sacrae (1955), o I Congresso Internacional deLiturgia (1956), que tanto brado havia de dar e que o próprio Papa quis encerrar; e, apoucos dias da morte, como seu testamento espiritual, seria ainda, já no leito ondemorreu, a Instrução De Musica Sacra et de Sacra Liturgia (1958).

Seria desconhecer a história, aliás bem recente, da reforma da Liturgia, ainda emcurso (e alguma vez mais terminará?...), atribuí-la inicialmente e até exclusivamente ao

Page 125: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A LITURGIA ANTES DO CONCÍLIO VATICANO II 125

Concílio. Talvez seja mais exacto dizer que foi a reforma litúrgica, então já iniciada, umdos maiores, senão o maior, propulsor da realização do Concílio Vaticano II. Pelomenos, foi pela Liturgia que ele começou, e o esquema, apresentado aos Padresconciliares e que depois veio a ser aprovado, embora com muitas correcções, foi o únicoque não precisou de ser substituído por outro, tal era o grau de maturidade que o assuntotinha atingido em grandes sectores da Igreja (não em todos!).

João XXIII mandou ainda publicar o novo Codex Rubricarum, que simplificavamuito certas normas da celebração e deixava prever que, a breve trecho, uma reformaglobal estaria iminente.

Foi por onde começou o Concílio Vaticano II, que o mesmo Papa havia de inaugurarno dia 11 de Outubro de 1962 e cujo primeiro fruto foi precisamente a ConstituiçãoConciliar sobre a Sagrada Liturgia. Fazia nesse dia 4 de Dezembro de 1962 exactamente400 anos que terminara o Concílio de Trento, colocando nas mãos do Papa de então, S.Pio V, o Breviário e o Missal reformados, com o pedido de que quisesse mandá-lospublicar e mandar em seguida preparar a reforma e a publicação dos restantes livroslitúrgicos. 400 anos depois seria retomada a obra então começada. Mas, «mil anos avossos olhos... são como um dia», tinha escrito, há muitos séculos, o primeiro Papa(II Pe 3, 8; cf. Sl. 89, 3).

Page 126: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCALNA TRADIÇÃO DA IGREJA

Introdução

Foi intenção do Secretariado Nacional de Liturgia percorrer, durante alguns anos,nestes encontros de Pastoral Litúrgica de Fátima, o ciclo litúrgico que gira em volta dacelebração anual do Mistério Pascal. Foi assim que, o ano passado, tomámos como temado nosso Encontro o Tríduo Pascal, que é o centro de toda a celebração da Páscoa.Logicamente estava apontado o tema deste ano: o Tempo Pascal, isto é, o espaço doscinquenta dias durante os quais se prolonga a celebração da Páscoa, a partir do Domingoda Ressurreição até ao Domingo de Pentecostes. E disse logicamente, porque o TempoPascal é o prolongamento do terceiro dia do Tríduo Pascal, o Domingo da Ressurreição,prolongamento que se estende por oito Domingos, uma verdadeira oitava de Domingos.É o espaço de 50 dias, o «laetissimum spatium»,1 o tempo da grande alegria, como odesignaram os nossos antepassados na fé.

Aqui estamos, pois, de novo, para nos ocuparmos, este ano, durante alguns dias,com este tempo de alegria, que historicamente falando foi o primeiro tempo litúrgico doano a ser organizado, logo depois do Domingo e do Tríduo Pascal, ainda antes daQuaresma.

Apesar da sua origem tão antiga e da importância que todos lhe reconhecem e oCalendário Romano, de novo, lhe atribui, logo a seguir ao Domingo e ao Tríduo Pascal,antes de qualquer outro tempo litúrgico, a sensibilidade cristã e a pastoral dos últimosséculos parece não o ter tido em muita consideração. E não só a sensibilidade popular,porque, até certo ponto, a própria Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgiadesconheceu este parente pobre do ano litúrgico. Pobre, não pela importância que tem,mas empobrecido, porque quase ignorado, e, por consequência, pouco considerado e até,por vezes, desfigurado.

Mas a reforma litúrgica pós-conciliar, essa reconheceu-o e deu-lhe, outra vez,embora não ainda completamente, o lugar que lhe pertencia de pleno direito.

Vamos também nós tentar redescobrir este «grande Domingo», como lhe chamouS. Atanásio de Alexandria no Egipto, para o podermos celebrar como convém e viver, emconsequência, nas nossas comunidades cristãs.

1 TERTULIANO, De Bapt. 19, 2.

Page 127: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 127

I. – DO PENTECOSTES JUDAICO AO TEMPO PASCAL CRISTÃO

1. Os nomes

Comecemos pelo nome. Os nomes têm a sua significação.O nome primitivo dado pelos cristãos aos 50 dias pelos quais se prolonga a

alegria da Ressurreição, por estranho que isso nos possa parecer, foi Pentecostes,palavra grega que significa quinquagésimo.

Entre os judeus, a palavra Pentecostes designa, já desde longa data, a festa doquinquagésimo dia depois da sua festa da Páscoa. Deste modo, Pentecostes é palavraque aparece com dois sentidos: entre os judeus, designa um só dia de festa, a sua festa doPentecostes, 50 dias depois da sua Páscoa; entre os cristãos, Pentecostes designava oespaço de 50 dias festivos, desde o Domingo de Páscoa até ao Domingo que hojechamamos Domingo de Pentecostes. A designação «Pentecostes», aplicada apenas aoDomingo de Pentecostes, vem já de há séculos, e o Calendário agora reformado nãovoltou a aplicá-la ao Tempo Pascal; no entanto, ela aparece ainda, por vezes, paradesignar todo esse Tempo. Para evitar confusão, só usaremos aqui o nome de Pente-costes para falarmos do Domingo de Pentecostes, a não ser nas citações em que ele éusado no outro sentido.

Uma coisa pode parecer incoerente: é que a palavra que significa etimologica-mente «quinquagésimo», referida aparentemente ao último elemento de uma série de 50,passasse a designar todo o conjunto, o espaço de 50 dias. A explicação não deve serprocurada no sentido etimológico do vocábulo, mas no uso que os primeiros cristãosfaziam dos termos bíblicos já em voga entre os judeus, embora dando-lhes signifi-cação nova. Foi assim que o nome da festa judaica do Pentecostes passou a ser usadopelos cristãos para significar não um dia de festa, mas uma festa de 50 dias, queterminava precisamente no dia da festa do Pentecostes judaico.

O nome grego «Pentecostes» não foi normalmente traduzido para latim. Todavia,nas Gálias, usou-se, por vezes, o nome de Quinquagesima, que traduz o gregoPentecostês, porque os cristãos da Gália não usavam o grego mas o latim. Coisasemelhante viria a acontecer com a palavra Quadragesima, que, sendo um numeral, veioa significar um tempo de 40 dias, a Quaresma.

2. O Pentecostes judaico

O judaísmo não conheceu, portanto, nada de semelhante ao Tempo Pascal daIgreja cristã. Conheceu, sim, a festa do Pentecostes, festa de um só dia, como vimos, porvezes de dois, celebrada cinquenta dias depois da Páscoa. É nessa festa que os Actos dosApóstolos colocam a vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos.

A festa judaica do Pentecostes é referida na Sagrada Escritura em vários lugares,como uma das grandes festas do calendário de Israel; e nem sempre com a mesmasignificação:

a) no Êxodo (23, 16), é chamada festa da colheita, festa das primícias dotrabalho, «daquilo que semeaste no campo»;

Page 128: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

128 PADRE JOSÉ FERREIRA

b) ainda no Êxodo (34, 22), é chamada «festa das semanas», por ser celebradasete semanas, ou uma semana de semanas, depois da Páscoa, «no tempo das primícias dacolheita do trigo»;

c) no Deuteronómio (16, 9-12) é, de novo, dita «festa das semanas», «setesemanas a partir do momento em que começares a meter a foice nas searas», ou seja, apartir da festa da Páscoa, em que se começava a ceifa da cevada, ceifa esta relacionadacom a festa dos Ázimos, também ela uma festa de primícias;

d) no Levítico (23, 15-22), fala-se igualmente na festa do quinquagésimo diacomo festa de primícias, acompanhada de sacrifícios vários.

Para os citados livros do Pentateuco bíblico, a festa das semanas, no quinqua-gésimo dia após a Páscoa, é uma festa de primícias da colheita do trigo. Tais festas eramsempre, como o foram até aos nossos dias, antes de as debulhadoras terem substituído oduro mas feliz trabalho da debulha ou das malhas nas nossas eiras, ocasião de alegria,como o eram no tempo de Isaías, no texto tantas vezes recordado na liturgia do Natal:«Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo; alegram-se diante de Ti, como os que sealegram no tempo da colheita» (Is 9, 2); ou como no salmo 125, onde a felicidade doregresso do exílio é comparada à alegria dos ceifeiros: «Os que semeiam em lágrimasrecolhem com alegria. À ida vão a chorar, levando as sementes; à volta, vêm a cantar,trazendo os molhos de espigas» (Sl 125, 6).

Ao tema da colheita e das primícias, veio juntar-se, na festa do Pentecostesjudaico, outra significação. «No tempo de Cristo, a festa do quinquagésimo dia depoisda Páscoa era celebrada, no judaísmo oficial, como festa da colheita, mas ela tinhatomado já, em certos círculos religiosos, o sentido de comemoração da teofania do Sinai.O acento era então posto mais sobre a aliança entre Deus e o seu povo, do que sobre odom da Lei».2

Alguns destes temas do Pentecostes do Antigo Testamento vieram, por vezes,ao de cima e foram evocados na tradição da Igreja, de forma mais ou menos explícita,a propósito do Pentecostes cristão, sobretudo na pregação dos Santos Padres, emparticular o tema das primícias, que é considerado ter sido realizado, de maneiraperfeita, na Ascensão do Senhor. Voltaremos a este tema.

3. O Pentecostes cristão

No ano passado tivemos ocasião de verificar que, dentro do ano litúrgico, o diaoriginário e fundamental é o Domingo, o Dia do Senhor, o qual, como diz o próprioConcílio Vaticano II, «teve origem no próprio dia da Ressurreição» (SC 106), e que o seutema é o Mistério Pascal.

Vimos também que, para além desta celebração do Mistério Pascal no primeirodia de cada semana, se começou a celebrá-lo, de maneira mais solene, uma vez por ano,na Vigília da noite da Páscoa, e que esta já existia no século II.

2 R. CABIÉ, La Pentecôte, Tournai - Paris, 1965, p. 27. Em todo este trabalho nos socorremos desta obrafundamental.

Page 129: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 129

Vamos ver este ano como o ambiente festivo, próprio daquele Domingo que nascena Vigília pascal, o Domingo da Ressurreição, se vai prolongar pelos Domingosseguintes, e respectivas semanas, até ao oitavo, o Domingo que hoje chamamos Do-mingo de Pentecostes. É uma série de oito Domingos, os quais constituem verdadeiraoitava pascal. São os 50 dias (= 7 semanas x 7 dias + o oitavo Domingo), que formam,desde a origem, uma unidade perfeita, indivisível, que nenhuma outra solenidade podevir quebrar. É o «laetissimum spatium», o «tempo da muita alegria», com característicaslitúrgicas e significação espiritual muito próprias, que os séculos seguintes vieramperturbar em parte, mas que a restauração litúrgica pós-conciliar reconduziu à purezadas suas origens.

O tema da celebração desta Cinquentena é, tal como em cada Domingo, oMistério pascal, na sua totalidade e na sua unidade, vivido sacramentalmente pelacomunidade cristã, como que em antegozo da vida celeste, onde Cristo entrou, na glóriade Senhor, como primícias da humanidade nova por Ele remida.

Vejamos mais em pormenor como nasceu e foi vivido desde o princípio esteTempo litúrgico, como depois se perturbou a sua estrutura e a sua celebração e comoagora foi restaurado pela reforma litúrgica pós-conciliar, para assim melhor o podermoscelebrar, e vivermos do mistério que nele se celebra, como viveram os nossos ante-passados na fé.

II. – A TRADIÇÃO LITÚRGICA PRIMITIVA

A existência de um espaço de 50 dias, que prolonga a festa do dia da Ressur-reição, é referida logo desde os fins do século II, quase na mesma data em que se fala dacelebração da Páscoa anual na Vigília da noite santa. Quer dizer, o Tempo pascalcomeçou a ser celebrado ao mesmo tempo ou quase ao mesmo tempo que a VigíliaPascal. É por isso o tempo litúrgico mais antigo, e este facto, só por si, faz pensar comoos cristãos entenderam e viveram, logo desde o princípio, o Mistério Pascal. Ele é, naverdade, o fundamento de todo o cristianismo, é ele que constitui o que há de maisespecífico na fé cristã, e, por isso, é ele que dá sentido a todas as expressões da vidacristã, quer no que se crê, como no que se celebra, como no que se vive no dia a dia. É eleo «mistério da fé», proclamado em cada celebração da Eucaristia.

Podemos colher vários testemunhos 3 sobre este tempo litúrgico logo a partir doséculo III:

a) em S. Ireneu, bispo de Lyon, que morreu no ano 202, no princípio do século III;b) nos Actos de Paulo, obra apócrifa do fim do século II, atribuída a um escritor

da Ásia;c) em Tertuliano, escritor cristão do norte de África († c. 220);d) em S. Hipólito de Roma, na sua célebre Tradição Apostólica, de cerca do ano 215;e) em Orígenes, presbítero da Igreja de Alexandria do Egipto († 254).

3 Cf. R. CABIÉ, op. cit., p. 37 ss.

Page 130: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

130 PADRE JOSÉ FERREIRA

Escutemos, a título de exemplo, um testemunho de Tertuliano:«Nós, por nosso lado, segundo a tradição que recebemos, devemos abster-nos

disto (o rezar de joelhos) somente no dia da Ressurreição do Senhor;... igualmentedurante o tempo do Pentecostes, cuja celebração goza do mesmo carácter de alegria».4

E noutro lugar:«Se há uma nova criação em Cristo, deverá haver também solenidades novas.Se o Apóstolo abrogou tudo o que consagra os tempos, os dias, os meses e os

anos, porque celebramos a Páscoa no primeiro mês do ano? Porque passamos nós emgrande alegria os cinquenta dias que se lhe seguem?».5

E ainda outra passagem que nos dá mais claramente o conteúdo destes diaspascais:

«O Pentecostes vem em segundo lugar (depois da Páscoa), como o tempo maisfeliz (laetissimum spatium) para conferir o banho sagrado (do Baptismo). É o tempo emque o Senhor ressuscitado vem frequentemente ao meio dos discípulos, o tempo em quefoi comunicada a graça do Espírito Santo e que faz entrever a esperança da vinda doSenhor. Foi então, depois de ter subido aos céus, que os Anjos disseram aos Apóstolosque Ele havia de vir como tinha subido aos céus, precisamente no Pentecostes».6

A partir destes testemunhos de Tertuliano, a que seria fácil juntar muitos outros,podemos já tirar algumas conclusões, que nos podem até dar luz para compreendermos oque a seguir se dirá:

1.ª – Existe desde os fins do século II um tempo de 50 dias, especialmente festivo,a partir da solenidade da Páscoa;

2.ª – Nele se prolonga a celebração do Mistério Pascal;3.ª – Os temas que mais tarde serão objecto de solenidades mais ou menos

autónomas, como sejam a Ressurreição do Senhor, a Ascensão aos céus, a vinda doEspírito Santo, a expectativa da vinda gloriosa, são ainda celebrados, nesta época, naunidade não diversificada, que dá a todo este tempo um sentido único;

4.ª – É característica deste tempo a alegria espiritual (laetissimum spatium) e aausência dos tradicionais sinais de penitência, em particular, o rezar de joelhos e ojejum;

5.ª – Por fim, todo este tempo é designado, no princípio, pelo nome de Pente-costes, palavra que não designa um só dia de festa, mas um tempo festivo.

4 TERTULIANO, De or. 23, 2, in CABIÉ, op. cit., p. 39.5 Idem, De jej., 14, 2, ib. p. 39.6 Idem, De Bapt. 19, 2, ib. p. 40.

Page 131: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 131

III. – O «GRANDE DOMINGO»

É de S. Atanásio († 373) a definição do Pentecostes – Tempo pascal como o«Grande Domingo», expressão que o Calendário, agora renovado depois do Concílio,voltou a utilizar. Isto significa que o sentido último do tempo pascal deve ir procurar-seao próprio sentido do Domingo.

1. O «oitavo dia»

O cristianismo não é só a realização das figuras anunciadas na Antiga Aliança; eleintroduziu-nos num mundo novo, o mundo de Cristo ressuscitado, termo de toda aesperança dos cristãos.

Jesus, o Crucificado, apareceu ressuscitado no «primeiro dia da semana» (Mt 28,1), dia que, por isso, os cristãos chamaram «Dia do Senhor» (cf Ap 1, 19), isto é, dia deJesus Cristo ressuscitado e glorioso. A fé cristã assenta precisamente no facto de Jesus,pela sua imolação na Cruz, ter passado deste mundo para o Pai, agora exaltado com onome divino de «Senhor». É este o Mistério Pascal, o mistério da passagem do homempara a glória da imortalidade, que é a do Senhor ressuscitado. No primeiro dia de cadasemana, no «Dia do Senhor», os cristãos celebram, «até que Ele venha», este mistério dapassagem da morte à vida gloriosa. Assim dão graças a Deus pelo dom inefável dasalvação e vão alimentando a sua fé e a sua esperança.

Na realidade, o Domingo cristão nada tem a ver com o Sábado judaico. Ele não sedefine já pelo descanso depois do trabalho que fatigou, mas como o dia que está paraalém da fadiga, para além do trabalho, para além da morte, o dia que ultrapassa o tempoe introduz na vida eterna, na glória da Ressurreição. É assim que, desde o século II, oDomingo é também chamado «oitavo dia»,7 porque é «o dia em que Jesus ressuscitou dosmortos e, depois de Se ter manifestado, subiu ao céu». E S. Justino, cerca do ano 150,afirma que «o primeiro dia, continuando a ser o primeiro de todos os dias, contando-o denovo depois de todos os dias da semana, é chamado oitavo, sem deixar por isso de ser oprimeiro».8 Os sete dias da semana são o símbolo do tempo presente; por isso, o sábadojudaico era o último dia da semana, dia do repouso depois do trabalho. O Domingocristão, se é também dia de repouso, já o não é como descanso relacionado principal-mente com o trabalho do homem, mas como figura do repouso eterno em Deus, dia decontemplação e acção de graças, dia de festa, pela vida nova introduzida neste mundopor Cristo ressuscitado, como agora diz o Concílio e já o explicava, logo no início doséculo II, S. Inácio de Antioquia: «Os que viviam segundo a ordem antiga das coisas(o povo da antiga Aliança) chegaram à nova esperança; não observam já o sábado, mas oDomingo, dia em que a nossa vida se levantou por Cristo e pela sua morte».9

7 Ep, de Barnabé, éd. H. HEMMER, Picard, 1926, p. 88-89, ib., p. 47.8 S. JUSTINO, I Apol. 67, ib., p. 47.9 S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Magn. 9, ib., p. 48.

Page 132: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

132 PADRE JOSÉ FERREIRA

Este acesso à vida divina pela fé em Jesus, manifestado «Senhor» pela Res-surreição, constitui a característica mais própria do Domingo como oitavo dia. Pois, éesta característica pascal do Dia do Senhor que vai ser estendida a todo o Tempo pascal,o qual é, por isso mesmo, o «grande domingo».

2. A «semana de semanas»

Não admira, pois, que os primeiros cristãos tivessem como único dia de festa oDomingo, o Dia do Senhor. Nele celebravam todo o Mistério Pascal de Jesus, o Senhor.

Mas sabemos como desde cedo apareceu a celebração mais solene do MistérioPascal uma vez em cada ano, no Tríduo pascal. Não foi a Páscoa anual que se começou arepetir em cada Domingo, mas o mistério do Domingo que tomou relevo especial nasolenidade da Páscoa de cada ano.

É natural que o simbolismo do «oitavo dia» aplicado ao Domingo tenha inspiradoo simbolismo das sete semanas e dos oito Domingos, do Domingo da Ressurreição até aooitavo, ou seja, os 50 dias do Tempo pascal. O Tempo pascal foi assim um «Pentecostes»,uma Cinquentena, uma semana de semanas, uma oitava de Domingos. S. Hilário dePoitiers († c. 367) assim explicava o simbolismo deste tempo:

«É a semana de semanas, como o mostra o número setenário, obtido pela multipli-cação de sete por si mesmo (7 x 7 = 49). É, no entanto, o número 8 que o leva à perfeição,pois que é o mesmo dia que é, ao mesmo tempo, o primeiro e o último, acrescentado àúltima semana, conforme a plenitude do Evangelho. Esta semana de semanas é celebradasegundo uma prática que vem dos Apóstolos: nestes dias do Pentecostes ninguém adoracom o corpo prostrado por terra, nem põe obstáculo com o jejum a esta solenidade dealegria espiritual. É aliás o mesmo que está estabelecido para os Domingos».10

O Tempo pascal é, pois, uma semana de semanas. Não nos interessa a tabuadacom que se possa explicar o número 50 nele contido, mas o mistério que por ele sesimboliza e nele é celebrado. Trata-se da celebração, ampliada até ao oitavo Domingo,do Mistério Pascal, celebração que tem o seu ponto de partida no Tríduo pascal e seconclui no oitavo Domingo, dito hoje de Pentecostes.

Esta perspectiva era bem clara para a Igreja dos primeiros quatro séculos. Doséculo IV, a época da grande estruturação das Igrejas locais, abundam os testemunhos demuitos dos seus bispos, que, por falta de tempo, não podemos agora citar.

3. Um «único dia de festa»

Por mais que os séculos posteriores tenham como que esboroado a unidade doTempo pascal, essa unidade esteve sempre subjacente à celebração de todos os 50 dias,e continua a estar, mas sobretudo agora que o Calendário reformado depois do Concílioassim apresenta o Tempo pascal:

10 S. HILÁRIO DE POITIERS, Super psalm.

Page 133: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 133

«Os 50 dias que vão do Domingo da Ressurreição até ao Domingo de Pentecostescelebram-se, na alegria e na exultação, como um único dia de festa; mais, como um«grande Domingo».11 O Calendário assumiu, de novo, a expressão «Grande Domingo»de S. Atanásio numa das suas Cartas Festais, espécie de Cartas Pastorais enviadas todosos anos pelos patriarcas de Alexandria às Igrejas do Egipto para anunciar as festaspascais, e que terminavam sempre com a indicação da data da Páscoa e das solenidadesque dela dependiam. Na primeira dessas Cartas, do ano 329, escrevia S. Atanásio:«Como este tempo (o Tempo pascal) é para nós o símbolo do mundo que há-de vir,celebrá-lo-emos como um grande Domingo».12

Os 50 dias do Tempo pascal são «um grande Domingo», «um único dia de festa»,porque eles celebram o mesmo e único Mistério Pascal de Jesus Cristo, que foicrucificado, mas é agora O ressuscitado, elevado à direita de Deus, recebendo do Pai oEspírito Santo e derramando-O sobre os seus, «como vedes e ouvis», dizia S. Pedro aosseus ouvintes no dia de Pentecostes (cf. Act. 2, 33).

IV. – A «MARCA» DO ESPÍRITO NA PÁSCOA DE JESUS

Em visão cristã da história, toda ela é manifestação da presença e da acção doEspírito de Deus. Essa presença e essa acção tornou-se mais palpável em Jesus Cristo,que «foi concebido pelo Espírito Santo» (Simb.), «sobre quem o Espírito desceu epermaneceu (cf. Jo 1, 32), que foi conduzido pelo Espírito ao deserto para aí triunfar doEspírito do mal (cf. Mt 4, 1), que pelo Espírito Se ofereceu a Si mesmo a Deus para obterpara os homens uma redenção eterna (cf. Hebr 9, 14), que, elevado à direita de Deus,d’Ele recebeu o Espírito e O derramou sobre os Apóstolos desde o próprio dia daRessurreição (cf. Jo 20, 22) e, por eles, sobre todos aqueles que, do meio de todas asnações, seriam chamados a formar a sua Igreja (Act 2, 9 ss.).

O dom do Espírito Santo é a «marca» divina na obra da redenção realizada porJesus Cristo no seu Mistério Pascal, é o selo indestrutível desta nova Aliança, que seráeterna, selada por Deus com os homens em Jesus Cristo, pelo seu Sangue derramado naCruz. Por isso, a vinda do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus é parte integrantedo seu Mistério Pascal. Se a acção do Espírito de Deus acompanha toda a história dasalvação desde o início – «No princípio, quando Deus criou o céu e a terra,... o Espíritode Deus pairava sobre as águas» (Gén 1, 1-2), era Ele quem falava pelos profetas e queestava prometido para os tempos messiânicos, – essa acção manifestou-se em plenitudequando o Senhor foi exaltado na glória da Ressurreição. Antes dessa «sua hora», não serevelara nunca tão poderosa a presença e a acção do Espírito como se revelou depois daRessurreição, pois «o Espírito ainda não viera, porque Jesus não tinha sido aindaglorificado» (Jo 8, 37-39).

11 Cal. Rom. 22.12 S. ATANÁSIO, Ep. fest. I.

Page 134: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

134 PADRE JOSÉ FERREIRA

Mas, logo que o Senhor foi glorificado, «na tarde desse dia, o primeiro da semana,estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam reunidos, commedo dos judeus, veio Jesus, pôs-Se no meio deles e disse-lhes:... ‘Recebei o EspíritoSanto. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem osretiverdes, ser-lhes-ão retidos’» (Jo 20, 19-23). Esta descida do Espírito sobre os discí-pulos, procedendo da boca de Jesus e no próprio dia da Ressurreição, mostra a ligaçãoíntima e a continuidade necessária entre a Ressurreição do Senhor e a vinda do EspíritoSanto. De facto, a descida do Espírito Santo é o selo divino, posto sobre a Páscoa deJesus, a realização perfeita da obra da redenção. Por isso, a evocação da epifania doEspírito Paráclito, que os Actos dos Apóstolos colocam no quinquagésimo dia depois daRessurreição, tornou-se, muito naturalmente, o objecto principal do último dia do Tempopascal, no Domingo que veio a absorver o próprio nome de Pentecostes entre os cristãos,como já entre os judeus designava a sua festa do quinquagésimo dia depois da Páscoa.Se, com tudo isto, quisermos chamar também ao Domingo de Pentecostes Domingo doEspírito Santo, teremos de considerar sempre tal solenidade como uma festa pascal,como a «clausura», o encerramento da Páscoa, como os antigos lhe chamaram, e nãocomo outra festa independente daquela. O dom do Espírito Santo é o fruto completo etotal da Páscoa do Senhor.

Vem a propósito chamar aqui a atenção para este termo, a «marca» ou «selo» doEspírito, palavra que nos vem já de S. Paulo, e que continua a ser usada na liturgia apropósito do Espírito Santo. É a palavra que, muito pouco claramente aliás, está contidana fórmula da Confirmação: «Recebe por este sinal o dom do Espírito Santo». Aquelesinal é uma tradução deficiente da palavra grega sphragis, que quer dizer a marca, comoa de um sinete.

V. – A EXALTAÇÃO DO SENHOR E O MISTÉRIO DA ASCENSÃO

A Ascensão do Senhor é a última aparição do Ressuscitado, e reveste significaçãoparticular. Ela revela que a Ressurreição elevou Jesus à glória do Pai, à direita do Pai, e,com Ele, toda a humanidade por Ele redimida. A Ascensão é a resposta exaltante àsituação degradante do homem no paraíso perdido. Aí foi dito: «Voltarás à terra dondevieste» (cf. Gén 3, 19); da Ascensão está escrito: «Subiu às alturas, levou consigo oscativos» (Ef 4, 8).

Há na Sagrada Escritura duas maneiras de falar do Mistério Pascal de Jesus: umasvezes, fala-se de morte e ressurreição; outras vezes, fala-se de humilhação e exaltação.São dois binómios, que fazem referência ao mesmo acontecimento histórico, mas que oapresentam em duas perspectivas diferentes, embora complementares. A morte na Cruz éa situação máxima da humilhação do Filho de Deus, que, «aparecendo como homem, Sehumilhou ainda mais, obedecendo até à morte, e morte de Cruz» (Flp 2, 7-8); a Ressur-reição é a exaltação do Crucificado, a quem «Deus exaltou e deu o nome que está acimade todos os nomes», (ib. 9-10), o nome de Senhor, o nome que toda a língua proclama,para glória do Pai, ao dizer: «Jesus Cristo é Senhor» (Cor 12, 3).

Page 135: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 135

Se a Ressurreição manifesta directamente a passagem da morte à vida, a Ascensãosublinha particularmente a exaltação na glória, em contraste com a descida, o abatimento, ahumilhação, a «quenosis» da Paixão. Assim as referências à Ascensão, quer nos Actosdos Apóstolos, quer nos Evangelhos, não pretenderão tanto fazer a descrição de um facto,como proclamar o mistério, a exaltação do Senhor ressuscitado. S. Lucas, nos Actos,coloca a Ascensão no quadragésimo dia depois da Ressurreição, pormenor que o mesmoS. Lucas não refere no seu Evangelho, nem nenhum dos outros evangelistas. O númeroterá um sentido simbólico, mesmo que o facto narrado tenha acontecido nesse dia. Issonão traz consigo necessariamente nenhuma implicação litúrgica, pois que a celebraçãolitúrgica não pretende reproduzir um calendário histórico, como se fora uma série deefemérides, mas celebrar o mistério da história, da história da salvação, mistério que nãoé limitado por nenhum tempo.

Não admira, por isso, que também a Ascensão não tenha sido celebrada, desde oinício, com uma solenidade própria. E, quando o começou a ser, não o foi necessa-riamente no quadragésimo dia após a Páscoa. Assim, encontramos até ao século IV, acelebração da Ascensão nalgumas Igrejas, sobretudo no Oriente, no quinquagésimo dia,ou seja, no último dia do Tempo pascal, aquele que hoje é o Domingo de Pentecostes.

Não é por isso completamente aberrante que hoje, entre nós, embora por razõesdiferentes, a Ascensão seja celebrada no VII Domingo da Páscoa.

VI. – A PERDA DE UNIDADE DO TEMPO PASCAL

O Tempo pascal, que nós conhecemos até à reforma do Calendário em vigor desdeo 1 de Janeiro de 1970, tinha perdido muito, quer quanto à organização interna quermesmo quanto ao espírito, da concepção do «Pentecostes» primitivo.

Eram estas as principais modificações introduzidas ao longo dos séculos e quedeformavam aquela unidade primitiva:

l.ª – A Ascensão e o Domingo de Pentecostes passaram a ser considerados comosolenidades autónomas. Cada uma delas recebeu uma vigília, considerada até comopenitencial, (a do Pentecostes era então uma das quatro vigílias jejuadas do ano!), coisaimpensável para os cristãos do século III dentro do Tempo pascal.

2.ª – Cada uma destas solenidades recebeu a sua oitava, porque se tinha perdido anoção de que todo o Tempo pascal era uma oitava, a grande oitava da solenidade pascal.Além disso, a oitava do Pentecostes prolongava o Tempo pascal por mais sete dias alémdos 50, até à solenidade da S.ma Trindade. Tínhamos então um Tempo pascal, um«Pentecostes», de 57 dias, contra toda a tradição anterior e em contradição com opróprio nome de Pentecostes, Cinquentena.

Acontecia até que o jejum das têmporas do verão, que caía sempre na semana aseguir ao Domingo de Pentecostes, vinha ainda dentro do Tempo pascal! Este jejum era,na origem, o jejum normal das quartas e sextas-feiras, que os cristãos sempre praticaramdesde as origens, excepto precisamente no Tempo da Páscoa.

Page 136: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

136 PADRE JOSÉ FERREIRA

3.ª – Todo o Tempo Pascal, desde que se perdeu a consciência de que ele era acelebração prolongada da Páscoa, passou a considerar-se «Tempo depois da Páscoa», eassim os Domingos do Tempo Pascal chamavam-se «Domingos depois da Páscoa», atéque, a partir de 1970, se voltaram a chamar «Domingo II, III, IV, etc. da Páscoa».

4.ª – Os três dias imediatamente anteriores à solenidade da Ascensão tornaram-se,desde o século V, primeiro na Gália, depois em toda a Igreja, dias de Rogações, dias deoração penitencial, de novo em contradição com o espírito deste Tempo. Acrescia aindaque estas Rogações tinham em vista, ao menos na origem, as culturas agrícolas, situaçãoque só se verificava no nosso hemisfério norte, onde o Tempo Pascal coincide com aprimavera. Por isso, o novo Calendário prevê que as Rogações sejam adaptadas, na forma eno tempo, às diversas regiões do globo. Em Portugal ficaram reduzidas a um só dia, masna quinta-feira da sexta semana, o dia da Ascensão no nosso Calendário anterior.

5.ª – Em consequência de toda esta perturbação, como causa e, ao mesmo tempo,efeito dessa situação, o povo cristão quase não dava pelo Tempo Pascal. Por isso,ocupou-o com outras devoções, boas sem dúvida, mas desarticuladas da estrutura e doespírito da Cinquentena pascal, tão querida das primeiras gerações da Igreja, e tempo emsi mesmo tão denso e tão bem definido, como aconteceu com as devoções dos meses deMaio e Junho, quando o tempo litúrgico nunca conheceu a estrutura dos meses.

6.ª – Também em consequência desta perda de visão do que é o Tempo Pascal, otempo de preparação para a Páscoa, que é a Quaresma, embora com todas as suasdeficiências, viu voltar-se para ele a atenção dos cristãos, mais facilmente sensíveis aoseu triste mundo de pecado do que ao dom misericordioso da novidade pascal, que Deusgratuitamente lhes oferece em Jesus Cristo e no seu Espírito. Nós somos, de facto, maisfacilmente religiosos do que Cristãos!

VII. – A RESTAURAÇÃO DO TEMPO PASCAL

Tudo o que foi dito só pretendia levar-nos mais facilmente à compreensão do queé hoje a celebração do mistério da Páscoa celebrado ao longo do Tempo Pascal, de novoreconduzido às estruturas e ao espírito das suas origens. Mais do que uma reforma, o quese fez foi uma verdadeira restauração, acompanhada até de certos enriquecimentos. Defacto, bastava aliviar o Tempo Pascal das sobrecargas que, ao longo dos séculos, eletinha indevidamente recebido, para reencontrar a sua estrutura límpida, clara, e o espíritoque presidiu à sua organização, que aliás as próprias narrações bíblicas sugeriram; de-pois enriquecê-lo talvez com alguns novos elementos. Foi o que, de facto, se fez.

Agora, basta acolher o mistério deste Tempo como a celebração litúrgica no-loapresenta, e deixar-se conduzir pelo seu espírito.

São estes os principais pontos daquela restauração:a) O Tempo Pascal voltou a ser, como o Pentecostes primitivo, tempo uno: é a

festa única da Páscoa que se prolonga por cinquenta dias. Neste sentido, é elucidativa arubrica que o Missal Romano apresenta, aliás como texto único para esse dia, na página,quase em branco, do Sábado Santo:

«No Sábado Santo, a Igreja permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando nasua Paixão e Morte, e abstendo-se do sacrifício da Missa, até ao momento em que,

Page 137: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 137

depois da solene Vigília ou expectação nocturna da ressurreição, se dê lugar à alegriapascal, cuja riqueza se prolongará por cinquenta dias».

O Tempo Pascal nasce, pois, da Vigília pascal, continua a alegria da Ressurreiçãoe prolonga-se por cinquenta dias; e não mais por cinquenta e sete. Volta a ter sete semanase mais um oitavo Domingo, e não já oito semanas, como anteriormente acontecia.

A Ressurreição nascida da Cruz do Senhor e a alegria que daí resulta é precisa-mente o tema da grande expectação da Vigília de que fala a rubrica do Sábado Santo, e éela que vai encher toda a cinquentena pascal.

b) A solenidade do oitavo Domingo, o do Pentecostes, deixou de ser precedida deuma vigília, e, para mais, jejuada, como anteriormente, o que fazia desse dia uma outrasolenidade. O Domingo de Pentecostes é, de novo, o encerramento das solenidadespascais e, de algum modo, o seu vértice, para o qual toda a cinquentena se encaminhou.

Com a vigília, foi suprimido o jejum desse dia, coisa aberrante no «laetissimumspatium» do Tempo Pascal.

Por lógica semelhante, foi suprimida a oitava do Domingo de Pentecostes, que, narealidade, era como que a oitava de uma oitava. Em consequência, o Tempo Pascal jánão se prolonga até à solenidade da Santíssima Trindade, e o jejum das Têmporas poderáreaparecer sem brigar com o Tempo Pascal. Em qualquer caso, com o Domingo dePentecostes termina o Tempo Pascal, e podemos agora regressar, depois deste quaseêxtase celeste que foi o Tempo da Páscoa, ao simples, humilde, mas tão simpático,porque tão parecido com a nossa vida de cada dia, Tempo Comum.

c) A solenidade da Ascensão foi também, de novo, integrada, demonstrandoclaramente que fazia parte do «Pentecostes» pascal; voltou, por isso, a não ter nemvigília nem oitava, com que tinha sido deformada alguns séculos atrás.

d) Suprimindo-se a oitava do Domingo de Pentecostes, os dias feriais entre aAscensão e o Pentecostes foram, em contrapartida, valorizados, e adquiriram especialimportância: «foram enriquecidos com formulários próprios, nos quais se trazem àmemória as promessas de Cristo a respeito da vinda do Espírito Santo».13

e) A primeira semana continua a ser considerada como oitava da Páscoa, semanatradicionalmente destinada à catequese mistagógica para os neófitos da Vigília pascal.Conserva, no Missal, os textos anteriores sobre as aparições do Senhor ressuscitado e asprimeiras pregações dos Apóstolos sobre o mistério da Páscoa de Jesus.

VIII. – O ESPÍRITO DO TEMPO PASCAL

1. O tempo do Espírito

De tudo o que pudemos observar, quer quanto às origens, quer quanto à evoluçãodo Tempo Pascal, poderíamos concluir que ele é o Tempo do Espírito. Do Espírito sãotodos os tempos, pois que o Espírito de Deus, desde as origens, paira sobre o mundo.

13 Cal. Rom., Commentarius, 1, 2, A) 3).

Page 138: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

138 PADRE JOSÉ FERREIRA

Mas é sobretudo desde que o Senhor foi glorificado que o Espírito de Deus encheu aterra inteira. Os grilhões da morte, que a ressurreição quebrou, soltaram também o ventodo Espírito. É Ele que traz a este mundo, que o homem semeou e continua a semear depecado, o sopro vital de Deus, fonte de vida nova, a vida do Senhor glorificado e glori-ficador.

2. O tempo da Igreja

Logo na própria Vigília pascal a Igreja celebra os sacramentos da iniciação cristã.Ela sabe que nasceu do lado do Senhor adormecido na Cruz, donde jorraram os símbolossacramentais do Sangue e da Água, e que fez a sua grande epifania no mundo, quando oEspírito desceu e, de todos os povos, fez um só povo, o povo dos remidos pelo Sangue deCristo.

O Tempo Pascal foi sempre, e devia voltar a sê-lo, o tempo da redescoberta dossacramentos da Igreja, particularmente dos sacramentos da iniciação cristã, Baptismo,Confirmação e Eucaristia, também eles entendidos na unidade da mesma acção doEspírito. Por eles, ao longo das idades, o Espírito de Deus vai tornando presente aoshomens o Mistério Pascal do Senhor Jesus. Por isso, ele é, por excelência, o tempo damistagogia.

Faz também parte desta mistagogia pascal a descoberta e o aprofundamento domistério da própria Igreja, da vida da comunidade cristã onde nos inserimos. Seria pos-sivelmente o tempo de certas experiências comunitárias, tendentes a fazer compreendere viver algumas actuações fundamentais da vida das comunidades cristãs, da comunidadelocal, paroquial e sobretudo diocesana, em volta do Bispo, possivelmente na igreja cate-dral, que, noutras ocasiões, pouco se poderão sentir.

3. Tempo de acção de graças

O facto de o Tempo Pascal ter sido o primeiro tempo litúrgico a ser organizado ede o ter sido ainda antes da Quaresma, o facto, portanto, de primeiro se ter celebrado omistério da Páscoa e só depois se ter organizado um tempo de especial preparação paraessa celebração leva-me, uma vez mais, a esta reflexão: nós temos mais facilidade emolhar para as nossas limitações do que em alargar os olhos e abrir o coração ao dom deDeus. Soa-me aos ouvidos a palavra de Jesus à Samaritana: «Se conhecesses o dom deDeus...» (Jo 4, 10). Foi em consequência da revelação desse dom que ela deixou ocântaro junto à fonte e iniciou o caminho da penitência.

Na perspectiva espiritual cristã, o homem recolhe o dom de Deus e responde aesse dom em reconhecimento, louvor e acção de graças pelo que sente – converte-se –,pelo que diz – louva –, pelo que faz – vive –. O Tempo Pascal é, por excelência, estetempo de reconhecer, de louvar e dar graças, de viver da vida pascal do Espírito doRessuscitado.

Se os antigos punham de parte as formas penitenciais, concretamente o rezar dejoelhos e o jejum, não era por não terem consciência de que a conversão é atitude detodos os dias; era porque sabiam que cada coisa há-de ter o seu tempo e o seu lugar, e que

Page 139: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O TEMPO PASCAL NA TRADIÇÃO DA IGREJA 139

nestes dias, os dias em que o Esposo estava com eles, tinham de alegrar-se e viver emfesta.

Esta festa nasce do coração encantado com a presença do Ressuscitado, glorioso,dador do Espírito de Deus. Durante o Tempo Pascal, a Igreja parece continuar a atitudede Maria Madalena na manhã da ressurreição: procura o Senhor, não tira os olhos d’Ele,contempla-O, encanta-se com a sua presença e só sabe dizer-Lhe palavras de quem estáencantado: «Rabuni! Este é o dia que o Senhor fez! Dai graças ao Senhor, porque Ele ébom! A sua misericórdia é eterna! A terra inteira está cheia da sua glória! Cantai umcântico novo! Anunciai até aos confins da terra: ‘O Senhor libertou o seu povo!’»Contempla-O como o Bom Pastor, que deu a vida por ela; acolhe-O nas suas aparições;senta-se com Ele à mesa; partilha do mesmo pão. Não fica romanticamente triste no diada Ascensão, porque O vê glorificado e n’Ele contempla a sua própria glória, a glória aque também ela se sabe chamada; e tem consciência de que é agora que Ele está maiscom ela, e com ela ficará até à consumação dos séculos (cf. Mt. 28, 20).

4. O símbolo do mundo que há-de vir

Não é para admirar que um dos aspectos mais sublinhados pela tradição cristã,nos Padres da Igreja, seja a perspectiva escatológica do Tempo Pascal. Ele é ainda«tempo», e, por isso, ainda deste mundo; mas, pelo mistério que celebra – o MistérioPascal – e até pela sua própria estrutura – uma semana de semanas mais o oitavoDomingo – o Tempo Pascal é o símbolo do «mundo que há-de vir». Um testemunho,entre muitos, de S. Basílio, bispo de Cesareia da Capadócia († 379):

«Todo o Pentecostes nos recorda a ressurreição que esperamos no outro mundo.Na verdade, este dia um e primeiro, sete vezes multiplicado por sete, completa as setesemanas do santo Pentecostes, porque ele começa no “primeiro (dia)” e nele termina,desdobrando-se cinquenta vezes, no intervalo, em dias semelhantes. Por isso, o Pente-costes imita, de certo modo, a eternidade, porque, à maneira do movimento circular, vema terminar onde começou. Nele, é a atitude de pé na oração que as leis da Igreja nosensinaram a preferir; esta evocação em acto faz, por assim dizer, emigrar a parte superiordo nosso espírito do presente ao que há-de vir».14

E S. Isidoro de Sevilha, ainda nos fins do século VI ou já no século VII,podia, na nossa península hispânica, continuar a escrever: «Sete multiplicado por sete dácinquenta, se lhe juntarmos uma unidade, que, segundo a tradição vinda da autoridadedos antigos, prefigura o século futuro. Este dia é sempre o oitavo e o primeiro; maisainda, ele é sempre único, é o Dia do Senhor».15

Todos estes dias do Tempo Pascal são O DIA, o dia que o Senhor fez, anunciador ejá portador da «vida do mundo que há-de vir».

14 S. BASÍLIO DE CESAREIA, De Spir. Sancto, 27, col. Sources Chrétiennes, 17, p. 237 c); cf. H. CABIÉ,op. cit., p. 51.

15 S. ISIDORO DE SEVILHA, De eccl. Offic., I, 24, in H. CABIÉ, op. cit., p. 51.

Page 140: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA

Introdução

Escolheu o Secretariado Nacional da Liturgia para tema das Semanas de PastoralLitúrgica de Fátima nestes três últimos anos o ciclo da Páscoa. Foi assim que há doisanos estudámos o Tríduo pascal, o ano passado, o Tempo pascal, e este ano estamosestudando o tempo da preparação pascal, ou seja, a Quaresma. A ordem pela qual se têmestudado estes temas não tem sido a mesma que se observa na celebração, mas é a ordempela qual eles são apresentados no Calendário Romano 1 e a que melhor corresponde àimportância relativa destes tempos litúrgicos. O Tríduo pascal é o centro e o vértice detodo o ano litúrgico, o Tempo Pascal, o seu prolongamento, a Quaresma a sua pre-paração. Optou-se, portanto, por esta ordem, até porque se pensou que ela poderia ser,já por si só, elemento didáctico e formativo.

Estamos, portanto, com a Quaresma diante de nós. Em relação a este tempo, areforma da Liturgia, empreendida em consequência do Concílio Vaticano II, fez tambémcertas alterações.

Antes da Quaresma, havia, antes da reforma, o tempo chamado da Septuagésima,que compreendia os três Domingos anteriores às Cinzas. Este tempo foi agora suprimidoe esses Domingos integrados no Tempo Comum.

Dentro propriamente da Quaresma, a correcção certamente mais importante, eque tem muito a ver com o tema que vamos tratar, foi a recondução ao Domingo das trêsleituras evangélicas da Samaritana, do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro,que desde há séculos estavam colocados em dias feriais, isto é, de semana. Estas leiturasforam sempre consideradas como as mais importantes da liturgia baptismal da Quaresma.

Foi ainda revisto o sistema de leituras bíblicas da Missa dos dias feriais, em partecomo consequência da passagem daquelas três leituras acima referidas da semana para oDomingo, mas também para encontrar a ordem mais normal das leituras bíblicas,sobretudo da leitura do Evangelho de S. João, a partir do quarto Domingo, a qual, como andar dos tempos, tinha sido muito perturbada. Todavia, foi respeitada, tanto quantopossível, a distribuição anterior das leituras.

A designação «domingo da Paixão», aplicada até aqui ao quinto Domingo,2 éagora dada ao sexto Domingo, o Domingo de Ramos ou da Paixão.

Enfim, os limites da Quaresma estão claramente fixados: começa na Quarta-feirade Cinzas e termina com a abertura do Tríduo pascal, que se inaugura com a Missa

1 Calendarium Romanum, nn. 18-31.2 Foi certamente a circunstância de anteriormente se dar o nome de Domingo da Paixão ao V Domingo da

Quaresma que levou à escolha desse dia para o Dia Mundial do Doente.

Page 141: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA 141

vespertina da Ceia do Senhor na Quinta-feira Santa. Esta pertence ainda, portanto, àQuaresma; é o seu último dia. Tudo isto, apesar de o Missal continuar a referir-se ao IDomingo como o início do tempo da Quaresma como o foi outrora.3 E com razão. Defacto, é a partir do I Domingo que se pode contar a série dos 40 dias místicos, de que aQuinta-feira Santa é o último, o quadragésimo (5 semanas x 7 dias = 35 + 5 dias daprimeira parte da Semana Santa = 40).

Esta nova organização do Missal é igualmente suposta pelo Ritual da IniciaçãoCristã dos Adultos e ambos se articulam na mesma perspectiva.

A Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II,referindo-se ao Tempo da Quaresma, determinou o seguinte:

«Ponham-se em maior realce, tanto na liturgia como na catequese litúrgica, osdois aspectos característicos do tempo quaresmal, que pretende, sobretudo através darecordação do Baptismo ou da sua preparação e por meio da penitência, preparar os fiéispara a celebração do mistério pascal, ouvindo com mais frequência a palavra de Deus eentregando-se à oração com mais insistência. Por isso, utilizem-se com mais abundânciaos elementos baptismais da liturgia quaresmal e retomem-se, se parecer oportuno,elementos da antiga tradição; o mesmo se diga dos elementos penitenciais...» (SC 109).

São estas as orientações do Concílio, que poderão ser completadas por maisalgumas disseminadas por outros lugares do mesmo, sobretudo nos que se referem aoscatecúmenos.

Terminado o Concílio, a Igreja logo se apressou a dar cumprimento às deter-minações do mesmo na reforma litúrgica que tem sido feita e que todos já conhecemosem grande parte. Mas é talvez no que se refere à iniciação cristã, sobretudo dos adultos,e que está tão ligada à Quaresma, que o povo cristão está ainda pouco iniciado. Estaexposição pretende dar algumas achegas nesse sentido. Vamos partir do texto doConcílio atrás citado. Nele se afirma, em síntese:

1. que a Páscoa é a celebração do Mistério pascal;2. que a Quaresma prepara os fiéis para celebrarem a Páscoa;3. que esta preparação se faz sobretudo através da preparação para o Baptismo

ou da recordação do mesmo, e pela penitência;4. que, em ordem a esta preparação, se ponham em realce e se utilizem com mais

abundância, na liturgia e na catequese litúrgica, os elementos baptismais da liturgiaquaresmal;

5. que os fiéis escutem com mais frequência a palavra de Deus e se entreguemcom mais insistência à oração.

Vamos analisar alguns elementos, embora com perigo de nos repetirmos por vezesem relação ao que já foi dito em anos anteriores.

3 Assim reza a oração sobre as oblatas do I Domingo: «Senhor, fazei-nos dignos de Vos apresentar estesdons com os quais damos início à celebração deste sagrado mistério»: ipsius venerabilis sacramenticelebramus exordium.

Page 142: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

142 PADRE JOSÉ FERREIRA

I - A CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO PASCAL, TERMO DA QUARESMA

É a partir da próxima celebração do Mistério pascal que havemos de entender ecelebrar e viver o tempo da Quaresma. Não fosse a celebração dos dias em que o nossoRedentor, pela sua Morte e Ressurreição, nos abriu as portas do Reino dos Céus, e não seteria instituído este tempo de deserto, que os precede e os prepara.

Já por várias vezes se tem insistido no sentido profundo do Mistério pascal.4

Recordemo-lo rapidamente, porque é ele que dá sentido à Quaresma.Toda a fé e esperança cristãs repousam sobre o acolhimento dado ao dom pascal,

que Deus nos oferece em Jesus Cristo. É Ele o nosso Salvador. Nós somos salvos porEle. Foi a consagração da sua vida ao Pai, significada no acto supremo do Calvário, querealizou a Aliança nova e eterna entre Deus e os homens e levou os homens à comunhãocom Deus.

A fé do cristão não consiste apenas em crer em Deus, em ter a crença em Alguémque está acima de nós, num Deus Criador, porque «afinal este mundo há-de ter umaorigem e uma explicação». A fé cristã é a fé nesse Deus Criador e Senhor, mas que Semanifestou aos homens na pessoa de seu Filho feito homem, que Se chama Jesus, e quenós, os cristãos, reconhecemos como o «Cristo», o Ungido de Deus, o Enviado pelo Paiao mundo, como um dia o proclamou S. Pedro: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo»(Mt 16, 16), Aquele que descende «da linhagem de David, filho de Maria, que verdadei-ramente nasceu, comeu e bebeu, verdadeiramente sofreu perseguição sob Pôncio Pilatos,foi verdadeiramente crucificado e morto na presença do Céu, da terra e dos abismos,e verdadeiramente ressuscitou de entre os mortos pelo poder do Pai, que tambémnos há-de ressuscitar a nós que acreditamos n’Ele», como, cerca do ano 107, escreviaS. Inácio, o grande bispo mártir de Antioquia.5 A fé cristã é a fé em Jesus Cristo, que nosrevela o Pai e a Ele nos conduz, transportados na torrente de vida que brota da sua Cruze primeiro se manifestou na sua própria Ressurreição. O Mistério pascal é todo o sentidodivino daquela Morte humana, Morte que foi oblação da vida, dada em acto de amorsupremo, sob a acção do Espírito Santo. Assim foi a Morte do Filho de Deus; por isso,ela foi a destruição da nossa morte e a origem da vida nova, em que, pela misericórdia deDeus, nos é dado participar.

O Mistério pascal é, portanto, o mistério da passagem da Morte à Vida, do homempara Deus, deste mundo para o Pai (cf. Jo 13, 1), por Cristo, com Cristo e em Cristo. Éa Páscoa de Cristo, que há-de ser participada pelos homens.

Esta participação realiza-se particularmente pela Liturgia, porque ela é «o exercícioda função sacerdotal de Jesus Cristo, que nenhuma outra acção da Igreja pode igualar.6

Todas as acções litúrgicas celebram sempre e só o Mistério pascal, porque neleestá a síntese de todo o mistério da salvação, ou talvez melhor, porque ele está em todosos momentos da história da salvação.

4 Cf. em particular o Boletim de Pastoral Litúrgica, nn. 29-31, 33-36.5 S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Tral. IX.6 CONC. VAT. II, SC 7.

Page 143: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA 143

Dentro dos diversos tempos litúrgicos, é precisamente o Tríduo pascal, e nele, demaneira particular, a Vigília pascal, o momento culminante da celebração do Mistériopascal.7 Ora, o objectivo da quaresma é precisamente preparar a celebração do Mistériopascal no Tríduo Pascal.

II - OS SACRAMENTOS DA INICIAÇÃO CRISTÃNA CELEBRAÇÃO DO MISTÉRIO PASCAL

Fazendo a comparação entre a celebração da festa do Natal e a da Páscoa, S.Agostinho diz que o Natal se celebra como uma comemoração e a Páscoa se celebra nossacramentos, in mysterio.8 Se bem que esta distinção tivesse mais que se lhe dissesse, ofacto é que a tradição da Igreja, desde as épocas mais remotas, colocou a celebração dossacramentos da iniciação na Páscoa, ou melhor, celebra a Páscoa com a celebração dossacramentos da iniciação: Baptismo, Confirmação e Eucaristia.

O acontecimento histórico de Jesus Cristo, sucedido, de uma vez para sempre, hácerca de 2.000 anos em Jerusalém, não se repetirá mais. Mas ele é o vértice de toda ahistória da salvação e todos os tempos hão-de beber, com alegria, dessa inexaurível fontede vida.9 Os que viveram antes dele, para lá caminharam com fé, em esperança, guiadospela palavra e pelos sinais proféticos da Antiga Aliança; os que vieram depois bebemigualmente da mesma fonte de salvação, agora através da Igreja, sacramento universal desalvação 10 e, na Igreja, por meio de cada um dos diversos sinais sacramentais com queela vem ao encontro dos homens, nas diversas circunstâncias da vida dos mesmos homens.

Cada sacramento da Igreja é sinal da presença actuante junto dos homens do dina-mismo do Mistério pascal de Jesus Cristo, do seu sacrifício redentor.

Ora, o primeiro desses sinais, desses sacramentos, é o Baptismo, «Porta da vidado Reino»,11 o Baptismo significa directamente a participação na Morte redentora doSenhor, o ser-se sepultado com Cristo na morte: «Ignorais, porventura, que todos nós,que fomos baptizados em Jesus Cristo, fomos baptizados na sua morte? Pelo Baptismosepultámo-nos juntamente com Ele, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos,mediante a glória do Pai, assim caminhemos também nós numa vida nova» (Rom 6, 3-4),escreve S. Paulo aos Romanos (Cf. Col 2, 12). O Apóstolo parece fazer esta catequese,comentando precisamente o rito do Baptismo, que nesse tempo era feito habitualmentepor imersão. O Baptismo é, portanto, o sepultar do «homem velho», como o mesmo

7 Ib. 106; Calend. Rom., n. 18.8 S. AGOSTINHO, Ep. 55 ad Januarium: «O dia aniversário do nascimento do Senhor não é celebrado

como mistério (in sacramento), mas recorda-se somente o facto do seu nascimento», cit. em La Maison--Dieu, n. 59, p. 61.

9 Cf. Cântico responsorial da Vigília pascal depois da V leitura.10 CONC. VAT. II, LG 48; GS 40, 45.11 Ritual tanto do Baptismo das crianças, como da Iniciação Cristã dos Adultos, Preliminares Gerais, n. 3.

Page 144: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

144 PADRE JOSÉ FERREIRA

Apóstolo lhe chama, do Adão condenado a morrer desde o primeiro pecado no paraíso, eo ressurgir do «homem novo», do «novo Adão», à imagem de Cristo ressuscitado.12

Tudo aparece, de facto, mais claro no Baptismo feito por imersão, como é datradição antiga e ainda hoje possível e desejável, para que o sinal seja claro, visível,compreensível, como o Concílio o deseja.13

O que o sinal sacramental significa é o que, na realidade, acontece, a saber, aparticipação actual do cristão na Morte e Ressurreição de Cristo, isto é, no seu Mistériopascal. Aqui começa a vida nova do cristão. Por aqui se faz logicamente a sua iniciação,a sua entrada no mundo novo da Igreja, Corpo místico do Senhor, dos marcados peloselo do Espírito de Deus, dos convidados para a Ceia das núpcias do Cordeiro, do Cor-deiro pascal, imolado à tarde, comido à noite, ressuscitado de manhã, vivo para semprediante do trono de Deus, no meio da assembleia dos eleitos, intercedendo por nós.

Não admira, pois, que a iniciação cristã sacramental tenha sido colocada nacelebração anual da Páscoa.

Este costume não só aparece como conveniência litúrgica, mas chegou a ser atéobjecto de exigência canónica de muito rigor. Tempos houve em que era raro, e atéproibido, celebrar o Baptismo fora da Páscoa. Nalgumas Igrejas, o baptistério chegou aser fechado no início da Quaresma, para que durante esse tempo não se celebrasse ainiciação cristã, mas se esperasse pela Páscoa.14 Era medida pastoral inspirada namelhor teologia.

III - PERSPECTIVA BAPTISMAL DA QUARESMA

Já ouvimos noutro lugar 15 como a Quaresma não apareceu ao mesmo tempo queo Tríduo pascal, nem sequer toda ela na mesma altura. Começou até por não ser umaquarentena, por não ter quarenta dias; mas, quando apareceu, foi logo como preparaçãopara a Páscoa. A princípio, teve em vista certos grupos especiais dentro da comunidadecristã, os penitentes e os catecúmenos; todos estes se preparavam para a celebração daPáscoa. Essa preparação, porém, não se limitava à Quaresma, o que, para eles, teria sidomuito pouco. Essa preparação vinha já de longe, por vezes, desde longos anos. Mas aQuaresma era, em cada ano, o último período daquela preparação, quer para os penitentes,que iam ser reconciliados, quer para os catecúmenos, que iam receber o Baptismo.

Penitentes e catecúmenos não são, no entanto, grupos paralelos à comunidadecristã; vivem dentro dela e, até certo ponto, com ela. Por isso, com uns e outros, toda acomunidade caminha e se prepara, ao longo da Quaresma, para celebrar, com eles, aPáscoa que vem próxima.

12 Cf. Ef 2, 15; Col 3, 9-10; Rom 5, 12; I Cor 15, 22.13 Cf. Ritual do Baptismo das Crianças, Preliminares Gerais, 22; Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos, nn.

32, 220, 261; Código de Direito Canónico, c. 854.14 Assim na Península hispânica: cf. S. ILDEFONSO, De cognit. baptismi, 107, citado em M. RIGHETTI,

Historia de la Liturgia, trad. esp., 1956, pp. 685-686.15 Cf. outras conferências desta mesma semana.

Page 145: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA 145

A disciplina da penitência antiga caiu em desuso há vários séculos, e não se prevêque venha a ser, de novo, posta em prática.

Já não assim com a disciplina do catecumenado. Depois de longos séculos deabandono, o catecumenado começou, de novo, a estar em uso, há já algum tempo, sobre-tudo nas Missões. Depois, também na Europa se ensaiou a restauração do catecumenadodos adultos que se encaminhavam para o Baptismo. O Ritual do Baptismo que esteve emuso até ao nosso tempo ainda continha, embora de maneira muito atrofiada, os antigosritos do catecumenado, com os quais se tinha feito a preparação dos catecúmenos para ossacramentos da iniciação desde os primeiros tempos da Igreja. Em 1961, olhou-se, denovo, para este Ritual, (que era um resumo, feito no século XVI, do antigo Ritual docatecumenado), repartiu-se o conjunto dos ritos que nele entravam e atribuiu-se cadauma das secções assim encontradas a determinado momento do tempo do catecumenado,ao longo, possivelmente, de vários anos, para ser assim posto em prática nas regiõesonde houvesse adultos que se encaminhassem para o Baptismo.16

As tentativas de recuperação efectiva do catecumenado tradicional, e que tãobons resultados pastorais havia dado, tanto na antiguidade como nos tempos modernos,receberam agora consagração plena na reforma litúrgica posterior ao Vaticano II. Denovo, a Quaresma é o último tempo de preparação para a celebração dos sacramentos dainiciação cristã dos catecúmenos. E, com os catecúmenos, toda a comunidade cristã seprepara, ao longo deste tempo litúrgico, para celebrar a Páscoa do Senhor, que é aPáscoa da Igreja.

A liturgia da Quaresma está fortemente marcada por perspectivas baptismais,orientadas especialmente para os catecúmenos, mas muito úteis também para os fiéis emgeral. Esta liturgia encontra-se no Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos e no Missal,neste último nas celebrações destinadas directamente à iniciação dos catecúmenos, masnão exclusivamente nessas. Quando falo do Missal, refiro-me tanto ao livro do pre-sidente, o Oracional, como se lhe poderia chamar, como, e sobretudo, ao Leccionário.

Olhemos então simultaneamente para o Missal e para o Ritual, procurando colheros tais elementos que mais directamente se destinam à preparação ou à recordação doBaptismo, como dizia o Concílio no texto acima citado.

O TEMPO DA PURIFICAÇÃO E DA ILUMINAÇÃO

Assim é chamado o tempo da Quaresma em relação aos catecúmenos.

a) A eleição e inscrição do nome

Terminado um período mais ou menos longo de formação na vida segundo oEvangelho, cuja duração média são os três anos, os catecúmenos, que assim o decidiram,

16 Trata-se da adaptação do Ritual do Baptismo dos adultos anterior à reforma litúrgica, publicado na A. A.S. de 30 de Maio de 1962, pp. 310-315, sob o título: Ordo Baptismi Adultorum per graduscatechumenatus dispositus. Cf. comentário em La Maison-Dieu, n. 71.

Page 146: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

146 PADRE JOSÉ FERREIRA

pedem para ser admitidos aos sacramentos da iniciação. Isto faz-se no princípio daQuaresma. Já S. Agostinho anunciava aos seus catecúmenos: «Vem aí a Páscoa. Dá onome para o Baptismo». Se, por um lado, os catecúmenos pedem, por seu lado a Igrejachama e elege os que hão-de ser conduzidos às fontes baptismais.

Vale a pena olhar, ainda que rapidamente, para o rito deste passo decisivo.Encontra-se ele no Ritual.

Celebra-se dentro da Missa do Primeiro domingo da Quaresma, a seguir àhomilia, ou, se o não puder ser então, noutra altura mais oportuna.17

Começa-se pela apresentação dos candidatos à comunidade dos fiéis,18 o que logodá a entender que toda a comunidade vai ser conduzida até à Páscoa, tocada pelarecordação do Baptismo, como quer o Concílio. Esta mesma perspectiva é sublinhada,quando um responsável pelo grupo dos catecúmenos avança e diz:

«Senhor Padre, os catecúmenos aqui presentes, confiados na graça divina eajudados pela oração e exemplo da comunidade, vêm pedir para serem admitidos aossacramentos...».19

E depois de ter recebido o testemunho favorável dos responsáveis, o presidenteacrescenta:

«A vós me dirijo agora, catecúmenos... A Igreja, em nome de Cristo, chama-vosaos sacramentos pascais... Fazei então a inscrição do vosso nome».20

Este rito chama-se precisamente «eleição» ou «inscrição do nome». Doravanteeles já não se vão chamar «catecúmenos», mas «eleitos». Foram eleitos pela Igreja, e estaeleição é o sinal da sua eleição divina. O mistério da escolha de Deus passa pela escolhaque a Igreja faz. Assim o dizem os outros textos que vêm a seguir:

«N., fostes eleitos para receber os sacramentos da iniciação cristã. Agora é vossodever, como aliás de todos nós, oferecer a vossa fidelidade a Deus que vos chamou e éfiel a esse chamamento».21

E depois na oração conclusiva do rito:«Senhor..., olhai com bondade para aqueles que chamais à filiação divina».22

Para a comunidade dos fiéis onde não haja catecúmenos, o Missal não apresentano início da Quaresma nenhuma referência directa ao Baptismo. Mas os ritos peni-tenciais da Quarta-feira de Cinzas, – o jejum, a imposição das cinzas, a liturgia da pala-vra da Missa – pelo facto de conterem elementos penitenciais, são, por isso mesmo,elementos que contribuem para renovar a consciência da situação baptismal do cristão.

17 Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos (RICA), nn. 140-141.18 Ib., n. 143.19 Ib., n. 143.20 Ib., n. 146.21 Ib., n. 147.22 Ib., n. 149.

Page 147: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA 147

O Baptismo introduziu-nos numa situação cristã, foi um novo nascimento, o nascimentopara a vida pascal de Cristo, que é agora a da Igreja, em cada um de nós. O Baptismo é,de facto, o primeiro sacramento da penitência, porque é ele que marca a conversão fun-damental ao Evangelho de Jesus Cristo e à vida da sua Igreja, da qual ficaremosmembros para sempre. Todo o acto penitencial futuro da vida do cristão será sempre oretorno a essa conversão inicial, à fidelidade à graça do Baptismo, à integração na vidada comunidade dos fiéis.

Apesar de não existir um rito directamente referido ao Baptismo no início da Qua-resma para a comunidade dos fiéis, estes não devem entrar nesse tempo litúrgico semterem essa perspectiva diante dos olhos. Para o conseguir a celebração da Quarta-feirade Cinzas não será suficiente, dado que a maior parte dos cristãos não toma parte nela. Éo Primeiro Domingo, o dia da inscrição do nome dos eleitos, que poderá ser o primeirogrande momento para dar à comunidade cristã a consciência da caminhada quaresmal, depôr diante dos seus olhos o sentido de purificação e de iluminação da Quaresma emdirecção à Páscoa. Não pode evidentemente falhar aí a perspectiva do Baptismo.

Assim, a Quaresma não será mais tida como tempo sombrio, tristonho, pesado,negativo, como tantas vezes foi apresentado. Até se inventou a «cara de Quaresma»! Éver como se multiplicaram, mais no passado do que no presente, certas formas de piedadepopular, mais lúgubres do que penitentes, pelo menos na forma como foram concebidas,por vezes até deslocadas de outros tempos litúrgicos, como é o caso da Missa e outrasdevoções ligadas às almas do Purgatório, que nada têm de próprio da Quaresma, maisque de outro tempo do ano. Se, por vezes, a Quaresma aparecer como tempo um tantoescuro e sombrio, havemos de ter sempre presente que essa escuridão não pode ser outrasenão a daquela noite que irá ser total no Calvário, mas que se encaminha, certa e segura,para a manhã gloriosa do Sol nascente na luz da Ressurreição. Será a noite do nossopecado, mas do pecado que o Cordeiro de Deus vem tirar. A Quaresma caminha para aCruz, mas a Cruz é o trono onde Se ergue o Rei, é a nova Árvore da Vida, é o troféu doVencedor da morte e do inferno. Assim a celebra a liturgia da Paixão, logo desde oprimeiro texto com que abre o Tríduo Pascal, no cântico da entrada da Missa da Ceia doSenhor, em Quinta-feira Santa: «Toda a nossa glória está na Cruz de Nosso Senhor JesusCristo».

b) Os escrutínios maiores e as Missas dominicais da Quaresma

Falando do ponto de vista da liturgia, nem todos os dias da Quaresma são iguais.Para os «eleitos», estão previstos como dias mais importantes aqueles em que se cele-bram os escrutínios e aqueles em que se fazem as tradições. Uns e outros são ritos quecompletam a preparação espiritual e catequética dos «eleitos» ou «competentes».23

Os escrutínios são reuniões litúrgicas em que tem lugar especialmente importanteo exorcismo, entendido este, não no sentido deturpado em que vulgarmente é

23 Ib., n. 153. «Competentes» é o mesmo que «eleitos».

Page 148: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

148 PADRE JOSÉ FERREIRA

apresentado, mas como momento de oração na qual a Igreja pede a Deus para o catecú-meno a libertação do pecado e do demónio e o seu fortalecimento em Cristo, que é ocaminho, a verdade e a vida dos eleitos.24 É portanto uma fórmula que faz sentir aoeleito, de maneira clara, a oposição entre Deus e o pecado, entre o reino de Deus e oreino do mal, entre as trevas e a luz, e afirma a vitória do poder e do amor de Deus sobretodo o mal, libertando o homem do pecado pela vitória pascal de Cristo. A fórmulado exorcismo, que, em tempos passados, mais duros, utilizou, por vezes, expressõesviolentas, embora sempre contra o mal, toma agora sempre linguagem positiva e orante.Deus é sempre o mesmo; nós é que somos diferentes conforme os tempos!

Estes escrutínios, chamados maiores, em oposição aos escrutínios menores cele-brados durante o tempo do catecumenado anterior à eleição, são em número de três ecelebram-se solenemente ao domingo, «nas Missas próprias dos escrutínios, que se cele-bram nos domingos III, IV e V da Quaresma. Escolham-se as leituras do Ano A. com osrespectivos cânticos, como vêm no Leccionário da Missa».25 As leituras centrais destasMissas são respectivamente os Evangelhos da Samaritana, do cego de nascença e a deLázaro. Onde houver eleitos que se preparam para o Baptismo, serão sempre estas asleituras destes três domingos, mesmo nos Anos B e C. E, até onde não houver ca-tecúmenos e se queira proporcionar aos fiéis uma catequese baptismal mais intensacomo preparação para a Páscoa, podem sempre, em qualquer dos anos, serem escolhidasestas leituras, pois que elas são o protótipo das leituras baptismais de toda a tradição daIgreja. Os escrutínios celebrados nestes três domingos inspiram-se sempre, em cada umdestes dias, naquelas leituras.

Deste modo, por meio dos exorcismos, «os catecúmenos vão pouco a pouco sendoinstruídos sobre o mistério do pecado, do qual o mundo inteiro e cada homem emparticular anseia ser remido, para se libertar das suas consequências presentes e futuras;e por outro lado para que o espírito se vá impregnando do sentido de Cristo Redentor,que é a água viva (cf. Evang. da Samaritana), a luz (cf. o Evang. do cego de nascença), aressurreição e a vida (cf. o Evang. da ressurreição de Lázaro).26

Mas o progresso cristão, de que esta liturgia é programa maravilhoso, se o é paraos catecúmenos, que ainda caminham para a comunidade dos fiéis, não o é menos paraesta mesma comunidade, que, em cada ano, ao ver aproximarem-se as festas da suaredenção, se prepara para nelas participar, como em novo Baptismo. Lavados outrora nafonte baptismal, procuram retornar à inocência do Baptismo, lavando-se agora naslágrimas da penitência, que umas e outras são sinal da purificação que o Sangue deCristo, e só ele, nos alcança: lavant aquae, lavant lacrimae, diziam os Antigos das duasexpressões sacramentais; «lavam as águas (do Baptismo), lavam as lágrimas (dapenitência)».

Catecúmenos e fiéis vão assim vivendo ou revivendo, cada qual na situação quelhe é própria dentro da Igreja, esta caminhada ao encontro de Cristo no seu Mistério

24 Ib., n. 25, 1.25 Ib., n. 159.26 Ib., n. 157.

Page 149: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA 149

pascal. Para que tal possa acontecer em todas as circunstâncias em que as pessoas seencontrem, nos Anos B e C, onde naqueles domingos não se fizeram as referidas leiturasevangélicas, estas podem ser retomadas no dia mais oportuno da respectiva semana, paraque não se perca catequese tão importante para os cristãos na preparação pascal de cadaano. O Leccionário ferial da Quaresma apresenta estas leituras no princípio da III, IV eV semana, antes das leituras da respectiva segunda-feira, sob o título de «Missafacultativa».

c) Temas baptismais nas Missas de semana

O tema do Baptismo aparece claramente em algumas Missas dos dias feriais aolongo da Quaresma. Isto acontece principalmente naqueles em que se fala de eleição, depromulgação da Lei, da água, do espírito novo, de ressurreição e, de maneira geral, delibertação das limitações humanas enraizadas no pecado. Mas, baptismais, são-noigualmente as que insistem particularmente no tema da penitência, visto que o Baptismose renova na penitência, na conversão continuada, como acabámos de afirmar. E assim,dado que o Baptismo é o primeiro sacramento da penitência, fazer penitência é sempre,para os fiéis, reencontrar os caminhos do Baptismo. Em qualquer caso, seria certamenteum tanto artificial dividir as Missas da Quaresma em Missas penitenciais e Missasbaptismais, embora haja, por vezes, insistência maior em um ou outro destes temas.

É sobretudo a partir da terceira semana que aparecem mais frequentemente temasdirectamente ligados à iniciação cristã, precisamente quando começam a ler-se aosdomingos as leituras evangélicas atrás referidas. É, por exemplo, significativa, depoisda leitura da samaritana, no domingo, a leitura, na segunda-feira, da cura de Naamã, osírio, o estrangeiro, que se viu curado ao lavar-se sete vezes nas águas do Jordão.27 Aságuas deste rio não eram melhores do que as dos rios da sua terra de origem, como elepróprio afirmava; mas, à ordem do profeta do Deus de Israel: «Vai banhar-te e ficaráspurificado», recobrou a saúde e «o seu corpo tornou-se como o corpo de uma criança, eficou purificado». E logo depois desta leitura, o salmo comenta: «Tenho sede de Deus,do Deus vivo» (Sl 41). Na leitura do Evangelho que se lhe segue,28 o Senhor porá emrelevo a universalidade do chamamento de Deus, que não conhece fronteiras, como nãoas tinha conhecido quando chamou Naamã, um estrangeiro, da Síria.

O tema da água reaparece de novo na terça-feira da quarta semana na célebrevisão de Ezequiel:29 Águas caudalosas saem do Templo, correm para a planície, tornam-setorrente até formar um rio, transformam em sãs as águas salobras onde vão desaguar, dãonovo alento a todo o ser vivo, povoam-se de peixe abundante, nas suas margens crescemárvores que dão frutos todos os meses do ano, como mais tarde no Apocalipse (Apoc 22,2), enfim, haverá vida em todo o lugar que o rio atingir. O Evangelho que se lhe segue

27 II Re 5, 1-15.28 Lc 4, 24-30.29 Ez 47, 1-9.12.

Page 150: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

150 PADRE JOSÉ FERREIRA

retoma o símbolo da água na piscina de Betsatá, onde jazia, há trinta e oito anos, oenfermo que não encontrava homem que o fizesse descer até à água onde poderiaencontrar a cura para o seu mal. Foi o Senhor que o curou e mandou para casa com ocatre às costas. Com que sede das águas da fonte baptismal não escutariam os antigoscatecúmenos estas imagens bíblicas, que certamente lhes eram bem familiares, pois queelas, e esta em particular, se encontram frequentemente representadas nas paredes dascatacumbas romanas! Se os catecúmenos as escutam ainda hoje como anúncio do seufuturo Baptismo, melhor as podem entender os baptizados, que já encontraram quem osfizesse descer às águas, já nelas se purificaram, delas renasceram e nelas, que Jesusapresentou como símbolo do Espírito Santo, continuam a encontrar a vida que lhes mataa sede de Deus.30

d) As tradições

«Tradição», no sentido em que a palavra é aqui usada, é o mesmo que «entrega».A Igreja, durante este tempo da purificação e iluminação, entrega aos eleitos dois docu-mentos da maior importância, que eles hão-de saber de cor no momento de receberem ossacramentos da iniciação, e que devem guardar para toda a vida, como sinais que oshão-de identificar como cristãos no meio de todos os outros homens. São eles o Símboloda fé, o Credo, e a oração dominical, o Pai nosso. O primeiro, o Símbolo, é o resumo dacatequese baptismal que os catecúmenos receberam ao longo do catecumenado e daquiloque constitui o objecto da fé do cristão; o segundo, o Pai nosso, sintetiza toda a oraçãodo baptizado.

A tradição do Símbolo faz-se, em princípio, dentro da semana que se segue aoprimeiro escrutínio, portanto, normalmente, durante a terceira semana, e a do «Painosso», na semana que se segue ao terceiro escrutínio, ou seja, quinze dias depois,durante a quinta semana.

Estas tradições têm como fim a iluminação dos eleitos. «No Símbolo, em que seproclamam as maravilhas de Deus para salvação dos homens, os olhos dos eleitos sãoinundados de fé e de alegria. Na oração dominical, reconhecem em toda a sua profundezao novo espírito de filhos, pelo qual chamam a Deus seu Pai, sobretudo na assembleiaeucarística».31

As tradições ou entregas revestem carácter público, comunitário, solene, e assimdefinem aos olhos do eleito e de toda a comunidade a situação dos futuros baptizadosdentro da Igreja; eles entram no recôndito mais íntimo da vida do povo de Deus: é-lhesconfiado o Símbolo da fé desse povo e a expressão própria da sua oração, que eles, umavez baptizados, rezarão pela primeira vez, porque serão filhos, da casa de Deus.

Os eleitos devem aprender de cor aqueles dois formulários e recitá-los em público,antes de irem para a Vigília, num escrutínio especial celebrado na manhã do Sábado

30 Cf. Jo 7, 38.31 RICA, n. 25, 2.

Page 151: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DIMENSÃO BAPTISMAL DA QUARESMA 151

Santo, como está aconselhado que se faça ainda hoje.32 Este dar contas das fórmulas quelhes haviam sido entregues semanas antes chamava-se a redditio, que, à falta de melhortermo, foi traduzido por «redição», ou seja, o «tornar a dar» o que havia sido entregueanteriormente.

A fé contida no Símbolo há-de ser professada, assim de forma resumida, pelosbaptizandos no momento do baptismo, e depois por toda a comunidade cristã na Vigíliapascal, antes de se fazer a chamada «renovação das promessas do Baptismo». Isto supõeque os mistérios da fé, nessa soleníssima hora proclamados, estão bem vivos econscientes no coração dos fiéis, para que aquela renovação seja, naquela noite, comoque a celebração aniversária colectiva do Baptismo de toda a comunidade cristã e decada um dos seus membros. «É para desejar, diz o Ritual, que as tradições se façam napresença de toda a comunidade dos fiéis».33 E porquê senão porque os eleitos recebem,nesse momento, das mãos da Igreja, o documento da fé em que cada um dos fiéis foibaptizado, e o da oração que ela, a comunidade, já antes deles, aprendeu a rezar? É, pois,normal, que, no momento em que os eleitos celebram, no sacramento, essa mesma fé erezam, pela primeira vez, aquela oração, os fiéis renovem a sua profissão de fé e rezem,de novo, aquela oração, com sentimentos capazes de acompanhar e acolher os neófitos,que eles hão-de ensinar a caminhar na vida de fé e de oração da comunidade cristã, emque toda ela já de há muito se encontra.

Todos estes temas que a liturgia propõe, com os olhos postos na Páscoa, são omelhor caminho para nos levar a descobrir o Tempo da Quaresma.

e) A leitura do Livro do Êxodo na Liturgia das Horas

A Liturgia das Horas apresenta, no Ofício da Leitura, para as primeiras quatrosemanas da Quaresma, o Livro do Êxodo. Toda a gente sabe que o Livro do Êxodo é ahistória da saída do povo de Deus do Egipto, guiado por Moisés, pelo poder da mão fortee do braço estendido do Senhor. São elementos de primordial importância nessa históriaa situação de opressão em que vivia o povo de Deus naquele país entrangeiro, a cele-bração da Páscoa com a imolação e manducação do cordeiro simbólico, a manifestaçãodo poder e do amor de Deus pelo seu povo sobretudo na passagem do Mar Vermelho, atravessia do deserto durante quarenta anos, número que há-de servir de ponto de partidapara a quarentena de Jesus no deserto e para a Quaresma da Igreja, a promulgação da Leie o sacrifício da aliança no Sinai, enfim a entrada na Terra Prometida. A Quaresma cristãrepisa, em cada ano, toda esta longa caminhada de salvação. Com razão, pois, o Livro doÊxodo constitui o elemento central do Ofício da Leitura diária durante a Quaresma. NaVigília pascal, a passagem do Mar Vermelho é, entre as nove leituras propostas, a únicaestritamente obrigatória. E todos sabemos que a Vigília pascal é, toda ela, uma longavigília baptismal. Tudo isto tem a sua significação e merece não ser passado em silêncio.

32 Ib., n. 26, 2.33 Ib., n. 182.

Page 152: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

152 PADRE JOSÉ FERREIRA

O Êxodo do tempo de Moisés anuncia o êxodo pascal do Senhor Jesus e do novopovo que d’Ele há-de nascer, o povo dos remidos pelo seu Sangue. O Cordeiro, com cujosangue são ungidas as portas dos fiéis, é o novo cordeiro pascal, imolado na Cruz, e queantes de morrer instituiu a nova Ceia pascal, a Eucaristia. O novo Mar Vermelho, onde seafogam os inimigos e donde sai, para sempre libertado, o povo até então errante e sempátria, é o Baptismo. A Terra Prometida, onde finalmente este povo libertado se encontraem sua casa para aí celebrar, em acção de graças feliz, a Páscoa da sua Redenção, é asanta Igreja. A experiência do deserto, que, apesar de ser a de um povo já salvo, há-de sera de toda a sua vida sobre a terra, renova-se, em cada ano, neste tempo da Quaresma,precisamente para que o povo da Igreja reconheça, uma vez mais, a sua condição depovo que o Senhor salvou, renove a sua fidelidade e acção de graças, vença a tentação deficar pelo caminho, aprenda, de novo, a não se fixar nas tendas móveis de uma caravanade nómadas, mas a desejar a abundância definitiva da Terra da Promessa, onde corre oleite e o mel.

Todos estes horizontes apelam para o Baptismo, que, uma vez recebido, nos fezpassar já, simbolicamente mas realmente, todas aquelas experiências do povo de Israel.A travessia do deserto é dura e supõe muita ascese; mas é a mão forte e o braço estendidodo Senhor quem conduz o seu povo, o liberta do Egipto e o introduz na Terra Prometida.Tudo isto já aconteceu no Baptismo. Se o Baptismo do adulto é certamente o maisnormal e aquele em que melhor se pode compreender o Ritual da iniciação cristã, é, noentanto, no Baptismo das crianças, hoje o mais frequente, que melhor se pode sentir agratuidade do dom pascal celebrado no Baptismo. A Páscoa não é uma conquista, é umdom. «Se conhecesses o dom de Deus...», disse Jesus à samaritana (Jo 4, 10). Quando opovo de Deus chegou à Terra Prometida, Jericó caiu-lhe aos pés, sem os golpes das suaslanças ou espadas, mas como dom que o Senhor lhe entregava, gratuitamente!... A suaconquista foi receber nas mãos, sem orgulho nem altivez, o dom que a misericórdia deDeus lhe oferecia. (cf. Jos 6).

Nós, que fomos certamente quase todos iniciados, pelo menos começados ainiciar, nos primeiros anos da nossa vida, temos na liturgia quaresmal de cada ano umagrande proposta: reconhecer o que somos, membros de um povo que saiu do Egipto eentrou na Terra, que já não é escravo, mas livre, com «a liberdade com que Cristo noslibertou» (Gál 5, 1), e procurar reencontrar a vida própria dos filhos, corresponder-lhe,dar graças por ela, alimentá-la para que não definhe, preparar-nos para a celebração daPáscoa ainda na obscuridade dos sinais sacramentais e esperar, mesmo contra toda aesperança, que, uma vez na verdadeira Terra Prometida, cesse de cair o maná provisório,como no Livro de Josué quando eles chegaram à Terra de Israel, e celebremos finalmentea Páscoa sem mais quaresma (cf. Jos 5, 10-12).

Então não se lerá mais o Livro do Êxodo, que agora se lê de noite, em vigília, mastalvez o Apocalipse, onde se canta sempre em pleno dia, numa só voz, o cântico deMoisés e o cântico do Cordeiro (Apoc 15, 3-4). Não será o fim; será então a plenitude.

Page 153: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PALAVRA E O RITO

1. ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA CELEBRAÇÃO LITÚRGICA

A celebração litúrgica assenta, em princípio, em dois elementos: a palavra e orito, o dizer e o fazer. Todo o nosso mundo interior, que é o pensar, o querer e o sentir, sópode exprimir-se, dizer-se, fora de nós e ser transmitido aos outros pela palavra e pelossinais. No entanto, se bem reflectirmos, a palavra já é um sinal, e o sinal também, emcerto modo, é palavra; ambos dizem, ambos significam o que está dentro de nós e quenós queremos exprimir para o transmitirmos aos outros.

Estes dois elementos, tão humanos, são também os elementos fundamentais detoda a celebração litúrgica, enquanto ela é uma acção. A liturgia são, de facto, ascelebrações, as acções litúrgicas. O mistério que a liturgia celebra exprime-se necessa-riamente nesta linguagem humana da palavra e do sinal, do rito, em continuidade aliáscom o próprio mistério da encarnação do Verbo de Deus.

Ora, sendo este nosso Encontro de Pastoral Litúrgica orientado para a articulaçãoentre Liturgia e Pastoral da Fé, pareceu dever reflectir-se sobre estes dois elementosfundamentais da acção litúrgica, a palavra e o rito, pois que da compreensão e utilizaçãodos mesmos na celebração litúrgica poderá depender, em grande parte, a educação e ocrescimento na fé nos que participam da liturgia e dela vivem para além da celebração.

a) A palavra

A palavra é a expressão vocal que damos ao nosso pensamento. Antes de ser vozna boca, a palavra já existia no pensamento. Dizendo palavras, manifestamos aos outroso que temos no pensamento. A palavra é, de facto, o primeiro processo, processomaravilhoso, de nos exprimirmos. Mas a sua expressão dirige-se mais directamente àinteligência. Procura primariamente comunicar ao outro o nosso pensamento. Apenasprecisa da língua de quem fala e do ouvido de quem escuta. Apesar de maravilhoso, apalavra, por si só, é um meio um tanto austero, por vezes até fatigante. Quando muito,para a tornarmos mais expressiva, lançamos mão de certos recursos que vão como queenriquecer a palavra e dar-lhe um revestimento que a torne mais perceptível, como, porex., o gesto e sobretudo a música. O canto amplia a palavra e como que faz desabrochar,em música, toda a riqueza sonora que já nela andava contida, como desabrocha a flor aocalor do sol, segundo a comparação de Sertillanges.

Diria até que a palavra tende espontaneamente a tomar corpo, a tornar-se visível,a encarnar. E foi assim que o Filho de Deus, Aquele que em Deus é a expressão do seupensamento e que S. João, à maneira dos Gregos, chamou, por isso mesmo, a Palavra, oVerbo, o Logos, foi assim que “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Nãobastava, para nós, que Ele fosse Palavra; convinha que a Palavra Se fizesse carne, Setornasse sinal que não falasse apenas à inteligência dos homens, mas como que lhesentrasse pelos olhos, Se tornasse Palavra visível e não apenas audível, e capaz de ser

Page 154: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

154 PADRE JOSÉ FERREIRA

tocada pelas mãos humanas, como diz S. João, falando precisamente do Verbo en-carnado: “O que as nossas mãos tocaram” (I Jo 1, 1).

A palavra é elemento fundamental de toda a liturgia, como o foi em toda a históriada salvação: “Muitas vezes e de muitos modos Deus falou...” (He 1, 1). Pela nossaprópria experiência litúrgica sabemos muito bem o lugar excepcional que a palavraocupa na celebração. Mas também na liturgia a palavra tende a encontrar continuidade ecomo que complementaridade nos sinais, naquilo a que passo a chamar o rito.

b) O rito

A palavra rito pode ter vários sentidos, mesmo em liturgia. Aqui vou usá-laprincipalmente no sentido de sinal, de acção sagrada, como, por ex., o banho de águano Baptismo, a imposição das mãos na Confirmação, na Penitência, na Eucaristia, naOrdem, a unção com o Óleo santo na Confirmação e na Unção dos Doentes, a refeição naEucaristia, etc. Chamo-lhe rito; poderia dizer simplesmente sinal, talvez mesmosímbolo. O que neste momento pretendo é simplesmente confrontar, pôr em paralelo, apalavra e o rito em liturgia, a palavra que se diz e o rito que se faz.

A palavra, como vimos, já é, em certo sentido, um sinal. Mas o rito, o sinal-acção,pertence a uma outra ordem, diferente da da palavra. Enquanto que a palavra fala sobre-tudo à inteligência e comunica uma noção, uma ideia, o sinal dirige-se principalmente àsensibilidade e desperta o afecto. A palavra faz nascer no outro um pensamento; o sinalgera nele um sentimento, toca-lhe na afectividade, diria mesmo, fala-lhe ao coração.Coração não exclui aqui, de maneira nenhuma, a inteligência, o pensamento, o equilíbriomental, mas dilata esse pensamento, abre o interior do homem ao que está para além doâmbito do pensar; leva-o a querer, impele-o a amar. O sinal diz mais do que a simplespalavra, diz aquilo que a palavra não conseguiu exprimir. Faz compreender, não apenascom a inteligência, mas com o homem todo. Palavra e rito, duas maneiras do homem seexprimir e de se comunicar, que se completam, que se prolongam uma na outra, quefazem caminhar desde o dizer ao fazer, desde o pensar ao sentir, desde o possuir nainteligência até ao comungar com o coração.

c) Relação entre palavra e rito

Na linha do que acabámos de expor estão, por ex., os Sacramentos. E foi o próprioSenhor Jesus que assim quis que fosse. Na véspera da sua morte, falou prolongadamentecom os discípulos, disse-lhes belíssimas últimas palavras, das mais comoventes, e tãoíntimas que os discípulos sentiram o coração a abrir-se-lhes, a ponto de Lhe dizerem:“Agora falas abertamente e já não usas linguagem enigmática” (Jo 16, 29). Parece, pois,que a palavra teria sido bastante. E, depois, toda aquela tragédia da prisão, da con-denação à morte, da crucifixão no Calvário, parece que teria sido bastante para elesnunca mais esquecerem nem aqueles momentos, nem sobretudo Aquele que lhes falara edepois assim morria. Todavia, Jesus, que era a Palavra, mas feita carne, tomou o pão,tomou a taça com vinho, deu graças, entregou-lhos e disse: “Fazei isto em memória deMim” (Lc 22, 19). “Fazei”! Não bastava a palavra, não bastava que eles soubessem; erapreciso que eles fizessem. Além da palavra era necessário o rito, para que a palavra se

Page 155: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PALAVRA E O RITO 155

não calasse após ter sido dita, mas ficasse a ecoar, a ser vista, presenciada, tornada,comida e bebida, para ser mais interiorizada e fosse mais fundo do que a inteligência; erapreciso que ela fosse entendida e guardada no coração. O rito completava a palavra.

d) A palavra e o rito na acção litúrgica

A liturgia são as acções litúrgicas. São acções. É esta uma afirmação constantenos textos do Concílio. A liturgia contém ensinamento e é uma fonte de espírito missio-nário; mas a liturgia não é primariamente catequética, nem directamente missionária.A liturgia é celebração; é, por isso, uma acção. Nesta acção são elementos basilares osdois que temos estado a descrever: a palavra e o rito. Estes dois elementos vêm acompletar-se um ao outro. Não se substituem um pelo outro, não se opõem, não se con-tradizem. Integram-se um no outro, como dois componentes de um mesmo corpo. Apalavra faz, dizendo; o rito diz, sendo feito. A palavra sem o rito poderia ficar inacabada;o rito sem a palavra pode tornar-se equívoco. Por isso, a celebração recorre constante-mente a estes dois elementos: à palavra e ao rito.

No caso dos Sacramentos, todos eles são hoje celebrados juntando ao rito apalavra. Olhemos, por ex., para o Baptismo: a liturgia da palavra antecede a liturgiabaptismal. A palavra diz, revela, anuncia o mistério celebrado; e logo o rito, o sinal, queno caso é o banho da água, faz, realiza o que a palavra acabou de proclamar. E assim nosoutros Sacramentos, como no mais frequente para todos nós, a Eucaristia.

Foi este um dos grandes valores reencontrados pela recente reforma da liturgia, olugar dado à palavra de Deus e a sua articulação com os ritos sagrados. Tinha-se genera-lizado a tendência para reduzir a liturgia ao rito, deixando para segundo lugar a palavra,ou mesmo prescindindo dela por completo, o que era grave, sobretudo na celebração dosSacramentos. A celebração do rito sem a palavra tinha deixado lugar para o ritualismo,por vezes mecânico e quase mágico. Não o rito, mas a concepção que dele se fazia.

Palavra e rito, dois elementos que é preciso unir, na unidade de uma só e mesmaacção celebrativa. Nem vale perguntar qual dos dois é mais importante. São ambos im-portantes, ou melhor, os dois fazem uma unidade, certamente toda ela bem importante.Num passado recente, assistimos, no caso da Missa, a uma dissociação tal entre a liturgiada palavra e a liturgia eucarística que se chegou a considerar “Missa inteira”, como rezao preceito da Igreja, apenas a liturgia eucarística, relegando para um lugar absolutamentesecundário a palavra. É por isso que o Concílio, ao falar da liturgia da Missa, insiste emque “as duas partes de que, por assim dizer, a Missa se compõe, ou seja a liturgia dapalavra e a liturgia eucarística, se articulam uma com a outra tão estreitamente que fazemum só acto de culto” (SC 56), afirmação que o Missal retoma na sua Instrução Geral aodizer: “A Missa consta, por assim dizer, de duas partes: a liturgia da palavra e a liturgiaeucarística” (IGMR 8). Aquele “por assim dizer” quer, por um lado, sublinhar aimportância de cada um dos dois elementos, e, por outro, impedir que se volte asepará-los ou até a contrapô-los, como já anteriormente havia sucedido.

Temos falado de liturgia da palavra e de liturgia do rito como de duas realidades,cada uma delas completas em si mesmas, porque temos estado a falar de cada uma delasconsideradas na sua globalidade. Mas devemos observar que a liturgia da palavratambém se faz usando certos ritos, ritos menores, sem dúvida, e que a liturgia dos

Page 156: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

156 PADRE JOSÉ FERREIRA

diversos ritos também se não celebra sem recorrer à palavra. Na liturgia da palavra, ospequenos ritos servem para pôr em relevo a palavra, como quando o livro das leituras étransportado solenemente logo na procissão da entrada ou quando o leitor se encaminhacom ele para o ambão para fazer a leitura no meio de luzes e acompanhado de incenso;por seu lado, os ritos são também normalmente acompanhados de uma palavra que lhesdá o sentido próprio e lhes tira todo o equívoco em que poderiam incorrer sem essapalavra, palavra que, em certas circunstâncias, como no caso dos Sacramentos, chega aser essencial para que o rito seja completamente válido. Observemos aquele gesto deapresentar o pão sagrado aos comungantes antes da comunhão, gesto já de si bem ex-pressivo, mas que adquire uma clareza total, porque acompanhado da palavra quesublinha e completa o sentido do gesto: “Eis o Cordeiro de Deus...”. Poder-se-iaapresentar simplesmente o pão consagrado, como se faz, por ex., no momento daelevação ou da bênção com o Santíssimo Sacramento; mas aquela palavra torna maisclaro o sinal: “Eis o Cordeiro de Deus”.

Se os elementos fundamentais da liturgia são a palavra e o rito, não pode haverdúvida de que a recta compreensão de um e de outro, da sua articulação mútua e da suacelebração verdadeira constituem momentos privilegiados para a educação da fé dequem participar na sua celebração.

II. PRESENÇA E CELEBRAÇÃO DA PALAVRA NA LITURGIA

Apesar de não se dever dar nem à palavra nem ao rito uma autonomia que osoponha ou, muito menos, os exclua, como dissemos, apesar de cada um deles ocupar oseu lugar próprio e a celebração de cada um deles seguir a sua estrutura específica,analisemos todavia um pouco mais cada um desses momentos da celebração.

a) Importância da palavra de Deus na celebração litúrgica

A importância da palavra de Deus na celebração litúrgica foi agora, de novo,inculcada pelo Concílio, certamente porque ela andava bastante esquecida. Comecemospor recordar o número 24 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia. Diz assim: “É enor-me a importância da Sagrada Escritura na celebração litúrgica. A ela se vão buscar ostextos para a leitura, e que se explicam na homilia, e os salmos para cantar; com o seuimpulso e da sua inspiração nasceram as orações, preces e hinos litúrgicos: dela tiram asua capacidade de significação os sinais e as acções sagradas” (SC 24). E mais adiante:“Para apresentar aos fiéis, de maneira mais rica, a mesa da palavra de Deus, abram-semais largamente os tesouros bíblicos, de modo que seja lida ao povo, num determinadoespaço de anos, a parte mais importante da Sagrada Escritura” (SC 51). Bastariam estesdois números para se ver a importância que a Igreja dá à palavra de Deus na celebraçãoda liturgia.

De facto, a palavra de Deus é o ponto de partida de toda a liturgia: ela congrega opovo na assembleia celebrante, ilumina-o e fá-lo crescer na fé, revela-lhe cada vez maiso mistério que constitui o objecto da celebração, oferece-lhe as palavras nas quais opróprio Deus é escutado e com as quais o povo responde ao Senhor que lhe falou,

Page 157: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PALAVRA E O RITO 157

inspira-lhe a oração e dá-lhe o sentido cristão dos sinais. A palavra de Deus é, assim,primeiro a palavra que Deus dirige aos homens, para se tornar logo a palavra com que ohomem se atreve a falar a Deus. Não fora ela palavra de Deus, e a celebração nãopassaria de palavroso discurso humano. Assim, a celebração é acção de Deus em favordo seu povo e nela continua a ser verdadeira aquela palavra do salmo: “Deus disse e tudofoi feito” (Sl 148).

b) Lugar da palavra de Deus na celebração litúrgica

Sempre a palavra de Deus ocupou lugar fundamental na liturgia, já desde o AntigoTestamento. Basta ler as passagens referentes às grandes assembleias de Israel, como,por ex., aquando do regresso do exílio: regressados a Jerusalém, Esdras, o escriba,manda erguer um estrado bem alto na praça que ficava diante da Porta das Águas emandou ler no livro da Lei, desde a manhã até ao meio dia, na presença dos homens,mulheres e crianças que fossem capazes de compreender. O povo escutava, de ouvidosbem atentos, Esdras bendisse ao Senhor e todo o povo respondeu, levantando as mãos:“Amen, amen”. E assim se fazia a renovação da aliança (Cf. Ne 8).

No princípio da sua vida pública, vamos encontrar Jesus na sinagoga de Nazaré, aparticipar numa assembleia no dia de sábado, a qual segue o mesmo esquema. Depois daleitura da Lei, Jesus foi convidado a ler os Profetas. A partir da leitura fez a homilia.

Na primeira descrição da celebração da Missa que chegou até nós, S. Justino(+ 165) diz que se liam as Memórias dos Apóstolos, que ele explica serem os Evan-gelhos, e os Escritos dos Profetas, antes da celebração da Eucaristia. Dou estas rápidasreferências só para tomar alguns exemplos da tradição litúrgica.

Nesta recente reforma litúrgica, a palavra de Deus recebeu nova valorização,como já referi, pela abundância e variedade dos trechos apresentados, pela distribuiçãodos mesmos ao longo dos tempos litúrgicos, pela restauração de elementos que se tinhamperdido na celebração, como seja o salmo a seguir às leituras, e, condição de primeiraimportância para que a celebração possa ser verdadeiramente acção do povo de Deus,pela admissão da língua vernácula.

De uma maneira geral, a liturgia da palavra celebra-se hoje em duas situaçõesdiferentes: uma, a mais frequente, na celebração dos vários ritos, especialmente dosSacramentos, como na Eucaristia; outra, isoladamente, isto é, em razão de si mesma,separada de qualquer outro rito. Quanto ao primeiro caso, hoje não existe, em princípio,nenhum rito que não suponha a celebração da palavra. Se, por acaso, isso não venha aacontecer, por qualquer razão particular, essa celebração, por mais simples que seja,como no caso de uma bênção ocasional, essa celebração ficará muito empobrecida esempre mal apresentada; ficará como que inexplicada e, consequentemente, menoscompreensível.

Quanto ao segundo caso, a celebração da palavra pode existir por si mesma, comotempo de oração da assembleia, sem que se lhe siga nem a Eucaristia nem outro qualquerrito sagrado. O caso mais frequente é a celebração da Liturgia das Horas, verdadeiracelebração que a comunidade cristã faz unicamente em volta da palavra de Deus,cantada, lida, meditada, rezada. Deveria até ser esta a celebração mais frequente entre o

Page 158: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

158 PADRE JOSÉ FERREIRA

povo cristão, para que ele assim desse realização ao mandamento frequente na SagradaEscritura: “Orai sem cessar”. Os Sacramentos e os outros ritos celebram-se quando fornecessário e oportuno; a oração é de todas as horas e para isso existe a Liturgia dasHoras.

Mas, sobretudo depois da reforma litúrgica recente, entrou em uso outra formaautónoma da celebração da palavra, aconselhável em determinadas ocasiões especiais,mas sempre possível, e que se estrutura como a liturgia da palavra na Missa. No fundo,ela não se afasta muito da tradicional celebração das vigílias, como facilmente se concluiobservando sobretudo a Vigília pascal.

c) Estrutura e dinamismo da celebração da palavra

A celebração da palavra, quer seja na Missa, quer seja desligada de qualqueroutro rito, segue uma estrutura própria, que é já, de si, uma escola de educação da fé.

A celebração da palavra consta dos seguintes elementos fundamentais: leitura,canto e oração. De maneira mais ou menos clara, a liturgia da palavra segue sempre esteesquema. Ele contém uma lógica interna e um dinamismo teológico fundamental. Naleitura, Deus fala ao seu povo. Deus tem sempre a iniciativa, nem o homem poderiadirigir-se a Deus em oração, se Deus primeiro não lhe tivesse falado em revelação. Deusestá sempre no princípio, e todo o movimento que do homem parte para Deus é sempreresposta a Deus que primeiro lhe falou. Por isso, a celebração começa sempre pelaleitura. É exemplo típico a celebração da Paixão do Senhor em Sexta-feira Santa. Podemexistir certos pequenos ritos iniciais antes da leitura, como acontece na Missa, mastrata-se então de ritos de abertura, como que para instalar a assembleia no lugar e nasdisposições próprias de quem se encaminha para a celebração.

Depois da leitura, segue-se o canto, que é normalmente o de um salmo. O salmo,que é também palavra de Deus no sentido próprio e original, é já resposta à palavraescutada na leitura, ao mesmo tempo que continua a ser escuta interiorizante dessa mesmapalavra. Esta escuta-resposta faz-se em forma lírica, num movimento afectivo, como épróprio da poesia e do canto. Os salmos são poesia para ser cantada, que bem quadra aodiálogo da oração. A maneira de cantar o salmo é normalmente a forma responsorial, istoé, aquela em que aos versículos cantados pelo salmista a assembleia responde com umrefrão. Poderia ser também a que a tradição chamou tracto, em que a assembleia escutaem silêncio o salmista, interiorizando as palavras do texto que ele vai cantando.

Por fim, é o tempo da oração. Depois que Deus falou e o homem escutou eguardou no coração a sua palavra, pode este agora falar a Deus. Assim, a palavra quedesceu de Deus ao homem em revelação, retorna agora do homem a Deus em oração. Éeste aliás o movimento de toda a celebração litúrgica, que é sempre diálogo entre Deus eo seu povo, como é igualmente o movimento de toda a história da salvação, e, emparticular, do mistério pascal, movimento que Jesus, no fim da sua vida, resumiu destemodo: “Saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e volto para o Pai” (Jo 16, 28).

Este esquema encontra-se ainda em estado puro na Vigília pascal, onde ele se vairepetindo até sete vezes; mas é ainda o mesmo esquema que se encontra, embora menosclaro, em qualquer liturgia da palavra, mesmo na Missa, e até em qualquer Hora do

Page 159: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PALAVRA E O RITO 159

Ofício divino, onde, depois da salmodia coral, surge sempre uma pequena celebração dapalavra deste tipo: leitura breve, responsório breve (ou versículo), oração. É que é este oritmo do diálogo cristão entre Deus e o seu povo, e não há outro: escutar e responder aDeus. É neste diálogo que a fé se recebe e se exprime e se alimenta e se educa. Por isso,esta análise que temos estado a fazer não tem como fim a exposição, um tanto escolar,em si mesma; ela ensina antes como a fé do cristão nasce da palavra de Deus e seexprime na oração a Deus, num movimento que é próprio da fé cristã. Oração com outroritmo, com outra inspiração, pode não chegar a ser verdadeiramente cristã.

Se a liturgia é “a fonte primária e indispensável do espírito verdadeiramentecristão”, como disse S. Pio X, e, se a palavra de Deus é elemento fundamental naliturgia, a celebração da palavra é certamente momento privilegiado na pastoral da fé dopovo cristão; é elemento importante, verdadeiro, sadio: indispensável!

III. O RITO

O outro elemento fundamental da celebração litúrgica é, como dissemos, o rito, osinal, o símbolo. Com ele, passamos do dizer ao fazer, da palavra dita à palavra feita.Toda a celebração litúrgica é uma acção, uma acção sagrada; mas aqui referimo-nosparticularmente ao que na acção litúrgica é o sinal, o gesto; vamos chamar-lhe mesmo osímbolo.

a) Sinal e símbolo

Todo o sinal, pelo facto de o ser, ultrapassa sempre o seu aspecto imediato. Sevejo um sinal de trânsito na estrada, por ex., um triângulo de vértice para baixo, não mefico a dizer: “aquilo é um triângulo em tal posição”. Isso é o que ele é materialmentefalando, como figura geométrica colocada daquela maneira. Mas, se o entendo comosinal, entendo também o que ele quer significar, e digo: “vai aparecer uma estrada comprioridade sobre esta em que eu vou, e, por isso, vou tomar as devidas precauções».Aquele triângulo não é apenas uma figura geométrica; é um sinal de trânsito. Mas, comotal, é apenas um sinal convencional; tem aquela significação porque assim se combinouque fosse. É um sinal que apenas serve para fornecer uma informação; nem por simesmo, ele realiza coisa alguma. Mas, se eu, ao chegar ao Santuário de Fátima, vir umafamília a descer o recinto com uma vela acesa na mão, compreendo que se trata tambémde um sinal, mas não de um sinal puramente convencional, nem de um sinal parainformar; ele é um sinal proclamativo do estado de alma de uma família, no caso, de umaatitude de fé, que não pode ficar escondida no coração, mas quer ser dita e proclamadapara exprimir mais o que um instrumento de iluminação, como é a vela acesa, natural-mente exprime. Quer proclamar uma atitude de fé e de acção de graças. As circunstân-cias envolventes o indicam; e, se aquela família for a cantar ou a recitar uma oração,aquelas palavras desfazem qualquer equívoco: aquele sinal é um rito sagrado. É entãoum sinal mais rico na sua significação do que o triângulo na berma da estrada.

Page 160: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

160 PADRE JOSÉ FERREIRA

Mas, se aquela família levar uma criança nos braços para ser baptizada, entrar nobaptistério do Santuário e se começar a celebração do Baptismo, e a certa altura, nomomento mesmo do Sacramento, o ministro fizer passar a criança pela água baptismalcom as palavras previstas para o rito, então eu digo que aquele banho de água foi umsinal que fez renascer um filho de Deus, foi um sinal que realizou aquilo que significava;foi um sinal que disse e fez o que dizia. Este sinal foi um verdadeiro símbolo. Aquelesinal, o banho de água e a palavra que o acompanhou, foram afinal o elemento sensívelda realidade invisível que por eles se realizou. A realidade invisível é uma acção divina,o nascimento de um filho de Deus; o elemento sensível é o rito baptismal. O conjunto éum Sacramento, um sinal sagrado, um símbolo, no caso, o Baptismo.

Há quem utilize as palavras sinal e símbolo com outros sentidos; aqui chamamossímbolo a um sinal que não só significa outra coisa para além do que nele é visível, masque realiza aquilo mesmo que ele significa. Símbolo não quer portanto dizer uma coisaque não é real, mas que a realidade nos é tornada presente nas aparências do sinal. Hásímbolos e símbolos; há símbolos maiores e símbolos menores. Aos símbolos maiores daliturgia chamamos Sacramentos. Se bem reflectirmos, compreenderemos que todo omundo invisível, como o mundo de Deus e das coisas divinas, só se pode exprimir pormeio de sinais, e a sua presença e acção só se pode manifestar em símbolos. Por isso,todo o mundo da liturgia é constituído por sinais e símbolos; ela não é de ordem natural,mas sacramental. Por isso, sempre que se pretende entender a linguagem dos ritoslitúrgicos, sobretudo dos Sacramentos, particularmente da Eucaristia, de uma maneiranaturalista, acabamos por não entender o que é a celebração litúrgica e criamosinterpretações fantasistas, como aconteceu quando se pretendeu, nos séculos passados,ver na celebração da Missa a descrição histórica da Paixão. A liturgia é toda ela deordem sacramental. No centro de toda ela, está o Sacrifício e os outros Sacramentos,como expressamente o diz o Concílio (SC 6). Para bem os celebrar e neles participar, énecessário entender toda a sua simbologia, bem como para deles fazer a catequeseexacta e verdadeira.

Por vezes, há quem fale também de símbolos litúrgicos ao falar dos vários sinaissecundários usados na liturgia, como a luz, o incenso, as cores das vestes, as flores, etc.No sentido que acabamos de expor, não se lhes deveria chamar símbolos; nem eles o são,pelo menos no sentido que acabamos de expor. Em qualquer caso, esses sinais menorespodem ter significações muito desiguais, e sobretudo são muitas vezes usados cominterpretações muito diferentes, por vezes até muito superficiais. Seria errado pensarque a liturgia lança mão de todos estes sinais, por vezes, de muito mau gosto, para comeles significar as atitudes mais profundas da fé cristã. O uso e abuso destes sinaissecundários aparece normalmente em épocas decadentes na liturgia, como sucedeu apartir do segundo milénio, e, ao lado de muita intenção piedosa mas mal esclarecida,serve também para incrementar atitudes de superficialidade nos fiéis. Aquelas in-terpretações fantasistas dos sinais litúrgicos, que não nasceram com essas significações,são o que se chama interpretações alegorizantes. A reforma litúrgica tenta acabarcom elas.

Page 161: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PALAVRA E O RITO 161

b) Interpretação bíblica dos símbolos da liturgia

Se é precisa uma educação apropriada para receber correctamente a palavra deDeus, porque as palavras do Senhor “são espírito e vida” (Jo 6, 63), também os símboloslitúrgicos, e sobretudo estes, só poderão ser verdadeiramente simbólicos, isto é,acolhidos verdadeiramente como símbolos, quando recebidos na fé, o que significa à luzda palavra de Deus. É por isso que os grandes símbolos litúrgicos, particularmente osque entram na celebração dos Sacramentos, vêm sempre acompanhados da palavra, queos introduz, os explica e como que os gera, pois que também neles a palavra se encarna.Esta palavra está sintetizada na chamada fórmula sacramental, mas inspira, de maneiramais analítica, as grandes orações consecratórias, que normalmente envolvem os ritosdos Sacramentos e de certos sacramentais mais importantes. É por isto que toda aausência da palavra na celebração dos Sacramentos ou a sua imperfeita utilizaçãodesfigura o rito sacramental, esvazia-o da sua completa significação; se fosse total,torná-lo-ia até ineficaz; em qualquer caso, geraria interpretações puramente alegori-zantes ou mesmo falsas, por vezes até mágicas.

Os sinais litúrgicos não são meros sinais convencionais. Se uso a água no Baptismoou o pão e o vinho na Eucaristia, não é simplesmente porque se combinou que assim sefizesse. Os sinais litúrgicos têm por trás do seu uso histórico uma aptidão natural, porisso que são sinais humanos, anteriores a toda a convenção. Mas seria diminui-los, e, noque se refere aos sinais sacramentais, seria até destrui-los, esvaziá-los, torná-los nãosimbólicos, se os entendêssemos apenas na sua significação natural. Estes sinais sãoutilizados na liturgia como sinais de fé; são também eles linguagem da fé e foram rece-bendo a sua significação litúrgica através da história, mas da história da salvação. Pormeio deles se foi concretizando também a “economia da salvação”; ora, a história destaeconomia encontra-se na Bíblia, na Sagrada Escritura. Por isso, a significação total dossímbolos litúrgicos tem de ser procurada na palavra de Deus que está nas Escrituras. É láque a liturgia vai procurar a interpretação última desses sinais, e é com as próprias pala-vras da Bíblia ou com as referências a ela que a liturgia nos apresenta os grandes sinaiscom que celebra o mistério da salvação.

Observemos alguns desses sinais. Voltemos ao Baptismo. Que é o Baptismo,enquanto rito litúrgico? “O banho de água que a palavra acompanha”, diz S. Paulo (Ef 5,26). Essa palavra está como que resumida na fórmula que acompanha o rito e que oministro pronuncia, fórmula que aliás variou ao longo das idades. Não fora essa ou outrapalavra, e o gesto da água ficaria sem sentido. Mas não é só essa fórmula “essencial”,reduzida a poucas palavras, que me explica completamente o sentido bíblico daquelerito. Antes do banho baptismal há o que se chama a bênção da água. Essa longa e belís-sima oração faz, em linguagem de oração de louvor, a evocação da água e do seu uso aolongo da história da salvação, isto é, evoca os passos em que se vê Deus a servir-se daágua ao vir ao encontro dos homens para os salvar, até chegar ao momento presente,aquele em que nós ali estamos, para pedir que, de novo, por meio da água, se renove,agora, no meio de nós, a mesma graça de salvação em favor daquele que vai ser baptizado,pelo poder do Espírito Santo. Se não fosse a acção do Espírito de Deus, nunca, nem nopresente nem no passado, aquele rito realizaria qualquer efeito salvífico. Aquela oraçãode bênção não se dirige à água, mas a Deus, para O bendizer pelas acções de salvação

Page 162: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

162 PADRE JOSÉ FERREIRA

que Ele tem realizado por meio da água, e Lhe pedir que continue a realizá-las, no meiodos homens de hoje, agora ali também. Aquela oração é muito importante para entendero sentido do rito do Baptismo. É a ela que se há-de ir buscar uma das melhoresexplicações do rito baptismal, e é por isso que actualmente se deve fazer essa bênção naprópria ocasião da celebração do Baptismo, excepto no Tempo pascal. Essa oração fazparte integrante do rito do Baptismo.

O mesmo se há-de dizer dos outros símbolos sacramentais. Não posso, por ex.,entender a Eucaristia a partir da simples experiência diária da refeição, em que nos sen-tamos à mesa para comermos em conjunto, embora este seja um dos aspectos importan-tes da Ceia do Senhor; temos de ir às fontes bíblicas daquela Ceia e, de maneira maispróxima e imediata, à oração eucarística, que, no essencial, é uma oração de inspiraçãobíblica. E assim para os outros Sacramentos.

É a esta inspiração bíblica que o texto do Concílio acima citado se refere, quandodiz: “Da Sagrada Escritura tiram a sua capacidade de significação os sinais e as acçõessagradas” (SC 24).

O que acabamos de dizer é verdadeiro sobretudo a respeito do que chamaria ossinais maiores, como são os dos Sacramentos. Mas há na liturgia muitos outros sinais, aque poderíamos chamar menores. Também estes recebem na liturgia uma significação defé e, se como tais não fossem entendidos, não alcançariam a sua verdadeira significaçãoe poderiam até contribuir para uma grande deseducação da mesma fé, o que não raroacontece. Também esses sinais recebem a sua significação a partir da história dasalvação referida na Bíblia ou vivida no contexto litúrgico em que são utilizados e dapalavra que os acompanha e deles faz parte integrante. Que seria, no início da Vigíliapascal, a marcha atrás de uma vela acesa, se não irrompesse, por três vezes, no meio daassembleia, aquele grito de fé: “Eis a luz de Cristo”, grito que o diácono sublinhaelevando ao alto o Círio pascal? Ou que seria o simples sinal da Cruz, tão frequente navida dos cristãos, se não fosse o acontecimento do Calvário de há dois mil anos? Até ogesto mais frequente e, por isso mesmo, talvez tão rotineiro, para ser verdadeiro sinal defé precisa de ser feito tendo sempre presente a significação que lhe vem do uso bíblicoou litúrgico e, se possível, da palavra de Deus, por breve que seja, que o acompanhe. Ouso da água benta esvaziou-se, a maior parte das vezes, de sentido e, por isso, quase caiuem desuso, porque se lhe perdeu a significação. E, como por ocasião das bênçãos, aaspersão com a água benta era o gesto mais sensível e finalmente o único que restou,aconteceu que tal gesto, mais do que sinal de bênção ou mesmo de rito sagrado, caiu emsinal quase mágico e irrisório. Os novos livros litúrgicos, quando falam do uso da águabenta nas bênçãos, explicam frequentemente a sua significação: evocação do Baptismo esinal de penitência.

Quanto mais nobres são os sinais, maior é a degradação a que descem, se se lhesperde a verdadeira significação. Vou referir algumas concretizações em relação àEucaristia.

Em primeiro lugar, em relação à sua celebração. A celebração da Eucaristia é orito por excelência da liturgia cristã e dos mais primitivos. Consta ela de uma assembleiade baptizados, presidida pelo Bispo ou pelo presbítero, que faz uma liturgia da palavrade Deus seguida da Ceia do Senhor. Esta consta da proclamação de uma oração

Page 163: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A PALAVRA E O RITO 163

eucarística ou de acção de graças e louvor sobre o pão e o cálice com vinho e água, e daparticipação de todos naqueles elementos eucaristiados, isto é, consagrados pela oração.O rito destina-se a dar cumprimento ao mandato do Senhor Jesus, que, na véspera da suaPaixão, assim o instituiu e mandou aos seus discípulos que assim o fizessem em memóriade Si. Em memória de Si significava em memória da sua Páscoa, do seu sacrifício pascal,para oferecer aos seus a possibilidade de nele participarem e assim passarem com Eledeste mundo para o Pai, como Ele passou. Com o tempo, por sucessivas perdas do sentidoprofundo daquele rito e de cada um dos pequenos sinais ou ritos que o integram, maspensando sempre na Paixão do Senhor, pela qual aquele sacrifício foi realizado, chegoua olhar-se para o conjunto da celebração, chamada, a partir de certa altura, “Missa”,como se ela fosse a representação cénica da Paixão e Morte do Senhor, uma espécie deVia-Sacra com muitas estações. A Missa (pensava-se e escrevia-se) começava com aentrada de Jesus no Jardim das Oliveiras – quando o celebrante saía da sacristia e entravana Igreja – e terminava com a pregação dos Apóstolos por todo o mundo – quando, nofim de tudo, o celebrante lia um último Evangelho em posição oblíqua em relação aoaltar, como quem estava de abalada. Meditação muito piedosa, e muito válida na ordemda sinceridade religiosa, mas uma deseducação perfeita quanto à celebração da Eucaristia.

Em segundo lugar, quanto ao próprio sentido do mistério eucarístico. Durantemuito tempo, a Eucaristia ficou reduzida à chamada presença real. E tudo se orientouquase exclusivamente, e já desde o século XIII, para “ver a hóstia”, como então se dizia.A comunhão quase se não praticava, substituída pelo olhar contemplativo das espécieseucarísticas, na elevação dentro da Missa e na exposição fora da Missa, e, quandoexistia, era tida como acto de piedade e devoção desligada da Missa, tanto no conceitoque dela se tinha como no momento em que era recebida, fora da celebração eucarística.Até a própria arquitectura das igrejas revelava incompreensões em relação ao sentidocorrecto do que deveria ser a celebração, sobretudo a da Eucaristia: o trono sobrepôs-seao sacrário, o sacrário ao altar; e o lugar da assembleia tornou-se como uma plateia deespectadores! Muita fé, sem dúvida, mas conceitos muito desarrumados, consequência eorigem da má compreensão dos sinais usados na liturgia.

CONCLUSÃO

A liturgia não é toda a vida da Igreja, nem o único lugar da educação da fé. OConcílio o diz claramente: Antes da liturgia, é necessária a evangelização e a conversão(cf. SC 9). Mas a liturgia é o vértice e a fonte de toda a vida da Igreja (ib. 10) e é lugarprivilegiado para alimentar e educar a vida de fé da comunidade cristã. Também isto édito claramente pelo Concílio: “Embora a liturgia seja principalmente o culto da divinaMajestade, ela encerra também grande valor pedagógico para o povo fiel” (SC 33).

Para que tal aconteça, é necessário, antes de mais, que exista a celebração, que acomunidade cristã se reúna em assembleia, celebre a palavra de Deus, participe na Ceiado Senhor, sobretudo ao Domingo, o dia do Senhor e o dia da assembleia, tudo emoração, que é como quem diz, em diálogo entre Deus e o seu povo, e viva em caridade,movida pelo Espírito Santo.

Page 164: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

164 PADRE JOSÉ FERREIRA

Mas verificamos que é este mesmo o programa daquela primitiva comunidade deJerusalém, referida nos Actos dos Apóstolos (Act 2, 42 ss). Reencontraremos a vida defé nas nossas comunidades, reencontrando a vida daquela comunidade, em especialquando ela se reúne na assembleia litúrgica para continuar a ouvir a doutrina dosApóstolos na palavra de Deus que aí é celebrada, para realizar a fracção do pão no ritoeucarístico. O esquema litúrgico é hoje o mesmo de então, como o tem sido sempre. Mastudo vai da maneira de o realizar e de nele saber encontrar a finalidade de toda acelebração litúrgica: renovar a Aliança que Deus nos oferece em seu Filho Jesus Cristo,aceitá-la e responder-lhe, e nela viver, crescendo dia a dia, Domingo a Domingo, decelebração em celebração, “até ver a Deus em Sião” (Sl 83), como os peregrinos dosalmo a caminho do templo do Senhor.

Page 165: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURAS DA LITURGIAE RELIGIOSIDADE POPULAR

Sentido dos termos

Por «estrutura da liturgia» queremos referir-nos aos diversos elementos queconstituem a celebração litúrgica: o mistério que ela celebra, a assembleia que faz acelebração, os vários elementos sensíveis da celebração, como os formulários e ritos, ostempos e lugares, e ainda a situação jurídica que leva a qualificar de litúrgicasdeterminadas celebrações e outras de não litúrgicas.

Quanto à religiosidade popular, a palavra religiosidade é um termo abstracto,que, em princípio, significa uma atitude do espírito no que se refere às relações comDeus e o mundo transcendente, atitude que se traduz em diversas expressões religiosas,que podem ir, desde as litúrgicas até muitas outras mais ou menos próximas da liturgiacristã ou até completamente afastadas dela. Em princípio, só nos referimos a expressõesda religiosidade popular ou da religião popular cristã.

A Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II (SC)referiu-se a uma e outras, quando disse: «A liturgia é o cume para o qual tende toda aacção da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força» (n.º 10). Masa liturgia não esgota toda a acção da Igreja; antes dela, vem a evangelização, depois, hátoda a vida vivida segundo os ensinamentos do Senhor (cf. n.º 9; Mt 28, 28). Mesmo nocampo da oração, que constitui o próprio coração da liturgia – ela é a Igreja em oração –,o Concílio reconhece outras maneiras de fazer oração, mesmo comunitariamente,em assembleia orante para prestar culto a Deus. São elas os actos a que dá o nome, aliástradicional, de exercícios de piedade. Estes «exercícios de piedade» do povo de Deus, seforem conformes às leis e às normas da Igreja, são encarecidamente recomendados,sobretudo quando feitos por ordem da Sé Apostólica» (n.º 13).

Os exercícios de piedade são o campo próprio para a religião popular, desde osque a própria Igreja propõe e organiza, até aos que os cristãos mais ou menos opor-tunamente criam e celebram.

Confrontando as estruturas (e o estilo) da liturgia com as da religiosidade popular,verificamos que o que a liturgia tem de próprio é, antes de mais, o valor objectivo domistério que é celebrado e que é sempre, em última análise, o Mistério Pascal de Cristo;é depois, no que respeita à celebração uma estrutura válida e sólida quanto aos elementosque a constituem e à maneira como se organizam; nestes elementos, ocupa o primeirolugar a Palavra de Deus da Sagrada Escritura, que fornece as leituras que se lêem e nahomilia se explicam, e os salmos que se cantam, Palavra onde se inspiram as preces,orações e hinos litúrgicos e donde recebem a sua significação as acções e os sinais (SC,24); é finalmente a sua universalidade, pois que se destina a todo o povo de Deus, pre-sente nos diversos géneros de assembleias, desde as pré-catecumenais até às de iniciadospelos Sacramentos da fé. A liturgia nunca é acção de marginais à Igreja em oração.

Page 166: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

166 PADRE JOSÉ FERREIRA

Os exercícios de piedade, no sentido que o Concílio lhes dá, são também actos deoração do povo de Deus e são também, por isso mesmo, celebrações da fé; mas nuncasão nem actos sacramentais propriamente ditos, nem têm necessariamente uma estruturatão organizada como os actos litúrgicos, embora a possam ter, nem se apresentam comoacções destinadas, em princípio, a todo o povo de Deus, embora possam ser aprovados eaté recomendados pela Igreja; nascem e morrem ao longo dos séculos consoante ascircunstâncias do tempo e do lugar, certamente por não estarem tão intimamente ligadosà vida e à estrutura de todo o povo de Deus.

Dada embora certa dificuldade em definir os limites entre o que são acçõeslitúrgicas e o que são exercícios de piedade, é, no entanto, muito oportuno que haja umanoção esclarecida sobre o que é essencial, o que é simplesmente importante, o que éaconselhável, o que é tolerável, o que é ou não oportuno. A questão é sobretudo deordem prática. Em qualquer caso, a liturgia constitui sempre o padrão normativo,seguro, para toda a oração da Igreja.

I. RELIGIÃO POPULAR E MISTÉRIO CRISTÃO

Mas, para além dos actos universalmente reconhecidos como liturgia, para alémdo que vulgarmente é tido por exercícios de piedade, a religião popular fez surgir, não sesabe muitas vezes como, do povo anónimo outras expressões muito variadas, cujaorigem é, por vezes difícil de determinar e cuja significação nem sempre ele próprioconsegue entender. Alguns remontam às origens primordiais, anteriores até à presençado cristianismo; é o que costumamos designar por origens pagãs. Essas formas dereligião popular encontraram um dia o cristianismo. Ora a Igreja não cria os que hão-deum dia vir a ser cristãos; faz cristãos os homens que encontra e como os encontra, cadaqual com a sua história, depois de os ter evangelizado. Se analisarmos a história demuitos elementos até da liturgia, verificamos que eles começaram por ter uma origempopular, até, por vezes, pagã. Sobre essas formas pre-existentes se construiu o edifíciocristão. O Deus que Se revelou aos homens em Jesus Cristo é o mesmo que, de outrasmaneiras, sem dúvida muito mais obscuras, Se revelou em toda a história humana desdeas origens. E assim os homens desde sempre O foram adorando sem O conhecerem,procurando-O «como que às apalpadelas» (Act 17, 27), como já S. Paulo explicou aosatenienses, sábios mas pagãos!

Sabemos, por exemplo, que a Páscoa cristã, por detrás da novidade que lhe vemde Jesus Cristo, tem por antecedente histórico a Páscoa hebraica do Antigo Testamento.Sabemos ainda que os ritos da Páscoa hebraica – os pães ázimos e o cordeiro – têm pordetrás de si os antigos e primitivos ritos do sacrifício das primícias dos agricultores e dospastores. Mas a Páscoa cristã não pode ser explicada, remontando àquelas origens; aocontrário, a Páscoa cristã aparece no vértice feliz de uma pirâmide cujas bases vêm cer-tamente de longe, mas que cresceu, sobrepondo planos novos sobre outros anteriores, atémanifestar totalmente o seu mistério na Páscoa de Jesus. O cristianismo não é umarepescagem saudosa do tempo passado pagão; antes surge quando o ritmo crescente dotempo chegou à sua plenitude, à «plenitude dos tempos», como se explica S. Paulo(Gál 4, 4); ou melhor, ele é a plenitude dos tempos.

Page 167: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURAS DA LITURGIA E DA RELIGIOSIDADE POPULAR 167

Coisa semelhante se pode verificar, e sem recuar tanto até tão longe como no casoda Páscoa, com a celebração do Natal. O objecto desta celebração é o mistério daEncarnação, ou melhor ainda, o mistério da Manifestação do Filho de Deus, da suaEpifania no meio dos homens. Este o objecto específico da celebração cristã. Mas a dataescolhida para o celebrar foi pastoralmente sugerida por uma festa pagã anterior, a que opovo, a quem o Evangelho ia sendo anunciado, andava muito apegado, a festa do «Solinvencível» no solstício do Inverno. Então, quando o Sol parecia que ia desaparecer detodo, caindo para trás do horizonte – os dias no inverno vão sendo cada vez mais breves– de novo ele como que renascia, vitorioso no horizonte. Era para os seus adoradores o«natal do Sol invencível». Diríamos que o paganismo adorava o Sol, mas não sabia aindaonde se encontrava o Sol verdadeiro. Cristo nasceu e o seu nascimento pode seranunciado aos adoradores do Sol, a quem chamavam o deus Mitra, como o nascimentodo «Sol de justiça», segundo a linguagem do profeta (Mal 3, 20). Se quisermos explicara solenidade do Natal não remontaremos ao culto de Mitra. Se tivermos os olhosiluminados pela luz de Cristo, diremos antes que os adoradores de Mitra sonhavam como «Sol de Justiça», que finalmente Se manifestou no Menino de Belém.

Há, pois, e com frequência, um substrato histórico pré-cristão no Calendário Li-túrgico; mas esse substrato quando existe, não tem nada a ver com o conteúdo cristão daliturgia. Quando muito, tratar-se-á de situações históricas que a pastoral do passado soubeutilizar como ponto de partida, visto que a pastoral deve ir ao encontro dos homens ondeeles se encontram; ou – e isto é imensamente sugestivo – trata-se de pré-anúncios da BoaNova que Jesus Cristo vai revelar, inscritos no coração do homem, como o Senhor pareceinsinuar quando explicava aos discípulos por que razão lhes falava em parábolas: paralhes revelar mistérios escondidos desde a origem do mundo (Mt 13, 35).

São, por isso, sempre muito limitadas as explicações das festas e costumescristãos feitas apenas à luz da história da religiosidade popular não cristã.

Mas, a maior parte das expressões cristãs da religiosidade popular tem a suaorigem na liturgia. Algumas como que a prolongam, impelidas pelo movimento que delareceberam. Penso, como o mais significativo, no culto da Santíssima Eucaristia fora daMissa, parte do qual foi depois integrado em acções litúrgicas, como a exposição doSantíssimo Sacramento, a procissão com o mesmo, etc., ficando outra parte à es-pontaneidade da fé e da devoção do povo cristão, como a adoração diante do sacrário.

As formas da religiosidade popular derivadas da liturgia são sempre as que semantêm mais autênticas, porque mais perto da fonte. Outras como que imitam a liturgia,e enquanto tais, umas mantiveram-se muito belas, outras são possivelmente mais frágeis.De entre as primeiras, penso no Rosário, que veio substituir, de maneira simples, fácil eacessível a pessoas de todo o grau de cultura, o Ofício Divino, quando este deixou de seracessível ao povo. O Rosário nasceu ainda em boa época, visto que o tema fundamentaldessa oração é a contemplação do Mistério Pascal do Senhor, da Encarnação à Glorificaçãode Jesus Cristo, glória participada já pela Igreja, figurada na Virgem Santa Maria. Outrasficaram mais limitadas no seu horizonte, como certas Horas Santas, felizmente já emdesuso, de carácter extremamente dolorista e sentimental. Normalmente, entretêm maisdo que alimentam. Algumas destas expressões tanto se afastaram do que deveria ter sidosempre a sua verdadeira fonte de inspiração, sobretudo a palavra de Deus, e dos ritmos

Page 168: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

168 PADRE JOSÉ FERREIRA

da liturgia, que chegaram a ir parar, muitas vezes, ao supersticioso, ao mágico, pelomenos ao mau gosto e por vezes até quase ao anedótico, como certas orações popularesde uso individual.

Estou a referir-me apenas a formulários e orações; será também muito oportunoestender estas considerações a expressões plásticas, como imagens, monumentos e aindaa lugares e tempos, e verificar a aproximação ou afastamento entre as expressões ligadasà liturgia e as provenientes da religiosidade popular.

Formação permanente à luz do Evangelho

Perante possíveis extravagâncias ou, por vezes, mesmo aberrações que fazer?Se é certo que a alma humana é naturalmente cristã, no dizer de Tertuliano,

também é verdade que todo o homem nasce pagão, mas destinado a ser integrado emCristo, que por todos morreu para a todos salvar. O caminho a seguir para tornar cristãoaquilo que nasceu ou voltou a tornar-se pagão é o mesmo que a Igreja fez quando,partindo de uma data ou de um rito pagão, os conduziu até à luz do Evangelho. Estecaminho é também o mesmo que o Verbo de Deus seguiu, quando Ele, que existe antes detodos os séculos e por quem todas as coisas foram feitas, encarnou na história doshomens, para os incorporar em Si, como sugere o Evangelho ao apresentar a genealogiade Jesus. Aí podem ler-se os nomes de grandes santos e de grandes pecadores, degente do povo eleito e de gente oriunda das nações pagãs, sabe Deus com que história!O processo será o que Paulo VI aponta na Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi:purificar, elevar, evangelizar, e tudo isto com uma esperança e uma paciência que só emDeus podem ter o seu modelo.

Gostaria de lembrar ainda, a propósito deste processo de purificação e de elevação,antes mesmo de chegar à evangelização, que, ao contactar com as várias expressões dareligiosidade popular e, com mais razão, com as da liturgia, é necessário ter presente,antes de tudo, o bom senso e o bom gosto, qualidades para as quais nem seria necessáriaa religião. O povo é, muitas vezes, extremamente simples e espontâneo, como só ele osabe ser; por vezes também, orgulhoso e amigo de se mostrar, como aliás quase toda agente gosta de fazer. Ora, há expressões de piedade e de religiosidade que, se são frágeiscomo expressões de fé, já o eram antes como expressões humanas.

Penso, por exemplo, em promessas e votos desproporcionados e, por vezes,irrealizáveis. Penso no conceito que pode estar subjacente a certas expressões dereligiosidade para tratar com Deus ou com os Santos, como quem negoceia ou pretendeconquistar. Penso ainda em coisas piores, que é o desviar o sentido autêntico das formasde religião cristã para lhes dar significações alheias ou, pelo menos, paralelas à fé cristãe à prática da liturgia, como acontece com o desvirtuamento de festas, de procissões, decostumes originariamente bem expressivos da fé e da piedade cristãs. Então, o folclore,hoje bem organizado, vem tomar posse desses ritos, que vão acabar profanos, diria quevão acabar na sua pré-história. A celebração e vivência cristã dos mesmos acabam por tersido um parêntesis na sua história. Na interpretação de tais ritos pode até não andaralheia certa intenção algo vesga! Atenção: o Natal não é a festa da família, a Senhora doÓ não traduz o culto da deusa-mãe, a Ascensão não é o dia da espiga, a Confirmação nãoé o juramento de bandeira cristã, nem a Comunhão Pascal apenas a desobriga!

Page 169: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURAS DA LITURGIA E DA RELIGIOSIDADE POPULAR 169

Creio que um dos grandes factores de descristianização das expressões religiosasfoi uma catequese mal feita, mais pietista do que piedosa. Os frutos nascem depois, àdistância talvez de séculos. Mas quando se não deixa cair em formas tão dessoradas oumesmo já tão distantes da fé, a religião popular sabe encontrar expressões encantadorasde fé, de esperança e de amor, que me lembram, muitas vezes, as dos pobres que seaproximavam de Jesus, em geral para Lhe pedirem remédio para os seus males eaflições. E Jesus sempre os atendia, e louvava-lhes a fé, afirmando frequentemente queera a essa fé que Ele respondia com o seu dom. Certamente que também aqui énecessário ter presente a referência do Evangelho ao homem sábio que do seu tesourotira «coisas novas e velhas», e aquela outra sentença de Jesus ao ensinar caminhos semcondenar os caminhantes: «É preciso fazer estas coisas, sem deitar fora as outras».

II - ALGUNS CAMPOS DE CONFRONTO ENTRE A LITURGIAE A RELIGIOSIDADE POPULAR

1. O ano litúrgico

Ano litúrgico é o nome que se dá à organização da liturgia no decorrer do ano.Rigorosamente falando, não há um ano litúrgico, porque não existe uma continuidade nacelebração do Mistério de Cristo do princípio ao fim do ano astronómico ou civil. O quehá é a celebração do Mistério de Cristo em diversos tempos, distribuídos, mas semcontinuidade entre si, ao longo do ano. Mas chamemos-lhe, à organização dessestempos litúrgicos em cada ano, o ano litúrgico. Durante o ano, o fundo litúrgico éconstituído pelo que se chama o ciclo temporal, ritmado pela sucessão dos Domingos,que levam consigo os diversos tempos especiais: Tríduo Pascal, Tempo Pascal, Tempoda Quaresma, Tempo do Natal, Tempo do Advento. Ao longo destes tempos, aparecem,mas sem formarem um ciclo autónomo, as celebrações dos Santos, a que, às vezes, se dáo nome de Santoral. Tudo isto consta do Calendário.

O Calendário litúrgico foi, no passado, o ponto de referência fundamental para onosso povo cristão na contagem do tempo, quer se tratasse dos trabalhos agrícolas, querdos acontecimentos da vida, particular ou pública.

Vamos percorrer o Calendário litúrgico, observando como ele servia de guia aesse nosso povo.

a) O Tríduo Pascal

O Tríduo Pascal é o centro e o coração de todo o ano litúrgico e como tal a Igrejasempre o celebrou. Todavia, a partir da época em que o povo deixou de ter nele umaparticipação activa – diminuição de baptismos na Vigília Pascal, rarefacção dacomunhão, desconhecimento da língua mantida na liturgia, assembleias apoiadas princi-palmente em clérigos e monges ou em grupos especializados, sobretudo para o canto,deslocação das horas das diversas celebrações, realidades que começam a acontecer porvolta dos séculos VIII-IX – a liturgia do Tríduo Pascal viu-se relegada para segundo

Page 170: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

170 PADRE JOSÉ FERREIRA

plano por parte do povo. Perdeu-se o sentido do mistério que era celebrado, o MistérioPascal do Senhor, para se olhar para as celebrações desses dias, as tradicionais e as quese lhe foram substituindo, como uma certa forma de representar, dramatizando-a, a his-tória da Paixão. O símbolo sacramental da liturgia é substituído, na perspectiva popular,pelas representações cénicas da Paixão: procissão dos passos, crucifixão e descida dacruz com imagens articuladas, procissão do enterro, e até o cofre da exposição da SagradaReserva na noite de Quinta-feira Santa foi interpretado como sepulcro do Senhor, dondeas consequentes formas de oração popular, frequentemente de tipo dolorista e poucosalvador, como aliás em certas vias-sacras.

No entanto, estas e outras expressões populares, quando correctamente elaboradase realizadas, ajudaram muito a criar e a manter o clima interior consentâneo com o espí-rito destes dias, em que são celebrados «os mistérios máximos da nossa redenção». Ovalor principal destes actos de piedade popular está em que eles andavam sempre emvolta do que há de mais central no cristianismo, a Páscoa do Senhor, embora nem semprebem compreendida. Outro valor de tais celebrações é que elas congregavam toda a co-munidade local, leigos e clérigos, em assembleia sempre presidida pelos respectivospastores como ainda hoje o são. Lembremos apenas a via-sacra de Sexta-feira Santa emRoma, a que o próprio Papa preside.

Por outro lado, terá certamente interesse tomar aqui consciência de que várioselementos hoje integrados na liturgia pascal tiveram origem popular: a procissão dosramos vinda de Jerusalém; a adoração da Cruz em Sexta-feira Santa, que tem a mesmaorigem; o próprio Círio pascal e toda a liturgia que o envolve no início da Vigília, que écomo que um rito de abertura popular, a que até à reforma de Vigília Pascal em 1951 oBispo não presidia; só entrava depois para a liturgia da palavra.

Outro uso de origem local, mas desde cedo apanhado pela liturgia, é a visita pascal,que até à reforma do ritual se intitulava Bênção das casas, acompanhada da aspersão daágua benta pascal, rito que por esta razão foi chamado compasso de ad consparsumaquae, como se pode ler nos Sacramentários do fim da antiguidade. Tratava-se do anúnciofestivo da Ressurreição a todos os recantos onde se passa a vida dos homens, pois que aRessurreição do Senhor inaugurou no mundo a «Nova Criação».

Para além destas e doutras expressões ainda muito articuladas com as celebraçõese estruturas litúrgicas, o povo não criou muitas outras, talvez até porque a frequência e adensidade daquelas lhe enchia suficientemente o tempo e o coração nestes santos dias daSemana Santa, que ele tanto sentia: não se cantava fora da igreja nem sequer seassobiava, guardava-se a abstinência e o jejum, que ainda é observado com rigor emcertas regiões. Nem o folclore, tantas vezes inspirado no Calendário litúrgico, deixougrandes recordações ligadas a estes dias, a não ser alguns ritos populares que já não sãoexercícios de piedade, como o julgamento do bacalhau, depois de uma Quaresma derigorosa abstinência de carnes, e o enforcamento de Judas, num gesto de justiçavindicativo popular não muito cristão!

b) O Tempo pascal

O Tempo da Páscoa ou pascal, se bem que seja o primeiro tempo depois do TríduoPascal, tanto na origem histórica como na importância que lhe está inerente, foi, desde

Page 171: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURAS DA LITURGIA E DA RELIGIOSIDADE POPULAR 171

há muito, bastante desconsiderado, tanto na prática litúrgica como na piedade popular.Quase só tem sido conhecido como o tempo até ao limite do qual se pode cumprir opreceito da comunhão pascal, mas ainda assim deslocando esse até ao Domingo da San-tíssima Trindade, que já vem fora da Cinquentena pascal. Deste tempo litúrgico, que é asolenidade da Páscoa prolongada por uma oitava de Domingos, apenas se sublinham, aténa liturgia, o Dia da Ascensão e o do Pentecostes, estes, porém, tomados como festasautónomas, desligadas da Páscoa. A reforma da liturgia repôs as coisas nos seus lugares,não sem ainda deixar os dias feriais do tempo Pascal, isto é, os dias de semana, emsituação de desigualdade com as férias de outros tempos, como, por exemplo, as daQuaresma.

A religiosidade popular também se não entusiasmou por este Tempo Pascal, queS. Atanásio, no século IV, chamava um grande Domingo. O povo desconheceu-o, como aprópria liturgia o tinha ido desconhecendo a pouco e pouco. Não houve devoções popu-lares para este tempo. As Ladainhas Maiores, a 25 de Abril, sobreposição cristã a umaantiga procissão pagã romana, nunca foram muito populares. As Rogações nos três diasantes da Ascensão, de origem galicana, tiveram maior aceitação, e o facto de se tratar deuma procissão pelos campos não deixou de lhes atrair certa simpatia popular. Mastambém as Ladainhas não eram propriamente uma celebração pascal.

A festa da Ascensão, com o seu feriado, porque era dia santo de guarda, feriadoque ainda hoje o é em muitos concelhos do país por ser o feriado municipal, como acon-tece no Ribatejo, gozava de grande aceitação popular. A primavera, o facto de ser diasanto de guarda até há poucos anos, talvez a procissão das Rogações nos diasimediatamente anteriores, o antigo costume, vindo de Roma, de cantar a Hora de Noaem memória da Ascensão do Senhor, acompanhada do lançamento de uma profusão depétalas de flores sobre a assembleia, para anunciar a vinda do Espírito Santo no próximodia de Pentecostes, in figuram Spíritus Sancti, como se explicava em Roma no tempo dopapa S. Gregório (604), e depois o passeio ao campo com a sua merenda, trazendo deregresso as primeiras espigas de trigo, já gradas, tinha criado à Ascensão, entre o povo,um halo ao mesmo tempo festivo e místico, que não desdizia do seu carácter de festapascal. De tudo isto, porém, desaparecido que foi o dia santo e transladada a solenidadepara o Domingo seguinte, apenas ficou, na tradição popular... a espiga, cujo significadoos meios de comunicação todos os anos se esforçam por apresentar aos seus destinatários.Fosse o que fosse, a Ascensão é uma solenidade cristã. Hoje celebra-se ao Domingo.É preciso salvá-la e ao seu mistério, mais do que à espiga!

Enquanto encerramento ou «clausura», como diziam os antigos, das festaspascais, o Domingo de Pentecostes passou despercebido durante séculos, inclusive naprópria liturgia, que até lhe atribuiu uma vigília e uma oitava, como se se tratasse de umafesta autónoma. Enquanto festa do Espírito Santo, ganhou, a nível popular, grandepresença, dada a ligação das antigas confrarias de bem-fazer, anteriores às Misericórdiasde D. Leonor, com o Divino Espírito Santo. Basta recordar os «impérios» dos Açores eseus derivados. Onde eles ainda existem, como nos Açores, as expressões dos exercíciosde piedade e outros a jeito popular podem ser uma bela forma de celebração ainda ligadaà Páscoa. A reforma litúrgica renovou a organização de todo o Tempo Pascal, segundo oscritérios que resultam da própria natureza deste tempo, que é ser uma unidade no prolon-gamento da solenidade que se inaugura na da própria Vigília Pascal.

Page 172: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

172 PADRE JOSÉ FERREIRA

Certas outras devoções vieram, no entanto, sobrepor-se a este tempo litúrgico,sem ligação nenhuma com ele, como seja – e é o de maior aceitação popular – a do mêsde Maio em honra de Nossa Senhora. Tendo-se mantido durante longo tempo, completa-mente paralelo ao Tempo Pascal, o «Mês de Maio», que com ele coincide em grandeparte, tem conhecido nos últimos tempos esforços para que se integre, o mais possível,no tempo litúrgico a que se sobrepõe, o que não parece de todo difícil, dado que, segundoos Actos dos Apóstolos, estes foram os dias em que Maria permaneceu no Cenáculo emoração com os discípulos esperando a vinda do Espírito Santo.

É este um caso típico em que a liturgia pode orientar a religião popular.

c) O Tempo da Quaresma

Mais tardia do que o Tempo Pascal, e, na origem, destinada particularmente agrupos especiais dentro da comunidade cristã, os penitentes e os catecúmenos, a Quaresmatornou-se mais conhecida do povo cristão e deu origem a expressões populares maisabundantes do que outro tempo litúrgico, embora orientadas, em geral, para a Paixão.Seja qual for a justificação histórica, julgo que não deixa de ser explicação o facto de asensibilidade cristã dos últimos séculos, sobretudo na Igreja Latina, ser mais propensa àintrospecção e ao subjectivismo do que à contemplação e à consequente acção de graçase louvor, e à consciência do pecado, enquanto humilhação e dívida do que ao reconheci-mento do dom da salvação em Jesus Cristo. É propensão de povos mais práticos, maistendentes a materializar do que a espiritualizar. Certamente que para isto não deixou decontribuir a própria liturgia, que, durante séculos, abandonou a Missa e o Ofício Divinopróprios da Quaresma para os substituir pelos dos Santos. De facto, depois dos fins daIdade Média, a espiritualidade dos cristãos é uma espiritualidade intimista, devocionista,menos voltada para a liturgia e para os mistérios que ela celebra. É ler, por exemplo, aImitação de Cristo.

Duas formas de piedade popular se encontram ao longo da Quaresma: a devoçãoà Paixão do Senhor e a oração pelos defuntos. Se a primeira não está de todo fora dasperspectivas quaresmais, enquanto a quaresma prepara a celebração do mistério da Paixãoe Ressurreição do Senhor, a segunda nada tem que a ligue, em especial, à Quaresma.

Na perspectiva da Paixão, multiplicam-se as procissões dos passos com as suasestações, os sermões do pretório, do encontro e do Calvário, o canto da Verónica, amarcha meditativa a caminho do Gólgota atrás do pendão imperial romano, com as quatrograndes letras identificativas do poder de Roma: S.P.Q.R. Senatus PopulusqueRomanus. Foram processos catequéticos e orantes de que os evangelizadores dessestempos difíceis lançaram mão, e não erradamente, pois que a Paixão do Senhor é, aomesmo tempo, a Páscoa da libertação. Pena foi que nem sempre esse cortejo chegasse adescobrir o túmulo aberto e vazio e o Senhor na outra margem, como o Sol nascente deum novo dia; mas já foi bom que o homem se reconhecesse pecador, perdido, e aprendessea olhar para Jesus Cristo que é o Salvador, mesmo que pregado na cruz.

Estas práticas de piedade comunitárias foram também acompanhadas de práticasindividuais, porque não foram poucas as pessoas que imitavam o Senhor nos 40 dias dodeserto em jejum e oração. Em tudo isto, piedade popular e liturgia caminhavam a par,lado a lado, com as possibilidades de que cada um sabia dispor.

Page 173: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURAS DA LITURGIA E DA RELIGIOSIDADE POPULAR 173

A reforma litúrgica reorganizou o Tempo da Quaresma, libertou-o de outrascelebrações, como as dos Santos, reuniu os formulários – leituras, cânticos e orações –e deu orientações no sentido de se fazer deste tempo um itinerário a caminho da Páscoa.Recomenda-se que seja fomentada a prática mesmo pública da penitência, segundo aspossibilidades do nosso tempo e de cada região, conforme as condições dos fiéis e asorientações dos pastores do povo de Deus (cf. SC 110).

d) O Tempo do Natal

É o tempo do ano litúrgico mais desejado pelo povo, cristão e não cristão,certamente pelo carácter festivo que o envolve e dele transborda. Não me vou referir atradições ancestrais, que vêm desde o paganismo, como seja a própria data escolhidapara o celebrar, o solstício do inverno, já atrás referido, mas que o cristianismopurificou, elevou e evangelizou até colocar nele a celebração do mistério da Mani-festação do Filho de Deus entre os homens, o «Sol de Justiça», de que o profeta tinhafalado.

O Tempo do Natal abrange o dia de Natal, 25 de Dezembro, continua por umaoitava até 1 de Janeiro, em que é colocada a solenidade da maternidade divina de Maria,e prolonga-se, passando pela Epifania, até à festa do Baptismo do Senhor, no Domingoseguinte à Epifania.

São múltiplas as celebrações litúrgicas destes dias, múltiplos também os usos ecostumes populares em volta das festas da liturgia, mas sempre muito ligadas aorespectivo tempo litúrgico. As três Missas do Dia de Natal, tradicionais desde o fim doséculo VI, têm origem numa solução pastoral concreta da cidade de Roma no tempo doPapa S. Gregório Magno (590-640). Hoje quase se não dá por elas, dado que asexigências pastorais dos nossos dias levam a outras soluções. Quantas outras vezes nãose multiplicam as Missas neste dia por esse mundo além.

Paralelamente multiplicam-se também celebrações e outras formas expressivas dapiedade popular, que, nestes dias, mais do que em quaisquer outros ao longo do ano,extravasam para fora do templo. Entre os primeiros, o beijar do Menino, gesto repassadode adoração e ternura com que o nosso povo, terno e adorante, venera a imagem doMenino de Belém. Já fora do Templo, se não ainda lá dentro, nascem os cantaresnatalícios, repassados de encanto que o Deus Menino inspirou, mas, por vezes, maishumanos do que divinos, e as saudações festivas das Janeiras, que procuram continuar aenvolver numa mesma comunidade fraterna, agora na rua, aqueles que, na Igreja, forama assembleia de oração.

Nas festas natalícias mais do que em quaisquer outras, pode reconhecer-se, comojá atrás apontei, uma pré-história pagã decalcada sobre estruturas de origem cósmica.Isso nada modifica ao que de próprio e especificamente cristão tem o Natal; isso sóconfirma aquilo que constitui o próprio mistério da Encarnação, a saber, a presença deDeus encarnada no homem, a manifestação ou epifania em Jesus Cristo, nascido emBelém, d’Aquele que, desde antes dos séculos, preexiste a todo o visível e por quem«todas as coisas foram feitas» (Jo 1, 3). Não é necessário voltar ao paganismo paraentender o cristianismo; antes, só o cristianismo pode levar a compreender que o tempode Jesus Cristo é, na verdade, «a plenitude dos tempos». Outros tempos, anteriores a

Page 174: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

174 PADRE JOSÉ FERREIRA

este, o prepararam; mas agora chegou o tempo na sua plenitude. Nada anterior foidestruído; tudo foi recuperado e elevado.

Já não chegará a ser muito popular o que, oriundo de outras terras e com significaçãomenos claramente cristã, hábitos recentes, fruto da moda e da propaganda comercial, setem introduzido nos nossos costumes. Só uma consciência cristã, suficientemente escla-recida em relação aos valores de que se é herdeiro e aos que, em tempos mais recentes,têm imigrado até nós, pode orientar uma pastoral correcta e oportuna nesta matéria.

e) O Tempo do Advento

O Advento, tardiamente introduzido na liturgia romana e ainda hoje ausente nasliturgias orientais, não chegou nunca a ser apanhado em profundidade pela massa dopovo, como ainda hoje o não é. Basta verificar que nem o nome se tornou popular. Porisso, também não são muitos os costumes populares do Advento.

Todavia, o povo também sentiu a necessidade de não chegar ao Natal de improviso.E para isso criou a Novena do Menino, a qual, porque o número nove assim o exigia, teveo seu início no dia 16 de Dezembro, antecipando um dia a última semana do Advento, de17 a 23, semana a que os séculos passados deram grande relevo, sobretudo em ligaçãocom as célebres antífonas «Ó», que acompanham o cântico do Magnificat na hora deVésperas. Daí a designação de Senhora do Ó, cuja festa, na tradição hispânica, se celebraa 18 de Dezembro, e a adaptação popular daqueles antífonas para a Novena do Menino.

A reforma litúrgica definiu de maneira clara o conteúdo e a estrutura do Adventoe atribuiu àquela última semana um conjunto admirável de textos bíblicos, na Missa e noOfício Divino, que, a serem bem aproveitados, não deixarão de pôr à disposição do povocristão suculento alimento espiritual para a sua fé nestas vésperas do Natal. E bem precisoé, para que não continuemos a substituir tão facilmente a celebração pelo folclore,sobretudo de imigração, que, só por esse facto, não poderá ser folclórico.

f) O Tempo Comum

O Tempo Comum, por definição, não tem temas próprios, e, por isso mesmo,também não terá expressões típicas, nem litúrgicas nem populares. O que nele se podeencontrar de mais significativo liga-se ao calendário dos Santos.

2. As celebrações dos Santos

Chama-se-lhe frequentemente o Santoral; mas as celebrações dos Santos ao longodo ano não constituem um ciclo anual, porque essas celebrações não têm ligação entre side modo a formarem um ciclo.

O calendário dos Santos em vigor até 1960 foi o que ficou estabelecido pela reformado Concílio de Trento, e entrou no Breviário e no Missal respectivamente em 1568 e1570, acrescido dos nomes dos Santos reintroduzidos ou introduzidos pela primeira vezdepois dessas datas. Muitos, porém, já estavam inscritos nos respectivos dias desde hámuito tempo. Este calendário, agora de novo emendado na recente reforma litúrgica, é oque está actualmente em vigor. Foram critérios fundamentais desta reforma colocar nocalendário universal os Santos de maior importância na vida da Igreja; os Santos repre-

Page 175: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

ESTRUTURAS DA LITURGIA E DA RELIGIOSIDADE POPULAR 175

sentativos de todos os países, ou, ao menos, de todos os continentes; celebrá-los, tantoquanto possível, no dia aniversário da sua morte, ou, se tal não fosse possível, no diamais próximo, ou no dia da sua Ordenação, se se trata de um clérigo, ou no da sua trans-ladação, ou, quando aquelas datas fossem desconhecidas, no dia com mais tradição emdeterminadas Igrejas locais. Daí que tenham sido alteradas as datas das celebrações dealguns Santos em relação ao que anteriormente era costume. Isto fez com que algumastradições populares tenham de sofrer as suas adaptações. Para algumas isso vai ser difícil.Há para esses casos soluções pastorais de que aquilatarão os respectivos pastores.

O calendário litúrgico, sobretudo o dos Santos, foi durante séculos o calendáriodo povo cristão. O calendário guiava-o, indicando-lhe os dias principais da sua vidareligiosa e profana, marcava-lhe a data dos trabalhos agrícolas, do pagamento das rendas,e servia-lhe até de ponto de referência para a sua história. Assim, nos trabalhos agrícolassemeavam-se os nabos pelo S. Mateus (21 de Setembro), pagavam-se as rendas pelo S.Miguel (29 de Setembro), abriam-se os tonéis pelo S. Martinho (11 de Novembro), se-meavam-se os alhos pela S. Luzia (13 de Dezembro), matava-se o porco pelo Natal.Outro dos casos mais significativos é o dos nomes dados às terras descobertas pelosnossos navegadores, as quais receberam, na maior parte das vezes, o nome do Mistériodo Senhor ou do Santo em cujo dia foram descobertas: o Brasil, que foi chamado «Terrada Vera Cruz» (3 de Maio, festa hoje desaparecida), a ilha de Páscoa, da Ascensão, baíade S. Brás (3 de Fevereiro). Caso particularmente típico é o das ilhas de Cabo Verde,cujos nomes primitivos permitem seguir o calendário da sua descoberta: S. Nicolau (6 deDezembro), S. Luzia (13 de Dez.), S. Antão (17 de Jan.), S. Vicente (22 de Jan.), S.Filipe (nesse tempo, 1 de Maio), S. Tiago (no mesmo dia, se se trata de S. Tiago Menor,ou 25 de Julho, se se trata de S. Tiago Maior), S. Cristóvão (25 de Julho). Alguns destesnomes foram posteriormente substituídos por outros. S. Tomé, celebrado até à reformado calendário a 21 de Dezembro, deu igualmente o nome à ilha descoberta nesse dia eainda hoje como tal é celebrado pelos santomenses.

3. Os Sacramentos e outras celebrações

O ano litúrgico oferece um quadro-base sobre o qual se pode colocar a vidareligiosa do cristão ao longo do ano. Mas há outro ritmo de celebrações, que vãopontuando a vida de cada indivíduo do primeiro ao último dia da sua vida: são os Sacra-mentos e o que se costuma designar pelo nome de Sacramentais. Por mais paradoxal quepossa parecer, os Sacramentos e os Sacramentais são, no que se refere à origem dealguns dos elementos que os constituem, o que houve de mais popular. Eles são funda-mentalmente sinais, símbolos, coisas muito humanas nas quais se manifesta uma signifi-cação e uma acção divina. Eles estão na linha do mistério da Encarnação. Sinais comosão, eles estruturam-se à base de palavras e de gestos, que constituem o seu elementovisível, capaz de atingir os sentidos; mas, ainda porque sinais, eles têm, para além doelemento sensível, mas através dele, uma significação só acessível à fé. Ainda comosinais, os ritos sacramentais são dialogantes, são sinais de acção de Deus junto doshomens e sinais de acolhimento e resposta que o homem oferece à acção de Deus. Paraisso, eles têm de ser inteligíveis para o homem e por ele entendidos, verdadeiramentesinais, não diminuídos, nem atrofiados, nem exagerados, diria, de bom gosto, e sempre

Page 176: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

176 PADRE JOSÉ FERREIRA

realizados na fé, de outro modo não passariam de simples montagens audio-visuais,simples material didáctico. São sinais de fé e todos celebram, cada qual a seu modo, omistério da fé. Por isso, o primeiro elemento dos ritos sacramentais é a Palavra de Deus,pelo qual a fé chega até ao homem.

Sem a palavra de Deus a servir de suporte aos ritos sacramentais, sem a fé que porela nos vem, facilmente os ritos não passariam de acções convencionais, formalistas,rotineiras, quando não mágicas, ou apenas teriam uma significação sociológica. Assim oBaptismo celebra-se porque «pertence», «faz parte»; o casamento, porque de outro modo«parecia mal»; e assim por adiante. Ou então – e é o que neste momento mais nos poderáinteressar – nascem interpretações erradas, aberrantes, supersticiosas até. Será atendência para o transcendente semeada no coração do homem, mas que, sem a fé, nãoacertou com a saída para ele. Também não serão os ritos litúrgicos que lha abrirão, seeles não forem entendidos como sinais da fé.

Desvios deste género podem andar ligados a todos os ritos litúrgicos, desde osmais sagrados, como a Eucaristia, até ao mais simples, como as bênçãos. Por vezes, nãochegará a tratar-se de aberrações, mas apenas de compreensão limitada, atrofiada, quevaloriza os aspectos secundários e esquece os principais. Com muita facilidade, areligiosidade popular toma então posse desses aspectos secundários, pior ainda seaberrantes, e faz deles o centro da sua piedade e até das suas celebrações. Neste campo,é significativo o que aconteceu, em certa altura, com o culto da Eucaristia, quando aparticipação na mesma se centrava no «ver a hóstia» em lugar de comungar o Corpo doSenhor (século XIII) ou se considerou a presença do Senhor como a do «prisioneiro nosacrário», em lugar de O sentir próximo como quem Se oferece para ser comungado eadorado, para se poder ser por Ele visitado, numa visita de salvação.

O caso das bênçãos não é menos significativo. Estas foram frequentementeentendidas como algo que se aproximava já da bruxaria. Desde que se perdeu o sentidodo que é bendizer a Deus pelos bens que d’Ele nos vêm – que é o sentido da bênção –,esta correu o perigo de ser tomada como fórmula mágica contra maus agoiros.

Para evitar estes e outros erros de perspectiva, o primeiro caminho é evitar todo ogénero de informação inexacta. A catequese litúrgica tem de ser verdadeira, objectiva,piedosa sim, mas não pietista nem oportunista. Muitas das deformações que frequente-mente se lêem ou ouvem e vêem nos meios de comunicação social provêm de catequesesinexactas que, em seu tempo, foram divulgadas.

Finalmente, dê-se a todas as expressões de religiosidade popular, quer tenhamderivado da liturgia, quer tenham nascido à margem dela, o espírito que anima a liturgiae até estruturas que nela se inspirem e nela tenham o seu modelo. Mas não haja medo dedeixar nascer e viver o que a piedade popular souber criar, tendo sempre a preocupaçãode que seja verdadeiro, de bom gosto, procedente da fé e da revelação evangélica e,tanto quanto possível, derive da liturgia e a ela conduza, como quer o Concílio (SC 13).E celebre-se a liturgia da maneira mais acessível ao povo, ao mesmo tempo que se nãopercam de vista as expressões da religiosidade popular.

Page 177: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA

DO NATAL DO SENHOR

Todos os anos, nas imediações da solenidade do Natal, se ouvem formularquestões várias acerca da celebração desta data. A maior parte delas, ao menos nosmeios públicos de comunicação, incide sobre a data da festa e a sua explicação. Há quemtome essa data como um simples aniversário. E até se repete que o Menino Jesus “fazanos” nesse dia.

Ora, o Natal não é um simples aniversário, nem pretende sê-lo. O Natal, comoaliás as outras celebrações do calendário cristão, sobretudo as do ciclo cristológico, istoé, o das festas do Senhor – entenda-se, de Nosso Senhor Jesus Cristo – não celebramaniversários, mas mistérios. O cristianismo é, sem dúvida, uma religião histórica, assentasobre acontecimentos históricos, realizados no tempo; mas esses acontecimentos, inseridosrealmente na história dos homens, têm uma significação divina, são significativos eportadores da presença e da acção de Deus junto dos homens, para salvação dos mesmoshomens. É precisamente a esses acontecimentos, com a sua significação salvífica, quedamos, neste contexto da celebração litúrgica, o nome de mistérios. Assim, falamos domistério do Natal ou da Páscoa ou da Transfiguração, etc.

O mistério do Natal

O acontecimento que serve de ponto de partida para a celebração litúrgica doNatal é evidentemente, como a palavra o diz, o Nascimento de Jesus. O facto, nãopropriamente a data. Nem se conhece o dia em que Jesus nasceu. Tradições houve que ocelebraram noutro dia. Mas celebramos este acontecimento do nascimento de Jesus,porque ele encerra e revela um mistério.

Quando na Missa da Vigília do Natal, (rigorosamente a primeira das quatroMissas do Natal), prevista para a tarde do dia 24 de Dezembro, ouvimos proclamar agenealogia de Jesus Cristo no Evangelho de S. Mateus, desfila diante de nós, desde “ostempos antigos”, aquela teoria magnífica dos ascendentes do Senhor. E de Abraão atéJosé, “esposo de Maria, da qual nasceu Jesus”, podemos acompanhar, através de trêsvezes catorze gerações, a realização histórica do desígnio salvífico de Deus sobre estenosso mundo. Assim vamos compreendendo que nem o projecto de Deus paira fora ouacima da história dos homens, nem esta se limita a um encadeamento cego e fatídico deacontecimentos temporais. Os acontecimentos são, em última análise, profundamentesimbólicos, não no sentido de simplesmente alegóricos ou caprichosamenteinterpretáveis ao sabor das conveniências humanas, e, então, vazios de algo mais do queaquilo que exteriormente nos é oferecido, mas no sentido profundo e totalizante dosímbolo, que é sempre sinal sensível, mas que manifesta e veicula uma realidade queestá para além daquilo que os sentidos podem captar. A celebração que a liturgia fazdesses acontecimentos, mais do que celebração de uma data e do simples facto histórico

Page 178: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

178 PADRE JOSÉ FERREIRA

que ela evoca, é celebração do mistério que naquele acontecimento se manifesta e se nosoferece para nele participarmos. Por esta razão, a celebração religiosa supõe necessaria-mente, antes de tudo, a fé, sem a qual os acontecimentos não seriam sequer entendidoscomo acontecimentos de salvação.

O conteúdo objectivo celebrado na solenidade do Natal, se é certo que parte, defacto, do nascimento de Jesus, é, na realidade, o mistério da Encarnação do Filho deDeus, com tudo o que ele encerra de comunhão de Deus com o homem na Pessoa doHomem-Deus. É o que claramente se afirma na oração conclusiva do Ofício da Vigília(Ofício de Leitura) e se repete na Missa do Dia: “Senhor nosso Deus, que de modoadmirável criastes o homem e de modo ainda mais admirável o resgatastes, fazei quepossamos participar na vida divina de vosso Filho que Se dignou assumir a nossanatureza humana”. O mesmo se canta na primeira antífona das Primeiras Vésperas do diaoitavo do Natal (1 de Janeiro), onde a Igreja contempla maravilhada: “Oh admirávelMistério! O Criador do género humano, tomando corpo e alma, dignou-Se nascer de umaVirgem; e, feito homem, tornou-nos participantes da sua divindade!” (O texto latino, emvez de “admirável mistério”, diz de maneira mais realista, sem dúvida difícil de traduzirà letra: “Oh permuta admirável!”). É o mistério que os Padres da Igreja exprimiram porestas outras palavras: “Deus fez-Se homem, para que o homem se tornasse Deus”.

A data do Natal

Rigorosamente falando, natal é um adjectivo, que qualifica o substantivo dia: dianatal, isto é, dia natalício. Assim é designado o dia em que os mártires nasceram para aglória celeste. Como acima foi dito, não é conhecido o dia em que Jesus nasceu. A esco-lha do dia 25 de Dezembro fez-se, digamos em linguagem actual, por razões pastorais.

A Igreja primitiva só conheceu um dia de festa: o Dia do Senhor, o Domingo,Páscoa semanal, e, algum tempo mais tarde, a Páscoa anual. A primeira referência àpresença do dia de Natal lê-se num calendário romano do ano 336. Pouco posterior aoconcílio de Niceia (325), que proclamou a origem divina de Jesus contra o arianismo,contemporânea da edificação da primeira basílica de S. Pedro (c. 330), construída peloimperador romano Constantino logo a seguir à proclamação do edito de Milão que davaa liberdade à Igreja (313), a festa do Natal do Senhor parece ter sido celebrada primiti-vamente naquela basílica sobre a colina vaticana, onde anteriormente o povo romano,então ainda pagão, vinha prestar culto a certas divindades orientais, nesse tempo muitoem voga no Ocidente, como hoje, de novo, semelhantemente acontece. Entre elas, conta-va-se o Sol, celebrado, com o título de “Sol invencível”, no dia 25 de Dezembro (VIIIKalendas Januarias: no dia oitavo antes do dia l de Janeiro), no solstício do inverno,quando o sol, que até ali parecia querer cair para trás do horizonte, de novo como querenascia, recomeçando a sua ascensão a caminho do hemisfério norte. Daí, entre ospagãos, o natale solis invicti, o natal do sol invencível. Para contrapor uma festa cristãa essa festa pagã, “última resistência do paganismo” romano, foi instituída a festa doNatal de Cristo, que já um profeta anunciara com o título de “Sol de justiça” (Mal 4, 2).Não se trata, como por vezes se diz, do baptismo de uma festa pagã, mas antes da subs-tituição da festa pagã por uma festa cristã, ou, mais propriamente, da substituição dotema da festa pagã pelo tema cristão do mistério do nascimento de Jesus Cristo.

Page 179: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA DO NATAL DO SENHOR 179

De facto, se os acontecimentos da história da salvação e a consciência do mistérioque eles encerram levam à criação das festas para os celebrar, também a celebração dasfestas faz descobrir o conteúdo profundo do mistério celebrado nessas mesmas festas.Foi o que se pretendeu que acontecesse com a criação da festa do Natal. E, de facto,aconteceu. É preciso agora que continue a acontecer!

Não quer, no entanto, com isto dizer-se que a instituição da festa do Natal tenhatido simplesmente uma finalidade educativa. Nasceu a festa do Natal como nasceram asoutras festas do calendário cristão. O mistério de Cristo, celebrado a princípio na suatotalidade no Dia do Senhor ou Domingo, foi sendo como que desdobrado em outrascelebrações, que têm por objecto aspectos particulares daquele mistério total, aos quaisse dá igualmente o nome de mistérios; e assim dizemos o mistério da Anunciação, daVisitação, da Apresentação, da Ascensão, etc. O mistério de Cristo é sempre só um esempre todo, como dizia Odo Casel; mas nós, que vivemos no tempo e dividimos atotalidade do tempo em tempos diferenciados, é normal que também a totalidade domistério pascal de Cristo, como que a decomponhamos nas suas diversas fases, como fazo prisma à luz do sol, quando a decompõe nas suas diversas cores. Assim nasceram asfestas e os tempos litúrgicos ao longo do ano.

A celebração do Natal

A liturgia são as diversas celebrações litúrgicas. O calendário é apenas a organi-zação dessas celebrações ao longo do ano. A celebração do Natal faz-se nas diversascelebrações ou acções da liturgia. Para a maior parte dos cristãos essa celebração limita-seà Missa. A Missa é, de facto, sempre a primeira celebração da liturgia; outras poderiahaver, particularmente a celebração da Liturgia das Horas, tão rica nos seus elementos etão bela na sua realização. Na Missa, a Eucaristia é, de facto, o elemento culminante detoda a celebração, como o é em todo o conjunto da liturgia; mas não é o único. Elementofundamental de todas as celebrações é também a palavra de Deus; aí ela é proclamada, écantada, é meditada, é interiorizada, é rezada. Na palavra como no sacramento, o Verbode Deus, que é a sua Palavra, vem habitar no meio de nós, em sinais, sem dúvida, bemhumanos, mas bem significativos e realizadores da comunhão de aliança de Deusconnosco.

As Missas do Natal

O Missal Romano apresenta, para o dia de Natal, três formulários de Missa, paraserem utilizados em três momentos diferentes: na noite (e não necessariamente à meianoite, expressão que não se encontra em nenhum livro litúrgico), na aurora e no dia. Talcostume provém da cidade de Roma, onde nasceu para dar solução a uma determinadasituação pastoral, no tempo do Papa S. Gregório Magno († 604). Com a expansão doslivros litúrgicos romanos por todo o mundo ocidental a partir do século VIII, aquelecostume tornou-se universal e permanece até aos nossos dias. As três Missas nãorevestem nenhuma significação especial, e é absolutamente arbitrário procurar em cadauma delas qualquer aspecto particular e exclusivo do mistério do Natal.

Page 180: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

180 PADRE JOSÉ FERREIRA

Das três Missas, a que foi, desde a origem, a Missa principal da solenidade é aterceira, a Missa no Dia, dado que as outras apareceram, a primeira, na noite, paraimitar em Roma, num oratório construído junto da basílica de S. Maria Maior, comoréplica do presépio de Belém, a vigília naquela mesma noite celebrada na cidade ondeJesus nasceu, e a segunda, na aurora, para responder à devoção da colónia bizantina,residente em Roma, que celebrava no dia 25 de Dezembro a sua padroeira, S. Anastácia,na basílica que ainda hoje conserva o seu nome. Mas esta segunda Missa recebeu, desdecedo, ainda em tempos de S. Gregório, um formulário também relacionado com o Natal.

O centro e, ao mesmo tempo, o ponto culminante da liturgia do Natal encontra-sena leitura evangélica da Missa no Dia. Melhor do que as narrações do Evangelho dainfância da Missa na Noite e na da Aurora, é o soleníssimo prólogo de S. João queilumina todo o mistério da solenidade do Natal do Senhor: “O Verbo estava junto deDeus, e o Verbo era Deus... e o Verbo fez-Se carne e habitou no meio de nós. E nós vimosa glória d’Ele, glória que Lhe vem do Pai como a Filho Único, cheio de graça e deverdade” (Jo 1). Eco, ao mesmo tempo bem claro e grandioso, a esta leitura evangélicaencontra-se antecipadamente na Segunda Leitura, tirada da Epístola aos Hebreus, queassim começa de maneira tão eloquente: “Deus, que, muitas vezes e de muitos modos,falou outrora a nossos pais pelos Profetas, nestes tempos, que são os últimos, falou-nospor seu Filho” (He 1, 1-2). Decididamente o Natal cristão, (e não há outro), é acelebração do mistério da Encarnação do Filho de Deus.

O tempo do Natal

Dá-se este nome aos dias que vão das Primeiras Vésperas da solenidade do Natal,na tarde do dia 24, até à festa do Baptismo do Senhor. Este breve tempo litúrgico, poucomais de duas semanas, é o prolongamento e como que o desdobrar das celebrações nata-lícias. Entre elas, a principal é a solenidade da Epifania. Como o nome indica, trata-sede uma festa vinda do Oriente, onde nasceu sensivelmente no mesmo tempo em que oNatal no Ocidente e com idêntica significação. Foi colocada no dia 6 de Janeiro, que nopaganismo oriental correspondia ao 25 de Dezembro do Ocidente. Epifania significaexactamente Manifestação, Aparecimento. É este, de facto, o tema central da Epifania,a manifestação do Senhor, do Verbo que, feito carne, habitou no meio de nós. É outramaneira de apresentar o mistério da Encarnação. O nosso mundo ocidental, maissensível aos factos do que à sua significação, partiu sobretudo do nascimento do Meninode Belém; o Oriente, mais dado à contemplação dos acontecimentos e a penetrar na suasignificação profunda, partindo também de acontecimentos evangélicos, sublinhasobretudo a Manifestação aos homens d’Aquele que é o Filho de Deus. Pode ajudar paracomparar a perspectiva das duas solenidades o texto que serve de cântico de entrada auma e a outra; no Natal: “Um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado...”; naEpifania: “Eis que vem o Senhor soberano...”. A antífona do Natal conduz-nos aopresépio, à gruta de Belém, a da Epifania, ao trono do Pantocrator, o Senhor na glória,como Ele é representado nos célebres ícones orientais. Mas seria extremar demasiado osdois campos, se insistíssemos nesta diferença, pois que a antífona do Natal continua:“...Tem o poder sobre os seus ombros”, reconhecendo no Menino de Belém o mesmo

Page 181: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA DO NATAL DO SENHOR 181

“Senhor soberano” saudado na Epifania. Nesta última solenidade o que acontece éque a Manifestação do Senhor se faz proclamando outros acontecimentos evangélicosde grande alcance messiânico, alguns dos quais já não pertencem ao tempo da infânciade Jesus; são eles, além da manifestação aos gentios na pessoa dos Magos, o Baptismono Jordão, que terá aliás depois uma festa própria, e as bodas de Caná. A referência aestes mistérios aparece sobretudo nas antífonas da Liturgia da Horas.

Solenidade grande é ainda a de Santa Maria, Mãe de Deus no dia 1 de Janeiro,quando se termina a Oitava do Natal. O Tempo do Natal é realmente o tempo, porexcelência, da Mãe de Jesus, mais do que qualquer outra época do ano.

O três primeiros dias da oitava foram outrora de grande tradição popular: no diade S. Estêvão (26), festejavam-se os diáconos; no dia de S. João (27), os presbíteros; nodia dos Santos Inocentes (28), os estudantes e os clérigos mais novos. Este último foi odia da célebre “festa dos loucos”, que ainda hoje conserva tradições em certas comuni-dades religiosas. Ecos da Idade Média, não de todo desprovidos da candura natalícia!

No domingo dentro da oitava de Natal ou, se este não existir, no dia 30 de Dezembro,celebra-se a festa da Sagrada Família, apresentada como modelo das famílias cristãs.

O Tempo do Natal encerra-se com a festa do Baptismo do Senhor. Sobre as águasdo rio a voz do Pai proclama seu Filho Aquele que, ao erguer-Se das águas, levantaconsigo o mundo, e sobre o qual o Espírito desce, marcando-O como o Messias, o Ungi-do, o Cristo, cuja unção espiritual marcará todos os ungidos do seu povo, os cristãos,tornados outros Cristos. Do Jordão, Jesus Cristo caminha para o monte da tentação e dalipara o Calvário, Cordeiro de Deus, como João Baptista O apresentou ao povo, parasobre a Cruz Se oferecer como oblação pascal ao Pai, levando em Si toda a humanidade.O Natal é já uma celebração pascal.

Page 182: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO DA PÁSCOAE A SUA CELEBRAÇÃO

I – A CENTRALIDADE DA PÁSCOA

A atenção voltada de novo para o Mistério Pascal, fruto, em grande parte, domovimento litúrgico, levou à redescoberta da liturgia da Páscoa, sepultada, desde aIdade Média, debaixo de um amontoado de ritos secundários que encobriam o principal,e à revisão do calendário e dos horários dos dias do Tríduo sagrado, com que, desde oinício, os cristãos celebravam os “mistérios máximos da Redenção”. Nem foi por acasoque a recente reforma da liturgia começou pelas celebrações da Páscoa.

Bem antes do Concílio Vaticano II, quando ainda nem dele se suspeitava, Pio XIIque, já na década de 40, ordenara o estudo histórico da liturgia pascal, promulgou, ines-peradamente, em 1951, a Vigília Pascal restaurada. Foi o primeiro passo. Começara-sepelo núcleo central, pelo coração da liturgia da Páscoa. Começava a sentir-se que eraverdade o que o mesmo papa havia de dizer, anos mais tarde, em 1956, que o “movimentolitúrgico apareceu como um sinal das disposições providenciais de Deus sobre o tempopresente, como uma passagem do Espírito Santo na Igreja”.1 A experiência desta primeirareforma na liturgia levou em 1952 a nova revisão da Vigília que esteve em uso durantemais de três anos, até que, em 1955, toda a Semana Santa beneficiou de uma reformaprofunda.2 Aliviaram-se as estruturas litúrgicas de elementos adventícios que as sobre-carregavam sem vantagem, punham-se em relevo os elementos principais, redefiniu-se oTríduo Pascal, e, coisa particularmente significativa, reconduziram-se as celebraçõesdos três dias da Páscoa às horas verdadeiras, sobretudo a Noite Santa, que assim voltava,de novo, a ser verdadeiramente uma Vigília. Oito anos depois, o Concílio declarava que“era desejo da Santa Igreja fazer uma reforma geral da liturgia”.3 Tinha-se começadopelo coração do ano litúrgico e pelo coração do mistério da liturgia; agora todos ossectores da vida litúrgica iam beneficiar dessa reforma. O Concílio nascia assim em res-surreição pascal, fruto do tal novo sopro do Espírito na face da Igreja.

Mas não foi só em relação ao Tríduo Pascal e a toda a Semana Santa que asreformas litúrgicas anteriores ou posteriores ao Concílio vieram pôr em evidência oMistério Pascal de Cristo; em toda a Constituição sobre a Liturgia e mesmo nos outrosdocumentos conciliares é o Mistério de Cristo o centro donde tudo o mais irradia erecebe o impulso vital. Reencontramo-nos assim facilmente com o ambiente dospróprios textos evangélicos, as exposições cristológicas de S. Paulo, a doutrina e acelebração litúrgica das origens cristãs e das comunidades do tempo dos antigos Padresda Igreja do Oriente e do Ocidente.

1 Pio XII, Discurso aos participantes no I Congresso Internacional de Liturgia de Assis – Roma, Setembrode 1956.

2 Cf. Ordo Hebdomae sanctae instauratus, 1955.3 Concílio Vaticano II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia, n. 21.

Page 183: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO DA PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO 183

A solenidade da Páscoa volta a ser na vida e na consciência da comunidade cristã,depois do Dia do Senhor em cada domingo, a solenidade máxima do ano cristão, aSolenidade das Solenidades. Ela o é em princípio e é preciso que o seja de facto, como aSé Apostólica o recordou num documento que procurava evitar que esmorecesse com otempo o entusiasmo dos primeiros anos da restauração da celebração anual da Páscoa.4

A centralidade do Mistério Pascal exige a centralidade da sua celebração e da catequeseque a há-de acompanhar.

II – O MISTÉRIO DA PÁSCOA

O Mistério Pascal e a sua celebração foi já objecto de três Encontros Nacionais deLiturgia em Fátima nos anos de 1982, 1983 e 1984 e os trabalhos aí realizados forampublicados em três fascículos do Boletim de Pastoral Litúrgica.5 No entanto, a cele-bração anual da Páscoa obriga a olhar sempre, como se fosse a primeira vez, para o seumistério, para a realidade divina que se encerra e se nos oferece no acontecimentopascal.

Páscoa começa por ser o nome de uma festa judaica,6 que, em cada ano, celebra oacontecimento fundamental da história do povo de Deus do Antigo Testamento: a sualibertação do Egipto, onde os hebreus viviam como emigrantes reduzidos à escravidão, ea sua passagem para a Terra prometida por Deus, desde longa data, a Abraão e à suadescendência.

Páscoa chamou-se também ao cordeiro pascal, como no texto de S. Paulo:“Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”;7 na verdade, o Sangue de Cristo é o penhor dalibertação para todos os homens, como o sangue do cordeiro o tinha sido para os hebreusaquando da saída do Egipto. De facto, a oblação, até ao sangue, de Cristo na cruz realizaa passagem libertadora do pecado e da morte para a vida em Deus, como se lê noEvangelho de S. João, logo no início dos capítulos que consagrou à Paixão do Senhor:“Sabendo Jesus que era chegada a hora de passar deste mundo para o Pai...”.8 Daí quePáscoa tenha vindo a significar, em última análise, no sentido real, passagem, qualquerque tenha sido na origem o seu sentido etimológico, aliás difícil de precisar.

É, de facto, esta passagem, em primeiro lugar de Jesus e depois de todos oshomens, deste mundo para o Pai o sentido último da Páscoa cristã. Aqui encontra a suarazão de ser toda a história da salvação; para aqui se encaminha, desde o princípio, asucessão dos tempos e das gerações; aqui atinge a plenitude e revela a sua significação

4 Congregação do Culto Divino, aos Presidentes das Conferências Episcopais sobre a celebração daPáscoa.

5 A Celebração do Mistério Pascal. Tríduo Pascal, in Boletim de Pastoral Litúrgica, nn. 29-31 (1983); ACelebração do Mistério Pascal. Tempo Pascal, in Boletim de Pastoral Litúrgica, nn. 33-36 (1984); ACelebração do Mistério Pascal. Quaresma, in Boletim de Pastoral Litúrgica, nn. 37-40 (1985);

6 Ex 12 ss.7 2 Cor 5, 7; II leitura da Missa do Dia do Domingo da Ressurreição.8 Jo 13, 1; Evangelho da Missa da Ceia do Senhor em Quinta-Feira Santa.

Page 184: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

184 PADRE JOSÉ FERREIRA

total a própria Encarnação do Filho de Deus; aqui finalmente encontra a Igreja de Cristoo alicerce da sua fé e a meta da sua esperança.

A Páscoa, o Mistério Pascal, ou ainda por outras palavras, os acontecimentospascais com a sua significação divina, centra-se na morte de Jesus sobre a Cruz, pelaqual Ele passou para o Pai, onde vive na vida nova da Ressurreição. “Jesus de Nazaré, oCrucificado” de Sexta-feira Santa, “não está aqui, ressuscitou”, disse o Anjo às mulheresque procuravam o seu corpo no túmulo.9 Tomando a condição humana na Encarnação, oFilho de Deus tomou sobre Si o pecado da humanidade; mas oferecendo-Se ao Pai sobrea Cruz por todos os homens, Ele tira o pecado do mundo e, “destruindo assim a morte,manifestou a vitória da ressurreição”,10 para dela tornar participantes todos os homens.Para isto Ele veio ao mundo, para levar em Si e consigo os homens ao Pai. “Saí do Pai evim ao mundo; de novo deixo o mundo e volto para o Pai”, disse Jesus,11 mas voltalevando agora em Si o homem cuja condição assumiu.12

Mistério inaudito, este da passagem pascal do homem para o Pai pela oblação doCordeiro Pascal. É este mistério que, desde o princípio, foi o centro da liturgia cristã; aía Igreja o recorda, aí o celebra, aí ela se torna participante, já desde a terra, da vida doRessuscitado, antegozo da comunhão com o Pai na glória celeste.

III – A CELEBRAÇÃO DA PÁSCOA

A Páscoa não é celebrada apenas no Domingo da Ressurreição, mas no TríduoPascal, que se inaugura com a celebração da Missa da Ceia do Senhor, ao entardecer deQuinta-feira Santa, e se conclui com a Hora de Vésperas do Domingo da Ressurreição.Não se trata propriamente de um conjunto de celebrações. O Tríduo Pascal tem umritmo e uma unidade interna indestrutível. A sua celebração principal, e na origem aúnica, é a Vigília na Noite Santa. Aí se celebra todo o Mistério Pascal, o mistério dapassagem da morte à vida, da terra ao céu, deste mundo para o Pai.13 A liturgia da Palavradesta Vigília faz memória da história da salvação desde “o princípio em que Deus criouo céu e a terra” 14 até à Ressurreição do Crucificado:15 do paraíso primeiro onde o primeirohomem pecou e foi condenado a morrer até ao jardim de José de Arimateia, onde otúmulo vazio é sinal da morte vencida, e onde o Ressuscitado Se manifesta, vivo, naglória do Pai.

Na celebração da Vigília, o mistério que a Palavra anuncia, os sacramentos logo orealizam. O Baptismo, imitando na passagem pela água a morte e a sepultura com Cristo,

9 Evangelho da Vigília (Mc 16, 6).10Prefácio da Oração Eucarística II.11Jo 16, 28.12Cf. Flp 2, 6-11.13Neste sentido, é significativo que outrora se tenha lido na Vigília toda a passagem evangélica da Paixão à

Ressurreição.14Gen 1, 1; I Leitura da Vigília.15Última leitura da Vigília.

Page 185: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO DA PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO 185

torna os baptizados realmente participantes na passagem pascal do Senhor; a Con-firmação, que, em princípio, se segue ao Baptismo dos adultos, comunica o EspíritoSanto, dom pascal por excelência, fruto da Páscoa de Jesus; a Eucaristia, memorialmáximo da Páscoa do Senhor Jesus, ao mesmo tempo que é memória do acontecimentopassado, é presença sacramental do mesmo na assembleia da Igreja e anúncio dacomunhão eterna na glória futura. A Páscoa, já afirmava S. Agostinho, celebra-se demodo sacramental, in mystério.

A Sexta-feira e o Sábado Santo, os dois primeiros dias do Tríduo Pascal, são diasalitúrgicos, como lhes chamavam os Antigos, isto é, dias sem celebração eucarística. Sãoos dias do jejum pascal referido na Constituição conciliar sobre a Liturgia, os dias emque o Esposo foi tirado, como Jesus tinha anunciado,16 “dias de amargura”, no dizer de S.Ambrósio, nos quais todo o Corpo da Igreja comunga directamente, e como que fisica-mente, na dor e na morte da sua Cabeça, Cristo crucificado, morto e sepultado. As cele-brações destes dois dias são apenas Liturgias da Palavra, na celebração, aliás magnífica,da Paixão do Senhor na tarde de Sexta-feira Santa e na Liturgia das Horas, nesse dia e noSábado Santo. Não são dias vazios, pelo facto de neles não se celebrar a Eucaristia; sãoantes dois dias do grande silêncio, da grande paz, da profunda comunhão do espírito e docoração com o Homem-Deus, em que se manifesta a situação trágica do pecado doshomens, ao mesmo tempo que o poder e a força do amor, que leva o Pai a entregar oFilho à morte por nós, e o Filho a oferecer a sua vida ao Pai pelos seus irmãos.

Cristo é o grão de trigo semeado na terra; se este não morrer, ficará infrutífero,mas se morrer, dará muito fruto.17 O Sábado Santo em particular faz sentir toda a pujançadesta sementeira divina.

Como no fim da primeira criação Deus descansou de toda a obra que realizara,18

assim agora também Jesus descansa sob a terra da obra desta nova criação. E “a Igreja,no Sábado Santo, permanece junto do sepulcro do Senhor, meditando na sua paixão emorte, até ao momento em que, depois da solene Vigília ou expectação nocturna daressurreição, se der lugar à alegria pascal, cuja riqueza se prolongará por cinquentadias”. É tudo o que o Missal Romano diz no Sábado Santo.19

A Missa da Ceia do Senhor na Quinta-feira anterior é o momento de celebrar ainstituição dos “sagrados mistérios”, a Eucaristia, que o Senhor, antes de sofrer a paixão,entregou aos seus discípulos para que eles os celebrassem 20 como memorial, semprerepetível, da sua Páscoa. Esta celebração é como que a abertura de todo o Tríduo Pascal.

Já no princípio da semana, no Domingo da Paixão ou de Ramos, a procissão queacompanhou o Senhor até Jerusalém, onde vai sofrer a paixão, proclamava a vitória e otriunfo da Páscoa do Senhor, que da morte fez surgir a vida, para salvação dos homens,para glória de Deus Pai.

16Mt 9, 15.17Jo 12, 13.18Gen 2, 2.19Missal Romano, Sábado Santo.20Missal Romano, Oração Eucarística I, embolismo próprio de Quinta-Feira Santa.

Page 186: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

186 PADRE JOSÉ FERREIRA

IV – O TEMPO DE PÁSCOA

A celebração da Páscoa engloba a morte e a ressurreição do Senhor, melhorainda, a morte que é passagem para a ressurreição. Não admira, por isso, que, no iníciosobretudo, a palavra Páscoa se pudesse ter dito tanto da morte como da ressurreição.

Assim, tempo houve em que o que hoje chamamos Semana Santa foi chamadosemana da Páscoa, a semana em que “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”. Hoje damos onome de Tempo da Páscoa ou Tempo Pascal (é este precisamente o nome oficial) aoscinquenta dias que vão do Domingo da Ressurreição (na origem, da Eucaristia daVigília) até ao Domingo do Pentecostes. Mas foi todo este espaço de cinquenta dias querecebeu, no início, a designação de Pentecostes, ou Cinquentena, como a palavrasignifica, a Cinquentena da alegria pascal, laetissimum spatium. Este espaço de alegriaé, na realidade, uma grande oitava de domingos, envolvendo sete semanas e terminando,de novo, com o domingo, tal como cada semana começa com o Dia do Senhor e vai, denovo, encontrá-lo no oitavo dia. Mas o Calendário Romano vai mais longe e diz que“os cinquenta dias que vão do domingo da Ressurreição ao domingo de Pentecostes secelebram na alegria e no júbilo como um único dia de festa, mais ainda como “um grandedomingo”, citando nesta última expressão uma palavra de S. Atanásio.

O Tempo Pascal nasce da Vigília; aí se faz a passagem do luto à alegria, do jejumao banquete, da tristeza à festa, da morte à vida. Tempo de alegria, de acção de graças,de aprofundamento do sentido do mistério cristão e da vida em Cristo, do mistério daIgreja e consequentemente do mistério da comunidade dos cristãos, o Tempo Pascal é otempo espiritual, por excelência, do ano litúrgico. É o tempo em que o Ressuscitado dáo Espírito: “Recebei o Espírito Santo”,21 e que se conclui precisamente com a efusãodo Espírito Santo sobre os discípulos, que, uma vez “cheios do Espírito Santo”,aparecem no mundo como a “Igreja de Deus” da “Nova Aliança”22. Cristo ressuscitado,“Primogénito de entre os mortos”, é, por isso mesmo, “Cabeça do Corpo da Igreja”.23

De facto, na Páscoa “unem-se o céu e a terra, o divino e o humano”.24

O Tempo Pascal precisa de ser redescoberto. A reforma litúrgica não parece terlevado às últimas consequências o que, nos princípios, dele afirmou! Mas recuperou asua unidade e o ritmo dos seus oito domingos, todos eles agora claramente chamadosDomingos da Páscoa.

V – A VIDA PASCAL

A vida cristã é uma vida pascal, porque vida dos que foram sepultados comCristo, no Baptismo, para viverem, com Ele, uma vida nova, como se exprime o presi-dente da assembleia, na Vigília, antes da renovação das promessas do Baptismo. Esta

21Evangelho da Missa do Domingo da Ressurreição.22Act 2, 1 ss; Primeira leitura do Domingo de Pentecostes.23Col 1, 12 ss.24Precónio Pascal.

Page 187: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO DA PÁSCOA E A SUA CELEBRAÇÃO 187

vida nova é a vida de Cristo ressuscitado, a vida d’Aquele que, por ter oferecido a vidaaté Se entregar à morte, vive agora na glória do Pai, exaltado com o nome divino deSenhor.25 Vida com Cristo em Deus, é ainda, sobre a Terra, uma vida escondida, vividana fé e na esperança, vivificada pelo Espírito, que é Amor. Vida nova, porque vida dohomem novo, que é o Senhor ressuscitado, ela anima toda a existência cristã e expri-me-se em tudo o que é vitória sobre o pecado e a morte. Esta novidade de vida em Cristoé uma das notas mais postas em realce nos textos da liturgia do tempo da Páscoa.

Como já foi referido, a Páscoa é celebrada, no dizer de S. Agostinho, como ummistério, de maneira sacramental, não tanto como uma história que se evoca, mas comoum mistério tornado presente de maneira sacramental para nele se poder participar. Éassim que, na Vigília, ocupa lugar central a celebração dos sacramentos da iniciaçãocristã: Baptismo, Confirmação e Eucaristia, os sacramentos da vida nova. Por meiodesses sacramentos nascem os novos filhos de Deus. Eles são a humanidade nova, que aliturgia saúda como “crianças recém-nascidas”, “cordeiros recém-nascidos”, “novaprole da Igreja, multidão renovada”26. Em cada ano e em todo o mundo, muitos são osque, na noite da Páscoa, nascem como nova geração do povo de Deus.

S. Paulo, partindo da sugestão fornecida pelo pão ázimo próprio da Páscoajudaica, pede aos seus leitores que, purificados do fermento velho, sejam uma novamassa, para celebrarem a festa pascal.27 E a liturgia pede que, na Páscoa, todos os sinais,dos mais importantes aos mais simples, sejam a partir de elementos novos: a água eos santos óleos para o Baptismo; o pão para a Eucaristia, para que não venha a sernecessário recorrer ao pão consagrado guardado no sacrário desde antes do TríduoPascal; a luz que há-de acender o Círio e iluminar a celebração durante a noite de Vigília;a ornamentação do altar, que foi desnudado antes da celebração; e, mais que tudo,“o coração, as vozes e as obras”:28 seja tudo novo, para que, “renovados pelo vossoEspírito, ressuscitemos para a luz da vida” como pede a colecta do Domingo daRessurreição.

Anualmente repetida em cada primeiro Domingo que se segue à Lua cheia doequinócio da primavera, a Páscoa surge sempre nova, como sempre nova é a vida imortaldo Senhor ressuscitado. E aquela Lua, que enche sempre de claridade a noite santa daPáscoa, continua a ser, em cada ano e desde há tantos século, desta solenidade da vidanova a “testemunha fiel no firmamento” (Sl 88, 38).

25Flp 2, 11.26Da Liturgia do Tempo Pascal.27Segunda leitura da Missa do Domingo da Ressurreição.28Hino da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo.

Page 188: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O RITO DA DEDICAÇÃODA IGREJA E DO ALTAR

I - O SENTIDO DAS PALAVRASComeçamos por analisar as palavras que servem de título a esta comunicação.

1. Rito *

A palavra rito pode ter em liturgia várias significações. Umas vezes, podesignificar a liturgia própria de determinada Igreja, diferente de outras Igrejas; assimfala-se de rito romano, rito ambrosiano, rito bizantino, etc. Outras vezes, significa ogesto ou acção que entra em determinada celebração em oposição à palavra, e assim sediz que a celebração litúrgica consta de duas partes: a palavra e o rito. Outras muitasvezes, como no nosso caso concreto, rito significa o conjunto e ordenamento dos várioselementos que entram numa determinada acção litúrgica ou que constituem alguma partedessa acção. É assim que se fala do rito do Baptismo, do rito da Confirmação ou do ritode entrada, da comunhão, e assim sucessivamente, em relação às diversas celebrações. Éneste último sentido que falamos agora do Rito da Dedicação da Igreja. A palavra latinatradicional para estas circunstâncias é Ordo; no caso presente, o livro litúrgico latinointitula-se precisamente: Ordo dedicationis ecclesiae et altaris. A dificuldade de encon-trar o termo português para traduzir, de maneira aceitável, o vocábulo Ordo (ele mesmovariável na sua significação!), levou a traduzi-lo, na maior parte dos casos, por Rito,seguido do nome da respectiva celebração, como no caso presente: Rito da Dedicaçãoda Igreja, ou simplesmente a omiti-lo diante do nome da celebração, como se pode verna edição portuguesa, agora editada, em cuja capa se lê somente: Dedicação da igreja edo altar.

Na actual reforma litúrgica, cada celebração tem o seu livro próprio, mas os livrosdas acções litúrgicas que se destinam a ser presididas por determinado ministro,sobretudo se se trata dos Sacramentos e de certos Sacramentais, como é o caso presente,esses livros, quase poderíamos chamar-lhes “esses fascículos”, integram-se numdeterminado livro litúrgico comum. É assim que tudo o que se refere a celebraçõesnormalmente presididas pelo Bispo, como é o caso da dedicação da igreja, faz parte dolivro chamado Pontifical Romano. A ele nos referiremos várias vezes.

* Nas citações, o número romano (II, V) refere-se ao capítulo do Pontifical da Dedicação da Igreja e doAltar; os algarismos referem-se aos números dentro de capítulo. Quando não se indica o capítulo com onúmero romano, entende-se que se faz referência ao capítulo segundo: Rito da dedicação da igreja.

Page 189: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 189

2. Dedicação

É este o nome tradicional para designar o rito da inauguração de uma igreja, ritopelo qual o povo cristão dedica ou consagra a Deus uma nova casa destinada às suasreuniões de oração e particularmente à celebração da Eucaristia.

Logo desde o princípio da celebração, o Bispo, na monição que dirige ao povo,assim se exprime: “Estamos aqui reunidos... para fazermos a dedicação da novaIgreja... (II, n. 38). É também assim que, mais adiante, a Oração da Dedicação seexprime: Senhor,... hoje o vosso povo fiel quer dedicar-Vos... esta casa de oração (n.62). Outrora também se dizia sagração; de facto, a palavra sagração pode ser sinónimode consagração e esta sinónimo de dedicação, como se pode verificar, mesmo no usoprofano, na fórmula com que, por vezes, o autor de um livro escreve na primeira página,dirigindo-se à pessoa que pretende homenagear com a sua obra: “...oferece, dedica econsagra”, por vezes até em abreviatura: O.D.C.

A Dedicação, rito particularmente solene e expressivo, previsto, com este nome,no Pontifical Romano, distingue-se da Bênção, também prevista no mesmo Pontifical,para a inauguração de uma igreja, mas que é mais simples e menos expressivo.

Quanto ao uso de um e outro rito, isto é, o da dedicação e o da bênção assim seexprime o Pontifical: “Convém que os edifícios sagrados ou igrejas, que se destinam, demaneira estável, à celebração dos divinos mistérios, sejam dedicados a Deus segundo oRito da dedicação da igreja... Os oratórios, capelas ou edifícios sagrados que, porcircunstâncias especiais, temporariamente se dedicam ao culto divino, convém quesejam benzidos segundo o Rito que a seguir se descreve” (V, 1).

É sobretudo pela Oração da Dedicação e pela especial abundância dos símbolosque a dedicação se distingue da simples bênção.

3. Igreja

Por igreja entende-se o edifício sagrado destinado ao culto divino, ao qual os fiéistêm direito de ir para prestarem este culto, sobretudo de maneira pública (c. 1214). Entreas igrejas ocupam lugar de maior importância a catedral e a paroquial.

O nome de capela quase desapareceu do novo Código de Direito Canónico, ehoje tem este nome ou ainda melhor o de capela privada, “o lugar destinado, comlicença do Ordinário do lugar, ao culto divino em benefício de uma ou várias pessoasfísicas” (CDC, c. 1226).

Há ainda o oratório que é “o lugar de culto destinado, com licença do Ordináriodo lugar, ao culto divino, em benefício de alguma comunidade ou grupo de fiéis que aí sereúnem, ao qual também podem ter acesso outros fiéis por concessão do Superiorcompetente” (ib., c. 1223).

Em princípio, “é conveniente que a igreja... seja dedicada ao Senhor por um ritosolene” (II, 2 e V, 1), o rito próprio da dedicação; “os oratórios e capelas privadosconvém que sejam benzidos segundo o rito prescrito nos livros litúrgicos” (CDC, c.1229; cf. V, 1).

Olhemos então para o livro que contém estes ritos, cujo título português é:Dedicação da igreja e do altar.

Page 190: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

190 PADRE JOSÉ FERREIRA

II - O PONTIFICAL ROMANO DA DEDICAÇÃOE O SEU CONTEÚDO

Consta ele de sete capítulos. Cada capítulo apresenta a palavra Rito seguida dareferência à respectiva celebração. Assim:

Capítulo I: Rito do lançamento da primeira pedra ou começo das obras para aconstrução de uma igreja.

Capítulo II: Rito da dedicação da igreja.Capítulo III: Rito da dedicação da igreja na qual já se costumam celebrar os

sagrados mistérios.Capítulo IV: Rito da dedicação do altar.Capítulo V: Rito da bênção da igreja.Capítulo VI: Rito da bênção do altar.Capítulo VII: Rito da bênção do cálice e da patena.O capítulo central é o segundo: Dedicação da igreja.E, na dedicação da igreja, o elemento central são os ritos relacionados com o

altar. Mas pode suceder que se faça a dedicação do altar sem que se faça a da igreja. Éesse rito que se apresenta no capítulo IV: Dedicação do altar. Pode até acontecer, e ocaso não é de todo raro, embora não seja de encorajar, que se faça apenas a bênção daigreja e nela a dedicação do altar. Pelo menos, tal não deve acontecer por simplescritério de brevidade. Mas a hipótese vem prevista no Pontifical (V, 22).

Cada capítulo é introduzido por uns Preliminares, alguns bastante desenvolvidos,em que se apresentam as perspectivas bíblicas, teológicas e litúrgicas da celebração esão dadas orientações pastorais da maior importância para que a celebração seja realmenteuma acção em que toda a comunidade a quem ela diz respeito para ela se prepare, acelebre com a devida participação interior e exterior, e seja por ela dinamizada comocomunidade viva, em crescimento constante, como se pede logo no rito do lançamentoda primeira pedra: Olhai com bondade, para estes vossos filhos que se reuniram, comtanta alegria, para dar início à construção da nova igreja, e concedei que eles cresçamcomo templo da vossa glória. Afinal, mais do que o edifício, são os cristãos que consti-tuem a Igreja, o templo onde reside e se manifesta a glória de Deus. Este pensamento vaiestar sempre presente em todo o rito da dedicação.

III - O RITO DA DEDICAÇÃOA) Antes de entrarmos na análise dos diversos elementos do rito da dedicação,

vejamos os principais de uma forma sumária.a) “A celebração da Eucaristia é o rito mais importante e o único necessário paradedicar a igreja”, lê-se no Pontifical (II, 15). E assim foi no princípio.b) No entanto, segundo a tradição da Igreja, quer do Oriente quer do Ocidente, diz-setambém a Oração da Dedicação, na qual é significada a intenção de dedicar a igreja aoSenhor para sempre e se pede a sua bênção (ib.). A seu tempo comentaremos.

Page 191: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 191

c) Porque a celebração da Eucaristia é o elemento mais importante do rito da dedicação,é natural que o altar seja objecto de ritos especiais. Esses ritos vão constituir um conjuntoesplêndido, cheio de simbolismo, expresso em linguagem ao mesmo tempo simples eeloquente, que os torna capazes de realizarem, com beleza e de maneira sugestiva, aquilomesmo que pretendem: proclamar o mistério do altar, ajudar a compreendê-lo e neleparticipar. Esses ritos são: a unção, a incensação e a iluminação do altar e da igreja, alémdo revestimento, que apenas diz respeito ao altar.d) Um dos ritos mais tradicionais e outrora dos mais populares, mas que hoje raras vezesse pode observar, é a colocação de relíquias de Santos, sobretudo de Mártires, debaixodo altar. E não se pode observar com frequência este rito, porque não é fácil terem-serelíquias nas condições justamente exigidas pelo Pontifical, a saber:

1) que as relíquias sejam suficientemente grandes para se poder verificar que elassão parte de corpos humanos;

2) que elas sejam verdadeiramente autênticas. No caso de não haver relíquias,omite-se tudo o que no rito da dedicação se relaciona com elas e que seria muito belo!e) Elemento hoje normal em todas as celebrações é também aqui a Liturgia da Palavrade Deus, especialmente organizada para esta celebração, como veremos.

B) Entremos então no desenrolar da celebração, embora sem estarmos nestemomento a realizá-la, o que torna mais difícil fazê-la compreender, porque a liturgia éuma acção que só se entende completamente quando se realiza e nela se toma parte.

I - RITOS INICIAIS

1. A assembleia celebrante e a entrada na Igreja

Como está previsto para outras celebrações da liturgia (sempre que não se trate decasos especiais), também a celebração da dedicação supõe, antes de mais, a assembleiada comunidade cristã, presidida pelo Bispo, rodeado dos presbíteros, sobretudo daqueles aquem é confiada a comunidade a quem a igreja se destina, dos diáconos e mais ministros.A assembleia é já o primeiro elemento da celebração, primeiro e fundamental. “Reunidoo povo” é a primeira palavra do livro litúrgico respectivo em todas as celebrações e nestatambém (cf. 29 e 30; 36-37).

Mas a entrada na igreja faz-se de um dos três modos seguintes conforme as cir-cunstâncias de lugar e de tempo.

a) Primeiro modo: Procissão

O povo reúne-se numa igreja próxima ou noutro lugar apropriado. O Bispo, comos concelebrantes e ministros, aproxima-se e saúda o povo. A primeira palavra do presi-dente é sempre a saudação, que neste caso será: A graça e a paz estejam com todos vósna santa Igreja de Deus. E a palavra Igreja aparece escrita com maiúscula, o queesclarece, logo desde o início, que não se trata da igreja – espaço celebrativo, mas daassembleia da comunidade cristã.

Page 192: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

192 PADRE JOSÉ FERREIRA

O Pontifical acrescenta que a saudação se fará com estas ou outras palavrasapropriadas, tiradas de preferência da Sagrada Escritura.

O Bispo faz depois uma monição “com estas palavras ou outras semelhantes”,para dispor a assembleia para a celebração. É o Bispo quem faz a monição. Aliás emtodo o rito da dedicação o Bispo aparece, do princípio ao fim, como verdadeiropresidente, aquele que preside e dirige, como sua cabeça, toda a assembleia celebrante.Será certamente útil a presença de um comentador; mas é o presidente, no caso o Bispo,quem, ao longo de todo o rito, realiza e comenta os sinais à medida que os vairealizando. E não o faz como quem explica, à maneira escolar, mas como quemproclama e quase como quem ora. Não é alguém que comenta de fora, mas aquele quepreside celebrando. Aliás o comentador também não deve actuar como “voz de fora”,mas como alguém que se integra na celebração.

Terminada a monição, a assembleia encaminha-se processionalmente para a novaigreja orando e cantando a antífona: Vamos com alegria para a casa do Senhor com osalmo 121; ou outro cântico apropriado. É quase sempre assim que hoje se apresentamos cânticos dos Rituais: este ou outro cântico apropriado. A razão é evidentementefacilitar a participação da assembleia, apontando o modelo. O fundamental não é cantar,mas integrar-se, cantando, na celebração. Os responsáveis pelo canto na celebração nãopodem perder de vista este critério nem os modelos que vão sendo apresentados.

Se houver relíquias de Santos para serem colocadas debaixo do altar, é muitoconveniente que junto deles se celebre a Vigília, com o Ofício de Leitura tirado doComum ou do Próprio respectivo (I. 10). As relíquias serão depois levadas nestaprocissão de entrada, transportadas por diáconos ou presbíteros, e rodeadas pelosministros ou fiéis com luzes (I, 31).

2. Entrega da Igreja ao Bispo

Chegados à porta da igreja, realiza-se um gesto muito humano, mas muito signifi-cativo da atitude espiritual de quem se dispõe a fazer a dedicação. Os representantes dosque trabalharam para a construção da igreja (as paróquias ou os fiéis da diocese, benfei-tores, arquitectos, operários) entregam o edifício ao Bispo; para isso oferecem-lhe ou osdocumentos jurídicos da posse do edifício, ou as chaves, ou a reprodução do mesmo, ouo livro com a história da sua construção e os nomes das pessoas que estiveram à frente daobra e dos operários. Um daqueles representantes pode dirigir algumas palavras ao Bispoe à comunidade, explicando, se for necessário, o que a nova igreja pretende exprimircom a sua arte e forma peculiar.

Só então o Bispo diz ao presbítero encarregado daquela comunidade que abra aporta da igreja, e convida o povo a entrar, com as palavras do salmo: “Entrai pelasportas do Senhor dando graças,...

A liturgia da dedicação é toda ela uma celebração orante e uma catequesemistagógica.

Só então o povo entra, cantando: Levantai-vos, pórticos antigos, e entrará o Reida glória, com o salmo 23.

Page 193: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 193

b) Segundo modo: Entrada solene

Se não se pode fazer a procissão, o povo reúne-se à porta da igreja, que convémestar fechada. O Bispo, os concelebrantes e os ministros aproximam-se vindos de fora. OBispo faz a saudação, a monição, e o povo canta o cântico de entrada.

Os representantes dos responsáveis pela construção da igreja fazem então aentrega dela ao Bispo, abrem-se as portas e todos entram na igreja, e tudo se processacomo no caso anterior. As relíquias dos Santos, se as houver, foram já colocadasanteriormente no presbitério.

c) Terceiro modo: Entrada simples

Os fiéis estão já reunidos dentro da igreja; o Bispo, os concelebrantes e os minis-tros vêm da sacristia, enquanto se canta o cântico de entrada: Deus vive na sua moradasanta, e não já: Levantai-vos, pórticos. De facto, já se está dentro da igreja. O mais comonos casos anteriores.

Estando agora todos na igreja, a assembleia logo se apresenta como um corpo unoe diversificado nos seus membros. Nesta sua primeira reunião na igreja que se inaugura,ela vai como que tomando posse do espaço sagrado e como que inaugurando os diversoslugares que correspondem aos diversos membros do corpo da assembleia litúrgica. OBispo dirige-se logo para a cátedra. É a primeira vez que ela vai ser ocupada por aqueleque, na assembleia, é o sinal de Cristo, como Cabeça da Igreja, e o lugar que ele ocupamanifesta claramente “o seu múnus de presidente da assembleia e guia da oração”, comoo define o Missal.1 De igual modo, todos e cada um ocupam os lugares que lhes sãodevidos.

Passando ao lado do altar, nem o Bispo, nem os concelebrantes, nem os diáconoso beijam, nem lhe prestam nenhum sinal de veneração, como é costume. O altar aindanão foi dedicado, ainda não é realmente reconhecido como altar.

3. Bênção da água e aspersão

O momento que habitualmente é ocupado pelo acto penitencial é aqui destinado àaspersão do povo, das paredes e do altar com água benzida expressamente para estacircunstância. O Bispo, acompanhado pelos diáconos, asperge o povo, as paredes daigreja, caminhando ao longo da nave, e, ao voltar ao presbitério, asperge o altar.

A aspersão é feita “em sinal de penitência e para recordarmos o Baptismo” (48),diz o Bispo na monição que a introduz. A oração da bênção encerra uma bela teologia doBaptismo, “aquele banho de salvação, pelo qual, purificados em Cristo, nos tornámostemplos do vosso Espírito”. É por isso que, no rito, se considera sempre o povo de Deuscomo o primeiro destinatário da aspersão. A aspersão é acompanhada com um cântico, e

1 Instrução Geral do Missal Romano (IGMR), 271

Page 194: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

194 PADRE JOSÉ FERREIRA

conclui-se com uma oração, cuja última frase volta a sublinhar, e agora de maneira muitoclara, que, mais do que as pedras, é a comunidade cristã que constitui a Igreja: A graçado Espírito Santo purifique o templo da sua morada, que somos nós.

4. Hino e oração colecta

O ritos iniciais da celebração concluem-se, como de costume, com o hino Glóriaa Deus nas alturas e a oração.

II - A LITURGIA DA PALAVRA

Já nos habituámos a que as acções rituais mais importantes, como é o caso dadedicação, sejam precedidas de uma liturgia da palavra de Deus, segundo o binómiofundamental de toda a liturgia: Palavra e Rito. A palavra dá sentido ao rito e o rito faz aencarnação da palavra.

A primeira liturgia da palavra celebrada na nova igreja vai ser introduzida comum rito de inauguração simples mas eloquente, que desde logo nos faz compreender quea Liturgia da Palavra é mais do que uma simples informação à assembleia, mais do queuma lição de carácter didáctico. É ela que dá o sentido ao rito, é a palavra que fazcompreender, na sua verdadeira perspectiva salvífica, o rito que se lhe vai seguir. Assimdois leitores, um dos quais leva o Leccionário da Missa e o salmista vêm junto do Bispo.Este, de pé, recebe o Leccionário das mãos do leitor e apresenta-o à assembleia do povode Deus, com estas palavras solenes:

Seja proclamada sempre nesta casa a palavra de Deus, que vos revele o mistériode Cristo e realize a vossa salvação na Igreja.

Em seguida, o Bispo entrega o Leccionário ao primeiro leitor; e este juntamentecom o outro leitor e o salmista dirigem-se, os três, para o ambão, levando o Leccionáriode modo que todos o vejam (53).

Notemos aqui, de passagem, a importância dada à Palavra de Deus na assembleialitúrgica. É aí que ela aparece como palavra viva, ressoando aos ouvidos de todos os quese integram na assembleia, “pois é o próprio Cristo quem fala quando na Igreja se lêemas Sagradas Escrituras”.2 Repare-se que é o próprio Bispo, como presidente da assem-bleia, que confia o Leccionário ao leitor. Repare-se ainda na coroa dos ministros dapalavra em volta do Bispo, os leitores e o salmista, pois que também este é ministro dapalavra de Deus e pelo mesmo título que os leitores. Observe-se também aquelacondução do livro do Bispo até ao ambão, e bem à vista de todos. Este gesto só vaiacontecer uma vez na história de cada igreja, no dia da sua dedicação; mas o mistérioque ele revela e a catequese que dele agora é feita não poderá nunca mais ser esquecidados que, no futuro, ali hão-de ouvir e cantar a palavra de Deus.

2 Concílio Vaticano II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium (SC) 7.

Page 195: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 195

Com este gesto se inaugura o lugar da palavra, o ambão, que será um dos lugaresperpetuamente presentes na igreja.

A celebração terá três leituras tiradas do Leccionário das Missas Rituais; mas aprimeira leitura será sempre, mesmo no Tempo Pascal, a passagem do Livro de Neemias(Ne 8, 1-4a. 5-6. 8-10), em que se descreve a assembleia do povo, em Jerusalém, reunidaem volta do escriba Esdras para ouvir a proclamação da lei de Deus (12 e 54), à qual sesegue o salmo 18 com o refrão: As vossas palavras, Senhor, são espírito e vida. Outrorao povo de Jerusalém, reinaugurando as suas assembleias depois do regresso de exílio,hoje a assembleia que faz a dedicação da sua igreja nova, são duas situações seme-lhantes, em que a mesma palavra de Deus convoca o povo, fala ao povo, dele escuta aresposta de aceitação, para logo selar a aliança com o sacrifício.

São estes, de facto, os elementos sempre presentes nas assembleias do povo deDeus, nas quais se faz a renovação da aliança:

– Deus chama e convoca;– Deus fala ao seu povo;– O povo escuta, acolhe e responde;– O sacrifício ou outro gesto sagrado sela a Aliança.“Para o Evangelho não se levam luzes nem incenso”; esses elementos festivos

irão aparecer dentro em breve, nos ritos que acompanham a dedicação do altar (54).Segue-se a homilia em que o Bispo “explica tanto as leituras bíblicas como o

sentido do rito” (13 e 55).A Oração Universal vai ser substituída pela Ladaínha dos Santos (13 e 56).

III - OS RITOS DA DEDICAÇÃO

Seguem-se agora os ritos próprios da dedicação.

1. A oração litânica

Como em outros casos semelhantes, a solene Oração da Dedicação vai ser antece-dida pela tão popular oração de intercessão que é a Ladainha dos Santos. Assim, toda aassembleia responde em oração à palavra que escutou na proclamação da mesma, e entradesde já em clima de oração mais intensa, que vai encontrar o seu ponto culminante naOração da Dedicação, dita pelo Bispo logo a seguir. Ao domingo e no Tempo Pascal aLadainha diz-se de pé.

2. A deposição das relíquias

Poucas serão hoje as igrejas que podem obter relíquias de Santos sobretudo deMártires, nas condições requeridas, para serem depostas debaixo do seu altar. Se ashouver, é agora o momento de fazer a sua deposição. Neste caso, o diácono ou um

Page 196: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

196 PADRE JOSÉ FERREIRA

presbítero traz as relíquias ao Bispo que as encerra no sepulcro oportunamente pre-parado para as receber, debaixo do altar; entretanto, canta-se uma antífona, por exemplo:Os corpos dos Santos foram sepultados em paz e o seu nome vive eternamente, com osalmo 14: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?

No fim, um operário fecha o sepulcro (n. 61).O rito foi agora simples; mas após a Vigília de oração junto das relíquias, depois

da procissão a caminho da nova igreja, integrando naquela assembleia em marcha, orantee festiva, as relíquias dos Santos, o rito da deposição debaixo do altar toma significaçãograndiosa, pois significa que “o sacrifício dos membros teve a sua origem no sacrifícioda Cabeça”, Cristo, conforme a palavra de S. Ambrósio: “Sucedam-se as vítimas triunfaisno lugar onde Cristo é a vítima. Mas sobre o altar, Aquele que sofreu por todos. Debaixodo altar, estes, que foram remidos pela sua paixão”. A quem não vem logo à mente apassagem do Apocalipse: “Vi sob o altar as almas dos que haviam sido degolados porcausa da palavra de Deus e do testemunho que mantinham”? (Ap. 6, 9).

“O cofre das relíquias não deve ser colocado nem em cima do altar, nem dentro damesa do altar”, como acontecia ainda em tempos recentes, “mas tendo em conta a formado mesmo, deve ser colocado debaixo do altar” (5 c).

3. A Oração da Dedicação

Como já ficou dito, “a celebração da Eucaristia é o rito mais importante e o úniconecessário para dedicar a igreja; no entanto, segundo a tradição comum da Igreja, querdo Oriente quer do Ocidente, diz-se também a Oração da Dedicação, na qual é significadaa intenção de dedicar a igreja ao Senhor para sempre e se pede a sua bênção” (15).

Depois da deposição das relíquias dos Santos, ou, se esta se não faz, logo depoisda Ladaínha, o Bispo de pé, na cátedra ou junto do altar, de braço abertos, diz, em vozalta a Oração da Dedicação.

É uma oração do tipo das grandes orações de consagração, por isso chamadasorações consecratórias, de que são outros exemplos, a oração da bênção da águabaptismal, do óleo do crisma, a bênção dos esposos, o precónio pascal e, acima detodas, a Oração Eucarística da Missa, embora aqui a estrutura tenha certos elementosmuito próprios.

A actual Oração da Dedicação (62 e III 22) é uma composição recente, mas inspi-rada em textos antigos, neste caso, no prefácio da dedicação da liturgia ambrosiana. Aoração reveste, desde o início, a expressão do louvor: “Senhor,... é nosso dever proclamaro vosso nome com cânticos de festa”, e exprime claramente a intenção que inspira toda acelebração: porque hoje o vosso povo fiel quer dedicar-Vos, para sempre, num rito sole-ne, esta casa de oração, para aqui Vos adorar, e se instruir com a vossa palavra e sealimentar dos vossos sacramentos.

E logo a oração como que se extasia diante do mistério da Igreja de Cristo, de queo templo material é, de algum modo, sinal visível, enquanto nele se reúne a assembleiado povo de Deus: Esta casa anuncia o mistério da Igreja, santificada pelo Sangue deCristo, que Ele quis apresentar a Si mesmo como Esposa gloriosa, Virgem admirável naintegridade da fé, Mãe fecunda pelo poder do vosso Espírito. E estamos a ver passar

Page 197: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 197

diante dos nossos olhos as imagens bíblicas da Igreja, que, ao mesmo tempo, revelam eocultam o seu mistério divino.

As imagens bíblicas continuam a desfilar, como numa teoria ao mesmo tempocheia de frescura, como na Bíblia elas se apresentam, e hierática, como a nossa fé écapaz de a conceber: Igreja santa, vinha eleita do Senhor, que ao mundo inteiro estendeos seus ramos, e, suspensos da árvore da cruz, os ergue até ao reino celeste. Igreja feliz,morada de Deus com os homens, templo santo, construído de pedras vivas... Igrejaexcelsa, cidade erguida no alto do monte... onde a lâmpada do Cordeiro brilha semcessar e ressoa, agradecido, o cântico dos bem-aventurados. Foi o tempo da anamnese,da evocação agradecida, da contemplação do mistério que se revela em todas estasimagens.

E passamos à epiclese, à súplica para que, ao recordar o passado, ele como que setorne, de novo, presente e seja de hoje. Por isso, humildemente vos pedimos, Senhor:derramai sobre esta igreja e este altar a vossa bênção celeste; seja esta casa lugar parasempre santificado, e este altar, mesa continuamente preparada para o sacrifício deCristo. São depois enumerados os benefícios que os homens virão buscar a esta casa deDeus: Aqui sejam destruidos os pecados dos homens pela torrente da graça divina.Aqui, os vossos fiéis, ...celebrem o memorial da Páscoa e sejam alimentados no ban-quete da palavra e do Corpo de Cristo. Aqui ressoe jubilosa a oblação de louvor... Aquiencontrem os pobres a misericórdia... e todos os homens se revistam da dignidade defilhos vossos até chegarem, exultantes de alegria, à Jerusalém do alto, a cidade do Céu.

É preciso ouvir o texto por inteiro, mas ouvi-lo na celebração, porque a liturgianão é um simples desfilar de palavras e de gestos, mas oração, cujas palavras e gestos sóvivem quando se dizem e se fazem na celebração da assembleia celebrante.

Se em vez da dedicação da igreja, se estivesse a fazer apenas a dedicação do altar– que não é possível comentar agora aqui em pormenor –, em lugar desta Oração daDedicação, far-se-ia outra (IV, 48), relacionada só com o altar, não menos bela e igual-mente cheia da evocação de acontecimentos bíblicos através dos quais se pode penetrarno mistério do altar: Nós Vos glorificamos, Senhor,... porque... quisestes que, passado otempo das figuras, o mistério do altar atingisse a perfeição em Cristo. Foi assim queNoé... Vos ergueu um altar e ofereceu um sacrifício... Abraão... ergueu um altar parasobre ele imolar Isaac... Também Moisés... edificou um altar que, aspergido com osangue do cordeiro, prefigurava o altar da cruz. Todas estas figuras Cristo as realizouno seu mistério pascal. Derramai agora... sobre este altar a vossa celeste santificação,para que ele se torne a mesa do Senhor. Seja esta pedra, para nós, sinal de Cristo... Sejaa mesa da festa aonde acorrem... os convivas de Cristo. Seja lugar de íntima comunhãoconvosco e de paz... Seja fonte de unidade da Igreja e de concórdia entre os irmãos.Seja o centro do nosso louvor e da nossa acção de graças...

4. Unção do altar e das paredes da Igreja

Num e noutro caso, na dedicação da igreja ou somente na do altar, à Oração daDedicação segue-se a unção do altar e das paredes da igreja ou somente do altar,conforme os casos. O Rito da unção bem como outros que se lhe seguem, a saber, o da

Page 198: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

198 PADRE JOSÉ FERREIRA

incensação, do revestimento do altar e da iluminação do altar exprimem, em sinais sensí-veis, alguns aspectos daquela obra invisível que o Senhor realiza por meio da Igrejaquando ela celebra os divinos mistérios, principalmente a Eucaristia” (16). São, por isso,de algum modo, ritos explicativos do mistério da dedicação.

O Bispo aproxima-se do altar, acompanhado pelos ministros, um dos quais leva aâmbula com o crisma. Antes de proceder ao gesto da unção, dirige-se a toda a assem-bleia, com esta bela fórmula, que é, ao mesmo tempo uma explicação e uma oração:Santifique o Senhor, com o seu poder, este altar e esta casa, que nós, seus ministros,agora ungimos, para que exprimam, por um sinal visível, o mistério de Cristo e daIgreja. “Derrama em seguida o santo crisma no meio do altar e nos seus quatro ângulos,e é louvável que unja também com ele toda a mesa do altar” (64). “Pela unção do crismao altar torna-se o símbolo de Cristo que é o “Ungido” de preferência aos demais e assimé chamado” (16 a). Cristo quer dizer precisamente Ungido. O gesto é um tanto es-pectacular e deve ser feito com a largueza que lhe convém.

Mas a unção vai ser estendida a toda a Igreja. Nas paredes devem ter sido previa-mente gravadas doze cruzes, ou, pelo menos, quatro. É sobre elas que serão feitas asunções pelo Bispo, auxiliado, se parecer oportuno, por presbíteros. Entretanto, canta-sea antífona: Eis a morada de Deus com os homens com o salmo 83. “A unção da igrejasignifica que ela é dedicada totalmente e para sempre ao culto cristão”, e ainda que ela é“a imagem da santa cidade de Jerusalém”, a Jerusalém do Céu (ib.).

E não deveria esquecer-se que, por sua natureza, o santo crisma é um óleo perfu-mado, que deve, por isso mesmo, deixar o altar e toda a igreja a rescender, evocandoassim “o bom odor de Cristo” (II Cor 2, 15).

5. A incensação

Uma vez ungido o altar, vai queimar-se sobre ele o incenso. Coloca-se sobre oaltar um recipiente com brasas, nas quais o Bispo lança incenso ou outros aromas; ou, sese preferir, faz-se sobre o altar um pequeno amontoado de incenso misturado compequenos pavios, aos quais o Bispo pega fogo, dizendo: Suba até Vós, Senhor, a nossaoração como incenso na vossa presença; e, assim como esta casa se enche de suaveperfume, assim a vossa Igreja exale o bom odor de Cristo. E do mesmo modo como aunção do altar alastrou pelas paredes da igreja, também agora o incenso do altar vaienvolver toda a igreja. O Bispo deita incenso em alguns turíbulos e incensa o altar, sobreo qual ainda está a ser queimado o incenso ou outros aromas.

Depois, ele próprio é incensado e alguns ministros, passando pela nave da igreja,incensam a assembleia e as paredes, enquanto se canta o texto do Apocalipse: O Anjocolocou-se diante do altar do templo, com um turíbulo de ouro na mão com o salmo137. “O incenso é queimado sobre o altar para significar que o sacrifício de Cristo, queaí se perpetua de maneira sacramental, sobe para Deus em odor de suavidade; mas tam-bém que as orações dos fiéis sobem até ao trono de Deus, por Ele aceites e a Ele agradá-veis. A incensação da nave indica que a igreja, por meio da dedicação, se torna casade oração; mas em primeiro lugar incensa-se o povo de Deus, pois ele é o templo vivo,no qual cada fiel é altar espiritual” (16 b).

Page 199: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 199

6. Revestimento do altar

Aquela mesa de pedra, dedicada pela oração, ungida com o santo crisma, perfu-mada pelo incenso que sobre ela ardeu e a perfumou em redor é “a ara do SacrifícioEucarístico e a mesa do Senhor”. Nela, sacerdotes e fiéis, numa mesma e única acção,embora com funções diversas, celebram o Memorial da morte e ressurreição de Cristo ecomem a Ceia do Senhor. Por isso, “o altar é preparado e festivamente adornado comomesa do banquete sacrificial” (II, 16 c). Assim, os ministros limpam toda a mesa do altar,cobrem-na com a toalha, e, se parecer oportuno, adornam-no com flores; colocam oscastiçais com as velas e, se for esse o caso, a cruz.

7. Iluminação do altar e da Igreja

O Bispo entrega então ao diácono uma vela acesa para que ele acenda as velas dacelebração da Eucaristia, e diz em alta voz: A luz de Cristo resplandeça na Igreja, paraque todos os povos cheguem à plenitude da verdade.

O Bispo continua a revelar-se como verdadeiro presidente da assembleia. É eleque conduz toda a celebração, inicia os gestos, e, com as fórmulas que os acompanham,vai fazendo a catequese mistagógica das mesmas, e não de maneira escolar, como quemdá uma explicação, mas de maneira orante, celebrativa, recorrendo sempre a referênciasbíblicas. A celebração é, de facto, uma nova encarnação da palavra de Deus, encarnaçãocontinuada no meio da assembleia da comunidade cristã. E o Pontifical continua:“Faz-se então uma iluminação festiva: acendem-se todos os círios, as velas postas nossítios onde foram feitas as unções e as restantes lâmpadas da igreja, em sinal de alegria”,iluminação que recorda que Jesus Cristo é “Luz para Se revelar às nações” (16 d).Entretanto, canta-se a antífona: A tua luz desponta, ó Jerusalém, e brilha sobre ti aglória do Senhor. Os povos caminharão à tua luz, com o cântico de Tobias que celebra auniversalidade do reino de Deus (69-71).

IV - A LITURGIA EUCARÍSTICA

Está preparada a sala do festim, adornada a mesa do banquete, convocados ereunidos os convidados. Parece-nos ouvir a palavra do Mestre na parábola do banquete:Vinde, tudo está preparado (Lc 14, 17). E os diáconos e os demais ministros preparam oaltar como de costume. Os fiéis trazem o pão, o vinho e a água para a celebração daEucaristia, dons que o Bispo recebe na cátedra. Entretanto, canta-se a antífona, tirada daoração de David, perante as oferendas do povo para a construção do Templo: Senhor,meu Deus, ...o vosso povo, aqui reunido, tudo Vos oferece com grande alegria (I Cr 29).É ainda uma oração de dedicação.

Uma vez tudo preparado, o Bispo vai para o altar, e, ao aproximar-se, beija-o pelaprimeira vez. É este ósculo que será doravante retomado pelo presidente sempre que seaproxima do altar para a celebração da Eucaristia. A partir deste momento, toda a assem-bleia toma nova orientação, sobretudo o presidente, os concelebrantes e os ministros.

Page 200: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

200 PADRE JOSÉ FERREIRA

Todos envolvem agora o altar. Este tornou-se o centro da celebração. Vale a pena atentarnaquela deslocação do presidente da cátedra para o altar e no que isso representa emrelação à orientação de toda a assembleia. Um dos cânticos previstos como antífona dacomunhão assim o irá cantar com as palavras do salmo 127: Como rebentos de oliveira,assim os filhos da Igreja, em volta da mesa do Senhor. É o salmo da felicidade naassembleia familiar.

Mas a dedicação não terminou; antes chegou ao seu ponto culminante, pois que acelebração da Eucaristia é a parte principal do rito da dedicação. A rubrica no entantolimita-se a dizer: “A Missa continua agora como de costume”, apenas com algumasdiferenças: não se incensam nem as oblatas nem o altar, visto que acaba de ser queimadosobre ele o incenso e de todo ele ter sido incensado em redor.

“Com a celebração do Sacrifício Eucarístico atinge-se e manifesta-se por meio desinais muito claros o fim principal para que se edifica a igreja e se constrói o altar. Alémdisso, continua o Pontifical, a Eucaristia que santifica o coração dos que a recebem,consagra de algum modo o altar e o lugar da celebração, como os antigos Padres daIgreja várias vezes afirmaram: “É digno de admiração este altar, diz S. João Crisóstomo,porque, sendo por natureza uma pedra, se torna santo, depois de ter recebido em si ocorpo de Cristo” (17).

Terminada a preparação dos dons com a Oração sobre as Oblatas (74), tudo estápreparado para a Oração Eucarística.3 É ela o ponto culminante do louvor agradecidoda assembleia ali reunida, que celebra sacramentalmente o memorial da morte eressurreição de Cristo e é a verdadeira bênção da mesa da Ceia do Senhor. O nexo entrea dedicação da igreja e a celebração da Eucaristia mostra-se de uma forma particular-mente bela no Prefácio próprio desta Missa (cf. 17 e 72).

O Prefácio (75) quase que retoma a Oração da Dedicação já antes proclamada.Parece até que “no projecto inicial, e cito Mons. Jounel, a Oração Eucarística seria aúnica oração de consagração do edifício e da actualização do sacramento do Corpo eSangue de Cristo”.4 De facto, de novo dizemos: Exultantes de alegria dedicamos àvossa majestade esta casa de oração.

O Prefácio repete que nesta casa se anuncia o mistério do Templo Verdadeiro e seprefigura a imagem da celeste Jerusalém: do Corpo do vosso Filho... fizestes o templo aVós consagrado... E constituístes a Igreja como cidade santa, edificada sobre o alicercedos Apóstolos, tendo como pedra angular o próprio Cristo Jesus; mas que há-deerguer-se, construída com pedras escolhidas, vivificadas pelo Espírito Santo, cimentadaspela caridade, cidade onde sereis tudo para todos, pelos tempos sem fim e onde brilharáperpetuamente a luz de Cristo. Por Ele, Senhor,... nós Vos louvamos, cantamos comalegria: Santo, Santo, Santo,...

3 IGMR, 534 P. JOUNEL, in A. G. MARTIMORT, L’Église en prière, Paris, ed. Desdée, vol. I, p. 233.

Page 201: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A DEDICAÇÃO DA IGREJA E DO ALTAR 201

Inauguração da Capela do SS. Sacramento

A Eucaristia, que é o Pão dos “peregrinos através da cidade terrestre” (77), é-oparticularmente, como Viático na hora de passar deste mundo para o Pai.

Na verdade, “o fim primário e primitivo da Reserva eucarística fora da Missa é aadministração do Viático; os fins secundários são a distribuição da comunhão e aadoração de Nosso Senhor Jesus Cristo presente no SS. Sacramento”.5 A inauguraçãoda capela onde se guardará o SS. Sacramento faz-se, por isso, de maneira a significar aligação da comunhão e do culto eucarístico fora da Missa com a celebração da mesma.Depois da comunhão, o SS. Sacramento é levado do altar em procissão até ao lugar dareposição, entre luzes e cânticos como: Louva Jerusalém, o Senhor, com o salmo 147.

V - DEPOIS DA DEDICAÇÃO

Terminou a dedicação. Mas a igreja lá fica, como memorial perpétuo da Aliançade Deus com o seu povo. Ela é a “casa da Igreja”; por isso mesmo, esta Igreja, povo deDeus, está para sempre convidada a voltar ali para pedir ao Senhor que o nosso coraçãocresça, cada vez mais, na verdade, para que Vos adoremos continuamente no vossosanto templo e para sempre nos alegremos na vossa presença com todos os Santos (Ora-ção final).

E voltará, muitas vezes, em cada oitavo dia, o Dia do Senhor, para a celebraçãosemanal da Páscoa; e voltará, de maneira muito particular, no dia aniversário dadedicação, celebrado, em cada ano, com o grau litúrgico de Solenidade. Nesse dia vãoacender-se, de novo, as velas colocadas por debaixo de cada uma das cruzes postas ouesculpidas ao longo das paredes da igreja e que foram ungidas no rito de dedicação; ecelebrar-se-á a Missa própria da Solenidade, como consta do Missal e no Leccionáriopara esse efeito.

Deste modo, a dedicação da igreja não será apenas acontecimento a constar dosdois exemplares da acta da dedicação que hão-de ser guardados, um nos arquivos dacúria diocesana, outro nos da igreja dedicada. Será dia memorável, do qual se poderácantar como se canta, em Quinta-feira Santa, da consagração do óleo santo com queacaba de ser dedicada e ungida: Pelos séculos sem fim seja de festa este dia; ressoe emlouvores sagrados, numa perene alegria .6

5 Ritual Romano, Sagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa, 56 Bênção dos Santos Óleos, n. 17: Hino

Page 202: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“NATAL NA PRAÇA”

Com este título escreveu, em tempos, Henri Ghéon um encantador auto de Natalque foi muito representado entre nós. Tratava-se de um auto, uma representação do“mistério” do Natal por uma caravana de saltimbancos, a lembrar as representaçõesmedievais dos mistérios da liturgia. Aliás os autos de Natal nunca deixaram de estar nanossa tradição portuguesa desde os clássicos “autos” do Mestre Gil Vicente até aos queas crianças, e adultos, ainda em nossos dias gostam de representar. Correspondem eles auma necessidade inata nos membros da comunidade que, depois de ter celebrado naigreja a liturgia de uma festa religiosa, como que a quer prolongar no adro ou na rua ouem suas casas, tão grande é a alegria e a exultação que o mistério celebrado na liturgiaprovocou no coração dos fiéis e dele brotam para além da assembleia litúrgica.

A tradição de prolongar a festa para além da celebração vem de longe e já o povode Deus do Antigo Testamento conheceu tal costume. A assembleia, reunida emJerusalém no largo fronteira à Porta das Águas no tempo de Esdras ao regressar doexílio, depois de ter escutado a leitura do livro da Lei e de ter aclamado a palavra deDeus e de afirmar que estava disposto a ser-lhe fiel, pôde também ouvir da boca dos seuschefes esta monição festiva: “Ide comer carne gorda e tomar bebidas doces, e, a quemnada preparou, mandai o seu quinhão: Não vos aflijais, que a alegria do Senhor é a vossaforça” (Ne 8, 2 ss).

Nem sempre num prolongamento tão religioso como este, mas sempre levadopelas mesmas razões profundas, o povo cristão costumou prolongar fora do templo aalegria que lá experimentou ao celebrar os sagrados mistérios do calendário cristão. E oNatal foi certamente a festa que mais motivou esse extravasamento, da igreja para a rua,do ambiente festivo da celebração. E muito naturalmente! É como o jorrar alegre efestivo da água que brota límpida das fontes da salvação. Porque se trata realmente de irbeber às fontes da salvação. O pior é se, uma vez seca a fonte ou não correndo já até aquem dela começou por beber, se acabe por a festa da rua já não ser prolongamento daque foi celebrada na igreja. Em vez do rio de águas límpidas acabou-se por não se termais do que um regato de águas turvas, gemidos de infiltrações poluídas e poluentes.Teríamos então uma degradação.

Estão neste caso muitos costumes populares, porventura ainda de certo saborreligioso, porque nasceram da celebração religiosa, mas que, à maneira que se afastaramdas suas origens, também se esvaziaram do seu conteúdo original. De cristãos chegarama pagãos. O Natal é certamente das maiores vítimas desta degradação.

Page 203: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“NATAL NA PRAÇA” 203

Do paganismo ao cristianismo

Tem-se explicado bastante, sobretudo nos últimos tempos (é recordar, porexemplo, o tema do Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica deste ano em Fátima, nosdias 23 a 27 de Julho p.p.), tem-se explicado bastante a justificação da data escolhidapela Igreja para celebrar o mistério do Nascimento de Jesus, a dia 25 de Dezembro. Foia escolha dessa data uma solução de ordem pastoral, ao propor-se aos cristãos, oriundosdo paganismo e habituados a celebrações ligadas às festas pagãs do “nascimento” doSol, isto é, da nova subida do Sol no horizonte a partir do solstício do inverno, o nasci-mento doutro Sol, Jesus Cristo, o “Sol de justiça”, na expressão do profeta Malaquias,“que traz a salvação nos seus raios” (Ml 3, 20). Tratou-se não da transposição de umtema pagão para o cristianismo, como por vezes parece ser sugerido por alguns, mas dasubstituição do tema pagão por um tema cristão para os membros da Igreja de Cristo.

O tema do Natal é, realmente, o mistério da Encarnação do Verbo de Deus, que Sefaz homem e nasce da Virgem Santa Maria. A solenidade nasceu e tomou especialincremento quando, no século IV e V, foi necessário esclarecer os fiéis, envolvidos porcorrentes heréticas, sobre o mistério da Encarnação. Mas é esse mistério o ponto departida de todas as celebrações da quadra natalícia. Não foi o folclore do Natal que deuorigem à celebração da solenidade; não foi o lume das fogueiras do Natal que, da rua, foiacender as luzes da igreja; não foram os contos da noite de Natal que deram origem aopresépio e às suas figuras principais; nem foi mesmo o presépio erguido nas igrejas queesteve na origem das celebrações litúrgicas do Natal. Foi exactamente o contrário. Aorigem do Natal e o centro da celebração cristã encontram-se, na frase lapidar de S.João, proclamada na leitura evangélica da Missa do Dia: “O Verbo fez-Se carne ehabitou entre nós” (Jo 1, 14).

Retrocesso esvaziante

Certamente que, para o povo cristão, continua a ser este mistério o centro da suacelebração do Natal. E certamente também, e muito logicamente, continua a ser dessemistério e da sua celebração que fluem para fora do templo as diversas manifestações dealegria e de comunhão com os outros que enchem, nesses dias, a vida da comunidadecristã e até da sociedade em geral. Quem desconhece hoje os muitos sinais típicos daépoca do Natal? Já não direi que todos os que deles se servem lhes conheçam averdadeira significação. E daqui a necessidade de uma reeducação cristã acerca domistério do Natal, da sua celebração e das manifestações sociais que o rodeiam. Porqueé realmente galopante a degradação de muitas dessas manifestações. Sobretudo emrelação às crianças. Para nós, adultos, criados dentro da tradição cristã das nossasfamílias e das nossas comunidades, o Natal será sempre a festa do Menino Jesus, e deJesus reconhecido como o Filho de Deus feito homem e nascido da Virgem Maria.

Para muitas crianças de hoje, nascidas e criadas já em ambientes onde pouco ounada penetra a luz do Evangelho de Jesus, afogadas em prendas, caras e sem granderelação com o espírito cristão da celebração que lhes deu origem, o Natal pode nãopassar da “festa das prendas”, como já se lhe tem ouvido chamar.

Page 204: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

204 PADRE JOSÉ FERREIRA

Depois vêm as substituições: do presépio passou-se à árvore; da troca de pren-das, que todo o aniversário feliz sugere, passou-se à exorbitância das compras; o S.Nicolau, bispo amigo das crianças e por elas tão celebrado nas regiões do norte daEuropa, degenerou no prosaico “Pai Natal” e, para mais, feito propagandista ambu-lante de bugigangas comerciais!

A data pagã serviu, na origem, para se lhe sobrepor um tema cristão, que até lheaproveitou alguns símbolos, como o da luz; agora, a festa cristã, com toda a riqueza doseu conteúdo divino e humano, pode estar em perigo de ver-se esvaziada desse conteúdoe tornar-se, para muitos, numa data sem sentido, pelo menos, sem sentido religioso, que,até no paganismo, era o que a justificava.

A necessária reeducação

A redescoberta do mistério do Natal e a participação nas acções que o celebram é,sem dúvida, o ponto de partida para não deixar adulterar o sentido da solenidade. NoNatal não se pode ficar pelo folclore, por mais bonito e encantador que ele seja. Essastradições populares, nasceram, quase sempre, em ligação com a celebração litúrgica. Oscânticos, em particular, mesmo quando cantados na rua, cantam o mistério que na Igrejaé celebrado e, por vezes, com profundidade e beleza semelhantes às da própria liturgia:nesses cantares, o Menino é ainda o Filho de Deus, nascido de Maria, a Virgem Mãe; ospastores, como os Anjos, adoram o recém-nascido, o Salvador; os presentes dos Magossimbolizam, como nos hinos litúrgicos, o Rei, o Deus e o homem, e mostram assim, nasmanifestações da rua, a continuação com as celebrações da liturgia. É bom conservartudo isto; mas ir fazendo sempre descobrir o sentido dos gestos, a significação doscânticos, o simbolismo dos sinais, não vão eles ficando apenas invólucros ocos semconteúdo.

A troca de prendas é sinal de comunhão feliz, alegre e festiva, que torna partici-pantes na mesma felicidade aqueles que assim se felicitam. Já é assim que, no Apocalipse,se manifestarão “os habitantes da terra” numa hora triste, mas para eles tida por feliz:“Alegrar-se-ão e felicitar-se-ão, enviando presentes uns aos outros” (Ap 10, 11). Mastudo tende a degenerar; da prenda simples e bem significativa de amizade e comunhãochegou-se à ostentação e ao luxo comercial dos nossos dias, quando não ao mau gosto eà deseducação para as crianças. Que contraste com a pobreza da gente de Belém, ondedorme Aquele que “sendo rico, Se fez pobre por nós” (2 Co 8, 9)!

Dos sinais não propriamente litúrgicos mas bem expressivo do mistério do Natal éo presépio: o Menino, S. Maria, S. José, os Anjos cantando nos ares, os pastores com oseu rebanho, os Magos com os seus presentes guiados pela estrela até aos pés do DeusMenino. São estes os dados bíblicos. A imaginação popular ampliou o quadro, em geralcom certa lógica, algumas vezes com uma criatividade generosa! Mas os presépioscomeçaram a rarear, ou deixaram apenas o rasto da estrela, elemento tido por maisdecorativo, ou um anjinho isolado no espaço vazio. Teimosamente, por detrás da man-gedoura, onde ela ainda existe, persistem o jumento e o boi, silenciosos e quaseadoradores. É bonito, dão um ar bucólico ao lugar. Mas o que talvez passe despercebido

Page 205: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

“NATAL NA PRAÇA” 205

é que, embora não venha nos Evangelhos, a presença destes animais junto do presépiorealiza ali uma passagem do profeta, dirigindo aos humanos uma advertência grave quenos vai deixar envergonhados. Escreve Isaías dirigindo-se ao povo ingrato: “Ouvi,ó céus, escuta, ó terra; é o Senhor quem fala: Criei filhos e enalteci-os, mas elesrevoltaram-se contra Mim. O boi conhece o seu possuidor e o jumento, o estábulo do seudono, mas Israel não conhece, o meu povo não tem entendimento” (Is 1, 2-3). Daquivieram certamente os simpáticos animais para o presépio; está-se num estábulo; mas asua presença ali, se é um mimo para o Menino, é dura acusação para os homens!Talvez eles, esses animais, os ajudem a ter entendimento e a reconhecer o seu Senhor. Eajudarão, se os soubermos escutar no seu silêncio tão eloquente!

A família no Natal

Ainda uma última consideração. O Filho de Deus encarnou, nasceu e cresceunuma família humana. De facto “o Verbo de Deus encarnou e habitou no meio de nós”.Em consequência, o Natal irradia espontaneamente um grande calor de vida familiar;mas não se define como a festa da família. É a festa do Natal do Senhor. Será certamentedia de festa na família na medida em que a família celebra o Natal do Senhor. Não temfaltado, em tempos recentes, quem, levado em ideologias não cristãs, tenha pretendidodesviar a atenção e o sentido do Natal do Senhor para os centrar principalmente, senãoexclusivamente, na família. É outro processo de regressar do cristianismo ao paganismo.No paganismo, nem tudo era mau; o que era, era incompleto, não tinha ainda conhecidoo mistério da Encarnação. Quem já o conheceu, não pode ignorá-lo nem passar-lhe aolado sem retroceder até ao mundo ainda pagão.

Mas a celebração cristã do Natal será a melhor maneira de descobrir o sentidofeliz da família, e a participação na liturgia do Natal, o meio mais eficaz para saborear osencantos desse dia e depois os prolongar na intimidade da vida familiar. Com esta mesmafinalidade foi até criada, dentro da oitava do Natal, a festa da Sagrada Família. Pois se oVerbo Se fez homem para habitar no meio de nós e finalmente reconduzir o homem àcasa do Pai, é bem justo que saboreemos essa sua entrada no nosso mundo no meio dasnossas famílias, como antes de nós o fez o próprio Filho de Deus. Assim o Natal serátambém festa na família sem se limitar a ser a festa da família.

Mas a primeira família, aquela que engloba todas as famílias, é a da Santa Igrejade Deus, Corpo que tem Jesus por Cabeça, e se manifesta e a si mesma se reconhece emcada assembleia cristã, reunida por celebrar os mistérios do Senhor. Assim também noNatal; foi para isso que esse dia nasceu, para ser o dia de a comunidade celebrar o mistériodo nascimento de Jesus, desde a assembleia litúrgica ao adro da igreja, à rua pública, àintimidade do lar.

Page 206: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DAS CINZAS DA MORTEAO FOGO DO ESPÍRITO

A Liturgia é toda ela simbólica, não que seja não real ou meramente evocativa,mas simbólica no verdadeiro e pleno sentido da palavra, isto é, que ela revela o mistérioque celebra e nele faz participar através de sinais sensíveis, que são aliás a maneiranormal que temos de entrar em comunhão com Deus e Ele connosco. É a própria lei daEncarnação: “o Verbo fez-Se carne”, viveu a nossa vida humana e nela e por elarevelou-nos o Pai e levou-nos à comunhão com o Pai.

É ainda na linguagem dos sinais que a Igreja celebra o Mistério Pascal, pois quefoi em sinais bem humanos que Jesus o viveu e no-lo mandou celebrar.

Estes sinais de que usa a liturgia são, por certo, também eles, bem humanos, masa significação última é sempre a do mundo divino. A chave para os compreendermoshá-de ser sempre procurada, em última análise, na Palavra de Deus, como o ConcílioVaticano II nos ensina: “Dela (da Sagrada Escritura) se tiram os textos que se lêem e quena homilia se explicam, bem como os salmos que se cantam; foi pela força da suainspiração que brotaram as preces, orações e hinos litúrgicos, e é dela que as acções esinais recebem a sua significação” (SC 24). É também por isso que “a liturgia, emboraseja principalmente culto da divina Majestade, encerra também grande valor pedagógicopara o povo fiel” (ib. 33).

Os sinais da liturgia não são todos iguais: há sinais maiores, e outros menores, hásinais permanentes e outros transitórios; mas seja qual for a sua importância e a suasignificação, eles são sempre, cada um à sua maneira, uma porta que se abre sobre omundo de Deus, sinal de aliança entre Deus e os homens, instrumento de comunhão entrea Terra e o Céu.

Lembra-te, homem, que és pó

Em cada ano, a comunidade cristã percorre a grande marcha pascal, do Egipto àTerra prometida, do país da escravidão à pátria da libertação, do “mundo”, de que tantofala S. João (ex.: Jo 7, 7), ao Pai, a quem o Filho nos conduz e nos leva. É um ciclo deintensa celebração litúrgica, para que o seja também de intensa vida em Cristo, este ciclode treze semanas e meia que nos encaminha de Quarta-feira de Cinzas ao Domingo dePentecostes. Todo este ciclo gira em volta do seu centro, que é o Tríduo Pascal, e, nele,a Santa Noite de Páscoa; mas parte das cinzas originais, porque são o que resta dohomem destruído desde as origens pela desobediência e orgulho que o levou a estendera mão para a árvore proibida, para, através da morte, que é a última destruição do homemmortal, o erguer, ressuscitado e agora imortal, até à direita do Pai, pelo sopro vivificantedo Espírito.

Embora não seja primitivo o rito da imposição das cinzas a abrir o Tempo daQuaresma para toda a Assembleia do povo de Deus – ele só é comum a toda a gente apartir dos séculos X-XI – ele é, no entanto, bem significativo da situação do homem, não

Page 207: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DAS CINZAS DA MORTE AO FOGO DO ESPÍRITO 207

tanto como ser mortal que naturalmente é, e que uma das possíveis fórmulas queacompanham o rito claramente exprime: “Lembra-te, homem, de que és pó...”, massobretudo como criatura desfigurada pelo pecado, essa situação degradada e degradante,que o separa de Deus e o conduz pelos caminhos opostos aos que o reconduziriam aosbraços do Pai.

Em vez desta fórmula, que acabamos de citar, o Missal propõe ainda outra, tiradaliteralmente do Evangelho e que, em lugar de abrir diante dos pés a cova escura queespera todos os mortais, convida antes a erguer os olhos para alguém que chama do altoe convida a subir para a luz, a luz do Dia do Senhor: “Arrependei-vos e acreditai noEvangelho” (MC 1, 15). “Arrepender-se” é o mesmo que, noutra versão, “converter-se”.E “converter-se” é exactamente voltar-se noutra direcção; é, neste caso, voltar-se paraDeus a quem se tinha voltado as costas. Não será tanto fugir de si, apesar do egoísmosempre nos reter, nem tanto “optar por uma nova concepção de vida, como voltar-se paraAlguém que chama”. Esse Alguém é Aquele que nos oferece, em vez de cinza, a vida, avida nova em Cristo ressuscitado, e nos aponta o caminho novo para a encontrar, o doEvangelho de Cristo, Ele que de Si mesmo disse que era o Caminho e a Vida.

Da terra da escravidão ao paraíso reencontrado

O tipo do Tempo da Quaresma encontra-se originariamente no Êxodo, na saída dopovo de Deus do Egipto, para ele terra de exílio e escravidão, através do Mar e depois dodeserto, e a entrada na Terra prometida por Deus a Abraão e à sua descendência.

Por sua vez, Jesus, antes de iniciar a sua vida em público, quis retomar este signi-ficativo número de quarenta dias no deserto, e aí experimentar a tentação do Inimigo,que já tentara e vencera o primeiro homem no paraíso, mas para agora o vencer a ele, ede vez, e, de novo, introduzir o homem no paraíso, não naquele donde fora expulsodepois de estender a mão ao fruto proibido, mas naquele outro onde ele se poderáalimentar da verdadeira “árvore da vida plantada no paraíso do meu Deus”, como oSenhor promete, no Apocalipse, ao vencedor (Ap. 2, 7).

O Êxodo do povo de Deus da Antiga Aliança é já entendido na Sagrada Escrituracomo itinerário de libertação e de salvação, como passagem da morte à vida, das trevasà luz, da noite ao dia, como uma Páscoa, e (como tal) é apresentado. A marcha dosIsraelitas pelo deserto não os desgastou, antes os ia fazendo compreender que era oSenhor quem os conduzia e os libertava.

À tentação nascida da fome respondia o maná vindo do céu; na sede que osatormentava, jorrava-lhes a água do rochedo; entre a lembrança da terra que tinhamdeixado, que, embora de tristes recordações, já lhes fazia saudades, e a esperança, cadavez mais distante, daquela para onde se encaminhavam, nascia-lhes o desânimo e amurmuração impaciente, que tantas vezes Moisés teve de acalmar; mas, sobre o silênciodo deserto, o Senhor fazia ouvir a sua voz, forte mas encorajadora, lá do alto do Sinai, aoferecer-lhes a Aliança e a convidá-los a aceitá-la.

Ao longo da Quaresma, que nos arranca às Cinzas para nos conduzir ao monte deDeus, Cristo na sua Igreja vai repetindo os antigos prodígios, agora já não como figuras,mas como realidades, não criados por nós, mas oferecidos por Ele. Ao homem tentadono Primeiro Domingo responde com o homem transfigurado no Segundo, apontando

Page 208: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

208 PADRE JOSÉ FERREIRA

assim, quase desde o início da Quaresma, o termo a que ela nos vai conduzir. À sede doscatecúmenos, nesta altura já “eleitos” para os Sacramentos da iniciação cristã na noite daPáscoa, vai sendo anunciada a água viva, que Jesus, no Terceiro Domingo promete àmulher samaritana.

À escuridão dos que se encontram perdidos na noite, ou porque ainda não foramiluminados pela luz do Dia do Senhor ou porque a deixaram extinguir como as virgensloucas do Evangelho, responde o Senhor com o banho da regeneração baptismal e a luzque é Ele próprio, quando, no Quarto Domingo, ilumina o cego de nascença e o mandalavar-se na piscina de Siloé. A todos os que carregam sobre si a sentença de Deus a Adãodepois do primeiro pecado: “No dia em que comeres do fruto proibido, tornar-te-áspassível de morte” (Gen. 2, 17), a todos esses, catecúmenos ou já fiéis, Ele oferece aressurreição e a vida, no Quinto Domingo, ao ressuscitar Lázaro. E, chegando ao Sextodomingo, o último da Quaresma, já à vista da Terra Prometida, a celebração da Paixãovem precedida, num prenúncio de vitória, da solene procissão dos ramos, a comemorar“a entrada de Cristo Senhor em Jerusalém para consumar o seu mistério pascal”(Missal). Por isso, a própria Missa da Paixão pode abrir com os versículos do salmo 23:“Levantai-vos, pórticos antigos, e entrará o Rei da glória.” É o grito dirigido às portas doparaíso, fechadas desde o pecado de Adão, mas que o novo Adão, Cristo Senhor, abriucom a chave da Cruz.

Sepultados com Cristo, com Ele ressuscitados

Chegamos ao termo da travessia do deserto quaresmal. Enfraquecidos pelo jejumou por nos vermos sempre obrigados a procurar o pão com o suor do nosso rosto,segundo a sentença dada ao homem ao ser lançado fora do paraíso perdido (cf. Gén, 3,19), fortalecidos, porém, pelo pão da Palavra de Deus, como outrora Elias, alimentado,na travessia do deserto durante quarenta dias, a caminho da montanha de Deus, pelo pãovindo do Céu (I Re. 19), é o próprio Senhor quem agora nos põe a mesa da Ceia pascal:primeiro, logo a abrir o Tríduo Sagrado, na Eucaristia vespertina de Quinta-feira Santa,para comemorar a sua instituição, mas principalmente na Noite-Santa, ao celebrarmos averdadeira Eucaristia pascal. É ela que leva a seu termo a iniciação cristã dos baptizadosnessa noite e que une, no mesmo banquete das bodas do Cordeiro, toda a comunidadecristã, ao acolher os recém-baptizados como “neófitos”, isto é, como novos rebentos davideira mística, que é o Senhor (Jo 15, 1 ss), e como “cordeiros recém-nascidos”,acabados de sair das “fontes da água-viva”, iluminados pela “glória do Senhor”(Resp. da 5ª-fª da I Sem. Pásc.).

Eles, os neófitos, acabam de fazer a passagem, são agora um só em Cristo (Rom 6,5; VIII leit. Vig. Pasc.), que antes e à frente de todos passou do Egipto à “Terra ondecorre o leite e o mel”, (Ant. entrada, 2ª-fª Pásc.), da morte à vida, “deste mundo para oPai” (Jo 13, 1). E, com os neófitos, todos os outros fiéis, que, depois deles, de novorenunciam ao mal e fazem profissão da fé cristã, todos como que surgem das suaspróprias cinzas e vêem-se agora iluminados com a luz do Círio pascal, sinal de Cristoressuscitado. Passaram da noite ao Dia, como no princípio, quando Deus fez o Céu e aTerra. Então, “fez-se a luz!” E foi o “primeiro dia” (Gén. 1, 5; I leit. Vig.). Agora, denovo; “No primeiro dia... O Crucificado? Ressuscitou” (Mc 16, 2. 6; Evang. Vig.). Não

Page 209: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

DAS CINZAS DA MORTE AO FOGO DO ESPÍRITO 209

mais as cinzas do túmulo, mas a frescura da manhã e da vida; não mais as trevas da noite,mas a luz da “estrela resplandecente da manhã”, como o próprio Senhor a Si mesmo Seapresenta no Apocalipse (Ap. 22, 16).

O Vento e o Fogo do Espírito

A noite deu à luz o Dia, a Vigília inaugurou o Tempo da Páscoa, o túmulo vazionão é mais a sepultura do morto mas o testemunho de que o que esteve morto agora vive,Ele que detém as chaves da morte e do abismo (Sáb. Santo, antífona de Laudes). Sobre otúmulo de José de Arimateia passou um sopro de vida, como, no princípio, sobre o caosprimitivo, o espírito de Deus pairava sobre as águas (Gén 1, 2). Então, seria apenas ovento, embora já chamado “espírito de Deus”; agora é o sopro vital de Deus, o seuEspírito, que faz surgir do túmulo o novo Adão, o Senhor Jesus, que tinha sidocrucificado e sepultado; e, com Ele, todos os que, pelo pecado, estavam mortos, e que,pela graça da Páscoa do Senhor, passaram também da morte à vida, ou, segundo a pró-pria palavra de Jesus a Nicodemos, nasceram da água e do Espírito Santo (Jo 3, 5).

O Tempo Pascal vai ser a Páscoa continuada, como “um só dia de festa”, maisainda, como um “grande Domingo” (CR 22). Ele é o tempo do Espírito. Assim o SenhorJesus o inaugurou: “Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, Jesus veio colocar-Seno meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco...” Dito isto, soprou sobre eles edisse-lhes: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20, 19...22; Dom. I Pásc. e Dom. Pentec.).Não deixa de ser significativo que a leitura evangélica de que extraímos esta passagemseja lida no Domingo de Páscoa e no Domingo de Pentecostes, a abrir e a fechar todo oTempo Pascal. Este é realmente o Tempo do Espírito, do Espírito que Se revela e Secomunica no sopro (sopro, vento, espírito exprimem-se com a mesma palavra).

Foi já com o sopro que Deus insuflou a vida no homem que tinha modelado dobarro da terra, segundo a expressiva linguagem simbólica do livro do Génesis (Gén, 2,7). É também agora pelo Espírito de Deus, o Espírito Santo, que já ressuscitou Jesus deentre os mortos, que a vida do Ressuscitado é comunicada aos membros do seu Corpomístico, a Igreja. A Terra, reduzida a cinzas pelo pecado do homem, é agora vivificadapelo sopro do Espírito. As cinzas, a que a morte reduzira o homem, retomam agora avida pelo fogo do Espírito Santo. Foi assim que, no quinquagésimo dia da Páscoa, o diade Pentecostes, o Espírito Santo Se manifestou e Se comunicou aos discípulos, no ventoe no fogo: “Ao chegar o dia de Pentecostes, fez-se ouvir, lá do Céu, um rumor semelhan-te a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceu-lhesuma espécie de línguas de fogo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheiosdo Espírito Santo” (Act. 2, 1...4; I leit. Dom. Pentec.).

Assim começou o tempo da Igreja; assim ele se continua hoje na celebração daliturgia da Igreja. Da Quarta-feira de Cinzas ao Domingo de Pentecostes, um sopro devida, que não mais há-de morrer, e dum fogo, que arde sem consumir, como na sarçaardente do Sinai, e ilumina sem jamais se apagar, como se diz do Círio na noite pascal,vão-nos fazendo recordar toda a história da salvação, e, mais, vão-nos integrando nela,de sorte que cada um de nós pode ressurgir da própria cinza até ser arrebatado no ventoe no fogo do Espírito, como já, no Antigo Testamento, o prefigurou a ascensão de Elias(II Re 2, 11), e, na plenitude dos tempos, o realizou o mistério pascal do Senhor.

Page 210: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

AS ORDENAÇÕES

Chegados ao fim do ano escolar, é a altura em que habitualmente os candidatos àsOrdens Sacras nelas são constituídos pelo rito chamado a Ordenação. Terminaram a suapreparação académica, estão agora mais livres para a última preparação espiritualdurante alguns dias de retiro e, celebrando-se, nesta altura, a Ordenação, eles ficamassim aptos a poderem entrar em serviço no início do próximo ano pastoral no fim dasférias do verão. Este parece ter sido já o critério seguido na antiga Roma para a data dasOrdenações, nesse tempo nas Têmporas de Dezembro, que ocorriam não longe do iníciodo ano civil.

1. O vocabulário e a sua significação: Ordem, Ordenação, Ordenar 1

Ordem

A palavra latina ordo tem, na origem, como sempre acontece, significaçãomaterial, e significa ordem, renque, fileira, determinada maneira de dispor as coisas,como se pode ler no verso do poeta: “Pone ordine vites, põe as videiras em linha”2. Maslogo significou também determinado grupo, categoria, condição, classe de pessoas,como ainda hoje dizemos: Ordem dos advogados, dos médicos, dos engenheiros, etc. Apalavra, que, na antiguidade latina, não tinha conotação religiosa, não teve dificuldadeem ser adoptada pelos cristãos para significar a situação específica dos membros doclero dentro do povo de Deus. E assim, desde o século IV, eles são designados pelopróprio direito imperial como ordo ecclesiasticus, o ordo da Igreja. Aplicado assim otermo ao conjunto dos que detinham na Igreja a condução do povo de Deus, os pastores,não foi difícil aplicá-lo a cada um dos diferentes graus da hierarquia e falar-se da Ordemdos Bispos, da Ordem dos Presbíteros, da Ordem dos Diáconos, como chegou até nós.Esta significação, se bem que nem sempre presente no espírito das pessoas quando falamdas Ordens Sacras, continua a ser verdadeira, e pode encontrar até certas manifestaçõesem momentos privilegiados, como no Sínodo dos Bispos, na assembleia do Conselhopresbiteral, e sobretudo na celebração litúrgica, onde é manifesta a situação específicade cada uma das três Ordens, desde a função que desempenham até ao lugar que ocupamna assembleia.

Ordenação

Ordenação é um termo activo, significa uma acção, a acção pela qual alguém éintroduzido em determinada Ordem. De facto, na Ordenação não se trata tanto dereceber uma Ordem, como de ser introduzido e recebido numa Ordem. E dado que as

1 Sobre este tema vid. A. G. MARTIMORT, L’Église en prière, III, p. 154 ss.2 VERGÍLIO, Buc. I, 73.

Page 211: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

AS ORDENAÇÕES 211

Ordens eclesiásticas não se destinam a meras funções administrativas, mas ao exercícioda própria missão pastoral do Senhor Jesus no meio do seu povo, e ainda porque as suasfunções se exercem, no grau mais alto, no ministério litúrgico, a entrada nas diversasOrdens não se fará por simples nomeação, diria burocrática, mas exige uma consagração,que se faz num acto litúrgico. É a esse acto que se chama Ordenação. A Ordenação é acelebração do Sacramento da Ordem, que o Código de Direito Canónico assim apresenta:“Pelo sacramento da Ordem, alguns de entre os cristãos são, por instituição divina,marcados com um carácter indelével e, por ele, constituídos ministros sagrados, e sãoconsagrados e deputados para que, cada qual no seu grau, desempenhando as funções deCristo Cabeça de ensinar, santificar e reger, apascentem o povo de Deus” (c. 1008).

Os Preliminares do novo Pontifical das Ordenações dizem mais resumidamente,apoiando-se na Constituição conciliar Lumen Gentium, que “pela sagrada Ordenaçãoalguns fiéis são instituídos em nome de Cristo e recebem o dom do Espírito Santo paraapascentarem a Igreja pela palavra e pela graça de Deus” (LG, n. 28).3

Ordenar

É este o termo que correntemente se usa para significar presidir à celebração daOrdenação. A perspectiva antiga de entrar e ser recebido numa das Ordens, de que acimase falou, foi deixando de estar sempre presente em quem fala de Ordenações, e passou adizer-se ordenar e dar ou conferir Ordens e, consequentemente, a dizer-se também pedire receber Ordens, falando-se do candidato.

Logicamente, ao que preside à Ordenação chamar-se-á ordenante, mesmo que setrate da Ordenação de um Bispo, que também se designa por Ordenação, e não já, comoanteriormente, por sagração; e daquele a quem é conferido a Ordem diz-se que éordenado. É esta também a linguagem constante de todo o ritual da Ordenação presenteno Pontifical Romano.

2. Reformas recentes dos ritos das Ordenações

Antes da renovação dos ritos, que sofreram nos últimos tempos várias modifi-cações, foi a própria concepção da Ordem que se viu, já neste século, reposta na suadevida perspectiva a que vinha sendo desde as suas origens, mas que, no andar dos tem-pos, se tinha tornado menos transparente e, por isso, menos bem compreendida.

Já em 1944, Pio XII reviu certa terminologia em uso no Pontifical Romano, comoa que designava os Bispos que acompanham a ordenante principal na ordenação de umBispo; eles passaram a ser chamados consagrantes, e não já assistentes, como ante-riormente se dizia. Agora, a última reforma evita até aquela terminologia. Eles são, na

3 De Ordinatione Episcopi, presbyterorum et diaconorum, editio typica altera, promulgada pela Con-gregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos em 29.06.1989, Preliminares Gerais, n. 1

Page 212: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

212 PADRE JOSÉ FERREIRA

realidade, verdadeiros concelebrantes, em conformidade com a indicação do Pontifical:“Segundo tradição vinda desde os tempos antigos, na celebração da Ordenação, o Bispoordenante principal deve juntar a si pelo menos mais dois Bispos”.4

Em 1947, pela célebre Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis, ainda omesmo Papa Pio XII esclareceu quais eram os elementos essenciais da Ordenação doBispo, do Presbítero e do Diácono, que são, como sempre foram, a imposição das mãose a oração que a acompanha. E recorda ainda certas perspectivas doutrinais que virão aencontrar expressão mais desenvolvida no Concílio Vaticano II, sobretudo ao falar-se dacolegialidade, como sejam: as Ordens só se podem compreender cabalmente integradasno mistério da Igreja; o episcopado é verdadeiro sacramento, e o rito que cria o Bispo,uma verdadeira Ordenação, e não apenas uma sagração do tipo da sagração dos reis,como anteriormente o poderia sugerir o lugar que esse rito ocupava no Pontifical desdea Idade Média, ou seja, a seguir àquela e separada das restantes Ordenações; a Ordenaçãodo Bispo faz dele membro do colégio episcopal, sucessor e continuador do colégio dosApóstolos; a Ordenação do presbítero torna-o membro do presbitério, o colégio dos coo-peradores da Ordem episcopal, a que o Bispo preside; episcopado e presbiterado sãoduas Ordens sacerdotais, dois graus diferentes do sacerdócio ministerial ou do ministériosacerdotal, o que é o mesmo; o diaconado não é Ordem sacerdotal, mas ministerial, nosentido estrito de ministério, segundo o antigo esclarecimento de S. Hipólito: “O diáconoé ordenado não para o sacerdócio, mas para o ministério do Bispo, para fazer o que estelhe indicar”;5 o diaconado não é, em si, um passo para o presbiterado, embora, na disci-plina actual, todo o que vier a ser ordenado presbítero tenha de ter estado previamente naOrdem dos diáconos; o diaconado pode, por isso, ser um ministério permanente, como,de novo, está a acontecer em toda a Igreja.

Em 1972, Paulo VI completou esta restauração: foi suprimida a Ordem do subdia-conado e o que até então se chamou Ordens Menores. Destas, umas foram suprimidas,como o ostiariado e o exorcistado; as outras passaram a chamar-se simplesmente minis-térios e não já ordens, e são o acolitado e o leitorado. Estes ministérios não são objectode Ordenação, mas somente de Instituição. E, pela própria natureza das coisas, estesministérios não devem ser conferidos juntamente com as Ordenações.

Estes princípios, aqui enumerados um pouco a esmo, muitos deles de ordemdoutrinal, determinaram formulações de ordem jurídica e sobretudo litúrgica, quelevaram necessariamente à revisão dos ritos e do respectivo livro litúrgico que osorienta, um sector do Pontifical Romano, o ritual das Ordenações.

Foi assim que, logo a seguir ao Concílio, em 1968, apareceu o volume intitulado,em português, Ordenação de Diácono, Presbítero e Bispo.6 Este volume contém exclu-sivamente, pelas razões atrás expostas, os ritos das Ordenações, não os das Instituições;estes apareceram posteriormente num fascículo à parte em 1972.7

4 Ib., 16.5 HIPPOLYTE, La Traditon Apostolique, ed. B. BOTTE, Munster-W, Ashcendorff, 1963, p. 23.6 Ordenação de Diácono, Presbítero e Bispo, ed. Comissão Episcopal de Liturgia, 1970.7 Instituição dos Leitores e dos Acólitos, ed. Secretariado Nacional de Liturgia, 1973.

Page 213: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

AS ORDENAÇÕES 213

“Agora, porém, (em 1989), tendo em conta a experiência resultante da reformalitúrgica, pareceu oportuno preparar uma segunda edição típica, que, em relação àprimeira, contém entre outros os seguintes elementos peculiares:

1. À semelhança dos outros livros litúrgicos, esta edição foi enriquecida comPreliminares, onde se expõe a doutrina do sacramento e se apresenta com mais clareza aestrutura da celebração.

2. Alterou-se a distribuição do livro, para que, começando pelo Bispo, o qualpossui a plenitude da sagrada Ordem, se compreenda melhor o modo como os pres-bíteros são os seus colaboradores e os diáconos são ordenados para o serviço do Bispo.

3. Na Oração de Ordenação quer dos presbíteros quer dos diáconos, as palavrasque pertencem à essência do rito e que por tal motivo são exigidas para a validade doacto permanecem as mesmas. Certas locuções, porém, foram mudadas, acrescentan-do-se algumas expressões tiradas do Novo Testamento, de modo que a oração possamanifestar com mais clareza aos eleitos e aos fiéis a noção do presbiterado e do diacona-do que têm a sua origem em Cristo Sacerdote.

4. Os ordinandos de presbítero são interrogados, de modo mais explícito, acercado exercício do ministério da reconciliação e da celebração da Eucaristia.

5. O rito da aceitação do celibato sagrado... passa a inserir-se na Ordenação dosdiáconos. Por mandato especial do Papa João Paulo II a disciplina foi alterada, de modoque, a partir de agora, mesmo os eleitos que emitem votos perpétuos num Instituto Reli-gioso são obrigados, na própria Ordenação de diáconos, a abraçar o celibato sagradocomo propósito específico ligado por direito à Ordenação.

6. De igual modo, os membros dos Institutos de vida consagrada passam a sertambém interrogados, na ordenação para o diaconado e o presbiterado, acerca da reve-rência e obediência ao Bispo diocesano para favorecer a unidade de todos os clérigos emcada Igreja”.8

Embora talvez um tanto fastidiosa esta enumeração de algumas das característicasda nova edição do rito das Ordenações, extraídas do Decreto da Congregação do CultoDivino e da Disciplina dos Sacramentos que a preparou, pareceu ser ela um resumo claroe sucinto que pode facilitar depois a compreensão dos ritos e das modificações que elessofreram.

3. As Ordens no mistério da Igreja

As Ordens sacras só podem entender-se correctamente situando-as no própriomistério da Igreja. Se se perder esta perspectiva, logo aparecem outras menos correctase sempre vesgas ao olhar-se para os clérigos e para cada uma das suas Ordens. O passadoe o presente são disso testemunho abundante. É sempre este o perigo de se não entenderemcorrectamente os sinais.

8 Decreto de promulgação da nova edição do Pontifical das Ordenações.

Page 214: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

214 PADRE JOSÉ FERREIRA

a) Poder e graça

Frequentemente se olha para os que entram nas Ordens como pessoas detentorasde poderes, e estes, muitas vezes, entendidos à maneira dos poderes temporais de quesão detentores os governantes dos povos. O equívoco já existiu no pretório de Pilatos!9

É tendência entre nós, ocidentais, tudo definirmos pelos critérios de poder. Comfrequência, do ministro dos sacramentos se diz que ele tem o poder de baptizar,absolver, etc. Algumas formas sacramentais podem induzir a tal: “Eu te baptizo.... eu teabsolvo...”. Alguém chamou já a atenção para o facto de os cristãos do Orientepreferirem falar de graça onde nós pensamos em poder. O ritual da ordenação começa,no entanto, logo por esclarecer: “Pela sagrada ordenação alguns fiéis são instituídos emnome de Cristo e recebem o dom do Espírito Santo para apascentarem a Igreja pelapalavra e pela graça de Deus”.10

Se assim são os princípios, também assim é a prática de que a Igreja se serve nacelebração das Ordenações. Estas são, de facto, celebradas, como também todos osSacramentos, em oração e por meio da oração. Nunca o Bispo ordenante se dirige aoordinando de modo imperativo no rito essencial da Ordenação; é orando a Deus queinvoca para o que está a ser ordenado a graça e o dom do Espírito. Escutemos a fórmulacentral e essencial de cada uma das Ordens, ela mesma incluída numa solene oração, aOração de Ordenação:

Na ordenação do Bispo: “Enviai agora sobre este eleito a força que de Vósprocede, o Espírito soberano, que destes ao vosso amado Filho Jesus Cristo, e Eletransmitiu aos santos Apóstolos, que fundaram a Igreja por toda a parte, como vossotemplo, para glória e perene louvor do vosso nome”.11

Na ordenação do presbítero: «Nós Vos pedimos, Pai todo-poderoso, constituí estevosso servo na dignidade de presbítero; renovai em seu coração o Espírito de santidade;obtenha, ó Deus, o segundo grau da Ordem sacerdotal que de Vós procede, e a sua vidaseja exemplo para todos”.12

Na ordenação do diácono: “Enviai sobre ele, Senhor, nós Vos pedimos, o EspíritoSanto, que o fortaleça com os sete dons da vossa graça, a fim de exercer com fidelidadeo seu ministério”.13

É certo que a graça e o dom que para os ordinandos são pedidos os tornamcapazes de serem sinais e instrumentos da acção de Deus no meio do seu povo, que é aIgreja; mas isso não basta para que se considerem as Ordens eclesiásticas comoplataformas de poder à maneira dos poderes deste mundo. A oração conclusiva das La-dainhas da ordenação do presbítero encontrou a expressão exacta para definir o quepretendemos dizer: “Senhor nosso Deus,... derramai sobre este vosso servo... a bênçãodo Espírito Santo e o poder da graça sacerdotal...”.14

9 Jo, 19, 10-11.10 De Ordinatione..., n. 1; cf. L, G., n. 1111 Ib., n. 83.12 Ib., n. 131.13 Ib., n. 207.14 Ib., nn. 43, 128 e 156,

Page 215: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

AS ORDENAÇÕES 215

b) A Ordem e as Ordens

Como acima ficou dito, o termo global Ordem (ordo) que designou, desde aorigem, o conjunto dos pastores do povo de Deus, designou também logo cada um dosgraus de que se compõe a hierarquia sagrada. Isto mesmo é afirmado no rito daordenação, e não como explicação lateral, mas dentro da própria Oração de Ordenaçãodo diácono: “Senhor,... Vós fazeis crescer e dilatar-se o Corpo de Cristo, que é a vossaIgreja, diversificada nos seus membros e em dons celestes...: é o vosso templo que seedifica. Para assegurar esse crescimento,... estabelecestes o ministério sagrado em trêsordens distintas”.15 Esta última expressão: “o vosso templo que se edifica” e “oministério sagrado em três ordens distintas”, organiza e sintetiza a estrutura deste Corpode Cristo, que é a Igreja, realidade humana e mistério celeste. “Corpo de Cristo” e “novotemplo” de Deus, como se exprime o texto latino, a Igreja é una, na unidade de um sócorpo, porque Corpo de uma só e única Cabeça, Cristo, e Corpo diversificado, porque,vivendo ainda no espaço e no tempo desta criação, existe necessariamente em estruturashumanas.

Daí, a diversidade das Ordens do ministério sagrado. E recordamos, neste contex-to, textos já, em parte, citados: “A Ordem dos Bispos sucede no magistério e no múnuspastoral ao Colégio dos Apóstolos, e, o que é mais, nela continuamente persevera ocorpo apostólico”.16 “Os presbíteros têm parte no sacerdócio e missão do Bispo... Sãocooperadores da Ordem episcopal.... constituem com o Bispo um único presbitério comdiversas funções”,17 e são constituídos no “segundo grau da Ordem sacerdotal”.18 “Aosdiáconos foram impostas as mãos, não para o sacerdócio, mas para o ministério.Fortalecidos com a graça sacramental, servem o povo de Deus, em união com o Bispo eo seu presbitério, no ministério da liturgia, da palavra e da caridade”, diz o Pontifical,19

citando literalmente a Constituição conciliar Lumen gentium (n. 29).

c) Para a edificação do novo templo de Deus

A ordenação, que celebra o sacramento da Ordem, confia ao que é ordenado umserviço, um ministério sagrado. Se a palavra Ordem, e cada um dos seus graus ouOrdens, designa determinada categoria de pessoas assumidas de entre o povo cristão, osque são ordenados são-no para servirem à edificação do novo templo de Deus. Nãoficam de fora daquele povo a quem servem, nem se lhe contrapõem; antes lhe são dadoscomo pastores, como claramente o exprime o texto atrás citado: “Pela sagrada Or-denação alguns fiéis são instituídos em nome de Cristo e recebem o dom do EspíritoSanto para apascentarem a Igreja pela palavra e pela graça de Deus”.20 Seja, pois, qual

15 Ib., nn. 207 e 235.16 Ib., n. 12.17 Ib., n. 101.18 Ib., n. 131.19 Ib., n. 5.20 Ib., n. 1.

Page 216: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

216 PADRE JOSÉ FERREIRA

for o grau da Ordem em que alguém é constituído, ele é sempre um grau, uma ordem, do“ministério sagrado”, do serviço no reino de Deus e para o reino de Deus. Honra, se a é,ela provém de que toda a participação no ministério sagrado é participação no ministériodo Filho de Deus, que não veio a este mundo para ser servido, mas para servir. Mas, é, defacto, grande honra servir a Deus e ao próximo, sobretudo nos ministérios que o próprioSenhor Jesus Cristo, o Servo de Deus por excelência, a nós confiou.

E este “serviço” a que se destina o sagrado ministério é sempre, em última análise,a edificação do novo templo de Deus, que é a Igreja: “É o vosso templo que se edifica”,“Corpo de Cristo a crescer e a dilatar-se”, como expressamente diz a Oração deOrdenação do diácono.

A ordenação é, na realidade, momento privilegiado para compreender estecrescimento e esta dilatação, e sentir como, de geração em geração, se vai edificando onovo templo de Deus. E é também privilegiado para penetrar no mistério da Igreja,Corpo de Cristo, uno e diversificado, comunidade humana e Igreja de Deus, dom doEspírito Santo e talento confiado a homens para por eles ser administrado em favor dosseus irmãos, “a fim de que a mensagem do Evangelho se propague até aos confins domundo e as nações, congregadas em Cristo, formem o povo santo de Deus”.21

4. O rito da Ordenação

a) Sentido eclesial

Tudo na Ordenação manifesta que ela é uma acção eclesial, e não diz respeitoapenas ao ordinando. O lugar, o dia escolhido, a comunidade cristã e a sua assembleiacelebrante, tudo aparece na Ordenação como sinal do sentido eclesial da mesma.

O lugar. “O Bispo, que preside como cabeça a determinada diocese, deve serordenado na igreja catedral. Os Bispos auxiliares,... na igreja catedral ou numa igrejaimportante da diocese”.22 A Ordenação dos presbíteros deve ser celebrada “na igrejacatedral ou nas igrejas das comunidades de origem de um ou de vários candidatos,ou noutra igreja de maior importância. Se forem de alguma comunidade religiosa, aOrdenação pode realizar-se na igreja da comunidade onde eles vão exercer o seuministério”.23 O mesmo critério quanto aos diáconos.

O tempo. O dia indicado é sempre o domingo ou um dia festivo; em relação àOrdenação do Bispo, acrescenta-se ao dia festivo “principalmente dos Apóstolos”.Em qualquer dos casos, exceptuam-se sempre o Tríduo Pascal, a Quarta-Feira de Cinzas,toda a Semana Santa e a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos.24

21 Ib., nn. 131, 159 e 285.22 Ib., n. 21.23 Ib., n. 108.24 Ib., nn. 22, 109 e 184.

Page 217: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

AS ORDENAÇÕES 217

A comunidade. Já o lugar e o dia de que se falou são claramente significativos darelação que existe entre as Ordenações e a comunidade. Mas insiste-se de maneira maisexpressa, tanto no que se refere à preparação como à celebração: “A Ordenação devecelebrar-se dentro da Missa, na qual os fiéis, sobretudo no domingo, participam activa-mente do mesmo altar a que preside o Bispo rodeado do seu presbitério e dos ministros”.Esta Missa deve ser celebrada “segundo o rito da Missa estacional”, em que “o Bispo, naqualidade de sumo sacerdote do seu rebanho, celebra a Eucaristia, mormente na igrejacatedral, rodeado do seu presbitério e ministros, com a participação plena e activa detodo o povo santo de Deus”. “Deste modo, se unem a principal manifestação da Igreja ea celebração das sagradas Ordens com o Sacrifício eucarístico, fonte e ponto culminantede toda a vida cristã”.25

b) Estrutura do rito da Ordenação

“Os elementos essenciais de qualquer Ordenação são a imposição das mãos e aOração de Ordenação. A oração de bênção e de invocação determina a significação daimposição das mãos”.26 Deste modo, o essencial do rito da Ordenação é simultaneamentesimples, claro e solene: um gesto, a imposição das mãos, e a Oração de Ordenação, comonos tempos apostólicos e durante muitos outros posteriores àqueles.

Este rito essencial é precedido, em todas as Ordens, de alguns ritos preparatórios,a saber, a apresentação do eleito ou a eleição dos candidatos, a homilia, a promessa doseleitos e a súplica litânica (ladaínha), e seguido dos ritos explicativos, diversos paracada Ordem, através dos quais se indicam os ministérios confiados pela imposição dasmãos e a invocação do Espírito Santo. Todos estes ritos são também de grande im-portância, diz o Pontifical.

Toda a Ordenação, celebrada como é dentro da Missa, é sempre procedida daLiturgia da Palavra, como sempre acontece hoje na celebração de qualquer dos Sa-cramentos, e seguida da Liturgia Eucarística, ponto culminante de toda a celebração. Osrecém-ordenados vão exercendo a sua Ordem na própria celebração em que são or-denados: os Bispos e presbíteros são logo concelebrantes da Eucaristia e os diáconosexercem alguns dos ministérios, substituindo até os que, até aí, estavam em serviço. Masa maior modificação na nova edição típica do rito das Ordenações é a que atingiu aOração de Ordenação dos presbíteros. Na impossibilidade de nos alongarmos agora naanálise da mesma oração, deixamos aqui as linhas fundamentais dessa reforma, ana-lisadas por um membro categorizado da Congregação que preparou a nova edição.27

São quatro as linhas principais do texto na sua nova apresentação.a) A primeira é a que se refere às funções da Ordem presbiteral. O que o texto

anterior resumia na fórmula “o ministério da cooperação imediata com os Bispos” e“colaboradores da Ordem episcopal” recebe agora maior concretização referindo o

25 Ib., nn. 9, 20, 23, 107, 110, 181 e 185, e Cer. Bisp., n. 119.26 Ib., n. 7.27 P. TENA, in Notitiae 283 (1990-2), pp. 128-133.

Page 218: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

218 PADRE JOSÉ FERREIRA

campo da evangelização, da celebração dos Sacramentos e da oração pelo povo,actividades em que o presbítero continua a ser visto em relação ao Bispo, no “segundograu da Ordem sacerdotal”.

b) A segunda está na continuação da anterior. “A cooperação do presbítero com oministério do Bispo não se funda numa concessão deste ao presbítero das suas própriasfunções ministeriais, mas numa participação específica e pessoal do sacerdócio deCristo como Cabeça da Igreja.

c) A terceira está em relação com a tipologia do Antigo Testamento, presente naOração de Ordenação dos presbíteros e também na dos diáconos. Decididamente se dizagora que “os sacrifícios do templo são sombra dos bens futuros”, não vão prolongar-seno sacerdócio de Cristo as perspectivas do sacerdócio de Aarão.

d) A quarta linha procurou responder a um desejo sentido de ver melhorados trêsaspectos: a dinâmica trinitária, o contexto eclesiológico e a referência escatológica.

Citámos quase literalmente o referido comentário, embora muito resumidamente.O estudo do texto agora renovado só é possível tendo diante dos olhos esse mesmo texto.Apesar da data da sua edição romana, parece só ter sido posta à venda mais tarde. Otexto português está em fase adiantada e só então, quando estiver publicado, poderá serconvenientemente comentado.

Page 219: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

PARA QUÊ UMA IGREJA?

Segundo os antigos critérios da filosofia, a causa final é a primeira na intenção,embora venha a ser a última na execução. Assim talvez se explique porque, nesteencontro sobre Espaço Litúrgico e Arquitectura, se coloque em primeiro lugar estacomunicação sobre a razão de ser de uma igreja, o espaço litúrgico por excelência dacomunidade cristã.

1. Noção de Igreja

A palavra igreja não tem uma significação uniforme. Não me atrevo a dizer que étermo equívoco, porque todas as suas significações – e são várias – fluem umas dasoutras. Será antes um termo que abrange um campo que vai do espiritual ao material,circunscrevendo-se ora mais num ora mais no outro.

Igreja vem do grego ecclesia, donde passou ao latim por simples transliteração, edeu igualmente ecclésia, e do latim às nossa línguas românicas: igreja, iglesia, église,mesmo chiesa, etc. Ecclesia significa convocação e daí reunião, assembleia.

Em significação cristã, igreja é a assembleia dos membros da comunidadedos cristãos, reunidos para a celebração dos mistérios da fé cristã. Da igreja-assembleiao nome passou também para o lugar da reunião, a igreja-casa, de que vamos falar demaneira mais directa. É uma premissa que tem de ter-se sempre presente ao pensar-seem construir ou adaptar uma igreja: ela vai ser o espaço de uma assembleia que aícelebra a sua liturgia, portanto, de uma assembleia celebrante, digamo-lo desde já semreceio de exagerar.

A igreja cristã distingue-se, desde logo, por esta característica que acabamos deobservar, do templo pagão ou mesmo do Templo Judaico do Antigo Testamento. Notemplo pagão, o edifício, geralmente pequeno, é a suposta morada do Deus, cuja estátuaabriga, mas não lugar de nenhuma assembleia; quando muito é ponto de referência parao povo. Mesmo o Templo de Jerusalém, ele não se destinava ao povo, que se reunia fora,nos átrios envolventes do Templo. O próprio altar dos sacrifícios ficava fora, em frentedo Templo. Lá dentro, o Santo dos Santos, na parte mais interior, era o lugar da especialpresença de Deus em relação com a Arca da Aliança, onde apenas entrava o SumoSacerdote e só uma vez no ano, no dia da Expiação. Ainda lá dentro, no Santo,antecâmara do espaço santíssimo acabado de referir, havia alguns elementos do culto: oaltar dos perfumes, o candelabro das sete lâmpadas e a mesa dos pães da proposição;mas aí, só os sacerdotes lá entravam para o exercício, agora diário, das suas funções. Opovo aguardava cá fora.

Ao contrário, a igreja cristã é primariamente o lugar da assembleia, toda elacelebrante da acção litúrgica. Quando, porém, digo assembleia, não pretendo opor opovo aos ministros, nem deixar indefinido o espaço litúrgico e indeterminados os lugares

Page 220: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

220 PADRE JOSÉ FERREIRA

que por cada um hão-de ser ocupados. A assembleia litúrgica não é simples encontro demuitos ou de poucos, nem se confunde com multidão anónima; é assembleia organizada,assembleia hierárquica, diversificada nos seus membros, porque diversas são as funçõesque integram a acção celebrativa.

2. Da compreensão da liturgia às soluções para os lugares da celebração

Não se parte do edifício para a celebração, mas da celebração para o edifício queabriga os que nele vão celebrar. Se na ordem estática se pode ir do edifício para aassembleia – as pessoas vão à igreja que já lá está, e, por vezes, até a procuram porquea acham atraente –, na ordem dinâmica o movimento é ao contrário: o edifício é pensadoe construído a pensar na assembleia que nele se há-de reunir.

Adiantando talvez outra observação que desejaria deixar para o fim, direi já que oespaço litúrgico se destina prioritariamente para a oração comunitária; ele é o lugar ondese reúne a comunidade para aí celebrar a liturgia. Ele, no entanto, serve também para aoração individual, mas em segundo lugar, ainda que muito frequentemente.

As acções litúrgicas ou celebrações, como o Concílio Vaticano II voltou achamar-lhes, e não já cerimónias, como a tradição tardia e um tanto esvaziada desentido se habituara a dizer, “as acções litúrgicas não são acções privadas, mas celebra-ções da Igreja” (SC 26). Igreja não significa aqui aquilo que muitas vezes as pessoasquerem dizer com essa palavra, como quando, por exemplo, falam de Igreja e Estado,isto é, como que dois campos administrativamente distintos, nem significa apenas osPastores do povo de Deus, o Papa e os Bispos ou simplesmente os padres, numa palavra,os clérigos, separadamente dos leigos. Todos estes são sentidos limitativos e redutores,que não atingem ainda o sentido profundo da Igreja de Cristo.

A Igreja é um mistério, isto é, uma realidade divina que se encarna em expressõeshumanas, e nas quais se encerra e manifesta essa mesma realidade divina. Na Igrejaprolonga-se aquele mistério da Encarnação do Filho de Deus, que São João assimexprimiu: “O Verbo, (isto é, o Filho de Deus), fez-se homem e habitou no meio de nós”(Jo, 1,14). Para exprimir este mistério, a Bíblia, a Palavra de Deus, recorre a muitascomparações e imagens, todas elas incompletas, mas que se completam umas às outras.Nela se lê, por exemplo, que a Igreja é o Corpo de Cristo (p. ex. Col. 12, 24), Corpo doqual Cristo é a Cabeça (Ef 1, 22), imagem que exprime simultaneamente a unidade ea comunhão vital entre a Igreja e Cristo. De facto, o Filho de Deus fez-Se homem paraque n’Ele o homem se encontrasse com Deus; fez-Se “Filho do homem”, para que oshomens se tornassem filhos de Deus, “filhos no Filho”, como disse Santo Agostinho.Para que esta imagem do corpo não fosse entendida num sentido puramente material, atradição cristã tem dito da Igreja que ela é o “Corpo místico” de Cristo. Místico não seopõe a verdadeiro, mas a material; significa antes que ela é o sinal visível de uma reali-dade invisível.

Outras comparações são, por exemplo, a da videira, e esta é do próprio SenhorJesus: “Eu sou a verdadeira videira, vós os ramos” (Jo 15, 5), alegoria em que se exprimea unidade da vida que, partindo de Cristo, anima os cristãos. Outra ainda é a do edifício:“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18), diz Jesus a São

Page 221: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

PARA QUÊ UMA IGREJA 221

Pedro. Aqui a Igreja é algo que se constrói como um edifício, e o construtor, melhordiríamos, o arquitecto, ou talvez, o arquitecto e construtor, é o próprio Senhor Jesus.

Assim se manifesta o sentido íntimo e profundo da natureza da Igreja; assim serevela também o sentido último da comunidade cristã, enquanto tal. Nela se entra pela fée pelos sacramentos da fé, particularmente e inicialmente pelo Baptismo, incluindo aConfirmação, e pela Eucaristia.

Voltando à assembleia que se reúne na igreja-casa, ela é o sinal que melhor mani-festa o mistério da Igreja-comunidade cristã. A assembleia litúrgica, que habitualmentese reúne nas igrejas da comunidade cristã, é o sinal da Igreja ali presente. Onde ela, aassembleia, se reunir, ali está a Igreja de Cristo. As diversas assembleias litúrgicas reunidasnos diversos lugares da comunidade cristã são sinais da Igreja de Cristo peregrina portoda a Terra, como já, no fim do século I, o Bispo de Roma, o Papa São Clemente,escrevendo à comunidade cristã de Corinto, na Grécia, dizia: “A Igreja de Deus, presenteem Roma à Igreja de Deus presente em Corinto” (Clemente Romano, Cor 1, 1).

A assembleia é, portanto, imagem e expressão da Igreja, no sentido que tenhovindo a expor, imagem do Corpo místico de Cristo. Ora, o corpo é um ser vivo, orgânico,diferenciado nos seus membros. Assim é a Igreja, assim será também a assembleialitúrgica.

O Presidente

A Cabeça deste Corpo da Igreja é Cristo. A assembleia litúrgica tem também a suacabeça; é o presidente. O presidente da assembleia celebrante é o sinal de Cristo enquantoCabeça da Igreja. Ele é também membro da assembleia, mas é aquele que a preside, emnome de Cristo, porque é sempre Cristo a Cabeça única da Igreja. Para poder desempenharessa função ele foi constituído tal também por meio de um sinal visível, por um sacra-mento, o sacramento da Ordem.

Aquela função de presidente da assembleia vai manifestar-se na acção litúrgicanaquilo que ele diz, nas acções que faz, no lugar que ocupa, até nas vestes que enverga,e em todas as expressões que traduzem a sua articulação com toda assembleia, porexemplo, nos diálogos: “O Senhor esteja convosco”, etc.

O presidente não é um actor no palco a representar para a plateia. Nada do que elediz ou faz é acção somente sua; é antes, quer seja gesto, quer seja palavra, tudo integradona acção única de toda a assembleia celebrante, de quem ele é presidente. Dada a suafunção primordial na celebração, costuma chamar-se-lhe, muitas vezes, celebrante. Otermo pode vir a sugerir que ele celebra para a assembleia como quem está de fora. Masnão; ele está bem integrado na assembleia mas a presidir à acção litúrgica que a todos écomum. Daí que se tivesse tornado normal chamar-lhe presidente. Os livros litúrgicosainda o designam, com frequência, pela palavra celebrante; mas o termo tem de enten-der-se no sentido que acabo de expor. E diria já em conclusão que o lugar do presidenteserá dos primeiros, senão o primeiro, a ser pensado na construção do espaço para aassembleia litúrgica.

Page 222: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

222 PADRE JOSÉ FERREIRA

Os ministros

A acção litúrgica é, com frequência, variada na sua estruturação, no seu accionado,nos diversos serviços ou ministérios, como é costume chamar-lhes. Daí que ela suponhavários intervenientes, variedade de pessoas, multiplicidade de ministros. É este termoministro aquele por que se costumam designar todos os que desempenham os váriosministérios ou serviços, que não os do presidente. Destes ministérios, uns relacionam-secom a proclamação da Palavra de Deus, outros com o serviço do altar, outros com opróprio presidente, outros com os fiéis que ocupam a nave da igreja. São eles os acólitos,os leitores, o salmista, o grupo coral, o organista e os outros instrumentistas, o directordo canto da assembleia, o comentador, os ministros da comunhão, os encarregados darecolha das ofertas dos fiéis ou do acolhimento dos mesmos. Uma assembleia litúrgica é,na verdade, um grande corpo em acção. E na igreja os membros deste corpo têm todos oseu lugar e devem estar no seu lugar.

Daqui se compreende, por exemplo, a diferença que existe entre uma igreja e umasala de espectáculos. É a partir desta perspectiva que se pode compreender que osantuário, vulgarmente chamado capela-mor, (designação do tempo em que a igreja eraum conjunto de pequenas capelas!), não é um palco; que na igreja não há lugar paracamarotes, frisas ou balcões, pelo menos no sentido que estes termos têm numa sala deteatro. A assembleia não é, repito, um grupo uniforme, nem simples justaposição deindivíduos autónomos; é assembleia em comunhão de fé, participando na mesma acçãoque a todos é comum, mas em que cada qual tem o seu papel a desempenhar, sempre emordem à acção de toda a assembleia. Assim se exprime o Missal, repetindo quase lite-ralmente o que o Concílio tinha dito: “Na assembleia reunida para a celebração daMissa (o texto em causa tinha em vista a celebração da Missa), cada um tem o direito eo dever de dar a sua participação, segundo a ordem em que está investido e o ofício quedesempenha. Assim, todos, ministros ou simples fiéis, ao desempenharem a sua função,façam tudo e só o que lhes compete, de forma que, no próprio ordenamento da cele-bração, se manifeste a natureza da Igreja, na diversidade das ordens e ministérios que aconstituem” (IGMR 58).

Não poderia ter encontrado melhor conclusão para o que pretendia expor.A sensibilização a estas perspectivas condiciona, como é evidente, os programas

que vão ser apresentados aos arquitectos e os projectos que estes terão de realizar. Não édepois das paredes erguidas que se irá pensar onde e como dentro delas se irão colocaros elementos que hão-de servir na celebração. Eu tinha até a tentação de dizer, certamentede maneira um tanto caricatural e sempre muito esquemática, que uma igreja é, no fim decontas, uma assembleia celebrante que foi necessário envolver com um muro e cobrir deum tecto de protecção para que ela possa realizar, de maneira digna e cómoda, a acçãolitúrgica que se propõe fazer. Claro que lhe falta acrescentar muita coisa, entre elascertamente o que faça com que o espaço assim definido seja próprio para a Igreja emoração, como se pode definir toda a liturgia.

Page 223: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

PARA QUÊ UMA IGREJA 223

3. Lições do passado

A comunidade cristã começou por não ter igrejas. A Igreja existiu antes da“casa da Igreja”. Os primeiros cristãos de Jerusalém ainda subiam ao Templo para orar(Cf. Act 3, 1). Mas para a celebração típica da comunidade cristã, a Eucaristia, não iamao Templo, como é evidente. Celebravam-na “nas suas casas” (Act 2, 46; cf. 20, 7), comoJesus o tinha feito na hora da instituição da mesma Eucaristia (Mt 26, 18 ss; Mc 14, 22 ss;Lc 22, 14 ss). Assim em Jerusalém, e assim longe de Jerusalém, como em Tróade, naactual Turquia (Act 20, 7 ss), em Corinto, na Grécia (I Cor 11, 21 ss), ainda em vida ecom a presença de São Paulo, e, depois da idade apostólica, por onde quer que as comu-nidades cristãs se encontrassem. Até ao momento em que a Igreja pela primeira vez foireconhecida pelas leis civis, – e só o foi no ano 313 –, os cristãos não puderam construir,de maneira habitual, lugares de reunião próprios. Não quer isto dizer que não tivessehavido, aqui e acolá, algumas igrejas; mas não podia ser a solução corrente. Logo,porém, a seguir ao momento em que foi reconhecido à Igreja a direito de cidade no meioda sociedade, começaram a surgir igrejas por toda a parte. Em Roma, é o próprio impe-rador, Constantino, que tem a iniciativa de erguer as primeiras igrejas. Logo cerca desete anos depois do seu edito de paz, por volta do ano 320, ergue a primeira basílicacristã no próprio palácio romano dos Laterani, a basílica depois e ainda hoje chamada deSão João de Latrão; cerca de dez anos depois, em 330, outra basílica sobre o túmulo deSão Pedro na colina vaticana; logo depois, as basílicas de São Paulo, de São Lourenço,de Santa Inês e outras. E por toda a parte, particularmente no Oriente, as festas dededicação das igrejas eram momentos excepcionalmente festivos das comunidadescristãs. É ler a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia.

Quanto à maneira de construir, os cristãos não criaram uma arquitectura própria.Antes da construção de igrejas especificamente destinadas às suas celebrações,

reuniam-se nas casas particulares, suficientemente espaçosas, como era frequenteencontrarem-se nas famílias romanas, por exemplo. Quando começaram a criar edi-fícios de raiz, inspiram-se nos edifícios profanos que melhores condições ofereciampara assembleias numerosas. E foram eles as basílicas. Basílica era já no mundo pagão oedifício público, não religioso, amplo, destinado a várias actividades sociais, particular-mente às actividades forenses. Era assim lugar de tribunal. A planta da basílicaprestava-se para a assembleia cristã aí realizar as suas celebrações: o lugar do juiz nasessão do tribunal era paralelo ao do presidente da assembleia litúrgica; a tribuna doadvogado não andava longe do ambão do leitor na liturgia; o espaço da nave era, emqualquer dos casos, o lugar do povo. Claro que cada uma destas duas ordens de activi-dades tinha os seus condicionalismos próprios e bem diferenciados; mas a semelhançafoi a tal ponto que os cristãos mantiveram para os seus edifícios litúrgicos a designaçãoque vinha de trás: basílica. Das primitivas basílicas cristãs ainda subsistem alguns rarosexemplares, como o da basílica da Natividade em Belém, da época de Constantino.

O esquema da basílica inspirou as gerações subsequentes até aos nossos dias, massofreu alterações em cada época, que foram sendo o testemunho da maneira como cadauma dessas épocas ia entendendo o que é uma igreja, e consequentemente como entãoentendia a acção litúrgica e a assembleia que a celebrava.

Page 224: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

224 PADRE JOSÉ FERREIRA

Algumas dessas épocas deixaram-nos edifícios magníficos, como a do gótico e dobarroco; mas, por mais belas que sejam essas igrejas enquanto peças arquitectónicas,elas são, muitas vezes, contemporâneas de tempos de grande pobreza litúrgica, e conse-quentemente nem sempre correspondem ao que deveria ser o espaço da assembleia quecelebra a liturgia. Esta aparecia, muitas vezes, como acção sobretudo do clero, em que osleigos participavam vendo, contemplando, se quisermos, por certo com grande espíritode fé e devoção, mas sem entrarem directamente na acção litúrgica, que aparece maiscomo sendo para eles seguirem, na melhor das hipóteses, mas não deles.

A época barroca, sobretudo, que foi a que mais proximamente nos legou as suasigrejas, deixou-nos o espaço litúrgico com uma organização desarticulada da acção quenela se celebra e da assembleia que a devia celebrar: sem lugar para o presidente, semambão para a Palavra de Deus, com o altar encostado à parede do fundo do santuário,onde o celebrante tem de se apresentar de costas para a assembleia, um grande retábuloa servir de fundo sobreposto ao altar, uma multiplicação de altares laterais, propondo àassembleia outros tantos centros de celebração, que aliás muitas vezes funcionavam emsimultâneo, multiplicação de teias a compartimentar a assembleia, tribunas, balcões,janelas a darem para o interior, sugerindo mais assistência a um espectáculo do queparticipação activa numa acção comum, e que para mais é a de uma assembleia emoração. De facto, nem tudo foi herança feliz!

4. A Igreja, casa de Deus ou casa dos homens?

A esta pergunta responderei com as mesmas palavras: casa de Deus, porque casados homens, no meio dos quais Deus habita. Vem a propósito recordar as palavras doConcílio sobre a presença de Cristo na liturgia: “Cristo está sempre presente à sua Igreja,sobretudo, nas acções litúrgicas. Está presente no Sacrifício da Missa, quer na pessoa doministro... quer, acima de tudo, sob as espécies eucarísticas. Está presente, pelo seupoder, nos Sacramentos, de tal modo que, quando alguém baptiza, é o próprio Cristoquem baptiza. Está presente na sua Palavra, pois é Ele próprio quem fala, quando naIgreja se lêem as Sagradas Escrituras. Está por fim presente quando a Igreja ora e canta,Ele que prometeu: ‘Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí Eu estou no meiodeles’”(SC 7).

Vem igualmente a propósito recordar o que a este respeito se lê no ritual da Dedi-cação de uma igreja: “Pela sua morte e ressurreição, Cristo tornou-se o verdadeiro eperfeito templo da Nova Aliança e congregou o povo que Deus tornou seu. Este povosanto, reunido na unidade que procede da unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo,é a Igreja, o templo de Deus edificado de pedras vivas, no qual o Pai é adorado emEspírito e em verdade. Com razão, pois, desde os tempos antigos, se chamou também‘igreja’ ao edifício onde a comunidade cristã se reúne para ouvir a Palavra de Deus, orarem conjunto, receber os sacramentos, celebrar a Eucaristia. Pelo facto de ser um edifíciovisível, esta casa constitui um sinal peculiar da Igreja que peregrina na terra e umaimagem da Igreja que habita no céu.” (DIA, II, 1-2).

Page 225: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

PARA QUÊ UMA IGREJA 225

5. Alguns requisitos fundamentais para uma Igreja

Lê-se ainda no citado ritual da Dedicação: “A Igreja, como pede a sua natureza,seja apta para as celebrações sagradas, decorosa, brilhando por nobre beleza, não pormera sumptuosidade, e constitua verdadeiro símbolo e sinal das realidades celestes.‘Portanto, – e agora o ritual da Dedicação cita a Introdução do próprio Missal que lhe éanterior – o edifício sagrado, na sua disposição geral, deve, de algum modo, reproduzira imagem da assembleia congregada, permitir a conveniente coordenação de todos osseus membros e facilitar o perfeito desempenho da função de cada um’” (Ib. n. 3;IGMR 257).

Desta citação, que são aliás duas numa só, podemos sistematizar algumasconclusões:

a) Funcionalidade

A Igreja é, antes de tudo, o lugar onde a comunidade cristã se reúne em assem-bleia para realizar as celebrações sagradas. Deve, por isso, ser espaço apto para essascelebrações. É a primeira finalidade que há-de ter-se em vista: “A igreja seja apta para ascelebrações sagradas”, acabamos de ler no texto citado.

b) Nobre simplicidade

Nobreza e não sumptuosidade, beleza e não ostentação, são qualidades em quetoda a reforma litúrgica tem insistido, quer em relação aos edifícios destinados à liturgia,quer em relação aos próprios ritos litúrgicos. Esta recomendação é tanto mais oportuna,quanto uma certa e progressiva degradação no que se refere à liturgia, sobretudo nosséculos mais recentes, nos tinha habituado a considerar a riqueza e o fausto comopredicados normais de tudo o que está relacionado com a celebração litúrgica. Isto foicertamente o resultado de se ter perdido de vista a verdadeira noção da Igreja, e,consequentemente, da assembleia litúrgica, em que a Igreja se revê, e da própriacelebração.

Page 226: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:
Page 227: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

SANTA MARIA NA LITURGIA DA IGREJA

A Tradição da Igreja, e, em particular, a tradição litúrgica, é a expressão maisautêntica e mais facilmente inteligível da fé e da vida da mesma Igreja. E esta Igreja é umpovo que vive, pela acção, em si, do Espírito Santo, o próprio mistério de Cristo. Estavida nunca se extinguirá, nunca se adulterará no essencial, embora através dos tempos, eporque é uma vida no tempo, se encarne em formas evolutivas e mutáveis: Deus éimutável, o “immotus in Se permanens”, mas, por isso mesmo, Ele existe e preside àsucessão dos tempos vários: “lucis tempora sucessibus determinans”.1

I - EVOLUÇÕES ICONOGRÁFICAS

Passando, ainda que muito rapidamente, o olhar pelo culto da Virgem Santa Mariaao longo da história da Igreja, verificamos que há nele valores constantes, fundamentais,ainda que com relevo especial para um ou outro aspecto em particular. E o primeiro detodos é, sem dúvida, o da Maternidade Divina: Maria é a Mãe de Jesus Cristo, a Mãe deDeus. E a partir deste mistério da sua Maternidade Divina, Maria encontra-Se inseridaem todo o mistério de Cristo, e consequentemente o culto de Maria há-de estar inseridona celebração dos mistérios do Senhor.

Desde os começos do século III que a anáfora da Tradição Apostólica proclama:“Jesus Cristo é o vosso (do Pai) Verbo inseparável, que enviastes do céu ao seio de umaVirgem, e encarnou e Se manifestou como vosso Filho, nascido do Espírito Santo e daVirgem”.2

É por isso que, na iconografia cristã, a Virgem Santa Maria foi normalmenterepresentada, com o seu Divino Filho, e, muito frequentemente, sentada, a servir detrono ao seu Menino e Senhor, que, por sua vez, Se Lhe senta sobre os joelhos, ou aindamostrando sobre o peito, dentro de um círculo ou de uma oval, a imagem de Jesus,Menino sem dúvida, mas já visivelmente “Senhor omnipotente”, “Pantocrator”. Maria éaí claramente a Teótocos, a Dei Génitrix, a Mãe de Deus, a Virgo Parens Christi, aVirgem Mãe de Cristo, e Sedes Sapientiae, o trono da Sabedoria.3

Não foram só os ícones orientais que assim representaram a Mãe de Deus. Tam-bém no Ocidente, até pela Idade Média além, na época românica, serena e austera, Elafoi simplesmente Santa Maria, a Mãe de Deus, assim invocada na saudação angélica.São inúmeras as igrejas desses tempos sob a invocação de Santa Maria; e nas repre-sentações iconográficas, sempre com o seu Menino.

1 “Imutável em si mesmo”; “marcando o tempo com a mudança da luz”: Liturgia das Horas, hino de Noa.2 S. HIPÓLITO, Tradição Apostólica, 4: Anáfora ou Oração Eucarística, em uso no Missal Romano actual,

com certas adaptações, na Oração Eucarística II.3 Cf. PAULO VI, Exortação Apostólica marialis Cultus, 5.

Page 228: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

228 PADRE JOSÉ FERREIRA

No período gótico, a sua imagem humaniza-se um pouco mais, movimenta-se,quebra o hieratismo anterior para se equilibrar mais ajeitadamente ao pegar no Filho.Mas nunca deixa o seu Menino. Ela é sempre a Virgem Mãe de Deus. É ainda SantaMaria, mas já começa a ser uma grande Dama, “Notre Dame”, “Madona”, NossaSenhora.

Ainda é Mãe de Deus, mas não dá muito jeito dizer: “Nossa Senhora, Mãe deDeus”.

À medida que Se humanizava, ia deixando transparecer menos a Maternidadedivina!

No Renascimento, Maria, na iconografia das nossas igrejas, não Se distanciamuito das damas da corte desse época. Foi por bem, porque Ela é a Senhora dassenhoras; mas começa a não se ver muito claramente que seja ainda a Mãe de Deus.Habitualmente ainda tem o seu Menino, mesmo quando O apresenta a brincar!

No entanto, mais cristãmente, menos cristãmente, a iconografia da Senhoraproduziu maravilhas de arte, mesmo quando não de fé.

O concílio de Trento tentou rebaptizar o paganismo grassante.Os últimos tempos, o século passado em particular, encheram os nossos templos

de esculturas banais, que, à medida que iam tentando realismos humanos, as esvaziavamde alma e de espírito cristão.

E a Senhora acabou até por perder frequentemente o seu Menino. Parecia que sepretendia perpetuar o quinto dos mistérios gozosos, já assim um tanto doloroso!

Por fim, até Ela, a Mãe de Deus, que nunca deixara de o ser, mesmo quando nãoSe apresentava claramente como tal, chegou a ser simplesmente “Maria de Nazaré”!Nem admira, se o Filho, a quem a fé do povo de Deus reconheceu como “Cristo eSenhor”, assim proclamado por S. Pedro logo na sua primeira profissão de fé pascal:“Jesus de Nazaré,... Deus O constituiu Senhor e Cristo” (Act 2, 22.36), se até o seu Filhofoi reconduzido “à terra onde Se havia criado” (Lc 4, 16), como pobre cidadão daquelaaldeia, com o simples indicativo de “Jesus de Nazaré”, hoje de novo tão frequentementeescutado! Por amor de Santa Maria, Mãe de nosso Deus e Senhor, não Lhe retiremosmais o seu Menino, não a derrubemos da glória da sua maternidade divina! Nem areconduzamos à sua humilde casa de Nazaré, donde os caminhos de Deus A conduziramaté às dores e à glória do Calvário, pois que Ela é a Mãe de Jesus Cristo, O que estevemorto mas agora vive para sempre, como Ele próprio Se apresentou (Ap 1, l 8).

II - PRESENÇA DE MARIA EM TODA A LITURGIA

Não são unicamente as festas de Nossa Senhora que manifestam a presença daMãe de Deus na oração da Igreja, que é a liturgia. Diria até que, antes mesmo desses diasfestivos consagrados a celebrar Nossa Senhora no decurso do ano, está a referênciaconstante à Virgem Santa Maria em toda a liturgia da Igreja.

Lembro, em primeiro lugar, a referência à Mãe de Deus em todas as OraçõesEucarísticas, onde os vivos e os defuntos, juntamente com os Santos do Céu, sãonomeados, antes de mais, para mostrar a comunhão de toda a Igreja, que a Eucaristia

Page 229: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

SANTA MARIA NA LITURGIA DA IGREJA 229

significa e realiza; não se reza aí tanto a eles ou por eles, como em união com todos eles.Assim, no Cânon Romano ou Oração Eucarística I, diz-se: “Na comunhão de toda aIgreja, veneramos a memória da gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe de Nosso Deus eSenhor Jesus Cristo”; na anáfora II, já citada, diz-se: “Jesus Cristo, vosso Filho,... fez-Sehomem pelo poder do Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria”. Na Oração EucarísticaIII, de criação recente, exprime-se o desejo dos que oram de compartilharem com a Mãea herança dos filhos: “O mesmo Espírito Santo faça de nós uma oferenda permanente, afim de alcançarmos a herança eterna, em companhia dos vossos eleitos, com a VirgemMaria, Mãe de Deus”. E na Oração Eucarística IV, diz-se: “Concedei, Pai de mise-ricórdia, a graça de alcançarmos a herança do Céu, com a Virgem Santa Maria, Mãe deDeus”. Não podia haver maior e mais significativa expressão do culto da Igreja para coma Virgem Santa Maria e da sua integração no mistério de Cristo do que esta referência àMãe de Deus em plena Oração Eucarística.

Significativa é também a presença de Maria em certos tempos litúrgicos, es-pecialmente no Tempo do Natal e no do Advento. “O tempo do Natal constitui umacomemoração continuada da Maternidade divina, virginal, salvífica, d’Aquela que, emperfeita virgindade, deu à luz o Salvador do mundo”,4 escreveu Paulo VI, citando aliás oCânon Romano no inciso próprio da solenidade do Natal do Senhor.

É precisamente dentro deste tempo que se insere a grande solenidade de SantaMaria, Mãe de Deus, agora restituída pela reforma litúrgica ao seu lugar primitivo eantiquíssimo, o dia oitavo do Natal, 1 de Janeiro. O mesmo Papa Paulo VI, ao escolheresta mesma data para o Dia Mundial da Paz, não pretendeu, de maneira nenhuma, queesta instituição viesse encobrir a solenidade da Mãe de Deus; antes, pelo contrário, poisque a solenidade do dia 1 de Janeiro “destina-se a celebrar a parte tida por Maria nestemistério da salvação, (o do Natal), e a exaltar a dignidade singular que daí advém paraSanta Mãe pela qual recebemos o Autor da Vida”, o recém-nascido “Príncipe da Paz”.5

A actual simplificação do Ofício do Natal deixou ficar de fora uma belíssimacolecção de textos litúrgicos, sobretudo de responsórios do anterior Ofício de Matinas,onde o nome e a presença de Maria envolviam o presépio de uma inesquecível ternuramaterna, como nestes exemplos:

“Ó grande mistério e admirável sacramento, que os animais contemplem o Senhornascido, deitado numa mangedoira! Feliz a Virgem, cujo ventre mereceu albergar oSenhor Jesus Cristo!

Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo!”6

Ou neste outro:“Santa e imaculada virgindade! Não sei com que louvores te hei-de exaltar!

Aquele que o Céu não pode conter, Tu O trouxeste em teu ventre! Bendita és Tu entre asmulheres e bendito o fruto do teu ventre!7

4 Id. ib., 5: cf. Oração Eucarística I.5 Ib., 5.6 Breviário Romano em uso até à última reforma da liturgia no Ofício de Matinas do Natal, resp. 4.7 Ib., resp. 6.

Page 230: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

230 PADRE JOSÉ FERREIRA

E ainda:“Feliz é Maria, a Mãe de Deus, que permaneceu sempre Virgem: Hoje deu à luz o

Salvador do mundo. Feliz Aquela que acreditou: n’Ela se realizou tudo o que lhe foi ditopelo Senhor”.8

E este outro responsório:“Felizes as entranhas da Virgem Maria, que em si trouxeram o Filho do Eterno

Pai, e felizes os seios que alimentaram Cristo Senhor”.9

E ainda neste que felizmente continua a estar em uso:“Hoje o Rei dos Céus dignou-Se nascer de uma Virgem, para reconduzir ao reino

celeste o homem que estava perdido”.10

Mas também as breves antífonas que ainda hoje vão matizando toda a liturgia dasHoras do Tempo de Natal:

“Por Vós, ó Maria, se cumpriram os oráculos dos Profetas que anunciaram aCristo: permanecendo sempre Virgem, concebestes e destes à luz o Filho de Deus” (dia27 de Dezembro).

“A Virgem santa e imaculada deu à luz o Filho de Deus, revestiu-O de débeismembros e alimentou-O com o seu leite materno. Adoremos todos o Filho de Maria, quenos veio salvar” (dia 28).

“O Rei do Céu quis nascer de uma Virgem, para levar o homem, que se tinhaperdido, ao reino da sua eterna glória” (dia 29).

“Nós Vos louvamos, Santa Mãe de Deus, porque de Vós nasceu Jesus Cristo:Salvai todos aqueles que Vos glorificam” (dia 30).

E esta admirável antífona, de sabor oriental, cuja tradução necessariamente fazperder parte importante do seu sentido original:

“Ó admirável mistério! O Criador do género humano, tomando corpo e alma,dignou-Se nascer de uma Virgem: e, feito homem, tornou-nos participantes da suadivindade” (1 de Janeiro).

E para terminar esta série de citações, não exaustiva, a antífona que anteriormentese cantava no próprio dia de Natal e hoje faz parte da Solenidade da Santa Maria, Mãe deDeus:

“Maria deu à luz o Rei cujo nome é eterno. Ela teve a alegria de ser mãe semdeixar de ser virgem. Nem antes nem depois d’Ela se viu semelhante prodígio”.

É igualmente de sublinhar a presença de Maria no Tempo do Advento, sobretudono Quarto Domingo, sempre consagrado a Nossa Senhora, mas sempre dentro dacelebração do Mistério da Encarnação do Verbo de Deus, e em toda a última semanaimediatamente anterior ao Natal, do dia 17 ao dia 24 de Dezembro, um verdadeirooitavário marial. Se não existe no Calendário actual a festa da Expectação do Parto da

8 Ib., resp. 5.9 Ib., resp. 7.

10 Solenidade do Natal do Senhor, Ofício de Leitura, resp 1.

Page 231: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

SANTA MARIA NA LITURGIA DA IGREJA 231

Virgem Santa Maria, outrora no dia 18 de Dezembro, – a Senhora do Ó –, Maria brilhanesses dias do Advento como a Estrela Matutina que anuncia o Sol Nascente, e qual aFilha de Sião que ansiosamente espera o Enviado de Deus no cumprimento das palavrasdo Profeta: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho” (IS 7, 14).

A sucessão das perícopas evangélicas desses dias, a da Anunciação (no dia 20 deDezembro), da Visitação (no dia 21), do cântico do Magnificat (no dia 22), mantém aIgreja em feliz expectativa, como a de Maria, pela vinda do Senhor, nosso Salvador e seuFilho.

E a leitura evangélica do dia 17, possivelmente repetida na manhã do dia 24, agenealogia de Jesus, faz emergir, desde as profundas raízes de Jessé, a árvore que traráno cimo do seu tronco “José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamadoCristo” (Mt 1, 16).

O Tempo do Advento e o do Natal são os tempos mariais por excelência, temposprivilegiados e completamente integrados na celebração do mistério de Cristo, comotodas as orientações teológicas e litúrgicas de novo voltaram a exigir.11 Foi a perda destavisão, em tempos em que a liturgia não era participada pelo povo, que deu origem aoutros “tempos” particularmente consagrados, na piedade popular, à Mãe de Deus, comosejam os meses de Maio e Outubro, sobretudo aquele, aliás sobreposto ao Tempo Pascal,até há pouco completamente desconhecido do povo cristão! Um afinado tino pastoralensinará a reconduzir as coisas ao seu verdadeiro lugar, tendo certamente como guia opreceito evangélico: “É preciso fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Mt 23, 23).

E seria demasiado longo citar todas as referências à Virgem Santa Maria no vastoeucológio litúrgico, mesmo para além das suas celebrações no calendário.12 Lembro, noentanto, a primeira de todas, a que vem no próprio símbolo da fé, o Credo, profissão dafé baptismal para todo o cristão: “Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor,que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria”; e, no polooposto, a simples mas enternecedora antífona com que, todos os dias, se conclui o ciclo

11 Vid. Concílio Vaticano II, Constit. Lumen Gentium, sobretudo nn. 66-67; Constit. Sacrosanctum Conci-lium, n. 103; Paulo VI, op. cit., n. 4; Sagrada Congregação do Culto Divino, Orientações para o AnoMariano de 2 de Maio de 1987.

12 São as seguintes as celebrações de Santa Maria no Calendário Romano:Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria – Solenidade (8 de Dezembro);Santa Maria, Mãe de Deus – Solenidade (1 de Janeiro);Nossa Senhora de Lurdes – Memória facultativa (11 de Fevereiro);Nossa Senhora de Fátima – Festa (13 de Maio só no Próprio de Portugal);Visitação de Nossa Senhora – Festa (31 de Maio);Imaculado Coração de Maria – Memória facultativa (Sábado depois da Solenidade do SS. Coração de Jesus);Nossa Senhora do Carmo – Memória obrigatória (16 de Junho);Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior – Memória facultativa (5 de Agosto);Assunção da Virgem Santa Maria – Solenidade (15 de Agosto);Virgem Santa Maria, Rainha – Memória obrigatória (22 de Agosto);Natividade da Virgem Santa Maria – Festa (8 de Setembro);Nossa Senhora das Dores – Memória obrigatória (15 de Setembro);Nossa Senhora do Rosário – Memória obrigatória (7 de Outubro);Apresentação de Nossa Senhora – Memória obrigatória (21 de Novembro).

Page 232: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

232 PADRE JOSÉ FERREIRA

diário da Liturgia das Horas, depois de Completas: “Salve, Rainha” ou “Santa Mãe doRedentor” ou “Deus Vos salve, Rainha dos Céus” ou “À vossa protecção nos acolhemos”ou simplesmente “Ave, Maria” e, no Tempo Pascal: “Rainha do Céu, alegrai-Vos,Aleluia”.

III - O CULTO DA VIRGEM SANTA MARIA NA REFORMA LITÚRGICA

As reformas da liturgia procuram sempre purificar, pôr em relevo o essencial,reajustar o que andava distorcido, simplificar o que se tinha complicado, suprimir o quese tinha tornado repetição desnecessária ou excrescência que deformava e encobria oque era principal e fundamental.

No que se refere ao culto de Santa Maria, a primeira orientação que se pressenteem toda a reforma é a que procurou repor o culto da Mãe de Deus na celebração domistério de Cristo, à imitação do que fez a Constituição Lumen Gentium, que integrou adoutrina sobre Nossa Senhora dentro da própria Constituição sobre a Igreja. É certo queEla nunca teria podido estar desintegrada desse mistério, como reconhece Paulo VI, apropósito da reforma da liturgia do Advento: o que essa reforma realizou “bem pode sertomado como norma, a fim de impedir quaisquer tendências a separar o culto da VirgemMaria do seu necessário ponto de referência, Cristo, como algumas vezes sucedeu emcertas formas de piedade popular”.13 Não há, de facto, um ciclo marial ao lado do ciclocristológico. Foi assim que, por exemplo, as solenidades do dia 2 de Fevereiro e do dia25 de Março, mesmo já antes do concílio (1960), viram os seus títulos anteriores dePurificação da Virgem Maria e de Anunciação da Virgem Maria substituídos pelos deApresentação do Senhor e Anunciação do Senhor. E as rubricas explicam: “Estas soleni-dades devem ser tidas como celebrações do Senhor”. Em relação à solenidade de 25 deMarço, Paulo VI havia de explicar mais particularmente: “No entanto, a celebração era econtinua a ser uma festa de Cristo e da Virgem Maria ao mesmo tempo: festa do Verboque Se torna Filho de Maria e festa de Maria que Se torna Mãe de Deus”.14 E em relaçãoà festa de 2 de Fevereiro diz: “É uma memória, ao mesmo tempo, do Filho e da Mãe, istoé, a celebração de um mistério da salvação operado por Cristo, ao qual a SantíssimaVirgem esteve intimamente unida”.15 Interpretação semelhante se pode encontrar nalocalização de outras celebrações, a primeira das quais será a da Santa Maria, Mãe deDeus, no dia 1 de Janeiro, como já foi referido.

As “Orientações para o Ano Mariano”, emanadas da Congregação do CultoDivino, a cada passo supõem, e em primeiro lugar, as celebrações litúrgicas, como asprincipais formas do culto da Virgem Santa Maria, o que significa a integração domesmo no ciclo cristológico, e acautelam contra a separação ou, pior seria, acontraposição entre as expressões do culto dirigidas a Maria e as dirigidas a Deus ou aCristo; e chegam até a afirmar: “Continua a usar-se uma linguagem e a dar-se às

13 PAULO VI, op. cit., 5.14 ib., 6.15 Id.,ib., 7.

Page 233: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

SANTA MARIA NA LITURGIA DA IGREJA 233

manifestações cultuais uma orientação não de harmonia com os ensinamentos doConcílio Vaticano II sobre a figura e a missão da bem-aventurada Virgem, e sobre oculto que se Lhe deve prestar. Isto acontece, por exemplo, quando se apresenta adevoção à Santíssima Virgem como “meio mais fácil” ou “caminho mais agradável”para encontrar Deus ou Cristo; ou quando as expressões usadas podem levar a julgar-seque na Mãe prevalece a misericórdia e no Filho a justiça. Não é este o ensinamento daIgreja”.16

Mas a novidade maior, ao menos aparente, no que se refere ao culto da VirgemMaria é o aparecimento de uma “Collectio Missarum de B. Maria Virgine”, publicadapela mesma Congregação do Culto Divino em 15 de Agosto de 1986. É uma colecção de48 missas, em dois volumes, contendo, o primeiro, o Missal propriamente dito, comorações e prefácios próprios para cada uma das Missas, e o segundo, o Leccionário paraas mesmas Missas, seguindo o critério agora adoptado para o Missal universal. Acolecção apresenta-se como Apêndice ao Missal Romano.

Nos Preliminares, que ocupam 43 números do primeiro volume e 10 do segundo,(mas estes repetem apenas os daquele), explica-se que as Missas de Santa Maria tiram oseu sentido e valor da íntima participação de Maria na história da salvação (n. 6).

Assim se afirma uma vez mais a união entre as celebrações mariais e o ciclocristológico ao longo do ano litúrgico.

Estas Missas compõem-se, em grande parte, de formulários já existentes nospróprios de Igrejas particulares, de Institutos religiosos ou no próprio Missal Romano(n. 21).

As Missas destinam-se, em primeiro lugar, aos Santuários marianos, com certascláusulas, e à celebração dos Sábados do Tempo Comum, em que não ocorra umamemória obrigatória (n. 21)

Todas elas foram preparadas em relação com os diversos tempos litúrgicos:Advento (3 formulários); Tempo do Natal (6); Tempo da Quaresma (5); Tempo Pascal(4); Tempo Comum (28). As Missas destinadas ao Tempo Comum dividem-se em trêssecções. Na primeira, 11 formulários, celebra-se a memória de Nossa Senhora comtítulos tirados da Sagrada Escritura ou que apresentam a sua relação com a Igreja, porexemplo: V. S. Maria, Mãe do Senhor; V. S. Maria, templo do Senhor; V. S. Maria,imagem e mãe da Igreja. Na segunda, celebra-se a memória de Nossa Senhora comtítulos que significam a sua cooperação na vida espiritual dos fiéis, como: V. S. Maria,mãe e medianeira da graça; V. S. Maria, causa da nossa alegria. Na terceira, celebra-se amemória da Virgem Santa Maria com títulos que mostram a sua intercessão mise-ricordiosa em favor dos fiéis, como: V. S. Maria, rainha e mãe de misericórdia; V. S.Maria, saúde dos enfermos. Os Preliminares explicam ainda: “A ordenação destasMissas faz que sejam também celebrados os momentos e os modos de cooperação da V.S. Maria na obra da salvação no tempo litúrgico mais apto e põe-se em realce a estreitaligação da Mãe do Senhor com a missão da Igreja” (n. 24).

16 Sagrada Congregação do Culto Divino, op. cit., VI, 56 e n. 100.

Page 234: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

234 PADRE JOSÉ FERREIRA

Quanto ao uso, esta colecção tem de ter em conta os respectivos tempos do anolitúrgico. Nos santuários marianos, pode ser usada em mais circunstâncias do que nosoutros lugares, mas somente para peregrinos; nos tempos litúrgicos mais importantes,deve ceder o lugar ao Leccionário do tempo. Por outro lado, nos santuários deveevitar-se que seja celebrada apenas a Missa própria desse santuário; aqui, o Leccionáriomarial ajudará a evitar o perigo que poderia resultar daquela monotonia.

Nos Sábados do Tempo Comum, não ocupados por uma solenidade, festa oumemória obrigatória, admite-se, como memória facultativa, a de Santa Maria. Ocostume vem já dos mosteiros carolíngios, do fim do século VIII, e chegou até ao nossotempo através do calendário romano. Mas o sábado não foi o único dia a ter, comopossível, uma Missa votiva; todos os dias da semana a tiveram até aos nossos dias,quando se havia perdido o sentido do ciclo temporal no ano litúrgico. A reforma litúrgicaactual teve, como um dos seus princípios, a valorização do ciclo cristológico; pôs delado todas essas Missas votivas ligadas a cada um dos dias da semana, onde chegaram ater foros de primazia e deixou apenas ficar a de “Santa Maria no Sábado”. Os Prelimina-res (n. 36) recordam que esta memória de “Santa Maria no Sábado” foi aceite em muitascomunidades eclesiásticas “como introdução ao ‘Dia do Senhor’”. A interpretação éfeliz, mas não tem possivelmente grande apoio na tradição.

Esta colecção de Missas de Nossa Senhora pode ser igualmente usada nos outrosdias em que forem permitidas as Missas Votivas, segundo as rubricas do Missal (IGMR,n. 316). O sacerdote, porém, não deve impor aos fiéis as suas propensões pessoais (37;IGMR, n. 313). E, continuam os Preliminares, “lembrem-se os sacerdotes e os fiéis queuma autêntica piedade mariana não pede que se multipliquem as celebrações das Missasde Santa Maria, mas que nelas tudo – leituras, cânticos, homilia, oração universal,oblação do sacrifício,… – tudo se faça de maneira justa, cuidada e com vivo sentidolitúrgico” (n. 37).

Bem vistas as coisas, creio poder concluir-se que a Colecção das Missas de NossaSenhora se pode considerar uma ampliação das Missas do Comum de Nossa Senhora,para serem celebradas quase nas mesmas condições. Alargam a contemplação da missãoe da presença da Virgem Maria no mistério de Cristo e procuram não deixar que sedissocie o culto de Nossa Senhora da celebração dos mistérios do Senhor. Pode achar-se,no entanto, desproporcionado 46 prefácios próprios de Nossa Senhora ao lado de 80para as demais celebrações do ano litúrgico; mas, examinando os textos de perto,verifica-se que eles põem particularmente em relevo o mistério de Cristo em que Mariaestá inserida. De modo semelhante, as leituras, sobretudo as do Evangelho, repetem-sefrequentemente de Missa para Missa, o que vem permitir que a perspectiva dessasMissas as coloque constantemente na perspectiva cristológica.

Comparando todas estas iniciativas com as Orientações para o Ano Mariano, daCongregação do Culto Divino, fica-se com a impressão de que a intenção última foi a dereconduzir o culto de Santa Maria ao seu verdadeiro lugar no mistério pascal de Cristo,e de evitar formas marginais e aberrantes, com que os simples do povo muitas vezes secontentam, mas que os vão deixando mais pobres do que simples, a eles e a todo o povode Deus. É evidente que a maneira como se olhar para a Virgem Nossa Senhora determinaa maneira de a venerar e de a celebrar. Também aqui continua a ser verdadeira a clássica

Page 235: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

SANTA MARIA NA LITURGIA DA IGREJA 235

sentença: “Lex orandi, lex credendi”, na sua dupla interpretação: a maneira de crerdetermina a de orar, como também a de orar determina a de crer.

A antiguidade cristã cultuou, antes de mais, a Mãe de Deus, a Teótocos, a DeiGénitrix; tempos posteriores pretenderam torná-l’A mais humana, mesmo à custa dealguma fragilidade na maneira de expressar a fé e a oração em relação à Mãe de Deus.

Nos últimos tempos, a invocação com que Paulo VI enriqueceu os títulos daLadainha de Nossa Senhora – Mãe da Igreja – retoma, embora de outra maneira, aligação profunda entre a Virgem Santa Maria e o mistério do Verbo encarnado: Mãe deJesus Cristo, Ela é, por isso mesmo, Mãe de todo o Corpo de que Ele é a Cabeça, o CorpoMístico de Cristo, a Santa Igreja de Deus.

Cada tempo e cada lugar, com a riqueza e as limitações que acompanham aexistência concreta de cada um deles, olha para a Virgem Santa Maria e exprime a suamaneira de A entender e de A invocar, procurando sempre o que n’Ela sabe encontrar demais cristão e de mais humano, mesmo quando nem sempre o saiba fazer com a maiorperfeição objectiva.

Unida a seu Filho em todos os seus mistérios, quer eles sejam celebrados nodecorrer do ano litúrgico, quer simplesmente meditados na contemplação dos mistériosdo Rosário – coroa dos mistérios da salvação, vividos por Cristo, participados e agoravividos pela Igreja 17 –, a Virgem Santa Maria é sempre a Mãe de Deus e a Mãe da Igreja,cuja maternidade continua fecunda no crescimento sempre constante do Reino de Deus.

17 Cf. S. BERNARDO, Sermo de aquaeductu na Liturgia das Horas do dia 7 de Outubro, Ofício de Leitura,Segunda Leitura.

Page 236: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

UM TEMPO MARIAL

O mistério de Cristo é um só e é sempre todo. Em cada celebração da liturgia estásempre presente, de maneira mais ou menos explícita, todo o mistério da salvação, essemistério que tudo engloba, tudo unifica, a tudo dá sentido uno e unificador. Ele é omistério de Cristo, no qual se realiza o desígnio de Deus, concebido “desde antes dacriação do mundo, ...o mistério da sua vontade, ...para se realizar na plenitude dostempos”, a saber, “instaurar todas as coisas em Cristo, tudo o que há nos céus e na terra”(Ef 1, 4 ... 10).

Mas porque é uno e total, o mistério de Cristo é exposto e celebrado na liturgia, demaneira um tanto analítica, ao longo do tempo, pois que no tempo existimos e vivemos ecelebramos. Assim começa, na Constituição Conciliar sobre a Liturgia, o capítulo sobreo ano litúrgico: “A Santa Madre Igreja considera seu dever celebrar a obra salvífica doseu divino Esposo por uma comemoração sagrada, em dias determinados ao longo doano”. E refere, em primeiro lugar, o Dia do Senhor, o Domingo, e logo, “uma vez no ano,a solenidade máxima da Páscoa”. E continua: “E, pelo círculo do ano, ela desdobra todoo mistério de Cristo, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes e àexpectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor” (SC 102). E continua ainda: “Nacelebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a Santa Igreja venera, com amorespecial, Santa Maria, Mãe de Deus, que está unida a seu Filho na obra da salvação porum laço indissolúvel; n’Ela a Igreja admira e exalta o mais excelente fruto da Redenção,e, como em puríssima imagem, contempla com alegria aquilo que toda ela anseia eespera ser” (ib. 103).

Maria no mistério de Cristo

A Virgem Santa Maria está absolutamente integrada no mistério de seu Filho,Jesus Cristo. Assim o ensina a doutrina cristã e assim o celebra a liturgia da Igreja. Umavez mais: Lex orandi, lex credendi: a Igreja ora como crê e crê como ora.

Santa Maria aparece na história da salvação como a escolhida para Mãe do Verboencarnado. Ela é a nova Eva ao lado do novo Adão, o que Gil Vicente assim exprimiu aotraduzir o hino litúrgico em honra da Virgem Maria: “Do que Eva triste ao mundo tirou /Foi o teu fruto restituidor; / Dizendo-te Ave o embaixador, / O nome de Eva te signifi-cou” (LH, hino do comum de N.ª Sr.ª).

O Evangelho apresenta-A, desde a primeira página, no topo da árvore genealógica deJesus Cristo (Mt 1, 1-16). De Abraão e de David, a promessa de Deus vai passando, degeração em geração, sempre por via varonil, como é de lei entre os hebreus, para no fimdas três séries de duas vezes sete gerações, evocar “Maria, da qual nasceu Jesus, que échamado Cristo” (ib. 16). É o que plasticamente costuma ser significado pela clássicaárvore de Jessé. A presença de Santa Maria, discreta mas sempre fiel, acompanha

Page 237: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

UM TEMPO MARIAL 237

depois toda a missão de seu Filho, do momento da Anunciação ao da Visitação, de Beléma Jerusalém e ao Egipto, do Egipto a Nazaré; mais tarde, nas viagens evangelizadoras deJesus, desde o início, no banquete de núpcias em Caná, quando a hora do Senhor aindanão tinha chegado, (Jo 2, 4) até ao momento supremo dessa sua Hora (Jo 13, 1; 17, 1),em que Ele não dará já a água mudada em vinho, mas o seu Sangue, para celebrar averdadeira Aliança nupcial entre o Esposo celeste e a sua Esposa terrestre, entre Deus eesta nossa humanidade, na cruz. Numa e noutra, a Virgem Mãe lá está, na hora proféticade Caná como na hora realizadora do Calvário, acolhendo agora em seus braços,não já o recém-nascido de Belém, mas, na pessoa de João, o Corpo renascido de seuFilho, a Igreja, Corpo de Cristo, agora purificado no sangue do Cordeiro imolado: “Eis oteu Filho”. Então se cumpriu em plenitude a palavra outrora dirigida a Eva no paraíso:“Darás à luz na dor” (Gén 2, 16). Foi, na verdade, nas dores do Calvário, nas de Jesus enas de sua Mãe, que a Igreja nasceu.

Mas aquela Mãe, a um tempo dolorosa, porque o Filho morre, mas feliz, porqueveio ao mundo o homem novo, não vai desaparecer logo naquela hora, deixando sós osdiscípulos de seu Filho. Quando, depois da Ascensão, eles regressam a Jerusalém esobem “à sala de cima, onde habitualmente permaneciam” (Act 2, 13) e aí se entregam àoração, “Maria, a Mãe de Jesus,” lá está no meio deles, e, com eles, acolhe o domprometido do Espírito do Ressuscitado. Presente no Calvário, onde a Igreja nasce(SC 5), presente no Cenáculo, onde a Igreja faz a sua epifania (ib. 6), Maria manifestapor esta sua presença na Igreja nascente que, sendo a Mãe d’Aquele que é a Cabeça,Cristo Senhor, Ela o é consequentemente de todo o Corpo, a Igreja de Deus. Do alto dacruz o Senhor lho anunciava: “Eis o teu Filho”, como o anunciava igualmente aodiscípulo: “Eis a tua Mãe”. Para sempre Mãe do Verbo encarnado, como Ele, parasempre, Cabeça do Corpo da Igreja!

Seria separar o que Deus uniu, se, ao proclamarmos o lugar da Virgem Maria nahistória da salvação, e, por isso, no próprio mistério de Cristo, dele A separássemos nacelebração desse mistério, ou, o que seria pior, a ele A contrapuséssemos. A fé da Igrejaa tal não nos conduz; antes, pelo contrário, a oração da Igreja, que encontra a suaexpressão máxima na celebração da liturgia, por todos os modos nos faz sentir como aVirgem Santa Maria Se integra totalmente no mistério de Cristo, como nele se integratoda a Igreja. De facto, a Virgem Maria não está nem fora nem acima da própria Igreja,da qual Ela é “membro santo, membro excelente, membro supereminente, mas, apesardisso, membro do corpo total” (S. Agostinho). Se assim o crê a Igreja, assim ela ocelebra, pois a liturgia é expressão vivencial da fé da Igreja.

Antes de olharmos para o lugar de Maria na liturgia do ciclo natalício, recor-demos ainda outros lugares, não menos significativos da fé da Igreja em relação à inte-gração da Virgem Santa Maria no mistério de Cristo: a profissão da fé cristã, o Credo, ea oração Eucarística da Missa em qualquer dos seus diversos formulários. No Credo,profissão de fé baptismal que há-de identificar o cristão em toda a sua vida, na liturgia oufora dela, de Jesus Cristo, o “Filho Unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos osséculos”, se diz que “encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria e Se fezhomem”. Logo aqui Maria aparece integrada no mistério de seu Filho e particularmenteno mistério que é celebrado na liturgia do Natal, o mistério da Encarnação. Na Oração

Page 238: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

238 PADRE JOSÉ FERREIRA

Eucarística, que proclama, em forma de oração, os mistérios da fé expressos no Credo, equase com o mesmo esquema, faz-se referência, na parte anamnética da mesma, à“gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe de nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo” (Or. I), que“Se fez homem pelo poder do Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria” (Or. II), Ele“que, chegada a plenitude dos tempos, [Vós, Pai Santo,] nos enviastes como Salvador...feito homem pelo poder do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria” (Or. IV). E,depois da consagração, nas intercessões, que se seguem à segunda epiclese e onde se oraem sinal da unidade e comunhão de toda a Igreja, de novo se pede “a graça de separticipar na vida eterna com a Virgem Maria, Mãe de Deus” (Or. II), “em companhiados vossos eleitos, com a Virgem Maria, Mãe de Deus” (Or. III), “a graça de alcançar-mos no vosso reino a herança do céu, com a Virgem Santa Maria, Mãe de Deus” (Or. IV).

Nossa Senhora no ciclo cristológico

O tempo litúrgico tem por base fundamental o Domingo. Falar de ano litúrgico éfalar no fluir do tempo ritmado pela sucessão dos Domingos, cuja celebração tem a suaorigem no próprio dia de Ressurreição do Senhor (SC 106). O Domingo foi, desde oinício, o único dia de festa, em que a comunidade cristã celebra todo o mistério pascal.Desde que, a partir do meado do século II, se criou a celebração anual da Páscoa noDomingo seguinte à primeira lunação do equinócio da primavera, logo prolongada poruma oitava de Domingos, (aquilo a que, de início, se chamou o Pentecostes, ou seja, aCinquentena pascal), estava lançado um tempo do ano que era o embrião do anolitúrgico. Precedido pelos quarenta dias da preparação quaresmal, o ciclo pascal é,ainda hoje, a bem dizer, o que constitui a parte básica do ano litúrgico. Todos os outrosdias e festas se situam ao longo do ciclo das semanas que têm por ponto de partida e dechegada o Domingo, o Dia do Senhor.

Esta sucessão de semanas costuma designar-se por ciclo Temporal. E, na realidade,não existe outro ciclo litúrgico a cobrir o ano. Não há, por isso, um ciclo Santoral, isto é,uma série de celebrações dos Santos articuladas entre si, como que perfazendo um cicloanual. As celebrações dos Santos, e até algumas solenidades e festas do Senhor,estão ligadas a determinados dias dentro do ano, mas independentemente do ciclohebdomadário; entre elas também a solenidade do Natal, ligada ao dia 25 de Dezembro,por razões bem conhecidas, e não a tal ou tal dia da semana.

As celebrações da Santa Virgem Maria – e são várias ao longo do ano –, aquelasque ocupam determinados dias do calendário, também elas não formam um ciclo, não searticulam umas nas outras, formando um tempo litúrgico autónomo. Ocorrem emdeterminados dias do ano, cada uma por sua razão particular, mas não formam um ciclomarial.

Diferentemente das celebrações dos Santos, a presença da Nossa Senhora nocalendário litúrgico, além das celebrações ligadas a determinados dias fixos, comoacabámos de referir, verifica-se, de maneira muito particular, nestes dois Tempos doAdvento e do Natal-Epifania, o ciclo das Manifestações do Senhor, e aqui profunda-mente articulada com o ciclo Temporal, o ciclo que tem como tema o próprio mistério de

Page 239: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

UM TEMPO MARIAL 239

Cristo. E assim encontramos Nossa Senhora integrada no mistério de seu Filho naprópria celebração que a liturgia dele faz, como já o ensinava a doutrina em que ele eraexposto. Uma vez mais, a Igreja ora como crê. Foi uma perspectiva semelhante quelevou o Concílio Vaticano II a não consagrar a Nossa Senhora um documento autónomo,mas antes um capítulo especial e próprio dentro da Constituição sobre a Igreja. De facto,Maria está totalmente unida ao mistério de seu Filho; Ela é “a raiz e a porta por ondeveio ao mundo a luz”, o Salvador. Ela é a Mãe de Deus, a Mãe da Igreja; por isso, até asua melhor representação será sempre a da Mãe com o seu Filho, feita trono dasabedoria, donde Jesus Se apresenta aos homens e onde é por eles adorado, comogostam de A representar os cristãos da tradição oriental.

Um tempo marial dentro de cada ano

Maria está presente em todo o tempo do Advento e do Natal de maneira única noano. Sem uma lógica cerrada, como não seria próprio da celebração, que não é de tipoescolar, a Virgem Maria surge em todo este ciclo com uma presença constante, ora nasleituras, que oferecem normalmente a manifestação histórica do mistério, ora noscânticos, onde se exprime particularmente a contemplação, o encanto, a alegria e olouvor, por vezes também nas orações.

Para mais, três celebrações em que Nossa Senhora tem lugar particular seencontram neste ciclo natalício: a de Santa Maria, Mãe de Deus, no dia oitavo do Natal(1 de Janeiro), a da Sagrada Família, no Domingo dentro da oitava, e, embora não seintegrando directamente neste ciclo litúrgico, mas coincidindo sempre com ele, asolenidade da Imaculada Conceição. Nas duas primeiras celebrações, – a solenidade deSanta Maria, Mãe de Deus, e a festa da Sagrada Família –, embora cada uma tenha o seutema específico, Nossa Senhora aparece sempre profundamente ligada ao mistério deCristo: Ela é a Mãe de Deus, ou envolvida nas situações da vida doméstica de Nazaré– é o que se pretende pôr em relevo –, ou na alegria, nunca por outra partilhada, de “sermãe, sem deixar de ser virgem”, que “deu à luz o Rei cujo nome é eterno” (Antífona dodia 1 de Janeiro).

Para facilitar, a quem o desejar fazer, a consulta das peças da liturgia deste tempoque se referem a Nossa Senhora, aqui deixamos a indicação das mesmas. Seguimos osdias do calendário, articulando-os, tanto quanto possível, com os dias da semana.

Basta a observação do quadro das páginas seguintes, único em todo o ano, paranos fazer compreender que os Tempos do Advento e do Natal são, na verdade, um tempomarial, e o mais completamente integrado na celebração do mistério de Cristo, de modoparticular no mistério da sua Encarnação. Nem há outra maneira de olhar para a VirgemSanta Maria que não seja em ligação absoluta com Jesus, seu Filho e nosso Salvador.

Na sua devoção filial para com a Mãe de Deus, o povo cristão, à medida que iaperdendo o contacto com a vida da liturgia, deixando de a celebrar e dela se alimentar,foi criando outros tempos, bastante marginais ao ano litúrgico, para celebrar a Mãe deDeus. Não foi certamente um gesto cismático, ao menos na intenção; mas, sem se

Page 240: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIRGEM SANTA MARIA NA LITURGIA DO TEMPO DO ADVENTO

I SemanaDomingo2ª-Feira3ª-Feira4ª-Feira5ª-Feira

II Sem.Domingo4ª-Feira6ª-Feira

Sábado

III Sem.Domingo2ª-Feira3ª-Feira4ª-Feira

IV Sem.Domingo

Dia 17

Dia 18Dia 19Dia 20

Dia 21

Dia 22

Dia 23Dia 24

Resp. 2

Leit. 2Resp. 2Leit. 2Resp. 2Leit. 2Resp. 2

Leit. 2Resp. 2Leit. 2

Ant. 4

Leit. br.

Leit. br.

Leit. br.

Ant. 4

Ant. 4Ant. 4

Ant. 4

Térc

ia, S

exta

e N

oa: A

nt. t

odos

os

dias

do

Adv

ento

Ant. 4Ant. 4

Ant. 4

Ant. 4

Ant. 4Ant. 4

Ant. 4

Evang.: A NascimentoB AnunciaçãoC Visitação

Oração s. oblatas

Oração colectaEvang.: GenealogiaPrefácio IIEvang.: NascimentoOração colectaEvang.: Anunciação

Evang.: Visitação

Evang.: Magnificat

Oração colecta

Dia I Vésp. Of. Leit. Laudes H. Inter. II Vésp. Missa

Page 241: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A VIRGEM SANTA MARIA NA LITURGIA DO TEMPO DO NATAL

Térc

ia, S

exta

e N

oa: A

nt. t

odos

os

dias

do

Tem

po d

o N

atal

até

ao

dia

7 an

tes

da E

pifa

nia,

exc

epto

na

sole

nida

de d

a Ep

ifan

ia

Ant. 1Ant. 2Ant. 3Ant. 4

Ant. 1Ant. 2Ant. 3Ant. 4

Ant. 1Ant. 4

Ant. 1Ant. 2

Ant. 1Ant. 2Ant. 3

Ant. 4

Ant. 1Ant. 2Ant. 3Ant. 4Ant. 4Ant. 4Ant. 4Ant. 4

Ant. 1Ant. 2Ant. 3Ant. 4

Ant. 4

Ant. 4

Resp. 2

Invit.Ant. 1,2,3Resp. 1Leit. 2

Invit.Resp. 1Leit. 2Resp. 2

Resp. 1VigíliaNoiteAurora

S. Família

Dia 27Dia 28Dia 29Dia 30

JaneiroDia 1

DomingoIIdepois doNatal

Dia 2Dia 3Dia 7

EpifaniaDia 9

TempoComumII Dom. C

FevereiroDia 2

Ev.: GenealogiaEv.: NascimentoEv.: Adoração pastores

Oração colectaII Leit.Ev.: Adoração pastores

Oração colectaII Leit.Ev.: Adoração pastores

Ev.: Apresentação IEv.: Apresentação II

Oração colectaOração colectaAnt. de entradaOração colectaEv.: Bodas de Caná

Ev.: Adoração Magos

Ev.: Bodas de Caná

Ev.: Apresentação

Dia I Vésp. Of. Leit. Laudes H. Inter. II Vésp. Missa

Page 242: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

242 PADRE JOSÉ FERREIRA

perderem valores que ao longo dos tempos foram sendo adquiridos, certamente enrique-cedores, é necessário ter hoje em conta o que o Concílio ensinou: “Os exercícios depiedade do povo cristão, contanto que sejam conformes às leis e às normas da Igreja, sãomuito recomendados... Mas estes exercícios devem ser organizados de maneira que,tendo em conta os tempos litúrgicos, se harmonizem com a sagrada liturgia, dela dealgum modo derivem e para ela se encaminhe o povo, já que, por sua própria natureza,ela lhes é, de longe, superior” (SC 13).

A própria Virgem Mãe nos guiará por estes caminhos, que Ela tão frequentementepercorre ao longo destes dias da Manifestação do Senhor, seu Filho. Segui-l’A por aí écertamente acertar com o caminho que leva a Jesus, e que a liturgia nos propõe. Ela nosfaça sentir e realizar aquele voto que os monges de S. Bernardo, tão devotado à VirgemSanta Maria, deixaram gravado na legenda do brazão, com símbolos mariais, que, portrês vezes, ornamenta a fonte do claustro do mosteiro de Alcobaça: “Quem te tevera porguia”!

Page 243: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O QUE A LITURGIA PEDE À MÚSICA

As acções da liturgia

A liturgia não é realidade abstracta; a liturgia são, em concreto, as acçõeslitúrgicas. A liturgia é, como o próprio nome indica, algo que se faz. Mas as acçõeslitúrgicas não são acções orientadas para produzir um resultado material, da ordem doutilitário, muito menos da ordem do rendível. As acções litúrgicas são celebrações. Elassão a proclamação de um acontecimento salvífico, em ordem a permitir a quem as realizaexprimir a acção de graças por esse acontecimento e assim entrar em comunhão com elee nele encontrar a salvação. As acções litúrgicas são, por isso, acções de um géneroúnico, porque único é o acontecimento que elas celebram. As acções litúrgicas são, antesde mais, momentos de contemplação e de louvor ao Senhor. A acção litúrgica é sempre,antes de tudo, acção-contemplação.

a) Acções como são, as celebrações litúrgicas supõem certos elementos fun-damentais, como também acontece com toda a celebração, mesmo não litúrgica; mas,naquelas, esses elementos são de uma ordem absolutamente excepcional. Esses ele-mentos são, em primeiro lugar, o objecto da celebração, o acontecimento salvífico que écelebrado, e que é sempre, em última análise, o Mistério Pascal de Nosso Senhor JesusCristo, celebrado na sua totalidade ou analisado em algum dos seus aspectos parti-culares, embora, como dizia Odo Casel, o mistério seja “sempre um só e sempre todo”.

No entanto, celebrada pelo homem, a acção litúrgica apanha a vida toda dohomem, tal como o Mistério Pascal sintetiza toda a vida humana, assumida pelo Verboque Se fez carne. É no Verbo encarnado que toda a vida humana e todas as suasexpressões, porque de filhos de Deus, podem ser também integradas na celebração daliturgia, pois é sempre verdade que a liturgia outra coisa não celebra senão o mistério doVerbo que Se fez carne, morreu e ressuscitou e está vivo para sempre, Primogénito detoda a criatura, Primogénito de entre os mortos, Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo. EmCristo, toda a vida e actividade humana é assumida na comunhão com o Pai pela acçãodo Espírito de Deus, que nos foi dado. Donde, o objecto da celebração litúrgica nuncapode ser visto de fora, com olhos profanos, quero dizer, com olhos puramente naturais,– São Paulo diria, com olhos carnais –, ou, em linguagem mais corrente, sem fé, semesperança e sem caridade. A acção litúrgica é, de facto, lugar eminente do exercício dasvirtudes teologais e, por isso também, a primeira expressão da vida mística do povo deDeus. É assim no seu todo; deve procurar sê-lo em cada um dos seus elementos.

b) Acção como é, a celebração litúrgica tem naturalmente um sujeito, um agente,aquele que a faz, que a realiza, que a celebra. Este sujeito é a Igreja unida a Cristo, opovo de Deus, e não considerado em abstracto, mas concretizado no sinal litúrgico que osignifica, o reúne e o torna presente na celebração. Este povo aí reunido é a assembleiacelebrante.

Page 244: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

244 PADRE JOSÉ FERREIRA

É assim que, de maneira bem inequívoca, se lê no Missal Romano, como primeirapalavra do Ordinário da Missa, e depois em todos os outros livros litúrgicos, a abrirqualquer das celebrações neles contidas, esta expressão que é uma criação feliz dareforma litúrgica: “Reunido o povo...”. De facto, a assembleia reunida para a celebraçãoé, na ordem da acção, que ela é, o primeiro elemento da liturgia. É a assembleia quem faza celebração. “Não há liturgia sem assembleia”, já assim se exprimiam, muito antes doConcílio, os pioneiros do movimento litúrgico.

Foi aliás a consciência da assembleia como sujeito da celebração, consciênciaobscurecida durante muitos séculos, que esteve na origem do esforço pela participaçãoactiva do povo na liturgia, esforço este que constituiu a primeira preocupação de todo omovimento litúrgico desde o início, já desde o fim do século passado, e logo assumidopelo Papa São Pio X e finalmente consagrado pelo próprio Concílio Vaticano II.

São Pio X, no seu primeiro documento público, curiosamente sobre a música naliturgia, começa por enunciar o princípio célebre respeitante à participação do povo nacelebração litúrgica, ao escrever: “A participação, activa e consciente, dos fiéis nos mis-térios da liturgia é a fonte primária e indispensável do espírito genuinamente cristão”,princípio que o Concílio haveria de integrar literalmente na Constituição sobre aSagrada Liturgia, acrescentando ainda que essa participação dos fiéis na celebraçãolitúrgica é exigência da própria natureza da liturgia e, por força do baptismo, direito edever do povo cristão (SC 14).

É por isso que, na reforma da liturgia, já começada antes do Concílio, concre-tamente desde Pio XII, e agora alargada, pelas normas conciliares, a toda a liturgia (SC21), se há-de dar toda a atenção ao lugar dos fiéis, inclusive nas rubricas dos livroslitúrgicos (ib. 31).

c) O outro elemento da liturgia é a própria acção celebrativa, o que simplesmentecostumamos designar por celebração. Tem sido quase só nela que se tem concentrado aatenção, quando se fala de liturgia, ou porque nem sempre se tem atentado suficiente-mente na assembleia celebrante, (e, de facto, ela foi durante muito tempo, quase comple-tamente esquecida), nem no mistério que é objecto de toda a celebração, (e isso infelizmentetambém aconteceu), ou porque, ao falar-se de “celebração litúrgica”, aqueles dois elementos,consciente ou inconscientemente, nela se consideravam incluídos.

A liturgia, enquanto celebração, concretiza-se, como dissemos, nas diversasacções litúrgicas. Em todas elas é sempre celebrado o mesmo Mistério Pascal doSenhor, mas cada uma delas o celebra nas diversas circunstâncias da vida dos homens.Se seguirmos, por uma ordem lógica normal, os momentos dessa vida em relação aosquais vai ser proclamado e celebrado esse Mistério Pascal, encontramos, em primeirolugar, o anúncio da Palavra de Deus, que, uma vez escutada e acolhida no coração,conduz os homens à fé, ponto de partida da vida em Cristo e depois da verdadeiracelebração daquele mistério na liturgia.

E logo vêm os Sacramentos da fé, a começar pelos sacramentos da IniciaçãoCristã, o Baptismo, “porta da vida e do reino”, logo seguido da Confirmação, e aculminar na Eucaristia, cuja repetição há-de ritmar o tempo dos cristãos ao longo detoda a sua vida.

Page 245: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O QUE A LITURGIA PEDE À MÚSICA 245

Vêm depois os outros Sacramentos, cada qual na respectiva circunstância da vidada comunidade eclesial ou de cada indivíduo, os vários Sacramentais, tão variados comovárias são aquelas circunstâncias, e, pontuando as horas de cada dia, a Liturgia dasHoras, assim chamada precisamente porque ela pretende manter em oração contínua osdiversos membros da comunidade cristã, cada qual conforme as suas disponibilidadesmateriais e espirituais, de maneira a dar assim, tanto quanto possível, cumprimento aomandamento do Senhor: “Orai”, que São Paulo concretizará, de maneira mais explícita:“Orai sem interrupção”.

Estes os elementos basilares de toda a liturgia, a que depois, em cada celebração,todos os que nela intervêm e todos os meios de que lancem mão para a realizar hão-decorresponder.

Estrutura da acção celebrativa

Uma vez consciente do Mistério da salvação que pretende celebrar, a assembleiada comunidade cristã celebra-o numa determinada acção litúrgica. O Mistério é divino,mas encarnado neste nosso mundo humano. A comunidade que o celebra é constituídapor homens e mulheres; é humana, mas assumida, no mistério da Encarnação do Verbo,até ao mundo divino; é a Igreja de Cristo, seu Corpo e sua Plenitude. As acções de quevai lançar mão para celebrar aquele mistério serão constituídas por elementos humanos,mas todos eles tomados como sinais de realidades divinas e instrumentos de comunhãocom o Verbo, que, de modo próprio a cada um, neles como que continua o mistério daEncarnação.

Estes elementos materiais de que consta a acção litúrgica são fundamentalmentedois: a palavra e o rito. A palavra exprime uma noção, fala particularmente à inte-ligência; o rito, aqui tomado no sentido de gesto ou acção, é algo da ordem do visual, ecomo que dá encarnação à palavra, dirige-se particularmente à sensibilidade, amplia emultiplica a capacidade expressiva da palavra. Mas estes dois elementos, palavra e rito,completam-se e interpenetram-se de tal maneira, que, na acção litúrgica, a própriapalavra frequentemente constitui um rito, uma situação ritual, como na Liturgia dasHoras; e o rito, já de si mesmo uma certa forma de linguagem, é normalmente acompa-nhado da palavra, chegando a integrá-la em si como elemento essencial ao próprio rito,como no caso dos Sacramentos. Se numa leitura tem o primeiro lugar a palavra, numaacção sacramental é essencial o rito, mas nem a leitura prescinde de algum gesto ritual,nem a acção sacramental existe sem a palavra que lhe determina a significação.

Dentro deste binómio de síntese, palavra e rito, cabem, no entanto, muitas evariadas formas, algumas particularmente significativas, que ampliam ou precisam asignificação simbólica da acção litúrgica total ou de algum dos seus momentos. Ocupaaqui lugar excepcional a música.

A música é já em si uma como que certa formulação da palavra, mesmo sem letra,porque ela própria é linguagem, como a palavra é também uma forma incipiente demúsica: toda a palavra gira em volta do seu acento (ad cantum), que lhe fornece umamúsica embrionária. Mas, na liturgia, a música tem o seu principal momento quandoligada à palavra. Ela é uma forma particularmente expressiva de dizer a palavra.

Page 246: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

246 PADRE JOSÉ FERREIRA

E daqui nasce já um primeiro princípio: a música estará tanto mais bem situada naacção litúrgica, quanto melhor ela se articular com a palavra que por ela se diz. Podetambém ser ouvida sem estar directamente ligada a um texto: mas, mesmo então, elaserá, na acção litúrgica, uma como que ressonância da Palavra de Deus, pois só esta dásentido à celebração. Em qualquer caso, a música nunca é, na acção litúrgica, elementoautónomo, mas sempre integrante do todo da acção celebrativa.

A função e o lugar da música na liturgia revela-se na medida em que ela souberintegrar-se nos três elementos fundamentais que acima observámos como componentesde toda a acção litúrgica: a assembleia celebrante, o mistério que ela celebra e a acçãolitúrgica, concreta, que a assembleia realiza para celebrar aquele mistério, que é sempre,em última análise, o Mistério Pascal do Senhor.

A Instrução Musicam Sacram acrescenta que “a acção litúrgica adquire formamais nobre quando realizada com canto” (n. 5). “Forma mais nobre” não pretendesignificar que o canto seja colocado na celebração como ornato exterior, como na óperase caracteriza uma personagem para representar uma figura que ela não é. Quandocantada, a palavra, que de si já é música, revela-se mais expressiva, emerge das profun-didades do coração e abre-se mais luminosa, como desabrocha a flor à luz do sol, nacomparação feliz de Sertillanges.

“Nobre” vem a significar dignidade, verdade, beleza, mais simplicidade do queespectáculo exterior. Também ao elemento ritual que é a música se aplica o que aConstituição sobre a Liturgia diz dos ritos em geral: “Brilhem os ritos pela nobresimplicidade” (SC 34).

Que pede então a liturgia à música?

Em primeiro lugar, a liturgia pede à música que ela seja, antes de mais, verdadeira,obedecendo aos critérios que lhe são próprios como autêntica arte dos sons, pois que naliturgia nada deve entrar que não seja bom e belo, ou não fosse a beleza o esplendor daverdade, como diziam os Antigos.

Depois, enquanto elemento integrante da liturgia, que ela seja a voz da assembleiareunida para celebrar o mistério da salvação. Mas a assembleia não é uma multidãouniforme; é antes um corpo orgânico, composto de membros diversificados, a cada umdos quais cabe a sua função própria, como pode ler-se na Constituição conciliar sobre aliturgia: “As acções litúrgicas não são acções privadas, mas celebrações da Igreja... Per-tencem a todo o Corpo da Igreja, mas atingem cada um dos seus membros de mododiverso...” (SC 26). “Nas celebrações da sagrada liturgia, limite-se cada um, ministro oufiel, ao exercer o seu ofício, a fazer tudo e só aquilo que lhe pertence, segundo a naturezado rito e as leis litúrgicas” (ib. 28). Esta afirmação vem depois frequentemente repetidanos diversos livros litúrgicos, como, por exemplo no Missal Romano (IGMR 28).

Voz da assembleia, a música, o canto em particular, há-de ser a voz de cadamembro da mesma, enquanto actor que é da mesma e única acção comum a todos os seusmembros.

Foi a esta luz que a Instrução Musicam Sacram recorreu para distribuir pelosdiversos “actores da celebração” (MS 13-26) o papel específico de cada um na ce-

Page 247: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O QUE A LITURGIA PEDE À MÚSICA 247

lebração e a sua participação na mesma por meio do canto. Será então a natureza daparte que a cada um cabe desempenhar que determinará o uso ou não e a natureza damúsica que ele deverá ou poderá utilizar. Uma coisa é o recitativo do presidente ou doleitor, outra o canto dos diálogos e aclamações, outra o de um refrão de toda aassembleia ao responder ao salmista, outra o de um cântico processional ou um hino,outra ainda o de um cântico particularmente confiado ao coro. Assim se verifica que aestrutura da assembleia com os seus diversos intervenientes e a estrutura da acçãolitúrgica que ela celebra vão a par uma da outra.

Em qualquer caso, o que a liturgia pede à música é que esta nunca considere osdiversos actores da acção sagrada como executantes que actuam como artistas do palcopara a plateia, de quem poderiam esperar aplausos, mas sempre como membros inter-venientes de uma mesma e única assembleia que celebra uma mesma e única acção litúrgica.

De facto, os diversos membros da assembleia, ao celebrarem uma acção litúrgica,são sempre membros dialogantes, que realizam, cada qual no que lhe compete, a mesmae comum acção celebrativa.

A liturgia pede, por isso, à música que ela seja sempre linguagem da fé daassembleia a que se destina, e não apenas expressão artística como que oferecida de foraà assembleia do povo de Deus, para que a música na igreja não volte a ser para os que aescutam, como já o foi no passado, aquilo a que alguém ironicamente chamou a “óperados pobres”.

Que mais pede à música a liturgia?

Pede que ela como que brote do mistério que na liturgia é celebrado. Se acelebração tem sempre como objecto o Mistério Pascal do Senhor, todos os elementosque nela se encontram não podem deixar de ter sempre em vista esse mesmo mistério,embora considerado e celebrado nas diversas circunstâncias de tempo, lugar e pessoasem que ele é celebrado.

As circunstâncias de tempo são, em primeiro lugar, as do calendário cristão, o quese costuma designar por tempos litúrgicos. São depois as do tempo da vida das pessoas,com os seus ritmos pessoais próprios de cada uma, como aqueles em que se inscrevem osmomentos mais significativos da vida de cada pessoa do nascer ao morrer.

Enquanto celebração do Mistério Pascal, a liturgia pede à música que saibacontemplá-lo e cantá-lo com aquela santidade de formas que melhor convenham àsantidade do mistério, e que é, em última análise, o mistério da aliança e comunhão dohomem com Deus em Cristo. É a este mistério, que, de uma maneira ou outra, maisdirecta ou menos directamente se referem os textos litúrgicos.

Enquanto celebração desse mistério pelos membros da Igreja, que o Senhor fezmembros do seu Corpo Místico, a liturgia pede à música que saiba ser linguagem de fé,de esperança e de amor, coisa que só poderá conseguir quem estiver penetrado por taisatitudes do espírito. Quanto a este aspecto, puderam consegui-lo os mestres dascomposições clássicas, do canto gregoriano e da polifonia clássica, verdadeiras ex-pressões encarnadas de espíritos que sabiam contemplar, para o cantar, o mistériocristão.

Page 248: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

248 PADRE JOSÉ FERREIRA

Que mais pede ainda à música a liturgia?

Que ela se integre na celebração como elemento que é da acção celebrativa. Pedeque, com a música, a assembleia e cada um dos seus membros, cada qual segundo omodo que lhe é próprio, cante a celebração, e não apenas que cante na celebração, comono passado ainda recente tantas vezes sucedeu. Perdoai se insisto sobre estes pontos,mas a estrutura da celebração, os seus vários elementos e a significação dos mesmos foimuitas vezes ignorada, sobretudo ao longo do segundo milénio que está prestes a chegarao fim. Seria bom que tais perspectivas não entrassem pelo terceiro, que queremos todorenovado. Foram assim as perspectivas que o Concílio nos deixou, e concretamentesobre o ministério da música na liturgia.

As coisas felizmente vão mudando; e são agora já os documentos relativos àmúsica na liturgia que apontam metodicamente como se hão-de respeitar os diversosgraus de participação da assembleia por meio do canto na acção litúrgica a partir daestrutura da celebração e com a intervenção da assembleia, como o faz, uma vez mais, aInstrução sobre a música na liturgia, já citada (nn. 29-31), leitura que precisará certa-mente de ser hoje actualizada, porque a própria reforma litúrgica, particularmente nocampo da música, também nos vai ensinando a reformar. Aliás, em toda a legislação dosúltimos decénios sobre a música na liturgia, até nos próprios documentos conciliares,sente-se que ela não está isenta de ter sofrido certo choque entre correntes de opinião,então ainda não suficientemente amadurecidas.

Da experiência do passado às exigências do futuro

A liturgia sempre contou a música entre os elementos celebrativos normais desdeo Antigo ao Novo Testamento. Testemunham-no, no Antigo Testamento, entre outras, asreferências ao culto do tempo de David, então ainda na Tenda da Reunião, e do tempo deSalomão, agora já no Templo de Jerusalém. Testemunha-o particularmente o hináriolitúrgico do povo de Deus, que é o livro dos Salmos. Não faltam também testemunhos docanto no Novo Testamento, como na celebração da Ceia do Senhor, nas rápidas alusõesde S. Paulo aos “hinos, salmos e cânticos inspirados”, enquanto momentos privilegiadosda vida cristã, e a colecção dos belíssimos hinos cristológicos inseridos pelos autoressagrados nos seus escritos, como os das epístolas de S. Paulo (Ef 1; Flp 2; Col 1; I Tim 3)e os do Apocalipse, agora, de novo, felizmente recuperados pela Liturgia das Horas.

Os Bispos da Antiguidade interrogaram-se, por vezes, sobre a oportunidade decertas formas musicais na liturgia, em razão de o texto poder ficar um tanto ofuscado.Foi o caso de S. Agostinho, mas que acabou por ver desfeitas essas dúvidas ao re-cordar-se das lágrimas que derramara na igreja de Milão ao ouvir os cânticos do BispoS. Ambrósio.

A recuperação da Europa ocidental, devastada pela migração assoladora dospovos a ela estranhos no fim da Antiguidade, viu reaparecer inúmeras novas comunida-des cristãs, em que a liturgia foi momento culminante e irradiante, e onde o canto, depoisconhecido sob o nome de canto gregoriano, foi elemento de alta espiritualidade e arte.

Page 249: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O QUE A LITURGIA PEDE À MÚSICA 249

No entanto, não pode deixar de ter-se presente que a assembleia celebrante dessestempos era sobretudo assembleia de monges e clérigos, e que o período em que essasassembleias assim cantavam não foi, de maneira nenhuma, dos mais felizes na história daliturgia.

Passada a Idade Média, tão rica em expressões religiosas de toda a ordem, nemsempre de todo ortodoxas, e frequentemente paralelas à liturgia, surge a época doRenascimento, que viu evoluir as formas musicais vindas do canto gregoriano, já muitodistanciado da beleza das suas origens, para os esplendores da polifonia clássica, quenão desdizia do mundo social de então. Mas também nesse período uma coisa era oesplendor da schola cantorum de Palestrina, outra o estado da assembleia litúrgica,estado esse que, com não muitas diferenças, se havia de prolongar até ao nosso século.Podemos recordar o espectáculo do cortejo papal na abertura do Concílio, naquelamanhã de 11 de Outubro de 1962. Não se sentiria ali deslocado o século XVI!

De tal estado de coisas se deu conta S. Pio X, que, mal chegou à cátedra romanade S. Pedro, logo procurou que a liturgia aparecesse, como ela sempre tinha sido, mesmoquando isso não era evidente, a “fonte primária e indispensável do espírito genuinamentecristão”, como ele próprio a apresentou, e que a música nela se integrasse, de novo,como a voz exultante do povo de Deus.

Era o primeiro passo. Estava-se no princípio deste século. “Novo sopro doEspírito pairava sobre a face da Igreja”, no dizer de Pio XII, referindo-se directamenteao movimento litúrgico. E, ao lado do litúrgico, surgia também o movimento bíblico, oteológico, o ecuménico, e de todo este movimento de ressurreição surge o Concílio, cujoprimeiro documento foi exactamente sobre a liturgia.

Do Concílio nasceu um espírito e uma letra. O espírito tudo vai animar e vivificar.A letra, no que se refere à liturgia, ela aparece multiplicada nos muitos livros litúrgicosreformados, que oferecem agora aos músicos cristãos um inesgotável campo de trabalhoe de criatividade. Penso que nunca, no passado, acontecera coisa semelhante: umamultidão de textos litúrgicos destinados a serem cantados, mas ainda desprovidos demúsica. Outrora, um cântico nascia com a sua música. Se hoje isso não acontece, aquelestextos esperam naturalmente serem transformados em cânticos. E tudo isto na variedadequase incontável das diversas línguas de todo o mundo cristão.

Cada país tem agora larga porta aberta diante dos músicos da respectiva língua. Eestou certo que o futuro virá a dizer deles o que nós agora dizemos dos criadores dasbelas melodias do passado.

Que pede hoje a liturgia à música? Entre outras coisas, e certamente em primeirolugar, que, à semelhança do sábio prudente do Evangelho, ao maravilhoso tesouro velhoque o passado nos legou, a música de hoje saiba acrescentar muitos outros tesourosnovos.

E o Senhor louvará também o servo que assim o tiver realizado, que tambémassim ele se mostrará entendido nas coisas do Reino de Deus (cf. Mt 13, 52).

Page 250: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO PASCAL NO TEMPO DA IGREJA

Trinta anos depois da publicação do primeiro documento do Concílio Vaticano II,precisamente sobre a Liturgia (1963) publicou o Papa João Paulo II o Catecismo daIgreja Católica (1993), em que a liturgia ocupa lugar extraordinário – toda a segundaparte –, logo a seguir ao desenvolvimento que faz do Símbolo da fé, o Credo. Este é,como o nome indica, o resumo da fé da Igreja, é a sua lex credendi, a regra da fé. Aliturgia, por sua vez, é a celebração feita pela comunidade dos crentes dos mistériosda fé, celebração que o Concílio apresenta, uma vez mais, como a lex orandi dacomunidade cristã, a regra da oração.

Num encontro de liturgia, pareceu bem, para celebrar simultaneamente aquelasduas datas, pararmos um pouco na contemplação do mistério a que o Catecismo, nasequência do Concílio, dá tão grande relevo e que é o centro e a síntese de toda a históriada salvação, o mistério Pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Aquela segunda parte do catecismo intitula-se precisamente A Celebração doMistério Cristão, que, logo no capitulo I, recebe o titulo de O Mistério Pascal no Tempoda Igreja, título que serve também agora de título a esta exposição.

I. EXPLICAÇÃO DE ALGUNS TERMOS

1. Mistério

Mistério é, na origem, uma palavra grega que leva em si a ideia de oculto, desecreto, de inacessível. Assim, mistério é, antes de mais, Deus. “Deus nunca ninguém Oviu”, diz S. João (Jo 1, 18; 1 Jo 4, 12). Mas Deus não quis quedar-Se oculto, longe doshomens. Deus é bom, é a própria bondade, e “é próprio do bem difundir-se”, diziam-noaté os filósofos. A criação é a primeira manifestação de Deus, do Deus bom e que fazcoisas boas. Depois de cada dia da criação, lê-se na Bíblia: “Deus viu que era bom” oque tinha feito (Gen 1, 10.12.18.21.25). A criação é já revelação de Deus (cf Rom 1, 20).

Mas a manifestação maior de Deus é a que Ele nos faz em seu Filho, o Verbo, aPalavra, quando encarnou e Se fez homem entre os homens, “Ele por quem todas ascoisas foram feitas” (Jo 1, 3; e Credo). Revelação do mistério de Deus, Cristo é tambémEle chamado Mistério (Ef 3, 4; Col 4, 3; cf 1 Cor 2, 7). Cristo revela o Pai: “Filipe, quemMe vê, vê o Pai”, disse Jesus a Filipe na última Ceia (Jo 14, l 1), e revela o desígnio deDeus sobre o homem, sobre o mundo, sobre o Universo inteiro, desígnio esse que édesígnio de amor e de salvação. Também a este desígnio misterioso de Deus chama SãoPaulo mistério: “Mistério escondido desde os séculos em Deus” (Ef 3, 9). Este mistériorevela-se na “economia da salvação”, isto é, na sábia disposição, por etapas, darealização desse mistério, que vai encontrar o seu ponto culminante em Cristo,

Page 251: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO PASCAL NO TEMPO DA IGREJA 251

principalmente no “mistério pascal da sua bem-aventurada paixão, ressurreição de entreos mortos e gloriosa ascensão”, como se exprime o Concílio (SC 5). A Páscoa de Jesus,isto é, a sua passagem deste mundo para o Pai é o centro de todo o mistério de Cristo; porela “se realizou a nossa reconciliação com Deus... e nos foi dada a plenitude do cultodivino” (SC ib.).

No mistério pascal encontra a unidade toda a vida de Jesus, desde que entrou nomundo em atitude oblativa: “Eu venho para fazer a tua vontade” (Hebr 10, 5) até que nacruz entregou ao Pai o seu espírito (Lc 23, 46). Mas cada um dos momentos da vida doSenhor, por ser momento da realização de um aspecto daquele mistério total, podetambém ele ser chamado mistério. E assim falamos dos mistérios de Cristo, no plural,como já no princípio do século II se exprimia S. Inácio de Antioquia, como o fazsobretudo o Calendário litúrgico ao celebrar os mistérios do Natal, da Paixão, daAscensão, etc. e como o fazemos ao meditarmos a coroa dos mistérios do rosário.

E mistérios vão chamar-se ainda as diversas acções litúrgicas, sobretudo as dosSacramentos, as quais celebram sempre o mistério pascal, cada qual em cada situaçãoparticular da vida dos homens. Dentro das acções sacramentais com que celebramos omistério pascal, recebe, de maneira particular, o nome de “divinos mistérios” a ce-lebração da Eucaristia, o sacramento por excelência da Páscoa do Senhor.

2. Tempo da Igreja

Tempo da Igreja é outra expressão que entra no título desta exposição e coincidetambém exactamente com o título que o Catecismo da Igreja Católica apresenta paraexpor “a ‘economia’ sacramental”, ou seja aqui a celebração que a Igreja faz, na liturgia,do mistério pascal. O “tempo da Igreja” é este tempo em que vivemos, desde que elaapareceu ao mundo no Pentecostes até que o Senhor venha no fim dos tempos. Este é otempo em que a Igreja, olhando para o passado, faz memória do acontecimento pascal, otorna presente na celebração litúrgica para nele participar, e anuncia o futuro para ondecaminha, para então nele comungar plenamente na glória celeste, sempre sob o di-namismo e a energia que nasce do mistério pascal do Senhor.

II. O MISTÉRIO PASCAL NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO À LUZ DA FÉ

Apresentados os termos de que nos estamos a servir, procuremos penetrar umpouco mais no conteúdo do mistério pascal, visto que é dele que, em particular, nosocupamos nesta exposição. Ele é o próprio acontecimento da Páscoa do Senhor, a suapassagem deste mundo para o Pai (Jo 13, 1), pela morte à ressurreição, entendido emtoda a significação divina que esse acontecimento reveste. De facto, a paixão de Jesus,com todos os episódios dolorosos em que ela se concretiza, pode ser vista por fora, comoa poderia observar e descrever qualquer testemunha ocular, por exemplo, um jornalista.Quantas colunas de um periódico não encheria o jornalista que tivesse estado emJerusalém naqueles dias! Mas a paixão de Jesus pode ser vista por dentro e ser entendidacomo o próprio Jesus a viveu. Para o homem da rua, simples testemunha do acon-

Page 252: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

252 PADRE JOSÉ FERREIRA

tecimento, tratar-se-ia da condenação à morte de um réu acusado e julgado em tribunal eexecutado numa cruz, como tantos outros já o tinham sido antes daquele; para quem asaiba entender por dentro a morte de Jesus, a morte a que nós O condenámos, é a oblaçãoda sua vida ao Pai, num gesto de amor em favor dos homens: “A minha vida ninguém Mea tira; sou Eu que a dou. E tenho poder de a dar e de a retomar” (Jo 10, 18). E tudo Eleo fez em obediência plena à vontade do Pai. Jesus morre como homem em oblação aoPai, mas o sentido e o fruto dessa oblação manifesta-se na ressurreição. O Verbo deDeus, na encarnação, assume em Si o homem para o conduzir, em Si, até ao Pai. Esse é otermo da via dolorosa da sua paixão, que a ressurreição revela ter sido atingido. O“mistério escondido desde os séculos em Deus” revela-se finalmente na sua plenitude erevela-se como um desígnio divino de salvação.

“Esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus” nascedaquele desígnio de Deus que “quer que todos os homens se salvem e cheguem aoconhecimento da verdade” (II Tim 2, 4; SC 5); mas foi “quando o tempo atingiu a suaplenitude” que Cristo o realizou, principalmente pelo mistério pascal da sua paixão,ressurreição e ascensão.

Este momento culminante, que é a Páscoa de Cristo, foi sendo prefigurado desdeo princípio pelas maravilhosas obras de Deus no povo da Antiga Aliança, maravilhasessas que apontavam desde logo para a Páscoa do Senhor. O Verbo de Deus, “nascido doPai antes de todos os séculos”, e que viria a encarnar na “plenitude dos tempos”, estápresente em todas essas obras maravilhosas, por meio das quais Deus vai anunciando omistério escondido e vai realizando o desígnio divino que nele se contém, e que é,digamo-lo antecipadamente, o de “reunir todas as coisas em Cristo, tudo o que há noscéus e na terra” (Ef 1, 9-10). S. Paulo refere-se às instituições do Antigo Testamentocomo sendo “sombra das coisas futuras”, sombra projectada antecipadamente pelarealidade que é o futuro Corpo de Cristo (Col 2, 17).

Seria oportuno percorrer aqui alguns desses momentos do passado anterior aCristo, onde já perpassava a sombra da sua presença, que virá a manifestar-se totalmentena plenitude dos tempos, e onde se pode observar como tudo, desde sempre, seencaminhava para Ele.

1. No Antigo Testamento

No princípio, após o primeiro pecado, logo se ouve a primeira boa-nova, por issojustamente chamada o Proto-evangelho, que anuncia a vitória da descendência da mulhersobre a serpente, a vitória de Cristo sobre Satanás. É, de facto, o proto-evangelho, oprimeiro anúncio da claridade pascal.

Depois, ao longo dos séculos, a Tradição viva do povo de Deus vai interpretandoa história desse mesmo povo como anunciadora do mistério de Cristo. Lemo-lo naprópria Sagrada Escritura: os Evangelhos, por exemplo, a cada passo aproximam osacontecimentos da vida de Jesus de acontecimentos ou situações do Antigo Testamento,particularmente ao descrever a história da Paixão. Todo o Evangelho de S. João e aEpístola aos Hebreus estão fundados sobre a compreensão do Antigo Testamento comotipo ou figura do mistério de Cristo.

Page 253: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO PASCAL NO TEMPO DA IGREJA 253

2. Na pessoa de Jesus

Ouvimo-lo da boca do próprio Senhor Jesus, como quando interpreta a história deJonas como figura da sua ressurreição ou quando parte do maná do deserto para Seapresentar como o Pão vivo e Ele mesmo como o novo Moisés, e vemo-lo ainda quandorealiza na sua pessoa figuras dos tempos passados, por exemplo, na entrada triunfal emJerusalém que realiza a profecia do Livro de Zacarias (Mt 21, 5; Zac 9, 9).

3. Nos Padres da Igreja

Escutamo-lo também da boca dos Padres da Igreja, como nesta bela passagem deMelitão de Sardes, bispo do séc. II, que lemos no Ofício de Leitura de Quinta-feiraSanta: “Muitas coisas foram preditas pelos Profetas acerca do mistério da Páscoa, que éCristo. Ele desceu dos céus à terra para curar as enfermidades do homem; revestiu-Se danossa natureza no seio da Virgem e fez-Se homem... Foi conduzido à morte como ocordeiro; libertou-nos da sedução do mundo, como outrora tirou os Israelitas do Egipto;salvou-nos da escravidão do demónio, como outrora arrancou Israel das mãos doFaraó... Foi Ele que venceu a morte e confundiu o demónio, como outrora Moisés aoFaraó. Foi Ele que destruiu a iniquidade e condenou à esterilidade a injustiça, comoMoisés ao Egipto. Ele é a Páscoa da nossa salvação.

Foi Ele que tomou sobre Si os sofrimentos de muitos: foi morto em Abel, atado depés e mãos em Isaac, peregrino em Jacob, vendido em José, exposto em Moisés,degolado no cordeiro, perseguido em David e desonrado nos Profetas.

Foi Ele que encarnou no seio da Virgem, foi suspenso na cruz, sepultado na terrae, ressuscitando de entre os mortos, subiu ao mais alto dos céus”.

Aqui temos num dos Padres da Igreja da segunda metade do século II († 189) avisão cristã de toda a história da salvação desde o seu início. De facto, tudo no AntigoTestamento, pessoas e acontecimentos, prefiguram e anunciam Cristo e o seu mistériopascal. S. Paulo di-lo logo de Adão, que era “figura d’Aquele que devia vir” (Rom 5, 14).

4. No testemunho da liturgia

Esta compreensão da história da salvação como unificada em Cristo e na suaPáscoa pode ler-se igualmente também, e não menos expressivamente, na liturgia cristã.Pode ser aduzido como particularmente significativo o texto dos chamados Impropériosde Sexta-feira Santa, em que são evocadas e postas na boca de Cristo, como queixasdirigidas ao seu povo, situações várias ocorridas ao longo de todo o Antigo Testamento,quando o Filho de Deus ainda não era Cristo, o Verbo encarnado, e postas em paralelocom os vários passos da Paixão do Senhor. Este momento que culmina toda a vida deCristo e toda a história da salvação, a Hora da Cruz, sintetiza e contém em si toda ahistória do Universo. Como a semente que germina e se desenvolve até atingir o porte deárvore carregada de frutos, o Mistério Pascal, realização do desígnio salvífico de Deus,está presente e actuante em todos os tempos e lugares, até que, em Cristo, Adão e a suadescendência esteja sentado à direita do Pai.

Page 254: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

254 PADRE JOSÉ FERREIRA

III. VIDA EM CRISTO NA IGREJA

No título desta exposição fala-se do tempo da Igreja. O Concílio ensina-nos afazer a passagem e a continuação do tempo de Cristo para o tempo da Igreja, quecontinua a ser tempo de Cristo agora na Igreja: “Do lado de Cristo adormecido na cruznasceu o sacramento admirável de toda a Igreja” (SC 5). S. João Crisóstomo já antes ohavia assim explicado: “Assim como Deus, do lado de Adão, formou a mulher, assimCristo, do seu lado, nos deu a água e o Sangue para formar a Igreja. E assim como Deusabriu o lado de Adão enquanto ele dormia, assim Cristo nos deu a água e o Sanguedurante o sono da sua morte” (Cat 3 no Ofício de Leitura de Sexta-feira Santa). A Igrejanasce assim na cruz, quando Jesus, ao morrer, lhe dá a vida, e manifesta-se no Pentecostes,quando o Espírito do Ressuscitado se difunde sobre os Apóstolos e, por eles, sobre aassembleia dos povos de todas as nações que há debaixo do céu (Act 2, 5). Aí começa oTempo da Igreja, que continuará sobre a terra “até que Ele (o Senhor) venha” (1 Cor 11,26). Este tempo inicia-se com o Dom do Espírito, que é o “Espírito da verdade”; é Eleque nos vai introduzir na verdade total, porque Ele não falará de Si mesmo, mas dirá oque tiver ouvido e revelará as coisas que vão chegar. Ele glorificará o Filho, porquereceberá do bem do Filho e o revelará aos discípulos (cf Jo 16, 13-14). A obra da Encar-nação redentora é obra da Santíssima Trindade. É assim que o Catecismo a apresenta(CIC 1107-1112) e é assim que o mistério pascal a manifesta. Esse mistério procede dodesígnio de Deus, realiza-se no Filho sob a acção do Espírito Santo, e assim continuaráa realizar-se na Igreja. “Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na suaIgreja, diz o Concílio, especialmente nas acções litúrgicas” (SC 7). E o Catecismo dirá:“Na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente o seu mistério pascal”(CIC 1085). As duas afirmações podem ter por detrás de si a palavra célebre de S. LeãoMagno: “O que na vida do nosso Redentor era visível passou para os ritos sacramentais”.Assim como antes de Cristo tudo se encaminhava para a cruz, em que Cristo Se ofereceuao Pai como nosso Cordeiro Pascal, assim agora da cruz jorra o rio de água viva que, naIgreja e pela Igreja, conduz a Deus.

O momento histórico, em que os acontecimentos da Páscoa do Senhor se deram,passaram, como tudo o que é histórico; mas o que por eles se realizou de aliança entreDeus e os homens, o que por eles Cristo alcançou de perdão – “Cordeiro de Deus que tirao pecado do mundo” –, de vida: – “Eu vim para que tenham a vida” (Jo 10, 10) –, decomunhão com o Pai: – “Eu não digo que intervirei por vós junto do Pai, porque opróprio Pai vos ama” (Jo 16, 26-27) –, de esperança e já de posse da vida eterna: –“Tende coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 23) –, tudo isso que Cristo nos alcançou,tudo isso não passará nunca, é uma realidade permanente e eterna, como Ele próprio,que, uma vez ressuscitado dos mortos, já não morre mais (Rom 6, 9) e “está sempre vivojunto do Pai para interceder por nós” (Heb 7, 25).

Nestes frutos da Páscoa de Cristo, ou, por outra comparação, nesta torrente devida que jorra de Cristo, como o Senhor explicava à mulher samaritana, participam todosos que n’Ele crêem, n’Ele esperam e O amam, até todos os que, mesmo sem o saberem,por Ele foram resgatados, se expressamente O não rejeitaram. Os que expressamente Oconhecem pela fé integram-se na unidade do seu Corpo Místico pelos Sacramentos daIniciação Cristã: o Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia. Os Sacramentos não são

Page 255: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO PASCAL NO TEMPO DA IGREJA 255

acções simplesmente individuais, isoladas em si mesmas, objecto de devoção de alguns,privilégio dos mais perfeitos ou mesmo mais comprometidos. São antes eles que noscomprometem, porque eles significam e realizam a nossa comunhão com Cristo, naunidade do seu corpo, que é a Igreja.

A Igreja nasceu de Cristo, do seu lado aberto na cruz pela lança do soldadoromano, e vive agora em si a própria vida de Cristo: “Eu neles e Tu em Mim, a fim deque sejam perfeitos na unidade” (Jo 17, 23).

1. Nas celebrações da liturgia

Esta unidade é no ser e no viver, porque se vive segundo o que se é, como diz oditado antigo. Pela graça que vem do mistério pascal de Cristo, a Igreja é o Corpo deCristo, e cada membro da Igreja é membro de Cristo. Este mistério de comunhão é totale contínuo na liturgia celeste, onde Cristo Se encontra à direita do Pai, Cordeiro imoladoà cabeça da assembleia dos eleitos, como O apresenta o Apocalipse. Para lá caminhamoscomo peregrinos, pois “não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a cidadefutura” (Heb 13, 14), onde o louvor agradecido da Igreja ao Pai, princípio e fim, é aliturgia em toda a sua significação.

Assim deveria ser também já na terra cada ocupação da existência do cristão, umlausperene, um louvor contínuo. Mas tal não nos é possível, se não tivermos a repetiçãoda liturgia celebrada em certos momentos; são as diversas celebrações da liturgia deCristo, matizando a vida da Igreja. É aí que o acontecimento salvífico de Cristo se tornaacontecimento da Igreja. As celebrações da liturgia da Igreja são momentos privile-giados e necessários para vivermos na comunhão do mistério pascal.

A celebração litúrgica é o momento em que a Igreja acolhe a liturgia celeste e nelaparticipa, porque não somos nós que criamos a vida pascal; é a vida pascal de Cristo quenos atinge e nos arrasta em si, como na torrente do rio da vida que jorra do trono de Deuse do Cordeiro (Ap 22, 1). Corpo de Cristo como é, animada pelo Espírito que ela recebeuno Pentecostes, é como tal que a Igreja celebra o mistério pascal. Assim, as diversascelebrações da liturgia são necessariamente celebrações eclesiais.

2. A assembleia litúrgica, sinal da Igreja

O primeiro sinal da Igreja na celebração da liturgia é a sua reunião em assem-bleia. Ao referir-se aos primeiros passos da vida da Igreja a seguir ao Pentecostes, oConcílio diz expressamente: “Desde então, nunca mais a Igreja deixou de se reunir emassembleia para celebrar o mistério pascal”. E concretiza o conteúdo dessa celebração:“Lendo ‘o que a Ele (Cristo) se referia em todas as Escrituras’ (Lc 24, 27), celebrando aEucaristia, na qual ‘se torna presente o triunfo e a vitória da sua morte’ e dando graças ‘aDeus pelo seu dom inefável’ (II Cor 9, 15) em Cristo Jesus, para louvor da suaglória’ (Ef 1, 12)”.

Mais do que um acto de devoção particular, a celebração é um acto eclesial, umacelebração da Igreja de que cada um é membro, sem deixar de ser um indivíduo concretoe singular, mas que o é sempre como membro do Corpo de Cristo. Na celebração, cada

Page 256: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

256 PADRE JOSÉ FERREIRA

qual, na função que lhe compete, participa na liturgia comum, que é a de Cristo no meiode nós e à cabeça de todos. O Presidente da assembleia tem precisamente esta função deser sinal de Cristo como Cabeça da Igreja; e a assembleia é, em cada lugar onde se reúne,sinal, naquele lugar, da universal Igreja de Cristo, como, já no século I, o papa S.Clemente dizia, escrevendo à Igreja de Corinto: “A Igreja de Deus, presente em Roma,saúda a Igreja de Deus, presente em Corinto” (I Clem, Ep. I, Inic.). As assembleiasmultiplicam-se para fazer chegar a todos o sinal da unidade e da comunhão, não parasignificar a autonomia e a separação entre si. O mistério pascal é mistério de unidade ecomunhão. Jesus morreu “para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dis-persos” (Jo 11, 52).

Mas na assembleia nem todos estão na mesma situação, nem desempenham amesma função. Em princípio, a assembleia é composta de baptizados-confirmados,nascidos da água e do Espírito Santo. Porque assim se entra na Igreja por aquelesSacramentos da iniciação cristã, tem de supor-se que, antes de ter chegado ao Baptismo,sacramento da fé, se chegou à fé e à conversão a Cristo, deixando os caminhos que aEle não conduziam. Foi o tempo do catecumenado. A declaração com que é frequentemuitos cristãos apresentarem-se, declarando: “Cristão não praticante”, significaque se trata de alguém que foi baptizado antes do tempo ou de um penitente que não sereconhece como tal (J. Corbon).

Outro elemento que diversifica os membros de uma assembleia são as diversasfunções que cada um é chamado a desempenhar. Já nos referimos ao presidente; mas hátambém os ministros que desempenham outros ministérios. Assim se manifesta que aassembleia se apresenta como Corpo de Cristo, na diversidade dos seus membros. Opresidente, Bispo ou presbítero, e o primeiro dos ministros, o diácono, são até cons-tituídos tais pelo Sacramento da Ordem; são ministérios ordenados, o que manifesta quea assembleia é toda ela constituída pela energia do Espírito Santo.

3. As diversas acções sacramentais

E é outro aspecto fundamental da celebração litúrgica: ela não realiza apenas umacto de culto religioso, mas celebra o mistério pascal, a liturgia do mistério de Cristo. Nacelebração somos convocados para tomar parte nesse mistério. A comunhão com a Trin-dade Santíssima, que é a última realidade vital da liturgia, não se conquista, recebe-se;como não se dá a paz na celebração, recebe-se a paz d’Aquele que é a nossa Paz (Ef 2,14). O mistério pascal é celebrado na Igreja como fonte a que são chamados os que têmsede: “Vós que tendes sede, vinde à nascente das águas” (Is 55, 1; Ant. Entr. 3ª fª IV SemQuar.). A liturgia é o momento de nos aproximarmos desta fonte de vida. Uma só fonte,uma só água, mas muitas as situações em que temos sede e, por isso, a necessidade denos aproximarmos e de bebermos, com alegria, das fontes da salvação (Vig. Pasc.). Afonte é sempre e só o Pai, mas Ele no-la abre no mistério pascal de seu Filho, que oEspírito Santo mantém viva ao longo do tempo da Igreja, para que possam ser saciadosos que sabem reconhecer “o dom de Deus” (Jo 4, 10), de que Jesus falava à mulhersamaritana. Por isso, o mistério pascal, depois que nos introduziu na Igreja, acompanhatoda a vida da mesma Igreja e de cada cristão em particular.

Page 257: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O MISTÉRIO PASCAL NO TEMPO DA IGREJA 257

Enxertados em Cristo pelo Baptismo (cf Rom 11, 17), a cada passo nos é posta amesa da Eucaristia, sacramento que, partindo da última Ceia de Jesus, a qual, por suavez, antecipava a oblação do Calvário, vai acompanhando os discípulos do Senhor portodas as estradas da vida, como aquela que, logo no primeiro dia pascal, conduziu osprimeiros discípulos a Emaús, para aí O reconhecerem “na fracção do pão”, até à últimaparticipação na Eucaristia, na hora de passar deste mundo para o Pai, como Viático, oalimento para a viagem.

Mas todos os momentos e situações da vida humana são atingidos pela energiado mistério pascal. Temos assim o que o Catecismo chama os Sacramentos da Cura:– Penitência e Unção dos Doentes – os Sacramentos do serviço de comunhão: – Ordeme Matrimónio –. Temos ainda os Sacramentais: “sinais sagrados, à imitação dosSacramentos, por meio dos quais são significados efeitos sobretudo de ordem espirituale obtidos pela oração da Igreja” (CIC 1667).

4. Novas estradas de Emaús

Nascida da Páscoa do Senhor, aviventada pelo Espírito que procede do Pai e doFilho, dada aos homens como fruto da Páscoa de Jesus, a Igreja é a nova Eva, mãe detodos os viventes, como Cristo ressuscitado é o novo Adão (I Cor 15, 45). Na pessoa deMaria Madalena ela encontra o seu Senhor à luz primeira do primeiro dia, no jardimonde O tinham sepultado. Era a nova criação que nascia – “Se o grão de trigo morrer,dará muito fruto” (Jo 12, 24) –. E como Madalena que logo vai levar a notícia jubilosaaos discípulos em Jerusalém, a Igreja é enviada até aos confins da terra com a boa novade que Ele não está ali no túmulo, mas que ressuscitou e está vivo para sempre. Naslongas caminhadas que para tanto terá de percorrer pelas estradas do mundo, se se fiademasiado no que vê ou no que ouve, na simples experiência da vida e dos homens, podenão ser capaz de reconhecer o Senhor que caminha consigo, e, ao chegar o entardecer evendo apagar-se a luz, mesmo no dia da Ressurreição, pode vir a encontrar a dúvida e atristeza; mas, se pelo caminho for escutando as palavras da Escritura, cujo sentido Elelhe desvenda, no termo da jornada, se abrir a porta da casa e sobretudo do coração aoestranho viajante e O compelir a entrar, então há-de reconhecê-l’O na fracção do Pão, noSacramento que Ele lhe deixou para que o celebre em sua memória (Lc 24, 13 ss).

É isso que a Igreja faz em cada primeiro dia da semana. Passou o sábado, o termoda primeira criação, em que até Deus descansou. Volta o primeiro dia, o dia da criação daLuz, mas agora daquela Luz que não mais terá ocaso, Cristo ressuscitado. É o “Dia doSenhor”, dia que, sendo o primeiro é logo o “oitavo dia”, o que está para além do tempoe introduz na eternidade. Assim o designaram os Padres da Igreja, que, desde osprimeiros séculos, o souberam entender na plenitude da sua significação cristã. Mais doque “dia de descanso”, como o era o sábado judaico, o Dia do Senhor, o Domingo, é odia da nova criação, dia da Vida que vence a morte, dia da assembleia dos filhos de Deusque supera todas as divisões, dia da comunhão de todos os membros de Cristo na vida daTrindade Santíssima. Com plena sabedoria e inteligência, o Pai de Nosso Senhor JesusCristo deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade, e, segundo este desígnio bene-volente que desde sempre concebera para o realizar em Cristo, fez d’Ele a Cabeça, não

Page 258: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

258 PADRE JOSÉ FERREIRA

só da Igreja, mas de todas as coisas que há nos céus e na terra (cf Ef 1). Este desígnio desabedoria e de amor de Deus sobre todo o Universo revelou-se e realiza-se no mistériopascal de Nosso Senhor Jesus Cristo “para louvor da glória da sua graça” (ib 1, 6).

Glória a Ele pelos séculos!

Page 259: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA,ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA

I. O SENTIDO DAS PALAVRAS

Antes de entrarmos propriamente no tema que nos é proposto, parece-meoportuno explicar algumas palavras que iremos encontrar ao longo desta exposição.

1. Bênção

a) A palavra

É a primeira palavra, que frequentemente é entendida em sentidos diversos que,não sendo opostos, se completam uns aos outros.

Por bênção entende-se habitualmente alguma coisa que se recebe, como quandose diz: “Dê-me a sua bênção”, ou, correlativamente, como alguma coisa que se dá: “Deusnos dê a sua bênção”.

Por vezes, bênção equivale a uma circunstância favorável, entendida comoacontecimento feliz, diante da qual exclamamos: “Foi uma bênção de Deus”.

Outras vezes, bênção é o nome que se dá a determinada fórmula de oração comque se invoca a protecção divina para uma pessoa ou coisa, ou sobretudo o rito com quese inicia o uso dessa coisa. Assim, faz-se a bênção de uma igreja antes de ela começar aservir, ou de um terço antes de ele começar a ser usado. Neste caso, a bênção equivale aum rito de inauguração, mas não se limita a ser uma inauguração.

b) Sentido etimológico

Bênção vem do latim benedictionem, que é um substantivo derivado do verbobenedicere, que quer dizer, à letra, bendizer, dizer bem. A palavra portuguesa deveria sernormalmente bendição, como se diz maldição em relação ao verbo maldizer. Mas, defacto, o uso repetido da palavra levou a que bendição viesse a simplificar-se em bênção,que, segundo a sua origem, continua a significar o acto de bendizer. Este sentido debendizer quase se perdeu em português. Raras vezes se usa a palavra bênção para signi-ficar o acto de bendizer e, se se usa, as pessoas geralmente não lhe ligam esse sentido.Quem reza a Liturgia das Horas ainda lá vai encontrar, na Hora de Laudes do Domingoda primeira semana do Saltério, esta leitura breve tirada do Apocalipse: “Louvor aonosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro. A bênção, a glória, a sabedoria, aacção de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos”(Ap. 7, 10-12). “Bênção ao nosso Deus...” Mas, somos nós que damos a bênção a Deus?É verdade, se entendermos a palavra bênção no sentido que ela tem em latim: benedictio,acto de bendizer, que, no fundo, se poderia também traduzir por louvor, como aliásfazem várias edições, mesmo em português.

Page 260: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

260 PADRE JOSÉ FERREIRA

Em latim benedictio ou, no plural, benedictiones, não causa a mínima confusão. Éassim que se chamam aquelas jaculatórias que se costumam dizer depois da bênção doSantíssimo: “Bendito seja Deus”, etc., que em latim se intitulam: Benedictiones, mas queem português seria difícil chamar as Bênçãos, e para mais depois da Bênção doSantíssimo Sacramento! Do mesmo modo, o cântico dos três jovens da fornalha deBabilónia do Livro de Daniel (Dan. 3, 57-88), que rezamos também em Laudes do I e IIIDomingo, é chamado na Regra de S. Bento as Benedictiones, que na tradução dosbeneditinos portugueses se chamam as “Bênçãos”, mas entre aspas (Regra XII), dadoque a palavra não se usa habitualmente com o sentido de louvores. E porque é que sechamam em latim Benedictiones? Porque todos os versículos desse cântico começampela palavra: “Benedicite”, “bendizei”. Bênção significa, portanto, na origem, a palavracom que se bendiz.

Mais complicada talvez é a evolução do verbo latino correspondente benedicere,que significa directamente bendizer. Mas, assim como bendição se resumiu na palavrabênção, o verbo bendizer, que, no entanto, continua em uso, se abreviou na palavrabenzer. Bendizer e benzer são, na origem, a mesma coisa; mas actualmente bendizersignifica o acto de louvar, ao passo que benzer significa dar ou fazer uma bênção.

Ainda mais. O substantivo bênção deu depois, por sua vez, origem ao verbo aben-çoar, que já não conserva minimamente a ideia originária de bendizer ou de louvar.Temos assim, em português, três verbos paralelos: Bendizer, benzer e abençoar. Emlatim, uma só palavra diz tudo o que as três palavras portuguesas querem dizer. É o verbobenedicere.

Torna-se, por isso, difícil entender a palavra bênção e ligá-la aos três verbos queacabo de referir.

c) O uso

Bendizer usa-se para Deus: “Bendizei ao Senhor”. Benzer, usa-se para as coisas:“Benza-me este terço”. Abençoar, usa-se para as pessoas: “Jesus abençoava as crianças”(CB, n. 143) e para as coisas: “Abençoai estes dons que vão alimentar os nossos corpos”(CB, n. 798). Bênção usa-se ainda para Deus, mas é dificilmente entendido, como acimavimos; usa-se para as pessoas: cf. “Bênção da família” (CB, nn. 42-89) e para as coisas:cf. “Bênção dos instrumentos de trabalho” (Cf. CB, n. 698 ss.).

2. Eucaristia

Outro termo que iremos encontrar é Eucaristia.Até há poucos anos atrás, as pessoas, quando ouviam a palavra Eucaristia,

entendiam exclusivamente o Santíssimo Sacramento e geralmente relacionado com ofacto da “presença real”; nos tempos mais recentes, Eucaristia passou a ser frequen-temente sinónimo de Missa.

A palavra Eucaristia é uma palavra grega, que no grego profano significasimplesmente “agradecimento” como “bem haja”.

Page 261: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 261

Na tradução latina da Bíblia, concretamente na edição de base para toda a Igreja,chamada Vulgata, não se encontra nunca o substantivo eucaristia. Encontra-se sim aexpressão verbal, analítica, “gratias agere”: “dar graças”. O grego tem um verbo,sintético, para exprimir esta mesma ideia: eucharistein, que não tem equivalente emportuguês, a não ser que quiséssemos criar o neologismo “eucaristiar”, para significar“dar graças”, o que já tem sido tentado.

A partir do grego, que nos primeiros séculos era língua corrente do povo e até dosescritores, cristãos e não cristãos, a palavra grega “eucharistia” foi transcrita, não traduzida,para latim: “eucharistia”, ao lado de tantas outras, também de origem grega, como Cristo,Baptismo, mistério, etc.; mas nem assim ela entrou nas traduções latinas da Bíblia.

No entanto, ela foi usada, e logo desde o princípio, nos escritos dos autorescristãos e com dois sentidos diferentes, embora relacionados entre si: um, para designara oração de louvor e acção de graças, usada particularmente na celebração da Ceia doSenhor; outro, para significar o Sacramento do pão e do vinho, consagrados naquelamesma oração. É elucidativo a este propósito o texto de S. Justino do meado do século II(†165). Diz ele ao descrever a celebração: “Traz-se pão e vinho com água àquele quepreside. Ele recebe-os e faz uma longa eucaristia... Quando terminou, o povo presenteaclama, dizendo: “Amen”. Então, distribui-se a cada um das “coisas eucaristiadas”. Econtinua: “ A este alimento chamamos nós Eucaristia” (Apol. I, 65-67).

Temos aqui a palavra eucaristia nos seus dois sentidos: a oração de louvor eacção de graças e o sacramento do Corpo e Sangue do Senhor. Foi o nome da oraçãoque deu depois o nome ao Sacramento, e não o contrário.

Mas já antes do tempo de S. Justino, a palavra grega “eucaristia” é referida, como naDidakhê (IX, 9) (c. 100) e em S. Inácio de Antioquia (Ef. 13; Fil 4; Esm 7, 1; 8, 1 ss) (c. 107).

A palavra “eucaristia”, enquanto oração, usou-se ainda em outras situaçõesdiferentes da celebração da Missa, para significar precisamente uma oração de louvor eacção de graças, como, por exemplo, ao falar-se do precónio pascal, que foi chamado,agora em latim, eucharistia lucernaris, oração de louvor a acompanhar o acender dalucerna ou lâmpada, isto é, o Círio, oração que também se intitulou laus cerei, “louvordo Círio”.

Enquanto nome de oração, a palavra “eucaristia” quase caiu em desuso; noentanto, o Missal conserva ainda uma ressonância, e bem acentuada, desse termo,mesmo em português, chamando “Oração Eucarística” à oração principal da Missa, enão por estar relacionada com o SS. Sacramento da Eucaristia, mas por ela ser a“eucaristia” ou oração de acção de graças por excelência.

Nas narrações bíblicas da última ceia, ao falar-se da instituição da Eucaristia, oescritor sagrado não usa o substantivo “eucaristia”, mas o verbo “eucharistein”, já acimareferido, não num tempo definido, como se diz em gramática, mas usando os particípiosdos verbos, que havemos de traduzir em português pelo gerúndio ou até por uma oraçãogramatical. Assim, querendo traduzir à letra o texto grego da instituição da Eucaristia,não se diria: “Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu-o aos seus discípulos”, mas:“ Jesus, tomando o pão e tendo dado graças, partiu (-o) e dando (-o) aos discípulos,…”(Mt 26, 26).

Page 262: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

262 PADRE JOSÉ FERREIRA

II. PERSPECTIVA PASCAL DA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

A propósito da análise de vocabulário que temos vindo a fazer, fomos enxergandoo sentido das palavras que vamos utilizar. Mas agora, relendo o título que o nosso pro-grama escolheu para esta exposição: “A Eucaristia, oração de bênção por excelência”,acabei por perguntar a mim próprio qual o sentido da palavra Eucaristia naquele contexto:se a celebração do mistério eucarístico, na sua totalidade, isto é, o conjunto dos ritos eformulários que constituem a liturgia de Missa, ou se a Oração Eucarística, “ o pontocentral e culminante de toda a celebração, como se lê no Missal (IGMR, 54).

Em qualquer caso, a Oração Eucarística será sempre “oração de bênção por exce-lência”; mas ela só poderá ser assim entendida dentro do conjunto da celebração de queela é “ o centro e o ponto culminante”.

A liturgia da celebração eucarística da Missa reproduz, tanto no mistério quecelebra, como no modo de o celebrar, o que Jesus fez na última ceia.

Por isso, para melhor compreender o sentido daquela instituição, é muito útilsituá-la dentro do conjunto da celebração em que ela nasceu.

1. A última ceia de Jesus no ambiente da Páscoa judaica

A Páscoa é, já no Antigo Testamento, uma das grandes festas do povo judaico.Celebra a saída do Egipto, o êxodo. A festa é celebrada numa ceia, a ceia pascal, cujotema é a acção de graças por aquela libertação da escravidão sofrida no Egipto. “Esse dia– é a palavra de Javé a Moisés e deste a toda a comunidade de Israel – esse dia será paravós uma data memorável, que haveis de celebrar com uma festa em honra do Senhor.Festejá-lo-eis de geração em geração, como instituição perpétua” (Ex 12, 14).

Jesus, como judeu que era, observava fielmente a Lei e, segundo S. Lucas, os seuspais iam todos os anos a Jerusalém pela festa da Páscoa (Lc 2, 41ss). Jesus ia certamentecom eles, pois que foi até, quando tinha doze anos, a idade de se apresentar publicamentecomo membro da comunidade, que Ele, decorridos os dias da festa, ficou em Jerusalém,“perdido e achado na casa do Pai”.

No último ano da sua vida, celebrou igualmente a sua última ceia com osApóstolos. Discute-se ainda se essa ceia foi realmente a ceia pascal do calendáriojudaico, embora tudo leve a crer que sim, a começar pela data em que foi celebrada: nosdias dos Ázimos (Mc 14, 12; Lc 22, 7), “na noite em que ia ser entregue” (1 Cor 11, 23),quando comiam a Páscoa, isto é , o cordeiro pascal, que os discípulos tinham preparado(Mt 26, 26), Páscoa essa, a respeito da qual Jesus declara aos seus Apóstolos: “Tenhodesejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de padecer” (Lc 22, 15). Emqualquer caso, foi em ambiente pascal; e quando Jesus entrega aos seus discípulos osmistérios do seu Corpo e Sangue, fá-lo como sinal de “Nova Aliança” no seu Sangue, Eleque é agora o verdadeiro Cordeiro Pascal.

2. A última Ceia e a Paixão do Senhor

Se por um lado, Jesus, olhando para o passado, celebra a Ceia em acção de graçaspela libertação do povo de Deus ao sair do Egipto para passar para a Terra “prometida a

Page 263: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 263

Abraão e à sua descendência para sempre” (Lc 1,55), olha igualmente para o futuro,com os olhos postos na sua Morte sobre a cruz, que O há-de levar a passar deste mundopara o Pai” (Jo 13,1), para a glória da ressurreição. Aquela Ceia é memorial de aconteci-mentos do passado e é entregue aos seus discípulos para que eles a venham a celebrartambém como memorial de acontecimentos que, naquele momento, ainda são futuros,conforme as palavras que lhes diz: “Isto é o meu Corpo, que será entregue por vós…”;“Este é o cálice do meu Sangue… que será derramado por vós…”. E sê-lo-á na hora daPaixão, a hora a que, desde longa data, Jesus se refere, chamando-lhe “a sua hora”, comoquando, nas bodas de Caná, afirma: “A minha hora ainda não chegou” (Jo 17,1; cf. 12,23; 13,1).

Aquela Ceia, mesmo que não tenha sido “pascal” no sentido de estar a seguir ocalendário litúrgico judaico, é “pascal” na significação que reveste e se destina acontinuar a ter, uma vez deixada aos seus discípulos para que eles a celebrem pelostempos além.

Aquela Ceia começa por ser celebrada em memória do passado, a Páscoa daAntiga Aliança, e acaba por ser celebrada como memorial antecipado da Nova Páscoa, aPáscoa de Jesus. O Senhor nem criou um rito completamente novo, mas, partindo doantigo rito que estava celebrando, dá-lhe um sentido novo. Se até alí Ele e os seus tinhamfeito “aquilo”, a ceia pascal anual, em memória da Páscoa de Moisés, daqui em diantecontinuarão a fazer a Ceia, mas com elementos novos que o Senhor nela introduz, paraque doravante ela seja celebrada em memória da sua Páscoa, a Páscoa da Nova Aliança:“Fazei isto em memória de Mim”, ou: “Fazei isto como meu memorial”. A grandenovidade destas palavras não é tanto o mandato dado aos seus discípulos de, no futuro,fazerem “aquilo”, mas de o fazerem como memorial de Si.

A partir daquela hora, ou, melhor, a partir do momento, em que, à luz da Ressur-reição, foram capazes de compreender aquelas últimas palavras de Jesus, os seus discí-pulos começaram a celebrar, por toda a parte, aquele memorial do seu Senhor.

III. AS FONTES BÍBLICAS DA INSTITUIÇÃO DAEUCARISTIA E DA ÚLTIMA CEIA DE JESUS

São quatro as passagens da Sagrada Escritura, onde se lê a instituição da Eu-caristia: S. Paulo: 1 Cor 11, 23-26; S. Lucas: 22, 14-20; S. Mateus: 26, 26-30; S.Marcos: 14, 22-26.

Destas passagens a mais antiga parece ser a de S. Paulo na Primeira Epístola aosCoríntios, que será assim o mais antigo testemunho da celebração da Eucaristia feitapela Igreja. Mas é provável que esta e as outras narrações da instituição da Eucaristiafossem já textos usados na liturgia eucarística, antes de terem encontrado lugar dentro dotexto bíblico.

Aquelas narrações bíblicas da instituição não descrevem pormenorizadamenteessa Ceia. Os autores sagrados relatam apenas, ou quase apenas, o que na Ceia de Jesusse referia à novidade da Eucaristia. S. Lucas ainda refere a taça de vinho que era servida

Page 264: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

264 PADRE JOSÉ FERREIRA

antes de partir o pão (Lc 22, 17-18) e S. Mateus bem como S. Marcos referem ainda ocanto dos salmos com que se encerrava a Ceia (Mt 26, 30; Mc 14, 26).

Mas nós podemos restabelecer a liturgia dessa Ceia através dos relatos de autoresjudaicos fora da Bíblia.

A. Antes da Ceia propriamente dita

1. Ao chegar à sala, cada conviva toma uma primeira taça de vinho, dizendo:“Bendito sejais, Senhor nosso Deus, rei dos séculos, que nos dais este fruto da videira”.

2. Servem-se as ervas amargas, à maneira de aperitivo.3. Segue-se uma segunda taça de vinho. S. Lucas começa aqui a narração da Ceia,

dizendo: «Jesus, tomando uma taça, deu graças e disse: “Tomai e reparti entre vós, poisdigo-vos que não tornarei a beber do fruto da videira, até que venha o reino de Deus”»(Lc 22, 17-18).

4. O haggadah. O mais novo dos que estão no grupo dirige então ao que preside,e que é, em princípio, o pai de família, esta pergunta: “Porque é esta noite diferente dasoutras noites?” A esta pergunta responde o que preside em forma dialogada, explicandoo sentido daquela celebração, explicação essa que é uma evocação da Páscoa como elavem narrada no livro do Êxodo. É uma verdadeira catequese mistagógica, ao mesmotempo que a proclamação das “obras maravilhosas” de Deus, as “mirabilia Dei”, emfavor do seu povo. É, até certo ponto, como a função da liturgia da Palavra nas nossasEucaristias. A partir daqui pode depois nascer o louvor e a acção de graças. A esta“homilia” chamava-se o “haggadah”.

5. Ao encerrar esta primeira parte, o canto dos Salmos, o hallel (Sl 112-113, 1-8),com o refrão Aleluia depois de cada meio versículo.

B. A Ceia propriamente dita

6. O partir do pão. A Ceia propriamente dita começa com o partir do pão, pãoázimo, acompanhado, como sempre, de uma bênção: “Bendito sejais, Senhor, nossoDeus, Rei dos séculos, que fazeis produzir à terra o pão,” e, ao entregar o pão partido, afórmula: “Este é o pão da aflição que os nossos pais comeram na terra do Egipto.”

Muito provavelmente foi neste momento que Jesus, abrindo a Ceia, entregou opão aos seus discípulos, dizendo: “Isto é o meu Corpo (ou: Eis o meu Corpo), que vai serentregue por vós”.

Aquele pão é verdadeiramente o seu Corpo, mas o seu Corpo destinado à Paixãoe morte na cruz.

7. Segue-se a manducação do Cordeiro pascal, o manjar principal da Ceia,servido sem ritos especiais.

8. A taça da bênção. No fim da Ceia, isto é, no fim do Cordeiro pascal, é servidauma terceira taça, que vai ser acompanhada de um rito especial, o rito particularmentesignificativo da acção de graças, da bendição. S. Paulo chama-lhe “o cálice de bênção”(1 Cor 10, 16). O pai de família toma a taça que tem diante de si, de novo cheia de vinho,eleva-a e pronuncia, de pé, uma longa oração de acção de graças, a berakah, por todas as

Page 265: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 265

“maravilhas de Deus” celebradas naquela Ceia pascal. Foi o que Jesus fez. E entregandoo cálice aos seus discípulos, declara-lhes: “Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue daNova Aliança”, ou, como se lê em S. Paulo e S. Lucas: “Este cálice é a Nova Aliança nomeu Sangue.” (1 Cor 11, 25; Lc 22, 20). E acrescentou: “Fazei isto em memória deMim”, ou: “Como meu memorial.”

IV. DA ÚLTIMA CEIA DE JESUS À EUCARISTIA DA IGREJA

A. A Oração Eucarística, coração da celebração eucarística

O que as narrações bíblicas dizem da última Ceia de Jesus com os seus discípulos,passou para a celebração da Eucaristia da Igreja, na Missa.

Na última Ceia, Jesus tomou o pão e o cálice, deu graças, partiu o pão e deu o pãoe o vinho aos seus discípulos. São três acções, três gestos, que se fazem: tomar o pão eo cálice, partir o pão e dar o pão e o vinho do cálice; e é uma fórmula que se diz: deugraças, a bênção ou oração de acção de graças.

A estes quatro momentos da Ceia correspondem os quatro momentos da cele-bração da Eucaristia da Igreja: ao tomar nas mãos o pão e o cálice corresponde apreparação das oferendas, impropriamente, mas habitualmente, chamada o “ofertório”;à acção de graças corresponde, na Missa, a Oração Eucarística; o partir do pão continuana fracção do pão eucarístico em ordem à comunhão; ao dar e distribuir o pão e o vinhodo cálice corresponde a comunhão.

Três acções e uma oração. Destes quatro momentos é o da oração que dá sentidoaos outros três, o da oração de acção de graças ou eucarística.

A Oração Eucarística da liturgia da Missa deriva directamente daquela oração deacção de graças, a berakah da Ceia pascal, já acima referida.

A Liturgia Eucarística é sempre precedida da Liturgia da palavra, a “mesa daPalavra de Deus”, onde se abrem aos fiéis os tesouros da Bíblia (IGMR 34). A pro-clamação da Palavra de Deus nesta primeira parte é já um ponto de partida para a“bendição”, a oração de louvor e acção de graças na Oração Eucarística. Esta não vai serum frio agradecimento de quem se sente beneficiado pelos dons de Deus, mas antes aproclamação sentida e entusiasmada de quem, à vista do que Deus fez, das suas obrasadmiráveis, é levado a elevar-se até Ele para O bendizer (bênção) e Lhe dar graças(eucaristia); para O “eucaristiar”, poderíamos repetir o neologismo.

O prosaico “obrigado” português, com que, por vezes, se pretende agradecer atéos dons de Deus, não tem nada que ver com a acção de graças bíblica. O “obrigado” olhapara quem foi beneficiado; o “bendizer” olha para Aquele donde parte o dom. “Bendito”e não “obrigado”!

Depois da Liturgia da Palavra, o rito da “preparação das oferendas” orienta-se játodo para a “Oração Eucarística”. Aquele é simples rito de preparação, é como que o pôra mesa para a Ceia do Senhor. Mas os convidados já ali estão, e, por isso, também eles sepreparam e assumem as disposições espirituais com que hão-de tomar parte na oração debênção que vai seguir-se.

Page 266: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

266 PADRE JOSÉ FERREIRA

Neste sentido, a recente reforma litúrgica introduziu já neste momento depreparação das oferendas uma breve “bênção”, vinda, ao que parece, directamente daliturgia judaica, e que possivelmente o Senhor Jesus teria usado ao iniciar a última ceia:“Bendito sejais, Senhor, pelo pão que nos dais,… etc”.

Assim, todo o rito da preparação das oferendas se encontra logo marcado, desde oinício, com aquele tom de bênção e acção de graças, em ordem à Eucaristia. É o queindica o Missal ao concluir todo este rito, com estas palavras: “Assim termina apreparação dos dons e tudo está preparado para a Oração Eucarística” (IGMR 5-3).

O rito da preparação das oferendas devia deixar toda a assembleia em atitude depresença interior e de entusiasmo incontido para ouvir proclamar essa oração, “pontocentral e culminante de toda a celebração” (ib. 54). E, mais do que ninguém, o presidenteda assembleia, que, em nome de todos, a vai proclamar, precisa de estar bem conscientedo lugar e do sentido dessa oração e proclamá-la da maneira que ela exige, e que até oMissal propõe: cantada nos diálogos, no prefácio, na aclamação do Santo (o do Missal!),possivelmente na narração da ceia e na anamnese subsequente e no final: “Amen”.

Não sendo cantada, seja proclamada “claramente e em voz alta” conforme à natu-reza do texto e à composição da assembleia (cf. ib. 18).

A Oração Eucarística existe em todas as liturgias cristãs e em todas elas com amesma significação de oração de louvor e acção de graças. Deriva da berakah judaica,mas adaptada à celebração cristã.

Na tradição romana só existia um formulário, pelo menos até 1968, com o nomede canon, isto é, a regra ou norma da acção, canon actionis; a acção é a celebraçãoda Eucaristia. Na liturgia hispânica, em uso na nossa península até ao século XI,chamava-se illatio e, na galicana contestatio. O Oriente tem várias orações eucarísticas,e recebem o nome genérico de “anáfora”, isto é, “elevação”, em ligação com a ex-clamação anterior: “Corações ao alto”, com que também elas se iniciam, ou com osentido de “oblação”, “oferecimento”.

Actualmente a liturgia romana tem quatro Orações Eucarísticas gerais, e maisoutra, a quinta, com quatro variantes, para as Missas em Diversas Circunstâncias, eainda duas para as Missas da Penitência e três para as Missas com crianças.

A Oração Eucarística é a oração presidencial por excelência, proclamada poraquele que preside à assembleia, bispo ou presbítero, mesmo que se trate de umaconcelebração. Neste último caso, está previsto que a parte central, isto é, a epiclese I,a narração da ceia, a anamnese e a epiclese II, seja pronunciada por todos os con-celebrantes, mas “em voz baixa”, de modo a poder sobressair distintamente a voz docelebrante principal (IGMR 170). No entanto, esta disposição canónica de hoje não eraa da Igreja antiga: foi admitida depois em determinados casos especiais, e foi exigidanuma declaração de Pio XII, como reacção à teoria então nascente de que bastariaestar-se presente na celebração com intenção de concelebrar, mesmo sem sinais ex-teriores, incluindo a proclamação das fórmulas sacramentais. Estes princípios foramdepois assumidos pela reforma litúrgica pós-conciliar e são os que ainda prevalecem noslivros litúrgicos (cf. IGMR 153-208).

A Oração Eucarística, pelo facto de ser oração presidencial, não deixa de seroração de toda a assembleia. “O sacerdote convida o povo a elevar os corações para oSenhor, na oração e na acção de graças, e associa-o a si na oração que ele, em nome de

Page 267: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 267

toda a comunidade, dirige ao Pai por Jesus Cristo. O sentido desta oração é que toda aassembleia dos fiéis se una a Cristo na proclamação das maravilhas de Deus e na oblaçãodo sacrifício” (IGMR 54).

Toda a maneira como ela se desenrola testemunha que ela é a Oração de Bênçãode toda a assembleia, de maneira particular nos diálogos, a começar logo pelo do iníciodo prefácio, na formulação plural de toda a oração, no sentido eclesial do mistério que écelebrado e pelo qual damos graças e na disposição comunitária de toda assembleia,desde o lugar que ocupa em volta do altar até às atitudes corporais que é chamada atomar (IGMR 20-21).

B. Percorrendo a Oração Eucarística

1. O diálogo inicial. Sempre que o presidente se prepara para proclamar umaoração em nome da assembleia saúda-a, para lhe manifestar que aquela oração é comuma todos e não é apenas dele.

a) A fórmula: “O Senhor esteja convosco” é de origem bíblica e é atestada, nestemomento, no princípio do século III por S. Hipólito, e existe, com pequenas variantes,em todas as liturgias cristãs sem excepção.

b) “Corações ao alto” é um apelo dirigido à assembleia em ordem a fazer nascernela a atitude espiritual que convém à proclamação da Oração Eucarística: “Corações aoalto” e não na terra, nem nas coisas nem nas preocupações terrenas.

c) “Demos graças ao Senhor” é precisamente o invitatório que anuncia directa-mente e sem equívocos o sentido da Oração Eucarística. É como que a sua definição:“Dar graças”, “eucaristiar o Senhor”, voltemos ao neologismo. Não ficam dúvidas sobreo que vamos fazer: “Dar graças”. A quem? “Ao Senhor”. Esta fórmula, que também seencontra já em S. Hipólito, recebeu posteriormente uma amplificação: “Ao Senhor,nosso Deus”. Assim ficou até nós. A resposta: “É nosso dever, é nossa salvação” foicopiada directamente de uma tradução francesa de dois especialistas em latim litúrgico,D. Bernard Botte e Christine Mohrmann, que a tinham publicado, não em ordem ao usolitúrgico, mas como tradução crítica. De facto, os franceses, na liturgia da Missa,acabaram por aceitar outra versão: “Cela est juste et bon”.

A tradução portuguesa é talvez um pouco fria; haveríamos de ter presente queaclamações como esta não pretendem tanto transmitir um conceito intelectual,como exprimir um sentimento, quase uma emoção. De facto, a resposta latina: “Dignumet justum est” é uma aclamação, como uma ratificação, que se encontra até na linguagemprofana, como grito de aprovação e aclamação, como aconteceu, por exemplo, naeleição de um imperador.

2. O prefácio é a primeira parte da oração propriamente dita, depois do diálogointrodutório. É aí que desde logo se pode compreender o sentido de louvor e acção degraças da Oração Eucarística.

Além do texto, que já passaremos a analisar, alguns outros sinais sublinham osentido solene e transcendente da Oração Eucarística e particularmente deste hino deabertura, que é o prefácio.

Page 268: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

268 PADRE JOSÉ FERREIRA

Em princípio, o prefácio deveria ser cantado. O prefácio é, por natureza, um poe-ma grandioso, não distante nem artificial, mas como uma grande exclamação, nascida dacontemplação das maravilhas de Deus, realizadas na criação e na história da salvação, eque logicamente desabrocha na aclamação, não menos grandiosa, que é o “Santo, Santo,Santo”. Isolar o “Santo” do prefácio é não prestar atenção até à lógica gramatical daqueleconjunto. O prefácio se não for cantado, seja, ao menos, bem declamado.

O nome de prefácio nada tem a ver com o que habitualmente se quer significar,quando se fala do prefácio de um livro. Neste caso, o prefácio é qualquer coisa que aindanão faz parte do corpo do livro, mas simplesmente se lhe antepõe e como que lhe servede apresentação. Na Eucaristia, o prefácio faz parte da Oração Eucarística, é a sua pri-meira parte, que logo deixa ver, desde o princípio, o sentido de louvor agradecido quetoda a Oração Eucarística vai proclamar.

O prefácio não é portanto o que se diz ou se faz antes, mas o que é solenementeproclamado, o que se diz em voz alta, de maneira proclamativa. O prefixo pre (prae),que é uma preposição, poderá ter sido equivalente a pro, e a palavra prefácio poderá atéter significado na origem a proclamação de toda a Oração Eucarística.

O prefácio diz-se de pé, atitude normal da oração comunitária e particularmenteda oração de louvor.

O presidente di-lo de braços abertos, mãos de palmas voltadas para a frente, ematitude de quem louva e dá graças, e não de quem apara uma esmola que se implorou.Esta última atitude não existe na liturgia.

Quanto ao texto, o Missal apresenta actualmente 114 prefácios, cada qual paradeterminada circunstância.

O texto latino começa o prefácio em ligação com a última resposta da assembleia;só depois apresenta os vocativos: “Senhor, Pai santo”, etc. A tradução portuguesa optoupela ordem inversa: primeiramente os vocativos citados, para só depois retomar a deixada assembleia: “é nosso dever, é nossa salvação”. Pretendeu-se certamente pôr emrelevo, logo desde o princípio, o destinatário de toda a oração, o Pai. E está certo que oé; mas perdeu-se em parte o ritmo que devia articular o princípio do prefácio com o finaldo diálogo que o introduziu.

No prefácio, podemos distinguir três partes: a) o lançamento do louvor, da “euca-ristia”: “…é nosso dever, é nossa salvação dar-Vos graças, sempre e em toda a parte…”;b) depois, o aspecto particular da história da salvação de que, em cada celebração, se fazespecial memória e pelo qual se dão graças; c) finalmente, a última parte que estabelecea ligação com o louvor dos bem-aventurados da Igreja celeste, o qual, logo a seguir, sevai exprimir na aclamação do “Santo”.

3. O Santo é uma aclamação de origem bíblica. Ouviu-a Isaías, no templo, quan-do, no dia da sua vocação para o ministério profético, os Serafins dialogavam entre si:“Santo, Santo, Santo, o Senhor Deus omnipotente (Sabaot), a sua glória enche toda aterra” (Is. 6, 3).

Ao texto do Livro de Isaías, veio juntar-se, pelo menos desde o século VI, oversículo do salmo 117: “Bendito o que vem em nome do Senhor”, referido também porS. Mateus (Mt 21, 9) a propósito da entrada de Jesus em Jerusalém. O refrão “Hossana”é igualmente tirado do mesmo salmo (v. 26).

Page 269: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 269

O “Santo” é a proclamação solene da santidade de Deus, que fez abalar os gonzosdas portas do templo e o encheu de fumo, deixando o profeta estarrecido, não tanto pelomedo de Deus, mas pela consciência que tinha de se achar “homem de lábios impuros” eos seus olhos terem sentido a presença do Rei, o Senhor Sabaot (ib.).

Do ponto de vista literário, o “Santo” articula-se com o prefácio, de que é conti-nuação, como foi dito. É bom o hábito, hoje muito vulgarizado, de cantar o “Santo”; maslogicamente isso supõe o canto do prefácio. É que, na realidade, prefácio e Santo nãosão apenas duas peças a seguir uma à outra, mas o Santo na continuação da outra, oprefácio. Do ponto de vista musical, é significativa a melodia do Santo XVIII gregoriano,que é pura e simplesmente a continuação da melodia do prefácio.

O Santo é uma aclamação da assembleia toda. O Missal diz no Ordinário da Missa:“O sacerdote conclui o prefácio, cantando ou recitando em voz alta com os ministros e opovo: Santo, Santo, Santo… etc.” E, na Instrução Geral: “Toda a assembleia, em uniãocom os coros celestes, canta ou recita o “Santo”. Esta aclamação, que faz parte da OraçãoEucarística, deve ser cantada ou recitada por todo o povo juntamente com o sacerdote”(IGMR 55 b).

A reforma litúrgica ainda não conseguiu os seus efeitos neste ponto. Os nossos“Santos”, que ouvimos com frequência, não são, muitas vezes, nem bíblicos, nem li-túrgicos, nem belos. Esses, é preciso eliminá-los de vez! E os cantores têm que aprendero que é o “Santo” e como hão-de participar no canto do mesmo.

4. “Depois do Santo” é simplesmente assim que, em fontes antigas, é designada apequena peça que faz a ligação entre o “Santo” e a epiclese 1, que vem a seguir. Tambémé designada pelas primeiras palavras latinas, a que corresponde, em português, a fórmula:“Vós sois verdadeiramente santo” (em latim: “Vere Sanctus”). Apesar de elemento se-cundário, ele tem o seu interesse, sobretudo para significar como o pensamento vai do“Santo” à epiclese, a invocação ao Espírito Santo. Na aclamação cantámos: “Santo,Santo, Santo”; nesta peça de ligação vamos dizer: “Vós sois verdadeiramente santo, soisa fonte de toda a santidade”. E logo passamos à epiclese: “Santificai estes dons derra-mando sobre eles o vosso Espírito”, que é o Espírito Santo. Proclamamos o Deus santoe invocamos a sua santidade para que santifique. Tudo decorre do Deus Santo pela viada santidade até aos dons que vão ser santificados.

No texto latino, a articulação com a epiclese vai por outro caminho. No versículodo “Santo” diz-se: “Pleni sunt coeli et terra gloria tua”, o que deveria dar em português:“O céu e a terra estão cheios da vossa glória”, sublinhando a ideia de plenitude: “cheios”.É precisamente por aqui, pela ideia de plenitude, que, em anáforas orientais, se faz apassagem à epiclese: “O céu e a terra estão cheios da vossa glória... Enchei também estesacrifício”. É bonito, mas perdeu-se na nossa tradução! Foi pena!

5. A epiclese, a que tem sido feita referência, é a invocação ao Espírito Santo.Não há dúvida de que é sempre o Espírito Santo quem realiza nos Sacramentos da Igrejaa acção do Senhor, Ele que foi já “pelo Espírito eterno que Se ofereceu imaculado aDeus” (He 9, 14).

No canon romano, a Oração Eucarística I, não se invoca, pelo menos directamente,o Espírito Santo neste momento. Quando muito numa passagem antes da narração da

Page 270: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

270 PADRE JOSÉ FERREIRA

Ceia, diz-se: “Santificai, Senhor, esta oblação com o poder da vossa bênção e recebei-acomo sacrifício espiritual perfeito, de modo que se converta para nós no Corpo e Sanguede vosso amado Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo”.

É quase um equivalente da epiclese de consagração. Ao contrário, as anáforasorientais dão lugar de grande importância à epiclese, à invocação do Espírito Santo,dentro da Oração Eucarística. E envolvem-na de grande solenidade. Nas novas OraçõesEucarísticas recebidas no Missal Romano na recente reforma litúrgica, a epiclese temsempre lugar, e importante. Nalgumas anáforas orientais a epiclese vem depois da consa-gração, o que costuma trazer certa confusão à teologia ocidental recente. Para evitarconfusões deste tipo, a epiclese agora introduzida nas Orações Eucarísticas modernasestá dividida em duas partes: uma, antes da consagração a pedir a conversão dos donscolocados sobre o altar, o pão e o vinho, no Corpo e no Sangue do Senhor, e a outra,depois da consagração, a pedir a realização em nós, que os vamos receber na comunhão,dos efeitos da Eucaristia, ou, como alguém felizmente se exprime: “A epiclese é ainvocação do Espírito na Eucaristia para que o pão e vinho sejam o Corpo e Sangue deCristo, a fim de que a Eucaristia faça de nós o Corpo de Cristo”.

O Missal apresenta assim em conjunto as duas partes da epiclese: A epiclese“consta de invocações especiais, pelas quais a Igreja implora o poder divino para que osdons oferecidos pelos homens sejam consagrados, isto é, se convertam no Corpo eSangue de Cristo, e para que a hóstia imaculada, que vai ser recebida em comunhão,opere a salvação daqueles que dela vão participar” (IGMR 55 c)).

Mas voltemos ao fim da epiclese I.

6. Narração da instituição e consagração. Esta narração começa sempre, de umamaneira ou de outra, pela referência à Morte do Senhor: “Na hora em que Ele Se entrega-va,...” (II); “Na véspera da sua paixão,...” (I); “Na noite em que Ele ia ser entregue,...”(III); “Quando chegou a hora em que ia ser glorificado por Vós, Pai santo,...” (IV).

As palavras do Senhor: “Isto é o meu Corpo...”, “Este é o cálice do meu San-gue...” são introduzidas por expressões que variam de oração para oração e que, emnenhuma delas, se identificam inteiramente com nenhuma das narrações bíblicas dainstituição.

É nesta breve narração da Ceia que se encontram as palavras que mais directa-mente se relacionam com as acções e as palavras de Jesus na última Ceia: “Jesus tomouo pão, deu graças, partiu-o e deu-o”. “No fim da Ceia, tomou o cálice, deu graças, deu-o”.Qual o conteúdo dessa oração em que Jesus “deu graças” ? Nenhum dos relatos da Ceiao dizem; mas, na Ceia, Jesus disse certamente a bênção breve sobre o pão no início darefeição e a bênção longa, a berakah, no fim da Ceia, aquela a que os relatos da institui-ção fazem referência, tanto nos textos bíblicos (Mt 26, 27; Mc 14, 23; cf. Lc 22, 20; I Cor11, 25), como nos das Orações Eucarísticas. Dentro dessa bênção (oração de bendizer),que Jesus poderá ter adaptado às circunstâncias especiais em que ela acontecia, ou, nofim, como fórmula ao mesmo tempo de entrega e explicativa, Jesus diz: “Tomai e comei,isto é, na verdade, o meu Corpo; tomai e bebei, isto é, com efeito, o meu Sangue, oSangue da nova aliança”, ou, segundo S. Paulo (I Cor 11, 25) e S. Lucas (Lc 22, 25):“Este cálice é a nova aliança no meu Sangue”.

Page 271: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 271

No contexto da Ceia, estas palavras e as outras que o Senhor possa ter pro-nunciado não podem entender-se isoladamente, senão integradas na celebração domemorial da sua Morte, como as mesmas palavras do Senhor continuam a dizer,explicando: “... o meu Corpo entregue por vós”, “... o meu Sangue que será derramadopor vós”. A dupla expressão “Corpo entregue” e “Sangue derramado” estabelece umarelação directa com o mistério da Morte do Senhor na cruz, e portanto com o seusacrifício pascal. Deste modo, celebrando a Eucaristia, estamos a celebrar “o sacrifícioe o banquete pascal” da nova aliança.

A palavra “o sangue da nova aliança” é digna de ser considerada com especialatenção: “Sangue da Aliança” e da “Aliança Nova”. Todo a história da salvação é ahistória da aliança, inquebrantável da parte de Deus, ainda que tantas vezes quebrada daparte do homem.

Chamando “nova” a esta aliança selada com o Sangue do Cordeiro de Deus, “oCordeiro que foi imolado” na cruz, logo se estabelece um confronto com a “velhaaliança”, selada também com o Sangue, por ocasião do sacrifício oferecido por Moisés,no sopé do monte Sinai, por ocasião da primeira celebração da Páscoa, depois da saídado povo de Deus do Egipto: «Moisés, depois de ter promulgado ao povo as prescriçõesda lei, tomou o sangue dos novilhos e dos bodes,... e aspergiu o livro e todo o povo,dizendo: ‘É o sangue da aliança que Deus contraiu convosco’» (Ex 24, 8). Aquele foi osangue de uma aliança agora velha; o Sangue do Cordeiro imolado na cruz é o Sangue deuma aliança nova e eterna.

O relato da instituição termina com o mandato do Senhor: “Fazei isto em memóriade Mim”, o que, segundo alguns, poderia traduzir-se mais claramente: “Fazei isto comomeu memorial”. Há nesta simples frase um duplo mandato deixado aos seus discípulos,na hora de sair deste mundo: que eles façam “aquilo”, a saber, que celebrem sempreaquela Ceia. Isto certamente eles o continuariam a fazer, porque era a Páscoa, e a ceiapascal é coisa que nenhum judeu deixaria de fazer, sem que precise que se lha reco-mende. Mas a novidade está em que, doravante, a fariam “como seu memorial”. Tantoou mais do que a Páscoa antiga, celebrada como memorial da saída do povo do meio doEgipto no tempo de Moisés, a Páscoa da nova aliança, a Páscoa de Jesus, da sua“passagem deste mundo para o Pai” (Jo 13, 1), não poderia nunca deixar de sercelebrada pelos seus discípulos. Quando? Com que ritmo? Eles o descobrirão depois, àluz do Senhor ressuscitado, como de facto aconteceu, logo a seguir à sua ressurreição.

7. Aclamação da anamnese. Contemplando o memorial do Senhor na mesa daCeia pascal, que é o altar, a assembleia aclama e proclama o mistério que ali está a sercelebrado: é o memorial da Páscoa do Senhor, da sua Morte e Ressurreição, celebradopela Igreja “até que Ele venha”.

Esta aclamação não existia no Missal anterior, pelo menos de forma a poder serutilizada pelos fiéis. Existia apenas, dentro da própria fórmula da consagração do cálice,numa breve exclamação – “Mistério da fé” – difícil até de justificar naquele lugar. FoiPaulo VI quem encontrou a solução feliz de transformar aquele enclave “misterioso”numa aclamação de toda a assembleia, como hoje a temos, e até com três fórmulaspossíveis: “Anunciamos, Senhor, a vossa Morte, proclamamos a vossa Ressurreição”. A

Page 272: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

272 PADRE JOSÉ FERREIRA

terceira parte: “Vinde, Senhor Jesus”, é uma expressão que se pode até prestar a interpre-tação inexacta; não é um apelo a que o Senhor venha sobre o altar; é simplesmente, oupretende ser, o equivalente ao texto de S. Paulo, que é o que se lê no Missal latino:“donec venias”: “até que Vós venhais”, isto é, “até à vossa vinda”. A Eucaristia écelebrada pelos discípulos do Senhor “até que Ele venha” na sua glória; ela é oSacramento do tempo da Igreja, enquanto esperamos a sua santa vinda. É uma acla-mação dos fiéis dirigida a Cristo, que, de algum modo, interrompe a sequência daOração Eucarística, que é dirigida ao Pai; por isso, o presidente e os concelebrantes nãoa dizem; exprimirão logo a mesma ideia na anamnese que se lhe segue, na continuaçãoda Oração presidencial.

8. Anamnese é o nome da parte da Oração Eucarística que vem logo a seguir àaclamação dos fiéis. A palavra significa “lembrança”, “memória”. O Senhor, depois deter entregue aos discípulos a “celebração dos mistérios do seu Corpo e Sangue”,disse-lhes: “Fazei isto em memória de Mim”. Agora, em cada celebração da Eucaristia,este mandato do Senhor está presente e é claramente referido: “Celebrando agora,Senhor, o memorial da Morte e Ressurreição de vosso Filho...” (Or. Euc. II), ou, maisclaramente: “Celebrando agora, Senhor, o memorial da nossa redenção, recordamos amorte de Cristo...” (Or. Euc. IV). O texto latino estabelece mais expressamente a articu-lação entre o mandato do Senhor e a celebração da Igreja: “Memores igitur...,offerimus...”, isto é: “Lembrados, pois (do mandato do Senhor), oferecemos...” (Or.Euc. I). A palavra “memorial” não é apenas o exercício da faculdade chamada memória,mas antes a acção que evoca e, a seu modo, torna presente o acontecimento de que ela éevocação, para nele podermos participar.

O tema fundamental da anamnese é, evidentemente, o mistério pascal, analisadonas suas fases principais: a morte e ressurreição (Or. Euc. II), paixão, ressurreição eascensão, vinda gloriosa (III), morte e descida à mansão dos mortos, ressurreição eascensão, vinda gloriosa (IV). A celebração da Ceia do Senhor é memória do passado,celebração no presente, anúncio e expectativa do futuro.

9. Oblação. A anamnese traz sempre unida a si a oblação: “celebrando o memorial,oferecemos”. E ora se diz: “o Corpo e o Sangue” (IV), ora: “o pão da vida e o cálice dasalvação” (I e III), ora mais claramente: “o sacrifício perfeito, santo e imaculado” (I) ou“sacrifício vivo e santo” (III). Quem oferece? “Nós vossos servos e o vosso povo santo”(I). Com que finalidade? “Em acção de graças” (II), “como sacrifício do vosso agrado ede salvação para todo o mundo” (IV).

É aqui que se encontra a verdadeira expressão do sentido ofertorial da celebraçãoeucarística, e não no momento tradicionalmente dito “ofertório”, mas que antes se devedesignar, como o faz o Missal, por: “Preparação das oferendas” (IGMR 48-53).

10. Epiclese II. Uma segunda parte da epiclese (Cf. acima n. 5) está no lugar queprimitivamente toda ela ocupou e pede que, pela acção do Espírito Santo, “todos nós,participando deste altar pela comunhão do santíssimo Corpo e Sangue do vosso Filho,alcancemos a plenitude das bênçãos e graças do Céu” (Or. Euc. I), ou “que, participandono Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos, pelo Espírito Santo, num só corpo” (II),

Page 273: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

A EUCARISTIA, ORAÇÃO DE BÊNÇÃO POR EXCELÊNCIA 273

ou que “alimentando-nos do Corpo e Sangue do vosso Filho, cheios do seu EspíritoSanto, sejamos em Cristo um só corpo e um só espírito” (III), ou ainda “que reunidospelo Espírito Santo num só corpo, sejamos em Cristo uma oferenda viva para louvor davossa glória” (IV).

Esta participação na oblação de Cristo é particularmente significada e realizadapela comunhão no Corpo e Sangue do Senhor, a vítima oferecida, imolada e dada emalimento na comunhão. Para tanto, celebramos a Eucaristia.

11. Intercessões. A Eucaristia é sinal da unidade da Igreja em Cristo, da Igrejauniversal – a Igreja é una! –, e da Igreja presente em cada lugar em volta do seu Bispo, osucessor local dos Apóstolos. A referência ao Papa e ao Bispo do lugar é proclamaçãodeste mistério de unidade. Não é tanto oração pelo Papa e pelo Bispo, mas antes oraçãoem união com eles, como expressamente se diz no corpo das Orações Eucarísticas: “NósVo-la oferecemos (esta oblação pura e santa) em comunhão com o vosso servo o Papa...,o nosso Bispo... e todos os Bispos...” (Or. Euc. I); “tornai-a (a vossa Igreja) perfeita nacaridade em comunhão com o Papa..., o nosso Bispo...” (III). A referência a estes chefesda hierarquia é feita, não por servilismo humilhante, mas por consciência da unidade ecomunhão de todo o corpo da Igreja em Cristo, Cabeça de quem esses chefes são sinal erepresentantes. Idêntico sentido de unidade e comunhão no mesmo e único corpo deCristo, que é a Igreja, tem a comemoração dos vivos e defuntos. A Oração Eucarística IVé na comemoração “de todos aqueles por quem oferecemos este sacrifício” que insere areferência aos membros da hierarquia, lembrando-os ao Senhor, mas depois de evocar areunião de todos num só corpo, fruto da participação no mesmo pão e no mesmo cálice.

Transformar este lugar da Oração Eucarística numa ladainha de intenções “porquem a Missa é aplicada” é desviar a atenção do sentido central de louvor e acção degraças da Oração Eucarística e subordiná-lo à oração de súplica, e para mais, por inten-ções particulares e limitadas. Também estas intenções lá terão o seu lugar, mas quando acelebração se faz em circunstâncias particulares da vida da comunidade. Então até paraisso existem formulários próprios, como, nas Missas que integram ou acompanham acelebração de certos Sacramentos ou Sacramentais: Baptismo, Confirmação, Matri-mónio, Missa Exequial, etc.

12. Doxologia. O tema do louvor e acção de graças que vem desde o princípio daOração Eucarística (cf. o prefácio) e vai pontuando todo o corpo da Oração, reaparecefinalmente na doxologia com que toda ela se encerra: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo,a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda aglória, agora e para sempre”. O louvor e a acção de graças, que todo o corpo da OraçãoEucarística foi analisando e desenvolvendo, é agora retomado e sintetizado nesta beladoxologia final. É a ela que a assembleia sente agora necessidade de se unir na grandeaclamação: “Amen”. A última palavra de toda a Sagrada Escritura (Ap. 22, 21), com queé aclamada a “revelação de Jesus Cristo aos seus servos” (ib. 1, 1), é também aaclamação final de toda a assembleia à Oração Eucarística: “Amen”.

Do prefácio a esta doxologia final, a assembleia foi sendo conduzida pelo ritmocrescente da Oração e sentindo em si o desejo de aclamar o “mistério da fé” que tem

Page 274: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

274 PADRE JOSÉ FERREIRA

estado a celebrar, levada por aquele movimento interior que inspirava toda a vida daIrmã Isabel da Trindade, expresso já nas palavras de S. Paulo (Ef 1, 14), retomadas agoranesta mesma Oração: “... para louvor da vossa glória” (Or. Euc. II).

Page 275: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O ESPÍRITO SANTO ALMA DA LITURGIA

I. O TÍTULO

O Espírito Santo, alma da Liturgia

Talvez não seja descabido, antes de tratarmos das várias alíneas que me forampropostas para facilitar o tratamento deste tema, dizermos uma palavra acerca dosdiversos vocábulos que entram no título desta comunicação. E são eles: 1. EspíritoSanto; 2. Alma; 3. Liturgia.

1. Espírito Santo. É este o nome com que designamos na terceira Pessoa daSantíssima Trindade. A palavra “espírito” vem do latim spiritus, e é um substantivorelacionado com o verbo spirare que quer dizer soprar, falando do vento, e, seguindonessa ordem de ideias, também respirar. Por si mesma, a palavra espírito significaportanto sopro, vento. Foi sob esta imagem que, na história da salvação, Deusmanifestou a sua presença e a sua actuação. Recordemos apenas três lugares da SagradaEscritura em que a palavra spiritus aparece referida à presença e à acção de Deus:

a) Logo no princípio do livro do Génesis, no capítulo I, versículo 2, lê-se: Umvento de Deus redemoinhava sobre as águas. No texto latino aquele “vento de Deus”chamava-se “spiritus Dei” (Gén 1, 2). Não se trata aqui propriamente do “Espírito deDeus”, mas apenas do vento, criatura de Deus, a soprar sobre as águas originais.

No entanto, olhando para além da simples realidade natural, que o vento é, desdecedo esse vento foi interpretado simbolicamente num sentido espiritual e referido comosinal do próprio Espírito de Deus, como se pode ler na oração da Bênção da águabaptismal na Vigília Pascal: Senhor nosso Deus,... ao longo dos tempos preparastes aágua para manifestar a graça do Baptismo. Logo no princípio do mundo, o vosso Espí-rito pairava sobre as águas, prefigurando o seu poder de santificar... O sopro – ventoleva-nos ao sopro vital do Espírito.

b) Ainda no livro do Génesis, numa segunda narração da criação do homem, lê-se:O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, insuflou nele um sopro de vida e ohomem tornou-se um ser vivo (Gén 2, 7). Aqui o princípio animante do homem que vivetem origem num sopro, numa insuflação vital vinda de Deus.

c) Depois destes começos (estamos ainda no momento da criação), em que o vento, osopro, a insuflação são o princípio vital, que tem em Deus a sua origem e d’Ele tira a suaforça, passemos ao fim, ao Pentecostes, o momento culminante em que o vento sopra naface da sua Igreja que acaba de nascer do lado de Cristo aberto na cruz, para se tornar osinal da presença e da acção do Espírito Santo de Deus: Quando chegou o dia de Pente-costes,... fez-se ouvir, vindo do céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento queencheu toda a casa onde se encontravam... Todos ficaram cheios do Espírito Santo(Act 2, 2...4). A mesma palavra pode significar “vento”, “sopro” e “Espírito”.

Page 276: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

276 PADRE JOSÉ FERREIRA

Para nós todos, “espírito” e outras palavras com esta relacionadas têm sentido desopro vital; por isso dizemos, ao referirmo-nos a alguém que morreu que ele “expirou”,“deixou de respirar”, “exalou o último suspiro”.

Falando de vida em Deus, também ela naturalmente se pode exprimir com o termo“espírito” e, porque divino, consequentemente lhe chamamos “santo”. Já no AntigoTestamento, onde ainda se não encontra a revelação das Pessoas divinas, se pode ler aexpressão “espírito”, “espírito santo” (Sab 9, 17), mas não ainda no sentido da Pessoadivina do Espírito Santo, que só no Novo Testamento nos foi dado conhecer pela palavrado Filho, particularmente no discurso de Jesus na Última Ceia (Jo 14, 26), por Eledesignado também por outras palavras, como “Paráclito” (ib.) e “Espírito de Verdade”(ib., 16, 13; cf. CIC 691).

2. O outro vocábulo que entra no título desta comunicação é “liturgia”, a palavramais pronunciada em encontros deste género. Ela já não é segredo para ninguém,pelo menos a palavra e certamente também a sua significação. Com o perigo de nosrepetirmos, lembramos, ao menos de passagem, que a palavra liturgia designa, emconcreto, as diversas celebrações ou acções litúrgicas. Não sei se não se afigurará umpouco estranho ligar a liturgia ao Espírito Santo. De facto, não há dúvida de que para anossa mentalidade ocidental esta ligação aparece hoje como qualquer coisa de novo. OEspírito Santo quase só tem sido evocado e invocado quando se pretende alcançar umagraça que supõe uma luz especial, como se o Espírito Santo não estivesse sempreactuando em cada uma das diversas acções da liturgia e em toda a oração em geral.

3. A alma da liturgia. Vem neste momento a propósito referirmo-nos ao outrotermo do título desta comunicação: “Alma da Liturgia”. Não se trata de “alma” emoposição a “corpo”, mas do Espírito Santo como princípio animante de toda a acçãolitúrgica e de toda a oração. Não é a Liturgia a Igreja em oração? Sem a presençaactuante do Espírito Santo não haveria nem profissão de fé cristã nem celebração daLiturgia. É do Espírito Santo que vem a energia vital pela qual o mistério pascal deCristo é celebrado na Liturgia. O Espírito Santo é, na verdade, a alma da Liturgia e daoração verdadeiramente cristã. Lembramos a este propósito duas palavras de S. Paulo:Ninguém pode dizer Jesus é Senhor, senão no Espírito Santo (1 Cor 12, 3), isto é, reco-nhecer que Jesus, o Crucificado sob Pôncio Pilatos, ressuscitou e recebeu um Nome queeste acima de todos os nomes, o nome divino de Senhor (cf. Flp 2, 11). E esta outra: OEspírito Santo vem em auxílio da nossa franqueza, porque não sabemos o que pedirpara orar como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidosinefáveis. E aquele que vê no íntimo dos corações conhece as aspirações do Espírito,que intercede pelos santos em conformidade com Deus (Rom 8, 26-27).

II. A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA, OBRA DE CRISTO E DO ESPÍRITO

É frequente dizer-se hoje que a liturgia da Igreja ocidental sublinha muito pouco aacção do Espírito Santo, ao contrário da Igreja oriental que põe muito em relevo essaacção do Espírito Santo na celebração da liturgia. E é verdade. Esta prática vem de par

Page 277: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O ESPÍRITO SANTO ALMA DA LITURGIA 277

com a tendência da cristandade ocidental, que, por uma questão temperamental que odesenrolar da história facilitou e até promoveu, dá mais lugar ao raciocínio lógico emetafísico, para não dizer simplesmente à razão, do que ao elemento místico e contem-plativo. Rezar acaba por ser, muitas vezes, entrar num discurso lógico, quase que comonuma exposição escolar.

Não terá sido sempre assim. A época dos Padres da Igreja, ou, arredondando, ostempos do primeiro milénio, vão em geral noutra direcção. Por isso, alguém pôde dizerque, no primeiro milénio, a Igreja acreditava como rezava, ao passo que, no segundomilénio (que está a chegar ao fim), a Igreja reza como acredita, quer isto dizer queprimeiro celebrou o mistério da salvação, só depois o analisou e o estudou.

É evidente que com esta maneira de dizer um tanto simplista não se pretendemopor nem separar os dois elementos, mas apenas sublimar as principais características deduas épocas da história de Liturgia e de duas regiões geográficas bem distantes, masambas bem cristãs.

Pelo que fica dito, é fácil concluir que o Ocidente centra a sua atenção em Cristo,o que não está errado, mas deixando praticamente um tanto de lado a acção do EspíritoSanto. A melhor resposta a este possível desencontro pode agora ler-se no Catecismo daIgreja Católica (CIC nn. 683-747 e 1091-1109). Aí se pode ler, entre outras afirmações,que “na Liturgia o Espírito Santo é o pedagogo da fé do povo de Deus, o artífice das‘obras-primas de Deus’ que são os sacramentos da nova Aliança. O desejo e a obra doEspírito no coração da Igreja é que nós vivamos da vida de Cristo ressuscitado.Quando Ele encontra em nós a resposta da fé que suscitou, realiza-se uma verdadeiracooperação. E, por ela, a Liturgia torna-se obra comum do Espírito Santo e da Igreja”(CIC 1091). De facto, sem o Espírito Santo não haveria Liturgia; quando muito, apenascerimónias!

A Liturgia é a obra de Cristo realizada hoje na Igreja e pela Igreja. Que ela éacção de Cristo, di-lo com toda a clareza a Constituição Conciliar sobre Sagrada Liturgiaao concluir a exposição que procura dar uma como que definição da Liturgia: Ela é oexercício da função sacerdotal de Cristo (SC 7). Mas assim como Cristo exerce o seusacerdócio sob a acção do Espírito Santo, como está expressamente dito da sua oblaçãona cruz, que foi pelo Espírito eterno que Ele Se ofereceu a Si mesmo sem mancha a Deus(Heb 9, 14), do mesmo modo agora na Liturgia, onde Cristo continua a exercer o seusacerdócio, é pelo mesmo Espírito eterno, pelo Espírito Santo, que Ele Se continua aoferecer a Deus.

A oblação de Cristo ao Pai, o momento culminante de toda a sua acção sacerdotal,celebramo-la nós celebrando o seu mistério pascal. A Páscoa de Jesus foi a sua passagemdeste mundo para o Pai (Jo 13, 8). E foi, como vimos, pelo Espírito Santo, levado pelodinamismo do Espírito, que Jesus fez esta passagem. Já o mistério da Encarnação, oprimeiro momento da realização do mistério pascal, é atribuído à energia do Espírito:O Espírito Santo descerá sobre Ti e o poder do Altíssimo Te envolverá na sua sombra(Lc 1, 35), diz o Anjo a Maria no momento da anunciação. E em outros momentos davida de Jesus é evocada a presença e a acção do Espírito Santo na obra de Jesus. Foi poruma citação do profeta Isaías que Jesus Se apresentou a primeira vez em público e dentro

Page 278: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

278 PADRE JOSÉ FERREIRA

de uma celebração litúrgica. Foi na sinagoga de Nazaré. Quando Lhe entregaram o livrodo profeta para que fizesse a segunda leitura da celebração – a primeira terá sido tiradada Lei –, Jesus escolheu a passagem de Isaías: O Espírito do Senhor está sobre mim,porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamara redenção aos cativos e a dar a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos ea proclamar o ano da graça do Senhor (Lc 4, 18-19). É ao Espírito Santo que Jesusatribui, logo desde o início, a unção que caracteriza a sua missão. Ele é o Ungido, que, nalíngua de Jesus, se diz Messias e, na tradução para grego, se diz Cristo, o nome quechegou até nós. Reconhecer que Jesus de Belém, e depois de Nazaré, é o Messias, oUngido do Espírito Santo, o Cristo, é a própria expressão da fé dos cristãos. Só elessabem reconhecer que Ele é o Messias de Deus, como S. Pedro um dia proclamou.Ou, de outra maneira menos usual, mas não menos clara: chamar Cristo a Jesus éreconhecê-l’O na sua missão mais fundamental.

O Espírito Santo, que está actuante desde sempre na história da salvação – não eraEle quem já falava pelos Profetas? – o Espírito Santo, no entanto, não Se manifesta comose se tratasse de uma encarnação, como no caso do Verbo encarnado. Mas, depois queJesus ressuscitou dos mortos e passou deste mundo para o Pai, logo enviou aos seusdiscípulos o Espírito Santo, como o Dom pascal por excelência; foi logo no próprio diada Ressurreição, como lemos em S. João na leitura que é agora a do dia de Pentecostes,o que faz compreender melhor, na própria celebração litúrgica, a ligação entre a missãodo Filho e a do Espírito Santo. Mas foi sobretudo no Pentecostes que se deu a epifania oumanifestação do Espírito Santo. Os sinais que a acompanham tornam-se bem sensíveis eeloquentes: é a rajada do vento, o sopro, espírito, agora mais criador e vivificante que osopro da primeira criação, o fogo, mais universal e significativo que outrora o da sarçaardente que Moisés admirou, e, acima de tudo, a iluminação e transfiguração daqueles aquem o Espírito tocou, os Apóstolos, os discípulos e, depois deles e através deles, todosquantos puderam acolher a boa nova de que eles foram portadores.

Toda a acção de Liturgia é obra de Cristo e do Espírito. São as duas mãos do Pai,segundo a feliz expressão de S. Ireneu. Pelo facto de nem sempre aparecer muito clara-mente expressa na Liturgia a referência à acção do Espírito Santo, nem por isso ela émenos verdadeira. Não fora a energia do Espírito Santo, e a acção litúrgica não passariade uma apresentação cénica do mistério pascal de Cristo, como aliás foi, muitas vezes,tida pela piedade popular, e até erudita, que alimentou a fé e a ignorância das nossasassembleias, sobretudo a partir dos fins do primeiro milénio. No entanto, mesmo nessestempos e nessas celebrações, o Espírito Santo estava actuante; doutro modo, não teriamsido celebrações do mistério pascal de Cristo.

III. O ESPÍRITO SANTO NA LITURGIA

Tomo agora como ponto de partida a passagem do Catecismo da Igreja Católica(CIC 1112), que se apresenta como o resumo do capítulo anteriormente desenvolvido.É a seguinte: “A missão do Espírito Santo na Liturgia da Igreja é preparar a assembleiapara o encontro com Cristo; lembrar e manifestar Cristo à fé da assembleia; tornar

Page 279: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O ESPÍRITO SANTO ALMA DA LITURGIA 279

presente e actualizar a obra salvífica de Cristo pelo seu poder transformante; e fazerfrutificar o dom da comunhão na Igreja”

Quatro alíneas que vamos percorrer, cada uma em si mesma.

a) Preparar a assembleia para o encontro com Cristo

A assembleia litúrgica é o sinal, no tempo e no espaço onde ela se reúne, da comu-nidade cristã. O nome clássico, que já vem do Antigo Testamento, para designar a assem-bleia é precisamente em hebraico Qahal, em grego ecclesía, que o latim transcreveu semo traduzir: ecclésia, donde veio em português igreja. A palavra igreja designa, por isso,primariamente a assembleia reunida; depois, por alargamento até às pessoas de quem aassembleia é sinal, a comunidade; e por fim, logicamente, a própria casa da assembleia,a igreja – edifício, as nossas igrejas.

S. João diz que Jesus morreu para trazer à unidade os filhos de Deus queandavam dispersos (Jo 11, 52). A reunião destes que andavam dispersos, uma vezunidos, são a Igreja. E esta unidade é realizada pela energia do Espírito Santo, o mesmoEspírito pelo qual o Senhor Jesus Se ofereceu como oblação sem mancha na cruz, eassim estabeleceu a Aliança entre Deus e o homem e consequentemente a unidade de quea assembleia é sinal. Esta unidade na Igreja vem sendo preparada desde antes da criação,como desde então fomos eleitos em Cristo (Ef 1, 4), como desde então os que venceramo Espírito do mal têm o nome inscrito no livro da vida (Ap 17, 8). No Pastor de Hermas,um livro famoso do século II, a Igreja aparece, numa visão, na figura de uma mulheridosa, porque foi criada antes de todas as coisas e por causa dela foi ordenado o mundo(Visão II, 4,1).

Desde o início a Igreja vem sendo preparada e crescendo através das gerações doAntigo Testamento até ao último dos profetas, S. João Baptista, de quem o Anjo doSenhor diz a seu pai Zacarias que ele irá à frente do Senhor,... a fim de preparar para oSenhor um povo bem disposto (Lc 1, 17). Todo o Antigo Testamento é já anúncio epreparação deste povo bem disposto para poder vir a reconhecer, em Jesus, o Ungido deDeus e, na história do povo de Deus, a realização da acção salvadora da humanidade. Defacto, esta acção continua a realizar-se na vida da Igreja de cada tempo e a ser celebradana Liturgia de cada assembleia celebrante. É por isso que a liturgia é a actualização daacção salvífica de Cristo, prefigurada nas grandes obras do povo da Antiga Aliança(SC 5) e finalmente realizada em Cristo pela energia do Espírito Santo.

b) Lembrar e manifestar Cristo à fé da assembleia.

Cristo é ponto de chegada de toda a história da salvação que O precedeu; tudopara Ele se encaminhava e tudo – a Palavra tantas vezes proclamada pelos profetas etodos os mensageiros da mesma, e os acontecimentos, muitas vezes na sua linguagemsimbólica, – tudo anunciava o mistério de Cristo que se realizaria na plenitude dos tem-pos. Esses tempos felizes são estes que nos é dado agora contemplar, como Jesus um dialembrou aos seus discípulos: Felizes os olhos que vêem o que estais a ver, porque Eu vosdigo que muitos profetas e reis quiseram ver o que vós vedes e não viram e ouvir o quevós ouvis e não ouviram (Lc 10, 23-24).

Page 280: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

280 PADRE JOSÉ FERREIRA

Na celebração litúrgica, a Liturgia da palavra organiza-se de modo a percorrertoda a Sagrada Escritura, pelo menos no essencial, para ler em toda ela, desde oprincípio do Antigo Testamento até ao fim do Novo, tudo o que o Espírito Santo inspirouacerca do mistério de Cristo (cf. SC 5). Aquela preparação para o encontro da Igrejacom o Senhor, que vinha sendo feita ao longo de todo o Antigo Testamento, é vividaagora em cada celebração litúrgica, onde a proclamação da Palavra de Deus, lida nasleituras, cantada nos Salmos, ecoando nas orações que nela se inspiram (cf. SC 24),igualmente predispõe a assembleia para a compreensão e a celebração do mistériode Cristo, manifestado e proclamado no Novo Testamento e celebrado nos sinaissacramentais da Liturgia.

É o mesmo Espírito, que outrora inspirou a narração bíblica dos acontecimentossalvíficos e das realidades prefigurativas (...) no passado, que faz que hoje a assembleia,que os escuta e os proclama, os reconheça realizados em Cristo e celebrados na Liturgia,e neles participe, porque era a nós, que viemos nos últimos tempos, que eles sedestinavam. É com base nesta harmonia dos dois Testamentos que se articula a cate-quese pascal do Senhor e depois a dos Apóstolos e a dos Padres da Igreja. Esta cateque-se desvenda o que estava oculto sob a letra do Antigo Testamento: o mistério de Cristo.É chamada ‘tipológica’ porque revela a novidade de Cristo a partir das ‘figuras’ (tipos)que a anunciavam nos factos, palavras e símbolos da primeira Aliança. Aquelas figurassão desvendadas por esta releitura no Espírito de verdade a partir de Cristo (CIC 1094).

Assim se faz memória das obras maravilhosas, as mirabilia Dei, do passadohistórico, que a celebração torna presentes na linguagem dos sinais sacramentais.Esta evocação continua a designar-se com a palavra grega já aportuguesada anamnese.Esta palavra costuma aplicar-se particularmente àquela parte da Oração Eucarística quesegue imediatamente a narração da Ceia, em que se diz explicitamente: “Celebrandoagora, Senhor, o memorial da morte e ressurreição do vosso Filho...”. “O Espírito Santo,que assim desperta a memória da Igreja, suscita então a acção de graças e o louvor(doxologia)” (CIC 1103).

c) A missão do Espírito Santo na Liturgia da Igreja é, em terceiro lugar,“tornar presente e actualizar a obra salvífica de Cristo pelo seu podertransformante” (CIC 1112).

Diz o Catecismo: A Liturgia cristã não se limita a recordar os acontecimentosque nos salvaram: actualiza-os, torna-os presentes. E concretiza de maneira feliz:O mistério pascal de Cristo celebra-se, não se repete; as celebrações é que se repetem.E, para que não sejamos levados a fixarmo-nos na como que encenação exterior da cele-bração, logo continua: Mas em cada uma delas sobrevém a infusão do Espírito Santo,que actualiza o mistério (CIC 1104). Desta infusão do Espírito Santo na celebração tema Igreja plena consciência. Por isso, frequentemente nas celebrações dos sagrados misté-rios, o próprio ministro que realiza o rito não o faz sem invocar o Espírito Santo sobre aacção que está a realizar. Esta invocação costuma designar-se com outra palavra tambémde origem grega e que é epiclese, palavra que significa exactamente “invocação sobre”.Menos frequente na liturgia romana do que o tem sido nas liturgias das Igrejas orientais,sempre mais atentas à acção do Espírito Santo, a epiclese está hoje em todas as Orações

Page 281: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O ESPÍRITO SANTO ALMA DA LITURGIA 281

Eucarísticas, (embora menos claramente na primeira, o chamado Cânon), e em outrasorações particularmente nas dos Sacramentos. Habitualmente, quando se fala de epiclesesem mais, entende-se a invocação do Espírito Santo na celebração da Eucaristia. A ela serefere o Catecismo com estas palavras: A epiclese é uma intercessão, em que o sacerdotesuplica ao Pai que envie o Espírito santificador, para que as oferendas se tornem Corpoe Sangue de Cristo. É aquela parte da Oração Eucarística que o sacerdote diz antes danarração da Ceia e da consagração de mãos estendidas sobre o pão e o cálice invocandoo Espírito Santo. A este respeito o Catecismo cita uma passagem de S. João Damasceno,presbítero e monge da Igreja oriental do século VIII, que vale a pena reler: Tu perguntascomo é que o pão se torna Corpo de Cristo e o vinho... Sangue de Cristo. Por mim digo-te: o Espírito Santo irrompe e realiza isso que ultrapassa toda a palavra e todo o pensa-mento... Basta-te saber que é pelo Espírito Santo, do mesmo modo que é da SantíssimaVirgem e pelo Espírito Santo que o Senhor, por Si mesmo e em Si mesmo, assumiu acarne (CIC 1106). Esta parte da epiclese a que acabamos de nos referir pede a graça daconsagração do pão e do vinho, como podemos recordar abrindo o Missal Romano erelendo as Orações Eucarísticas.

Na Oração Eucarística I, também conhecida por Cânon, visto ter sido até 1960 afórmula normativa única da celebração da Eucaristia, não se encontra uma expressãoclara para a epiclese. Apenas se diz, antes da consagração, de mãos estendidas sobre asoblatas: Santificai, Senhor, esta oblação com o poder da vossa bênção e recebei-a comosacrifício espiritual perfeito, de modo que se converta para nós no Corpo e Sangue dovosso amado Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas nas outras Orações Eucarísticasaparece claramente a fórmula de epiclese da consagração. No Oração II, diz-se:Santificai estes dons, derramando sobre eles o vosso Espírito; e na III: Humildementevos suplicamos, Senhor: Santificai pelo Espírito Santo, estes dons que vos apresen-tamos, para que se convertam no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, vossoFilho, que nos mandou celebrar estes mistérios; e semelhantemente na IV Oração,diz-se: Nós Vos pedimos, Senhor, que o Espírito Santo santifique estes dons, paraque se convertam no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, ao celebrarmoseste grande mistério que Ele nos deixou como sinal de aliança eterna.

Mas a epiclese tem uma segunda parte onde se pede que esta acção santificadorado Espírito Santo se estenda a toda a assembleia, ela que é quem constitui o verdadeirodestinatário da acção santificadora do Espírito, como o Catecismo o explica ao continuara apresentação da epiclese atrás enunciada, e que de novo recordo, para fazer aexplicação até englobar esta segunda parte: A epiclese, diz o Catecismo, é uma in-tercessão, em que o sacerdote suplica ao Pai que envie o Espírito santificador, paraque as oferendas se tornem Corpo e Sangue de Cristo; (é a primeira parte já referida),para que (e vem a explicação da segunda parte) os fiéis se tornem pessoalmente umaoferenda viva feita a Deus (CIC 1107). O Pai atende a epiclese da Igreja e envia oEspírito que dá a vida aos que O acolhem e constitui para eles, desde já, o ‘penhor’ daherança que os espera, conclui o Catecismo (CIC 1107).

A epiclese ou invocação ao Espírito Santo para que realize o mistério que está aser celebrado não se encontra apenas na Oração Eucarística. Aparece também noutroslugares, sobretudo em celebrações particularmente significativas da vida da Igreja.

Page 282: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

282 PADRE JOSÉ FERREIRA

Alguns exemplos:1) Na bênção da água baptismal. Depois da evocação das maravilhas que, no

passado, Deus realizou por meio da água, vem a epiclese a suplicar que essas maravilhasse continuem no presente: Olhai, agora, Senhor, para a vossa Igreja... . Receba estaágua, pelo Espírito Santo, a graça do vosso Filho Unigénito... E, em seguida, commaior solenidade, mergulhando o Círio pascal na água, continua: Desça sobre esta água,Senhor, a virtude do Espírito Santo.

2) Na consagração do óleo do crisma. Enquanto todos os concelebrantes, semnada dizerem, estendem a mão para o crisma, o presidente continua: Nós Vos pedimos,Senhor: dignai-Vos santificar e abençoar este óleo e comunicar-lhe a virtude doEspírito Santo.

3) Na liturgia da Confirmação, o sacramento do Dom do Espírito, isto é, do Espí-rito que é dado, logo o convite que introduz a oração que acompanha a imposição dasmãos utiliza linguagem típica da epiclese: Oremos a Deus Pai todo-poderoso, paraque... derrame agora o Espírito Santo. Mas é no corpo daquela oração que se podeescutar uma verdadeira epiclese: Enviai sobre eles (os que já renasceram pelo Baptismo)o Espírito Santo Paráclito, súplica que logo mais se concretiza no gesto e na fórmula dacrismação, onde se diz de maneira inequívoca: N., recebe, por este sinal, o EspíritoSanto, o Dom de Deus.

4) Na celebração da Eucaristia, a invocação ao Espírito Santo já foi longamentereferida a propósito da epiclese da Oração Eucarística.

5) Nas Ordenações, que muitas vezes foram tratadas mais como transmissão depoderes do que como comunicação de dom e de graça, a oração que acompanha a impo-sição das mãos lá está a invocar o Espírito Santo:

a) na ordenação do Bispo: Enviai agora sobre este eleito a força que de Vósprocede, o Espírito soberano que destes ao vosso amado Filho Jesus Cristo, e Ele trans-mitiu aos santos Apóstolos.

b) na ordenação dos presbíteros, a referência ao Espírito Santo aparece váriasvezes ao longo da oração consecratória. Logo no início, diz-se: Vós lhe dais (ao povosacerdotal que é a Igreja) os ministros de Cristo, vosso Filho, pelo poder do EspíritoSanto. E mais adiante: O vosso Filho Jesus... a Si mesmo Se ofereceu a Vós (Pai Santo),pelo Espírito Santo como vítima imaculada (cf. Heb 9, 14). E, na última parte da oração,ao serem referidos os frutos da Ordenação na vida dos presbíteros, diz-se: Pela suapregação, as palavras do Evangelho frutifiquem, pela graça do Espírito Santo, noscorações dos homens.

c) E na Ordenação dos diáconos: Vós fazeis crescer e dilatar-se o Corpo de Cristo,a vossa Igreja, na variedade dos dons celestes e na diversidade dos seus membros, unidospelo Espírito Santo num corpo admirável. E mais adiante : Os Apóstolos do vosso Filho,guiados pelo Espírito Santo, escolheram homens de boa reputação que os ajudassem noserviço quotidiano.... Mas a expressão mais clara de epiclese encontra-se dentro da própriafórmula essencial da Ordenação: Enviai sobre eles, Senhor, nós Vos pedimos, o EspíritoSanto que os fortaleça com os sete dons da vossa graça...

Page 283: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O ESPÍRITO SANTO ALMA DA LITURGIA 283

6) Nos outros Sacramentos foi também introduzida, de uma maneira ou de outra,a referência à acção do Espírito Santo. Isto só por si pode concorrer também para ajudara ultrapassar aquela certa maneira de olhar para a celebração dos Sacramentos como umsimples acto de sentido acentuadamente jurídico ou administrativo, para o que poderiaaté concorrer a linguagem frequentemente usada ao falar-se de “administração” dos Sa-cramentos, bem como as expressões de sentido declarativo na fórmula essencial dosmesmos, expressão como Eu te baptizo, Eu te confirmo..., (esta em uso até à recentereforma do rito), Eu te absolvo..., que evidentemente não estão erradas nem se podemsubstituir por outras, mas que são expressões onde não aparece, pelo menos com clareza,o elemento de oração.

Alguns dos formulários actuais abriram a porta de maneira mais explicita àinvocação do Espírito Santo. Assim, na Reconciliação, embora as palavras essenciaiscontinuem a ser: Eu te absolvo..., etc., a fórmula começa mais atrás e num ambiente deoração: Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, pela morte e ressurreição de seuFilho reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para remissão dospecados (elemento anamnético) te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz.Depois vem então a fórmula essencial: E eu te absolvo...

7) Também a Bênção nupcial recebeu, na sua nova versão, a invocação aoEspírito Santo: Enviai sobre eles (os esposos) a graça do Espírito Santo, para que, pelovosso amor derramado em seus corações, permaneçam fiéis na aliança conjugal. OEspírito Santo é sempre o selo da Aliança!

8) E ainda na Unção dos doentes, na própria fórmula essencial do Sacramento,se diz também: O Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo. Já naBênção do Óleo, que o sacerdote porventura tenha de fazer se não tem à mão óleobenzido pelo bispo na Missa Crismal de Quinta-feira Santa, se faz uma invocação seme-lhante: Senhor nosso Deus,... enviai do céu o Espírito Santo consolador sobre este óleo.

A acção que a Igreja realiza em ordem à celebração dos Sacramentos é realizadasempre sob a energia do Espírito Santo, porque Ele é a alma da Liturgia, e não pelosimples “poder” do ministro que a realiza.

d) O Espírito Santo “une a Igreja à vida e à missão de Cristo”(CIC, 1092 e 1108-1109).

Toda a acção da Liturgia é a celebração da Aliança que Deus estabelece com oshomens por meio de Jesus Cristo sob a moção e pela energia do Espírito Santo, Senhorque dá a vida, porque o Espírito é o sopro vital de Deus. Aliança é termo bem tradicionale sempre presente na história da salvação. Ele poderia por ventura fazer pensar em qual-quer ligação exterior, como habitualmente a palavra significa, quando se fala de aliançashumanas. Mas é evidente que, quando a Aliança parte de Deus e a Deus conduz, não hánada de mais espiritual e divino. É assim que o Sangue de Jesus derramado na cruz eagora presente no Sacramento da Eucaristia é chamado pelo próprio Senhor Jesus San-gue da Aliança. Não se trata de um contrato, mas, – e é a palavra mais justa – de umacomunhão. Esta comunhão é com Cristo, para entrarmos na unidade do Corpo espiritualde que Ele é a Cabeça; e, por Cristo, é comunhão com o Pai pela energia do Espírito;

Page 284: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

284 PADRE JOSÉ FERREIRA

numa palavra, é comunhão com a Santíssima Trindade, que vive na comunhão perfeitadas Três Pessoas divinas, comunhão esta que, por inefável disposição do Amor do Pai,atinge, por Cristo, os homens, de quem Ele fez seus irmãos na unidade do mesmo Corpo.Esta comunhão, que tem a sua origem em Deus Pai e ao Pai reconduz, é como que o frutode um redemoinho vital produzido pelo Sopro divino que é o Espírito Santo. É por issoque a invocação do Espírito Santo, a epiclese, não termina a sua acção na acção litúrgicado Sacramento, mas na comunhão da assembleia enquanto Corpo de Cristo e de cada umdos seus membros com o Pai, por Cristo, pela virtude do Espírito Santo. Deste modo, acelebração da Liturgia realiza na assembleia um antegozo da assembleia celeste, de queela é um como que sacramento terrestre; aliás os Sacramentos são sempre uma lin-guagem terrestre a significar a comunhão com a assembleia celeste.

IV. O ESPÍRITO E A RENOVAÇÃO LITÚRGICA

A renovação da Liturgia foi uma das graças mais desejadas antes dela estar feita;e sem dúvida das mais apreciadas à medida que ia sendo posta em prática, porque, areforma litúrgica não se fez de uma só vez. Só quem viveu os últimos anos que aprecederam e foi acompanhando a sua realização, pode compreender a alegria que essaevolução nos ia trazendo. Não eram tanto as novidades rituais que a reforma trazia; erasobretudo o espírito que nela se revelava e por ela se comunicava. E tratava-se realmentedo Espírito com maiúscula, como se lhe referia o próprio Pio XII no célebre discursocom que encerrava o primeiro e até hoje único congresso Internacional de Pastoral Litúr-gica realizado em Assis – Roma de 18 a 22 de Setembro de 1956. Aí o papa dizia: Omovimento litúrgico apareceu como um sinal das disposições providenciais de Deussobre o tempo presente, como uma passagem do Espírito Santo na Igreja. Este mesmotexto foi depois inserido na própria Constituição sobre a sagrada Liturgia (SacrosanctumConcilium) do Concílio Vaticano II, n. 43. O Espírito Santo, que fez a manifestação daIgreja no dia de Pentecostes e sempre a inspirou e lançou pelos tempos além, igualmentea inspirou na reforma da Liturgia que tem sido realizada nos últimos tempos, já desdeantes do Concílio Vaticano II, por meio do Movimento Litúrgico, mas particularmente apartir do Concílio. João Paulo II, nos 25 anos da Constituição Conciliar sobre a SagradaLiturgia, reconhece que, se a reforma litúrgica desejada pelo Segundo Concílio do Vati-cano se pode considerar já posta em prática, a pastoral litúrgica, pelo contrário, cons-titui um dever e uma tarefa permanente. E observa que “nada daquilo que fazemos naliturgia pode ser mais importante do que aquilo que invisível mas verdadeira e realmenteCristo faz por meio do seu Espírito” (n. 10). De novo se reconhece e se afirma claramen-te que, se a acção litúrgica é o exercício da função sacerdotal de Cristo, ela é assim pelodinamismo interior do Espírito Santo. A celebração da Liturgia não pode ser, portanto,considerada na perspectiva limitada do exercício dos “poderes” do ministro que a elapreside, e para o que foi constituído pelo Sacramento da Ordem, mas sempre e acima detudo como acção de Cristo animada pelo sopro divino do Espírito de Deus.

Page 285: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

O ESPÍRITO SANTO ALMA DA LITURGIA 285

V. ESPIRITUALIDADE LITÚRGICA E PASTORAL SACRAMENTAL

Falar de espiritualidade litúrgica é falar da participação na celebração daLiturgia onde se reconhece a acção do Espírito Santo que anima quem a celebra e nelaparticipa. É certo que nem toda a vida espiritual se reduz à celebração da Liturgia; mastambém é certo que toda a celebração é oração e que tanto a celebração como qualqueroutra forma de oração, comunitária ou não, é actividade onde está actuante o EspíritoSanto. A celebração litúrgica está confinada a uma assembleia concreta, que a realizanum espaço e num tempo determinado, e ainda a uma estrutura e uma temática concreta,conforme as circunstâncias em que é realizada; mas é sempre, em última análise, fruto daenergia do Espírito de Deus, que aliás sopra onde quer. Mas o Espírito Santo, que ésempre o sopro vital de toda a oração, litúrgica ou não, não limita a sua actuação aosmomentos que lhe destinamos. Como aconteceu na primeira celebração do Pentecostesem Jerusalém, no 50º dia depois da Páscoa, em que a partir dali e daquele dia a multidãodos crentes que tinha um só coração e uma só alma irradiou até aos confins da terra,assim também agora, a partir da celebração que reúne a assembleia a celebrar, reno-vando os mistérios da salvação, a acção do Espírito Santo irradia por toda a vida de cadacrente e de cada comunidade, se se lhe permitir que o vento, o espírito do Pentecostescontinue a soprar, e as suas línguas de fogo não cessem de iluminar e de aquecer e de sefazerem ouvir no meio de todas as gentes. A pastoral sacramental há-de procurar,portanto, que a Palavra de Deus, que é a voz do Espírito Santo prolongada na Igreja, secontinue a ouvir; que a assembleia tenha consciência de que é nela, em cada lugar e emcada tempo, que está a Igreja de Cristo animada pelo Espírito; que os sinais sacramentaissejam autênticos, isto é, fiéis à sua significação original e realizados segundo a naturezae a finalidade de cada um deles; que a celebração seja verdadeira celebração e nãoredunde em simples exposição catequética, porque, se for celebração verdadeira elaprópria catequizará, como que por consequência natural. Explicações de sabor escolar,por mais didácticas que sejam, não têm lugar na celebração. Saborear o mel é melhor doque explicar a origem da sua doçura, poderia ter dito S. Francisco de Sales, que, na suasabedoria pitoresca, disse coisas semelhantes.

Por fim, a Palavra que de Deus veio até nós, trazida no sopro do Espírito, regres-sará a Deus, como eco do que na celebração se ouviu e se presenciou de maneiraparticipativa, em louvor e acção de graças Àquele que primeiro quebrou o silêncio e fezchegar a sua voz até ao nosso coração. Esse eco será ainda a voz do Espírito orando emnós com gemidos inefáveis.

Page 286: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:
Page 287: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto:

Í N D I C E

Dedicatória ..................................................................................................................... 6Grata memória ................................................................................................................ 9Páscoa, uma nova criação .............................................................................................. 11Uma Igreja orante .......................................................................................................... 15Celebração litúrgica e participação .............................................................................. 19A Páscoa e a sua celebração .......................................................................................... 22Espiritualidade pascal .................................................................................................... 29Possíveis elementos para celebração das Festas ......................................................... 34A Missa ou Ceia do Senhor ........................................................................................... 38A liturgia eucarística da Missa ...................................................................................... 51Os ministérios na liturgia .............................................................................................. 65A Iniciação Cristã na tradição da Igreja ....................................................................... 77Estrutura e celebração da Liturgia das Horas .............................................................. 87A Vigília Pascal .............................................................................................................. 106A liturgia antes do Concílio Vaticano II ....................................................................... 121O Tempo Pascal na tradição da Igreja .......................................................................... 126Dimensão baptismal da Quaresma ................................................................................ 140A palavra e o rito ............................................................................................................ 153Estrutura da liturgia e religiosidade popular ............................................................... 165A celebração litúrgica do Natal do Senhor .................................................................. 177O mistério da Páscoa e sua celebração ........................................................................ 182O Rito da Dedicação da Igreja e do Altar .................................................................... 188“Natal na praça” ............................................................................................................. 202Das cinzas da morte ao fogo do Espírito ..................................................................... 206As Ordenações ................................................................................................................ 210Para quê uma igreja? ...................................................................................................... 219Santa Maria na liturgia da Igreja .................................................................................. 227Um tempo marial ............................................................................................................ 236O que a liturgia pede à música ...................................................................................... 243O mistério pascal no tempo da Igreja ........................................................................... 250Eucaristia, oração de bênção por excelência ............................................................... 259O Espírito Santo, alma da liturgia ................................................................................ 275

Page 288: OS MISTÉRIOS DE CRISTO NA LITURGIA - · PDF fileOs ritos litúrgicos celebram os mistérios de Cristo no tempo. ... Ascensão de Cristo aos Céus inaugurou uma nova forma de culto: