os melhores poemas de joao cabral de melo neto

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Anlise das Obras Indicadas ao Vestibular da UEM 2008

Anlise das Obras Indicadas ao Vestibular da UEM 2008

Prof. Marco Antonio

Melhores Poemas de Joo Cabral de Melo Neto (Seleo: Antonio Carlos Secchin)

Modernismo:

O modernismo brasileiro foi um amplo movimento cultural que repercutiu fortemente sobre a cena artstica e a sociedade brasileiras desde a primeira metade do sculo XX, e resultou, em grande parte , da assimilao de novas tendncias artsticas e culturais lanadas pelas vanguardas europias anteriores Primeira Guerra Mundial. Tradicionalmente, considera-se a Semana de Arte Moderna realizada em So Paulo, em 1922, o ponto de partida do modernismo no Brasil.

Didaticamente, divide-se o Modernismo em trs fases: a primeira fase, mais radical e fortemente oposta a tudo que foi anterior, cheia de irreverncia e escndalo; uma segunda mais amena, que formou grandes romancistas e poetas; e uma terceira, tambm chamada Ps-Modernismo por vrios autores, que se opunha de certo modo a primeira e era por isso ridicularizada com o apelido de neoparnasianismo.

Primeira Gerao (1922-1930)

Caracteriza-se por ser uma tentativa de definir e marcar posies. Perodo rico em manifestos e revistas de vida efmera. a fase mais radical, justamente em conseqncia da necessidade de definies e do rompimento de todas as estruturas do passado. Carter anrquico e forte sentido destruidor. Principais autores desta fase: Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Antnio de Alcntara Machado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida e Plnio Salgado.

Caractersticas

Busca do moderno, original e polmico.

Lngua brasileira - falada pelo povo nas ruas.

Pardias - tentativa de repensar a histria e a literatura brasileira.

Segunda Gerao (1930-1945)

Estende-se de 1930 a 1945, sendo um perodo rico na produo potica e tambm na prosa. O universo temtico se amplia e os artistas passam a preocupar-se mais com o destino dos homens, o estar-no-mundo. A segunda fase colheu os resultados da precedente, substituindo o carter destruidor pela inteno construtiva, pela recomposio de valores e configurao da nova ordem esttica.(Cassiano Ricardo) A poesia prossegue a tarefa de purificao de meios e formas iniciada antes, ampliando a temtica na direo da inquietao filosfica e religiosa, com Vincius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, ao tempo em que a prosa alargava a sua rea de interesse para incluir preocupaes novas de ordem poltica, social e econmica, humana e espiritual. piada sucedeu a gravidade de esprito, a seriedade da alma, propsitos e meios. Uma gerao grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se considerava responsvel, deu poca uma atividade excepcional.

Caractersticas

Poesia Nova postura temtica - questionar mais a realidade e a si mesmo enquanto indivduo

Tentativa de interpretar o estar-no-mundo e seu papel de poeta

Literatura mais construtiva e mais politizada.

Surge uma corrente mais voltada para o espiritualismo e o intimismo (Ceclia, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vincius)

Aprofundamento das relaes do eu com o mundo

Conscincia da fragilidade do eu - "Tenho apenas duas mos / e o sentimento do mundo" (Carlos Drummond de Andrade - Sentimento do Mundo) Prosa

Romances caracterizados pela denncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo elevado grau de tenso nas relaes do eu com o mundo. O regionalismo ganha importncia, com destaque s relaes do personagem com o meio natural e social.

Os escritores nordestinos merecem destaque especial, por sua denncia da realidade da regio pouco conhecida nos grandes centros. O 1 romance nordestino foi "A Bagaceira" de Jos Amrico de Almeida (1928). Esses romances retratam o surgimento da realidade capitalista, a explorao das pessoas, movimentos migratrios, misria, fome, seca etc.

Terceira Gerao (1945- +/- 1980)

A literatura brasileira, assim como o cenrio scio-poltico, passa por transformaes.

A prosa, tanto no romance quanto nos contos, busca uma literatura intimista, de sondagem psicolgica, introspectiva, com destaque para Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Ao mesmo tempo, o regionalismo adquire uma nova dimenso com Guimares Rosa e sua recriao dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jaguno do Brasil central. Um trao caracterstico comum a Clarice e Guimares Rosa a pesquisa da linguagem, por isso so chamados instrumentalistas. Na poesia, surge uma gerao de poetas que se opem s conquistas e inovaes dos modernistas de 22. Assim, negando a liberdade formal, as ironias, as stiras e outras brincadeiras modernistas, os poetas de 45 buscam uma poesia mais equilibrada e sria. Os modelos voltam a ser os Parnasianos e Simbolistas. Principais autores (Ledo Ivo, Pricles Eugnio da Silva Ramos, Geir de Campos e Darcy Damasceno). No fim dos anos 40, surge um poeta singular, pois no est filiado esteticamente a nenhuma tendncia: Joo Cabral de Melo Neto.

Joo Cabral de Melo Neto.

Joo Cabral de Melo Neto o mais importante poeta da gerao de 45. Nasceu em 1920, no Recife, e morreu em 1999, no Rio de Janeiro. Filho e neto de donos de engenho, desde cedo apresentou interesse pela palavra, pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crtico literrio.

E da feira do domingo/ me traziam conspirantes/ para que os lesse e os explicasse/ um romance de barbante./ Sentados na roda morta/ de um carro de boi, sem jante/ ouviam o folheto guenzo,/ a seu leitor semelhante,/ com as peripcias de espanto/ preditas pelos feirantes./ Embora as coisas contadas/ e todo o mirabolante,/ em nada ou pouco variassem/ nos crimes, no amor/ nos lances,(...) Descoberta da literatura in A Escola das Facas (1980)

Tinha como primos dois nomes ilustres da cultura brasileira: Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Aos vinte anos j lia no original os grandes poemas da literatura estrangeira, como Apollinaire, Valry e outros. Em 1942, apenas com o curso secundrio concludo, muda-se para o Rio de Janeiro e, para sobreviver, ingressa no funcionalismo pblico.

Trazia consigo seu primeiro livro, Pedra do Sono (1941), de tendncia surreal. Trs anos depois, num segundo concurso, ingressa no Itamarati, passando a viver em vrias cidades famosas do mundo, como Barcelona, Londres, Sevilha, Marselha, Genebra, Berna e outras.

Cronologicamente, Joo Cabral situa-se entre os poetas da gerao de 45, mas trilhou caminhos prprios, dando continuidade a certos traos que j se delineavam na poesia de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, tais como a poesia substantiva, a objetividade e a preciso dos vocbulos.

Em sua obra encontram-se temas fundamentais :

A preocupao cada vez maior com a realidade social, particularmente com o Nordeste,

A reflexo permanente sobre a criao potica e artstica (metalinguagem),

o aprimoramento de sua potica j em construo, a potica da linguagem-objeto, isto , que procura sugerir o assunto retratado pela prpria construo da linguagem, (presena de um despojamento cada vez maior de sua linguagem. Algumas palavras so usadas sistematicamente na poesia deste autor: cana, pedra, osso, esqueleto, dente, gume, navalha, faca, foice, lmina, cortar, esfolado, baa, relgio, seco, mineral, deserto, assptico, vazio, fome.) A Espanha, em uma comparao eterna com o seu Pernambuco natal,

As diversas artes, sobretudo o surrealismo

Talvez se possa afirmar que a poesia de Joo Cabral tenha sido a primeira a estabelecer um corte profundo entre a poesia romntica e a moderna. Ao tratar a mulher como tema amoroso, por exemplo, o poeta o faz de forma distanciada, sem cair no sentimentalismo.

Comentrios de Joo Cabral:

A palavra poeta me d arrepios. Ela traz uma conotao de sujeito romntico, sonhador, irresponsvel e at homossexual.

Eu escrevo para ser lido em portugus...digo, em nordestino

Comentrios sobre Joo Cabral

quase impossvel falar sobre Joo Cabral sem recorrer abundantemente aos seus prprios versos. Cabral, como Mallarm no sculo passado, como Pound e Maiakvski, no presente, um poeta-crtico, ou seja, um poeta que analisa e critica o prprio fazer potico em seus poemas [...] a melhor crtica de poesia que se fez neste sculo no foi feita por crticos, mas por poetas, em poemas como (...) "Antiode", em "Psicologia da composio", em "A palo seco", de Joo Cabral. [...] Contra os que querem "poetizar o seu poema", faz-lo dcil, submisso s concesses sentimentais, Cabral (...) ope o dique de sua poesia-prosa, sua poesia-crtica, sua poesia-pedra. Augusto de Campos, "Da antiode antilira", texto de 1966, reeditado em Poesia, antipoesia, antropofagia, Cortez & Moraes, 1978.

A obra de Joo Cabral, obra que est longe de seu trmino e que nos reserva ainda muitas surpresas, hoje sem dvida a que mantm maior unidade e coerncia de produo, dentro de um alto gabarito, na poesia brasileira. Obra que honraria qualquer literatura e que em qualquer literatura seria rara pela sua qualidade [...] entre os poetas, especialmente na nova gerao, a poesia de JCMN tem um lugar privilegiado: o lugar cartesiano da lucidez mais extrema. Haroldo de Campos, "O gemetra engajado", texto de 1963, reeditado em Metalinguagem e outras metas, 4a. ed. revista e ampliada, Perspectiva, 1992.

Anlise dos poemas

Pedra do Sono (1941)

Segundo Antonio Carlos Secchin, o primeiro livro de Joo Cabral, tambm o mais atpico. Nele predomina uma atmosfera surrealista*, visvel no encadeamento de imagens logicamente dispares, nas reiteradas aluses ao mundo onrico (sonho), numa certa passividade frente s foras misteriosas do poema, que acabam por obstruir a faculdade crtica do poeta. Ora, se Cabral vai se tornar o mais seco dos poetas, o mais mineral, este livro se ope a esta tendncia, como vamos observar nos poemas (e excertos) a seguir: Poema da Desintoxicao

Em densas noites com medo de tudo: de um anjo que cego de um anjo que mudo. Razes de rvores enlaam-me os sonhos no ar sem aves vagando tristonhos. Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada. O poema inquieta o papel e a sala. Ante a face sonhada o vazio se cala. face sonhada de um silncio de lua, na noite da lmpada pressinto a tua. nascidas manhs que uma fada vai rindo, sou o vulto longnquo de um homem dormindo.

Perceba a sugesto onrica do homem sonhando, a fada; alm das razes de rvores se enlaando aos sonhos. Uma cena completamente surreal, alm da metalinguagem que j se insinua no poema, e que ser importantssima em toda a obra subseqente do escritor pernambucano.

A Andr Masson

Com peixes e cavalos sonmbulospintas a obscura metafsicado limbo.

Cavalos e peixes guerreirosfauna dentro da terra a nossos pscrianas mortas que nos seguemdos sonhos.

Formas primitivas fecham os olhosescafandros ocultam luzes frias;invisveis na superfcie plpebrasno batem.

Friorentos corremos ao sol geladode teu pas de mina onde guardaso alimento a qumica o enxofreda noite.

Uma outra constante da temtica de Cabral j se insinua neste poema, a intertextualidade e as referncias a outras artes. Joo Cabral sempre se interessou, inclusive, em divulgar artistas plsticos, tendo sido amigo de vrios deles. Andr Masson (1896 1987) era um pintor francs que se iniciou no cubismo, mas integrou o primeiro grupo de surrealistas liderados por Andr Breton, chegando a ser um dos signatrios do Manifesto Surrealista de 1924. O quadro acima, Germinao (de 1942) mostra algumas de suas caractersticas: retoma as cores e luzes, movimentando-as. Um novo espao e uma nova temtica so criados dentro dessa sequncia. A estrutura negra, sempre presente nas obras anteriores, torna-se uma massa escura que permeia as formas orgnicas, movimentando-se em torno de um grande olho. As tonalidades amarelas, vermelhas e azuis diluem-se nessas formas. Uma nova profundidade se apresenta: uma atmosfera surrealista desenha-se na projeo de um mundo fantasmagrico. Assim tambm a poesia de Cabral neste primeiro momento de sua potica. Perceba as imagens sugeridas: Cavalos e peixes guerreiros... Formas primitivas fecham os olhos... o alimento a qumica o enxofre.... muito semelhante s sugestes onricas do pintor surrealista.* Surrealismo: movimento modernista do comeo do sculo XX que se construiu, na literatura, sobre lapsos e lacunas sintticas e sobre a quebra da estruturao lgica do pensamento e de sua traduo lingstica equivalente.O Engenheiro (1945)

Aps uma experincia na prosa potica em 1943, quando publicou Os Trs Mal Amados, a partir do poema Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade, Joo Cabral comea a mudar seu estilo com a publicao do livro O Engenheiro (1945), dedicado quele poeta mineiro. Para Secchin, comea a predominar um ideal de rigor, de ordenao to consciente quanto possvel dos elementos lingsticos que se articulam no texto. Apesar de alguns poemas ainda mostrarem a face surreal das primeira composies, o livro inaugura a longa tradio dos poemas crticos, uma obsesso na obra de Cabral. Lembre-se que o poeta sonhava em ser crtico, antes de escrever. Aqui comea a aparecer a estrutura das quadras (estrofes de quatro versos) em medida velha, marca registrada do poeta, pois se aproxima do processo de versificao popular dos cordis nordestinos.As nuvensAs nuvens so cabelos

crescendo como rios;

so os gestos brancos

da cantora muda;

so esttuas em vo

beira de um mar;

a flora e a fauna leves

de pases de vento;

so o olho pintado

escorrendo imvel;

a mulher que se debrua

nas varandas do sono;

so a morte (a espera da)

atrs dos olhos fechados;

a medicina, branca!

nossos dias brancos.

Ainda de temtica surreal e com referncias morte, mas j sem o sentimentalismo de outros poetas como Manuel Bandeira, por exemplo. Cabral est em um processo de definio dos rumos a serem trilhados e que sero a tnica de sua poesia.O EngenheiroA luz, o sol, o ar livreenvolvem o sonho do engenheiro.O engenheiro sonha coisas claras:superfcies, tnis, um copo de gua.

O lpis, o esquadro, o papel;o desenho, o projeto, o nmero:o engenheiro pensa o mundo justo,mundo que nenhum vu encobre.

(Em certas tardes ns subamosao edifcio. A cidade diria,como um jornal que todos liam,ganhava um pulmo de cimento e vidro).

A gua, o vento, a claridadede um lado o rio, no alto as nuvens,situavam na natureza o edifciocrescendo de suas foras simples.

O poema acima extremamente importante na obra do poeta que, em virtude ele, ganhou o apelido de engenheiro do verso, por sua temtica objetiva e por sua poesia substantivada. Repare que o poeta trabalha em O Engenheiro, a poesia a partir de substantivos concretos (O lpis, o esquadro, o papel;/o desenho, o projeto, o nmero:/o engenheiro pensa o mundo justo,/mundo que nenhum vu encobre.), dando a entender ao leitor como o poeta deveria trabalhar e qual ser o caminho seguido por ele a partir de agora. Em outro poema do livro (A lio da poesia), Cabral usa de metalinguagem para exemplificar essa luta com as palavras no sentido de despoj-las de sentimentalismo: A luta branca sobre o papel/que o poeta evita/luta branca onde corre o sangue/de tuas veias de gua salgada.Psicologia da Composio (1947) A partir de agora o poeta encontra plenamente o seu caminho de despojamento lingstico. No livro esto importantes textos metalingsticos, espcie de arte potica a ser concretizada em poemas explicitamentes referenciais., como aborda o crtico da obra de Cabral em suas primeiras pginas.

Fbulas de Anfion

1 - O Deserto

No deserto, entre apaisagem de seuvocabulrio, Anfion,

Ao ar mineral isentomesmo da aladavegetao, no desertoque fogem as nuvenstrazendo no bojoas gordas estaes.

Anfion, entre pedrascomo frutos esquecidosque no quiseram

Amadurecer, Anfioncomo se preciso crculoestivesse riscando

Na areia, gesto purode resduos respirao deserto, Anfion

Fbula de Anfion um poema narrativo , onde o anti-heri procura despojar a poesia de sua afetividade. Inspira-se no mito clssico da construo de Tebas, problematizando a insuficincia das palavras.Anfion, de acordo com a mitologia grega, era filho de Jpiter e Antopa. Dotado de talento para a msica, Anfion recebeu uma lira (no poema aparece como flauta) de Apolo. Ao som dessa lira, construiu depois a muralha de Tebas; as pedras iam-se colocando umas sobre as outras, sem qualquer esforo.

Cabral substituiu a lira por uma flauta rstica e interpretou o mito com liberdade de criao, associando os motivos temticos "pedra" / "palavra". Ao final do poema o acaso vai frustrar o projeto de Anfion (depurao, mineralizao dos objetos), por aparecer inexplicavelmentecom toda uma vitalidade biolgica. uma fora instintiva e anrquica que rompe com a aridez da vida asctica perseguida pelo poeta.

Psicologia da composio I VII

I. Saio de meu poemacomo quem lava as mos.

Algumas conchas tornaram-se,que o sol da atenocristalizou; alguma palavraque desabrochei, como a um pssaro.

Talvez alguma conchadessas (ou pssaro) lembre,cncava, o corpo do gestoextinto que o ar j preencheu;

talvez, como a camisavazia, que despi.

VII. mineral o papelonde escrevero verso; o versoque possvel no fazer

So mineraisas flores e as plantas,as frutas e os bichosquando em estado de palavra.

minerala linha do horizonte,nossos nomes, essas coisasfeitas de palavras.

mineral, por fim,qualquer livro:que mineral a palavraescrita, a fria natureza

Da palavra escrita Repare neste, que um dos principais excertos de Psicologia da Composio. No poema, Cabral demonstra, utilizando a metalinguagem, como tudo se resume a uma essncia mineral quando em estado de palavra, quando no branco do papel... mineral. Como se poemas e coisas voltassem sua substancialidade mineral. O poema desprovido de sentimentos e o poeta teorizando sobre ele e sobre as palavras e nomes, e objetos.

Um outro poema do livro (Antiode contra a poesia dita profunda), tambm segue uma temtica de crtica e despojamento metalingstico. Nele o poeta se refere poesia como fezes, para opor-se idia de flor, to comum aos poetas sentimentais:

Antiode (contra a poesia dita profunda)

A

Poesia, te escrevia: flor! conhecendo que s fezes. Fezes como qualquer,

gerando cogumelos (raros, frgeis cogu- melos) no mido calor de nossa boca.

Delicado, escrevia: flor! (Cogumelos sero flor? Espcie estranha, espcie

extinta de flor, flor no de todo flor, mas flor, bolha aberta no maduro.)

Delicado, evitava o estrume do poema, seu caule, seu ovrio, suas intestinaes.

Esperava as puras, transparentes floraes, nascidas do ar, no ar, como as brisas.

O primeiro elemento que evidencia a temtica cabralina a composio de um metapoema o assunto em pauta o prprio poema: a poesia faz da poesia seu tema.

Perceba o juzo crtico j na escolha do vocabulrio, em que o poeta habilmente emprega as palavras flor e fezes.

Flor x fezes a poesia enquanto flor remete ao lrico, emoo, idia do objeto a refletir e simbolizar um estado de alma. a representao do artefato como fonte de inspirao potica. Por outro lado, a palavra "fezes" no um termo da ordem do sublime no sentido de no ser algo altivo, ilustre ou belo.

"Antiode (contra a poesia dita profunda)", trata da reflexo de Joo Cabral, sobre o seu prprio conceito de como fazer poesia. Desse modo, emprega uma linguagem elaborada, que tem seu cerne nas palavras flor e fezes, no s para colocar frente a frente s duas vertentes que regem a poesia, mas ainda, ressaltar a "fabricao" do poema. Ou seja, tem-se a utilizao de vocabulrios aparentemente antagnicos (flor e fezes), como mostra o poeta, a servirem de ponte para estabelecer a ligao entre margens opostas, retratos de uma poesia lrica x uma poesia cerebral.

O Co Sem Plumas (1950) Os trs livros abaixo tm como tema central a figura do rio Capibaribe. O rio seja ele qual for altamente simblico no inconsciente das pessoas e dos poetas.Simbologia da gua

O rio, como escoamento das guas, smbolo de fertilidade, de morte e de renovao. A corrente a vida; a gua descendo para o oceano e o ajuntamento das guas o retorno indiferenciao (CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1982), Dictionnaire des Symboles, Paris, ditions Robert Laffont.) A gua, em si, contm sempre este binmio de significados: causa de morte e fonte de vida. binmio, porque os dois significados acabam por se verificar no mesmo momento. Exemplo disto mesmo o beber gua para matar a sede; ao verificar-se a "morte" da sede, sente-se uma "nova vida". Esta s acontece quando se d aquela. Na tendncia que tem de correr para baixo, a gua conduz ao abismo (cataratas e enxurradas) e sinal de morte, mas tambm se estende na horizontal (acalmia) e at corre para cima, em forma de seiva por exemplo, e, ento, sinal e causa de vida.

Na terra, a gua me e fonte de todas as coisas, est na origem da criao; ao contrrio, a terra sem gua, o deserto, sinal de morte. Ela fonte de vida e causa de morte; criadora e destruidora, simultaneamente.

Porque no tem forma determinada, a gua imagem do caos, estado anterior criao do mundo; com a ausncia de vida e de harmonia, ela desordem.

Os rios so agentes de fertilizao; as chuvas e o orvalho trazem a fecundidade e manifestam a bondade divina, mesmo em forma de neve. A prpria hospitalidade exige que se d gua fresca ao visitante e que os seus ps sejam lavados para assegurar a paz do seu repouso.

tambm meio de purificao. Os muulmanos, por exemplo, tm os ritos de purificao com gua corrente, antes de entrarem nas mesquitas; os cristos usam-na tambm nos ritos de asperso e abluo. Toda a gente a usa para se lavar, tomar banho (morte impureza e sujidade e vida de higiene e limpeza).

Sendo sinal de purificao fsica, ela tambm figura da purificao moral no batismo, na asperso com gua benta, no "lavabo" da missa.

A gua regenera porque tambm d novas foras. Imaginem quando muito fatigados e sentados borda da gua corrente e cantante ou na margem dum rio repousaro e recuperaro foras, paz e nova vida. (http://www.cne-escutismo.pt/mistica/simbologia_2seccao.htm) Herclito de feso, pensador grego dizia: "Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo". E Plato ainda dizia de Herclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que no se pode entrar duas vezes na mesma corrente"; o rio corre e toca-se outra gua. Seus sucessores dizem at que nele nem se pode mesmo entrar, pois que imediatamente se transforma; o que , ao mesmo tempo j novamente no . Alm disso, Aristteles diz que Herclito afirma que apenas um o que permanece; disto todo o resto formado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada firme, que nada se demora; isto , o verdadeiro o devir, no o ser - a determinao mais exata para este contedo universal o devir. (http://www.mundodosfilosofos.com.br/heraclito.htm)A Obra

Considerado por muitos como o seu livro mais importante, foi o ltimo livro impresso na prensa manual do poeta, e inspirado na literatura de cordel.

O Co sem Plumas a descrio das condies sub-humanas nas palafitas e mocambos do Recife, tendo o rio Capibaribe como eixo central. A dico dura, como convm ao tema e ao autor, mas nunca resvala para o tom de panfleto. Segundo o crtico Antonio Secchin, por sua linguagem antidiscursiva, o enfoque da pobreza nordestina escapa do tom panfletrio a que tantas vezes o social foi submetido(...) um longo e hermtico poema que denuncia no s o estado do rio, mas tambm a situao de excluso da populao ribeirinha, margem de tudo. O poema utiliza dois aspectos geogrficos: a da geografia fsica, que reflete sobre as questes regionais propriamente ditas (a descrio do rio, sua desembocadura, seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a da geografia humana, que nos faz pensar no s sobre as condies sociais e econmicas do homem que habita suas margens, mas tambm sobre o que faz de um homem um homem, ou seja, o poema parte de uma reflexo sobre a regio e se completa com outra de carter mais universal. H ainda, para a compreenso do poema, de se relevar uma oposio: a que o autor criou entre as coisas como deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam. Assim, ao falar da gua do rio, ele sonha com a gua perfeita (a gua do copo, a gua da chuva azul, a gua que se abre aos peixes, a gua que teria os enfeites ou as plumas das plantas), ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela no existe no rio Capibaribe, cuja gua tem lodo, ferrugem e lama. Tambm, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e pluma) e se revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem. Assim, ele j antecipa a temtica de sua obra mais famosa: Morte e Vida Severina. No poema, que se compe de quatro momentos (Paisagem do Capibaribe, I e II; Fbula do Capibaribe, III e Discurso do Capibaribe, IV): A cidade passada pelo rio como uma rua passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.

O rio ora lembrava a lngua mansa de um co, ora o ventre triste de um co, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um co.

Aquele rioera como um co sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da gua do copo de gua,da gua de cntaro,dos peixes de gua, da brisa na gua.

Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.

Os versos a seguir, extrados do II momento, ilustram com preciso o que foi dito acima:

Como o rioaqueles homensso como ces sem plumas(um co sem plumas maisque um co saqueado; maisque um co assassinado.(...)

Na paisagem do riodifcil saberonde comea o rio;onde a lamacomea do rio;onde a terracomea da lama;onde o homem,onde a pelecomea da lama;onde comea o homemnaquele homem.(...)

Na gua do rio, lentamente, se vo perdendo em lama; numa lama que pouco a pouco tambm no pode falar: que pouco a pouco ganha os gestos defuntos da lama; o sangue de goma, o olho paraltico da lama.

Na paisagem do riodifcil saber onde comea o rio; onde a lama comea do rio; onde a terra comea da lama; onde o homem, onde a pele comea da lama; onde comea o homem naquele homem.

Difcil saber se aquele homem j no est mais aqum do homem; mais aqum do homem ao menos capaz de roer os ossos do ofcio; capaz de sangrar na praa; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o brao;capaz de ter a vida mastigada e no apenas dissolvida (naquela gua macia que amolece seus ossos como amoleceu as pedras).

O Rio (1953)

O poeta cede a voz ao prprio Capibaribe, que, sujeito da enunciao, narra seu percurso, da nascente ao Atltico. (...) Ultrapassando uma captao meramente geogrfica da paisagem, a primazia ser concedida realidade humana que a povoa e que vai aparecer mais fortemente em Morte e Vida Severina (1955)

Da lagoa da Estaca a Apolinrio

Sempre pensara em ir caminho do mar. Para os bichos e rios nascer j caminhar. Eu no sei o que os rios tm de homem do mar; sei que se sente o mesmo e exigente chamar. (...)

De Apolinrio a Poo Fundo(...)Deixando vou as terras de minha primeira infncia. Deixando para trs os nomes que vo mudando. Terras que eu abandono porque de rio estar passando. Vou com passo de rio, que de barco navegando. Deixando para trs as fazendas que vo ficando. Vendo-as, enquanto vou, parece que esto desfilando. Vou andando lado a lado de gente que vai retirando; vou levando comigo os rios que vou encontrando.

(...)Vou na mesma paisagem reduzida sua pedra. A vida veste ainda sua mais dura pele. S que aqui h mais homens para vencer tanta pedra, para amassar com sangue os ossos duros desta terra. E se aqui h mais homens, esses homens melhor conhecem como obrigar o cho com plantas que comem pedra. H aqui homens mais homens que em sua luta contra a pedra sabem como se armar com as qualidades da pedra.

(...)

Encontro com a Usina

Mas nas Usina que vi aquela boca maior que existe por detrs das bocas que ela plantou; que come o canavial que contra as terras soltou; que come o canavial e tudo o que ele devorou; que come o canavial e as casas que ele assaltou; que come o canavial e as caldeiras que sufocou. S na Usina que vi aquela boca maior, a boca que devora bocas que devorar mandou. (...)As duas cidades

(...)Conheo todos eles, do Agreste e da Caatinga; gente tambm da Mata vomitada pelas usinas; gente tambm daqui que trabalha nestas usinas, que aqui no moem cana, moem coisas muito mais finas. (...)

A gente da cidade que h no avesso do Recife tem em mim um amigo, seu companheiro mais ntimo. Vivo como esta gente, entro-lhes pela cozinha; como bicho de casa penetro nas camarinhas. As vilas que passei sempre abracei como amigo; desta vila de lama que sou mais do que amigo: sou o amante, que abraa com corpo mais confundido; sou o amante, com ela leito de lama divido. (...)A no ser esta cidade que vim encontrar sob o Recife: sua metade podre que com lama podre se edifica. cidade sem nome sob a capital to conhecida. Se tambm capital, ser uma capital mendiga. cidade sem ruas e sem casas que se diga. De outra qualquer cidade possui apenas polcia. Desta capital podre s as estatsticas do notcia, ao medir sua morte, pois no h o que medir em sua vida. (...)

Os dois mares

A um rio sempre espera um mais vasto e ancho mar. Para a agente que desce que nem sempre existe esse mar, pois eles no encontram na cidade que imaginavam mar (...)

OferendaAo partir companhia desta gente dos alagados que lhe posso deixar, que conselho, que recado? Somente a relao de nosso comum retirar; s esta relao tecida em grosso tear.

Morte e Vida Severina Auto de Natal Pernambucano (1955)

Sem dvida o poema mais famoso do autor, apesar dele cham-lo de obra menor. Morte e Vida Severina o coroamento de uma temtica iniciada com O Co Sem Plumas e desenvolvida de forma criativa e indita em O Rio. Fugindo do serto, Severino se depara seguidamente com paisagens em que a morte exerce seu imprio, devido s injustias sociais que marginalizam os camponeses nordestinos, que tambm aparecer mais tarde em Dois Parlamentos (1960). Seguindo a mesma temtica outrora explorada em obras como Vidas Secas (Graciliano Ramos com quem Cabral compartilha, inclusive a mesma linguagem despojada e para quem dedica um poema no livro Serial, de 1961), e O Quinze (Raquel de Queiros), Cabral pode ser considerado a partir desta obra um escritor engajado e de temtica social.

Em 1965, a pedido do escritor Roberto Freire, diretor do Teatro da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (TUCA), o msico Chico Buarque musicou o poema para a montagem da pea. A partir da dcada de 80 considerado uma espcie de Hino do MST.

Podemos subdividir o livro Morte e Vida Severina basicamente em 18 partes distintas:

1) A pea aberta com a explicao de Severino que se apresenta e diz a que vem:

O meu nome Severino,

no tenho outro de pia.Como h muitos Severinos,que santo de romaria,deram ento de me chamarSeverino de Mariacomo h muitos Severinoscom mes chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:h muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigosenhor desta sesmaria.

Como ento dizer quem faloora a Vossas Senhorias?Vejamos: o Severinoda Maria do Zacarias,l da serra da Costela,limites da Paraba.

Mas isso ainda diz pouco:se ao menos mais cinco haviacom nome de Severinofilhos de tantas Mariasmulheres de outros tantos,j finados, Zacarias,vivendo na mesma serramagra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinosiguais em tudo na vida:na mesma cabea grandeque a custo que se equilibra,no mesmo ventre crescidosobre as mesmas pernas finase iguais tambm porque o sangue,que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinosiguais em tudo na vida,morremos de morte igual,mesma morte severina:que a morte de que se morrede velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vintede fome um pouco por dia(de fraqueza e de doena que a morte severinaataca em qualquer idade,e at gente no nascida).

Somos muitos Severinosiguais em tudo e na sina:a de abrandar estas pedrassuando-se muito em cima,a de tentar despertarterra sempre mais extinta,

a de querer arrancaralguns roado da cinza.Mas, para que me conheammelhor Vossas Senhoriase melhor possam seguira histria de minha vida,passo a ser o Severinoque em vossa presena emigra.

2) A primeira morte a da emboscada. Severino trava um dilogo com dois homens que carregam um defunto embrulhado na rede, saindo o triste estribilho " irmos das almas ".

Na cena acontece a denncia daqueles que abusam do poder, matar para tomar posse da terra e jamais so discriminados. Ao mesmo tempo desperta a solidariedade do andarilho:

E o que guardava a emboscada,irmo das almase com que foi que o mataram,com faca ou bala?

Este foi morto de bala,irmo das almas,mas garantido de bala,mais longe vara.

E quem foi que o emboscou,irmos das almas,quem contra ele soltouessa ave-bala?

Ali difcil dizer,irmo das almas,sempre h uma bala voandodesocupada.

E o que havia ele feitoirmos das almas,e o que havia ele feitocontra a tal pssara?

Ter um hectares de terra,irmo das almas,de pedra e areia lavadaque cultivava.

Mas que roas que ele tinha,irmos das almasque podia ele plantarna pedra avara?

Nos magros lbios de areia,irmo das almas,os intervalos das pedras,plantava palha.

E era grande sua lavoura,irmos das almas,lavoura de muitas covas,to cobiada?

Tinha somente dez quadras,irmo das almas,todas nos ombros da serra,nenhuma vrzea.

Mas ento por que o mataram,irmos das almas,mas ento por que o mataramcom espingarda?

Queria mais espalhar-se,irmo das almas,queria voar mais livreessa ave-bala.

3) A Segunda forma de morte encontrada a prpria natureza agreste do serto. O retirante v o seu rio-guia, o Capibaribe, seco.

4) Temeroso de perder o rumo segue a viagem, indo em direo do som de uma cantoria e Severino depara com um velrio. No momento das excelncias, dois homens comeam a imitar o som das vozes dos que rezam.

5) O retirante, cansado, interrompe a viagem e procura um trabalho. Severino retoma os motivos que o fizeram partir: est procura da vida; de certa maneira, tenta esconder sua prpria vida, ultrapassar os trinta, catando as migalhas que lhe permitem a sobrevivncia.

6) Novo dilogo estabelecido desta vez com uma mulher. Enquanto Severino vai desafiando o que sabe fazer, o leitor percebe que o conhecimento adquirido por ele no pode ajud-lo, pois o que ele precisa saber para trabalhar com a mulher pouca coisa, e justamente so estas coisas que ironicamente revelam quem ela :

Muito bom dia senhora,que nessa janela estsabe dizer se possvelalgum trabalho encontrar?

Trabalho aqui nunca faltaa quem sabe trabalharo que fazia o compadrena sua terra de l?

Pois fui sempre lavrador,lavrador de terra mno h espcie de terraque eu no possa cultivar.

Isso aqui de nada adianta,poucos existe o que lavrarmas diga-me, retirante,o que mais fazia por l?

Tambm l na minha terrade terra mesmo pouco hmas at a calva da pedrasinto-me capaz de arar.

7) A caminhada prossegue e o retirante chega Zona da Mata. Em contato com a terra mais branda e macia, j prxima do litoral e com rios que no secam, Severino percebe que a pode se estabelecer, v uma leve esperana balanar, decerto pela aparente beleza do lugar:

Mas no avisto ningum,s folhas de cana finasomente ali distnciaaquele bueiro de usinasomente naquela vrzeaum bang velho em runa.

Por onde andar a genteque tantas canas cultiva?Feriando: que nesta terrato fcil, to doce e rica,no preciso trabalhartodas as horas do dia,os dias todos do ms,os meses todos da vida

8) A oitava cena vem em resposta aos versos que finalizaram a anterior. Por que no havia gente no lugar? Os trabalhadores levam um morto ao cemitrio, um trabalhador da lavoura. Severino-observador ouve o que dizem os amigos do finado. Uma raiva at ento contida vai crescendo, acompanhada do ritmo da poesia que salta em versos de redondilhas menores at versos eneasslabos, sofrendo cortes rpidos, o que d a impresso de tumulto:

Essa cova em que ests,com palmos medida, a cota menorque tiraste em vida.

de bom tamanho,nem largo nem fundo, a parte que te cabe

neste latifndio.

No cova grande. cova medida, a terra que queriasver dividida.

uma cova grandepara teu pouco defunto,mas estars mais anchoque estavas no mundo.

uma cova grandepara teu defunto parco,porm mais que no mundote sentirs largo.

9) O retirante apressa o passo a fim de chegar mais rapidamente ao Recife. Nesta cena, ele reitera o motivo de sua retirada: no foi pela cobia, mas para defender sua prpria vida. No entanto, as esperanas vo se rareando, porque em qualquer lugar a morte sua sempre companheira10) Chegando ao Recife, Severino pra para descansar e ouve a conversa de dois coveiros. Ambos discutem a possibilidade de arrematar bens com a morte, com promoes e gorjetas. A morte carrega as caractersticas do morto enquanto vivia, seu lugar depende de sua classe social em um cemitrio tambm dividido, hierarquizado. Somente os retirantes so a " massa " da morte e morrem sem classificao:

O dia hoje est difcilno sei onde vamos parar.Deviam dar um aumento,ao menos aos deste setor de c.As avenidas do centro so melhores,mas so para os protegidos:h sempre menos trabalhoe gorjetas pelo servioe mais numeroso o pessoal(toma mais tempo enterrar os ricos).pois eu me daria por contentese me mandassem para c.

Se trabalhasses no de Casa Amarelano estarias a reclamar.De trabalhar no de Santo Amarodeve alegrar-se o colegaporque parece que a genteque se enterra no de Casa Amarelaest decidida a mudar-setoda para debaixo da terra.

que o colega ainda no viuo movimento: no o que se v.Fique-se por a um momentoe no tardaro a apareceros defuntos que ainda hojevo chegar (ou partir, no sei).

11) O retirante se aproxima de um cais de rio, confessa no ter esperado muita coisa, pois tinha a conscincia de que a vida no seria diferente na cidade. No entanto esperava que melhorassem suas condies de vida, com gua, farinha e um pouco mais de expectativa de vida. S que sem querer descobre, da conversa dos coveiros que seguia seu prprio enterro:

adiantado de uns dias;

o enterro espera na porta;

o morto ainda est com vida.

12) A dcima segunda cena estabelece uma ruptura e ao mesmo tempo anuncia a prxima parte. Trata-se do encontro de Severino com a primeira forma de otimismo exterior ao personagem, um otimismo contido, possvel em tais circunstncias da vida. O retirante trava um dilogo com Jos, mestre carpina. Enquanto vai dando forma s suas angstias atravs de perguntas, recebe uma resposta.

13) A mulher de Jos anuncia a chegada do filho. O anncio do nascimento do filho-esperana, filho do mestre carpina, que " saltou para dentro da vida ", num jogo contnuo de antteses em que se opem as desesperanas severinas esperana.

Seu Jos, mestre carpina,que habita este lamaal,sabes me dizer se o rioa esta altura d vau?sabe me dizer se fundaSeverino, retirante,jamais o cruzei a nadoquando a mar est cheiavejo passar muitos barcos,barcaas, alvarengas,muitas de grande calado.

Seu Jos, mestre carpina,para cobrir corpo de homemno preciso muito gua:basta que chega o abdome,basta que tenha funduraigual de sua fome.

Severino, retirantepois no sei o que lhe contesempre que cruzo este riocostumo tomar a pontequanto ao vazio do estmago,se cruza quando se come.

14) Aparecem para visitar o recm-nascido, amigos, vizinhos e duas ciganas. Ao tomarem a palavra os elementos de cada grupo-coral, tecem loas, fazem predies, trazem presentes, em cena que reconstitui no lamaal (prespio) ribeirinho o milagre da vida. Severino colocado fora da cena, como mero observador em contato com a pequena alegria, que faz o povo esquecer, por um tempo a dura realidade que carregam.15) Presentes so levados criana, reis magos da misria repartem a pobreza:

Minha pobreza tal que no trago presente grande:trago para a me caranguejospescados por esses manguesmamando leite de lamaconservar nosso sangue.

Minha pobreza tal que coisa alguma posso ofertar:somente o leite que tenhopara meu filho amamentaraqui todos so irmos,de leite, de lama, de ar.

Minha pobreza tal que no tenho presente melhor:trago este papel de jornalpara lhe servir de cobertorcobrindo-se assim de letrasvai um dia ser doutor.

16) Ao tomarem a palavra, as duas ciganas tecem suas previses. Num processo de perfeita identidade do homem ao meio em que ele vive, as videntes tiram lies de sobrevivncia. A primeira cigana toma a palavra, antecipa para a criana o mesmo destino de seu pai; a segunda cigana prediz um destino, que levar o menino s mquinas e a paragens nos mangues melhores do Beberibe

Primeira Cigana a mesmo destino do pai

Ateno peo, senhores,para esta breve leitura:somos ciganas do Egito,lemos a sorte futura.Vou dizer todas as coisasque desde j posso verna vida desse meninoacabado de nascer:aprender a engatinharpor a, com aratus,aprender a caminharna lama, como goiamuns,e a correr o ensinaroo anfbios caranguejos,pelo que ser anfbiocomo a gente daqui mesmo.Cedo aprender a caar:primeiro, com as galinhas,que catando pelo chotudo o que cheira a comidadepois, aprender comoutras espcies de bichos:com os porcos nos monturos,com os cachorros no lixo.Vejo-o, uns anos mais tarde,na ilha do Maruim,vestido negro de lama,voltar de pescar sirise vejo-o, ainda maior,pelo imenso lamarofazendo dos dedos iscaspara pescar camaro

Segunda Cigana um novo destino

Ateno peo, senhores,tambm para minha leitura:tambm venho dos Egitos,vou completar a figura.Outras coisas que estou vendo necessrio que eu diga:no ficar a pescarde jerer toda a vida.Minha amiga se esqueceude dizer todas as linhasno pensem que a vida deleh de ser sempre daninha.Enxergo daqui a planuraque a vida do homem de ofcio,bem mais sadia que os mangues,tenha embora precipcios.No o vejo dentro dos mangues,vejo-o dentro de uma fbrica:se est negro no lama, graxa de sua mquina,coisa mais limpa que a lamado pescador de marque vemos aqui vestidode lama da cara ao p.E mais: para que no pensemque em sua vida tudo triste,vejo coisa que o trabalhotalvez at lhe conquiste:que mudar-se destes manguesdaqui do Capibaribepara um mocambo melhornos mangues do Beberibe.

17) Chegam os vizinhos e cantam a beleza do recm-nascido. Os atributos que distinguem a criana so os mesmos que marcam toda a populao restante. Criana magra, franzina, plida, pequena, mas criana que vai fazer minar um pouco de vida:

E belo porque o novotodo o velho contagia.

Belo porque corrompecom sangue novo a anemia.

Infecciona a misriacom vida nova e sadia.

Com osis, o deserto,com ventos, a calmaria.

18) No ltimo segmento da pea, aps a valorizao da vida, o mestre carpina toma a palavra, dialoga com Severino, que chamado mas permanece mudo:

difcil defender,s com palavras, a vida,ainda mais quando ela esta que v, severinamas se responder no pude pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeucom sua presena viva.E no h melhor respostaque o espetculo da vida:v-la desfiar seu fio,que tambm se chama vida,ver a fbrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,v-la brotar como h poucoem nova vida explodidamesmo quando assim pequenaa exploso, como a ocorridacomo a de h pouco, franzinamesmo quando a explosode uma vida severina.

Paisagem com Figuras (1955) Este livro o primeiro com temtica espanhola na obra do poeta. So dezoito poemas entre os quais a Espanha aparece em dez. clara a relao do poeta em estabelecer paralelos entre essas duas realidades geogrficas (a secura, a pedra, o ambiente agreste) e memoriais. , portanto, um livro de ruptura, pois a partir dele tem incio um fundo intimista e confessional, marcados ainda pela linguagem despojada.

O vento no canavial

No se v no canavialnenhuma planta com nome,nenhuma planta maria,planta com nome de homem.

annimo o canavial,sem feies, como a campina; como um mar sem navios,

papel em branco de escrita.

como um grande lenolsem dobras e sem bainha;penugem de moa ao sol,roupa lavada estendida.

Contudo h no canavialoculta fisionomia:como em pulso de relgioh possvel melodia,ou como de um avioa paisagem se organiza,ou h finos desenhos naspedras da praa vazia.

Se venta no canavialestendido sob o solseu tecido inanimadofaz-se sensvel lenol,

se muda em bandeira viva,de cor verde sobre verde,com estrelas verdes queno verde nascem, se perdem.

No lembra o canavialento, as praas vazias:no tem, como tm as pedras,disciplina de milcias.

solta sua simetria:como a das ondas na areiaou as ondas da multidolutando na praa cheia.

Ento, da praa cheiaque o canavial a imagem:vem-se as mesmas correntesque se fazem e desfazem,

voragens que se desatam,redemoinhos iguais,estrelas iguais quelasque o povo na praa faz.

Importante referncia riqueza (e manuteno da pobreza) regional, o canavial em questo remete a uma paisagem geogrfica que tambm smbolo da esperana de um povo oprimido, mas que pode de juntar na praa e, em redemoinho, transformar o mundo.Cemitrio pernambucano (Nossa Senhora da Luz)

Nesta terra ningum jaz,pois tambm no jaz um rionoutro rio, nem o mar cemitrio de rios.

Nenhum dos mortos daquivem vestido de caixo.Portanto, eles no se enterram,so derramados no cho.

Vm em redes de varandasabertas ao sol e chuva.Trazem suas prprias moscas.O cho lhes vai como luva.

Mortos ao ar-livre, que eram,hoje terra-livre esto.So to da terra que a terranem sente sua intruso.

A dura realidade, aqui descrita pelo poeta Joo Cabral de Melo Neto, esconde um misticismo amargo e penoso; no h como deixar de reconhecer nuanas da passagem bblica (portanto mstica) que lembra ao homem que ele p, e ao p retornar (Gnesis 3, 19). A leitura dos ltimos versos aponta para tal passagem; e, reforando a leitura, o mar no cemitrio de rios por serem ambos mar e rio formados de gua (primeira estrofe). O amargo da realidade est em o eu-lrico descrever a pobreza de quem enterrado. Nenhum morto enterrado em tal cemitrio tem direito a um enterro digno, a um caixo; nenhum, portanto, vem "vestido de caixo". J eram mortos ao ar-livre, muitos antes de morrerem

Uma Faca S Lmina (ou: Serventia das Idias Fixas) (1955) Joo Cabral dizia que era um poema sobre a obsesso, pois o compromisso do poeta era, segundo Jos Castelo em seu ensaio O Homem Sem Alma, fazer da palavra uma lmina capaz de tocar, remover, esculpir o mundo real um longo poema de 88 estrofes de 4 versos (tpica estrofao de sua obra). Considerado um texto altamente conceitual, elaborado em torno de trs elementos faca, bala, relgio de que so extradas, como proposta tico-existencial, as noes de agressividade, carncia e interiorizao obsessivas, vistas como armas frente diluio empobrecedora do dia-a-dia, como contundncia frente ao torpor e alienao.(Antonio Carlos Secchin)Assim como uma balaenterrada no corpo,fazendo mais espessoum dos lados do morto;

assim como uma balado chumbo mais pesado,no msculo de um homempesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,bala que possusseum corao ativo

igual ao de um relgiosubmerso em algum corpo,ao de um relgio vivoe tambm revoltoso,

relgio que tivesseo gume de uma faca e toda a impiedadede lmina azulada;

assim como uma faca que sem bolso ou bainhase transformasse em partede vossa anatomia;

qual uma faca ntimaou faca de uso interno, habitando num corpocomo o prprio esqueleto

de um homem que o tivesse, e sempre, doloroso de homem que se ferissecontra seus prprios ossos.

Quaderna (1959) Publicado em Lisboa, inaugura uma srie de poemas sobre a mulher e sobre o universo feminino. Ainda existem referncias importantes Espanha, como ocorre em poemas como Estudos para uma bailarina andaluza, onde ntida a comparao da mulher com o fogo.

Paisagem pelo telefoneSempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manh de praia,

mais manh porque marinha,

a alguma manh de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,

onde as manhs so mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que so velas

mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois no o sol quem as veste

e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham

Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manh

estivesses envolvida,

fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mnima,

e que por mnima, pouco

de tua luz prpria tira,

e at mais, quando falavas

no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,

s de teu banho vestida,

que quando tu ests mais clara

pois a gua nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a gua clara no te acende:

libera a luz que j tinhas.

A Mulher e a CasaTua seduo menosde mulher do que de casa;pois vem de como por dentroou por detrs da fachada.

Mesmo quando ela possuitua plcida elegncia,esse teu reboco claro,riso franco de varandas,

uma casa no nuncas para ser contemplada;melhor: somente por dentro possvel contempl-la.

Seduz pelo que dentro,ou ser, quando se abra;pelo que pode ser dentrode suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeramcom seus vazios, com o nada;pelos espaos de dentro,no pelo que dentro guarda;

pelos espaos de dentro:seus recintos, suas reas,organizando-se dentroem corredores e salas,

os quais sugerindo ao homemestncias aconchegadas,paredes bem revestidasou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homemefeito igual ao que causas:a vontade de corr-lapor dentro, de visit-la.

perceptvel no poeta uma nova temtica que passa a surgir: a da poesia ertica, baseada na noo plstica da descrio de cenas onde ntida a presena feminina.

Serial (1961) Na mesma linha de Paisagens com Figuras (1955), este livro , parte Nordeste, parte Espanha. Um dos poemas mais importantes uma homenagem-dedicatria a Graciliano Ramos, verdadeira confisso do poeta sobre o modo de composio dos dois.Graciliano RamosFalo somente com o que falo:Com as mesmas vinte palavrasGirando ao redor do solQue as limpa do que no faca:

De toda uma crosta viscosa,Resto de janta abaianada,Que fica na lmina e cegaSeu gosto de cicatriz clara.

Falo somente do que falo:Do seco e de suas paisagens,Nordestes, debaixo de um solAli do mais quente vinagre:

Que reduz tudo ao espinhao,Creta o simplesmente folhagem,Folha prolixa, folharada,Onde possa esconder a fraude.

Falo somente por quem falo:Por quem existe nesses climasCondicionados pelo sol,Pelo gavio e outras rapinas:

E onde esto os solos inertesDe tantas condies caatingaEm que s sabe cultivarO que sinnimo de mngua.

Falo somente para quem falo:Quem padece sono de mortoE precisa um despertadorAcre, como o sol sobre o olho:

Que quando o sol estridente,A contra-plo, imperioso,E bate nas plpebras comoSe bate numa porta a socos.A Educao pela Pedra (1966) Um obra nitidamente dividida em duas partes: Nordeste e No-Nordeste. Tambm pode ser dividida em: temas pernambucanos e temas diversos. Os versos comeam a aparecer mais longos. O ttulo da coletnea A Educao pela Pedra (1966) indica a depurao atingida. A abordagem da realidade exige um contnuo processo de educao: os poemas devem ser trabalhados de forma rigorosa e sistemtica para obterem a consistncia e a resistncia de uma pedra. Nesse processo, no cabem metforas: o poeta deve buscar a simetria entre a estrutura da linguagem e da realidade representada.

A Educao pela Pedra

Uma educao pela pedra: por lies;Para aprender da pedra, freqent-la;Captar sua voz inenftica, impessoal(pela de dico ela comea as aulas).A lio de moral, sua resistncia friaAo que flui e a fluir, a ser maleada;A de potica, sua carnadura concreta;A de economia, seu adensar-se compacta:Lies da pedra (de fora para dentro,Cartilha muda), para quem soletr-la.

Outra educao pela pedra: no Serto(de dentro para fora, e pr-didtica).No Serto a pedra no sabe lecionar,E se lecionasse, no ensinaria nada;L no se aprende a pedra: l a pedra,Uma pedra de nascena, entranha a alma.

Tecendo a Manh

1. Um galo sozinho no tece uma manh: ele precisar sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manh, desde uma teia tnue, se v tecendo, entre todos os galos.

2. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manh) que plana livre de armao. A manh, toldo de um tecido to areo que, tecido, se eleva por si: luz balo. O galo pode ser o poeta, que precisa acordar outros poetas, mas tambm pode ser o homem que v a necessidade de acordar os semelhantes e propiciar a mudana social.

Catar Feijo1. Catar feijo se limita com escrever:joga-se os gros na gua do alguidare as palavras na folha de papel;e depois, joga-se fora o que boiar.Certo, toda palavra boiar no papel,gua congelada, por chumbo seu verbo:pois para catar esse feijo, soprar nele,e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2. Ora, nesse catar feijo entra um risco:o de que entre os gros pesados entreum gro qualquer, pedra ou indigesto,um gro imastigvel, de quebrar dente.Certo no, quando ao catar palavras:a pedra d frase seu gro mais vivo:obstrui a leitura fluviante, flutual,aula a ateno, isca-a como o risco.

No poema, o artista, assim como o catador de feijes, deve selecionar os melhores gros, a fim de construir uma poesia que fale, no pelo excesso, mas pela conteno, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco, palha e eco. O que j foi dito no interessa repetio.

Museu de Tudo (1975) Neste livro encontram-se poemas dispersos escritos a partir de 1966. O autor no gostava da cara de colcha de retalhos da obra. o momento de maior tematizao metalingstica do conjunto da obra cabralina, sem, todavia, a originalidade dos poemas anteriores.

Artista Inconfessvel

Fazer o que seja intil.No fazer nada intil.Mas entre fazer e no fazermais vale o intil do fazer.Mas no, fazer para esquecerque intil: nunca o esquecer.Mas fazer o intil sabendoque ele intil, e bem sabendoque intil e que seu sentidono ser sequer pressentido,fazer: porque ele mais difcil do que no fazer, e dificil-mente se poder dizercom mais desdm, ou ento dizermais direto ao leitor Ningumque o feito o foi para ningum.

Perceba que no poema existe uma intertextualidade com o poema Lutar com Palavras de Carlos Drummond de Andrade. A metalinguagem serve para explicar ao leitor a dificuldade artesanal de trabalhar secamente a poesia.

Resposta a Vincius de MoraesCamarada diamante!No sou um diamante natonem consegui cristaliz-lo:se ele te surge no que faoser um diamante opacode quem por incapaz do vagoquer de toda forma evit-lo,seno com o melhor, o claro,do diamante, com o impacto:que incapaz de ser cristal rarovale pelo que tem de cacto. Lindssima poesia dedicada ao amigo, poeta e diplomata Vincius: camarada diamante. O poeta diz que no um diamante/poeta nato (precisa se esforar para ser). Incapaz do vago (por seu estilo direto e objetivo de trabalhar a poesia oposto do poetinha Vincius). E termina em um seco tom confessional: j que no consegue ser um cristal raro, pelo menos tem o valor do cacto. (Da secura, da aspereza e do espinho nordestinos)A Escola das Facas (1980)

O poeta acreditava que este seria seu ltimo livro. Era para se chamar Poemas Pernambucanos. O livro apresenta poemas de tom memorialista em que o autor expe fatos que marcaram a sua vida, como o nascimento ou a descoberta da literatura e do prazer de ler quando os trabalhadores da fazenda traziam os folhetos de feira para que ele lesse (Descoberta da Literatura, j vista no incio deste resumo)AutocrticaS duas coisas conseguiram

(des)feri-lo at a poesia:

o Pernambuco de onde veio

e onde foi, a Andaluzia.

Um, o vacinou do falar rico

e deu-lhe a outra, fmea e viva,

desafio demente: em verso

dar a ver Serto e Sevilha. O desejo do poeta era ser crtico de arte e literatura. No seguiu este caminho, mas se fez um dos mais crticos poetas da Literatura Brasileira. Um jogo de aproximao entre as duas tendncias da lrica cabralina (a secura de Pernambuco) e o erotismo (de Sevilha).Descoberta da Literatura No dia-a-dia do engenho,toda a semana, durante,cochichavam-me em segredo:saiu um novo romance.E da feira do domingome traziam conspirantespara que os lesse e explicasseum romance de barbante.Sentados na roda mortade um carro de boi, sem jante,ouviam o folheto guenzo ,a seu leitor semelhante,com as peripcias de espantopreditas pelos feirantes.

Embora as coisas contadase todo o mirabolante,em nada ou pouco variassemnos crimes, no amor, nos lances,e soassem como sabidasde outros folhetos migrantes,a tenso era to densa,subia to alarmante,que o leitor que lia aquilocomo puro alto-falante,e, sem querer, imantaratodos ali, circunstantes,receava que confundissemo de perto com o distante,o ali com o espao mgico,seu franzino com o gigante,e que o acabassem tomandopelo autor imaginanteou tivesse que afrontaras brabezas do brigante.

Faz parte da cultura popular nordestina a presena dos Livros de Feira, os famosos cordis. A literatura de cordel um tipo de poesia popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rsticos ou outra qualidade de papel, expostos para venda pendurados em cordas ou cordis, o que deu origem ao nome que vem l de Portugal, que tinha a tradio de pendurar folhetos em barbantes. No Nordeste do Brasil, herdamos o nome (embora o povo chame esta manifestao de folheto), mas a tradio do barbante no perpetuou. Ou seja, o folheto brasileiro poderia ou no estar exposto em barbantes. So escritos em forma rimada e alguns poemas so ilustrados com xilogravuras, o mesmo estilo de gravura usado nas capas. Neste poema, da linha autobiogrfica (como Autobiografia de um s dia), o autor conta como foi inserido (e ajudou a inserir outros) na literatura popular atravs dos cordis que eram trazidos para que ele lesse aos analfabetos trabalhadores de sua casa na infncia pernambucana.

As frutas de PernambucoPernambuco, to masculino,

Que agrediu tudo, de menino,

capaz das frutas mais fmeas

E da femeeza mais sedenta.

So ninfomanacas, quase,

No dissolver-se, no entregar-se,

Sem nada guardar-se, de puta.

Mesmo nas cidas, o acar,

to carnal, grosso, de corpo,

De corpo para o corpo, o coito,

Que mais na cama que na mesa

Seria cmodo quer-las.

Um poema que revela o erotismo do autor a se referir s frutas nordestinas, com destaque especial s de sua Pernambuco natal. Realmente uam festa de cores, aromas e sabores j cantadas, desenhadas e estudadas por socilogos (Gilberto Freyre), artistas do Brasil Holands e poetas populares.AUTO DO FRADE (1984)- poema para vozes -

(excertos: falas de Frei Caneca)-Acordo fora de mim

como h tempos no fazia

Acordo claro, de todo,

acordo com toda a vida,

com todos cinco sentidos

e sobretudo com a vista

que dentro desta priso

para mim no existia.

Acordo fora de mim

como vida apodrecida.

Acordar no de dentro,

acordar ter sada.

Acordar reacordar-se

ao que em nosso redor gira.

Mesmo quando algum acorda

para um fiapo de vida

como o que tanto aparato

que me cerca me anuncia:

esse bosque de espingardas

mudas, mas logo assassinas,

Sempre espera dessa voz

Que autorize o que a sua sina,

Esses padres que as invejam

Por serem mais efetivas

Que os sermes que passam largo

Dos infernos que anunciam.

O poema enfoca a anlise dos momentos finais vividos pelo Frei Caneca, mrtir da Confederao do Equador. Frei Caneca foi lder em dois momentos da histria de Pernambuco: a Revoluo de 1817 e a de 1824. Foi fuzilado em 1825.

Nesta obra, o autor passa do social (Morte e vida Severina) ao histrico, sem que haja uma negao do primeiro, mas sim a sua incorporao, no atravs de uma apreenso de incidentes apenas anedticos (o que, sem dvida, compe tambm o quadro da narrativa histrica), mas pela explorao potica das tenses bsicas, encarnadas por Frei Caneca, entre a razo pragmtica do poltico rebelde e as elucubraes mais abstratas, lgicas, retricas, filosficas.