os lusiadas

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C C anto I anto I As armas e os Barões assinalados 1 o As proezas militares e os fidalgos celebrados Que da Ocidental praia Lusitana Que da ocidental praia lusitana, Por mares nunca de antes navegados Por mares que antes nunca foram navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Partiram e foram além da Taprobana (1), Em perigos e guerras esforçados Em meio a grandes perigos, valorosos e determinados, Mais do que prometia a força humana, Ultrapassando o que se poderia esperar da capacidade humana, E entre gente remota edificaram E entre povos tão distantes, construíram Novo Reino, que tanto sublimaram; Um Novo Reino, que tanto dignificaram; 1)Taprobana: a ilha do Ceilão, atual Sri Lanka, ao sul da Índia. E também as memórias gloriosas 2 o E também as me Daqueles Reis que foram dilatando Daqueles Reis que foram aumentando A Fé, o Império, e as terras viciosas A Fé Cristã e o próprio Império; e as terras viciosas, De África e de Ásia andaram devastando, Da África e da Ásia, andaram castigando; E aqueles que por obras valiosas E todos aqueles que, por suas proezas valorosas, Se vão da lei da Morte libertando, Do esquecimento da morte vão se libertando; Cantando espalharei por toda parte, As glórias de todos eles, cantando, espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Se para essa tarefa me ajudarem a criatividade e a arte. Cessem do sábio Grego e do Troiano 3 o Esqueçam do Sábio Grego (1) e do Troiano (2) As navegações grandes que fizeram; As grandes navegações que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano Cale-se de Alexandro (3) e de Trajano (4) A fama das vitórias que tiveram; A fama que pelas suas grandes conquistas tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, Pois eu exalto o ilustre arrojo Lusitano,

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Page 1: Os Lusiadas

CCanto Ianto I

As armas e os Barões assinalados 1o As proezas militares e os fidalgos celebradosQue da Ocidental praia Lusitana Que da ocidental praia lusitana,Por mares nunca de antes navegados Por mares que antes nunca foram navegados,Passaram ainda além da Taprobana, Partiram e foram além da Taprobana (1),Em perigos e guerras esforçados Em meio a grandes perigos, valorosos e determinados,Mais do que prometia a força humana, Ultrapassando o que se poderia esperar da capacidade humana,E entre gente remota edificaram E entre povos tão distantes, construíramNovo Reino, que tanto sublimaram; Um Novo Reino, que tanto dignificaram;

1)Taprobana: a ilha do Ceilão, atual Sri Lanka, ao sul da Índia.

E também as memórias gloriosas 2o E também as memórias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatando Daqueles Reis que foram aumentandoA Fé, o Império, e as terras viciosas A Fé Cristã e o próprio Império; e as terras viciosas,De África e de Ásia andaram devastando, Da África e da Ásia, andaram castigando;E aqueles que por obras valiosas E todos aqueles que, por suas proezas valorosas,Se vão da lei da Morte libertando, Do esquecimento da morte vão se libertando;Cantando espalharei por toda parte, As glórias de todos eles, cantando, espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Se para essa tarefa me ajudarem a criatividade e a arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano 3o Esqueçam do Sábio Grego (1) e do Troiano (2)As navegações grandes que fizeram; As grandes navegações que fizeram;Cale-se de Alexandro e de Trajano Cale-se de Alexandro (3) e de Trajano (4)A fama das vitórias que tiveram; A fama que pelas suas grandes conquistas tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano, Pois eu exalto o ilustre arrojo Lusitano,A quem Netuno e Marte obedeceram. A quem até os deuses Netuno (5) e Marte (6) obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Pare tudo o que a antiga Musa (7) canta,Que outro valor mais alto se alevanta. Que um outro valor mais alto se levanta.

1) Sábio Grego: referência a Ulisses, herói grego e protagonista da

“Odisséia” de Homero.2) Troiano: referência a Enéas, príncipe troiano e

protagonista da “Eneida”, de Virgilio.3) Alexandro: Alexandre Magno, rei da Macedônia e

conquistador da Pérsia e da Índia.4) Trajano: imperador romano, nascido na Espanha e celebre

como conquistador e administrador.5) Netuno: deus do Mar.6) Marte: deus da Guerra.7) Musa: referência à antiga poesia épica.

E vós, Tágides minhas, pois criado 4o E vós, Tágides (1) minhas, que tendes criado,Tendes em mi um novo engenho ardente, Em mim, uma nova inspiração ardente,Se sempre em verso humilde celebrado Se sempre em humildes versos foi celebrado,Foi de mi vosso rio alegremente, Por mim, o vosso rio que corre alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado, Dêem-me agora, um talento alto e sublimado,Um estilo grandíloco e corrente, Um estilo eloqüente e fluente,Por que de vossas águas Febo ordene Para que dessa inspiração, Febo (2) ordene,Que não tenham enveja às de Hipocrene. Que os meus versos sejam iguais aos inspirados por Hipocrene (3)

Page 2: Os Lusiadas

1) Tágides: as ninfas do rio Tejo.2) Febo: outro nome de Apolo, o deus do sol e da poesia.3) Hipocrene: fonte consagrada às Musas, situada no monte

Helicon, na Beócia. Teria sido originada de um coice do cavalo alado

“Pegasus” e as suas águas transformavam em poeta quem delas

bebesse. Hipocrene significa “A Fonte do Cavalo”.

Dai-me üa fúria grande e sonorosa, 5o Daí-me uma inspiração sonora e vigorosa,E não de agreste avena ou frauta ruda, Diferente das campestres e melancólicas avena (1) ou da flauta rude,Mas de tuba canora e belicosa, Que seja igual a uma trombeta guerreira e poderosa,Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Que inflame os corações e o próprio semblante mude;Dai-me igual canto aos feitos da famosa Daí-me um canto igual aos que são feitos pela famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda; Gente vossa, que ao deus Marte estimula e ajuda;Que se espalhe e se cante no universo, Que os meus versos se espalhem e sejam cantados em todo o Universo,Se tão sublime preço cabe em verso. Se é que poderei exaltar a tão grande valor num simples verso.

1) Avena: antiga flauta pastoril, feita com talos de aveia.

E, vós, ó bem nascida segurança 6o E vós, ó nobre Rei (1), que é a segurançaDa Lusitana antiga liberdade, Da antiga independência lusitana e de sua liberdade,E não menos certíssima esperança E não menos a certíssima esperançaDe aumento da pequena Cristandade; De prosperidade de nossa pátria, uma pequena cristandade (2);Vós, ó novo temor da Maura lança, Vós que é o terror para as tropas Mouras (3), uma feroz lança,Maravilha fatal da nossa idade, Prodígio de nossa época, de tão pouca idade,Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, (Dado ao Mundo por Deus para que o comande,Pera do mundo a Deus dar parte grande; E dele, converta ao Cristianismo uma parte grande)

1) Referência a Dom Sebastião “O Desejado”. Foi o décimo sexto rei

de Portugal. Era filho de Dom João III e de D. Joana da Áustria, filha

de Carlos V. Dom Sebastião nasceu em Lisboa em 20/01/1554 e morreu

em 04/08/1578. Começou a governar, sob tutela, em l.557 e quando

completou quatorze anos assumiu o governo.2) Camões refere-se a Portugal, de pequenas proporções e

cristão.3) Mouros: Camões usa o termo como um substantivo para

designar os muçulmanos. Seriam os guerreiros da Mauritânia, no atual

Marrocos.

Vós, tenro e novo ramo florecente 7o Vós, tenro e novo ramo florescente,De üa árvore, de Cristo mais amada Da arvore que por Cristo é a mais amadaQue nenhüa nascida no Ocidente, Que qualquer outra nascida no OcidenteCesárea ou Cristianíssima chamada Ainda que de Cristianíssima (1) ou Cesárea (1) seja chamada,(Vede-o no vosso escudo, que presente (Veja Cristo (3) no vosso brasão, que no presenteVos amostra a vitória já passada, Mostra-vos a vitória passada,Na qual vos deu por armas e deixou Na qual Ele vos deu a fé como armas e deixouAs que Ele pera si na Cruz tomou); As que Ele para si, na cruz tomou).

1) Cristianíssima: Cristianíssimo é um adjetivo do reis franceses desde

o século XIV e por extensão aplica-se, neste caso, a França.

Page 3: Os Lusiadas

2) Cesárea: neste caso, uma alusão ao cristianismo praticado na Itália.

3) Segundo a lenda Jesus Crucificado teria aparecido a Dom Afonso

Henrique, em Ourique, no Alentejo, antes de uma batalha na qual ele

tinha menos poder militar. A aparição teria resultado numa elevação

dos ânimos e na vitória contra os mouros.

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império 8o Vós, poderoso Rei, cujo sublime impérioO Sol, logo em nascendo, vê primeiro, É o que o Sol, ao nascer, vê primeiro;Vê-o também no meio do Hemisfério, Também o vê no meio do Hemisfério,E quando dece o deixa derradeiro; E no poente é o que vislumbra por derradeiro;Vós, que esperamos jugo e vitupério Vós, de quem esperamos o domínio e o vitupérioDo torpe Ismaelita cavaleiro, Sobre o Ismaelita (1), sórdido cavaleiro,Do Turco Oriental e do Gentio Assim como, sobre o vil Turco Oriental (2) e sobre o Gentio (3),Que inda bebe o licor do santo Rio: Que, insolentemente, bebe a água do Santo Rio (4);

1) Ismaelita: os árabes, descendentes de Ismael, filho de Abraão e

de sua escrava Agar. Agar teria sido expulsa da casa onde servia e

vagou pelo deserto e, após um longo sofrimento, encontrou um lugar

propicio para criar o seu filho Ismael, do qual descendeu Maomé e

toda a raça árabe.2) Turco Oriental: para Camões, os representantes do poder

muçulmano de Constantinopla.3) Gentio: os pagãos. Todos os que não adotavam a fé cristã.4 O santo rio: o rio Ganges, na Índia, que segundo a lenda

nascia no Paraíso e, portanto, as suas águas eram sagradas e

purificavam os pecados de quem nelas se banhassem.

Inclinei por um pouco a majestade 9o Abaixe um pouco a majestadeQue nesse tenro gesto vos contemplo, Que existe nesse jovem semblante, que eu contemplo,Que já se mostra qual na inteira idade, O qual, já se mostra sábio como se estivesse na avançada idade,Quando subindo ireis ao eterno templo; Quando então, subindo, ireis para o céu, o eterno Templo;Os olhos da real benignidade Coloque os olhos de real bondadePonde no chão: vereis um novo exemplo No chão: verá um novo exemploDe amor dos pátrios feitos valerosos, De amor aos grandes feitos dos nossos patrícios valorosos,Em versos divulgado numerosos. Os quais serão divulgados em versos numerosos.

Vereis amor da pátria, não movido 10o Vereis amor à pátria, que não é movidoDe prémio vil, mas alto e quási eterno; Por uma vil recompensa, mas só pelo reconhecimento quase eterno;Que não é prémio vil ser conhecido Pois não é vileza querer ser reconhecidoPor um pregão do ninho meu paterno. Por exaltar as glórias do meu torrão paterno.Ouvi: vereis o nome engrandecido Ouça: vereis o nome engrandecidoDaqueles de quem sois senhor superno, Dos seus súditos de quem é o senhor superno (1),E julgareis qual é mais excelente, E então julgareis o que é mais excelente,Se ser do mundo Rei, se de tal gente. Ser Rei do mundo todo ou se dessa gente.

1) Superno: supremo.

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas, 11o Escuta: não ouvireis com imaginarias façanhas,Fantásticas, fingidas, mentirosas, Fantásticas, fabulosas e mentirosas,

Page 4: Os Lusiadas

Louvar os vossos, como nas estranhas Os seus súditos serem louvados, como acontece nas estranhasMusas, de engrandecer-se desejosas: Poesias estrangeiras, que para enaltecer aos seus heróis são ansiosas:As verdadeiras vossas são tamanhas As façanhas da vossa gente são reais, verdadeiras e tamanhasQue excedem as sonhadas, fabulosas, Que ultrapassam as estórias imaginadas e fabulosas,Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro Suplantam a Rodamonte (1) e o frívolo Rugeiro (2)E Orlando, inda que fora verdadeiro. E a Orlando (3), ainda que ele fosse verdadeiro.

1) Rodamonte: personagem do poema de Mateus Boiardo, “Orlando

Inamorato”.2) Rugeiro: personagem de “Orlando Furioso”, de Ariosto.3) Orlando: forma italiana de Roland, o herói de “Chanson de

Roland”,poema épico francês do século XI.

Por estes vos darei um Nuno fero, 12o Para contrapor a este eu citarei um Nuno (1) severo,Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço, Que fez ao Rei e ao Reino tantas proezas,Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero Ou um Egas (2) ou Dom Fuá (3), para os quais, de Homero (4)A cítara par'eles só cobiço; Eu só quero a mesma arte para exaltar-lhes as grandezas.Pois polos Doze Pares dar-vos quero Para contrabalançar “Os Doze Pares (5)” eu quero,Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço; Louvar os “Doze de Inglaterra (6)” e o seu Magriço (7), de tantas nobrezas.Dou-vos também aquele ilustre Gama, Também exaltarei ao ilustre Vasco da Gama (8),Que para si de Eneias toma a fama. Que para si, toma de Enéas (9) a fama.

1) Nuno: Nuno Álvares Pereira, condestável de Portugal e

grande auxiliar Mestre de Aviz nas lutas contra Castela em defesa da independência portuguesa.

Do Mestre de Aviz nas lutas contra o Reino de Castela. 2) Egas Moniz, vassalo de Dom Afonso Henrique. Quando

Afonso VII, de Castela, cercou a cidade de Guimarães, Egas Moniz

conseguiu que o cerco fosse levantado, comprometendo-se a fazer que o seu rei se

rendesse. Porém o rei luso não aceitou as condições do Castelhano e

Egas não podendo cumprir o prometido ofereceu-e a sua família, em

sacrifício para o rei espanhol. Mais informações no 3o Canto.

3) Dom Fuás: Dom Fuás Roupinho, que venceu os mouros em Porto de Mós e

foi morto numa batalha naval quando regressava de Ceuta.4 Homero: poeta grego, autor da “Ilíada” e da “Odisséia”.5) “Os Doze Pares”: os doze heróis da “Chanson de Geste”.

Paladinos de Carlos Magno.6) “Doze de Inglaterra”: grupo de nobres portugueses que

venceram duelos

na Inglaterra, onde foram chamados para vingarem algumas damas

ultrajadas.7) Magriço: Álvaro Gonçalves Coutinho, um dos “Doze de

Inglaterra”.8) Vasco da Gama: Nascido em 1468 e falecido em 1524, na

cidade de Cochim, na Índia. Foi o capitão mor da armada que em

1497/1498 descobriu o caminho para a Índia.

9) Enéas: herói troiano e protagonista em “Eneida”, de Virgilio. Obra que

Page 5: Os Lusiadas

inspirou Camões.

Pois se a troco de (Carlos, Rei de França, 13o E se de Carlos (1), nobre rei da França,Ou de César, quereis igual memória, Ou de César (2), quereis ver uma memóriaVede o primeiro Afonso, cuja lança Igual, vede Afonso I (3), cuja lança,Escura faz qualquer estranha glória; Encobre a qualquer estrangeira glória;E aquele que a seu Reino a segurança E também a memória daquele (4) que ao Reino a segurançaDeixou, com a grande e próspera vitória; Deixou, com a grande e afortunada vitória;Outro Joane, invicto cavaleiro; E o outro Joane (5), invencível cavaleiro,O quarto e quinto Afonsos e o terceiro. Ou os Afonsos, quinto (5), quarto (6) e terceiro (7).

1) Carlos: Carlos Magno, rei dos Francos e imperador do ocidente.

2) César: imperador romano.3) Afonso I: Afonso Henrique, primeiro rei de Portugal, entre

1.128 a 1.165.4) Dom João I: décimo rei de Portugal, fundador da Dinastia

de Aviz.5) Joane: Dom João II, rei de Portugal entre 1.481 a 1.495,

grande incentivador dos descobrimentos portugueses.6) Afonso V, de cognome “O Africano”.7) Afonso IV, rei de Portugal, filho de Dom Dinis e da Rainha

Santa Izabel.8) Afonso III, rei de Portugal que se casou com Dona Beatriz

e com isso acrescentou aos seus títulos o de Rei do Algarves.

Nem deixarão meus versos esquecidos 14o E os meus versos não deixarão esquecidosAqueles que nos Reinos lá da Aurora Aqueles que nos reinos do Oriente, onde nasce a Aurora,Se fizeram por armas tão subidos, Pela bravura nas batalhas, se fizeram tão erguidos,Vossa bandeira sempre vencedora: Fazendo de vossa bandeira uma eterna vencedora;Um Pacheco fortíssimo e os temidos O fortíssimo Pacheco (1) e os temidosAlmeidas, por quem sempre o Tejo chora, Almeidas (2), por quem o rio Tejo sempre chora,Albuquerque terríbil, Castro forte, O temido Albuquerque (3), Castro valente e forte,E outros em quem poder não teve a morte. E outros, nos quais, não teve poder o esquecimento causado pela morte.

1) Pacheco: autor de “Situ Orbi” (guia de navegação do século XVI) e

sucessor dos Albuquerques na defesa de Cochim. 2) Almeidas: Dom Francisco que foi o primeiro Vice-Rei das

Índias e o seu filho, Dom Lourenço. Ambos morreram em expedições

militares. O pai, em luta contra os Cafres no Cabo da Boa Esperança,

quanto voltava a Portugal e o filho numa batalha naval.3) Albuquerque: Afonso de Albuquerque, Vice-Rei da Índiaentre 1.453 e 1.515.4) Castro: Dom João de Castro, Vice-Rei da Índia entre 1.500

a 1.548 e uma das principais figuras dos portugueses nas lutas na

Índia.

E, enquanto eu estes canto - e a vós não posso, 15o E, enquanto eu exalto a estes heróis, mas não possoSublime Rei, que não me atrevo a tanto - , Louvar-te, sublime Rei, pois não me atrevo a tanto,Tomai as rédeas vós do Reino vosso: Tomai as rédeas e conduza o reino vosso,Dareis matéria a nunca ouvido canto. Que os teus feitos, certamente, inspirarão um novo canto.Comecem a sentir o peso grosso Que todos comecem a sentir o peso grosso(Que polo mundo todo faça espanto) (Que por todo mundo cause espanto)De exércitos e feitos singulares, De suas poderosas tropas e dos seus feitos invulgares,De África as terras e do Oriente os mares. Nas terras da África e do Oriente, assim com em seus mares.

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Em vós os olhos tem o Mouro frio, 16o Em vós, o olhar fixo, tem o Mouro frio,Em quem vê seu exício afigurado; Pois em ti, ele vê o seu suplicio configurado;Só com vos ver, o bárbaro Gentio Apenas por lhe ver, o bárbaro Gentio (pagão),Mostra o pescoço ao jugo já inclinado; Abaixa o pescoço, ao seu domínio, já resignado;Tétis todo o cerúleo senhorio A deusa Téhtis (1) que tem o marítimo poderio,Tem pera vós por dote aparelhado, Para vós já o reservou, como dote, e o deixa preparado;Que, afeiçoada ao gesto belo e tento, Pois, afeiçoada ao seu rosto belo e tenro,Deseja de comprar-vos pera genro. Deseja conquistá-lo para ser o seu genro.

1) Téhtis: deusa do mar, filha do Céu e da Terra.

Em vós se vêm, da Olímpica morada, 17o Em vós se vêm, da Celeste morada,Dos dous avós as almas cá famosas; As almas de seus dois avôs (1), aqui tão famosas;üa, na paz angélica dourada, Uma, pela angelical paz assegurada,Outra, pelas batalhas sanguinosas. A outra, pelas batalhas vitoriosas.Em vós esperam ver-se renovada Em vós, esperam ver renovadas,Sua memória e obras valerosas; As suas memórias e as suas obras valorosas;E lá vos têm lugar, no fim da idade, E, lá no céu, reservam-te um lugar, quando na avançada idade,No templo da suprema Eternidade. A eles vós se unir, no templo da Suprema Eternidade.

1) Os dois avôs: Dom João II o “Príncipe Perfeito”, celebre pelas guerras e

Dom Manuel I “O Venturoso”, famoso pelo pacifismo e neutralidade nas

guerras européias.

Mas, enquanto este tempo passa lento 18o Mas enquanto este tempo passa lento,De regerdes os povos, que o desejam, Em que reinas sobre os povos que o desejam,Dai vós favor ao novo atrevimento, Permita-me um novo atrevimento,Pera que estes meus versos vossos sejam, Para que esses meus versos, vossos sejam;E vereis ir cortando o salso argento E vereis ir cortando o salso argento (1)Os vossos Argonautas, por que vejam Os vossos Argonautas (2), para que eles vejamQue são vistos de vós no mar irado, Que são observados por vós, no mar irado,E costumai-vos já a ser invocado. E sigam mais confiantes; por isso, acostume-se desde já, a ser invocado.

1) Salso argento: o salgado Oceano.2) Argonautas: heróis gregos que comandados por Jasão

foram a Cólquida em busca do Velo de Ouro.

Já no largo Oceano navegavam, 19o E no vasto oceano os lusos já navegavam,As inquietas ondas apartando; As ondas inquietas iam apartando;Os ventos brandamente respiravam, Brandamente os ventos sopravam,Das naus as velas côncavas inchando; E as côncavas velas das naus iam inflando;Da branca escuma os mares se mostravam De brancas espumas os mares se mostravamCobertos, onde as proas vão cortando Cobertos, aonde as proas vão cortandoAs marítimas águas consagradas, As marítimas águas consagradas,Que do gado de Próteu são cortadas, Que pelo gado de Proteu (1) são cortadas.

1) Proteu: filho do deus Oceano e da deusa Téhtis. Era o encarregado de

pastorear o rebanho marinho de seu pai.

Quando os Deuses no Olimpo luminoso, 20o Quando os deuses no Olimpo (1) luminoso,Onde o governo está da humana gente, A sede de governo da humana gente,Se ajuntam em consílio glorioso, Reuniram-se num concilio glorioso,Sobre as cousas futuras do Oriente. Para decidirem sobre os acontecimentos futuros no Oriente.Pisando o cristalino Céu fermoso, Caminhando pelo cristalino céu formoso,Vêm pela Via Láctea juntamente, Chegavam pela Via Láctea, simultaneamente,

Page 7: Os Lusiadas

Convocados, da parte de Tonante, Convocados por ordem do Tonante (2),Pelo neto gentil do velho Atlante. Através do gentil neto de Atlante (3)

1) Olimpo: a residência dos deuses e, segundo a mitologia, estava

situado numa montanha da Grécia.2) Tonante: ou Trovejante, adjetivo de Júpiter, por ser o deus

dos raios e dos trovões.3) Neto de Atlante: Mercúrio, filho de Maia que era filha de

Atlante e neta de Júpiter. Mercúrio é o deus do comercio e o

mensageiro dos deuses.

Deixam dos sete Céus o regimento, 21o Deixam o governo dos Sete Céus (1), cujo regimento,Que do poder mais alto lhe foi dado, Pelo mais alto Poder lhes foi dado,Alto poder, que só co pensamento Um poder tão grande que só com o pensamentoGoverna o Céu, a Terra e o Mar irado. Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.Ali se acharam juntos num momento Ali estavam juntos, naquele momento,Os que habitam o Arcturo congelado Os deuses que habitam sob a constelação do Arcturo (2) congeladoE os que o Austro têm e as partes onde E aqueles do Sul e os das regiões ondeA Aurora nasce e o claro Sol se esconde. A aurora nasce e o claro sol se esconde.

1) Sete Céus: na época de Camões vigorava o sistema Ptolomaico,

que propunha ser a Terra o centro do Universo e que giravam ao seu redor

os céus de sete planetas (sic): A Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter

e Saturno.2) Arcturo: estrela dupla de 1a grandeza, situada na

constelação do no prolongamento da cauda da Ursa Maioros deuses que

Boiadeiro,

Estava o Padre ali, sublime e dino, 22o Ali estava o Pai (1), sublime e digno,Que vibra os feros raios de Vulcano, Que arremessa os ferozes raios de Vulcano (2),Num assento de estrelas cristalino, Sentado num trono de estrelas, muito cristalino,Com gesto alto, severo e soberano; Com o semblante sério, severo e soberano.Do rosto respirava um ar divino, De seu rosto exalava um ar divino,Que divino tornara um corpo humano: Que divino tornara um corpo humano;Com üa coroa e ceptro rutilante, Usava uma coroa e um cetro brilhante,De outra pedra mais clara que diamante. Feito de uma pedra mais clara que o diamante.

1) Pai: Júpiter, o pai e senhor dos deuses.2) Vulcano: deus do fogo. Filho de Júpiter e de Juno e marido

de Vênus.

Em luzentes assentos, marchetados 23o Em brilhantes tronos adornadosDe ouro e de perlas, mais abaixo estavam Com ouro e perolas, mais abaixo estavamOs outros Deuses, todos assentados Os outros deuses, todos sentadosComo a Razão e a Ordem concertavam Conforme a lógica e a classe de cada um, recomendavam.(Precedem os antigos, mais honrados, (Primeiro, os mais antigos e mais honrados,Mais abaixo os menores se assentavam); Mais abaixo os deuses menores ficavam);Quando Júpiter alto, assi dizendo, Foi então que o sublime Júpiter assim foi dizendo,Cum tom de voz começa grave e horrendo: Com um tom de voz grave e horrendo:

- «Eternos moradores do luzente, 24o - Eternos moradores do reluzente,Estelífero Pólo e claro Assento: Estrelado Pólo e claro assento:Se do grande valor da forte gente Se do grande valor da forte gente

Page 8: Os Lusiadas

De Luso não perdeis o pensamento, Lusitana, vós, não desviaram o pensamento,Deveis de ter sabido claramente Devem ter sabido claramenteComo é dos Fados grandes certo intento Que o grande Destino tem como certo intentoQue por ela se esqueçam os humanos Que pelas proezas dos lusos, os humanosDe Assírios, Persas, Gregos e Romanos. Esqueçam dos heróis Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

«Já lhe foi (bem o vistes) concedido, 25o Já lhes foi (bem o viste) permitido,Cum poder tão singelo e ao pequeno, Que mesmo com um poder tão modesto e tão pequeno,Tomar ao Mouro forte e guarnecido Tomar do Mouro, forte e guarnecido,Toda a terra que rega o Tejo ameno. Toda a terra que é banhada pelo rio Tejo, tão ameno.Pois contra o Castelhano ao temido E também contra o Castelhano (1), tão temido,Sempre alcançou favor do Céu sereno: Sempre foram favorecidos pelo céu sereno.Assi que sempre, enfim, com fama e glória. E foi assim que, com fama e glória,Teve os troféus pendentes da vitória. Conquistaram os troféus de suas vitórias.

1) Castelhano: aqui Camões emprega o termo como substantivo e

representativo das lutas contra os reis de Castela, um dos reinos da

Espanha

«Deixo, Deuses, atrás a fama antiga, 26o Deixo, deuses, para trás a fama antigaQue co a gente de Rómulo alcançaram, Que contra os romanos, descendentes de Rômulo (1), eles alcançaram,Quando com Viriato, na inimiga Quando com o ilustre Viriato (2), na inimigaGuerra Romana, tanto se afamaram; Guerra romana, tanto se afamaram.Também deixo a memória que os obriga Também deixo a memória que os ligaA grande nome, quando alevantaram A um grande nome, o qual, levantaramUm por seu capitão, que, peregrino, Como seu comandante (3), um ilustre peregrino,Fingiu na cerva espírito divino. Que fingiu estar numa corça o espírito divino.

1) Rômulo: o fundador e primeiro rei de Roma.2) Viriato: pastor dos montes Hermínio, na Lusitânia, que

durante quatorze anos desafiou o poderio de Roma na península ibérica.3) Referência a Ulisses, que, segundo a tradição, seria o

fundador de Lisboa.

«Agora vedes bem que, cometendo 27o Vedes bem que agora enfrentandoO duvidoso mar num lenho leve, O incerto mar num barco leve,Por vias nunca usadas, não temendo Por caminhos nunca usados e não temendode Áfrico e Noto a força, a mais s'atreve: As forças dos ventos Áfrico (1) e Noto (2), a mais perigo se atreve;Que, havendo tanto já que as partes vendo E mesmo já tendo tanto, que de seus domínios estão vendo,Onde o dia é comprido e onde breve, Onde o dia é mais longo e onde é mais breve,Inclinam seu propósito e perfia Dirigem a sua vontade e a sua porfiaA ver os berços onde nasce o dia. Para chegarem ao Oriente, que é onde nasce o dia.

1) Áfrico: o vento do sudeste.2) Noto: o vento do sul.

«Prometido lhe está do Fado eterno, 28o Prometido lhes está, pelo Destino eterno,Cuja alta lei não pode ser quebrada, Cuja lei não pode ser quebrada,Que tenham longos tempos o governo Que tenha por longo tempo o governoDo mar que vê do Sol a roxa entrada. Do mar, que assiste o nascer do Sol e a sua rubra chegada.Nas águas têm passado o duro Inverno; Nas águas tem passado um duro Inverno (período);A gente vem perdida e trabalhada; A pobre gente está perdida e fatigada;Já parece bem feito que lhe seja E já me aparece apropriado que lhes sejaMostrada a nova terra que deseja. Mostrada a nova terra, que tanto se deseja.

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«E porque, como vistes, têm passados 29o E porque, como vistes, eles tem passadoNa viagem tão ásperos perigos, Nestas viagens, tão duros perigos,Tantos climas e céus exprimentados, A tantos climas e céus adversos tem enfrentado,Tanto furor de ventos inimigos, Sofrido tanto com o furor dos ventos inimigos,Que sejam, determino, agasalhados Determino que sejam abrigadosNesta costa Africana como amigos; Nesta costa africana como amigos.E, tendo guarnecida a lassa frota, E depois de terem abastecido a esgotada frota,Tornarão a seguir sua longa rota. Que tornem a seguir a sua longa rota.

Estas palavras Júpiter dizia, 30o Estas palavras Júpiter (1) dizia,Quando os Deuses, por ordem respondendo, Quando os deuses, seguindo a ordem, iam respondendo,Na sentença um do outro diferia, E a afirmativa de cada um não conferiaRazões diversas dando e recebendo. Com a do outro; e argumentações variadas iam dando e recebendo.O padre Baco ali não consentia O deus Baco (2) não consentiaNo que Júpiter disse, conhecendo Com o que Júpiter ordenou, sabendoQue esquecerão seus feitos no Oriente Que todos esquecerão de suas proezas no OrienteSe lá passar a Lusitana gente. Se até lá chegar a lusa gente.

1) Júpiter: pai e senhor dos deuses.2) Baco: deus do vinho, filho de Júpiter e de Sêmele. As suas

conquistaschegaram até a Índia e nos “Lusíadas” é o deus contrario aos

portuguesese coloca vários obstáculos pelo caminho dos mesmos.

Ouvido tinha aos Fados que viria 31o Já tinha ouvido dos adivinhos que viriaüa gente fortíssima de Espanha Uma gente fortíssima da Espanha (1)Pelo mar alto, a qual sujeitaria Pelo alto mar e que sujeitariaDa Índia tudo quanto Dóris banha, Toda a Índia, assim como, tudo que o mar de Doris (2) banha,E com novas vitórias venceria E com novas vitórias superariaA fama antiga, ou sua ou fosse estranha. A sua antiga fama ou a qualquer outra estranha (3).Altamente lhe dói perder a glória Muito lhe dói perder a glóriaDe que Nisa celebra inda a memória. Que Nisa (4) ainda guarda na memória.

1) Espanha: antiga maneira de denominar-se a península ibérica,

incluindo Portugal.2) Doris: a deusa que personificava o mar.3) Estranha: na época de Camões era sinônimo de

estrangeira.4) Nisa: cidade na Índia ou na Arábia, que teria sido fundada

por Baco.

Vê que já teve o Indo sojugado 32o Vê que já teve todo o território do rio Indo (1) conquistadoE nunca lhe tirou Fortuna ou caso E nunca lhe tirou a sorte ou o acasoPor vencedor da Índia ser cantado A glória de ser o conquistador da Índia, como era louvado,De quantos bebem a água de Parnaso. Por todos os poetas que bebem as águas do Parnaso (2).Teme agora que seja sepultado Mas, agora teme que seja sepultadoSeu tão célebre nome em negro vaso O seu celebre nome no negro vasoD'água do esquecimento, se lá chegam Da água do esquecimento (3), se lá chegamOs fortes Portugueses que navegam. Os bravos portugueses que navegam.

1) Rio Indo: grande e importante rio indiano.2) Parnaso: montanha consagrada às Musas, na qual brotava

a fonte Castália, cujas águas transformava em poeta quem as

bebesse.3) A água do esquecimento é uma referência ao rio Letes,

cujas

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águas provocavam o esquecimento de todo o passado de quem as bebia.

Sustentava contra ele Vénus bela, 33o Contra Baco retrucava a deusa Vênus (1), a mais bela,Afeiçoada à gente Lusitana Que era afeiçoada à gente lusitanaPor quantas qualidades via nela Pelas grandes qualidades que via nelaDa antiga, tão amada, sua Romana; E que eram iguais à da gente da sua antiga e amada Romana (2);Nos fortes corações, na grande estrela Nos corações valentes, na grande estrela,Que mostraram na terra Tingitana, Que mostraram ter na terra Tingitana (3),E na língua, na qual quando imagina, E no idioma, no qual, ela imagina,Com pouca corrupção crê que é a Latina Com deturpações mínimas, ouvir a língua latina.

1) Vênus: a deusa do amor e da beleza. No poema é a deusa protetora

dos portugueses.2) Romana: região da Itália.3) Tingitana: o Tanger, na África do norte. O atual Marrocos.

Estas causas moviam Citereia 34o Estas qualidades dos lusos motivavam a Vênus Citeréia (1),E mais, porque das Parcas claro entende E também o fato de que os sinais das Parcas (2), com clareza, ela entende,Que há-de ser celebrada a clara Deia Os quais indicavam que ela seria celebrada com a mais Clara Déia (3),Onde a gente belígera se estende. Até onde a guerreira gente lusa se estende.Assi que, um, pela infâmia que arreceia, Assim, um deus, pela infâmia que receia,E o outro, pelas honras que pretende, E a outra, pelas honras que pretende,Debatem, e na perfia permanecem; Debatem e naquela disputa permanecem;A qualquer seus amigos favorecem. E a ambos os seus amigos favorecem.

1) Vênus Citeréia: a deusa Vênus, celebrada na Ilha com este nome.

A ilha de Citera, atualmente chamada de Cérigo.2) Parcas: entidades infernais e senhoras da vida humana.

Eram três: Cloto, que presidia os nascimentos e segurava a roca em que fiava os fios

da vida; Laquésis que maneja a dobadoura e Átropos que cortava o fio da

de vida 3) Déia: forma poética da palavra deusa.

Qual Austro fero ou Bóreas na espessura 35o Igual aos ferozes ventos Austro (1) e Bóreas (2), quando na espessura,De silvestre arvoredo abastecida, Que de silvestre arvoredo é abastecida,Rompendo os ramos vão da mata escura E vão rompendo os galhos da mata escura,Com ímpeto e braveza desmedida, Com ímpeto e fúria desmedida;Brama toda montanha, o som murmura, (Quando toda a montanha ruge, o som murmura,Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: Rompem-se as folhas e estreme toda a serra):Tal andava o tumulto, levantado Assim estava o tumulto levantadoEntre os Deuses, no Olimpo consagrado. Pelos deuses, no Olimpo sagrado.

1) Austro: o vento do sul.2) Bóreas: o vento do norte.

Mas Marte, que da Deusa sustentava 36o Foi então que Marte (1), que à Vênus apoiava,Entre todos as partes em porfia, Entre as partes envolvidas naquela porfia,Ou porque o amor antigo o obrigava, Ou porque o antigo amor ele ainda abrigava,Ou porque a gente forte o merecia, Ou então porque, de fato, o povo luso merecia,De antre os Deuses em pé se levantava: Dentre os deuses, em pé se levantava,Merencório no gesto parecia; (Melancólico o seu semblante parecia),O forte escudo, ao colo pendurado, Trazia o forte escudo, no colo pendurado,

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Deitando pera trás, medonho e irado; Um pouco virado para trás, terrível e irado.

1) Marte: deus da guerra e numa certa época amante de Vênus,

com quem teve a filha Harmônia.

A viseira do elmo de diamante 37o A viseira do elmo (capacete) de diamanteAlevantando um pouco, mui seguro, Foi levantando um pouco e muito seguroPor dar seu parecer se pôs diante Para expor os seus argumentos, colocou-se dianteDe Júpiter, armado, forte e duro; De Júpiter, armado, forte e duro;E dando üa pancada penetrante E dando uma pancada penetranteCo conto do bastão no sólio puro, Com a base do bastão no trono puro,O Céu tremeu, e Apolo, de torvado, Fez o céu tremer tanto que Apolo (1), de tão perturbado,Um pouco a luz perdeu, como enfiado; Perdeu um pouco de sua luz, como se tivesse desmaiado.

1) Apolo: do deus do Sol. O sol.

E disse assi:- «Ó Padre, a cujo império 38o E assim disse: - Ó Pai, a cujo império,Tudo aquilo obedece que criaste: Obedece tudo aquilo que criastes:Se esta gente que busca outro Hemisfério. Se esta gente que busca o outro hemisfério,Cuja valia e obras tanto amaste, Cujo valor e proezas tanto amastes,Não queres que padeçam vitupério, Não queres que sofram mais vitupério,Como há já tanto tempo que ordenaste, Como a tanto tempo ordenaste,Não ouças mais, pois és juiz direito, Não ouças mais, pois és um juiz direito,Razões de quem parece que é suspeito. Os argumentos de quem parece ser suspeito.

«Que, se aqui a razão se não mostrasse 39o Pois aqui, se a lógica não tivesseVencida do temor demasiado, Sido vencida por um temor demasiado,Bem fora que aqui Baco os sustentasse, Provavelmente até Baco os favorecesse,Pois que de Luso vêm, seu tão privado; Pois ele teme que com a vinda dos lusos, de suas honras seja privado;Mas esta tenção sua agora passe, Mas que esse medo agora passe,Porque enfim vem de estâmago danado; Até porque é resultado de um espírito amargurado;Que nunca tirará alheia enveja Pois nunca a alheia e pérfida invejaO bem que outrem merece e o Céu deseja. Tirará o beneficio que alguém mereça, se assim o céu deseja.

E tu, Padre de grande fortaleza, 40o E tu, Pai, de grande fortaleza,Da determinação que tens tomada Da decisão que já tens tomadoNão tornes por detrás, pois é fraqueza Não volte atrás, pois é um fraquezaDesistir-se da cousa começada. Abandonar o ato que já foi iniciado.Mercúrio, pois excede em ligeireza Ordena a Mercúrio (1), que ultrapassa em ligeireza,Ao vento leve e à seta bem talhada, Ao leve vento e à flecha bem talhada,Lhe vá mostrar a terra onde se informe Que vá lhes mostrar aonde a frota possa ser informadaDa Índia, e onde a gente se reforme.» Sobre o caminho para a Índia e a tripulação possa ser restaurada.

1) Mercúrio: o mensageiro dos deuses.

Como isto disse, o Padre poderoso, 41o Isto foi dito e o Pai Júpiter poderoso,A cabeça inclinando, consentiu A cabeça inclinando, que assim fosse feito, consentiu;No que disse Mavorte valeroso E aprovou o discurso do Mavorte (Marte) valorosoE néctar sobre todos esparziu. E sobre os deuses, néctar (1) esparziu.Pelo caminho Lácteo glorioso Pela Via Láctea, caminho glorioso,Logo cada um dos Deuses se partiu, Cada um dos deuses logo partiu,Fazendo seus reais acatamentos, Fazendo as devidas mesuras e cumprimentos,Pera os determinados apousentos. E seguiram para os respectivos aposentos.

1) Néctar: a bebida dos deuses. Nesse contexto figura com bênçãos.

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Enquanto isto se passa na fermosa 42o Enquanto acontecia essa assembléia na formosaCasa etérea do Olimpo omnipotente, Casa celeste, no Olimpo (1) onipotente;Cortava o mar a gente belicosa Já singrava o mar a gente lusa, poderosa.Já lá da banda do Austro e do Oriente, Seguiam pelos lados do sul e do oriente,Entre a costa Etiópica e a famosa Entre a costa Etiópica (2) e a famosaIlha de São Lourenço; e o Sol ardente Ilha de São Lourenço (3); o sol ardenteQueimava então os Deuses que Tifeu Queimava, então, os deuses que Tifeu (4)Co temor grande em pexes converteu. Amedrontando-os, em peixes converteu.

1) Olimpo: a sede dos deuses.2) Etiópica: o litoral da região que fica ao sul do Egito.

Camões tambémchama-lhe de Abássia.3) Ilhas de São Lourenço: a atual ilha de Madagáscar, junto a

costa orientalda África, em frente ao atual Moçambique.4) Tifeu: um dos Gigantes que fizeram a guerra contra o

Olimpo. Era tãomonstruoso que assustou a Vênus e ao Cupido quando eles

banhavam-seno rio Eufrates, levando-os a se transformarem em peixes

para escaparem.O seu hálito de fogo saia pela cratera do vulcão Etna.

Tão brandamente os ventos os levavam 43o Os ventos brandamente os levavam,Como quem o Céu tinha por amigo; Como acontece com aqueles de quem o céu é amigo;Sereno o ar e os tempos se mostravam, O ar estava sereno e os climas se mostravam,Sem nuvens, sem receio de perigo. Sem nuvens e sem sinais de perigo.O promontório Prasso já passavam O promontório Prasso (1) já ultrapassavam,Na costa de Etiópia, nome antigo, Na costa da Etiópia (2), seu nome antigo,Quando o mar, descobrindo, lhe mostrava Quando então, o mar se abrindo, lhes mostravaNovas ilhas, que em torno cerca e lava. Novas ilhas, às quais cerca e lava.

1) Prasso: Cabo na costa de Moçambique, África Oriental.2) Vide nota 2 na estrofe 42.

Vasco da Gama, o forte Capitão, 44o Vasco da Gama, o valoroso Capitão,Que a tamanhas empresas se oferece, Que a tamanho desafio se oferece,De soberbo e de altivo coração, Dono de um soberbo e altivo coração,A quem Fortuna sempre favorece, A quem a boa sorte sempre favorece,Pera se aqui deter não vê razão, Para se deter ali não vê razão,Que inabitada a terra lhe parece. Pois inabitada a terra lhe parece.Por diante passar determinava, Assim, seguir em frente é o que determinava.Mas não lhe sucedeu como cuidava. Porém, não aconteceu como ele pensava.

Eis aparecem logo em companhia 45o Inesperadamente, logo lhe surge uma companhia,Uns pequenos batéis, que vêm daquela Uns pequenos botes, que vem daquelaQue mais chegada à terra parecia, Terra que mais próxima lhe parecia,Cortando o longo mar com larga vela. Cortando o vasto mar com larga vela.A gente se alvoroça e, de alegria, A sua tripulação se alvoroça e de tanta alegria,Não sabe mais que olhar a causa dela. A tudo olha sem poder definir a causa dela.- «Que gente será esta?» (em si diziam) - Que gente será esta? (Para si diziam)«Que costumes, que Lei, que Rei teriam?» Que costumes, que religião, que Rei teriam?

As embarcações eram na maneira 46o As embarcações eram feitas de tal maneiraMui veloces, estreitas e compridas; Que ficavam muito velozes e eram estreitas e compridas;Ás velas com que vêm eram de esteira, As velas que as movem eram de esteira,Düas folhas de palma, bem tecidas; De folhas de uma palma, muito bem tecidas;A gente da cor era verdadeira Eram tripuladas por uma gente da cor negra verdadeira,Que Fáëton, nas terras acendidas, A qual, Fáeton (1), naquelas terras muito aquecidas,Ao mundo deu, de ousado e não prudente Deu ao mundo, por ser desastrado e imprudente,

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(O Pado o sabe e Lampetusa o sente). Com bem sabe o rio Pado (2) e a sua irmã, Lampetusa (3), o sente.

1) Fáeton: ou Faetonte, filho de Apolo – deus do Sol – e de Climene.

Num certo dia, Fáeton quis guiar o carro do Sol. Por ser inexperiente,

ousado e imprudente permitiu que o carro se aproximasse muito da Terra,

na região da África, onde os seus habitantes ficaram tostados pelo calor

intenso. Daí, segundo a lenda, é que se originou a raça africana.

Devido ao fato, Júpiter fulminou a Fáeton com um raio fazendo-o cair no

rio Pado, o que causou imensa dor em sua irmã Lampetusa.2) Rio Pado: nome alatinado do Rio Pó, na Itália.3) Lampetusa: ninfa, filha de Apolo e de Climene. Irmã de

Lampécia e deFáeton.

De panos de algodão vinham vestidos, 47o Com panos de algodão vinham vestidos,De várias cores, brancos e listrados; De varias cores, brancos e listrados;Uns trazem derredor de si cingidos, Alguns os trazem ao redor do corpo cingidos,Outros em modo airoso sobraçados; Outros, com elegância trazem-nos aos braços atados;Das cintas pera cima vêm despidos; Da cintura para cima vem despidos;Por armas têm adagas e tarçados; Como armas usam adagas e os terçados;Com toucas na cabeça; e, navegando, Usam gorros na cabeça; e, navegando,Anafis sonorosos vão tocando. Sonoros Anafis vão tocando.

1) Adagas: arma branca, punhais curtos.2) Terçados: espadas curtas. Sabres.3) Anafis: trombeta mourisca.

Cos panos e cos braços acenavam 48o Com os panos e com os braços acenavamÀs gentes Lusitanas, que esperassem; Para que as naus lusitanas os esperassem;Mas já as proas ligeiras se inclinavam, E estas, as ligeiras proas já viravam,Pera que junto às Ilhas amainassem. Para que junto às ilhas ancorassem.A gente e marinheiros trabalhavam Os soldados e os marinheiros trabalhavamComo se aqui os trabalhos s'acabassem: Como se ali todas as dificuldades acabassem;Tomam velas, amaina-se a verga alta, Recolhem as velas, abaixa-se a verga (1) alta,Da âncora o mar ferido em cima salta. Soltam a ancora e o mar sendo ferido, para cima salta.

1)Verga: madeira atravessada no mastro, onde são presas as velas donavio

Não eram ancorados, quando a gente 49o Nem bem estavam ancorados, e a genteEstranha polas cordas já subia. Africana, pelas cordas, já subia.No gesto ledos vêm, e humanamente Chegam com os rostos felizes e humanamenteO Capitão sublime os recebia. O sublime Capitão os recebia.As mesas manda pôr em continente; Manda servir as mesas imediatamente;Do licor que Lieu prantado havia Do vinho que Lieu (Baco), plantado havia,Enchem vasos de vidro; e do que deitam Enchem os jarros de vidro e de tudo o que lhes é ofertadoOs de Fáëton queimados nada enjeitam. Os que por Fáeton (1) foram queimados, aceitam e nada é recusado.

1) Vide nota 1, na estrofe 46.

Comendo alegremente, perguntavam, 50o Enquanto comiam alegremente, perguntavamPela Arábica língua, donde vinham, No idioma árabe, de onde os lusos vinham,Quem eram, de que terra, que buscavam, Quem eles eram, de qual terra, o que buscavam,Ou que partes do mar corrido tinham? Ou que regiões do mar, percorrido já tinham?

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Os fortes Lusitanos lhe tornavam Os bravos lusos retornavamAs discretas repostas que convinham: Com as discretas respostas que convinham:- «Os Portugueses somos do Ocidente, - Somos portugueses, do Ocidente,Imos buscando as terras do Oriente. E estamos procurando as terras do Oriente.

«Do mar temos corrido e navegado 51o Do mar temos percorrido e navegadoToda a parte do Antártico e Calisto, Toda a região do Antártico (1) e a que é iluminada pela Calisto (2),Toda a costa Africana rodeado; Toda a costa africana nós já temos rodeado;Diversos céus e terras temos visto; E diversos céus e terras nós temos visto;Dum Rei potente somos, tão amado, Somos súditos de um rei potente e muito amado;Tão querido de todos e benquisto, Tão querido e por todos é tão benquisto,Que não no largo mar, com leda fronte, Que por ele, não só no vasto mar, com alegre fronte,Mas no lago entraremos de Aqueronte. Entramos como iríamos até o rio Aqueronte (3).

1) Antártico: a região próxima ao Pólo Sul.2) Calisto: uma ninfa que foi amada por Apolo e com quem

teve um filho,chamado Árcade. Juno, enciumada, transformou a mãe e o

filho em ursose Apolo os colocou no céu criando as constelações da Ursa

Maior e Ursa 3) Aqueronteatravessar para

Menor.

«E, por mandado seu, buscando andamos 52o E por ordem dele andamosA terra Oriental que o Indo rega; Em busca da terra oriental que o rio Indo rega;Por ele o mar remoto navegamos, Por ele, no distante mar navegamos,Que só dos feios focas se navega. Onde apenas com as feias focas se navega.Mas já razão parece que saibamos Mas, já nos parece oportuno que saibamos,(Se entre vós a verdade não se nega), Se entre vós a verdade não se nega,Quem sois, que terra é esta que habitais, Quem são vocês, que terra é esta que habitais,Ou se tendes da Índia alguns sinais?» Ou se da Índia tendes alguns sinais.

- «Somos (um dos das Ilhas lhe tornou) 53o Somos, um dos visitantes da ilha, lhe falou,Estrangeiros na terra, Lei e nação; Estrangeiros nesta ilha e diferente é a nossa crença e a nossa nação;Que os próprios são aqueles que criou Pois os nativos são aqueles que criouA Natura, sem Lei e sem Razão. A natureza e que ainda vivem sem religião e sem civilização.Nós temos a Lei certa que ensinou Nós praticamos a religião certa que nos ensinouO claro descendente de Abraão, O ilustre descendente de Abraão (1),Que agora tem do mundo o senhorio; Que agora tem do mundo o senhorioA mãe Hebreia teve e o pai, Gentio. (E que teve uma mãe judia e o pai Gentio (pagão).

1) Abraão: o patriarca bíblico. Maomé era descendente de Ismael, filho de

Abraão e de sua escrava Agar.

«Esta Ilha pequena, que habitamos, 54o Esta pequena ilha que habitamosÉ em toda esta terra certa escala Em toda esta terra é uma confiável escala,De todos os que as ondas navegamos, Para todos nós que navegamos,De Quíloa, de Mombaça e de Sofala; Por Quíloa (1), Mombaça (2) e Sofala (3).E, por ser necessária, procuramos, E por ser tão útil e necessária é que procuramos,Como próprios da terra, de habitá-la; Junto com os nativos da terra, habitá-la;E por que tudo enfim vos notifique, E para que de tudo, enfim, eu vos notifique,Chama-se a pequena Ilha - Moçambique. Saiba que a pequena ilha chama-se Moçambique.

1) Quíloa: ilha da costa oriental da África.2) Mombaça: cidade na costa oriental da África.3) Sofala: antigo reino e cidade da África Oriental.4) Moçambique: ilha da costa oriental da África.

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«E já que de tão longe navegais, 55o E já que de tão longe navegais,Buscando o Indo Idaspe e terra ardente, Procurando os rios Indo e Hidaspe (1) e a terra ardente,Piloto aqui tereis, por quem sejais Saiba que aqui encontrareis o piloto por quem sejaisGuiados pelas ondas sàbiamente. Guiado pelas ondas, habilmente.Também será bem feito que tenhais Também será oportuno que tenhaisDa terra algum refresco, e que o Regente Algumas provisões da nossa terra e que o RegenteQue esta terra governa, que vos veja Que governa esta ilha o conheçaE do mais necessário vos proveja.» Para que aquilo que necessitares ele lhe forneça.

1) Hidaspe: rio afluente do Indo.

Isto dizendo, o Mouro se tornou 56o Isto dizendo, o mouro retornouA seus batéis com toda a companhia; Para os seus botes junto de toda a sua companhia;Do Capitão e gente se apartou Do Capitão e da tripulação se separouCom mostras de devida cortesia. Com mostras de muita cortesia.Nisto Febo nas águas encerrou Nisto, Febo (Apolo, deus do Sol) nas águas encerrouCo carro de cristal, o claro dia, Com o carro de cristal, o claro dia,Dando cargo à Irmã que alumiasse Dando a missão para sua Irmã (Febe, a lua) para que ela iluminasseO largo mundo, enquanto repousasse. O vasto mundo, enquanto ele repousasse.

A noite se passou na lassa frota 57o A noite passou, na fatigada frota,Com estranha alegria e não cuidada, Com uma alegria estranha e não imaginada,Por acharem da terra tão remota Por acharem, da terra remota,Nova de tanto tempo desejada. A noticia que há tanto tempo era desejada.Qualquer então consigo cuida e nota Cada qual, consigo mesmo, pensa e notaNa gente e na maneira desusada, Naquela gente e na sua maneira desusada,E como os que na errada Seita creram, E como aqueles que na errada Seita (o islamismo) creram,Tanto por todo o mundo se estenderam. Por todo mundo, tanto se estenderam.

Da Lüa os claros raios rutilavam 58o Os claros raios da Lua cintilavam,Polas argênteas ondas Neptuninas; Pelas prateadas ondas das águas Netuninas;As Estrelas os Céus acompanhavam, As estrelas aos céus acompanhavam,Qual campo revestido de boninas; Como se fosse um campo repleto de boninas (1);Os furiosos ventos repousavam Os ventos furiosos repousavamPolas covas escuras peregrinas; Nas escuras cavernas peregrinas;Porém da armada a gente vigiava, Porém, mesmo com toda essa calma, a tripulação lusa vigiava,Como por longo tempo costumava. Pois há muito tempo, a isso se dedicava.

1) Boninas: uma espécie de flor, também conhecidas como “Bela-Margarida”

Mas, assi como a Aurora marchetada 59o Mas, igual à Aurora enfeitada,Os fermosos cabelos espalhou Que o formoso cabelo espalhou,No Céu sereno, abrindo a roxa entrada No céu sereno, abrindo a rubra entradaAo claro Hiperiónio, que acordou, Ao claro Hiperônio (1) que acordou,Começa a embandeirar-se toda a armada Começa a enfeitar-se toda a ArmadaE de toldos alegres se adornou, Que com alegres toldos e bandeiras se adornou,Por receber com festas e alegria Para receber com festas e com alegriaO Regedor das Ilhas, que partia. O rei daquela ilha, que da terra já partia.

1) Hiperônio: um dos Titãs, pai do Sol. Para Camões é o próprio sol.

Partia, alegremente navegando, 60o E ele partia alegremente, navegando,A ver as naus ligeiras Lusitanas, Para ver as ligeiras naus lusitanas;Com refresco da terra, em si cuidando Levava alguns presentes da terra e ia pensando,Que são aquelas gentes inumanas Sobre quem seria aquela gente desumana,

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Que, os apousentos Cáspios habitando, Que nos territórios Cáspios (1) habitando,A conquistar as terras Asianas Para conquistar a terra asiana (2),Vieram e, por ordem do Destino, Vieram e, por ordem do Destino (3),O Império tomaram a Costantino. Tomaram o império de Constantino (4).

1) Cáspios: a região banhada pelo Mar Cáspio.2) Asiana: asiática.3) Destino: deus mitológico, filho da Noite, que traçava os

caminhosdos Homens e dos próprios Deuses.4) Constantino: Constantino Dragades ultimo imperador de

Bizâncioque morreu em 1.453 defendendo a cidade contra Maomé.

Recebe o Capitão alegremente 61o O Capitão Vasco da Gama recebe alegrementeO Mouro e toda sua companhia; Ao mouro e a toda a sua companhia;Dá-lhe de ricas peças um presente, Dá-lhe rica peça como presente,Que só pera este efeito já trazia; A qual, apenas para esta finalidade trazia;Dá-lhe conserva doce e dá-lhe o ardente, Oferece-lhe doces conservas e dá-lhe o ardenteNão usado licor, que dá alegria. E raro vinho, que dá tanta alegria.Tudo o Mouro contente bem recebe, A tudo o contente mouro recebeE muito mais contente come e bebe E muito mais contente come e bebe.

Está a gente marítima de Luso 62o A tripulação das naus do comandante LusoSubida pela enxárcia, de admirada, Está pendurada pela enxárcia (1) e admirada,Notando o estrangeiro modo e uso Vai reparando o estrangeiro comportamento e o seu estranho uso,E a linguagem tão bárbara e enleada. Assim como a sua linguagem, tão bárbara e emaranhada.Também o Mouro astuto está confuso, O mouro astuto também está confuso,Olhando a cor, o trajo e a forte armada; Vendo os trajes, as cores e a forte armada;E, perguntando tudo, lhe dizia E sobre tudo ia perguntando, enquanto lhes dizia,Se porventura vinham de Turquia. Se por acaso os lusos vinham da Turquia.

1) Enxárcia: o conjunto de mastros de um navio.

E mais lhe diz também que ver deseja 63o E também lhes diz que desejaOs livros de sua Lei, preceito ou fé, Ver os livros de sua religião, crença ou fé,Pera ver se conforme à sua seja, Para verificar se igual a sua seja,Ou se são dos de Cristo, como crê; Ou se são cristãos, como crê;E por que tudo note e tudo veja, E, para que tudo conheça e veja,Ao Capitão pedia que lhe dê Ao Capitão pede que lhe dêMostra das fortes armas de que usavam Uma amostra das fortes armas que usavamQuando cos inimigos pelejavam. Quando com os seus inimigos guerreavam.

Responde o valeroso Capitão, 64o Responde-lhe o valoroso Capitão,Por um que a língua escura bem sabia: Através de um intérprete que a obscura língua conhecia:-«Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação - Dar-te-ei, ilustre senhor, uma breve descriçãoDe mi, da Lei, das armas que trazia. Sobre mim, de minha religião e das armas que trazia.Nem sou da terra, nem da geração Não sou descendente e nem venho da nação,Das gentes enojosas de Turquia, Da asquerosa gente e terra da Turquia:Mas sou da forte Europa belicosa; Mas sou da Europa guerreira e poderosa,Busco as terras da Índia tão famosa. E procuro as terras da Índia famosa.

«A Lei tenho d'Aquele a cujo império 65o Como religião tenho a Daquele a cujo impérioObedece o visíbil e invisíbil, Obedecem o que é visível e o que é invisível,Aquele que criou todo o Hemisfério, Aquele que criou todo o Hemisfério,Tudo o que sente e todo o insensíbil; E tudo o que sente e tudo o que é insensível;Que padeceu desonra e vitupério, Que padeceu infâmia e vitupério,Sofrendo morte injusta e insofríbil, Sofrendo uma morte injusta e horrível,E que do Céu à Terra enfim deceu, E que, enfim, do céu à Terra desceu.Por subir os mortais da Terra ao Céu. Para que os mortais, da Terra, subissem ao Céu.

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«Deste Deus-Homem, alto e infinito, 66o Deste Deus-Homem, sublime e infinito,Os livros que tu pedes não trazia, Os livros que tu me pedes eu não trazia,Que bem posso escusar trazer escrito Pois posso deixar de trazer por escrito,Em papel o que na alma andar devia. Num simples papel, aquilo que trago gravado na alma, como devia.Se as armas queres ver, como tens dito, Se as armas tu queres ver, como tens dito,Cumprido esse desejo te seria; Atendido este teu desejo te seria;Como amigo as verás, porque eu me obrigo E como amigo as verá, porque eu me obrigoQue nunca as queiras ver como inimigos». A mostrá-las, para que nunca as queira ver como inimigo.

Isto dizendo, manda os diligentes 67o Isto dizendo, manda os seus diligentesMinistros amostrar as armaduras: Oficiais mostrarem as armaduras:Vêm arneses e peitos reluzentes, Vêm os arneses (1) e os peitorais (2) reluzentes,Malhas finas e lâminas seguras, As malhas finas (3) e as espadas seguras,Escudos de pinturas diferentes, Os escudos de pinturas variadas e diferentes,Pelouros, espingardas de aço puras, Os pelouros (4), as espingardas de aço, puras,Arcos e sagitíferas aljavas, Os arcos e as sagitíferas (5) aljavas (6),Partazanas agudas, chuças bravas. As partazanas (7) agudas e as chuças (8) bravas.

1) Arneses: armadura completa para cavaleiros.2) Peitorais: protetores de peito feitos em metal.3) Malhas: redes tecidas com fios metálicos.4) Pelouros: projétil de ferro ou de pedra.5) Sagitíferas: sinônimo de flechas, setas.6) Aljava: estojo para as flechas, normalmente levado nos

ombros.7) Partazanas: arma antiga, semelhante a uma lança.8) Chuças: varas terminadas em finos espetos.

As bombas vêm de fogo, e juntamente 68o Em seguida mostra-lhe as bombas de fogo e, juntamente,As panelas sulfúreas, tão danosas; As panelas sulfúreas (1), tão danosas;Porém aos de Vulcano não consente Porém, os canhões do deus Vulcano não consenteQue dêm fogo às bombardas temerosas; Que disparem as bombas tão temerosas;Porque o generoso ânimo e valente, Porque o seu caráter generoso e valente,Entre gentes tão poucas e medrosas, Para tão poucas pessoas medrosas,Não mostra quanto pode; e com razão, Não acha correto mostrar todo o seu poder; e com razão:Que é fraqueza entre ovelhas ser lião. Pois é uma fraqueza querer ser, entre ovelhas, um poderoso leão.

1) Panelas sulfúreas: vasos que continham enxofre fervente e que eram

arremessadas para causarem incêndios.

Porém disto que o Mouro aqui notou, 69o Porém disto que o mouro viu e notou,E de tudo o que viu com olho atento, E de tudo no que reparou, com olhar atento,Um ódio certo na alma lhe ficou, Um grande ódio, na alma lhe restou,üa vontade má de pensamento; Malévola intenção e um terrível pensamento.Nas mostras e no gesto o não mostrou, Contudo, nas maneiras e no semblante não demonstrou,Mas, com risonho e ledo fingimento, E com falsos sorrisos e alegre fingimento,Tratá-los brandamente determina, Decide tratá-los com brandura, como se determina,Até que mostrar possa o que imagina. Até que possa mostrar-lhes o seu rancor e causar-lhes o dano que imagina.

Pilotos lhe pedia o Capitão, 70o Pilotos, pedia-lhe o ilustre Capitão,Por quem pudesse à Índia ser levado; Que pudesse orientá-lo para que o caminho da Índia fosse alcançado;Diz-lhe que o largo prémio levarão Diz-lhe que uma boa recompensa ganharãoDo trabalho que nisso for tomado. Pelo trabalho e pelo tempo que lhes for tomado.Promete-lhos o Mouro, com tenção O mouro promete atendê-lo, mas com a má intençãoDe peito venenoso e tão danado Que havia no seu coração envenenado,

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Que a morte, se pudesse, neste dia, Pensa que a morte, se pudesse, neste diaEm lugar de pilotos lhe daria. É o que lhes daria e não o piloto que pedia.

Tamanho o ódio foi e a má vontade 71o Imenso foi o ódio e a má vontadeQue aos estrangeiros súpito tomou, Contra os lusos, que subitamente lhe assaltou,Sabendo ser sequaces da Verdade Sabendo que eram discípulos da Cristã VerdadeQue o filho de David nos ensinou! Que o filho de Davi (1) nos ensinou.Ó segredos daquela Eternidade Ó segredos da Divina Eternidade,A quem juízo algum não alcançou: A que nenhum raciocínio nunca desvendou:Que nunca falte um pérfido inimigo Pois nunca falta um pérfido inimigoÀqueles de quem foste tanto amigo! Para aqueles cristãos de quem sempre fostes amigo!

1) Davi: profeta e segundo rei de Israel. Ascendente de Jesus.

Partiu-se nisto, enfim, co a companhia, 72o Por fim, partiu com toda a sua companhia,Das naus o falso Mouro despedido, Deixando as naus, o mouro sórdido e fingido;Com enganosa e grande cortesia, Despediu-se com hipócrita cortesia,Com gesto ledo a todos e fingido. Com o semblante alegre e com um cinismo atrevido.Cortaram os batéis a curta via Os seus botes rapidamente cortaram a curta viaDas águas de Neptuno; e, recebido Das águas de Netuno; e foi recebido,Na terra do obseqüente ajuntamento, Na terra, por um servil agrupamentoSe foi o Mouro ao cógnito apousento. De súditos e recolheu-se ao seu conhecido aposento.

Do claro Assento etéreo, o grão Tebano, 73o No iluminado Olimpo, o grande Tebano (1),Que da paternal coxa foi nascido, Que na coxa do pai foi gerado e nascido,Olhando o ajuntamento Lusitano Vendo que o contingente lusitanoAo Mouro ser molesto e avorrecido, Ao mouro incomodava e era aborrecido,No pensamento cuida um falso engano, Na mente imagina um estratagema e um falso engano,Com que seja de todo destruído; Para que o luso seja destruído.E, enquanto isto só na alma imaginava, E, enquanto só nisto pensa,Consigo estas palavras praticava: Consigo mesmo estas palavras falava:

1) Tebano: o deus Baco. Filho de Zeus e de Sêmele. Quando Baco

estava para nascer a sua mãe pediu a Zeus que lhe mostrasse todo

o seu esplendor e o deus a atendeu. Mas, Sêmele não suportou o

espetáculo daquela visão e tombou fulminada. Zeus apressou-se

em retirar a criança de seu ventre e a introduziu na sua própria perna

até que terminasse o prazo de gestação. Desse modo, Baco nasceu

forte e saudável.

-«Está do Fado já determinado 74o Já está pelo Destino determinadoQue tamanhas vitórias, tão famosas, Que tamanhas vitórias, tão famosas,Hajam os Portugueses alcançado Tenham os portugueses alcançadoDas Indianas gentes belicosas; Sobre as indianas gentes belicosas.E eu só, filho do Padre sublimado, E só eu, filho do pai Júpiter sublimado,Com tantas qualidades generosas, Com tantas qualidades generosas,Hei-de sofrer que o Fado favoreça Terei que sofrer para que o Destino favoreçaOutrem, por quem meu nome se escureça? A outros, que farão com que a minha fama se escureça?

«Já quiseram os Deuses que tivesse 75o Os deuses já quiseram que o filho de Filipo (1) tivesseO filho de Filipo nesta parte Aqui no Oriente, nesta parteTanto poder que tudo sometesse Do mundo, tanto poder que submetesse,Debaixo do seu jugo o fero Marte; Debaixo de seu domínio, até o feroz deus Marte;Mas há-se de sofrer que o Fado desse Mas tem-se que sofrer porque o Destino quis e desse

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A tão poucos tamanho esforço e arte, A tão poucos portugueses tanta coragem e arte,Qu'eu, co grão Macedónio e Romano, Que eu, junto com o grande Macedônio (2) e o Romano (3),Dêmos lugar ao nome Lusitano? Deixemos o nosso lugar para o nome lusitano?

1) O filho de Felipo: Alexandre Magno.2) Macedônio: Alexandre Magno, rei da Macedônia e

conquistadorda Índia e da Pérsia.3) Romano: nesta estrofe é o imperador Trajano.

«Não será assi, porque, antes que chegado 76o Não! Não será assim, porque antes que tenha chegadoSeja este Capitão, astutamente Este valoroso Capitão, astutamente,Lhe será tanto engano fabricado Tantos desvios e obstáculos lhe serão armadoQue nunca veja as partes do Oriente. Que ele nunca conseguirá chegar às terras do Oriente.Eu decerei à Terra e o indignado Eu descerei a Terra e o indignadoPeito revolverei da Maura gente; Coração dos mouros eu inflamarei e contra os lusos o incitarei;Porque sempre por via irá direita Pois sempre está na via certa e direitaQuem do oportuno tempo se aproveita.» Aquele que do tempo bem se aproveita.

Isto dizendo, irado e quási insano, 77o Isto dizendo, irado e quase insano,Sobre a terra Africana descendeu, Sobre a terra africana desceu,Onde, vestindo a forma e gesto humano, Onde, transformando-se em ser humano,Pera o Prasso sabido se moveu. Para o conhecido promontório Prasso (1) se moveu.E, por milhor tecer o astuto engano, E, para melhor tecer o astuto engano,No gesto natural se converteu Transfigurou-se num nativo e o seu rosto converteuDum Mouro, em Moçambique conhecido, No de um velho e sábio mouro, que em Moçambique era muito conhecidoVelho, sábio, e co Xeque mui valido. E que com o Xeque (2) era muito envolvido.

1) Promontório Prasso: Cabo na costa de Moçambique.2) Xeque: entre os árabes, chefe de tribo ou soberano.

E, entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas, 78o Com esse disfarce foi entrando e falou com o rei por várias horas,A sua falsidade acomodadas, E as suas falsidades, desse modo, eram ouvidas e acreditadas,Lhe diz como eram gentes roubadoras E ele dizia de como eram roubadorasEstas que ora de novo são chegadas; As lusitanas gentes que há pouco são chegadas;Que das nações na costa moradoras, Que das nações que das costas africanas são moradoras,Correndo a fama veio que roubadas A má fama dos lusos veio correndo, pois elas foram roubadasForam por estes homens que passavam, Por estes homens que passavam,Que com pactos de paz sempre ancoravam. Acenando com falsos pactos de paz por onde ancoravam.

- «E sabe mais (lhe diz), como entendido 79o - E sabe o que mais, lhe diz, como se fosse um profundo entendido,Tenho destes Cristãos sanguinolentos, Tenho noticias que estes cristãos sanguinolentos,Que quási todo o mar têm destruído Quase que todo o mar tem destruídoCom roubos, com incêndios violentos; Com roubos e com incêndios violentos;E trazem já de longe engano urdido E que já trazem de longe um estratagema urdidoContra nós; e que todos seus intentos Contra nós; e que os seus reais intentosSão pera nos matarem e roubarem, São os de nos matarem e nos roubaremE mulheres e filhos cativarem. E às nossas mulheres e crianças escravizarem.

«E também sei que tem determinado 80o E também sei que têm planejadoDe vir por água a terra, muito cedo, Vir pela água à nossa terra, logo cedo,O Capitão, dos seus acompanhado, Virá o Capitão e pelos seus soldados será acompanhado,Que da tenção danada nasce o medo Pois da sua má intenção é que brota o medo.Tu deves de ir também cos teus armado Tu, com os teus guerreiros, também deves ir armado,Esperá-lo em cilada, oculto e quedo; E deve esperá-lo numa cilada, oculto e quedo (1);Porque, saindo a gente descuidada, Porque, estando a lusa gente descuidada,

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Caïrão fàcilmente na cilada. Cairão facilmente na tua emboscada.

1) Quedo: quieto, silencioso.

«E se inda não ficarem deste jeito 81º E se ainda não ficarem, desse jeito,Destruídos ou mortos totalmente, Mortos e destruídos completamente,Eu tenho imaginada no conceito Eu já tenho planejado o que deve ser feito,Outra manha e ardil que te contente: Faça-lhes uma outra armadilha que, creio, nos contente:Manda-lhe dar piloto que de jeito Manda-lhes um piloto que ao mal seja afeito,Seja astuto no engano, e tão prudente Que seja astuto para enganá-los e muito eficienteQue os leve aonde sejam destruídos, Para levá-los aonde sejam destruídos,Desbaratados, mortos ou perdidos.» Destroçados, mortos ou perdidos.

Tanto que estas palavras acabou 82o Tão logo o deus Baco acabouO Mouro, nos tais casos sábio e velho, De falar, o mouro, que nesses assuntos era sábio e experiente velho,Os braços pelo colo lhe lançou, O abraçou e amistosas palavras lhe falou,Agradecendo muito o tal conselho; Agradecendo muitas vezes ao seu conselho;E logo nesse instante concertou E no mesmo instante preparou,Pera a guerra o belígero aparelho, Para a batalha, o seu guerreiro aparelho,Pera que ao Português se lhe tornasse Visando que ao português se tornasseEm roxo sangue a água que buscasse. Rubra de sangue a água que buscasse.

E busca mais, pera o cuidado engano, 83o E também já procura, para executar o planejado engano,Mouro que por piloto à nau lhe mande, Um piloto que às naus mande,Sagaz, astuto e sábio em todo o dano, O qual deve ser astuto e capaz de causar o pretendido dano,De quem fiar se possa um feito grande. E que fosse confiável para realizar aquela proeza grande.Diz-lhe que, acompanhando o Lusitano, Escolhendo-o, lhe diz que vá acompanhando o lusitano,Por tais costas e mares co ele ande, E que por tais costas e mares com ele andeQue, se daqui escapar, que lá diante Que, se ele escapar daqui, que lá adianteVá cair onde nunca se alevante. Ele caia de tal forma que nunca mais se levante.

Já o raio Apolíneo visitava 84o Já o raio Apolíneo (1) visitavaOs Montes Nabateios acendido, Os Montes Nabateios (2), claros e acendidos,Quando Gama cos seus determinava Quando o Gama aos seus oficiais determinavaDe vir por água a terra apercebido. Que fosse para a terra bem prevenidos.A gente nos batéis se concertava A tripulação, nos botes, se preparavaComo se fosse o engano já sabido; Como se os ardis do mouro já fossem conhecidos;Mas pôde suspeitar-se facilmente, Podiam suspeitar facilmente,Que o coração pres[s]ago nunca mente. Pois o adivinho coração nunca mente.

1) Raio Apolíneo: os raios de sol.2) Montes Nabateios: cordilheira da Nabatéia, na região

noroeste da Arábia.

E mais também mandado tinha a terra, 85o E também porque antes já tinham mandado a terra,De antes, pelo piloto necessário, Um mensageiro em busca do piloto que lhes era necessário,E foi-lhe respondido em som de guerra, E foi-lhes respondido em tom de guerra,Caso do que cuidava mui contrário. O que indicava que ali estava um povo adversário;Por isto, e porque sabe quanto erra Por isso e porque sabe o quanto erraQuem se crê de seu pérfido adversário, Quem acredita no pérfido elemento contrário,Apercebido vai como podia Seguem tão prevenidos quanto se podia,Em três batéis somente que trazia. E vão com apenas três botes, dentre os que a Armada trazia.

Mas os Mouros, que andavam pela praia 86o Nisto, os mouros já andavam pela praia,Por lhe defender a água desejada, Para impedir-lhes o acesso à água desejada,Um de escudo embraçado e de azagaia, Um deles trazia um escudo no braço e uma azagaia (1),Outro de arco encurvado e seta ervada, Um outro, tinha um arco e flecha envenenada;Esperam que a guerreira gente saia, Esperando que a guerreira gente lusa saiaOutros muitos já postos em cilada; Dos botes, muitos outros aguardam em cilada.

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E, por que o caso leve se lhe faça, E, para que o combate favorável se lhes faça,Põem uns poucos diante por negaça. Colocam alguns deles na frente, como negaça (2).

1) Azagaia: lança curta.2) Negaça: isca, provocação.

Andam pela ribeira alva, arenosa, 87o Andam pela margem branca e arenosa,Os belicosos Mouros acenando Os guerreiros mouros acenandoCom a adarga e co a hástea perigosa, Com a adaga (punhal) e com a lança perigosa,Os fortes Portugueses incitando E aos bravos lusos iam provocando.Não sofre muito a gente generosa Mas não se amedronta a gente poderosaAndar-lhe os Cães os dentes amostrando; Com o fato de aqueles cães estarem os dentes mostrando;Qualquer em terra salta, tão ligeiro, E quando chegam todos descem tão ligeiro,Que nenhum dizer pode que é primeiro: Que é impossível saber quem foi o primeiro.

Qual no corro sanguino o ledo amante, 88o E foi igual na sangrenta tourada, quando o alegre amante,Vendo a fermosa dama desejada, Avista a formosa dama desejada,O touro busca e, pondo-se diante, E ao touro procura e coloca-se na sua frente,Salta, corre, sibila, acena e brada, E salta, corre, assovia, acena e brada,Mas o animal atroce, nesse instante, Mas o atroz animal, nesse instante,Com a fronte cornígera inclinada, Com a testa de poderosos chifres, inclinada,Bramando, duro corre e os olhos cerra, Ataca, corre e mugindo forte os olhos cerra,Derriba, fere e mata e põe por terra. E derruba, fere e mata e o põe por terra.

Eis nos batéis o fogo se levanta 89o Logo dos botes dos lusos o fogo se levanta,Na furiosa e dura artelharia; Numa furiosa e dura artilharia,A plúmbea péla mata, o brado espanta; A plúmbea (1) péla (2) mata, o grito espanta,Ferido, o ar retumba e assovia. O ar, ferido, ressoa e assovia.O coração dos Mouros se quebranta, A coragem dos mouros se quebranta,O temor grande o sangue lhe resfria. O grande temor o sangue lhes resfria.Já foge o escondido, de medroso, Logo foge aquele que estava escondido, por ser medroso,E morre o descoberto aventuroso. E tomba morto aquele que era mais corajoso.

1) Plúmbea: da cor do chumbo. Feita de chumbo.2) Péla: bolas de ferro.

Não se contenta a gente Portuguesa, 90o Mas não se contenta a tropa portuguesa,Mas, seguindo a vitória, estrui e mata; E seguindo a vitória, destrói e mata;A povoação sem muro e sem defesa A povoação dos mouros, sem muros e sem defesa,Esbombardeia, acende e desbarata. É bombardeada e a tropa incendeia e desbarata.Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa, A aventura ao rei mouro já pesa,Que bem cuidou comprá-la mais barata; Que imaginou que ela lhe sairia mais barata;Já blasfema da guerra, e maldizia, Já blasfema contra a guerra e a maldizia,O velho inerte e a mãe que o filho cria. O velho inerte e a mãe que o filho cria.

Fugindo, a seta o Mouro vai tirando 91o O mouro enquanto vai fugindo as setas vai atirando,Sem força, de covarde e de apressado, Mas, fragilmente, pois ele está acovardado e apressado,Apedra, o pau e o canto arremessando; A pedra, a madeira e o bastão ele vai arremessando;Dá-lhe armas o furor desatinado. São armas que lhe dá o furor desatinado.Já a Ilha, e todo o mais, desemparando, Já a ilha e a tudo mais ele vai desamparando,À terra firme foge amedrontado; E para a terra do continente foge amedrontado;Passa e corta do mar o estreito braço Atravessa, ligeiro, o estreito braçoQue a Ilha em torno cerca em pouco espaço. De mar, que cerca a ilha, num curto espaço.

Uns vão nas almadias carregadas, 92o Alguns fogem nas almadias (1) carregadas,Um corta o mar a nado, diligente; Um, atravessa o mar a nado, trêmulo e diligente,Quem se afoga nas ondas encurvadas, Há quem se afoga nas ondas encurvadas,Quem bebe o mar e o deita juntamente. E há aquele que bebe a água do mar e a expele simultaneamente.

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Arrombam as miúdas bombardadas Arrombam as pequenas bombardas (2)Os pangaios sutis da bruta gente. Os frágeis pangaios (3) daquela selvagem gente.Destarte o Português, enfim, castiga Dessa forma, enfim, o português castigaA vil malícia, pérfida, inimiga. A vil malícia, pérfida, inimiga.

1) Almadias: pequenos barcos usados pelos selvagens da região. Os cafres.

2) Bombardas: pequenos canhões.3) Pangaios: embarcações velozes de dois mastros, usada na

África orientale na Índia.

Tornam vitoriosos pera a armada, 93o Retornam vitoriosos para a armada,Co despojo da guerra e rica presa, Com o despojo de guerra e com uma rica presa,E vão a seu prazer fazer aguada, E eles vão, à vontade, retirar a água desejada,Sem achar resistência nem defesa. Sem encontrarem resistência ou defesa.Ficava a Maura gente magoada, A gente moura estava magoada,No ódio antigo mais que nunca acesa; E o ódio antigo inflamou-se e a raiva ficou mais acesa;E, vendo sem vingança tanto dano, Vendo que não pôde ser vingado tanto dano,Sòmente estriba no segundo engano. Deposita a sua esperança de desforra no outro plano.

Pazes cometer manda, arrependido, 94o Assim, hipocritamente, manda pedir a paz, dizendo-se arrependido,O Regedor daquela inica terra, O rei daquela malévola terra,Sem ser dos Lusitanos entendido E sem que os lusos tenham entendidoQue em figura de paz lhe manda guerra; Que, na figura da paz, o que lhe mandava, na verdade, era a guerra;Porque o piloto falso prometido, Porque o falso piloto que lhe havia prometido,Que toda a má tenção no peito encerra, Todo o ódio e a raiva no seu coração encerra,Pera os guiar à morte lhe mandava, E para levá-los à morte é que o mandava,Como em sinal das pazes que tratava. Como se fosse da paz que tratava.

O Capitão, que já lhe então convinha 95o O capitão viu que já convinhaTornar a seu caminho acostumado, Retornar ao seu caminho acostumado,Que tempo concertado e ventos tinha Pois tempo e ventos favoráveis já tinhaPera ir buscar o Indo desejado, Para ir buscar o território indiano tão desejado.Recebendo o piloto que lhe vinha, Recebendo o piloto que lhe vinha,Foi dele alegremente agasalhado, Amistosamente o tratou e o manteve bem abrigado,E respondendo ao mensageiro, a tento, E respondendo às sugestões do mesmo, nas quais estava atento,As velas manda dar ao largo vento. Logo ordena que se soltem as velas ao largo vento.

Destarte despedida, a forte armada 96o Dessa maneira, deu-se a partida da forte armada,As ondas de Anfítrite dividia, As ondas de Anfitrite (1) ela dividia,Das filhas de Nereu acompanhada, E pelas filhas de Nereu (2) era acompanhada,Fiel, alegre e doce companhia. Uma fiel, alegre e doce companhia.O Capitão, que não caía em nada O capitão, que não desconfiava de nada,Do enganoso ardil que o Mouro urdia, Acerca da armadilha que o mouro urdia,Dele mui largamente se informava Com ele, detalhadamente, se informavaDa Índia toda e costas que passava. Sobre toda a Índia e sobre as costas por onde passava.

1) Anfitrite: a rainha do mar. Filha de Nereu e de Doris e esposa de Netuno.

2) As filhas de Nereu: as Nereidas, as ninfas do mar.

Mas o Mouro, instruído nos enganos 97o Mas o piloto que fora instruído para levá-los a cometer os enganos,Que o malévolo Baco lhe ensinara, Pelo maldoso Baco que lhe ensinara,De morte ou cativeiro novos danos, Com o intuito de causar-lhes a morte, a escravidão e outros danos,Antes que à Índia chegue, lhe prepara. Antes que eles cheguem a Índia, novas armadilhas, lhes prepara.

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Dando razão dos portos Indianos, Dando explicações sobre os portos indianos,Também tudo o que pede lhe declara, Para tudo o que lhe perguntam ele declara,Que, havendo por verdade o que dizia, Como se houvesse verdade no que dizia,De nada a forte gente se temia. Que a nada a brava gente, temer devia.

E diz-lhe mais, co falso pensamento 98o E diz-lhes mais, com o falso pensamento,Com que Sínon os Frígios enganou, Igual ao que Sinon (1), para enganar aos frigios (2) usou,Que perto está üa Ilha, cujo assento Que próxima está uma ilha e que a mesma era o assentoPovo antigo Cristão sempre habitou. De um antigo povo cristão, que sempre a habitou.O Capitão, que a tudo estava atento, O capitão, que a tudo estava atento,Tanto co estas novas se alegrou Tanto com essa novidade se alegrouQue com dádivas grandes lhe rogava Que lhe prometendo grandes recompensas, ao piloto rogavaQue o leve à terra onde esta gente estava. Para que o levasse a terra onde esta gente estava.

1) Sinon: o grego que durante a guerra de Tróia se deixou aprisionar pelos

troianos aos quais convenceu que deviam deixar entrar na cidade o cavalo

de madeira. O famoso Cavalo de Tróia. É apresentado por Camões como

símbolo da perfídia.2) Frigios: natural da Frigia, região onde ficava Tróia.

O mesmo o falso Mouro determina 99o O falso piloto, sem qualquer relutância, terminaQue o seguro Cristão lhe manda e pede; Por cumprir o que o seguro capitão lhe manda e pede;Que a Ilha é possuída da malina Era o que ele queria, pois a ilha é governada pela malignaGente que segue o torpe Mahamede. Gente que segue ao torpe Mahamede (1).Aqui o engano e morte lhe imagina, Ali, a destruição e a morte aos lusos esperam, ele imagina,Porque em poder e forças muito excede Porque em força e em poder excedeÀ Moçambique esta Ilha, que se chama A Moçambique (2), esta ilha que se chamaQuíloa, mui conhecida pola fama. Quíloa (3), conhecida por sua grande fama.

1) Mahamede: Maomé. Os habitantes, portanto, eram maometanos

ou mouros.2) Moçambique: a ilha onde anteriormente tiveram o

entrevero.Na costa oriental da África.3) Quíloa: ilha da costa oriental da África.

Pera lá se inclinava a leda frota; 100o Para lá rumava a alegre frota;Mas a Deusa em Citere celebrada, Mas a deusa Vênus (1) que em Citera (2) é celebrada,Vendo como deixava a certa rota Vendo que deixavam a certa rota,Por ir buscar a morte não cuidada, Para irem de encontro à morte inesperada,Não consente que em terra tão remota Não permite que em terra tão remotaSe perca a gente dela tanto amada, Pereça aquela gente que por ela era tão amada,E com ventos contrairos a desvia E com ventos contrários a desviaDonde o piloto falso a leva e guia. Do perigo, para o qual, eram conduzidos pelo falso guia.

1) Vênus: a deusa da beleza e do amor. a protetora dos portugueses.

2) Citera: na antiguidade clássica era a ilha dedicada à Vênus.

Na linguagem clássica é a pátria alegórica dos amores.

Mas o malvado Mouro, não podendo 101o Mas o malvado mouro, não podendoTal determinação levar avante, Levar este seu projeto avante,Outra maldade inica cometendo, Logo, outra terrível maldade vai cometendo,Ainda em seu propósito constante, Seguindo sempre o seu propósito constante;Lhe diz que, pois as águas, discorrendo, Diz-lhes que em função das correntes, que ali vão correndo,Os levaram por força por diante, Foram forçados a seguir adiante,Que outra Ilha tem perto, cuja gente Mas que existe nas proximidades uma outra ilha, cuja gente

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Eram Cristãos com Mouros juntamente. Era cristã e que convivia com os mouros pacificamente.

Também nestas palavras lhe mentia, 102o Também com esta estória lhes mentia,Como por regimento, enfim, levava; Pois estas eram as instruções que levava;Que aqui gente de Cristo não havia, E o fato é que ali cristãos não havia,Mas a que a Mahamede celebrava. Mas apenas mouros, que a Mahamede (Maomé) adorava.O Capitão, que em tudo o Mouro cria, O capitão, que no mouro acreditava, pois a sua maldade desconhecia,Virando as velas, a Ilha demandava; Manda que virassem as velas e para a ilha rumava;Mas, não querendo a Deusa guardadora, Mas, novamente, a deusa Vênus, sua protetora,Não entra pela barra, e surge fora. Intervem e faz com que não entrem pela barra (1), mas por fora.

1) Barra: entrada do porto.

Estava a Ilha à terra tão chegada 103o A ilha estava, do continente, tão aproximada,Que um estreito pequeno a dividia; Que apenas um pequeno Estreito (1) as dividia;üa cidade nela situada, Nela, uma grande cidade estava edificada,Que na fronte do mar aparecia, A qual, já na beira-mar se via,De nobres edifícios fabricada, E notava-se que com grandes edifícios era ornada,Como por fora, ao longe, descobria, Como desde muito longe já se percebia;Regida por um Rei de antiga idade: Era governada por um rei de avançada idadeMombaça é o nome da Ilha e da cidade. E chamava-se Mombaça (2), tanto a ilha quanto à cidade.

1) Estreito: braço de mar.2) Mombaça: cidade na costa oriental da África.

E sendo a ela o Capitão chegado, 104o O capitão, tendo ali chegado,Estranhamente ledo, porque espera Mostrava-se extraordinariamente alegre porque esperaDe poder ver o povo baptizado, Poder ver o povo que, no cristianismo, fora batizado,Como o falso piloto lhe dissera, Conforme o falso piloto lhe dissera;Eis vêm batéis da terra com recado E logo chega da terra um recadoDo Rei, que já sabia a gente que era; Do Rei, que já sabia quem aquela gente era;Que Baco muito de antes o avisara, Pois Baco muito antes já o avisara,Na forma doutro Mouro, que tomara. Com a aparência de um mouro em que se transformara.

O recado que trazem é de amigos, 105o O recado que trazem é de amigos,Mas debaxo o veneno vem coberto, Mas debaixo da cortesia o veneno está encoberto,Que os pensamentos eram de inimigos, Pois as reais intenções eram as de inimigos,Segundo foi o engano descoberto. Conforme se viu quando o mau propósito foi descoberto.Ó grandes e gravíssimos perigos, Oh! Grandes e gravíssimos perigos,Ó caminho de vida nunca certo, Oh! Caminho da vida sempre incerto,Que aonde a gente põe sua esperança Pois aonde a gente deposita mais esperança,Tenha a vida tão pouca segurança! É onde a vida tem mais insegurança!

No mar tanta tormenta e tanto dano, 106o No mar há tanta tormenta e tanto dano,Tantas vezes a morte apercebida! Tantas vezes a morte é pressentida;Na terra tanta guerra, tanto engano, Na terra há tanta guerra, tanto engano,Tanta necessidade avorrecida! Tanta necessidade aborrecida!Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde pode abrigar-se um frágil ser humano,Onde terá segura a curta vida, Onde encontrará segurança na sua curta vida,Que não se arme e se indigne o Céu sereno Onde é que não se arme e não se indigne o céu serenoContra um bicho da terra tão pequeno? Contra um bicho da Terra, tão pequeno?

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CCanto IIanto II

Já neste tempo o lúcido Planeta 1o Neste momento o lúcido Planeta (1)Que as horas vai do dia distinguindo, Que o dia e a noite vai distinguindo,Chegava à desejada e lenta meta, Lentamente alcançava a sua meta,A luz celeste às gentes encobrindo; A luz das estrelas a tudo ia encobrindo,E da casa marítima secreta he estava o Deus E da marítima mansão secretaNocturno a porta abrindo, O deus Nocturno (2) a porta estava abrindo;Quando as infidas gentes se chegaram Foi então que os infiéis chegaramÀs naus, que pouco havia que ancoraram. Nas naus, que há pouco tempo ancoraram.

1) Lúcido Planeta: a Lua, que na época de Camões era considerada

um planeta.2) Nocturno: o deus Érebo, que presidia a noite.

Dantre eles um, que traz encomendado 2o Dentre eles, um que traz encomendadoO mortífero engano, assi dizia: A mortífera cilada, assim dizia:«Capitão valeroso, que cortado - Ó valoroso capitão, que tem singradoTens de Neptuno o reino e salsa via, O reino de Netuno e a sua salgada via,O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado O rei que governa esta ilha, está alvoroçadoDa vinda tua, tem tanta alegria Com a tua chegada e sente tanta alegriaQue não deseja mais que agasalhar-te, Que terá imenso prazer em abrigar-te,Ver-te e do necessário reformar-te. E prover-lhe do que for necessário para restaurar-te.

«E porque está em extremo desejoso 3o E porque está extremamente ansiosoDe te ver, como cousa nomeada, Para te ver, pois és uma pessoa conhecida e respeitada,Te roga que, de nada receoso, Roga-te que de nada sejas receosoEntres a barra, tu com toda armada; E entre no porto junto com a tua armada.E porque do caminho trabalhoso E como do caminho trabalhoso,Trarás a gente débil e cansada, A tua tripulação está cansada e debilitada,Diz que na terra podes reformá-la, Ele avisa-lhe que na terra pode repousá-la,Que a natureza obriga a desejá-la. Pois a natureza obriga ao descanso e deve-se respeita-la.

«E se buscando vás mercadoria 4o E se estás buscando as mercadoriasQue produze o aurífero levante, Que são produzidas no dourado Oriente,

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Canela, cravo, ardente especiaria A canela, o cravo, a picante especiaria,Ou droga salutífera e prestante; Ou os remédios salutares e fortificantes;Ou se queres luzente pedraria, Ou então, se queres a reluzente pedraria,O rubi fino, o rígido diamante, O fino rubi, o rígido diamante,Daqui levarás tudo tão sobejo Daqui tu levarás tudo isso, de modo tão sobejo,Com que faças o fim a teu desejo.» Que certamente saciará o teu desejo.

Ao mensageiro o Capitão responde, 5o Ao mensageiro o capitão responde,As palavras do Rei agradecendo, E às palavras do rei vai agradecendo,E diz que, porque o Sol no mar se esconde, E diz que como o sol, no mar, já se esconde,Não entra pera dentro, obedecendo; Não entra pela barra, ao convite do rei atendendo;Porém que, como a luz mostrar por onde Mas que quando o sol nascer e a luz mostrar por ondeVá sem perigo a frota, não temendo, Possa ir e a frota possa navegar sem nenhum perigo temendo,Cumprirá sem receio seu mandado, Que atenderá sem receio ao seu comunicado,Que a mais por tal senhor está obrigado. Ao qual, desde já se sente obrigado.

Pergunta-lhe despois se estão na terra 6o Depois lhe pergunta se na terraCristãos, como o piloto lhe dizia; Vivem os cristãos, como o piloto lhe dizia;O mensageiro astuto, que não erra, O astuto mensageiro não erraLhe diz que a mais da gente em Cristo cria. E responde-lhe que os cristãos eram a maioria.Desta sorte do peito lhe desterra Desse modo o capitão encerraToda a suspeita e cauta fantasia; Parte da suspeita que ainda nutria;Por onde o Capitão seguramente E passa a confiar parcialmenteSe fia da infiel e falsa gente. Naquela infiel e falsa gente.

E de alguns que trazia, condenados 7o E escolhe dois marujos, dentre os que trazia presos e condenados,Por culpas e por feitos vergonhosos, Por terem praticado alguns atos vergonhosos,Por que pudessem ser aventurados E que utilizava para os casos mais arriscados,Em casos desta sorte duvidosos, Cujos resultados eram duvidosos.Manda dous mais sagazes, ensaiados, Manda que eles, os mais sagazes e capacitados,Por que notem dos Mouros enganosos Entrem na cidade e observem os mouros enganosos,A cidade e poder, e por que vejam Reparem na cidade e no seu poderio e que vejamOs Cristãos, que só tanto ver desejam. Se, de fato, ali vivem os cristãos, que ver tanto desejam.

E por estes ao Rei presentes manda, 8o E através deles, ao rei, uns ricos presentes manda,Por que a boa vontade que mostrava Para que a boa intenção que demonstrava,Tenha firme, segura, limpa e branda, O rei visse que era firme, segura, límpida e branda,A qual bem ao contrário em tudo estava. A qual, por parte do rei, bem ao contrário estava.Já a companhia pérfida e nefanda Nisto, a companhia dos mouros, pérfida e nefanda,Das naus se despedia e o mar cortava: Já se despedia das naus e o mar cortava.Foram com gestos ledos e fingidos Com semblantes amistosos, mas fingidos,Os dous da frota em terra recebidos. Os dois marujos portugueses foram recebidos.

E despois que ao Rei apresentaram 9o E depois que ao rei apresentaramCo recado os presentes que traziam, O recado do capitão e os presentes que traziam,A cidade correram, e notaram Percorreram a cidade, mas observaramMuito menos daquilo que queriam; Muito menos do que gostariam;Que os Mouros cautelosos se guardaram Pois os mouros cautelosos sonegaramDe lhe mostrarem tudo o que pediam; Grande parte das informações que pediam.Que onde reina a malícia, está o receio Pois onde vigora a malícia sempre há o receioQue a faz imaginar no peito alheio. De que ela também vigore no coração alheio.

Mas aquele que sempre a mocidade 10o Mas, Baco (1), que sempre tem a mocidadeTem no rosto perpétua, e foi nascido No rosto; e de quem se diz que havia nascidoDe duas mães, que urdia a falsidade De duas mães, planejava outra falsidade,Por ver o navegante destruído, Sempre com o intuito de ver o luso ser destruído;Estava nüa casa da cidade, Estava numa casa da cidade,Com rosto humano e hábito fingido, Com o rosto humano e um hábito fingido,

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Mostrando-se Cristão, e fabricava E simulando ser cristão, fabricavaUm altar sumptuoso que adorava. Um suntuoso altar, que hipocritamente venerava.

1) Tebano: o deus Baco. Filho de Zeus e de Sêmele. Quando Baco

estava para nascer a sua mãe pediu a Zeus que lhe mostrasse todo

o seu esplendor e o deus a atendeu. Mas, Sêmele não suportou o

espetáculo e daquela visão e tombou fulminada. Zeus apressou-se

em retirar a criança de seu ventre e a introduziu na sua própria perna

até que terminasse o prazo de gestação. Desse modo, Baco nasceu

forte e saudável e por isso que é chamado de filho de duas mães.

Baco era sempre representado como um jovem.

Ali tinha em retrato afigurada 11o Ali, ele tinha a figura retratadaDo alto e Santo Espírito a pintura, Do sublime Espírito Santo e a pinturaA cândida Pombinha, debuxada Da cândida pombinha (1) estava desenhadaSobre a única Fénix, virgem pura; Sobre a única e verdadeira Fênix (2), a Virgem Pura.A companhia santa está pintada, Também a Santa Companhia dos doze apóstolos está pintada,Dos doze, tão torvados na figura E mostram-se tão perturbados naquela figuraComo os que, só das línguas que caíram Como quando as línguas de fogo lhes caíramDe fogo, várias línguas referiram. E eles em vários idiomas A Verdade proferiram.

1)Pombinha: é a ave que simboliza a pureza e por isso os cristãos a

consideram com a representação do Espírito Santo.2)Fênix: ave mitológica que renascia de suas próprias cinzas.Uma alusão ao caráter eterno de Nossa Senhora.

Aqui os dous companheiros, conduzidos 12o Os dois portugueses foram conduzidosOnde com este engano Baco estava, Para onde, com esta simulação, Baco estava;Põem em terra os giolhos, e os sentidos Ao vê-la, ambos dobram os joelhos na terra e, comovidos,Naquele Deus que o Mundo governava. Oram para o verdadeiro Deus, que o mundo governava.Os cheiros excelentes, produzidos Os excelentes incensos que são produzidosNa Pancaia odorífera, queimava Na aromática Pancaia (1), ali queimavaO Tioneu, e assi por derradeiro O Tioneu (Baco) e ironicamente e por derradeiro,O falso Deus adora o verdadeiro. Via-se que o falso deus adorava ao Deus verdadeiro.

1) Pancaia: região lendária, normalmente citada como se estivesse na

Arábia e que era famosa pelos perfumes e incensos.

Aqui foram de noite agasalhados, 13o Naquela noite, ali foram abrigados,Com todo o bom e honesto tratamento Recebendo um honesto e digno tratamento,Os dous Cristãos, não vendo que enganados E não perceberam que eram enganadosOs tinha o falso e santo fingimento Por aquele falso e santo fingimento.Mas, assi como os raios espalhados E assim que os raios de sol foram espalhadosDo Sol foram no mundo, e num momento Pelo mundo, no mesmo momentoApareceu no rúbido Horizonte Em que apareceu no rubro horizonteNa moça de Titão a roxa fronte, A moça de Tritão (1) com a rubra fronte,

1) Tritão: herói do ciclo troiano, irmão do rei Príamo e por quem a

Aurora era apaixonada.

Tornam da terra os Mouros co recado 14o Os mouros retornaram às naus com o recadoDo Rei pera que entrassem, e consigo De seu rei para que entrassem e consigo,

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Os dous que o Capitão tinha mandado, Trazem os dois marujos que o capitão tinha enviado,A quem se o Rei mostrou sincero amigo; Para quem o rei tinha se mostrado um sincero amigo;E sendo o Português certificado E Vasco da Gama, sendo informado,De não haver receio de perigo Que não havia motivos para recear algum perigoE que gente de Cristo em terra havia, E que cristãos, de fato, havia,Dentro no salso rio entrar queria. Logo quis entrar no porto, atravessando a salgada via.

Dizem-lhe os que mandou que em terra viram 15o Os marujos que ele havia mandado a terra dizem-lhe que viramSacras aras e sacerdote santo; Altares sagrados e um sacerdote santo;Que ali se agasalharam e dormiram Que ali, naquele templo, se abrigaram e dormiram,Enquanto a luz cobriu o escuro manto; Enquanto o sol esteve encoberto pelo noturno manto;E que no Rei e gentes não sentiram E que no rei e na população não sentiramSenão contentamento e gosto tanto Nada além de contentamento e tantoQue não podia certo haver suspeita Prazer que não podia, certamente, haver suspeitaNüa mostra tão clara e tão perfeita. Naquela demonstração tão clara e perfeita.

Co isto o nobre Gama recebia 16o Com isto, o nobre Gama recebia,Alegremente os Mouros que subiam Alegremente, os mouros que nas naus subiam;Que levemente um ânimo se fia Pois ainda que levemente ele confiaDe mostras que tão certas pareciam. Naquelas amostras que tão certas pareciam.A nau da gente pérfida se enchia, A nau, da pérfida gente se enchia,Deixando a bordo os barcos que traziam. Deixando a bordo os barcos que os traziam.Alegres vinham todos porque crêm Todos vinham alegres porque crêemQue a presa desejada certa têm. Que a desejada presa, na certa, já tem.

Na terra cautamente aparelhavam 17o Na terra, cautelosamente, preparavamArmas e munições, que, como vissem As armas e as munições, para que quando vissemQue no rio os navios ancoravam, Que no canal os navios lusos ancoravam,Neles ousadamente se subissem; Neles, ousadamente, subissem;E nesta treïção determinavam E com esta traição esperavamQue os de Luso de todo destruíssem, Que aos lusos, completamente destruíssem,E que, incautos, pagassem deste jeito E que eles, ingenuamente, pagassem desse jeito,O mal que em Moçambique tinham feito. O mal que em Moçambique tinham feito.

As âncoras tenaces vão levando, 18o A tenaz âncora, os lusos vão levantando,Com a náutica grita costumada; Com a gritaria que a gente do mar está acostumada;Da proa as velas sós ao vento dando, Içam apenas as velas da proa, no vento, as soltando,Inclinam pera a barra abalizada. E rumam para a barra sinalizada.Mas a linda Ericina, que guardando Mas a linda Vênus Ericina (1), que guardandoAndava sempre a gente assinalada, Sempre estava a sua gente amada,Vendo a cilada grande e tão secreta, Vendo que cairão na cilada, grande e secreta,Voa do Céu ao mar como üa seta. Voa do céu para o mar, tão rapidamente, que parecia uma seta.

1) Vênus Ericina: sobrenome de Vênus, por ter um templo no monte Érix,

na Sicília.

Convoca as alvas filhas de Nereu, 19o E convoca as alvas filhas de Nereu (1),Com toda a mais cerúlea companhia, E toda a oceânica companhia,Que, porque no salgado mar nasceu, Pois ela, Vênus, no salgado mar nasceu,Das águas o poder lhe obedecia; E o poder das águas também lhe pertencia.E, propondo-lhe a causa a que deceu, Explicou-lhes a causa por que desceu,Com todos juntamente se partia E junto com todos logo partiaPera estorvar que a armada não chegasse Para impedir que a armada chegasseAonde pera sempre se acabasse. Aonde para sempre se acabasse.

1) As filhas de Nereu: as Nereidas, ninfas do mar. Filhas deNereu e de Doris.

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Já na água erguendo vão, com grande pressa, 20o Logo já vão seguindo pela água, com muita pressa,Com as argênteas caudas branca escuma; Deixando prateados rastros de brancas espumas;Cloto co peito corta e atravessa Cloto (1), com o peito, corta e atravessaCom mais furor o mar do que costuma; O mar com mais furor do que costuma.Salta Nise, Nerine se arremessa Nise (2) salta, Nerine (3) se arremessaPor cima da água crespa em força suma; Por cima da água encrespada, com força suma.Abrem caminho as ondas encurvadas, As ondas abrem caminhos, como se estivessem encurvadas,De temor das Nereidas apressadas. De tanto temor das Nereidas apressadas.

1) Cloto: Camões a cita como se fosse uma das Nereidas, mas, na verdade, é uma das Parcas. Segundo o estudiosoEpifânio da Silva Dias, Camões confundiu Cloto com Doto,que é realmente uma das Nereidas.2) Nise: uma das Nereidas e cujo nome foi criado por

Camões.3) Nerine: idem.

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso, 21o Nos ombros de um Tritão (1), com o semblante aceso,Vai a linda Dione furiosa; Vai a linda Dione (2) furiosa;Não sente quem a leva o doce peso, Quem a leva não sente o suave peso,De soberbo com carga tão fermosa. De tão orgulhoso que está com essa carga preciosa.Já chegam perto donde o vento teso Logo elas chegam perto de onde o vento tesoEnche as velas da frota belicosa; Infla as velas da frota poderosa;Repartem-se e rodeiam nesse instante Dividem-se e rodeiam, nesse instante,As naus ligeiras, que iam por diante. As ligeiras naus que iam adiante.

1) Tritão: deus marinho, filho de Netuno e de Anfitrite.2) Dione: ninfa, filha de Urano e da Terra ou, para outros,do Oceano e de Tétis. Para Camões parece ser a própria

Vênus.

Põe-se a Deusa com outras em direito 22o A deusa e outras ninfas colocam-se no lado direitoDa proa capitaina, e ali fechando Da proa da nau capitânia; e ali vão fechandoO caminho da barra, estão de jeito O caminho para a barra, de tal jeito,Que em vão assopra o vento, a vela inchando: Que inutilmente o vento sopra, à vela inflando.Põem no madeiro duro o brando peito Antepõe-se à dura madeira com o suave peito,Pera detrás a forte nau forçando; E para trás a forte nau vão forçando;Outras em derredor levando-a estavam As outras ninfas, em redor, levando-a estavamE da barra inimiga a desviavam. E do porto inimigo a desviavam.

Quais pera a cova as próvidas formigas, 23o Igual quando as previdentes formigas,Levando o peso grande acomodado Para a cova vão levando um grande peso bem acomodado,As forças exercitam, de inimigas E todas as suas forças exercitam, pois são inimigasDo inimigo Inverno congelado; Do inimigo Inverno congelado;Ali são seus trabalhos e fadigas, Ali estão as suas dificuldades e suas fadigas,Ali mostram vigor nunca esperado: E ali é que demonstram um vigor inesperado:Tais andavam as Ninfas estorvando Assim estavam as ninfas, salvandoÀ gente Portuguesa o fim nefando. A gente portuguesa de um fim nefando.

Torna pera detrás a nau, forçada, 24o Finalmente, empurram a nau para trás, que vai forçada,Apesar dos que leva, que, gritando, Apesar dos esforços da tripulação que leva e que, gritando,Mareiam velas; ferve a gente irada, Maneja as velas como pode; agita-se a tripulação inflamada;O leme a um bordo e a outro atravessando; O leme, de um lado ao outro, vai girando.O mestre astuto em vão da popa brada, O astuto mestre inutilmente da popa brada,Vendo como diante ameaçando E vendo que logo adiante, lhes ameaçando,Os estava um marítimo penedo, Havia um marítimo rochedo,Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo. Teme que a nau seja quebrada e rende-se ao medo.

A celeuma medonha se alevanta 25o Um tumulto medonho se levantaNo rudo marinheiro que trabalha; Entre a rude tripulação, que ferozmente trabalha;

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O grande estrondo a Maura gente espanta, O grande estrondo à gente moura espanta,Como se vissem hórrida batalha; Como se presenciassem a uma horrível batalha.Não sabem a razão de fúria tanta, Não sabem a razão para tantaNão sabem nesta pressa quem lhe valha: Fúria; e nesta situação não sabem a quem recorrer ou quem lhes valha;Cuidam que seus enganos são sabidos Imaginam que os seus maus intentos foram conhecidosE que hão-de ser por isso aqui punidos. E que por isso serão severamente punidos.

Ei-los subitamente se lançavam 26o Aterrorizados, de súbito, se lançavamA seus batéis veloces que traziam; Ao mar, junto com os velozes botes que os traziam;Outros em cima o mar alevantavam Outros, para cima, o mar levantavamSaltando n'água, a nado se acolhiam; Quando saltavam na água e nadando fugiam;De um bordo e doutro súbito saltavam, De um lado ao outro, rapidamente, pulavam,Que o medo os compelia do que viam; Pois o medo os impelia, segundo o que pressentiam;Que antes querem ao mar aventurar-se E, antes preferem no mar se aventurar,Que nas mãos inimigas entregar-se. Do que nas mãos do inimigo se entregar.

Assi como em selvática alagoa 27o Igual quando na selvagem lagoaAs rãs, no tempo antigo Lícia gente, As rãs, que na antiguidade foram a Licia (1) gente,Se sentem porventura vir pessoa, Ao sentirem que chega alguma pessoa,Estando fora da água incautamente, E estando fora da água, despreocupadamente,Daqui e dali saltando (o charco soa), Daqui e dali vão saltando (a várzea até ecoa),Por fugir do perigo que se sente, Para fugirem do perigo que se pressente,E, acolhendo-se ao couto que conhecem, E, refugiando-se nas tocas que bem conhecem,Sós as cabeças na água lhe aparecem: Só se avista as suas cabeças, que na água aparecem:

1) Licia gente: Leto ou Latona, mãe de Apolo e de Diana, eraperseguida pela enciumada esposa de Zeus, com quem

gerara Apolo.De todos os lugares era expulsa e num certo dia deteve-se a

beira deum poço, mas alguns camponeses Licios que ali estavam a

escorraçarambrutalmente e foram inúteis as suas súplicas para que a

deixassem saciara sede de seus filhinhos, pois eles sujaram a água. Latona,

então, bebessem. Latona, possuída por uma imensa fúria ergueu as mãos e

disse-lhes: - pois bem, ficareis para sempre nos poços.Os Licios foram,

então, transformados em rãs e desde então vivem na lama.Os licios eram os naturais da Licia, na Ásia Menor.

Assi fogem os Mouros; e o piloto, 28o Dessa mesma maneira os mouros fogem; e o guia,Que ao perigo grande as naus guiara, Que ao grande perigo as naus conduziu,Crendo que seu engano estava noto, Crendo que de sua falsidade o luso já sabia,Também foge, saltando na água amara Também foge saltando na água, onde sumiu.Mas, por não darem no penedo imoto, Mas os lusos para não baterem no rochedo que o mestre via,Onde percam a vida doce e cara, Onde perderiam a vida, conforme se deduziu,A âncora solta logo a capitaina, Soltam rapidamente a âncora da capitania nau,Qualquer das outras junto dela amaina. E todas as outras a imitam para escaparem do choque fatal.

Vendo o Gama, atentado, a estranheza 29o Quando o atordoado Gama viu a ligeirezaDos Mouros, não cuidada, e juntamente Com que os mouros empreenderam a inesperada fuga, juntamenteO piloto fugir-lhe com presteza, Com o piloto, que também fugiu com presteza,Entende o que ordenava a bruta gente, Entendeu o que planejava aquela feroz gente;E vendo, sem contraste e sem braveza E vendo que mesmo não mais havendo correnteza,Dos ventos ou das águas sem corrente. Ou fúria nos ventos, que sopravam mansamente,Que a nau passar avante não podia, A nau, seguir adiante não podia,Havendo-o por milagre, assi dizia: Compreendeu que ali havia um milagre e assim dizia:

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«Ó caso grande, estranho e não cuidado! 30o - Oh! Que acontecimento grande, estranho e nunca imaginado,Ó milagre claríssimo e evidente, Oh! Que milagre claríssimo e evidente,Ó descoberto engano inopinado, Oh! Agora vejo o engano inesperado,Ó pérfida, inimiga e falsa gente! Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente!Quem poderá do mal aparelhado Quem poderá, do mal que lhe é preparado,Livrar-se sem perigo, sàbiamente, Livrar-se sem perigo e sabiamente,Se lá de cima a Guarda Soberana Se lá de cima a Guarda SoberanaNão acudir à fraca força humana? Não socorrer à fraca força humana?

«Bem nos mostra a Divina Providência 31o Bem nos mostra a Divina ProvidênciaDestes portos a pouca segurança, Que nestes portos há muita insegurança;Bem claro temos visto na aparência Claramente temos visto que a falsa aparênciaQue era enganada a nossa confiança; Engana a nossa crédula confiança.Mas pois saber humano nem prudência Mas nem o saber humano e nem a prudência,Enganos tão fingidos não alcança, A estes tão fingidos enganos alcança;Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado Ó tu, Guarda Divina, sempre precisaremos do teu cuidado,De quem sem ti não pode ser guardado! Pois sem ti, nada pode ser guardado!

«E, se te move tanto a piedade 32o E, se te move tanto à piedadeDesta mísera gente peregrina, Por nós, uma pobre gente peregrina,Que, só por tua altíssima bondade, Que, apenas por tua imensa bondade,Da gente a salvas pérfida e malina, Salva-se da gente sórdida e maligna,Nalgum porto seguro de verdade Para algum porto seguro de verdadeConduzir-nos já agora determina, Conduza-nos agora, pois assim o nosso sofrimento termina,Ou nos amostra a terra que buscamos, Ou, então, nos mostre a terra que buscamos,Pois só por teu serviço navegamos.» Pois é em teu nome e para a tua glória que navegamos.

Ouviu-lhe estas palavras piadosas 33o Ouviu-lhes estas palavras lamuriosasA fermosa Dione e, comovida, A formosa Dione (1) e, comovida,Dantre as Ninfas se vai, que saüdosas Separa-se das ninfas e parte, deixando-as saudosasFicaram desta súbita partida. Com esta rápida e inesperada partida.Ja penetra as Estrelas luminosas, Logo penetra nas estrelas (2) luminosas,Já na terceira Esfera recebida Acima da terceira Esfera que lhe foi concedida,Avante passa, e lá no sexto Céu, E segue adiante e para o Sexto Céu,Pera onde estava o Padre, se moveu. Onde estava o Pai Júpiter, se moveu.

1) Dione: ninfa, filha de Urano e da Terra ou, para outros, do Oceano

e de Tétis. Para Camões parece ser a própria Vênus2) Estrelas luminosas: o firmamento. O céu.3) Esfera: a terceira esfera é o planeta Vênus, segundo

sistema ptolomaico.4) Sexto Céu: o céu do planeta Júpiter, segundo o sistema

ptolomaico.

E, como ia afrontada do caminho, 34o E, como ia irada pelo longo caminho,Tão fermosa no gesto se mostrava Tão bela no rosto se mostravaQue as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho Que as Estrelas, o Céu e o Ar vizinho,E tudo quanto a via, namorava. E tudo que a enxergava, dela se enamorava.Dos olhos, onde faz seu filho o ninho, Dos seus olhos, onde o Cupido, seu filho, faz o seu ninho,Uns espíritos vivos inspirava, Uns ânimos acesos inspiravaCom que os Pólos gelados acendia, Com os quais até aos gelados Pólos acendiaE tornava do Fogo a Esfera, fria. E tornava a Esfera do Fogo (1), fria.

1) A Esfera do Fogo: o planeta Marte, segundo o sistema ptolomaico.

E, por mais namorar o soberano 35o E para melhor seduzir o soberanoPadre, de quem foi sempre amada e cara, Júpiter (1), por quem sempre foi amada e muito cara,Se lh'apresenta assi como ao Troiano, Se lhe apresenta como ao Troiano (2),

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Na selva Ideia, já se apresentara. Na floresta Idéia (3), já se apresentara.Se a vira o caçador que o vulto humano Se a visse aquele caçador (4) que o corpo humanoPerdeu, vendo Diana na água clara, Perdeu, quando assistiu Diana banhar-se na água clara,Nunca os famintos galgos o mataram, Não seriam os ferozes cães que o matariam,Que primeiro desejos o acabaram. Pois antes, os seus desejos o consumiriam.

1) Júpiter: o pai e senhor dos deuses.2) Troiano: o natural de Tróia. Neste ponto, Camões refere-se

a Páris,que nos bosques do Monte Ida teve que decidir qual das três

deusas( Vênus, Juno e Minerva) era a mais bela. A sua escolhida foi

Vênus.3) A floresta Idéia: ou a “Selva Idéia”, são os bosques do

Monte Ida,nas proximidades de Tróia.4) Referência a Acteon, o caçador que surpreendeu Diana no

banho efoi, por ela, transformado num cervo. Os seus próprios cães o

devoraramentão.

Os crespos fios d'ouro se esparziam 36o Os seus dourados cabelos se esparziam (1)Pelo colo que a neve escurecia; Pelo seu alvo colo, tão branco, que perto dele até a neve escurecia;Andando, as lácteas tetas lhe tremiam, Andando, os lindos seios lhe tremiam,Com quem Amor brincava e não se via; Onde o deus do amor (2) brincava, mas não se via.Da alva petrina flamas lhe saíam, Do branquíssimo peito chamas lhe saiam,Onde o Minino as almas acendia. Com as quais o Cupido as almas acendia.Polas lisas colunas lhe trepavam Suas lindas pernas, ardentes desejos inspiravam,Desejos, que como hera se enrolavam. E como se fossem plantas, nelas se enrolavam.

1) Esparziam: espalhavam.2) Deus do amor: o Cupido, filho de Vênus e também

conhecidocomo Amor ou o Menino.

Cum delgado cendal as partes cobre 37o Com um fino cendal (1) recobreDe quem vergonha é natural reparo; As partes do corpo, das quais, envergonhar-se é um natural reparo;Porém nem tudo esconde nem descobre Porém nem tudo esconde e nem tudo descobreO véu, dos roxos lírios pouco avaro; Aquele véu, que das rubras flores, é pouco avaro;Mas, pera que o desejo acenda e dobre, E, para que o deseja acenda e dobre,L'he põe diante aquele objecto raro. Deixa que se vislumbre aquele pedaço belo e raro.Já se sentem no Céu, por toda a parte, Já se sentem nos céus, em toda parte,Ciúmes em Vulcano, amor em Marte. Os ciúmes de Vulcano (2) e o amor de Marte (3).

1) Cendal: véu para o rosto ou para o corpo todo, feito com um tecido

fino e transparente.2) Vulcano: o deus do fogo e marido de Vênus.3) Marte: o deus da guerra.

E mostrando no angélico sembrante 38o E mostrando no angelical semblanteCo riso üa tristeza misturada, Um sorriso que com a tristeza estava misturada,Como dama que foi do incauto amante Igual a uma dama que pelo imprudente amanteEm brincos amorosos mal tratada, Nos jogos do amor foi maltratada,Que se aqueixa e se ri num mesmo instante Que ri e que chora no mesmo instanteE se torna entre alegre, magoada, E oscila entre estar alegre ou magoada,Destarte a Deusa a quem nenhüa iguala, A deusa, a quem nenhuma outra se iguala,Mais mimosa que triste ao Padre fala: Sendo mais graciosa do que triste, a Júpiter fala:

«Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso, 39o Eu sempre cuidei, ó Júpiter poderoso,

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Que, pera as cousas que eu do peito amasse, Para que as coisas que de coração eu amasse,Te achasse brando, afábil e amoroso, Encontrassem em ti um tratamento brando, afável e amoroso,Posto que a algum contrairo lhe pesasse; Mesmo que algum adversário lhes restasse;Mas, pois que contra mi te vejo iroso, Mas, contra mim te vejo raivoso,Sem que to merecesse nem te errasse, Sem que eu merecesse ou que errasse,Faça-se como Baco determina; Pois então que seja como Baco determina;Assentarei, enfim, que fui mofina. Aceitarei, enfim, que fui infeliz e sovina.

«Este povo, que é meu, por quem derramo. 40o Este povo que é meu, por quem derramoAs lágrimas que em vão caídas vejo, As inúteis lágrimas que caídas vejo,Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, Passará a ser maltratado por mim, que tanto o amo,Sendo tu tanto contra meu desejo; Pois vejo que tu és contra o meu desejo;Por ele a ti rogando, choro e bramo, Por ele, a ti eu vivo rogando, choro e bramo,E contra minha dita enfim pelejo. Mas é contra a minha felicidade que pelejo.Ora pois, porque o amo é mal tratado; Pois sendo amado por mim é tão maltratado,Quero-lhe querer mal, será guardado. Que passarei a lhes querer mal para que, por ti, seja guardado.

«Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes, 41o Mas pela gente moura ou nas mãos de outras ferozes gentes,Que pois eu fui.» E nisto, de mimosa, Pois eu fui. . . – E nisto, muito graciosa,O rosto banha em lágrimas ardentes, Banha o rosto em lágrimas ardentes,Como co orvalho fica a fresca rosa. Igual, com o orvalho, fica a fresca rosa.Calada um pouco, como se entre os dentes Cala-se por alguns momentos, como se entre os dentesLhe impedira a fala piedosa, Faltasse-lhe a palavra piedosa,Torna a segui-la; e indo por diante, Depois retoma a fala e segue adiante,Lhe atalha o poderoso e grão Tonante. Quando lhe interrompe o grande Tonante (1).

1) Tonante: adjetivo de Júpiter em função dos raios e trovões que lançava.

E destas brandas mostras comovido, 42o Que com esta suave melancolia fica comovido,Que moveram de um tigre o peito duro, A qual sensibilizaria até um tigre de coração muito duro,Co vulto alegre, qual, do Céu subido, Com o semblante alegre, como se ao céu fosse erguido,Torna sereno e claro o ar escuro, Transforma em claro e sereno o ambiente que estava escuro;As lágrimas lhe alimpa e, acendido, Enxuga-lhe as lágrimas e acendido,Na face a beija e abraça o colo puro; Beija-a na face e abraça-lhe o colo puroDe modo que dali, se só se achara, Com tanto entusiasmo que, se sozinhos estivessem,Outro novo Cupido se gerara Certamente, um novo Cupido eles gerassem.

E, co seu apertando o rosto amado, 43o E apertando a sua face no rosto amado,Que os saluços e lágrimas aumenta, Onde o soluço e a lágrima aumenta,Como minino da ama castigado, Igual ao menino que pela ama foi castigado,Que quem no afaga o choro lhe acrecenta, E que ao ser acariciado mais vigor ao choro acrescenta,Por lhe pôr em sossego o peito irado, Júpiter, para acalmar-lhe o coração irado,Muitos casos futuros lhe apresenta. Muitos acontecimentos futuros lhe apresenta.Dos Fados as entranhas revolvendo, Do Destino, as páginas relendo.Desta maneira enfim lhe está dizendo: Dessa forma, enfim, vai lhe dizendo:

- «Fermosa filha minha, não temais 44o - Formosa filha minha, não temaisPerigo algum nos vossos Lusitanos, Perigo algum para os vossos lusitanos,Nem que ninguém comigo possa mais Nem que exista alguém que comigo possa maisQue esses chorosos olhos soberanos; Que esses teus chorosos olhos soberanos;Que eu vos prometo, filha, que vejais Pois eu vos prometo, filha, que vejaisEsquecerem-se Gregos e Romanos, Os Homens esquecerem-se dos Gregos e dos Romanos (1),Pelos ilustres feitos que esta gente Em função dos ilustres feitos que a tua genteHá-de fazer nas partes do Oriente. Há de fazer nas terras do Oriente.

1) Referência às proezas dos heróis gregos e romanos.

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«Que, se o facundo Ulisses escapou 45o Pois, se o eloqüente Ulisses (1) escapouDe ser na Ogígia Ilha eterno escravo, De ser na ilha Ogígia (2) um eterno escravo,E se Antenor os seios penetrou Se Antenor (3) o valente peito penetrouIlíricos e a fonte de Timavo, Nos Montes Ilíricos (4) e na nascente do rio Timavo (5),E se o piadoso Eneias navegou E se o poderoso Enéas (6) navegouDe Cila e de Caríbdis o mar bravo, No Estreito de Cila e de Caríbdis (7) e por todo o mar bravo,Os vossos, mores cousas atentando, Os vossos lusitanos, maiores desafios enfrentando,Novos mundos ao mundo irão mostrando. Novas terras ao mundo irão mostrando.

1) Ulisses: rei lendário de Itaca, filho de Laerte, marido de Penélope,

pai de Telêmaco e um dos heróis da guerra de Tróia, onde se distinguiu

pela prudência, astúcia e eloqüência.2) Ilha Ogígia: a ilha da ninfa Calipso, onde Ulisses ficou

retido por seteanos, quando voltava da guerra de Tróia.3) Antenor: o nobre troiano que escondeu Ulisses, traindo a

sua própriapátria. Depois, atravessando a Trácia e a Iliria chegou ao

Adriático e aosmontes Ilirios. Posteriormente foi o fundador da cidade de

Pádua.4) Os montes Ilíricos: situado na iliria, região da costa

oriental do marAdriático, que corresponde, aproximadamente, a atual

Iugoslávia.5) Rio Timavo: rio situado na Istria.6) Enéas: príncipe troiano, filho de Vênus e de Anquises. É o

herói da“Eneida” de Virgílio, obra que inspirou Camões.7) Cila e Caríbdis: monstros que foram transformados, por

Júpiter,em sorvedouros no Estreito de Messina. Simbolizam os

perigos que osnavios enfrentam nos mares.

«Fortalezas, cidades e altos muros 46o Fortalezas, cidades e altos muros,Por eles vereis, filha, edificados; Por eles, filha, tu verás serem edificados;Os Turcos belacíssimos e duros Os Turcos (1), ferocíssimos e duros,Deles sempre vereis desbaratados; Por eles, sempre vereis serem desbaratados.Os Reis da Índia, livres e seguros, Os reis da Índia, que agora vês livres e seguros,Vereis ao Rei potente sojugados, Vereis que também serão subjugados,E por eles, de tudo enfim senhores, E verá que eles, de tudo serão os senhores,Serão dadas na terra leis milhores. E darão à Terra leis mais justas e melhores.

1) Turcos: neste contexto, os mouros.

«Vereis este que agora, pressuroso, 47o Vereis este capitão, que agora, tão valoroso,Por tantos medos o Indo vai buscando, Enfrentando a tantos perigos, as terras da Índia vai buscando,Tremer dele Neptuno de medroso, Realizar tantas proezas que até Netuno o teme e treme de tão medroso,Sem vento suas águas encrespando. E mesmo que não haja vento, verás que as suas águas vão encrespando.Ó caso nunca visto e milagroso, Oh! Um acontecimento inédito e milagroso,Que trema e ferva o mar, em calma estando! O mar tremer e ferver, em calmaria estando!Ó gente forte e de altos pensamentos, Oh! Gente poderosa e de sublimes sentimentos,Que também dela hão medo os Elementos! Que amedronta até aos Elementos (1).

1) Elementos: o ar, a água, a terra e o fogo.

«Vereis a terra que a água lhe tolhia, 48o Vereis que Moçambique, que lhes recusou a água que ali corria,

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Que inda há-de ser um porto mui decente, Ainda há de ser um porto muito decente,Em que vão descansar da longa via No qual irão repousar da longa via,As naus que navegarem do Ocidente As naus que chegarem do Ocidente.Toda esta costa, enfim, que agora urdia Toda esta costa, enfim, que lhes urdiaO mortífero engano, obediente Terríveis ciladas, verás, que lhes será obedienteLhe pagará tributos, conhecendo E lhes pagará tributos, reconhecendo,Não poder resistir ao Luso horrendo. Que não pode resistir ao luso, de poder tremendo.

«E vereis o Mar Roxo, tão famoso, 49o E vereis o Mar Vermelho, tão famoso,Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado; Tornar-se amarelo de tão amedrontado;Vereis de Ormuz o Reino poderoso Vereis Ormuz (1), que é um reino poderoso,Duas vezes tomado e sojugado. Ser tomado por duas vezes e por fim ser subjugado.Ali vereis o Mouro furioso Ali, vereis o mouro furiosoDe suas mesmas setas traspassado; Por suas próprias flechas ser abatido;Que quem vai contra os vossos, claro veja Pois quem se atreve a lutar contra os vossos lusos, que vejaQue, se resiste, contra si peleja. Que contra si próprio peleja.

1) Ormuz: ilha e cidade na entrada do golfo pérsico.

«Vereis a inexpugnábil Dio forte 50o Vereis que a inexpugnável cidade de Dio (1), tão forte,Que dous cercos terá, dos vossos sendo; Sofrerá dois cercos, mas dos lusos acabará sendo,Ali se mostrará seu preço e sorte, Pois, ali, eles mostrarão o seu valor e a sua boa sorteFeitos de armas grandíssimos fazendo. Quando as imensas proezas forem fazendo.Envejoso vereis o grão Mavorte Vereis arder de inveja o grande Mavorte (2),Do peito Lusitano, fero e horrendo; Vendo o forte coração luso, de poder tremendo.Do Mouro ali verão que a voz extrema do falso. Ali ouvirás as últimas palavras do mouro, pois em aflição extrema,Mahamede ao Céu blasfema. O falso Mahamede (3) contra o céu blasfema.

1) Dio: cidade da Índia, no golfo de Omã, península de Guzarate.

Era uma fortaleza portuguesa e sofreu dois cercos, em 1538 e 1547.

2) Mavorte: o outro nome do deus Marte, da guerra.3) Mahamede: o seguidor de Maomé, maometano. Os

mouros.

Goa vereis aos Mouros ser tomada, 51o Vereis a cidade de Goa (1), dos mouros ser tomada,O qual virá despois a ser senhora Cidade que posteriormente será a senhoraDe todo o Oriente, e sublimada De todo o Oriente; e que será celebradaCos triunfos da gente vencedora. Com os triunfos da lusa gente vencedora.Ali, soberba, altiva e exalçada, Que ali, soberba, altiva e exaltada,Ao Gentio que os Ídolos adora Aos pagãos que a ídolos adora,Duro freio porá, e a toda a terra Castigará duramente; e a toda terraQue cuidar de fazer aos vossos guerra. Que ousar fazer-lhes a guerra.

1) Goa: cidade da Índia tomada pela primeira vez por Afonso de

Albuquerque em 1510. depois de várias vicissitudes tornou-se a

sede da ocupação portuguesa.

«Vereis a fortaleza sustentar-se 52o Vereis a fortaleza de Cananor (1) sustentar-seDe Cananor, com pouca força e gente; Bravamente, com poucas armas e com pouca gente;E vereis Calecu desbaratar-se, E vereis Calecu (2) desbaratar-se,Cidade populosa e tão potente; Uma cidade tão populosa e tão potente;E vereis em Cochim assinalar-se E vereis em Cochim (3) glorificar-seTanto um peito soberbo e insolente Um coração soberbo e valente,Que cítara jamais cantou vitória Como jamais existiu; e uma vitóriaQue assi mereça eterno nome e glória. Que supera a qualquer outra, em fama e em glória.

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1) Cananor: cidade indiana.2) Calecu: cidade na costa ocidental da Índia. A primeira em

queVasco da Gama desembarcou em 20 de Maio de 1498.3) Cochim: cidade indiana na costa da província de Malabar.

«Nunca com Marte instruto e furioso 53o Nunca, mesmo quando o deus Marte estava furioso,Se viu ferver Leucate, quando Augusto Viu-se ferver tanto o promontório Leucate (1), quando Augusto (2)Nas civis Áctias guerras, animoso, Nas guerras civis romanas, período raivoso,O Capitão venceu Romano injusto, Como grande comandante, venceu ao romano (3) injusto;Que dos povos de Aurora e do famoso Que das vitórias sobre os povos do Oriente e sobre o povo famosoNilo e do Bactra Cítico e robusto Das margens do rio Nilo (4) e sobre o povo Citico (5) da Bactra, tão robusto,A vitória trazia e presa rica, Trazia uma presa grande e rica,Preso da Egípcia linda e não pudica, Mas era prisioneiro do amor à Egípcia (6) linda e impudica.

1) Leucate: promontório na ilha de Epiro, a oeste da Grécia, junto do qual

se travou a batalha naval entre Marco Antonio e Otávio Augusto.

2) Augusto: imperador romano, sobrinho e herdeiro de César.3) Referência a Marco Antonio, triúnviro romano e amante de

Cleópatra.4) Referência a conquista do Egito.5) Citico da Bactra: natural da Bactriana, no atual

Afeganistão.6) Referência a Cleópatra, rainha do Egito, celebre pela

inteligência ebeleza. Foi amante de César e de Marco Antonio.

«Como vereis o mar fervendo aceso 54o Como vereis o mar fervendo, acesoCos incêndios dos vossos, pelejando, Com os incêndios ateados pelos lusos, que vão pelejandoLevando o Idololatra e o Mouro preso, E levando o pagão e o mouro preso,De nações diferentes triunfando; E sobre várias nações vão triunfando.E, sujeita a rica Áurea Quersoneso, E verás que dominam a Áurea Quersoneso (1),Até o longico China navegando E que até na longínqua China irão navegando,E as Ilhas mais remotas do Oriente, E as ilhas mais distantes do Oriente,Ser-lhe-á todo o Oceano obediente. E todo o oceano, ser-lhe-á obediente.

1) Áurea Quersoneso: o nome antigo da península de Malaca.Quersoneso é sinônimo de península, portanto, leia-se: a

penínsulade ouro.

«De modo, filha minha, que de jeito 55o De modo, minha filha, que desse jeitoAmostrarão esforço mais que humano, Mostrarão um valor sobre-humano,Que nunca se verá tão forte peito, Que outro igual nunca se verá e nem tão valoroso peito,Do Gangético mar ao Gaditano, Desde o Gangético Mar (1) até o mar Gaditano (2),Nem das Boreais ondas ao Estreito Nem nas ondas Boreais (3) do Estreito,Que mostrou o agravado Lusitano, Que aquele que mostrou o celebrado lusitano,Posto que em todo o mundo, de afrontados, Mesmo que em todo mundo, por terem sido afrontados,Re[s]sucitassem todos os passados.» Ressuscitassem os heróis do passado.

1) Gangético Mar: o mar que banha a Índia, onde fica o rio Ganges.

2) Mar Gaditano: é o Oceano Atlântico que banha a cidade Cádiz ,

na Espanha, e que antigamente era chamada de Gades.3) Boreais: as ondas do Mar do Norte.

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Como isto disse, manda o consagrado 56o Terminando a narração, Júpiter manda o consagradoFilho de Maia à Terra, por que tenha Filho de Maia (1) para a Terra, para que o luso tenhaUm pacífico porto e sossegado, Um porto pacífico e sossegado,Pera onde sem receio a frota venha; Para onde, sem receio, a frota venha;E, pera que em Mombaça, aventurado, E para que em Mombaça, onde foi atraiçoado,O forte Capitão se não detenha, O valoroso capitão não se detenha,Lhe manda mais que em sonhos lhe mostrasse Manda que Mercúrio, em sonhos, lhe mostrasseA terra onde quieto repousasse. A terra em que a frota, tranqüilamente repousasse.

1) Filho de Maia: Mercúrio, filho de Maia e neto de Atlante.O mensageiro dos deuses.

Já pelo ar o Cileneu voava; 57o Já pelo ar o Cileneu (1) voava;Com as asas nos pés à Terra dece; Com as asas nos pés, na Terra desce;Sua vara fatal na mão levava, A sua vara fatal na mão levava,Com que os olhos cansados adormece; Com a qual os olhos cansados adormece;Com esta, as tristes almas revocava E as tristes almas tocavaDo Inferno, e o vento lhe obedece; No inferno e até o vento lhe obedece.Na cabeça o galero costumado; Na cabeça trazia o galero costumadoE destarte a Melinde foi chegado. E desse modo, a Melinde, havia chegado.

1) Cileneu: nome dado a Mercúrio que nasceu no Monte Cilene,

na Arcádia. Aqui Camões o apresenta com os atributos que lhe

são peculiares: as asas nos pés; o caduceu (a vara) com quetangia as almas dos mortos e fechava os olhos dos

moribundose o capacete (galero).

Consigo a Fama leva, por que diga 58o Consigo levava a deusa Fama (1), para que ela digaDo Lusitano o preço grande e raro, As proezas do lusitano e do seu valor grande e raro,Que o nome ilustre a um certo amor obriga, E que ao seu ilustre nome um sincero amor se obriga,E faz, a quem o tem, amado e caro. E faz, com quem o tenha, por ele ser amado e caro.Destarte vai fazendo a gente, amiga, Desse modo a gente de Melinde vai tornando-se amigaCo rumor famosíssimo e perclaro. Dos portugueses, ouvindo o seu discurso formoso e preclaro.Já Melinde em desejos arde todo Logo, Melinde (2) e o seu povo todo,De ver da gente forte o gesto e modo. Deseja ardentemente conhecer a forte gente, o seu jeito e o seu modo.

1) Fama: uma das deusas. Ovídio a descreve vivendo nos confins

da Terra, do Céu e do Mar, num palácio com mil janelas, onde

penetram todos os rumores. Deste palácio, feito em bronze, saem

amplificadas todas as palavras que nele entram.Também há a versão que diz que era uma companheira

constantede Mercúrio, por ser ela, também, uma mensageira de

Júpiter.Possuía muitas bocas e orelhas, que lhe permitiam ouvir e

transmitirqualquer noticia.2) Melinde: cidade e reino na África Oriental.

Dali pera Mombaça logo parte, 59o Dali, para Mombaça ele logo parte,Aonde as naus estavam temerosas, Onde as naus estavam numa situação perigosa,Pera que à gente mande que se aparte Vai para que a gente lusa se afaste,Da barra imiga e terras suspeitosas; Daquele porto inimigo e daquela terra belicosa;Porque mui pouco val esforço e arte Porque muito pouco valem o esforço e a arteContra infernais vontades enganosas; Contra as infernais gentes rancorosas;Pouco val coração, astúcia e siso, Pouco valem a coragem, a astúcia e o siso,

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Se lá dos Céus não vem celeste aviso. Se do céu não chegar um divino aviso.

Meio caminho a noite tinha andado, 60o Meio caminho a noite já tinha andado,E as Estrelas no Céu, co a luz alheia, E as estrelas no céu, com a luz alheia,Tinham largo Mundo alumiado, Tinham o vasto mundo iluminado;E só co sono a gente se recreia. E apenas com o sono, toda a gente se recreia.O Capitão ilustre, já cansado O ilustre Capitão, muito cansadoDe vigiar a noite que arreceia, De tanto vigiar a noite que receia,Breve repouso antão aos olhos dava, Um curto repouso aos olhos, então, dava,A outra gente a quartos vigiava; Enquanto que o restante da população, em turnos, vigiava.

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece, 61o Foi então que Mercúrio, em sonho, lhe aparece,Dizendo: - «fuge, fuge, Lusitano, Dizendo: - Foge, foge lusitano,Da cilada que o Rei malvado tece, Da cilada que este malvado rei lhe tece,Por te trazer ao fim e extremo dano! Para trazer-te o mortal dano.Fuge, que o vento e o Céu te favorece; Foge, que o vento e o céu te favorece,Sereno o tempo tens e o Oceano, Tens o clima sereno e também calmo está o Oceano,E outro Rei mais amigo, noutra parte, E há um outro rei mais amigo, noutra parte,Onde podes seguro agasalhar-te! Onde com segurança poderás abrigar-te.

«Não tens aqui senão aparelhado 62o Aqui, só existe preparadoO hospício que o cru Diomedes dava, O abrigo que o cruel Diomedes (1) dava,Fazendo ser manjar acostumado Quando transformava em comida, hábito amaldiçoado,De cavalos a gente que hospedava; Para os seus cavalos, os pobres visitantes que hospedava;As aras de Busíris infamado, Os altares de Busíris (2), mal afamado,Onde os hóspedes tristes imolava, Que os infelizes hóspedes imolava,Terás certas aqui, se muito esperas: Aqui, certamente, te espera.Fuge das gentes pérfidas e feras! Foge dessa pérfida gente, uma verdadeira fera.

1) Diomedes: rei da Trácia e célebre pela sua crueldade. Segundo a

tradição ele alimentava os seus cavalos com carne humana. Foi morto

por Ulisses que entregou o seu cadáver para os cavalos que o devoraram.

2) Busíris: rei do Egito que sacrificava os seus hóspedes em honra de

Júpiter.

- «Vai-te ao longo da costa discorrendo 63o Vai-te logo, ao longo desta costa vai percorrendoE outra terra acharás de mais verdade E encontrarás uma outra terra de maior generosidade,Lá quási junto donde o Sol, ardendo, Na região onde o sol, ardendo,Iguala o dia e noite em quantidade; Iguala as horas do dia e da noite na mesma quantidade;Ali tua frota alegre recebendo, Ali, a tua frota, alegremente irá recebendoUm Rei, com muitas obras de amizade, Um rei, que com muitas demonstrações de amizade,Gasalhado seguro te daria Um seguro e confortável abrigo te daráE, pera a Índia, certa e sábia guia.» E para chegares a Índia, um hábil piloto te oferecerá.

Isto Mercúrio disse, e o sono leva 64o Assim disse Mercúrio e o sono do Capitão consigo leva;Ao Capitão, que, com mui grande espanto, O capitão, com muito grande espanto,Acorda e vê ferida a escura treva Acorda e vê uma luz na escura treva,De üa súbita luz e raio santo; Um raio de luz, súbito e santo.E vendo claro quanto lhe releva E vendo claramente o quanto ele lhe revelaNão se deter na terra inica tanto, Decide não se deter naquela terrível terra por tantoCom novo esprito ao mestre seu mandava Tempo; e, de ânimo renovado, ao seu mestre logo mandavaQue as velas desse ao vento que assoprava. Que soltasse as velas ao vento, que favoravelmente soprava.

- «Dai velas (disse) dai ao largo vento, 65o - Solte as velas, disse, deixe-as ao largo vento,Que o Céu nos favorece e Deus o manda; Que o céu nos favorece e Deus assim nos manda;Que um mensageiro vi do claro Assento, Pois eu vi um mensageiro do Olimpo (1), o claro assento,Que só em favor de nossos passos anda.» Que apenas favorecendo a nossa jornada anda.

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Alevanta-se nisto o movimento Nisto, levanta-se o grande movimentoDos marinheiros, de üa e de outra banda; Dos marinheiros, de uma e de outra banda (lado);Levam gritando as âncoras acima, Gritando, levantam a âncora para cima,Mostrando a ruda força que se estima. Mostrando a enorme força que tanto se lhes estima.

1) Olimpo: a morada dos deuses.

Neste tempo que as ancoras levavam, 66o Enquanto os lusos, tenazmente, as âncoras levantavam,Na sombra escura os Mouros escondidos Na sombra escura, os mouros escondidosMansamente as amarras lhe cortavam, Disfarçadamente as amarras das naus cortavam,Por serem, dando à costa, destruídos; Para que fossem jogados contra os rochedos e destruídos.Mas com vista de linces vigiavam Mas, com vistas atentas, os lusos vigiavam,Os Portugueses, sempre apercebidos; Pois estavam sempre prevenidos,Eles, como acordados os sentiram, E assim, quando a armadilha sentiram,Voando, e não remando, lhe fugiram. Voando e não apenas remando, fugiram.

Mas já as agudas proas apartando 67o E já as finas proas iam apartandoIam as vias húmidas de argento; Os líquidos caminhos do mar argento (prateado);Assopra-lhe galerno o vento e brando, Sopra-lhes um vento suave e brando,Com suave e seguro movimento. Garantindo-lhes um favorável movimento.Nos perigos passados vão falando, Sobre os perigos passados vão falando,Que mal se perderão do pensamento Os quais, nunca sairão do pensamento.Os casos grandes, donde em tanto aperto Aqueles grandes acontecimentos, onde em tão grande aperto,A vida em salvo escapa por acerto. A vida foi salva pelo Capitão e o seu acerto.

Tinha üa volta dado o Sol ardente 68o Já tinha completado uma volta o sol ardenteE noutra começava, quando viram E a outra já iniciava, quando viram,No longe dous navios, brandamente Ao longe, dois navios, que suavementeCos ventos navegando, que respiram. Navegavam com os ventos que sopravam.Porque haviam de ser da Maura gente, E julgando que fossem da moura gente,Pera eles arribando, as velas viram. Para eles, manejando as velas, viraram.Um, de temor do mal que arreceava, Um dos navios, vendo o mal que conhecia e que tanto receava,Por se salvar a gente à costa dava. Para salvar-se, virou para a costa e logo para lá já rumava.

Não é o outro que fica tão manhoso, 69o O outro fica, mas não por ser manhoso,Mas nas mãos vai cair do Lusitano, Pois vai cair nas mãos do lusitano,Sem o rigor de Marte furioso. Porém sem a violência de um combate furioso,E sem a fúria horrenda de Vulcano; E sem a horrível destruição dos canhões de Vulcano (1);Que, como fosse débil e medroso. Pois, como era débil e medroso,Da pouca gente o fraco peito humano, Aquele grupo de mouros, um covarde tipo humano,Não teve resistência; e, se a tivera, Não ofereceu resistência; e se esta tivesse havido,Mais dano, resistindo, recebera. Certamente que o dano seria muito mais dolorido.

1) Vulcano: o deus do fogo e das armas.

E como o Gama muito desejasse 70o E, como o Gama muito desejassePiloto pera a Índia, que buscava, Um piloto para orientar-lhe sobre a Índia que buscava,Cuidou que entre estes Mouros o tomasse, Pensou que dentre estes mouros o encontrasse;Mas não lhe sucedeu como cuidava; Contudo, não sucedeu como ele imaginava,Que nenhum deles há que lhe ensinasse Pois não havia nenhum que lhe ensinasse,A que parte dos céus a Índia estava; Abaixo de qual parte do céu a Índia estavaPorém dizem-lhe todos que tem perto Porém todos lhe dizem que ali pertoMelinde, onde acharão piloto certo. Fica o reino de Melinde (1), onde acharão o piloto certo.

1) Melinde: cidade e reino na costa oriental da África.

Louvam do Rei os Mouros a bondade, 71o E os mouros também louvam o rei e a sua bondade,Condição liberal, sincero peito, A sua condição liberal, o sincero peito,

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Magnificência grande e humanidade, A sua magnífica humanidade,Com partes de grandíssimo respeito. E o seu imenso respeito.O Capitão o assela por verdade, O capitão aceita essa informação como verdade,Porque já lho dissera deste jeito Porque já lhe dissera desse jeito,O Cileneu em sonhos; e partia O Cileneu (1) em sonhos; e logo partiaPera onde o sonho e o Mouro lhe dizia. Para aquele reino que o sonho e, agora, o mouro lhe dizia.

1) Cileneu: Mercúrio que assim era chamado por ter nascido no monte

Cilene.

Era no tempo alegre, quando entrava 72o Estava-se na alegre Primavera, quando entravaNo roubador de Europa a luz Febeia, No raptor (1) da princesa Europa (2), a luz Febéia (3),Quando um e o outro corno lhe aquentava, Que um e o outro chifre lhe esquentava,E Flora derramava o de Amalteia; E a deusa Flora (4) derramava o licor de Amaltéia (5).A memória do dia renovava A lembrança daquele Dia Santo (6) renovava,O pres[s]uroso Sol, que o Céu rodeia, O zeloso sol, que o céu rodeia,Em que Aquele a quem tudo está sujeito No qual, Aquele, a quem a tudo está sujeito,O selo pôs a quanto tinha feito; Colocou a sua marca em tudo o que tinha feito;

1) Raptor: referência a Júpiter.2) Princesa Europa: a filha de Agenor, rei da Fenícia, que foiraptada por Júpiter, metamorfoseado em touro. Daí a alusão

daluz solar aquecer os seus chifres.3) A luz Febéia: a luz de Febo o outro nome de Apolo, o deus

do sol.A luz do sol incidindo no quadrante onde fica a constelação

de Touro,que ocorre com mais intensidade durante a Primavera.4) Flora: a deusa das flores e da Primavera.5) Amaltéia: a ninfa que transformada em cabra amamentou

Júpiter.O licor de Amaltéia, neste contexto, simboliza a abundância

da Primavera.6) O Dia Santo: o domingo de Páscoa. O dia da Ressurreição.

Quando chegava a frota àquela parte 73o Foi quando a frota chegava naquela parteOnde o Reino Melinde já se via, De onde o reino de Melinde já se via;De toldos adornada e leda de arte Estava enfeitada com toldos coloridos, feitos com alegre arte,Que bem mostra estimar o Santo dia. O que demonstrava o quanto se celebrava aquele Santo Dia.Treme a bandeira, voa o estandarte, Tremula a bandeira, esvoaça o estandarte,A cor purpúrea ao longe aparecia; A cor vermelha ao longe aparecia;Soam os atambores e pandeiros; Soam os tambores e os pandeiros;E assi entravam ledos e guerreiros. E assim os lusos chegavam, alegres e guerreiros.

Enche-se toda a praia Melindana 74o Enche-se toda a praia MelindanaDa gente que vem ver a leda armada, Com a multidão que vem ver a alegre armada,Gente mais verdadeira e mais humana Gente mais sincera e humanaQue toda a doutra terra atrás deixada. Que a que foi deixada na terra passada.Surge diante a frota Lusitana, Surge adiante a frota lusitana,Pega no fundo a âncora pesada; Prende-se ao fundo do mar a âncora pesada.Mandam fora um dos Mouros que tomaram, Mandam à terra um dos mouros que aprisionaram,Por quem sua vinda ao Rei manifestaram. Para que comunicasse a sua chegada, que ruidosamente anunciaram.

O Rei, que já sabia da nobreza 75o O rei, que já sabia da nobrezaQue tanto os Portugueses engrandece, Que tanto aos portugueses engrandece,Tomarem o seu porto tanto preza Receber aquela gente no seu reino tanto prezaQuanto a gente fortíssima merece; Quanto à brava gente lusa merece;E com verdadeiro ânimo e pureza, E com sincero contentamento e pureza,

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Que os peitos generosos ennobrece, Que os corações generosos enobrece,Lhe manda rogar muito que saíssem Roga-lhes que do mar saíssemPera que de seus reinos se servissem. E que do seu reino se servissem.

São oferecimentos verdadeiros 76o São oferecimentos verdadeirosE palavras sinceras, não dobradas, E são sinceras as palavras, generosas e dedicadas,As que o Rei manda aos nobres cavaleiros Que o rei envia aos nobres cavaleirosQue tanto mar e terras têm passadas. Que tanto mar e tanta terra deixam ultrapassadas.Manda-lhe mais lanígeros carneiros Como presentes, envia-lhes felpudos carneirosE galinhas domésticas cevadas, E as galinhas que por eles são criadas,Com as frutas que antão na terra havia; Também lhes manda as frutas que a terra produzia;E a vontade à dádiva excedia. E a sua boa vontade, que àqueles presentes excedia.

Recebe o Capitão alegremente 77o O capitão recebe alegrementeO mensageiro ledo e seu recado; Ao cordial mensageiro e ao seu recado;E logo manda ao Rei outro presente, E logo manda ao rei um outro presente,Que de longe trazia aparelhado: Que desde muito longe já trazia preparado:Escarlata purpúrea, cor ardente, Era em vermelho vivo, cor tão ardente,O ramoso coral, fino e prezado, Um lindo e ramificado coral, fino e requintado,Que debaxo das águas mole crece, Que debaixo da água mole cresce,E, como é fora delas, se endurece. Mas estando fora dela se endurece.

Manda mais um, na prática elegante, 78o Manda um mensageiro, naquela prática elegante,Que co Rei nobre as pazes concertasse E ordena-lhe que a paz, como o nobre rei firmasse,E que de não sair, naquele instante, E que por não desembarcar, naquele instante,De suas naus em terra, o desculpasse. De suas naus, que pedisse ao rei que o desculpasse.Partido assi o embaixador prestante, Assim instruído, o mensageiro do luso navegante,Como na terra ao Rei se apresentasse, Como em terra, junto ao rei, já estivesse,Com estilo que Palas lhe ensinava, Com o estilo que Palas (1) lhe ensinava,Estas palavras tais falando orava: Tais palavras ao ilustre rei falava:

1) Palas: um outro nome de Minerva, a deusa da sabedoria e da eloqüência.

- «Sublime Rei, a quem do Olimpo puro 79o Sublime rei, a quem, pelo Olimpo puro,Foi da suma Justiça concedido Com suprema justiça, foi concedidoRefrear o soberbo povo duro, O dever de refrear o arrogante povo duro,Não menos dele amado, que temido: E que por esse povo é tão amado quanto temido:Como porto mui forte e mui seguro, Por ser o teu porto o mais forte e o mais seguro,De todo o Oriente conhecido, Em todo o Oriente conhecido,Te vimos a buscar, pera que achemos Vimos procurar-te, para que achemosEm ti o remédio certo que queremos. Em ti o socorro certo que tanto queremos.

«Não somos roubadores que, passando 80o Não somos ladrões que, passandoPelas fracas cidades descuidadas, Pelas frágeis cidades descuidadas,A ferro e a fogo as gentes vão matando, A ferro e a fogo as populações vão matando,Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas; Para roubar-lhes as riquezas cobiçadas;Mas, da soberba Europa navegando, Somos da altiva Europa e navegando,Imos buscando as terras apartadas Estamos buscando as terras distanciadasDa Índia, grande e rica, por mandado Da rica e grande Índia, como nos foi ordenadoDe um Rei que temos, alto e sublimado. Pelo nosso rei, sublime e elevado.

«Que geração tão dura há i de gente, 81o Porque será que nos julgam um grupo de tão malvada gente,Que bárbaro costume e usança feia, De costumes tão bárbaros e de maneira tão feia,Que não vedem os portos tão somente, Que não só nos recusam os portos completamente,Mas inda o hospício da deserta areia? Como negam-nos um simples abrigo na deserta areia?Que má tenção, que peito em nós se sente, Não sei que mau sentimento eles julgam que o nosso coração sente,

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Que de tão pouca gente se arreceia? Para tanto nos temer; o quê, de nossa pouca gente tanto se receia?Que, com laços armados, tão fingidos, Por que, com ardis preparados, tão fingidos,Nos ordenassem ver-nos destruídos? Querem nos ver completamente destruídos?

«Mas tu, em quem mui certo confiamos 82o Mas em tu, em quem corretamente confiamos,Achar-se mais verdade, ó Rei benino, Acharemos mais sinceridade, ó rei benigno,E aquela certa ajuda em ti esperamos E a ajuda certa que de ti esperamos,Que teve o perdido Ítaco em Alcino, Igual a que recebeu o perdido Itaco (1) do rei Alcino (2).A teu porto seguros navegamos, Ao teu seguro porto chegamos,Conduzidos do intérprete divino; Conduzidos pelo mensageiro Divino;Que, pois a ti nos manda, está mui E porque a ti nos mandou, está muito claro,Claro Que és de peito sincero, humano e raro. Pois tens o coração sincero, humano e raro.

1) itaco: referência a Ulisses, lendário rei de itaca, uma das ilhas Jônicas.

2) Alcino: rei dos feáceos que acolheu a Ulisses que havia naufragado

quando regressava a Itaca, depois da guerra de Tróia.

«E não cuides, ó Rei, que não saísse 83o E não pense, ó rei, que não saísseO nosso Capitão esclarecido Da nau o nosso capitão esclarecido,A ver-te ou a servir-te, porque visse Para ver-te ou servir-te, por que visse,Ou suspeitasse em ti peito fingido; Ou suspeitasse que em ti havia um coração fingido;Mas saberás que o fez, por que cumprisse Mas saiba que não veio, para que se cumprisseO regimento, em tudo obedecido, O nosso regulamento, o qual, rigorosamente, é obedecido,De seu Rei, que lhe manda que não saia, E nele, o nosso rei ordena que o capitão não saia,Deixando a frota, em nenhum porto ou praia. Deixando a frota, em nenhum porto ou em nenhuma praia.

«E porque é de vassalos o exercício 84o E como é de escravo o exercícioQue os membros têm, regidos da cabeça, Dos nossos membros, que são governados pela nossa cabeça,Não quererás, pois tens de Rei o ofício, Tu não desejarás, pois também é rei e exerce esse ofício,Que ninguém a seu Rei desobedeça; Que alguém, ao seu rei, desobedeça;Mas as mercês e o grande benefício Mas as graças e o grande benefícioQue ora acha em ti, promete que conheça Que agora temos de ti, ele promete que todo o Mundo saiba e conheça,Em tudo aquilo que ele e os seus puderem, Em todos os lugares que ele e os seus navegarem,Enquanto os rios pera o mar correrem.» Enquanto os rios para os mares correrem (1).

1) Ou seja, para sempre.

Assi dizia; e todos juntamente, 85o Assim dizia o mensageiro; e todos os nativos, juntamente,Uns com outros em prática falando, Uns com os outros animadas palavras iam trocando,Louvavam muito o estâmago da gente Louvando muito o ânimo e a coragem da lusa gente,Que tantos céus e mares vai passando; Que por tantos céus e tantos mares vai passando.E o Rei ilustre, o peito obediente O ilustre rei pensa no coração obedienteDos Portugueses na alma imaginando, Dos portugueses e fica imaginandoTinha por valor grande e mui subido O grande valor e como era reconhecidoO do Rei que é tão longe obedecido; O rei português, que mesmo de tão longe era fielmente obedecido.

E com risonha vista e ledo aspeito, 86o E, com os olhos brilhando e um alegre aspecto,Responde ao embaixador, que tanto estima: Responde ao embaixador, que tanto estima:- «Toda a suspeita má tirai do peito, Expulsem toda má suspeita do vosso peito,Nenhum frio temor em vós se imprima, Que nenhum frio temor em vós se imprima;Que vosso preço e obras são de jeito Que as vossas proezas e o vosso feitoPera vos ter o mundo em muita estima; Merece do Mundo todo consideração e estima;E quem vos fez molesto tratamento E quem lhes deu um malvado tratamento,Não pode ter subido pensamento. Saiba que é um ignorante de malévolo sentimento.

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«De não sair em terra toda a gente, 87o De não virem para a terra toda a gente,Por observar a usada preminência, Para cumprir com a habitual reverência,Ainda que me pese estranhamente, Posso entender, ainda que estranhamente,Em muito tenho a muita obediência Porém, eu considero sublime essa vossa obediência.Mas, se lho o regimento não consente, E se o regulamento não lhes consente,Nem eu consentirei que a excelência Não serei eu que permitirei que a excelênciaDe peitos tão leais em si desfaça, Desses leais corações se desfaça,Só porque a meu desejo satisfaça. Apenas para que ao meu desejo satisfaça.

«Porém, como a luz crástina chegada 88o Porém, quando a luz crástina (1) for chegadaAo mundo for, em minhas almadias Ao Mundo, em minhas almadias (2),Eu irei visitar a forte armada, Eu irei visitar a forte armada,Que ver tanto desejo há tantos dias. Que tanto desejo ver a vários dias.E, se vier do mar desbaratada E, se ela estiver maltratadaDo furioso vento e longas vias, Pelo mar, pelo vento furioso e pelas longas vias,Aqui terá de limpos pensamentos Aqui vós encontrareis benignos sentimentosPiloto, munições e mantimentos.» E piloto, munições e alimentos.

1) Luz crástina: adjetivo poético relativo ao dia seguinte. Matinal.

2) Almadias: embarcação africana e asiática. De formato estreito

e feita, geralmente, de um único tronco escavado.

Isto disse; e nas águas se escondia 89o Assim falou o rei; e nas águas já se escondiaO filho de Latona; e o mensageiro, O filho de Latona (1), e o mensageiro,Co a embaixada, alegre se partia Com a boa noticia, já partiaPera a frota no seu batel ligeiro. Para a frota no seu bote ligeiro.Enchem-se os peitos todos de alegria, Em todos, os corações enchem-se de alegria,Por terem o remédio verdadeiro Por terem, agora, o recurso verdadeiroPera acharem a terra que buscavam; Para acharem a terra que buscavam;E assi ledos a noite festejavam. E assim, felizes, por toda à noite festejavam.

1) O filho de Latona: Apolo, o deus do sol. O sol.

Não faltam ali os raios de artifício, 90o Nas comemorações não faltam os fogos de artifício,Os trémulos cometas imitando; Que aos trêmulos cometas vão imitando;Fazem os bombardeiros seu ofício, Os canhoneiros fazem o seu ofício,O céu, a terra e as ondas atroando; Que pelo céu, pelo mar e pela terra vão ecoando.Mostra-se dos Ciclopas o exercício, Dos Ciclopas (1), demonstra-se o exercício,Nas bombas que de fogo estão queimando; Nas bombas de fogo que vão queimando;Outros com vozes com que o céu feriam, Outros, com sons tão altos que até ao céu chegavam,Instrumentos altíssonos tangiam. Altíssonos instrumentos tocavam.

1) Ciclopas: gigantes que tinha apenas um olho, no meio da testa,

e fabricavam os raios para Júpiter.

Respondem-lhe da terra juntamente, 91o Da terra respondem prontamente,Co raio volteando com zunido; Com fogos que giram fazendo um grande zunido,Anda em giros no ar a roda ardente, Gira no ar a roda ardente,Estoira o pó sulfúreo escondido; Estourando o pó sulfúreo (pólvora) que nela estava escondido.A grita se alevanta ao céu, da gente; A gritaria se levanta ao céu, entre a nativa gente;O mar se via em fogos acendido O mar parecia arder com o fogo que era acendido,E não menos a terra; e assi festeja E não menos a terra; e assim comemoravamUm ao outro, à maneira de peleja. Os dois povos, parecendo que guerreavam.

Mas já o Céu inquieto, revolvendo, 92o Mas logo o inquieto céu já estava se remexendo,As gentes incitava a seu trabalho; E a todos incitava para o trabalho;

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E já a mãe de Menon, a luz trazendo Logo, a mãe de Menon (1) a luz foi trazendo,Ao sono longo punha certo atalho; E ao longo sono punha o devido atalho;Iam-se as sombras lentas desfazendo, As lentas sombras iam-se desfazendo,Sobre as flores da terra em frio orvalho, Sobre as flores da terra, frias com o orvalho,Quando o Rei Melindano se embarcava, E nisto, o rei Melindano já embarcava,A ver a frota que no mar estava. Para ver a frota que no mar estava.

1) Mãe de Menon: A aurora. Menon era rei da Etiópia, filho daAurora e de Titão.

Viam-se em derredor ferver as praias, 93o Via-se ao redor que ferviam a praias,Da gente que a ver só concorre leda; Com a gente que só para ver acorre contente,Luzem da fina púrpura as cabaias, Brilham as finas púrpuras das cabaias (1)Lustram os panos da tecida seda. Reluzem os tecidos de seda daquela gente.Em lugar de guerreiras azagaias Em lugar das guerreiras azagaias (2)E do arco que os cornos arremeda E das armas que os arcos da lua imitam toscamente,Da Lüa, trazem ramos de palmeira, Trazem pacíficos ramos de palmeiras,Dos que vencem, coroa verdadeira. Que dos vencedores é a coroa verdadeira.

1) Cabaias: tecidos de seda, muito leve. Túnicas desse tecido.

2) Azagaias: lanças curtas, para arremesso.

Um batel grande e largo, que toldado 94o Um bote grande e largo, enfeitadoVinha de sedas de diversas cores, Com sedas de diversas cores,Traz o Rei de Melinde, acompanhado Traz o rei de Melinde, acompanhadoDe nobres de seu Reino e de senhores. Pelos nobres do seu reino e por outros ilustres senhores.Vem de ricos vestidos adornado, Com ricas vestes ele vem adornado,Segundo seus costumes e primores; Segundo os seus costumes e os seus valores;Na cabeça, üa fota guarnecida Na cabeça, traz uma touca (turbante) guarnecidaDe ouro, e de seda e de algodão tecida; De ouro e que de seda e de algodão era muito bem tecida.

Cabaia de Damasco rico e dino, 95o Vestia-se com cabaia de Damasco (1), tecido rico e digno,Da Tíria cor, entre eles estimada; Da cor Tíria (2), que entre eles é muito estimada;Um colar ao pescoço, de ouro fino, Trazia no pescoço um colar de ouro muito fino,Onde a matéria da obra é superada, Onde o material e a arte era aprimoradaCum resplandor reluze adamantino; Com um resplendor que reluz cristalino;Na cinta a rica adaga, bem lavrada; No cinto, traz uma adaga (punhal) rica e bem trabalhada;Nas alparcas dos pés, em fim de tudo, Nas sandálias dos pés, no fim de tudo,Cobrem ouro e aljôfar ao veludo. A pérola e o ouro recobre o veludo.

1) Cabaias de Damasco: tecido de seda, muito leve. Túnicas usadas

por alguns povos africanos e asiáticos.2) Cor Tíria: vermelho escuro.

Com um redondo emparo alto de seda, 96o Com um guarda-sol redondo, alto e de seda perfeita,Nüa alta e dourada hástea enxerido, Que numa alta e dourada haste estava inserido,Um ministro à solar quentura veda Um pajem protege do calor do sol e os seus raios evitaQue não ofenda e queime o Rei subido. Para que não incomodem ao seu rei querido.Música traz na proa, estranha e leda, Trazem música na proa, alegre, mas esquisita,De áspero som, horríssono ao ouvido, De som áspero, horrível ao ouvido,De trombetas arcadas em redondo, Saída de uma trombeta de formato redondo,Que, sem concerto, fazem rudo estrondo. Fazendo pelos ares um terrível estrondo.

Não menos guarnecido, o Lusitano, 97o Não menos bem vestido estava o lusitano,Nos seus batéis, da frota se partia, Que nos seus botes, da frota já partia,A receber no mar o Melindano, Para recepcionar no mar ao rei Melindano,Com lustrosa e honrada companhia. Com uma ilustre e honrada companhia.Vestido o Gama vem ao modo Hispano, O Gama ia vestido ao modo Hispano (1),

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Mas Francesa era a roupa que vestia, Mas era francesa a roupa que vestia,De cetim da Adriática Veneza, Feita com cetim da Adriática Veneza (2),Carmesi, cor que a gente tanto preza; Da cor vermelha, que a gente tanto preza.

1) Hispano: à maneira que se julgava elegante na península Ibérica,

também chamada de Hispânia.2) Adriática Veneza: a cidade Veneza, na Itália, que no

tempo de Camõesera uma república e o centro de comércio e do luxo.

De botões d'ouro as mangas vêm tomadas 98o Com botões de ouro as mangas do casaco eram ornadas,Onde o Sol, reluzindo, a vista cega; Nas quais, o sol reluzindo, a vista cega;As calças soldadescas, recamadas As calças, no estilo militar, eram enfeitadasDo metal que Fortuna a tantos nega; Com o ouro que a sorte a tantas pessoas nega;E com pontas do mesmo, delicadas, E com pontas, também de ouro, muito delicadas,Os golpes do gibão ajunta e achega; As lapelas do colete ele junta e achega;Ao Itálico modo a áurea espada; No modo italiano ele leva a dourada espada;Pruma na gorra, um pouco declinada. No gorro tinha uma pluma, um pouco inclinada.

Nos de sua companhia se mostrava 99o Nos trajes de seus acompanhantes se mostravaDa tinta que dá o múrice excelente A tinta que produzem os múrices (1) excelentes,A vária cor, que os olhos alegrava, A variada cor que os olhos alegrava,E a maneira do trajo diferente. E a diversidade dos trajes diferentes.Tal o fermoso esmalte se notava Tanto o belo colorido daquelas vestes se destacava,Dos vestidos, olhados juntamente, Que quando eram olhadas juntamenteQual aparece o arco rutilante Parecia ver-se o arco brilhanteDa bela Ninfa, filha de Taumante. Da bela Ninfa, filha de Taumante (2).

1) Múrices: moluscos que produzem o pigmento para a tinta púrpura.

2) Taumante: filho do Mar e da Terra. Taumante era o pai de Íris. O arco-

íris.

Sonorosas trombetas incitavam 100o Os lusos tocavam sonoras trombetas que incitavamOs ânimos alegres, ressoando; Os alegres ânimos e que, pelo mar, iam ressoando;Dos Mouros os batéis o mar coalhavam, Os botes dos mouros coalhavamOs toldos pelas águas arrojando; O mar; e as lonas, pelas águas, iam passando;As bombardas horríssonas bramavam, Os furiosos canhões disparavamCom as nuvens de fumo o Sol tomando; Para o alto e a fumaça ia ocultandoAmiúdam-se os brados acendidos, O sol; repetem-se os estrondos acendidos,Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos. E os mouros, com as mãos, protegem os ouvidos.

Já no batel entrou do Capitão 101o Logo o rei entrou no bote do capitão,O Rei, que nos seus braços o levava; A quem, efusivamente, abraçava;Ele, co a cortesia que a razão E, com a cortesia que requeria a ocasião,(Por ser Rei) requeria, lhe falava. (Por ser um rei), assim lhe falava.Cüas mostras de espanto e admiração, Dando mostras de espanto e admiração,O Mouro o gesto e o modo lhe notava, Ao rosto e aos modos do capitão atentamente observava,Como quem em mui grande estima tinha Como quem em grande estima tinhaGente que de tão longe à Índia vinha. Aquela gente que de tão longe, para a Índia vinha.

E com grandes palavras lhe oferece 102o E com generosas palavras lhe ofereceTudo o que de seus reinos lhe cumprisse, Tudo aquilo que do seu reino o capitão necessitasse;E que, se mantimento lhe falece, Que se de mantimentos ele carece,Como se próprio fosse, lho pedisse. Como se fosse dele próprio, que lhe pedisse.Diz-lhe mais que por fama bem conhece Também lhe diz que, por fama, bem conhece,A gente Lusitana, sem que a visse; A gente lusitana, sem que a visse;Que já ouviu dizer que noutra terra E que já ouviu dizer que noutra terraCom gente de sua Lei tivesse guerra; Com gente de sua religião já tiveram uma feroz guerra;

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E como por toda Africa se soa, 103o E que por toda a África ainda ecoa,Lhe diz, os grandes feitos que fizeram Os grandes feitos que lá fizeram,Quando nela ganharam a coroa Quando ali ganharam a coroaDo Reino onde as Hespéridas viveram; Do reino onde as Hespérides (1) viveram;E com muitas palavras apregoa E com muitas palavras apregoaO menos que os de Luso mereceram Até a menor das proezas que os lusos fizeramE o mais que pela fama o Rei sabia; E tudo mais que já sabia.Mas desta sorte o Gama respondia: E deste modo o Gama respondia:

1) Hespérides: filhas de Atlas que possuíam um jardim comfrutos de ouro, guardados por um dragão de cem cabeças.Hércules matou o dragão e apoderou-se dos frutos, num deseus trabalhos. Camões localiza este jardim em Marrocos,

África do norte.

- «Ó tu que, só, tiveste piedade, 104o Ó tu, que foi o único que tiveste piedade,Rei benigno, da gente Lusitana, Rei benigno, da pobre gente lusitana,Que com tanta miséria e adversidade Que com tanta dificuldade e adversidadeDos mares exprimenta a fúria insana: Enfrenta o mar e a sua fúria insana;Aquela alta e divina Eternidade Que a sublime Divina Eternidade,Que o Céu revolve e rege a gente humana, Que governa o céu e rege a gente humana,Pois que de ti tais obras recebemos, Pelos favores que de ti recebemos,Te pague o que nós outros não podemos. Pague-lhe, pois a tanta bondade, retribuir não podemos.

«Tu só, de todos quantos queima Apolo, 105o Apenas tu, entre todos os povos que são queimados pelo sol de Apolo,Nos recebes em paz, do mar profundo; Recebe-nos em paz, vindos do mar profundo;Em ti, dos ventos hórridos de Eolo Em ti, contra os horríveis ventos do deus Eolo (1)Refúgio achamos, bom, fido e jocundo. Achamos um refúgio bom, fiel e jucundo (2).Enquanto apacentar o largo Pólo E te digo que enquanto as estrelas iluminarem o vasto Pólo (3)As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo, E o sol der a sua luz ao mundo,Onde quer que eu viver, com fama e glória Onde quer que eu viva, com fama e glória,Viverão teus louvores em memória.» Louvarei o teu nome, que ficará sempre na memória.

1) Eolo: deus dos ventos.2) Jucundo: alegre, aprazível.3) Pólo: neste contexto, o Mundo.

Isto dizendo, os barcos vão remando 106o Enquanto falam, os barcos vão rumandoPera a frota, que o Mouro ver deseja; Para a frota, que o mouro tanto desejaVão as naus üa e üa rodeando, Ver; e, uma a uma, as naus vão rodeando,Por que de todas tudo note e veja. Para que a todas ele conheça e veja.Mas pera o Céu Vulcano fuzilando, Enquanto isso, os canhões de Vulcano (o deus do fogo) vão disparandoA frota co as bombardas o festeja Para o alto; e assim, a frota, ao rei festeja.E as trombetas canoras lhe tangiam; As sonoras trombetas os lusos vão tocando;Cos anafis os Mouros respondiam. E os mouros, os seus anafis (1) vão ecoando.

1) Anafis: instrumento de sopro dos mouros.

Mas, despois de ser tudo já notado 107o Depois de tudo ter sido observadoDo generoso Mouro, que pasmava Pelo generoso rei Mouro, que se assustavaOuvindo o instrumento inusitado, Ouvindo os canhões, um som que lhe era inusitado,Que tamanho terror em si mostrava, E que tanto terror, por si, causava,Mandava estar quieto e ancorado O rei ordena que fique quieto e ancoradoN'água o batel ligeiro que os levava, O ligeiro barco que os levava,Por falar de vagar co forte Gama Pois queria, calmamente, falar com o GamaNas cousas de que tem notícia e fama. Sobre as coisas de que tem notícia por sua fama.

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Em práticas o Mouro diferentes 108o O mouro com perguntas diferentesSe deleitava, perguntando agora Deliciava-se, perguntando numa horaPelas guerras famosas e excelentes Pelas guerras famosas e valentesCo povo havidas que a Mafoma adora; Contra o povo que a Mafoma (1) adora;Agora lhe pergunta pelas gentes Depois indaga sobre as gentesDe toda a Hespéria última, onde mora; De toda a Hespéria (2), onde o Gama mora;Agora, pelos povos seus vizinhos, Depois sobre os povos que são seus vizinhos,Agora, pelos húmidos caminhos. E, noutro momento, sobre os marítimos caminhos.

1) Mafoma: Maomé.2) Hespéria: para Camões, a península Ibérica.

- «Mas antes, valeroso Capitão, 109o Mas antes, valoroso capitão,Nos conta (lhe dizia), diligente, Conta-nos, o mouro dizia, diligente,Da terra tua o clima e região Sobre a tua terra, o seu clima e a localizaçãoDo mundo onde morais, distintamente; Desta região onde morais, detalhadamente;E assi de vossa antiga geração, Bem como sobre a vossa antepassada geração,E o princípio do Reino tão potente, E como foi o inicio do teu reino tão potente;Cos sucessos das guerras do começo, Fale-nos também sobre as vitórias nas guerras do começo,Que, sem sabê-las, sei que são de preço; As quais, mesmo sem conhecê-las, sei que tem valor e merecem apreço.

«E assi também nos conta dos rodeios 110o Também nos conte sobre as voltas e os meiosLongos em que te traz o Mar irado, Que fizestes e que utilizastes no mar irado,Vendo os costumes bárbaros, alheios, Vendo os costumes bárbaros e feios,Que a nossa Africa ruda tem criado; Que a nossa selvagem África tem criado.Conta, que agora vêm cos áureos freios Conta; que agora já vêm, com dourados freios,Os cavalos que o carro marchetado Os cavalos que trazem o carro adornadoDo novo Sol, da fria Aurora trazem; Do novo dia de sol e que da fria Aurora vêm;O vento dorme, o mar e as ondas jazem. O vento repousa e as ondas do mar, calmas já se têm.

«E não menos co tempo se parece 111o E não menos com a calma do clima se pareceO desejo de ouvir-te o que contares; O desejo que sinto de ouvir o que contares;Que quem há que por fama não conhece Pois existe alguém que, por sua fama, desconheceAs obras Portuguesas singulares? As proezas dos portugueses invulgares?Não tanto desviado resplandece Não penses que entre nós o saber não resplandece,De nós o claro Sol, pera julgares A clara luz do conhecimento, para julgaresQue os Melindanos têm tão rudo peito Que os Melindanos tem um peitoQue não estimem muito um grande feito. Tão rude, que não apreciem a um grande feito.

«Cometeram soberbos os Gigantes, 112o Se desafiaram, os arrogantes Gigantes (1)Com guerra vã, o Olimpo claro e puro; Com uma inútil guerra, o Olimpo claro e puro;Tentou Perito e Teseu, de ignorantes, Se Perito (2) e Teseu (3) afrontaram, por serem ignorantes,O Reino de Plutão, horrendo e escuro. O reino de Plutão (4), horrível e escuro;Se houve feitos no mundo tão possantes, Se houve no mundo proezas tão brilhantes,Não menos é trabalho ilustre e duro, Não é menos heróico o feito ilustre e duro,Quanto foi cometer Inferno e Céu, Em relação a quem afrontou o Inferno e o Céu,Que outrem cometa a fúria de Nereu. O vosso desafio, ó luso, quando enfrentaste a fúria do mar de Nereu (5).

1) Gigantes: os Titãs, os seis filhos da Terra, que tentaram

atingir o mas foram derrotados por Júpiter que os soterrou debaixo dos montes que eles

Olimpo, utilizando os montes como escadas.2) Perito: rei da Tessália, amigo de Teseu, que desceu ao

Inferno para roubar Prosérpina, mulher de Plutão.3) Teseu: herói grego, filho de Egeu, rei de Atenas. Junto

com Perito, desceu ao interno para raptar a mulher de Plutão.4) Plutão: o rei do Inferno. O deus dos mortos.

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5) Nereu: deus marinho e o pai das Nereidas.

«Queimou o sagrado templo de Diana, 113o Por ter incendiado o sagrado templo de Diana (1),Do sutil Tesifónio fabricado, Que pelo hábil Tesifônio (2) tinha sido edificado,Heróstrato, por ser da gente humana Heróstrato (3), entre a gente humana,Conhecido no mundo e nomeado. Pretendeu ficar conhecido em todo mundo e muito afamado.Se também com tais obras nos engana E se tantos outros, com fúteis obras, nos engana,O desejo de um nome aventajado, Por que desejam ter um nome celebrado,Mais razão há que queira eterna glória Mais razões para uma eterna glóriaQuem faz obras tão dinas de memória.». Tendes vós, ó lusos, que para sempre ficarão na história.

1) Diana: a deusa da caça. Filha de Júpiter e de Latona. Irmã de Apolo.

2) Tesifônio: o arquiteto grego que construiu o templo de Diana em Éfeso.

3) Heróstrato: éfeso que para passar para a historia, incendiou o

Templo de Diana.

CCanto IIIanto III

AGORA tu, Calíope, me ensina 1o Agora tu, Calíope (1), me ensinaO que contou ao Rei o ilustre Gama; A relatar o que contou ao rei, o ilustre Vasco da Gama;Inspira imortal canto e voz divina Inspira um canto imortal e uma voz divina

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Neste peito mortal, que tanto te ama. Neste meu coração mortal, que tanto te ama.Assi o claro inventor da Medicina, E então farei com que Apolo, o deus da medicina,De quem Orfeu pariste, ó linda Dama, E com quem gerastes Orfeu (2), ó linda dama.Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe, Jamais te troque por Clicie (3), Leucotoe (4) ou Dane (5)Te negue o amor devido, como soe. E nem te negue o amor devido ou lhe engane.

1) Calíope: Musa da poesia épica e da eloqüência, mãe de Orfeu.

2) Orfeu: Poeta e músico da antiguidade, natural da Trácia3) Clicie: Ninfa apaixonada por Apolo que, para acompanhá-

lo sempre, transformou-se em girassol.4) Leucotoe: Ninfa amada por Apolo.5) Dane: Ninfa que ao ser assediada por Apolo pediu socorro

à mãe Terra e foi metamorfoseada em Loureiro.

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo, 2o Ponha, ninfa, arte em meu desejoComo merece a gente Lusitana; De louvar como merece a gente lusitana;Que veja e saiba o mundo que do Tejo Que todo mundo saiba e veja que às margens do rio TejoO licor de Aganipe corre e mana. A água da fonte de Aganipe (1) corre e emana.Deixa as flores de Pindo, que já vejo Deixa as flores do monte Pindo (2) que eu já vejoBanhar-me Apolo na água soberana; Os raios de Apolo (do sol) banharem-me em sua luz soberana;Senão direi que tens algum receio Senão direi que tens receioQue se escureça o teu querido Orfeio. Que o meu canto obscureça o talento do teu querido Orfeio (3).

1) Fonte de Aganipe: Situada no monte Helicon, na Grécia, suas águas

inspiravam os poetas.2) Monte Pindo: situado na Grécia, consagrado a Apolo e às

musas.3) Orfeio: ou Orfeu, vide nota 2 da estrofe 1.

Prontos estavam todos escuitando 3o Estavam todos prontos, escutandoO que o sublime Gama contaria, O que o sublime Vasco da Gama contaria;Quando, despois de um pouco estar cuidando Ele, depois de estar por algum tempo pensando,Alevantando o rosto, assi dizia: Levantando o rosto, assim dizia:- «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando - Ordenas, ó rei, que eu vá falandoDe minha gente a grão genealogia; Sobre a minha gente e sobre a nossa genealogia;Não me mandas contar estranha história, Não me ordenas contar dos estrangeiros a história,Mas mandas-me louvar dos meus a glória. Mas manda-me louvar de meus patrícios a glória.

«Que outrem possa louvar esforço alheio, 4o Que se conte e se louve o êxito alheio,Cousa é que se costuma e se deseja; É o que se costuma e é o desejado;Mas louvar os meus próprios, arreceio Mas falar sobre as glórias dos conterrâneos, eu receioQue louvor tão suspeito mal me esteja; Que seja suspeito e inadequado;E, pera dizer tudo, temo e creio E, para dizer tudo o que devo, eu creioQue qualquer longo tempo curto seja; Que o tempo é curto por maior que seja;Mas, pois o mandas, tudo se te deve; Mas se o nobre rei ordena, obedecer se deve;Irei contra o que devo, e serei breve. E mesmo sendo contrário a auto-exaltação, falarei de modo breve.

«Além disso, o que a tudo enfim me obriga 5o Além disso, o que finalmente me obrigaÉ não poder mentir no que disser, É não poder mentir naquilo que disser,Porque de feitos tais, por mais que diga, Mesmo que de tais feitos, por mais que se diga,Mais me há-de ficar inda por dizer. Sempre reste algo a se dizer.Mas, porque nisto a ordem leve e siga, Mas, para que haja seqüência e ordem, na narrativa,Segundo o que desejas de saber, Conforme o que desejas saber,Primeiro tratarei da larga terra, Primeiro, falarei da vasta terra,Despois direi da sanguinosa guerra. E depois, relatarei a sangrenta guerra.

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«Entre a Zona que o Cancro senhoreia, 6o Entre a região que o Trópico de Câncer senhoreia,Meta Setentrional do Sol luzente, Meta ao norte do sol ardente,E aquela que por fria se arreceia E aquela terra (Ártico) que de tão fria se receia,Tanto, como a do meio por ardente, Tanto quanto a do meio (Na linha do Equador) por ser muito quente,Jaz a soberba Europa, a quem rodeia, Fica a altiva Europa, a quem rodeiaPela parte do Arcturo e do Ocidente. No norte, onde brilha a estrela de Arcturo (1) e no ocidente,Com suas salsas ondas o Oceano, As ondas salgadas do Atlântico Oceano,E pela Austral, o Mar Mediterrano. E, no sul, as águas do mar Mediterrâneo.

1) Arcturo, estrela da constelação do Boiadeiro, na cauda da Ursa Maior.

Da parte donde o dia vem nascendo, 7o No lado do Oriente, onde se vê o dia nascendo,Com Asia se avizinha; mas o rio Faz fronteira com a Ásia; mas o rio (1)Que dos Montes Rifeios vai correndo Que dos montes Rifeios (2) desce correndo,Na alagoa Meótis, curvo e frio, Na lagoa Meótis (3), curvo e frio,As divide, e o mar que, fero e horrendo, As separa, assim como o mar feroz e horrendoViu dos Gregos o irado senhorio, Que viu dos gregos o brutal domínio,Onde agora de Tróia triunfante E onde, agora, do que foi a Tróia triunfanteNão vê mais que a memória o navegante. Nada além de uma recordação vislumbra o navegante.

1) Rio Don, na Citia.2) Rifeios: Montanha na Citia, região da Ásia, de clima muito

frio.3) Meótis: Mar de Azof, sul da Rússia.

«Lá onde mais debaxo está do Pólo 8o Logo abaixo do Ártico Pólo,Os Montes Hiperbóreos aparecem Os montes Hiperbóreos (1) aparecemE aqueles onde sempre sopra Eolo, E os montes fustigados pelos ventos de Eolo (2),E co nome dos sopros se ennobrecem Os quais, com os nomes desses ventos se enobrecem.Aqui tão pouca força têm de Apolo Ali são tão fracos os raios de Apolo (3)Os raios que no mundo resplandecem, Que no mundo resplandecem,que a nEve está contino pelos montes, Que a neve é eterna nos montes,Gelado o mar, geladas sempre as fontes. Gelado é o mar e congeladas são as fontes.

1) Hiperbóreos: Montes que existiriam no norte da Europa e da Ásia.

2) Eolo: o deus dos ventos3) Apolo: deus do sol

«Aqui dos Citas grande quantidade 9o Ali vivem os Citas em grande quantidade,Vivem, que antigamente grande guerra Os quais tiveram uma grande guerra,Tiveram, sobre a humana antiguidade, No principio do Mundo, na antiguidade,Cos que tinham antão a Egípcia terra; Contra aqueles que habitavam a egípcia terra.Mas quem tão fora estava da verdade Mas para saber-se quem estava com a razão e a verdade(Já que o juízo humano tanto erra), (Já que o juízo humano tanto erra)Pera que do mais certo se informara, Para com mais certeza se informarAo campo Damasceno o perguntara. Deve-se dirigir ao Campo Damasceno (1) e perguntar.

1) Campo Damasceno: o paraíso terrestre.

«Agora nestas partes se nomeia 10o Mais abaixo a região é formadaA Lápia fria, a inculta Noruega, Pela Lápia (1) fria, pela rude Noruega,Escandinávia Ilha, que se arreia Pela Escandinávia Ilha (2), que é celebradaDas vitórias que Itália não lhe nega. Por vitórias que a Itália não lhe nega.Aqui, enquanto as águas não refreia Ali, enquanto a água não fica congeladaO congelado Inverno, se navega Durante o rigoroso inverno, se navegaUm braço do Sarmático Oceano Por um braço do Sarmático Oceano (3)Pelo Brús[s]io, Suécio e frio Dano. Pelo Brússio (4), Suécio (5) e a fria Dano (6).

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1) Lápia: Lapônia, vasta região situada no norte da Europa.2) Escandinava Ilha: na verdade, uma península. A atual

Suécia3) O mar Báltico. 4) Natural da Brússia ou Prússia. 5) Natural da Suécia6) Nome antigo da Dinamarca.

«Entre este Mar e o Tánais vive estranha 11o Entre o mar Báltico e o rio Don vivem uma estranhaGente, Rutenos, Moscos e Livónios, Gente – Rutenos (1), Moscos (2) e Livônios -,Sármatas outro tempo; e na montanha Sarmátas (4) em outros tempos; e, na montanhaHircínia os Marcomanos são Polónios. Hircina (5), vivem os Marcomanos chamados de Polônios (6)Sujeitos ao Império de Alemanha Que são súditos do Império da Alemanha,São Saxones, Boémios e Panónios Sáxones (7), Boêmios (8) e Panonios (9)E outras várias nações, que o Reno frio E vários outros povos, vivem na região que o frio rio RenoLava, e o Danúbio, Amásis e Álbis rio. Banha, junto com os rios Danúbio, Amasis (10) e o Albis (11), tão sereno.

1) Rutenos: eslavos, do sul da Rússia, da Hungria e da Lituânia.

2) Moscos: natural da Moscóvia, Rússia.3) Livôneos: natural da Livônia, norte da Europa.4) Sarmátas: natural da Sarmácia, Europa central.5) Hircina: cordilheira na Europa central. 6) Marcomanos/Polônios: antigo povo germânico que invadiu

a Itália e foi rechaçado por Marco Aurélio. Camões os identifica com

poloneses.7) Sáxones: natural da Saxônia, atual Alemanha. 8) Boêmios: natural da Boêmia, atual região na Eslováquia.9) Panonios: natural da Panonia, região ao sul do Danúbio, aproximadamente onde fica a Iugoslávia atual. 10) Rio Amasis: na Alemanha, atualmente chamado de Ems. 11) Albis: o rio Elba.

«Entre o remoto Istro e o claro Estreito 12o Entre o longínquo rio Danúbio e o claro Estreito (1)Aonde Hele deixou, co nome, a vida, Onde Hele (2) deixou o nome e perdeu a vidaEstão os Traces de robusto peito, Estão os Traces (3) de valente peito,Do fero Marte pátria tão querida, Naquela pátria que pelo feroz Marte (4) é tão querida,Onde, co Hemo, o Ródope sujeito Onde, junto com o Hemo (5) o Ródope (6) está sujeitoAo Otomano está, que sometida Ao otomano (7), que tem submetidaBizâncio tem a seu serviço indino: Bizâncio (8) ao seu serviço indigno.- Boa injúria do grande Costantino! Uma grande infâmia ao ilustre Constantino (9).

1) Estreito: que separa Tróia do Quersoneso.2) Hele: filha de Atamante, rei da Beócia, que para escapar

do ódio de sua sogra fugiu num carneiro com pelos de ouro que devia

levá-la a Cólquida, mas ao atravessar o Estreito caiu no mar e naquele

ponto o local passou a ser chamado de Helesponto.3) Traces: naturais de uma região da Grécia antiga.4) Marte: deus da guerra que amava a Trácia.5) Hemo: antigo nome da região do Bálcãs, na Europa.6) Ródope: montanha na Trácia, onde vivia Orfeu, que

segundo a lenda, tocava uma música tão bela que as árvores se reuniam para

ouvi-la.7) Otomano: Turco, mouro.8) Bizâncio: antigo nome de Constantinopla.9) Constantino: Constantino Magno, imperador romano, que

estabeleceu

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definitivamente o cristianismo como a religião oficial do império.

Seu nome associa-se à defesa zelosa do cristianismo.

«Logo de Macedónia estão as gentes, 13o Na Macedônia (1) vivem as gentes,A quem lava do Áxio a água fria; Que o rio Axio (2) banha com a sua água fria;E vós também, ó terras excelentes Mais no sul estão a terra e o povo excelentesNos costumes, engenhos e ousadia, Que brilham por seus costumes, artes e valentia,Que criastes os peitos eloquentes Terra que gerou os grandes poetas e oradoresE os juízos de alta fantasia, E os grandes mestres da alta filosofiaCom quem tu, clara Grécia, o Céu penetras, Com os quais, Grécia, tu no céu penetrasE não menos por armas, que por letras. (Tanto pelas proezas militares quanto pelas letras).

1) Macedônia: região localizada no norte da Grécia antiga.2) Rio Axio: atualmente chamado de Vardar.

«Logo os Dálmatas vivem; e no seio 14o Perto dali, os Dálmatas (1) vivem; e no seioOnde Antenor já muros levantou, De onde Antenor (2) as muralhas levantou,A soberba Veneza está no meio A majestosa Veneza está bem no meioDas águas, - que tão baxa começou. Das rasas águas, onde a cidade começou.Da terra um braço vem ao mar, que, cheio Dela uma faixa de terra vem até o mar, que quando está cheio,De esforço, nações várias sujeitou; Com violência, a muitos povos já arruinou;Braço forte, de gente sublimada Mas tem o braço forte aquela gente elevadaNão menos nos engenhos que na espada. Tanto na engenhosidade quanto no manejo da espada.

1) Dálmatas, natural da Dalmácia, região da península balcânica,

ao longo do mar Adriático.2) Antenor, nobre troiano que escondeu Ulisses, traindo a

pátria e que depois atravessando a Trácia e a Iliria chegou ao mar

Adriático. Posteriormente fundou a cidade de Pádua.

«Em torno o cerca o Reino Neptunino, 15o A região é cercada pelo oceanos netuninos (1),Cos muros naturais por outra parte; E por fronteiras naturais, em sua outra parte;Pelo meio o divide o Apenino, Pelo meio é dividida pelos montes Apeninos,Que tão ilustre fez o pátrio Marte; Que tanto engrandecem a pátria de Marte;Mas, despois que o Porteiro tem divino, Mas depois que o Papa, porteiro divino,Perdendo o esforço veio e bélica arte; Foi se perdendo na força e na guerreira arte,Pobre está já de antiga potestade. Diminuída está a sua antiga prosperidade,Tanto Deus se contenta de humildade! Vez que Deus privilegia a humildade!

1) Oceanos netuninos: referência ao deus Netuno, dos mares.

«Gália ali se verá, que nomeada 16o A noroeste, está a Gália (França), assim chamadaCos Cesáreos triunfos foi no mundo; Desde os triunfos dos Cesáres (imperadores romanos) no mundo;Que do Séquana e Ródano é regada Que pelos rios Séquana (1) e Ródono (2) é banhadaE do Garuna frio e Reno fundo. Assim como pelo frio Garone (3) e pelo Reno profundo,Logo os montes da Ninfa sepultada, Onde os montes da Ninfa Sepultada (4),Pirene, se alevantam, que, segundo Pirene (montes Pirineus) se erguem, dos quais, segundoAntiguidades contam, quando arderam, Contava-se na antiguidade, quando se inflamaram,Rios de ouro e de prata antão correram. Rios de ouro e de prata jorraram.

1 Séquana: nome latino do rio francês Sena. 2 Ródono: rio da França3 Garone: rio francês que nasce dos Pirineus.4) Pirene, filha do rei Bébrice, seduzida por Hércules deu à

luz

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uma serpente. Fugiu para a montanha onde foi morta pelas feras.

Hércules prestou-lhe as honras fúnebres e enterrou-a naquela

serra que passou a ser chamada de Pirineus.

«Eis aqui se descobre a nobre Espanha, 17o A sudoeste da França fica a nobre Espanha,Como cabeça ali de Europa toda, Como se fosse a cabeça da Europa todaEm cujo senhorio e glória estranha Em cujo poder e glórias no estrangeiro, na terra estranha,Muitas voltas tem dado a fatal roda; Muitas voltas tem dado a sorte e a sua fatal roda;Mas nunca poderá, com força ou manha, Porém, nunca poderá com força ou artimanha,A Fortuna inquieta por-lhe noda A roda da sorte colocar-lhe obstáculos ou nódoa,Que lha não tire o esforço e ousadia Que não sejam superados com força e valentiaDos belicosos peitos que em si cria. Pelos generosos corações dos Homens que ela cria.

«Com Tingitânia entesta; e ali parece 18o No sul, quase que encosta na Tingitânia (1); e ali pareceQue quer fechar o Mar Mediterrano Que quer fechar o mar MediterrâneoOnde o sabido Estreito se ennobrece Onde o conhecido Estreito (2) se enobreceCo extremo trabalho do Tebano. Com o extraordinário trabalho do Tebano (3).Com nações diferentes se engrandece, No seu território há diversas regiões, com as quais se engrandece,Cercadas com as ondas do Oceano; Cercada pelas águas do Oceano;Todas de tal nobreza e tal valor Cada uma dessas regiões tem tanto valorQue qualquer delas cuida que é milhor. Que cada qual imagina-se a melhor e de mais vigor.

1) Tingitânia: a África do Norte, onde fica o Tanger. Atual Marrocos.

2) Referência ao Estreito de Gibraltar.3) Tebano: referência as colunas de Hércules, no Estreito de

Gibraltar.

«Tem o Tarragonês, que se fez claro 19o Há o Tarragônes (1) que se fez ilustre e preclaroSujeitando Parténope inquieta; Dominando a cidade de Parténope (2) inquieta;O Navarro, as Astúrias, que reparo Também há o Navarro (3), as Astúrias (4) que merecem reparoJá foram contra a gente Mahometa; Por terem combatido os seguidores de Mahometa (5);Tem o Galego cauto e o grande e raro Existe o cauteloso Galego (6) e o grande e raroCastelhano, a quem fez o seu Planeta Castelhano (7) cujo destino neste planetaRestituidor de Espanha e senhor dela; Tornou-o o restituídor da grandeza da Espanha e o principal reino delaBétis, Lião, Granada, com Castela. Também há os reinos de Bétis (8), Leão (9), Granada (10) e Castela (11).

1) Tarragônes:Natural da Tarragona, nordeste da Espanha.2) Parténope: Nome poético da cidade de Nápoles. Cidade eporto situado no sul da Itália. Depois de ter sido dominada

por normando, alemães e franceses, Nápoles pertencia aos

aragoneses, quando Camões escreveu a presente obra.3) Navarro: Natural de Navarra, norte da Espanha.4) Astúrias: Região situada no norte da Espanha.5) Mahometa: islamita, o seguidor da religião de Maomé.6) Galego: Natural da Galizia, norte da Espanha.7) Castelhano: Natural de Castela, centro da Espanha. O principal reino ou província na época.8) Bétis: região que aproximadamente situa-se na atual

Andaluzia.9) Leão: uma das mais poderosas províncias da Espanha, na

época. 10) Granada: cidade da Espanha, na Andaluzia, que até 1492

foi a capital de um pequeno estado árabe.

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11) Castela: No contexto de “Os Lusíadas” é o principal reino da

Espanha e tradicional adversário de Portugal.

«Eis aqui, quási cume da cabeça 20o Por fim, quase no cume da cabeçaDe Europa toda, o Reino Lusitano, De toda a Europa, eis o reino Lusitano,Onde a terra se acaba e o mar começa Onde a terra se acaba e o mar começaE onde Febo repousa no Oceano. E onde Febo (1) repousa no Oceano.Este quis o Céu justo que floreça Quis o céu justo, que este país floresçaNas armas contra o torpe Mauritano, Nas lutas contra o sórdido Mauritano (2),Deitando-o de si fora; e lá na ardente Expulsando-o do seu território; perseguindo-o lá na ardenteÁfrica estar quieto o não consente. África, onde ter paz a força lusitana não consente.

1) Febo: outro nome de Apolo, o deus do sol. Neste caso, o próprio sol.

2) Mauritano: o mouro.

«Esta é a ditosa pátria minha amada, 21o Esta é a minha pátria, tão generosa e amada,À qual se o Céu me dá que eu sem perigo Na qual, se o céu permitir que eu escape do perigoTorne, com esta empresa já acabada, E retorne, com esta expedição terminada,Acabe-se esta luz ali comigo. Ficarei até que a morte me leve consigo.Esta foi Lusitânia, derivada O nome de Lusitânia é derivadoDe Luso ou Lisa, que de Baco antigo De Luso ou Lisa, que de Baco (1), deus antigo,Filhos foram, parece, ou companheiros, Parece que foram filhos ou companheiros,E nela antão os íncolas primeiros. E nela, foram os que habitaram primeiro.

1) Baco: o deus do vinho.

«Desta o pastor nasceu que no seu nome 22o Destes ancestrais descendeu o pastor (1) cujo nome,Se vê que de homem forte os feitos teve; Já indica as viris e valorosas proezas que ele teve;Cuja fama ninguém virá que dome, E de quem a reputação não há quem tomePois a grande de Roma não se atreve. Pois nem mesmo a grande Roma, a isso se atreve.Esta, o Velho que os filhos próprios come, Essa reputação, o tempo que devora os próprios filhos (2),Por decreto do Céu, ligeiro e leve, Por ordem do céu, levou leve e ligeiroVeio a fazer no mundo tanta parte, Para todas as nações do estrangeiro,Criando-a Reino ilustre; e foi destarte: Criando um reino ilustre; assim foi o inicio do povo altaneiro.

1) Pastor: Viriato, nascido entre o rio Tejo e o Douro foi pastor,

bandoleiro e depois chefe militar que aterrorizou os exércitos

romanos. Do seu nome é que derivaria o adjetivo “viril” para as proezas.

2) Camões alude à marcha do Tempo. O "Velho" é uma referência ao Tempo

que ao passar vai consumindo as horas, que sendo geradas por ele, seriam

suas filhas.

«Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha, 23o Tempos depois, um rei chamado Afonso (1), da Espanha (2),Que fez aos Sarracenos tanta guerra, Fez contra os povos mouros tanta guerra,Que, por armas sanguinas, força e manha, Que através de sangrentas batalhas, força e artimanha,A muitos fez perder a vida e a terra. De muitos sarracenos tomou a vida e conquistou a terra.Voando deste Rei a fama estranha A fama desse rei ficou tamanha,Do Herculano Calpe à Cáspia Serra, Desde o Herculano Calpe (3) até a Cáspia serra (4),Muitos, pera na guerra esclarecer-se, Que muitos guerreiros estrangeiros, para glorificar-seVinham a ele e à morte oferecer-se. Na guerra, juntaram-se a ele e para a morte vinham oferecer-se.

1) Afonso: rei da península Ibérica.

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2) Espanha: neste contexto, toda a península Ibérica, incluindo Portugal.

3) Herculano Calpe: antigo nome do promontório de Gibraltar.

4) Cáspia Serra: as montanhas do Cáucaso.

«E com um amor intrínseco acendidos 24o Com grande amor interior, muito acendidosDa Fé, mais que das honras populares, Mais pelo cristianismo do que pelas honras populares,Eram de várias terras conduzidos, De várias terras eram trazidos,Deixando a pátria amada e próprios lares. Deixando as pátrias amadas e os próprios lares.Despois que em feitos altos e subidos Após terem realizado atos corajosos e elevadosSe mostraram nas armas singulares, E terem se mostrados guerreiros invulgares,Quis o famoso Afonso que obras tais O famoso rei Afonso quis que proezas taisLevassem prémio dino e dões iguais. Fossem retribuídas com recompensas iguais.

«Destes Anrique (dizem que segundo 25o Dentre estes, Anrique (que dizem ser o segundoFilho de um Rei de Hungria exprimentado) Filho de um rei da Hungria, muito experimentado)Portugal houve em sorte, que no mundo Foi recompensado com Portugal, que no mundo de entãoEntão não era ilustre nem prezado; Não era ilustre e nem estimado;E, pera mais sinal de amor profundo, E para demonstrar mais amizade e gratidãoQuis o Rei Castelhano que casado Quis o rei Afonso, que Anrique, o fundador celebrado,Com Teresa, sua filha, o Conde fosse; Com a sua filha Teresa, casado fosse;E com ela das terras tomou posse. Assim, com ela, ele das terras tomou posse.

«Este, despois que contra os descendentes 26o Ele, depois que contra os descendentesDa escrava Agar vitórias grandes teve, Da escrava Agar (1), grande vitória obteve,Ganhando muitas terras adjacentes, Conquistando muitas terras adjacentes,Fazendo o que a seu forte peito deve, Fazendo aquilo que ao seu ânimo forte deve,Em prémio destes feitos excelentes Foi recompensado por estes atos valentesDeu-lhe o supremo Deus, em tempo breve, Pelo supremo Deus que lhe deu, num tempo breve,Um filho que ilustrasse o nome ufano Um filho que abrilhantasse o nome valorosoDo belicoso Reino Lusitano. Do reino lusitano, guerreiro e poderoso.

1) Os árabes, descendentes de Ismael, filho de Abrão e de sua escrava Agar, que teria sido expulsa da casa onde servia, vagou pelo deserto e

Agar, a qual, após longo sofrimento encontrou um local propício para criar

o seu filho que constituiu família, da qual, surgiram Maomé e toda a raça

árabe.

«Já tinha vindo Anrique da conquista 27o Já tinha voltado Anrique da conquistaDa cidade Hierosólima sagrada, Da cidade de Jerusalém sagrada,E do Jordão a areia tinha vista, E do rio Jordão, a areia já tinha sido vista,Que viu de Deus a carne em si lavada A qual viu a carne de Deus (1), naquela água, ser batizada(Que, não tendo Gotfredo a quem resista, (Pois Gotfredo (2) não tem mais quem lhe resista,Despois de ter Judeia sojugada, Após a Judéia ter sido dominada,Muitos que nestas guerras o ajudaram E assim, muitos daqueles que nestas guerras o ajudaramPera seus senhorios se tornaram); Para os respectivos reinos regressaram);

1) Referência ao batismo de Jesus por João Batista, no rio Jordão. Jordão.

2) Gotfredo ou Godofredo de Bulhões, que organizou e dirigiu a primeira

cruzada.

«Quando, chegado ao fim de sua idade, 28o Quando já estava em avançada idade,O forte e famoso Húngaro estremado, O forte e ilustre Húngaro consagrado,Forçado da fatal necessidade, Seguiu para o reino da Eternidade,O esprito deu a Quem lho tinha dado. Devolvendo a sua alma para Deus, que a tinha criado.Ficava o filho em tenra mocidade, Deixava o filho em tenra mocidade,

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Em quem o pai deixava seu traslado, E para quem deixava o seu legado,Que do mundo os mais fortes igualava: Que aos melhores do mundo se igualava;Que de tal pai tal filho se esperava. Pois de tal pai, tal filho se esperava.

«Mas o velho rumor - não sei se errado, 29o Mas o que se conta (não sei se é errado,Que em tanta antiguidade não há certeza - Pois é tão antigo que não há como ter certeza),Conta que a mãe, tomando todo o estado, É que a mãe, tomando todo o Estado,Do segundo himeneu não se despreza. Casa-se novamente com ligeireza.O filho órfão deixava deserdado, O filho órfão ficou deserdado,Dizendo que nas terras a grandeza Pois a mãe, usando de sórdida esperteza,Do senhorio todo só sua era, Alegava que o domínio daquelas terras apenas seu era,Porque, pera casar, seu pai lhas dera. Porque para casar-se com Anrique, fora o seu pai quem lhes dera.

«Mas o Príncipe Afonso (que destarte 30o Mas o príncipe (1) Afonso (que assimSe chamava, do avô tomando o nome), Chamava-se, herdando do avô o nome),Vendo-se em suas terras não ter parte, Vendo que de suas terras não tinha parte,Que a mãe com seu marido as manda e come, (Pois a mãe com o novo marido, as governa e consome),Fervendo-lhe no peito o duro Marte, Sente fervendo no peito o ódio instigado pelo duro MarteImagina consigo como as tome: E planeja consigo mesmo, estratégias para que as retome.Revolvidas as causas no conceito, Remexidos o ódio, a mágoa e o filial sentimento,Ao propósito firme segue o efeito. Segue firme na execução do seu planejamento.

1) Príncipe: Dom Afonso Henrique, 1o rei de Portugal de 1128 a 1165

«De Guimarães o campo se tingia 31o O campo de Guimarães (1) se tingiaCo sangue proprio da intestina guerra, Com o sangue da interna guerra,Onde a mãe, que tão pouco o parecia, Onde a genitora, que nem mãe parecia,A seu filho negava o amor e a terra. Ao seu filho negava o amor e a terra.Co ele posta em campo já se via; Combatendo contra ele, conforme já se via;E não vê a soberba o muito que erra E não via a arrogante mulher o quanto erraContra Deus, contra o maternal amor; Contra Deus e contra o maternal amor;Mas nela o sensual era maior. Pois nela a sensualidade imperava com ardor.

1) Guimarães: Cidade portuguesa, chamada de berço da nacionalidade.

«Ó Progne crua, ó mágica Medeia! 32o Ó Progne (1) cruel, ó feiticeira Medéia (2),Se em vossos próprios filhos vos vingais Se em vossos filhos vós se vingaisDa maldade dos pais, da culpa alheia, Das maldades dos pais e das culpas alheias,Olhai que inda Teresa peca mais! Vejam que a rainha Teresa peca ainda mais!Incontinência má, cobiça feia, Imoderação sexual e cobiça feia,São as causas deste erro principais: Deste erro, são as causas principais:Cila, por üa mata o velho pai; Cila (3), por um destes motivos mata o próprio pai;Esta, por ambas, contra o filho vai. Teresa (4), pelos dois motivos, contra o próprio filho vai.

1) Progne: filha de Pandion, rei de Atenas, irmã de Filomela e

mulher de Teseu,que se apaixonou pela cunhada. Progne para

puni-lo, matou o próprio filho, cozinhou-o e o serviu aomarido como se fosse comida.2) Medéia: feiticeira lendária que degolou os próprios filhos para vingar-se de Jasão que a abandonou. 3) Filha de Niso, rei de Mégara, que para agradar ao amante contribuiu para a morte do próprio pai.4)Tereza: a rainha, mãe de Afonso Henrique.

«Mas já o Príncipe claro o vencimento 33o Mas, logo o príncipe Afonso já tinha o vencimentoDo padrasto e da inica mãe levava; E ao padrasto injusto e a mãe cruel à derrota levava;

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Já lhe obedece a terra, num momento, Já lhe obedecia a terra, que num primeiro momento,Que primeiro contra ele pelejava; Contra ele, ferozmente, lutava;Porém, vencido de ira o entendimento, Porém excitado pela ira e sem qualquer comedimento,A mãe em ferros ásperos atava; A própria mãe, em duras condições, ele aprisionava;Mas de Deus foi vingada em tempo breve. Todavia, ela foi vingada por Deus num tempo breve.Tanta veneração aos pais se deve! Pois aos pais, em qualquer circunstância, muita veneração se deve!

«Eis se ajunta o soberbo Castelhano 34o Pouco depois, chega o soberbo Castelhano (1)Pera vingar a injúria de Teresa, Para vingar a derrota sofrida por Teresa,Contra o, tão raro em gente, Lusitano, E se põe a combater o singular lusitano,A quem nenhum trabalho agrava ou pesa. A quem nenhuma dificuldade esmorece e que nenhuma luta despreza.Em batalha cruel, o peito humano, Em batalha feroz, o coração humano,Ajudado da Angélica defesa, É ajudado pelos anjos e tem êxito na defesa;Não só contra tal fúria se sustenta, Não só contra tal fúria se sustentaMas o inimigo aspérrimo afugenta. Como o duro inimigo afugenta.

1) Castelhano: Afonso VII, sobrinho da rainha

«Não passa muito tempo, quando o forte 35o Porém, após um curto tempo, o fortePríncipe em Guimarães está cercado Príncipe Afonso, em Guimarães, é novamente cercadoDe infinito poder, que desta sorte Por poderosas forças do inimigo, que dessa sorte,Foi refazer-se o imigo magoado; Foi se fortalecer e voltara mais irado;Mas, com se oferecer à dura morte Mas graças à coragem de Egas (1), que se ofereceu à morte,O fiel Egas amo, foi livrado; O príncipe Afonso da derrota foi livrado,Que, de outra arte, pudera ser perdido, Pois se não fosse esse gesto extremado,Segundo estava mal apercebido. O príncipe luso, que estava fragilizado, seria derrotado.

1) Egas Moniz – súdito de Dom Afonso.

«Mas o leal vassalo, conhecendo 36o O súdito fiel (1) e valente, sabendo,Que seu senhor não tinha resistência, Que o seu senhor não teria resistência,Se vai ao Castelhano, prometendo Vai até o Rei Castelhano prometendo,Que ele faria dar-lhe obediência. Que faria com que Afonso lhe prestasse obediência.Levanta o inimigo o cerco horrendo, O inimigo então suspende o cerco horrendo,Fiado na promessa e consciência Confiando na promessa e na influênciaDe Egas Moniz; mas não consente o peito De Egas Moniz, sobre Afonso; mas este não aceitaDo moço ilustre a outrem ser sujeito. Submeter-se ao Castelhano e a trégua rejeita.

1) Quando Afonso VII, de Castela, cercou Guimarães, Egas Moniz conseguiu

que a luta fosse interrompida, comprometendo-se sob palavra de honra,

a fazer que o seu senhor aceitasse as condições do Castelhano,

porém Afonso não aceitou cumprir o prometido.

«Chegado tinha o prazo prometido, 37o Estava esgotado o prazo concedido,Em que o Rei Castelhano já aguardava E o rei Castelhano já aguardavaQue o Príncipe, a seu mando sometido. Que o Príncipe luso, a seu governo submetidoLhe desse a obediência que esperava. Prestasse-lhe a obediência que esperava.Vendo Egas que ficava fementido, Egas, vendo que estava em falta com o prometido,O que dele Castela não cuidava, Traindo assim a confiança que o rei de Castela nele depositava,Determina de dar a doce vida Decide sacrificar-se e dar a própria vidaA troco da palavra mal cumprida. Em troca da promessa não cumprida.

«E com seus filhos e mulher se parte 38o Junto com os seus filhos e sua mulher, parte (1)A alevantar co eles a fiança, Para com eles resgatar a confiança,Descalços e despidos, de tal arte Seguem descalços e maltrapilhos, de tal sorte

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Que mais move a piedade que a vingança. Que provocam mais piedade que desejo de vingança;- «Se pretendes, Rei alto, de vingar-te - Se pretende, Rei Sublime, vingar-teDe minha temerária confiança Por eu ter falhado em fazer que ele aceitasse a sua liderança,(Dizia) eis aqui venho oferecido Dizia, Egas, eis me aqui, dispostoA te pagar co a vida o prometido A pagar com a vida, o teu desgosto.

1) Egas, não conseguiu que Dom Afonso aceitasse os termos da rendição,

e apresentou-se ao rei Castelhano, já com a corda no pescoço, disposto a

pagar com a vida o descumprimento da palavra dada.

«Vés aqui trago as vidas inocentes 39o Veja que trago as vidas inocentesDos filhos sem pecado e da consorte; Dos meus filhos, sem pecados e a de minha consorte;Se a peitos generosos e excelentes Se para os vossos corações, boníssimos e excelentesDos fracos satisfaz a fera morte, A perda da minha vida for suficiente para impedir outra morte,Vês aqui as mãos e a língua delinquentes: Vejam apenas em mim, as mãos e a língua delinqüentes:Nelas sós exprimenta toda sorte Apenas nelas, aplica toda sorteDe tormentos, de mortes, pelo estilo De torturas e de mortes, no estiloDe Sínis e do touro de Perilo.» De Sinis (1) e do “Touro” de Perilo (2).

1) Sinis: bandido que matava suas vitimas pendurando-as em árvores.

2) Touro de Perilo: Perilo inventou um touro, oco e feito em bronze,

onde assava as suas vitimas.

«Qual diante do algoz o condenado, 40o Igual fica diante do carrasco, o condenado,Que já na vida a morte tem bebido, Que mesmo em vida, a morte já tem sentido,Põe no cepo a garganta e já entregado E coloca com docilidade o pescoço no cepo, já resignadoEspera pelo golpe tão temido: Esperando pelo golpe tão temido:Tal diante do Príncipe indinado Assim estava, diante do rei indignadoEgas estava, a tudo oferecido. O valente Egas, para tudo preparado.Mas o Rei vendo a estranha lealdade, Mas o rei vendo aquela extrema lealdade,Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade. Comoveu-se e a sua ira transformou-se em piedade.

«Ó grão fidelidade Portuguesa 41o Ó grande fidelidade portuguesaDe vassalo, que a tanto se obrigava! Daquele súdito, que a tudo isso se obrigava!Que mais o Persa fez naquela empresa Foi mais importante o que o Persa (1) fez, aclamada como uma proeza,Onde rosto e narizes se cortava? Quando as próprias orelhas e o nariz cortava?Do que ao grande Dario tanto pesa, Ato de lealdade, que ao grande Dário tanto atrapalhaQue mil vezes dizendo suspirava Que mil vezes repetindo, suspiravaQue mais o seu Zopiro são prezara Que muito mais, ter Zópiro sadio desejara,Que vinte Babilónias que tomara. Que as “vinte” Babilônias que tomara.

1- Zópiro, persa célebre pela fidelidade a Dário e que cortou o

próprio nariz e as orelhas e convenceu os babilônios que fora Dario

quem lhe infligira este cruel castigo e com isso ganhou-lhes a confiança.

Posteriormente abriu as portas da cidade para a invasão das tropas

persas.

«Mas já o Príncipe Afonso aparelhava 42o Enquanto isto (1), o príncipe Afonso já preparavaO Lusitano exército ditoso, O exército lusitano, tão glorioso,Contra o Mouro que as terras habitava Para combater o mouro, que a terra dominavaDe além do claro Tejo deleitoso; Além do claro rio Tejo, tão precioso;

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Já no campo de Ourique se assentava Já no campo de Ourique (no Alentejo, região de Portugal) se instalavaO arraial soberbo e belicoso, O acampamento altivo e belicoso,Defronte do inimigo Sarraceno, Em frente ao inimigo Sarraceno (mouro),Posto que em força e gente tão pequeno, Mas dispunha de armas e de soldados em número muito pequeno;

1) Em 1140, Afonso VII, de Castela, estava pressionado pela guerra contra a província de Navarra (também na Espanha) e

Afonso Henrique, de Portugal, era atacado pelos mouros no sul.

«Em nenhüa outra cousa confiado, 43o Em nenhum trunfo (estratégias, armas etc) estava apoiado,senão no sumo Deus que o Céu regia, Senão em Deus, que o céu regia,Que tão pouco era o povo bautizado, Pois eram tão poucos os soldados batizados (cristãos),Que, pera um só, cem Mouros haveria. Que para cada um, cem mouros haveria.Julga qualquer juízo sossegado Qualquer juízo mais equilibradoPor mais temeridade que ousadia Julgaria que havia mais temeridade que valentiaCometer um tamanho ajuntamento, Em se fazer aquele preparativo e que tal agrupamento,Que pera um cavaleiro houvesse cento. Fosse para uma luta, onde para cada um havia um cento.

«Cinco Reis Mouros são os inimigos, 44o Cinco reis mouros eram os inimigos,Dos quais o principal Ismar se chama; Dentre os quais, o principal, Ismar se chama;Todos exprimentados nos perigos Todos são experientes nos perigosDa guerra, onde se alcança a ilustre fama. Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.Seguem guerreiras damas seus amigos, Acompanham-lhes guerreiras mulheres, da classe plebéia,Imitando a fermosa e forte Dama Imitando a bela e forte rainha Pentesiléia (1)De quem tanto os Troianos se ajudaram, De quem tantos os troianos se valeram,E as que o Termodonte já gostaram. E as guerreiras Amazonas (2) que no Termodonte (3) habitaram.

1- Pentesiléia: Rainha das Amazonas, que socorreu Príamo, rei de Tróia.

2- Amazonas: Tribo de mulheres guerreiras.3- Termodonte: Rio em cujas margens as Amazonas viviam.

«A matutina luz, serena e fria, 45o A luz matutina, serena e fria,As Estrelas do Pólo já apartava, As estrelas e o mundo já separava,Quando na Cruz o Filho de Maria, Quando na cruz o Filho de Maria,Amostrando-se a Afonso, o animava. Aparecendo a Afonso (1), o animava.Ele, adorando Quem lhe aparecia, Ele, venerando Àquele que lhe aparecia,Na Fé todo inflamado assi gritava: Entusiasmado pela fé, assim gritava:- «Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis, Apareça aos infiéis (mouros), Senhor, aos infiéis,E não a mi, que creio o que podeis!» E não a mim, que creio em ti e no que podeis.

1) Conta a lenda, que Cristo crucificado apareceu para Dom Afonso,

em Ourique, no Alentejo.

«Com tal milagre os ânimos da gente 46o Com este milagre o ânimo da brava gentePortuguesa inflamados, levantavam Portuguesa, já inflamados, mais se levantavamPor seu Rei natural este excelente Por obra do seu legítimo rei, este valentePríncipe, que do peito tanto amavam; Príncipe, que de coração, tanto amavam;E diante do exército potente E diante do exército grande e potenteDos imigos, gritando, o céu tocavam, Dos inimigos, gritavam tão alto, que parecia que no céu tocavam,Dizendo em alta voz: - «Real, real, Dizendo em voz poderosa: - Real, real,Por Afonso, alto Rei de Portugal!» Combateremos por Afonso, sublime rei de Portugal!

«Qual cos gritos e vozes incitado, 47o E foi igual quando, por gritos e vozes, excitado,

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Pela montanha, o rábido moloso Na montanha, o cão raivosoContra o touro remete, que fiado Lança-se contra o touro, que confiadoNa força está do corno temeroso; Está, na força de seu chifre poderoso;Ora pega na orelha, ora no lado, E o cão ora morde a orelha, ora morde no ladoLatindo mais ligeiro que forçoso, Ferindo com golpes mais ligeiros que perigosos,Até que enfim, rompendo-lhe a garganta, Até que por fim, rasgando-lhe a garganta,Do bravo a força horrenda se quebranta: A força terrível do bravo touro, ele quebranta:

«Tal do Rei novo o estâmago acendido 48o O ânimo do rei estava tão inflamado,Por Deus e polo povo juntamente, Graças à aparição de Jesus e ao entusiasmo de sua valenteO Bárbaro comete, apercebido Tropa, que ataca o mouro acompanhadoCo animoso exército rompente. Pelo animado exército rompedor e excelente.Levantam nisto os Perros o alarido Nisto, os cães mouros (1) levantam um grande alaridoDos gritos; tocam a arma, ferve a gente, De gritos; pegam em armas, inflama-se aquela gente,As lanças e arcos tomam, tubas soam, Arremessam as lanças e as flechas, as cornetas soam,Instrumentos de guerra tudo atroam! Instrumentos da guerra que tudo atordoam!

1) Em diversas ocasiões, Camões chama aos mouros de cães.

Deve-se atentar para o clima de hostilidade entre cristãos e mouros

que havia naquela época.

«Bem como quando a flama, que ateada 49o Assim como, quando a chama que foi ateadaFoi nos áridos campos (assoprando Nos áridos campos (e soprandoO sibilante Bóreas), animada O sibilante vento Bóreas) avança mais inflamadaCo vento, o seco mato vai queimando; Pelo vento, e o mato seco vai queimando;A pastoral companha, que deitada Quando então, a camponesa pastora, que estava deitadaCo doce sono estava, despertando Num doce sono, e despertandoAo estridor do fogo que se ateia, Com o barulho do fogo que tudo incendeia,Recolhe o fato e foge pera a aldeia: Recolhe suas coisas e foge para a aldeia:

«Destarte o Mouro, atónito e Torvado, 50o Desse modo, o mouro atônito e perturbado,Toma sem tento as armas mui depressa; Recolhe descuidado as suas armas com muita pressa;Não foge, mas espera confiado, Não foge, mas espera ousado,E o ginete belígero arremessa. E então o cavalheiro luso se arremessa.O Português o encontra denodado, O português o encontra determinadoPelos peitos as lanças lhe atravessa; E com a lança o peito, lhe atravessa;Uns caem meios mortos e outros vão Alguns caem quase mortos e outros vãoA ajuda convocando do Alcorão. Suplicar pela ajuda do Alcorão (1).

1) Alcorão: o livro sagrado dos maometanos.

«Ali se vêm encontros temerosos, 51o Ali são travados conflitos horrorosos,Pera se desfazer üa alta serra, Capazes de desmanchar uma alta serra,E os animais correndo furiosos E os cavalos correndo furiososQue Neptuno amostrou, ferindo a terra; Iguais aos que Netuno (1) gerou, vão ferindo a terra.Golpes se dão medonhos e forçosos; Golpes são trocados, terríveis e poderosos;Por toda a parte andava acesa a guerra; Em toda parte andava acesa a guerra.Mas o de Luso arnês, couraça e malha, Mas o luso, trajando armadura completa, couraça e malha,Rompe, corta desfaz abola e talha. Rompe, corta, destrói, amassa e retalha.

1) Netuno, deus do mar, foi o pai do cavalo alado Pégaso. A ele eram dedicados os cavalos.

«Cabeças pelo campo vão saltando, 52o Cabeças pelo campo vão saltando,Braços, pernas, sem dono e sem sentido, Braços, pernas, sem dono e sem sentido,E doutros as entranhas palpitando, Em outros são as entranhas que estão palpitando,Pálida a cor, o gesto amortecido. Pálidos, sem cor e com o rosto amortecido.Já perde o campo o exército nefando; Já perde terreno o mouro a quem o luso vai derrotando;Correm rios do sangue desparzido, Correm rios do sangue espalhado e perdido,

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Com que também do campo a cor se perde, Fazendo com que a cor do próprio campo seja alterada,Tornado carmesi, de branco e verde. O vermelho toma o lugar do branco e do verde na terra ultrajada.

«Já fica vencedor o Lusitano, 53o Por fim, fica como vencedor o lusitano,Recolhendo os troféus e presa rica; Que recolhe os troféus e a presa rica;Desbaratado e roto o Mauro Hispano Derrotado e roto fica o mouro hispano (1);Três dias o grão Rei no campo fica. Por mais três dias o rei luso, naquele campo fica.Aqui pinta no branco escudo ufano, E pinta no seu brasão altaneiro e ufano,Que agora esta vitória certifica, Que esta vitória atesta e certifica,Cinco escudos azuis esclarecidos, Cinco escudos em azul brilhante, bem coloridosEm sinal destes cinco Reis vencidos. Representando os cinco reis que foram vencidos.

1) Os mouros que dominavam parte da península Ibérica.

«E nestes cinco escudos pinta os trinta 54o No interior destes escudos ele pinta as trintaDinheiros por que Deus fora vendido, Moedas pelas quais Jesus foi traído,Escrevendo a memória, em vária tinta, Escrevendo assim, em várias cores e variadas tintas,Daquele de Quem foi favorecido. A história Daquele que sempre o tinha favorecido.Em cada um dos cinco, cinco pinta, Em cada um dos cinco escudos, outros cinco ele pintaPorque assi fica o número cumprido, Para que assim o numero fique completo e instruído,Contando duas vezes o do meio, Considerando-se duas vezes o escudo do meio (1),Dos cinco azuis que em cruz pintando veio. Dentre aqueles que, em forma de cruz, pintando ele veio.

1) 5 escudos X 5 escudos internos = 25 + 5 = 30.

(duas vezes o escudo do meio).

«Passado já algum tempo que passada 55o Passado algum tempo desta celebradaEra esta grão vitória, o Rei subido Grande vitória, o rei elevado e erguidoA tomar vai Leiria, que tomada Vai se apossar da Leiria (1), que fora retomadaFora, mui pouco havia, do vencido. Há pouco tempo, do mouro vencido.Com esta a forte Arronches sojugada Perto desta, a poderosa Arronches (2) foi subjugadaFoi juntamente; e o sempre ennobrecido Simultaneamente; assim como a sempre enobrecidaScabelicastro, cujo campo ameno Santarém (3), cujo campo amenoTu, claro Tejo, regas tão sereno. Tu, claro rio Tejo, banha tão sereno.

1) Leiria: cidade no centro oeste de Portugal.2) Arronches: idem.3) Santarém: cidade na região do Ribatejo em Portugal.

«A estas nobres vilas sometidas 56o A estas nobres vilas retomadasAjunta também Mafra, em pouco espaço, Junta-se Mafra (1), num curto espaçoE, nas serras da Lüa conhecidas, De tempo; e nas serras, que da lua são conhecidas,Sojuga a fria Sintra o duro braço; Subjuga a fria Sintra (2) o lusitano braço;Sintra, onde as Naiades, escondidas Sintra, onde as Naiades (3) escondidasNas fontes, vão fugindo ao doce laço Nas fontes, vão fugindo do doce laço.Onde Amor as enreda brandamente, Onde o Cupido as cativa brandamente,Nas águas acendendo fogo ardente. Nas águas acendendo o fogo da paixão ardente.

1) Mafra: cidade portuguesa, situada na região da Estremadura.

2) Sintra: cidade serrana, próxima a Lisboa.3) Naiades: ninfas dos rios e das fontes.

«E tu, nobre Lisboa, que no mundo 57o E tu nobre Lisboa, que no mundoFàcilmente das outras és princesa, Facilmente, dentre todas é a princesa,Que edificada foste do facundo Que foste construída (1) pelo eloqüente Ulisses, tão facundo,Por cujo engano foi Dardânia acesa; Que enganando os troianos (2) fez de Tróia (3) uma rica presa.Tu a quem obedece o Mar profundo Tu, a quem obedece o mar profundo,

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Obedeceste à força Portuguesa, Curvou-se perante a força portuguesa,Ajudada também da forte armada Que foi ajudada por uma forte armadaQue das Boreais partes foi mandada. Que da região norte fora enviada.

1) Reza a tradição que Lisboa foi fundada por Ulisses, herói grego,

protagonista da Odisséia de Homero.2) Foi Ulisses quem idealizou o famoso “Cavalo de Tróia”.3) Tróia, nome mais conhecido da Dardânia.

«Lá do Germânico Álbis e do Reno 58o Da região dos rios alemães Elba e RenoE da fria Bretanha conduzidos, E da fria Bretanha (1) foram enviados,A destruir o povo Sarraceno Para auxiliar na destruição do povo Sarraceno (2).Muitos com tenção santa eram partidos. Muitos soldados que com a santa intenção eram chegados.Entrando a boca já do Tejo ameno, Entrando pela foz do rio Tejo ameno,Co arraial do grande Afonso unidos, Ao exército de Afonso foram agregados,Cuja alta fama antão subia aos céus, De quem a fama já subia ao céuFoi posto cerco aos muros Ulisseus. E juntos cercaram a cidade que Ulisses ergueu.

1) Bretanha: a Inglaterra.2) Sarraceno: mouro.

«Cinco vezes a Lüa se escondera 59o Cinco vezes a Lua mudou para a fase escondida (1)E outras tantas mostrara cheio o rosto, E em outras tantas vezes, se mostrara com o cheio rosto,Quando a cidade, entrada, se rendera Para que a cidade fosse adentrada e rendidaAo duro cerco que lhe estava posto Ao duro cerco que lhe fora imposto.Foi a batalha tão sanguina e fera Foi um batalha tão sangrenta e ferozQuanto obrigava o firme pros[s]uposto Quanto se podia prever para a luta daquele oposto.De vencedores ásperos e ousados De um lado os vencedores, firmes e determinadosE de vencidos já desesperados. E do outro, os vencidos já desesperados.

1) Fase escondida: quando a lua não se mostra em sua plenitude.

«Destarte, enfim, tomada se rendeu 60o Desse modo, por fim, tomada, se rendeuAquela que, nos tempos já passados, A cidade que nos tempos passados,À grande força nunca obedeceu Ao grande poder, nunca obedeceuDos frios povos Cíticos ousados, Dos povos que de Citicos (1) eram chamados,Cujo poder a tanto se estendeu Cujo poder era imenso e a tanto se estendeuQue o Ibero o viu e o Tejo amedrontados; Que os rios Ibero (2) e Tejo viram-no amedrontados;E, enfim, co Bétis tanto alguns puderam E em Bétis (3), alguns deles tanto puderam,Que à terra, de Vandália nome deram. Que àquela região, o nome de Vandália (4) deram.

1) Citicos: Povos nômades e bárbaros do norte da Europa.2) Ibero: rio da Espanha, atualmente chamado de Ebro.3) Bétis: região da Espanha.4) Derivado de Vândalos, povo germânico que devastou o sul

daEuropa e o norte da África.

«Que cidade tão forte porventura 61o Mas que outra cidade , que seja tão forte, porventuraHaverá que resista, se Lisboa Haverá que resista, se LisboaNão pôde resistir à força dura Não pôde resistir à força duraDa gente cuja fama tanto voa? Daquele povo, cuja fama para tão longe voa?Já lhe obedece toda a Estremadura, Já dominavam toda a Estremadura (1),Óbidos, Alanquer, por onde soa Óbidos (2), Alanquer (3) (por onde ecoaO tom das frescas águas entre as pedras, O som das frescas águas entre as pedras,Que murmurando lava, e Torres Vedras. Que murmurando as lava) e Torre Vedras (4).

1) Estremadura: região do litoral sul de Portugal.2) Óbidos: cidade na Estremadura, litoral sul de Portugal.

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3) Alanquer: vila portuguesa, situada na região da Estremadura.

4) Torre Vedras: Cidade na Estremadura, litoral sul de Portugal.

«E vós também, ó terras Transtaganas, 62o E também vós, ó terras Transtaganas (1)Afamadas co dom da flava Ceres, Famosas pelos cereais que produzem, dádiva de Ceres (2)Obedeceis às forças mais que humanas, Obedeçam ao poder e a força sobre-humana,Entregando-lhe os muros e os poderes; Rendendo-se sem o uso das armas e de seus poderes;E tu, lavrador Mouro, que te enganas, E você, lavrador mouro, que se enganaSe sustentar a fértil terra queres: Supondo que conservará a terra fértil, que tanto queres;Que Elvas e Moura e Serpa, conhecidas, Veja que Elvas (3), Moura (4) e Serpa (5), tão conhecidasE Alcáçare do Sal estão rendidas. E também Alcácere do Sal (6), já estão rendidas.

1) Transtaganas: as terras situadas além do rio Tejo.2) Ceres: deusa da agricultura.3) Elvas: cidade portuguesa, situada no Alentejo.4) Moura: idem.5) Serpa: idem.6) Alcácere do Sal: idem.

«Eis a nobre cidade, certo assento 63o Eis ali, a nobre cidade de Elvas, firme base e sólido assentoDo rebelde Sertório antigamente, Do rebelde Sertório (1), antigamente;Onde ora as águas nítidas de argento Onde agora, as límpidas águas de argento (2),Vêm sustentar de longo a terra e a gente Vêm de longe para sustentar a terra e a sua gente,Pelos arcos reais, que, cento e cento, Correndo pelos aquedutos reais, que são mais de um cento,Nos ares se alevantam nobremente, E que nos ares se levantam nobremente,Obedeceu por meio e ousadia Cidade que foi conquistada com muita valentiaDe Giraldo, que medos não temia. Pelo bravo Giraldo (2), que nada temia.

1) Sertório: general romano que após a morte de Mario, organizou na península Ibérica um movimento contra Roma. 2) Argento: prateado.3) Giraldo: Giraldo Sem Pavor, que em 1166 tomou a cidade

de Elvas.

«Já na cidade Beja vai tomar 64o E a cidade de Beja (1) já vai retomarVingança de Trancoso destruída Como vingança pela cidade de Trancoso (2) que foi destruídaAfonso, que não sabe sossegar, O rei Afonso, que não sabia sossegar,Por estender co a fama a curta vida. E queria estender com a fama a curta vida.Não se lhe pode muito sustentar Apenas por pouco tempo pôde se sustentarA cidade; mas, sendo já rendida, A cidade; mas, mesmo já estando rendida,Em toda a cousa viva a gente irada A todos os seres vivos, a tropa iradaProvando os fios vai da dura espada. Vai ferindo com a afiada espada.

1) Beja: cidade situada no sul do Alentejo.2) Trancoso: cidade situada no norte de Portugal.

«Com estas sojugada foi Palmela 65o Junto com estas cidades, a cidade de Palmela (1)E a piscosa Sesimbra e, juntamente, E a piscosa Sezimbra (2) foram conquistadas e simultaneamente,Sendo ajudado mais de sua estrela, Ajudado pela sua boa estrela,Desbarata um exército potente Afonso derrota um exército muito potente(Sentiu-o a vila e viu-o a serra dela), (A vila o sentiu, assim como a Serra ao lado dela)Que a socorrê-la vinha diligente Que para defender a vila vinha diligentePela fralda da serra, descuidado Pela encosta da serra, mas estava despreparadoDo temeroso encontro inopinado. Para aquele combate inesperado.

1) Palmela: cidade portuguesa, situada no centro de Portugal.

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2) Sezimbra: cidade portuguesa, situada no litoral, próxima a Lisboa.

«O Rei de Badajoz era, alto Mouro, 66o O rei de Badajoz (1) era um importante mouro,Com quatro mil cavalos furiosos, Tinha quatro mil cavalos furiosos,Inúmeros peões, de armas e de ouro Inúmeros soldados, com armas e ouroGuarnecidos, guerreiros e lustrosos; Equipados, guerreiros e raivosos.Mas, qual no mês de Maio o bravo touro, Contudo, igual ao que acontece no mês de Maio (2) quando o feroz touroCos ciúmes da vaca, arreceosos, Com ciúme da vaca e muito perigoso,Sentindo gente, o bruto e cego amante Percebendo a aproximação de alguém, bruto e cego amante,Salteia o descuidado caminhante: Ataca de súbito o desavisado caminhante.

1) Badajoz: reino situado no sudoeste da Espanha.2) Maio: o inicio da primavera no hemisfério norte. O mês do

cio.

«Destarte Afonso, súbito mostrado, 67o Assim fez Afonso, de repente aparecido,Na gente dá, que passa bem segura; Que ataca aquela gente, que se julgava muito segura;Fere, mata, derriba, denodado; Fere, mata e destrói, muito determinado;Foge o Rei Mouro e só da vida cura; Foge o rei mouro, que salvar a vida é apenas o que procura.Dum pânico terror todo assombrado, Tomado de pânico e de terror muito assombrado,Só de segui-lo o exército procura; O restante do exército segue o rei, em sua fuga ignóbil e obscura;Sendo estes que fizeram tanto abalo Sendo que estes lusos que causaram tantos abalosNô mais que só sessenta de cavalo. Não tinham mais que sessenta cavalos.

«Logo segue a vitória, sem tardança, 68o Logo depois Afonso persegue a vitória e sem demorar,O grão Rei incansábil, ajuntando O grande rei, incansavelmente vai agrupandoGentes de todo o Reino, cuja usança Soldados em todo reino, que já se habituara a olharEra andar sempre terras conquistando. As vitórias e as terras que ele ia conquistando.Cercar vai Badajoz e logo alcança Assim, vai cercar Badajoz e logo vai alcançarO fim de seu desejo, pelejando Êxito nesse seu projeto, lutandoCom tanto esforço e arte e valentia, Com tanta determinação, talento e valentia,Que a fez fazer às outras companhia. Que aquela região, às suas outras conquistas, foi fazer companhia.

«Mas o alto Deus, que pera longe guarda 69o Porém o supremo Deus, que para o futuro guardaO castigo daquele que o merece, O castigo para aquele que o merece,Ou pera que se emende, às vezes tarda, E dando-lhe a chance de se corrigir, às vezes o retarda,Ou por segredos que homem não conhece Ou então por outros motivos que o Homem desconhece;Se até qui sempre o forte Rei resguarda Julgou que se até ali, o forte rei tinha a Divina retaguardaDos perigos a que ele se oferece, Para enfrentar os perigos a que ele se oferece,Agora lhe não deixa ter defesa A partir de então, não teria mais a sua defesaDa maldição da mãe que estava presa: Contra a maldição de sua mãe, que ele mantinha presa.

«Que, estando na cidade que cercara, 70o Estando Afonso em Badajoz, que cercara,Cercado nela foi dos Lioneses, Nela foi cercado pelos Leoneses (1),Porque a conquista dela lhe tomara, Porque nessa conquista ele tomaraDe Lião sendo, e não dos Portugueses. O que pertencia ao reino de Leão e não aos portugueses.A pertinácia aqui lhe custa cara, Sua teimosia lhe sai muito cara,Assi como acontece muitas vezes, Como acontece tantas vezes,Que em ferros quebra as pernas, indo aceso E em ferros quebra a perna, indo muito acesoÀ batalha, onde foi vencido e preso. Para a batalha (2), onde foi vencido e preso.

1) Leoneses: naturais de Leão, um dos reinos da Espanha.2) Na primavera de 1169, Afonso atacou Badajoz (sudoeste da Espanha) que estava dominada pelos mouros, mas cuja conquista devia pertencer ao seu genro Fernando

II, de Leão. Os mouros apresentaram uma débil resistência e

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quando as tropas de Fernando II chegaram o rei Luso ficou na posição de sitiador e de sitiado. Por fim Dom Afonso quebrou uma perna nos ferros de uma porta.

«Ó famoso Pompeio, não te pene 71o Ó famoso Pompeio (1), não te lamentes da tua pena,De teus feitos ilustres a ruína, Por tuas proezas ilustres terem ficado em ruína,Nem ver que a justa Némesis ordene Nem por ver que a justa Nêmesis (2) ordenaTer teu sogro de ti vitória dina, Que sobre vós, o teu sogro tivesse uma vitória tão digna,Posto que o frio Fásis ou Siene, Ainda que o rio Fásis (3) ou a cidade de Siene (4)Que pera nenhum cabo a sombra inclina, Onde a sombra do sol para nenhum lado se inclina,O Bootes gelado e a linha ardente Ou que a fria região abaixo de Bootes (5) e a região ardente (6)Temessem o teu nome geralmente. Temessem o teu nome igualmente.

1) Pompeio: genro de César, militar e político romano derrotado

pelo seu sogro na batalha de Farsália.2) Nêmesis: deusa da vingança e da justiça divina3) Rio Fásis: atual Rion, na Cólquida4) Siene: atual Assuã, no Egito, situada sob o Trópico de

Câncer, onde o sol do meio-dia não projeta sombras.5) Bootes: Constelação do Boiadeiro.6) Região ardente: aquela por onde passa a Linha do

Equador.

«Posto que a rica Arábia e que os feroces 72o Ainda que a rica Arábia e que os ferozesHeníocos e Colcos, cuja fama Heníocos (1) e Colcos (2), cuja imensa famaO Véu dourado estende, e os Capadoces A tão longe se estende, e os Capadoces (3)E Judeia, que um Deus adora e ama, E a Judéia (4), que apenas um Deus adora e ama,E que os moles Sofenos e os atroces E que os suaves Sofenos (5) e os atrozesCilícios, com a Arménia, que derrama Cilícios (6), com a Armênia (7), a quem banhaAs águas dos dous rios cuja fonte As águas dos dois rios cuja fonteEstá noutro mais alto e santo monte, Está no mais alto e santo Monte (8).

1) Heníocos: naturais do norte do Cáucaso.2) Colcos: naturais da Colquida, Ásia.3 Capadoces: naturais da Capadócia, Ásia Menor.4) Judéia: região do Oriente Médio.5) Sofenos: naturais de Sofene, Armênia.6) Cilícios: naturais da Cilicia, Ásia Menor.7) Armênia: país da Ásia.8) Santo Monte: o monte Ararat, onde parou a Arca de Noé.

«E posto, enfim, que desd'o mar de Atlante 73o E, finalmente, ainda que desde o Mar de Atlante (1)Até o Cítico Tauro, monte erguido, Até o Citico Tauro (2), monte elevado,Já vencedor te vissem, não te espante Apenas como vencedor te vissem, não te espanteSe o campo Emátio só te viu vencido; Se o campo Ematio (3), apenas te viu como derrotado;Porque Afonso verás, soberbo e ovante, Porque você verá que também Afonso, soberbo e triunfante,Tudo render e ser despois rendido. Tudo conquistou e depois foi dominado.Assi o quis o Conselho alto, celeste, Assim quis o sublime Conselho Celeste,Que vença o sogro a ti e o genro a este! Que o teu sogro vença a ti e o genro (4) vença a este.

1) Mar de Atlante: Oceano Atlântico.2) Citico Tauro: Montanhas na Citia, Ásia.3) Ematio: Província da antiga Macedônia, onde Pompeio foi derrotado por César.4) Fernando II, rei de Leão (região da Espanha) que se casou com Dona Urraca, filha do rei Afonso, de Portugal.

«Tornado o Rei sublime, finalmente, 74o O rei sublime, libertado (1), finalmente,

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Do divino Juízo castigado; Após ter sido, pelo juízo divino, castigado,Despois que em Santarém soberbamente, E depois que em Santarém (2) ativamenteEm vão, dos Sarracenos foi cercado, Rechaçou os mouros, que o tinham cercado,E despois que do mártire Vicente E depois que do Mártir Vicente (3)O santíssimo corpo venerado O santíssimo corpo adoradoDo Sacro Promontório conhecido Do Sacro Promontório (4), assim conhecido,À cidade Ulisseia foi trazido; Para a cidade de Lisboa foi trazido;

1) Confessando que fora desleal com o genro, Dom Afonso oferece-lhe seus territórios em troca de sua liberdade, mas Dom Fernando, que tinha fama de ser generoso, não aceita essa oferta e lhe pede que apenas restitua o que era seu, ou seja, a província de Badajoz e o liberta. O cativeiro de Afonso durou dois meses e ele voltou para Portugal.2) Santarém: cidade na região da Estremadura, em Portugal.3) São Vicente nasceu em Saragoza (Espanha) e morreu martirizado em Valença em 304 dC. As suas relíquias

estiveram no Cabo de São Vicente, no extremo ocidental da Europa e foram trazidas para Lisboa no século doze.4) Cabo de São Vicente.

«Por que levasse avante seu desejo, 75o Para que levasse adiante o seu desejo,Ao forte filho manda o lasso velho O rei Afonso ordena ao seu forte filho, pois já estava cansado e velho,Que às terras se passasse d'Alentejo, Que atacasse os mouros no Alentejo (1),Com gente e co belígero aparelho. Com soldados, armas e todo o bélico aparelho.Sancho, d'esforço e d'ânimo sobejo, Sancho (2), de ânimo e destemor sobejo,Avante passa e faz correr vermelho Ataca, segue avante e faz correr vermelhoO rio que Sevilha vai regando, O rio que a Sevilha (3) vai banhando,Co sangue Mauro, bárbaro e nefando. Com o sangue mouro, bárbaro e nefando.

1) Alentejo: região centro-sul de Portugal.2) Sancho: Dom Sancho I, filho de Dom Afonso Henrique e 2o

rei de Portugal.3) Sevilha: cidade na Espanha.

«E, com esta vitória cobiçoso, 76o E com esta vitória, ambicioso,Já não descansa o moço, até que veja Não descansa o moço, até que vejaOutro estrago como este, temeroso, Outro abalo como este, tão horroroso,No Bárbaro que tem cercado Beja. Ser feito contra o mouro que fez o cerco a Beja (1).Não tarda muito o Príncipe ditoso Não demora muito para que o príncipe poderosoSem ver o fim daquilo que deseja. Veja o final vitorioso, como deseja.Assi estragado, o Mouro na vingança Assim destroçado o mouro na vingançaDe tantas perdas põe sua esperança. Por tantas derrotas, põe a sua esperança.

1) Beja: cidade ao sul de Portugal.

«Já se ajuntam do monte a quem Medusa 77o Já se enchem da pretensão que fez com que Medusa (1)O corpo fez perder que teve o Céu; Perdesse a beleza que foi admirada até pelo céu;Já vêm do promontório de Ampelusa Vêm do monte de Ampelusa (2)E do Tinge, que assento foi de Anteu. E do Tinge (3), que foi a morada de Anteu (4).O morador de Abila não se escusa, O habitante de Abila (5) não se recusa,Que também com suas armas se moveu, E com suas armas também se moveu,Ao som da Mauritana e ronca tuba, E ao som da moura e rouca tuba (6),Todo o Reino que foi do nobre Juba. Todos se mobilizaram no reino que foi do nobre Juba (7).

1)Medusa: divindade marinha. Era bela e tinha lindos cabelos e Posídon

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dela se enamorou e transformando-se em pássaro levou-a a um templode Atenas, que indignada pela outra achar-se tão linda como

ela,transformou seus cabelos em serpentes e fez com que o seu

olhar transformasse em pedras tudo que mirassem.2) Monte Ampelusa: Cabo Espartel, norte de Marrocos.3) Tanger: atual Marrocos4) Anteu: um dos gigantes, filho de Netuno e da Terra. Era

invencível estivesse em contacto com a Terra, sua mãe. Assim, para vencê-lo Hércules o

enquanto pisasse o chão, então, Hércules o suspendeu e sufocou. 5) Abila: região perto de Ceuta.

6) Tuba: instrumento musical de sopro.7) Juba: Rei da Numidia, atual Mauritânia.

«Entrava, com toda esta companhia, 78o Entrava, com toda essa companhia,O Miralmomini em Portugal; O Califa de Marrocos (1) em Portugal;Treze Reis mouros leva de valia, Treze reis mouros, com ele seguiam,Entre os quais tem o ceptro Imperial. Aos quais ele comandava, pois era seu o poder imperial.E assi, fazendo quanto mal podia, E assim foi fazendo todo mal que podia,O que em partes podia fazer mal, Nas regiões onde podia fazer o mal,Dom Sancho vai cercar em Santarém; A Dom Sancho vai cercar, em Santarém (2);Porém não lhe sucede muito bem. Mas dessa empreitada, não se saiu muito bem.

1) Califa de Marrocos: Abu Yacub2) Santarém: cidade na região central de Portugal.

«Dá-lhe combates ásperos, fazendo 79o Fustiga a Dom Sancho com duros combates, fazendoArdis de guerra mil, o Mouro iroso; Milhares de ardis de guerra, o mouro furioso;Não lhe aproveita já trabuco horrendo, Contudo, não lhe é suficiente o trabuco (1) horrendo,Mina secreta, aríete forçoso; Ou a mina secreta (2) ou o aríete (3) poderoso;Porque o filho de Afonso, não perdendo Porque Sancho, o filho de Afonso, não perdendoNada do esforço e acordo generoso, Nada da determinação e do raciocínio precioso,Tudo provê com ânimo e prudência, Tudo providencia, com animação e prudência,Que em toda a parte há esforço e resistência. Para que em toda parte haja determinação e resistência,

1) Trabuco: Antiga maquina de guerra, para lançar grandes pedras.

2) Mina secreta: bombas camufladas. 3) Aríete: antiga arma usada para abalar as muralhas

«Mas o velho, a quem tinham já obrigado 80o Mas o velho Afonso, que já estava alquebrado,Os trabalhosos anos ao sossego, Pelos trabalhosos anos, e que repousa em sossegoEstando na cidade cujo prado Na doce cidade de Coimbra, onde o verdejante pradoEnverdecem as águas do Mondego, Colore de verde as águas do rio Mondego (1),Sabendo como o filho está cercado, Sabendo que o seu filho está cercado,Em Santarém, do Mauro povo cego, Em Santarém, pelo mouro alucinado,Se parte diligente da cidade; Parte rapidamente para aquela localidade;Que não perde a presteza co a idade. Pois não perdeu o vigor com o avançar da idade.

1) Mondego: rio que nasce na serra da Estrela e banha Coimbra.

«E co a famosa gente, à guerra usada, 81o E com a famosa tropa, à guerra habituada,Vai socorrer o filho; e assi ajuntados, Vai socorrer o filho; e assim reunidos,A Portuguesa fúria costumada A costumeira fúria portuguesa foi desencadeadaEm breve os Mouros tem desbaratados. E em pouco tempo os mouros foram vencidos.A campina, que toda está coalhada A campina, que ficou abarrotada

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De marlotas, capuzes variados, De marlotas (1), capuzes variados,De cavalos, jaezes, presa rica, De cavalos, jaezes (2) e tanta presa rica,De seus senhores mortos cheia fica. Lotada de mouros mortos, também fica.

1 Marlotas: capote curto com capuz, usado pelos mouros.2 Jaezes: arreios e enfeites para cavalos.

«Logo todo o restante se partiu 82o Logo depois o restante dos mouros partiuDe Lusitânia, postos em fugida; Da Lusitânia, afugentados em louca corrida;O Miralmomini só não fugiu, O Califa de Marrocos só não fugiu,Porque, antes de fugir, lhe foge a vida. Porque antes de conseguir, lhe foge a vida.A Quem lhe esta vitória permitiu A Deus, que aos lusos esta vitória permitiu,Dão louvores e graças sem medida; Levantam-lhe louvores e graças sem medida;Que, em casos tão estranhos, claramente Porque em acontecimentos como aquele, vê-se claramenteMais peleja o favor de Deus que a gente. Que mais vale o socorro de Deus que a luta da gente.

«De tamanhas vitórias triunfava 83o Com tamanhas vitórias triunfavaO velho Afonso, Príncipe subido, O velho Afonso, rei elevado,Quando quem tudo enfim vencendo andava, Quando ele, que a tudo vencendo andava,Da larga e muita idade foi vencido. Foi vencido pela avançada idade e pela morte foi levado (1).A pálida doença lhe tocava, A pálida doença há muito que já tocava,Com fria mão, o corpo enfraquecido; Com a fria mão, o seu corpo esgotado;E pagaram seus anos, deste jeito, E entregou os seus longos anos, desse jeito,À triste Libitina seu direito. À triste Libitina (2) como era de direito.

1) Dom Afonso I, morreu em 06 de Dezembro de 1.1852) Libitina: deusa da morte, que presidia os funerais.

«Os altos promontórios o choraram, 84o Os altos promontórios o choraram,E dos rios as águas saüdosas E as águas dos rios, saudosas,Os semeados campos alagaram, Os férteis campos alagaram,Com lágrimas correndo piadosas; Como se fossem lágrimas correndo piedosas;Mas tanto pelo mundo se alargaram, Sua fama e glória, por todo mundo, tanto se estenderamCom fama suas obras valerosas, Pelas suas obras valorosas,Que sempre no seu reino chamarão Que sempre no seu reino o invocarão«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão. E os ecos repetirão: Afonso, Afonso; Mas em vão.

«Sancho, forte mancebo, que ficara 85o Sancho, forte mancebo, que ficaraImitando seu pai na valentia, Igual ao pai, na determinação e na valentia,E que em sua vida já se exprimentara E que, na sua jovem vida já provara,Quando o Bétis de sangue se tingia Ter valor, quando o rio Bétis (1) de sangue se tingiaE o bárbaro poder desbaratara E o domínio dos mouros ele derrotara,Do Ismaelita Rei de Andaluzia, Que insolentemente governavam a Andaluzia;E mais quando os que Beja em vão cercaram E também quando aqueles que Beja (2), inutilmente cercaram,Os golpes de seu braço em si provaram; Os seus golpes experimentaram.

1) Rio Bétis: rio da Andaluzia, Espanha.2) Beja: cidade no Alentejo, Portugal.

«Despois que foi por Rei alevantado, 86o Depois que foi, como rei, proclamado,Havendo poucos anos que reinava, E após pouco tempo que reinava,A cidade de Silves tem cercado, O campo da cidade de Silves (1), por ele é cercado,Cujos campos o Bárbaro lavrava. Onde o sórdido mouro lavrava.Foi das valentes gentes ajudado Nesta empreitada, foi ajudado pelo determinadoDa Germânica armada que passava, Exército alemão, que por ali passava,De armas fortes e gente apercebida, Com um armamento forte e poderosoA recobrar Judeia já perdida. Para retomarem a Judéia, dominada pelo mouro rancoroso.

1) Silves: cidade situada no sul de Portugal.

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«Passavam a ajudar na santa empresa 87o Os alemães seguiam para ajudar na Santa Cruzada (1),O roxo Federico, que moveu Comandados por Frederico Barba Roxa (2), que mobilizouO poderoso exército, em defesa Um poderoso exército para a retomadaDa cidade onde Cristo padeceu, Da cidade que a Cristo martirizou;Quando Guido, co a gente em sede acesa, E que Guido (3), com as tropas assoladas pela sede desvairada,Ao grande Saladino se rendeu, Ao grande Saladino (4) entregou.No lugar onde aos Mouros sobejavam Ali, onde os mouros desperdiçavam,As águas que os de Guido desejavam. A água que as tropas de Guido tanto necessitavam.

1) Santa Cruzada: as lutas religiosas. Entre mouros e cristãos.

2) Frederico Barba Roxa: imperador da alemanha entre 1152 e 1190.

3) Guido: Guido de Lusignan, rei de Jerusalém e posteriormente de Chipre.

Em 1187 foi aprisionado por Saladino na batalha de Tiberíade e sendo

atormentado pela sede acabou rendendo-se.4) Saladino: sultão do Egito e da Síria, herói muçulmano da

3a Cruzada. Cruzada que tomou Jerusalém em 1.187.

«Mas a Mas Mas fermosa armada, que viera 88o A poderosa frota dos alemães que chegara veloz,Por contraste de vento àquela parte, Em função dos ventos contrários, na regiãoSancho quis ajudar na guerra fera, Lusitana, decidiu ajudar ao rei Sancho naquela guerra atroz,Já que em serviço vai do santo Marte. Já que a serviço do deus Marte (1) seguia com determinação.Assi como a seu pai acontecera Assim como acontecera com o pai de Sancho, quando com ferozQuando tomou Lisboa, da mesma arte Luta ele tomou Lisboa, também ajudado pelo exército alemão,Do Germano ajudado, Silves toma As tropas estrangeiras ajudam-no e ele retomaE o bravo morador destrui e doma. A cidade de Silves (2) e derrota os mouros e os doma.

1) Marte: o deus da guerra. Neste contexto, leia-se “a serviço da guerra”.

2) Silves: cidade situada no sul de Portugal.

«E se tantos troféus do Mahometa 89o E além das vitórias sobre a gente de Mahometa (1)Alevantando vai, também do forte Que vai conquistando, ao destemido e forteLionês não consente estar quieta Leonês (2) não permite estar em paz e quietaA terra, usada aos casos de Mavorte, A sua terra, sempre usada nas guerras de Mavorte (3),Até que na cerviz seu jugo meta Até que ao seu domínio submetaDa soberba Tuí, que a mesma sorte A orgulhosa cidade Tuí (4), que tem a mesma sorteViu ter a muitas vilas suas vizinhas, Que as vilas e as cidades que lhes eram vizinhas,Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas. Que pela força das armas, Sancho, subjugadas as tinha.

1) Mahometa: ismaelita, seguidor da doutrina de Maomé. Os mouros.

2) Leonês: o natural de Leão, um dos reinos da Espanha. 3) Mavorte: o outro nome de Marte, deus da guerra.4) Tuí: cidade espanhola, na região da Galizia.

«Mas, entre tantas palmas salteado 90o Mas entre tanto triunfo celebradoDa temerosa morte, fica herdeiro A morte acabou levando-o e fica como herdeiroUm filho seu, de todos estimado, Um filho seu, que por todos era muito estimado,Que foi segundo Afonso e Rei terceiro. Chamado de Afonso II e como rei de Portugal foi o terceiro.No tempo deste, aos Mauros foi tomado Durante o seu reinado, dos mouros foi tomadoAlcáçare do Sal, por derradeiro; Alcácere do Sal (1), que ficou conquistada por derradeiro;Porque dantes os Mouros o tomaram, E os mouros que insolentemente a tomaram,Mas agora estruídos o pagaram. Agora, destruídos, por essa insolência pagaram.

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1) Alcácere do Sal: cidade portuguesa, situada no Alentejo.

Morto despois Afonso, lhe sucede 91o Após a morte de Afonso, lhe sucedeSancho segundo, manso e descuidado; Sancho II (1), inerte e relaxado,Que tanto em seus descuidos se desmede Tão inepto que até concedeQue de outrem quem mandava era mandado. Que outras pessoas governem e assumam o seu reinado.De governar o Reino, que outro pede, E por atender aos desvios que outros lhe pede,Por causa dos privados foi privado, Da chefia do governo foi exonerado,Porque, como por eles se regia, E também porque com vícios perniciosos ele regiaEm todos os seus vícios consentia. E a todos os desmandos ele consentia.

1) Sancho II: quarto rei de Portugal, filho de Dom Afonso II.

«Não era Sancho, não, tão desonesto 92o Não era Sancho II tão devasso e desonestoComo Nero, que um moço recebia Como Nero (1), que um rapaz recebia,Por mulher e, despois, horrendo incesto Como se fosse mulher e, depois, horrível incesto,Com a mãe Agripina cometia; Com a sua mãe, Agripina (2), cometia;Nem tão cruel às gentes e molesto Nem era tão cruel com o povo e nem tão funestoQue a cidade queimasse onde vivia; Que queimasse (3) a cidade onde vivia;Nem tão mau como foi Heliogabalo, Nem era tão mau como foi Heliogabalo (4)Nem como o mole Rei Sardanapalo. Nem tão pervertido como o rei Sardanapalo (5).

1) Nero: imperador romano famoso pelas perversões.2) Agripina: mãe de Nero.3) Nero mandou incendiar Roma, para inspirar-se e compor.4) Heliogabalo: imperador romano celebre pela crueldade e

devassidão.5) Sardanapalo: rei lendário da Assíria, último descendente

de Semíramis e célebre pela devassidão.

«Nem era o povo seu tiranizado, 93O Nem era o seu povo tiranizado,Como Sicília foi de seus tiranos; Como o da Sicília (1) foi por seus tiranos;Nem tinha, como Fálaris, achado Nem tinha, como Fálaris (2), achadoGénero de tormentos inumanos; Métodos de torturas e tormentos desumanos;Mas o Reino, de altivo e costumado Mas Portugal, altivo e acostumadoA senhores em tudo soberanos, A reis que eram verdadeiros soberanos,A Rei não obedece nem consente A líderes, não obedece e nem consenteQue não for mais que todos excelente. Se não forem, dentre todos, o mais excelente.

1) Sicília: região no sul da Itália.2) Fálaris: Tirano de Agrigento, na Sicília, famoso por sua crueldade. Mandou construir um touro oco, de bronze, onde as suas vítimas eram colocadas e assadas. Os lamentos dos supliciados saiam pela boca do animal com se fossem os seus mugidos.

«Por esta causa, o Reino governou 94o Assim, destituído Sancho, o reino governouO Conde Bolonhês, despois alçado O conde Bolonhês (1), que depois foi proclamadoPor Rei, quando da vida se apartou Rei, quando a Sancho II a morte levou,Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado. O qual, apenas ao ócio continuava dedicado.Este, que Afonso o Bravo se chamou, Este conde, que depois de coroado, Afonso “O Bravo” se chamou,Despois de ter o Reino segurado, Após ter o reino forte e consolidado,Em dilatá-lo cuida, que em terreno Cuidou de ampliá-lo, porque em terreno tão estreito,Não cabe o altivo peito, tão pequeno. Não cabe o altivo e corajoso peito.

1) Conde Bolonhês: Dom Afonso III, que viveu na França e era casado com D. Matilde de Bolonha.

«Da terra dos Algarves, que lhe fora 95o Das terras do Algarve (1), que lhe fora

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Em casamento dada, grande parte Dada no seu casamento, uma grande parteRecupera co braço, e deita fora Ele recupera com o braço forte, e põe para foraO Mouro, mal querido já de Marte. O mouro, que já era malvisto pelo deus Marte.Este de todo fez livre e senhora Ele libertou toda a terra lusitana, sem demora,Lusitânia, com força e bélica arte, Com força e talento na guerreira arte;E acabou de oprimir a nação forte, E acabou por oprimir o mouro forte,Na terra que aos de Luso coube em sorte. Naquela terra, que aos lusos coube pela sorte.

1) Algarve: a região sul de Portugal.

«Eis despois vem Dinis, que bem parece 96o É sucedido por Dom Dinis que muito se pareceDo bravo Afonso estirpe nobre e dina, Com o bravo Afonso de linhagem nobre e digna,Com quem a fama grande se escurece E de quem a fama só se obscureceDa liberalidade Alexandrina. Pela libertinagem com as mulheres, suas concubinas.Co este o Reino próspero florece Com ele o reino prospera e floresce(Alcançada já a paz áurea divina) (Já tendo sido conquistada a paz Divina)Em constituições, leis e costumes, Com melhores leis, usos e costumes,Na terra já tranquila claros lumes. E na terra pacificada surgem da cultura, os claros lumes.

«Fez primeiro em Coimbra exercitar-se 97o Primeiro fez em Coimbra (1) exercitarem-seO valeroso ofício de Minerva; Os valorosos trabalhos de Minerva (2);E de Helicona as Musas fez passar-se E do monte de Helicona (3) fez as Musas (4) mudarem-seA pisar de Mondego a fértil erva. Para as margens do rio Mondego (5), onde brota a fértil erva.Quanto pode de Atenas desejar-se Tudo aquilo que de Atenas pode desejar-seTudo o soberbo Apolo aqui reserva. Aqui o altivo Apolo (5) já reserva.Aqui as capelas dá tecidas de ouro, Aqui ele oferece as coroas feitas com ouro,Do bácaro e do sempre verde louro. Do bácaro e do sempre viçoso louro.

1) Instalação nesta cidade dos Estudos Gerais, base da futura Universidade.2) Minerva: filha de Júpiter, deusa da inteligência, da sabedoria e das artes.3) Helicona: monte da Beócia, onde existia um santuário das Musas. Os poetas o celebravam como ao Pindo e ao Parnaso.4) Musas: divindades filhas de Zeus e Mnemosina, criadas para cantar as proezas dos deuses. Habitavam o Helicona, o Parnaso e o Pindo. Presidem o pensamento em todas as suas formas: eloqüência, persuasão, sabedoria, história, matemática e astronomia.5) Mondego: rio que nasce na serra das Estrelas, banha Coimbra e deságua no Atlântico.6) Apolo, deus do Sol e da Poesia.

«Nobres vilas de novo edificou, 98o Nobres cidades ele restaurou,Fortalezas, castelos mui seguros, Fortalezas, castelos muitos seguros,E quási o Reino todo reformou E quase que o reino todo, ele reformouCom edifícios grandes e altos muros; Com grandes edifícios e altos muros:Mas despois que a dura Átropos cortou Mas depois que Átropos (1) cortouO fio de seus dias já maduros, O fio que o ligava à vida, após o avançar dos anos maduros,Ficou-lhe o filho pouco obediente, Sucedeu-lhe o filho, um pouco desobediente,Quarto Afonso, mas forte e excelente. Chamado de Afonso IV era forte e de índole excelente.

1) Átropos: uma das Parcas, entidades que tecem os fios da vida.

«Este sempre as soberbas Castelhanas 99o As ofensas e as injúrias CastelhanaCo peito desprezou firme e sereno, Ele sempre desprezou com o coração firme, mas sereno;Porque não é das forças Lusitanas Porque não é próprio da gente lusitanaTemer poder maior, por mais pequeno; Acovardar-se ante um poder maior, mesmo sendo pequeno;

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Mas porém, quando as gentes Mauritanas, Porém quando a tropa Mauritana,A possuir o Hespérico terreno, Para conquistar o espanhol terreno,Entraram pelas terras de Castela, Entrou pelas terras de Castela (1)Foi o soberbo Afonso a socorrê-la. O altivo Afonso correu para socorrê-la.

1) Castela: um dos reinos da Espanha.

«Nunca com Semirâmis gente tanta 100o Nunca com Semíramis (1) tanta genteVeio os campos Idáspicos enchendo, Foi para os campos idáspicos (2) o enchendo,Nem Átila, que Itália toda espanta, Nem Átila (3), que toda a Itália deixou temente,Chamando-se de Deus açoute horrendo, Chamando-se de açoite de Deus, tão horrendo,Gótica gente trouxe tanta, quanta Trouxe tantos soldados, a gótica gente,Do Sarraceno bárbaro, estupendo, Quanto o bárbaro Sarraceno foi trazendo,Co poder excessivo de Granada, Junto com armas poderosas, para a cidade Granada (5)Foi nos campos Tartés[s]ios ajuntada. E que nos campos Tartéssio (6) foi agrupada.

1) Semiramis: rainha da Assíria e da Babilônia, que após ter enviuvado do rei Nino, conquistou a Pérsia, a Arábia, a

Armênia,o Egito e a Líbia.2) Campos idáspicos: campos banhados pelo rio Idaspe, na

Índia.3) Átila: rei dos Hunos. Chamado de flagelo de Deus.4) Góticos: bárbaros germânicos5) Granada, cidade espanhola, na Andaluzia, que foi capital

de um pequeno Estado árabe até 1492.6) Tartéssio: os campos perto de Tarifa, na Andaluzia,

Espanha.

«E, vendo o Rei sublime Castelhano 101o Vendo o sublime rei CastelhanoA força inexpugnábil, grande e forte, Que a força do mouro inimigo era grande e forte,Temendo mais o fim do povo Hispano, E temendo mais o fim trágico do povo hispanoJá perdido üa vez, que a própria morte, (Como já acontecera uma vez) que a própria morte,Pedindo ajuda ao forte Lusitano Para pedir ajuda ao forte lusitanoLhe mandava a caríssima consorte, Mandava a sua amada consorte,Mulher de quem a manda e filha amada Que era a sua esposa e era a filha adoradaDaquele a cujo Reino foi mandada. Daquele rei, a cujo reino foi mandada.

«Entrava a fermosíssima Maria 102o Entrava a belíssima MariaPolos paternais paços sublimados, Nos pátios paternais sublimados,Lindo o gesto, mas fora de alegria, Embora fosse lindo o seu rosto, não ostentava alegria,E os seus olhos em lágrimas banhados; E os seus olhos, por lágrimas, eram banhados.Os cabelos angélicos trazia Os angelicais cabelos, ela traziaPelos ebúrneos ombros espalhados. Pelos ombros soltos e espalhados.Diante do pai ledo, que a agasalha, Diante do pai, feliz por revê-la, e que lhe agasalha,Estas palavras tais, chorando, espalha: Estas palavras, chorando, ela fala:

- «Quantos povos a terra produziu 103o Todos os povos que a terra produziuDe Africa toda, gente fera e estranha, Em toda África, gente feroz e estranha,O grão Rei de Marrocos conduziu O grande rei de Marrocos conduziuPera vir possuir a nobre Espanha: Para vir conquistar a nobre Espanha;Poder tamanho junto não se viu Poder militar, assim reunido, nunca se viu,Despois que o salso mar a terra banha Desde que o salgado mar a terra banha (1).Trazem ferocidade e furor tanto São tão ferozes e vem com tanto furorQue a vivos medo e a mortos faz espanto! Que aos vivos amedrontam e aos mortos causam estupor.

1) Ou seja, desde que o mundo existe.

«Aquele que me deste por marido, 104o Aquele que tu me deste como marido,Por defender sua terra amedrontada, Por defender a sua terra apavorada,

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Co pequeno poder, oferecido Com pouquíssimos recursos, está exposto e caídoAo duro golpe está da Maura espada; Ao duro golpe das armas dos mouros, gente desalmada.E, se não for contigo socorrido, E se não for por ti socorrido,Ver-me-ás dele e do Reino ser privada; Tu me verás ser do reino e do marido privada;Viúva e triste e posta em vida escura, Viúva e triste, numa vida escura,Sem marido, sem Reino e sem ventura. Sem marido, sem reino e coberta de amargura.

«Portanto, ó Rei, de quem com puro medo 105o Assim meu rei, que atemoriza e que tem tanta influênciaO corrente Muluca se congela, Que até o rio Muluca (1), de tanto temor, se congela,Rompe toda a tardança, acude cedo Acabe com qualquer demora e socorre com urgênciaÀ miseranda gente de Castela. A pobre gente do reino de Castela (2).Se esse gesto, que mostras claro e ledo, Se o teu semblante que vejo claro e feliz,De pai o verdadeiro amor assela, Atesta o verdadeiro amor paternal, como se diz;Acude e corre, pai, que, se não corres, Acuda com rapidez, ó pai, porque se não corres,Pode ser que não aches quem socorres.» É provável que não mais encontre àquele que socorres.

1) Rio Muluca: situado em Marrocos.2) Castela, região da Espanha.

«Não de outra sorte a tímida Maria 106o Não era diferente a súplica da tímida MariaFalando está que a triste Vénus, quando Daquela que a triste Vênus (1), quandoA Júpiter, seu pai, favor pedia Para Júpiter (2), seu pai, a intervenção pediaPera Eneias, seu filho, navegando; Para favorecer a Enéas (3) que fugia navegando;Que a tanta piedade o comovia Tão tocante que a Júpiter comoviaQue, caído das mãos o raio infando, E ele, do rigor se despojando,Tudo o clemente Padre lhe concede, Tudo, prontamente lhe concedia,Pesando-lhe do pouco que lhe pede. Pouco se importando com o que ela pedia.

1) Vênus: deusa do amor e do Oceano2) Júpiter: o pai dos deuses. 3) Enéas: príncipe troiano, filho de Vênus.

«Mas já cos esquadrões da gente armada 107o Rapidamente, com esquadrões de gente armada,Os Eborenses campos vão coalhados; Os campos Eborenses (1) estão lotados;Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada; Brilham ao sol o arnês (2), a lança e a espada;Vão rinchando os cavalos jaezados; Relincham os cavalos ornamentados.A canora trombeta embandeirada A sonora trombeta embandeiradaOs corações, à paz acostumados, Toca os corações que à paz estavam habituados,Vai às fulgentes armas incitando, E para que peguem em armas a todos vai incitando,Polas concavidades retumbando E por toda parte de Portugal vai ecoando.

1) Eborenses: Campos ao redor da cidade de Évora, no Alentejo, Portugal.

2) Arnês: armaduras completas.

«Entre todos no meio se sublima, 108o Destacando-se dos demais se sublima,Das insígnias Reais acompanhado, Com as insígnias reais, todo paramentado,O valeroso Afonso, que por cima O valoroso Afonso, que bem acimaDe todos leva o colo alevantado, De todos tem o porte levantado,E sòmente co gesto esforça e anima E apenas com o semblante impávido entusiasma e animaA qualquer coração amedrontado. A qualquer coração amedrontado.Assi entra nas terras de Castela Assim, entra nas terras de CastelaCom a filha gentil, Rainha dela. Junto de sua gentil filha, que é a rainha dela.

«Juntos os dous Afonsos, finalmente 109o Juntos, os dois Afonsos, finalmente,Nos campos de Tarifa estão defronte Nos campos de Tarifa (1), estão de frenteDa grande multidão da cega gente, Da grande tropa da infiel gente,Pera quem são pequenas campo e monte. Que transborda do campo e do monte.Não há peito tão alto e tão potente Não há coração tão valenteQue de desconfiança não se afronte, Que amedrontado, não se torne vacilante,

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Enquanto não conheça e claro veja Até que claramente vejaQue co braço dos seus Cristo peleja. Que através de seus braços é o próprio Cristo quem peleja.

1) Tarifa: cidade ao sul da Espanha.

«Estão de Agar os netos quási rindo 110o Os netos de Agar (1) desdenham sorrindoDo poder dos Cristãos, fraco e pequeno, Do poderio dos cristãos, tão fraco e pequeno,As terras como suas repartindo, E como se já fossem suas as terras vão repartindo,Antemão, entre o exército Agareno, Entre todo o malévolo exército Agareno (2).Que, com título falso, possuindo Com falsa legitimidade, a está possuindo,Está o famoso nome Sarraceno. O infernal e mal afamado Sarraceno.Assi também, com falsa conta e nua, E com essa ilegitimidade crua e nua,À nobre terra alheia chamam sua. Chamam aquela nobre terra de sua.

1) Agar: escrava de Abrão que dele gerou Ismael de quem descenderam os árabes (mouros). 2) Agareno: derivado de Agar, os mouros.

«Qual o membrudo e bárbaro Gigante, 111o Zombavam, como fez o forte e bárbaro gigante (1)Do Rei Saul, com causa tão temido, Com o rei Saul (2), pois ele que era tão poderoso e temido,Vendo o Pastor inerme estar diante, Via que apenas um fraco e desarmado pastor colocara-se-lhe adiante,Só de pedras e esforço apercebido, Equipado apenas com pedras e de muita coragem munido.Com palavras soberbas, o arrogante, Com palavras insolentes, o arrogante,Despreza o fraco moço mal vestido, Despreza o pastor frágil e mal armado,Que, rodeando a funda, o desengana Que rodando a funda arremessa-lhe uma pedra que o derruba e desengana(Quanto mais pode a Fé que a força humana!) Pois mais poder tem a Fé, que a força humana:

1) Gigante:Golias, citado na Bíblia e que foi morto por Davi, súdito de Saul.

2) Saul, o primeiro rei dos hebreus.

«Destarte o Mouro pérfido despreza 112o Desse modo, o pérfido mouro desprezaO poder dos Cristãos, e não entende O poder dos cristãos, e não entendeQue está ajudado da alta Fortaleza Que eles têm a ajuda da Divina FortalezaA quem o Inferno horrífico se rende. A quem o próprio inferno terrível, se rende.Co ela o Castelhano, e com destreza, Com essa celestial ajuda, o Castelhano, com muita destreza,De Marrocos o Rei comete e ofende; Ataca o rei de Marrocos numa estupenda proeza;O Português, que tudo estima em nada, O português, para quem os obstáculos não significavam nada,Se faz temer ao Reino de Granada. Faz-se temido no reino de Granada (1).

1) Granada: cidade na Espanha que até 1492 foi capital de um

pequeno reino mouro.

«Eis as lanças e espadas retiniam 113o As lanças e as espadas tiniamPor cima dos arneses - bravo estrago! -; Sobre os arneses (causando um grande estrago);Chamam (segundo as Leis que ali seguiam), Invocam, segundo as religiões que seguiam,Uns Mafamede e os outros Santiago. Alguns por Mafamede (1) e outros por Santiago (2).Os feridos com grita o céu feriam, Os gritos dos feridos até ao céu subiam,Fazendo de seu sangue bruto lago, O sangue ali derramado fazia um triste lago,Onde outros, meios mortos, se afogavam, Onde alguns, semimortos, se afogavamQuando do ferro as vidas escapavam. Quando das armas, por sorte, com vida escapavam.

1) Os mouros invocavam a Maomé.2) Os cristãos invocavam Santiago de Compostela, padroeiro da Espanha.

«Com esforço tamanho estrui e mata 114o Com muito esforço, o luso destrói e mata

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O Luso ao Granadil, que em pouco espaço O granadil (1) e em tempo escasso,Totalmente o poder lhe desbarata, Elimina completamente o poder do mouro, a quem desbarata,Sem lhe valer defesa ou peito de aço. Sem que lhe tenha valido as defesas e as armas de aço.De alcançar tal vitória tão barata Mas esta vitória que não lhe saiu barataÍnda não bem contente o forte braço, Não o contenta e com o forte braço,Vai ajudar ao bravo Castelhano, Vai ajudar ao genro CastelhanoQue pelejando está co Mauritano. Que lutava contra outro Mauritano.

1) Granadil: mouros da cidade de Granada.

«Já se ia o Sol ardente recolhendo 115o Nisto o sol ardente já ia se recolhendoPera a casa de Tétis, e inclinado Para a casa de Téthis (1) e inclinadoPera o Ponente, o véspero trazendo, Para o poente, o Véspero (2) ia trazendo,Estava o claro dia memorado, Para substituir aquele claro dia, que para sempre será lembrado.Quando o poder do Mauro, grande e horrendo, Foi então que o exército dos mouros, imenso e horrendo,Foi pelos fortes Reis desbaratado, Pelos fortes reis foi finalmente destroçado,Com tanta mortindade que a memória Com tanta mortandade que a historiaNunca no mundo viu tão grão vitória. Em todo mundo nunca registrou tão grande vitória.

1) Téthis: Deusa do mar2) Véspero: a estrela Vésper, da tarde.

«Não matou a quarta parte o forte Mário 116o Não matou nem um quarto o forte Mario (1)Dos que morreram neste vencimento, Em relação aos mortos que houve neste enfrentamento,Quando as águas co sangue do adversário Quando, como se fosse água, o sangue do mouro adversárioFez beber ao exército sedento; Foi bebido pelo exército sedento;Nem o Peno, asperíssimo contrário Nem o Peno (2), general contrárioDo Romano poder, de nascimento, Ao poder romano, desde o nascimento,Quando tantos matou da ilustre Roma, Quando matou a tantos, da ilustre Roma,Que alqueires três de anéis dos mortos toma. Que o cemitério, em forma de círculos, três alqueires toma.

1) Mario: cônsul e general romano que venceu os teutões em Aix, quando

morreram mais de cem mil homens, segundo relata Plutarco.2) Peno: o general cartagines Aníbal.

«E se tu tantas almas só pudeste 117o E vós, se tantas almas pudestesMandar ao Reino escuro de Cocito, Mandar para o reino escuro de Cocito (1),Quando a santa Cidade desfizeste Quando Jerusalém, a cidade santa, destruístesDo povo pertinaz no antigo rito, Assim como ao seu povo, apegado ao antigo rito,Permissão e vingança foi celeste, Saiba que a permissão e a vingança foram celestesE não força de braço, ó nobre Tito, E não por obra do teu braço, ó nobre Tito (2);Que assi dos Vates foi profetizado Conforme os adivinhos tinham profetizado,E despois por JESU certificado. E que depois, por Jesus, foi confirmado.

1) Cocito: um dos rios do Inferno. O inferno.2) Tito: imperador romano. Essa destruição, na verdade,aconteceu durante o governo de Vespasiano, pai de Tito.

«Passada esta tão prospera vitória, 118o Após esta magnífica vitória,Tornado Afonso à Lusitana terra, Retornando Afonso para a lusitana terra,A se lograr da paz com tanta glória Para ali gozar, na paz, da grande glóriaQuanta soube ganhar na dura guerra, Que soube ganhar na dura guerra,O caso triste, e dino da memória Aconteceu um caso triste e digno de ficar na memória (1)Que do sepulcro os homens desenterra. Quando da sepultura, a gente lusa desenterra,Aconteceu da mísera e mesquinha Aquela infeliz mulher, de sorte mesquinha,Que despois de ser morta foi Rainha. Que depois de ser morta, foi coroada como rainha.

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1) O filho de Afonso IV, Dom Pedro, foi casado aos dezenove anos

com a princesa de Castela, D. Constança, num casamento de conveniência Conveniência. Na comitiva da noiva veio Inês de Castro por

politica. Na comitiva de D. Contança veio a jovem Inês de Castro por quem

Dom Pedro apaixonou-se e com quem teve três filhos. Dom Afonso IV, pai

de Dom Pedro foi muito pressionado pelos conselheiros do Reino

devido à inconveniência daquela relação e cede à pressão e manda matar

D.Inês o que gerou uma guerra civil entre pai e filho e que só

terminou terminou terminou com a intervenção da rainha, Dona Beatriz, e do Bispo de

Braga. Após a morte de Dom Afonso, Dom Pedro foi coroado rei e embora

tivesseprometido ao pai que não se vingaria daqueles que mataram

D. Inês,não cumpriu a promessa e fez com que o corpo de Dona Inês

fossedesenterrado e que a corte a saudasse como a rainha

proclamada.

«Tu só, tu, poro Amor, com força crua, 119o Apenas tu, puro Amor, com a força crua,Que os corações humanos tanto obriga, Que aos pobres corações humanos tanto castiga,Deste causa à molesta morte sua, Fostes o culpado da desgraça da jovem Inês (1) e pela morte sua,Como se fora pérfida inimiga. Assassinada como se fosse uma pérfida inimiga.Se dizem, fero Amor, que a sede tua Mas dizem, Amor feroz, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga, Nem com as tristes lágrimas se mitiga,É porque queres, áspero e tirano, Pois és um cruel e duro tirano,Tuas aras banhar em sangue humano. E queres banhar os teus altares com o sacrifício humano.

1) Inês de Castro: era uma dama galega, filha de D.Pedro

Fernandes dejunto com Constança, e

Castro. Vide notas da estrófe 118. Para alguns era considerada uma

figura antipática, que manipulava a Dom Pedro. Para outros, como

Camões, era uma vitima inocente e infeliz.

«Estavas, linda lnês, posta em sossego, 120o A bela Inês estava em completo sossego,De teus anos colhendo doce fruto, Colhendo de sua juventude, os doces frutos,Naquele engano da alma, ledo e cego, Naquele engano da alma, feliz e cego,Que a Fortuna não deixa durar muito, Pois a sorte não deixa que sejam muitos.Nos saüdosos campos do Mondego, Nos saudosos campos de Mondego (1),De teus fermosos olhos nunca enxuto, Com os formosos olhos nunca enxutos,Aos montes ensinando e às ervinhas Vivia falando com os montes e para as flores repetiaO nome que no peito escrito tinhas. O nome do seu amado príncipe, que gravado no coração trazia.

1) Mondego: rio que banha Coimbra, onde Dom Pedro montou uma casa

para Dna. Inês.

«Do teu Príncipe ali te respondiam 121o Do seu amado príncipe ali surgiamAs lembranças que na alma lhe moravam, As recordações que deixavam o seu coração magoado,Que sempre ante seus olhos te traziam, E que sempre aos seus olhos traziam,Quando dos teus fermosos se apartavam; A figura do amado, quando estavam separados;De noite, em doces sonhos que mentiam, Durante a noite, em doces sonhos que a iludiam,

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De dia, em pensamentos que voavam; Durante o dia em pensamentos apaixonados.E quanto, enfim, cuidava e quanto via Lembrança constante, terna e que refletiaEram tudo memórias de alegria. A felicidade que eles viviam e o amor que ela sentia.

«De outras belas senhoras e Princesas 122o De outras belas senhoras e de uma PrincesaOs desejados tálamos enjeita, Os convenientes casamentos, ele rejeita,Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas Pois tudo, puro Amor, desprezaQuando um gesto suave te sujeita. Quem ao doce sentimento se entrega com a alma satisfeita.Vendo estas namoradas estranhezas, Vendo estas atitudes e pressionado pela nobreza,O velho pai sesudo, que respeita O velho e sisudo pai (1), que muito respeitaO murmurar do povo e a fantasia As razões de Estado e diante da teimosiaDo filho, que casar-se não queria, Do filho, que se casar com outra não queria,

1) O pai: Dom Afonso “O Bravo”.

«Tirar Inês ao mundo determina, 123o Decide tirar Inês desse mundo e é o que determina,Por lhe tirar o filho que tem preso, Pois assim, imagina, que libertará o filho que ela mantém preso,Crendo co sangue só da morte indina Crendo que só com o sangue de uma morte ferinaMatar do firme amor o fogo aceso. Conseguirá acabar com amor tão aceso.Que furor consentiu que a espada fina Que estranha fúria foi essa que permitiu que a espada finaQue pôde sustentar o grande peso Que pôde suportar o enorme pesoDo furor Mauro, fosse alevantada Dos ataques mouros, fosse agora levantada,Contra üa fraca dama delicada? Contra uma mulher fraca e delicada?

«Traziam-a os horríficos algozes 124o Traziam-na os terríveis algozesAnte o Rei, já movido a piedade; Para frente do rei, que, no entanto, já lhe tinha piedade;Mas o povo, com falsas e ferozes Mas os conselheiros com falsas e ferozesRazões, à morte crua o persuade. Razões exigem uma dura morte e o rei se persuade.Ela, com tristes e piedosas vozes, Ela, com triste e melancólica voz,Saídas só da mágoa e saüdade Carregada apenas de mágoa e de saudadeDo seu Príncipe e filhos, que deixava, Do seu príncipe e de seus filhos, que deixava,Que mais que a própria morte a magoava, Fato, que mais que a própria morte, a amedrontava,

«Pera o céu cristalino alevantando, 125o Para o límpido céu levantando,Com lágrimas, os olhos piedosos Cobertos de lágrimas, os olhos piedosos(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando (Apenas os olhos, pois as mãos estavam presasUm dos duros ministros rigorosos); Por um dos ministros rigorosos);E despois nos mininos atentando, E depois, baixando-os, os filhos ficou fitando,Que tão queridos tinha e tão mimosos, Para os quais tinha tanto amor e eram tão formosos,Cuja orfindade como mãe temia, E cuja orfandade, como mãe, tanto temia,Pera o avô cruel assi dizia: Para o avô deles, tão cruel, assim dizia:

«Se já nas brutas feras, cuja mente 126o Se até mesmo as brutas feras, cuja menteNatura fez cruel de nascimento, A natureza fez cruel desde o nascimento,E nas aves agrestes, que somente E se até as aves agrestes, que somenteNas rapinas aéreas têm o intento, Nas caçadas aéreas tem contentamento,Com pequenas crianças viu a gente Com as crianças pequenas, como bem sabe toda genteTerem tão piadoso sentimento Demonstram carinho e um nobre sentimentoComo co a mãe de Nino já mostraram, Como quando com a mãe de Nino (1) já mostraram,E cos irmãos que Roma edificaram: E com os irmãos (2) que Roma edificaram:

1) Nino: rei lendário da Assíria, cuja esposa e não a mãe, como diz Camões,

quando criança teria sido abandonada na floresta e foi criada por pombas.

2) Rômulo e Remo, que foram amamentados por uma loba.

«Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito 127o Ó tu, que tem humano o semblante e nobre coração(Se de humano é matar üa donzela, (Se é que seja humano matar uma donzela,

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Fraca e sem força, só por ter subjeito Fraca e sem forças, apenas por ela ter devoçãoO coração a quem soube vencê-la), Para aquele que soube conquistá-la),A estas criancinhas tem respeito, Tenha dessas crianças compaixão,Pois o não tens à morte escura dela; Mesmo que a mim diga não,Mova-te a piedade sua e minha, Aja com a piedade que espero de ti,Pois te não move a culpa que não tinha. E não as castigue por um crime que eu não cometi.

«E se, vencendo a Maura resistência, 128o Se vencendo a moura resistência,A morte sabes dar com fogo e ferro, Sabes dar a morte com fogo e com ferro,Sabe também dar vida com clemência Também sabes dar a vida, com clemência,A quem pera perdê-la não fez erro. A quem irá perdê-la sem ter cometido qualquer erro.Mas, se to assi merece esta inocência, Mas se achas que mereço castigo apesar da minha inocência,Põe-me em perpétuo e mísero desterro, Coloca-me em perpétuo e miserável desterro,Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, Na Citia (1) fria ou lá na Líbia ardente,Onde em lágrimas viva eternamente. Onde viverei chorando eternamente.

1)Citia: região na Ásia, de clima muito frio.

«Põe-me onde se use toda a feridade, 129o Coloca-me onde impera a brutal ferocidade,Entre liões e tigres, e verei Entre leões e tigres, e vereiSe neles achar posso a piedade Se nas feras eu encontro a piedadeQue entre peitos humanos não achei. Que nos corações humanos eu não achei.Ali, co amor intrínseco e vontade Lá, com o amor abafado e com muita saudadeNaquele por quem mouro, criarei Daquele por quem morro, eu criareiEstas relíquias suas, que aqui viste, Os teus netos, estas tuas relíquias que aqui viste,Que refrigério sejam da mãe triste.» E que serão a recordação do pai e o consolo da mãe triste.

Queria perdoar-lhe o Rei benino, 130o Queria perdoar-lhe o rei benigno,Movido das palavras que o magoam; Comovido por aquelas palavras que lhe magoam;Mas o pertinaz povo e seu destino Mas o insistente clamor popular e o próprio destino(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. (Que quis assim) não lhe perdoam.Arrancam das espadas de aço fino Sacam as espadas de aço finoOs que por bom tal feito ali apregoam. Aqueles que julgam acertado o assassinato, conforme apregoam.Contra üa dama, ó peitos carniceiros, Contra uma frágil dama, ó corações carniceiros,Feros vos amostrais - e cavaleiros? Ferozes vocês se mostraram, mas isso os torna cavalheiros?

«Qual contra a linda moça Policena, 131o Igual quando contra a linda Policena (1),Consolação extrema da mãe velha, Que era o último consolo da sua velha mãe esgotada,Porque a sombra de Aquiles a condena, Instigado pelo fantasma de Aquiles (2) que a condena,Co ferro o duro Pirro se aparelha; O brutal Pirro (3) se arma com uma dura espada;Mas ela, os olhos com que o ar serena E ela, com os olhos que até ao ar serena(Bem como paciente e mansa ovelha) (Como se fosse uma mansa ovelha amedrontada)Na mísera mãe postos, que endoudece, Fita a mãe, que de tanta dor enlouquece,Ao duro sacrifício se oferece: E resignada, ao sacrifício se oferece.

1) Policena, filha de Príamo e Hécuba. Casou-se secretamente com Aquiles e

foi morta por Pirro, filho de Aquiles em outro casamento.2) Aquiles, herói grego, filho de Peleu e Tétis.3) Pirro, filho de Aquiles, era inimigo dos romanos. Era o rei

de Epiro.

«Tais contra Inês os brutos matadores, 132o Desse modo, avançaram contra Inês os cruéis matadores,No colo de alabastro, que sustinha No alvíssimo pescoço, que sustinhaAs obras com que Amor matou de amores As obras de arte com que o Cupido matou de amoresAquele que despois a fez Rainha, Àquele que depois de morta, a tornou rainha,As espadas banhando, e as brancas flores, As espadas enfiaram e as pálidas faces,Que ela dos olhos seus regadas tinha, Que banhada em lágrimas, ela tinha,

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Se encarniçavam, férvidos e irosos Atacaram irados e furiosos;No futuro castigo não cuidosos. Sem atentarem que no futuro sofreriam castigos rigorosos.

«Bem puderas, ó Sol, da vista destes, 133o Bem que poderias, ó sol, para as vistas destes,Teus raios apartar aquele dia, Os teus raios apagar naquele dia,Como da seva mesa de Tiestes, Como fizestes quando na mesa de Tiestes (1),Quando os filhos por mão de Atreu comia! Os seus próprios filhos, Atreu lhes servia.Vós, ó côncavos vales, que pudestes Vós, ó côncavos vales, que pudestesA voz extrema ouvir da boca fria, Escutar as últimas palavras da boca, já fria,O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, O nome de Pedro, que ouvistesPor muito grande espaço repetistes! E por longo tempo, com os seus ecos, repetistes.

1) Tiestes: irmão de Atreu, rei de Micenas, que para vingar-se do adultério

que sua mulher Erope cometeu com Tiestes, matou os filhos do casal e

serviu-os, como comida, para Tiestes. Neste dia o sol apagou-se para não

iluminar a trágica cena.

«Assi como a bonina, que cortada 134o Igual à margarida que foi cortadaAntes do tempo foi, cândida e bela, Antes do tempo, pura e bela,Sendo das mãos lacivas maltratada E que por ter sido maltratadaDa minina que a trouxe na capela, Pela criança que a usa na lapela,O cheiro traz perdido e a cor murchada: Perdeu o perfume, a cor e ficou desbotada:Tal está, morta, a pálida donzela, Assim está, morta, a pálida donzela,Secas do rosto as rosas e perdida Sumiu a rósea cor do seu rosto e perdidaA branca e viva cor, co a doce vida. Está a viçosa suavidade, junto com a doce vida.

«As filhas do Mondego a morte escura 135o As ninfas do rio Mondego a morte escuraLongo tempo chorando memoraram, Por longo tempo choraram e relembraram,E, por memória eterna, em fonte pura E, para eternizar a lembrança, em fonte puraAs lágrimas choradas transformaram. As suas lágrimas transformaram.O nome lhe puseram, que inda dura, O nome que deram a fonte e que ainda perdura,Dos amores de Inês, que ali passaram. É o “Dos Amores de Inês”, que ali aconteceram.Vede que fresca fonte rega as flores, Vejam que fresca fonte rega as flores,Que lágrimas são a água e o nome Amores! Pois as suas águas são lágrimas e o seu nome é: Amores.

«Não correu muito tempo que a vingança 136o Não passou muito tempo para que a vingançaNão visse Pedro das mortais feridas, De Pedro acontecesse, pelas mortais feridas,Que, em tomando do Reino a governança, Pois tão logo assumiu a liderançaA tomou dos fugidos homicidas; Do reino, a decretou contra os fugidos homicidas.Do outro Pedro cruíssimo os alcança, A um outro Pedro (1) e a mais um dos assassinos, a vingança alcança,Que ambos, imigos das humanas vidas, Pois ambos, inimigos das humanas vidas,O concerto fizeram, duro e injusto, Fizeram o acordo duro e injusto,Que com Lépido e António fez Augusto. Igual ao que foi feito por Lépido, Antonio e Augusto (2).

1) Pedro Coelho, Diogo Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves foram os que

aconselharam D.Afonso IV a mandar executar Dona Inês.2) Lépido, Antonio e Augusto: a citação de Camões é uma

referência aoconspiração

pacto feito pelos triúnviros romanos para efetivar uma grande conspiração e uma feroz perseguição política

«Este, castigador foi rigoroso 137o Dom Pedro I (1) foi um juiz rigorosoDe latrocínios, mortes e adultérios; Com os crimes de latrocínios, assassinatos e adultérios;Fazer nos maus cruezas, fero e iroso, Aplicar nos delinqüentes um castigo furioso,

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Eram os seus mais certos refrigérios. Era uma sentença certa embora justa e com critérios..As cidades guardando, justiçoso, As cidades guardando, atento e zeloso,De todos os soberbos vitupérios, Contra todo tipo de crimes era um de seus maiores méritos.Mais ladrões, castigando, à morte deu, Mais ladrões, castigando, à morte deu,Que o vagabundo Alcides ou Teseu. Que o nômade Alcides (2) ou Teseu (3).

1) Dom Pedro I, chamado de “O Justiceiro”. Embora ele próprio fosse

um adúltero fez leis severas para punir o adultério.2) Hércules, que por ser neto de Alceu, era chamado de

Alcides.3) Teseu, herói grego, que limpou as estradas gregas dos

bandidos e matou Sinis, o salteador de Corinto.

«Do justo e duro Pedro nasce o brando 138o Dele, que era justo e duro, nasceu o brando(Vede da natureza o desconcerto!), (Veja da natureza, o grande desacerto),Remisso e sem cuidado algum, Fernando, Inerte e sem talento algum, chamado Fernando,Que todo o Reino pôs em muito aperto; Que pôs todo reino em muito aperto;Que, vindo o Castelhano devastando Pois vindo o Castelhano devastandoÀs terras sem defesa, esteve perto As terras sem defesa, ele esteve pertoDe destruir-se o Reino totalmente; De destruir o reino completamente;Que um fraco Rei faz fraca a forte gente. Pois um rei fraco enfraquece até a forte gente.

«Ou foi castigo claro do pecado 139o A sua inaptidão, ou foi castigo pelo claro pecadoDe tirar Lianor a seu marido De tirar Lianor (1) do seu maridoE casar-se com ela, de enlevado E com ela se casar, amparadoNum falso parecer mal entendido, Por um falso certificado, mal entendido;Ou foi que o coração, sujeito e dado Ou foi pelo fato de que seu coração, vacilante e inclinadoAo vício vil, de quem se viu rendido, Para o sórdido vício, pelo qual se viu rendido,Mole se fez e fraco; e bem parece Amoleceu e se fez fraco; pois bem pareceQue um baxo amor os fortes enfraquece. Que um amor inconveniente, aos fortes enfraquece.

1) Quando o seu pai, Dom Pedro, morreu, Dom Fernando teve que

combater os Castelhanos até que um tratado de paz fosse alcançado emem 1.371. Para reforçar a paz, o rei de Castela deu a mão de

sua filha, o qual, para Leonor, e as terras que tinha conquistado. Porém,

D.Fernando não aceitou, pois pretendia casar-se com uma outra Leonor, que raptara da casa de

João Lourenço da Cunha, mas não conseguiu convencer à Igreja de que

tinha laços de sangue com a filha do Castelhano, como alegava, nem ao

seu próprio povo, o qual, vendo-se prejudicado revoltou-se

«Do pecado tiveram sempre a pena 140o Para pagar o seu pecado, receberam justa a penaMuitos, que Deus o quis e permitiu: Muitos, pois assim Deus quis e permitiu:Os que foram roubar a bela Helena, Os que foram raptar a bela Helena (1),E com Ápio também Tarquino o viu. E Ápio (2), que igual a Tarquínio (3), assim o sentiu.Pois por quem David Santo se condena? E por quem é que o santo Davi (4) se condena?Ou quem o Tribo ilustre destruiu E por quem é que a ilustre tribo se destruiuDe Benjamim? Bem claro no-lo ensina De Benjamim (5)? Bem claro nos ensinaPor Sarra Faraó, Siquém por Dina. Os exemplos de Sarra (6) com o Faraó, de Siquém com Dina (7).

1) Princesa grega, casada com Menelau, que foi raptada por Paris, fato que

provocou a guerra de Tróia.2) Ápio Cláudio: romano, que raptou Virginia, morta pelo

próprio pai

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para evitar a desonra da filha. Ápio, posteriormente, foi preso numa

revolta popular e suicidou-se na prisão.3) Sexto Traquino: que violentou Lucrecia, mulher de

Tarquino Colatino, provocando um movimento popular que acabou com a

realeza em Roma.4) Davi: Rei e profeta, vencedor de Golias, e que cometeu

adultério com Betsabé, mulher de Urias.5) Benjamin: último filho de Jacó e chefe de uma das doze

tribos de Israel. Membros de sua tribo violaram uma mulher da tribo de Levi

o que levou as outras tribos a unirem-se e chacinarem os Benjaminitas.

6) Sarra: ou Sara, mulher de Abrão que a ofereceu ao Faraó em troca de

favores.7) Siquém, filho de Hemor, raptou e violentou Dina, filha de

Jacó. Os irmãos de Dina mataram Siquém e o seu pai e destruíram os seus

campos.

«E pois, se os peitos fortes enfraquece 141o É fato que aos peitos fortes enfraqueceUm inconcesso amor desatinado, Um inconveniente amor desatinado,Bem no filho de Almena se parece Como se pôde ver no filho de Alcmena (1) que se pareceQuando em Ônfale andava transformado. Com uma mulher, quando por Ôrfale (2) estava apaixonado,De Marco António a fama se escurece De Marco Antonio (3) a fama escureceCom ser tanto a Cleópatra afeiçoado. Por ser demasiadamente à Cleópatra (4) afeiçoado.Tu também, Peno próspero, o sentiste Também tu, ilustre Peno (5), sentisteDespois que üa moça vil na Apúlia viste. Depois que uma vulgar moça, na Apúlia (6) viste.

1) Alcmena, mãe de Hércules.2) Ôrfale: rainha da Lídia, que se casou com Hércules após

fazer com que ele executasse tarefas femininas enquanto ela vestia a pele

do Leão da Neméia.

3) Marco Antonio: Triúnviro de Roma célebre por seus amores com

Cleópatra.4) Cleópatra: Rainha do Egito célebre pela beleza e

inteligência. Foi amante de César e de Marco Antonio.5) Peno: Aníbal, general Cartagines.6) Apúlia: região do sul da Itália.

«Mas quem pode livrar-se, porventura, 142o Mas quem pode livrar-se, porventura,Dos laços que Amor arma brandamente Dos laços que o Cupido arma brandamenteEntre as rosas e a neve humana pura, Entre as rosadas e alvas faces humanas, belas e puras,O ouro e o alabastro transparente? Com os louros cabelos e os olhos de cor transparente?Quem, de üa peregrina fermosura, Quem conseguiu escapar das extraordinárias formosuras,De um vulto de Medusa propriamente, Como a que Medusa (1) tinha e que sabiamente,Que o coração converte, que tem preso, O coração conquista, converte e mantém preso,Em pedra, não, mas em desejo aceso? Não em pedra, mas em desejo aceso?

1) Medusa: divindade marinha, belíssima e com lindos cabelos. Posidon

apaixonou-se por ela e transformado em pássaro levou-a a um templo de

Atenas, que se indignou com a pretensão de Medusa em comparar-se a

ela e transformou os seus cabelos em serpentes e fez com que os seus

olhos transformassem em pedra tudo o que mirassem.

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«Quem viu um olhar seguro, um gesto brando, 143o Quem é que já viu um olhar firme, um rosto brando,üa suave e angélica excelência, Uma suave e angelical aparência,Que em si está sempre as almas transformando, Que por si própria, está sempre as almas cativando,Que tivesse contra ela resistência? E pôde oferecer resistência?Desculpado por certo está Fernando, Certamente será desculpado Fernando,Pera quem tem de amor experiência; Por aqueles que do amor tem experiência;Mas antes, tendo livre a fantasia, Porém, aquele que é isento de fantasia,Por muito mais culpado o julgaria. Muito mais culpado o julgaria.

Page 83: Os Lusiadas

CCanto IVanto IV

De[s]pois de procelosa tempestade 1o Depois de extraordinária tempestadeTraz a manhã serena claridade, O amanhecer traz uma serena claridade,Esperança de porto e salvamento; Esperança de um porto seguro e de salvamento;Aparta o Sol a negra escuridade, O sol afasta a sombria escuridade,Removendo o temor ao pensamento: Expulsando o temor do pensamento.Assi no Reino forte aconteceu Assim, no reino, foi o que aconteceuDespois que o Rei Fernando faleceu. Depois que o nefasto rei Fernando faleceu.

«Porque, se muito os nossos desejaram 2o E como os lusos muito desejaramQuem os danos e ofensas vá vingando Os danos e as infâmias foram vingandoNaqueles que tão bem se aproveitaram Naqueles que muito se aproveitaramDo descuido remisso de Fernando, Da inépcia e desmazelo do negligente Fernando,Despois de pouco tempo o alcançaram, Depois de pouco tempo as desforras começaram,Joane, sempre ilustre, alevantando Quando a Joane (1), sempre ilustre, foram aclamandoPor Rei, como de Pedro único herdeiro Como rei, pois era de Pedro (2) o único herdeiro(Ainda que bastardo) verdadeiro. (Mesmo sendo bastardo) verdadeiro.

1) Dom João I (O Príncipe da Boa Memória): rei de Portugal entre 1481 a 1495. Filho ilegítimo de Dom Pedro I e deTeresa Lourenço.2) Dom Pedro I: 8O rei de Portugal e amante de Inês de

Castro.

«Ser isto ordenação dos Céus divina 3o Que esta coroação, foi uma ordem divinaPor sinais muito claros se mostrou~ Por claros sinais logo se verificou,Quando em Évora a voz de üa minina, Quando em Évora (1) a voz de uma menina,Ante tempo falando, o nomeou. Que falou precocemente, assim proclamou,E, como causa, enfim, que o Céu destina, E como um verdadeiro prodígio que Deus nos destina,No berço o corpo e a voz alevantou: Estando deitada no berço, a voz elevou:- «Portugal, Portugal (alçando a mão, - Portugal, Portugal – levantando a mão,Disse) polo Rei novo, Dom João!» Disse, para o novo rei, Dom João.

1) Évora, cidade portuguesa, situada no Alentejo.

«Alteradas então do Reino as gentes 4o Alterada, no reino, está toda gente

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Co ódio que ocupado os peitos tinha, Cheia do ódio que ocupado os corações tinha,Absolutas cruezas e evidentes Crueldades ilimitadas e injustiças evidentesFaz do povo o furor, por onde vinha; Foram as causas do furor do povo, que por onde vinhaMatando vão amigos e parentes Ia matando os amigos e os parentesDo adúltero Conde e da Rainha, Do adúltero Conde (1) e da Rainha (2),Com quem sua incontinência desonesta Cuja excessiva sensualidade desonestaMais (despois de viúva) manifesta. Depois que ficou viúva, mais ostensivamente manifesta.

1) Conde de Ourem, chamado de Andeiro.2) Rainha: Dona Leonor de Teles, com a morte de Dom

Fernando I, seu marido, assumiu a regência de Portugal. Era amante há

tempos do “Andeiro”, fato que revoltava o povo já sofrido pela inépcia e

desmandosde Dom Fernando. Com a morte deste, o seu relacionamento

com o amante tornou-se ostensivo e chegou-se a cogitar numa solução

intermediariacasando-a com o Mestre de aviz (Dom João I) que era tido na

corte como aesperança de salvação nacional. Ela, porém, recusou-se e a

partir daí é que se decidiu pelo assassinato do Conde.

«Mas ele, enfim, com causa desonrado, 5o Por fim, o Conde, justamente desonrado,Diante dela a ferro frio morre, Diante da rainha é atacado e morre,De outros muitos na morte acompanhado, Sendo por muitos outros, na morte, acompanhado,Que tudo o fogo erguido queima e corre: Pois a vingança e a fúria tudo destrói e o ódio escorre;Quem, como Astianás, precipitado, Tal como aconteceu com Astianás (1) que foi jogado,Sem lhe valerem ordens, de alta torre; Sem que os títulos lhe salvassem, da alta torre;A quem ordens, nem aras, nem respeito; A quem não valeram os títulos, os altares e nem o respeito;Quem nu por ruas, e em pedaços feito. E que nu, pelas ruas, em pedaços foi feito.

1) Astianás: Ou Astianax, filho de Heitor e de Andrômaca, lançado

pelos gregos do alto dos muros de Tróia.

«Podem-se pôr em longo esquecimento 6o Pode-se colocar num longo esquecimentoAs cruezas mortais que Roma viu, As mortes cruéis em Roma, diante do que se viu,Feitas do feroz Mário e do cruento Mesmo aquelas feitas pelo feroz Mario (1) e pelo violentoCila, quando o contrário lhe fugiu. Sila (2), quando Mario, seu rival, lhe fugiu.Por isso Lianor, que o sentimento Por isso Lianor (3), que o amor e o sentimentoDo morto Conde ao mundo descobriu, Ao conde morto para mundo todo declarou,Faz contra Lusitânia vir Castela, Faz vir contra Portugal o reino de Castela (4),Dizendo ser sua filha herdeira dela. Alegando que a sua filha (5) era herdeira dela.

1) Mario: Cônsul e general romano que venceu os teutões em Aix,

numa batalha em que teriam morrido mais de cem mil homens, segundo

Plutarco.2) Sila: Rival de Mario, nas guerras civis de Roma3) Lianor: Leonor de Teles, viúva de Fernando I, elevada ao

governo com a morte do mesmo.4) Castela: Neste contexto, um dos reinos, o principal, da

Espanha tradicional adversário de Portugal.5) Dona Leonor resistia em entregar o governo e pediu

socorro ao seu genro, rei de Castela, casado com Beatriz, sua filha.

«Beatriz era a filha, que casada 7o Chamava-se Beatriz a filha que era casada

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Co Castelhano está que o Reino pede, Com o rei de Castela (1) e que pedePor filha de Fernando reputada, O governo de Portugal, vez que era a filha declaradaSe a corrompida fama lho concede. De Fernando; e alegava que o direito lhe concedeCom esta voz Castela alevantada, Sucedê-lo; e o reino de Castela, com uma ameaça acalorada,Dizendo que esta filha ao pai sucede, Alegando que a filha ao pai sucede,Suas forças ajunta, pera as guerras, Junta as suas forças para as guerras,De várias regiões e várias terras. Buscando recursos em várias terras.

1) Dom João I, rei de Castela, casado com D.Beatriz, filha do rei de

Portugal, D.Fernando.

«Vêm de toda a província que de um Brigo 8o Chegam de toda a província que do rei Brigo (1)(Se foi) já teve o nome derivado; (Se de fato existiu) teve o nome derivado;Das terras que Fernando e que Rodrigo Das terras que Fernando (2) e que Rodrigo (3)Ganharam do tirano e Mauro estado. Tomaram do tirano e mouro Estado.Não estimam das armas o perigo Não avaliam as dificuldades dos combates e o perigoOs que cortando vão co duro arado Aqueles que vão cortando com o duro aradoOs campos Lioneses, cuja gente Os campos leoneses (4), cuja gente,Cos Mouros foi nas armas excelente. Nas guerras contra os mouros foi tão valente.

1) Brigo: Lendário rei da Hispânia. O próprio Camões coloca em dúvida

sua existência.2) Fernando, o Católico: rei de Aragão.3) Rodrigo: Ruy (ou Rodrigo) Diaz de Bivar, o famoso “El

Cid”, guerreiro castelhano que reconquistou grande parte da península

Ibérica para o cristianismo.4) Leoneses: naturais de Leão, província da Espanha.

«Os Vândalos, na antiga valentia 9o Os Vândalos (1), na antiga valentiaAinda confiados, se ajuntavam Ainda confiados, se juntavamDa cabeça de toda Andaluzia, Em todo norte da Andaluzia (2),Que do Guadalquibir as águas lavam. Que as águas do rio Guadalquibir lavam.A nobre Ilha também se apercebia A nobre ilha (3) também se fortaleciaQue antigamente os Tírios habitavam, Onde antigamente os Tirios (4) habitavam,Trazendo por insígnias verdadeiras Trazendo como insígnias verdadeirasAs Hercúleas colunas nas bandeiras. As colunas de Hércules (5) nas bandeiras.

1) Vândalos: Povos da Europa central, que anteriormente tinham

ocupado parte de Península Ibérica.2) Andaluzia: Região do sul da Espanha.3) Ilha: na verdade, uma península onde fica situada Cádiz,

no sul da.Espanha4) Tírios: natural de Tiro, cidade da Fenícia.5) As colunas de Hercules: Os montes no Estreito de

Gibraltar.

«Também vêm lá do Reino de Toledo, 10o Também chegam do reino de Toledo (1),Cidade nobre e antiga, a quem cercando Cidade nobre e antiga, a quem vai banhandoO Tejo em torno vai, suave e ledo, O rio Tejo, suave e ledo,Que das serras de Conca vem manando. O qual das serras de Conca (2) nasce minando.A vós outros também não tolhe o medo Outros também não sentem medo,Ó sórdidos Galegos, duro bando, Ó sórdido Galego (3), terrível bando,Que, pera resistirdes, vos armastes, Que, para resistirem, vos armastes,Àqueles cujos golpes já provastes. Com aqueles de quem os golpes já provastes.

1) Toledo: Cidade espanhola na Castela – A – Nova.

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2) Concas: serras espanholas situadas na Castela – A – Nova.3) Galegos: Naturais da Galizia, região da EspanhaCamões refere-se a Dom Pedro Fernandes de Castro que se

aliou aos mouros, invadiu Portugal, tomou Tomar e Abrantes e

depois foi derrotado pelo luso Martim Lopes.

«Também movem da guerra as negras fúrias 11o Também se mobilizam e soltam as negras fúriasA gente Bizcainha, que carece Das guerras, a gente Biscainha (1) que careceDe polidas razões, e que as injúrias De mais civilidade e que das injúriasMuito mal dos estranhos compadece. Dos estrangeiros nunca se esquece.A terra de Guipúscua e das Astúrias, Também se aprontam Guipúscia (2) e as Astúrias(3),Que com minas de ferro se ennobrece, Terra que com as minas de ferro se enobrece,Armou dele os soberbos moradores, Com o qual armou os seus arrogantes moradores,Pera ajudar na guerra a seus senhores. Para ajudarem na guerra e aos seus senhores.

1) Biscainha: natural da Biscaia, província da Espanha.2) Guipúscia: Província da Espanha, nas Vascongadas.3) Astúrias: antigo reino da Espanha.

«Joane, a quem do peito o esforço crece, 12o Joane (1), cujo ânimo não esmorece,Como a Sansão Hebreio da guedelha, Como se fosse o Sansão (2) hebreu de longo cabelo,Posto que tudo pouco lhe parece, Pois sempre acha pouco o obstáculo que aparece,Cos poucos do seu Reino se aparelha; Com os poucos recursos do seu reino apronta o guerreiro aparelho;E, não porque conselho lhe falece, E, não que de advertências ele careça,Cos principais senhores se aconselha, Pois dos principais senhores tem o conselho,Mas só por ver das gentes as sentenças, Mas os escuta apenas para ouvir as sentenças,Que sempre houve entre muitos diferenças. Pois entre elas sempre há grandes diferenças,

1) Joane: Dom João I2) Sansão: juiz hebreu celebre pela força física que estava

contida em seus cabelos, segundo a tradição.

«Não falta com razões quem desconcerte 13o Não falta aquele que desconcerteDa opinião de todos, na vontade; A determinação dos outros e a sua boa vontade;Em quem o esforço antigo se converte E aquele no qual a antiga coragem se converteEm desusada e má deslealdade, Em sórdida e maligna deslealdade,Podendo o temor mais, gelado, inerte, Quando o medo se sobrepunha, gelado e inerte,Que a própria e natural fidelidade. À esperada e natural fidelidade.Negam o Rei e a Pátria e, se convém, E assim renegam a pátria e o Rei e se lhes convém,Negarão (como Pedro) o Deus que têm. Negarão, como o apóstolo Pedro, até ao Deus que tem.

1) O apóstolo Pedro que negou Jesus por três vezes.

«Mas nunca foi que este erro se sentisse 14o Mas esta covardia não houve quem sentisseNo forte Dom Nuno Álveres; mas antes, No bravo Dom Álvaro Nuno(1), dono de coragem e de ânimo constantes;Posto que em seus irmãos tão claro o visse, Ainda que em seus irmãos, a traição se visse.Reprovando as vontades inconstantes, Reprovando as covardias e os ânimos vacilantes,Àquelas duvidosas gentes disse, Daquela gente indecisa ele disse,Com palavras mais duras que elegantes, Com palavras mais duras que elegantes,A mão na espada, irado e não facundo, Segurando a espada, irado e conciso,Ameaçando a terra, o mar e o mundo: Ameaçando a terra, o mar e a quem fosse preciso:

1) Dom Nuno Álvares, condestável de Portugal, grande auxiliar do

mestre de aviz (Dom João I) nas lutas contra Castela em defesa da

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independência portuguesa. Os seus irmãos lutaram ao lado dos

castelhanos.

- «Como? Da gente ilustre Portuguesa 15o Como? Entre a ilustre gente portuguesaHá-de haver quem refuse o pátrio Marte? Haverá que recuse o patrício Marte (1)?Como? Desta província, que princesa Como? Desta terra, que foi a princesaFoi das gentes na guerra em toda parte, Em todas as guerras que tomou parte,Há-de sair quem negue ter defesa? Haverá quem se negue a lutar por sua defesa?Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte Que negue o cristianismo, o amor, o esforço e o respeitoDe Português, e por nenhum respeito A Portugal e fique satisfeito de a um outro rei estar sujeito?O próprio Reino queira ver sujeito?

1) Marte: Deus da guerra e uma alusão às tradições guerreiras dos lusos.

«Como? Não sois vós inda os descendentes 16o Como? Não são vocês os descendentesDaqueles que, debaixo da bandeira Daqueles que, debaixo da bandeiraDo grande Henriques, feros e valentes, Do grande Henrique (1), ferozes e valentes,Vencestes esta gente tão guerreira, Venceram a moura gente tão guerreira,Quando tantas bandeiras, tantas gentes Quando tantos exércitos e suas bandeiras, tantas gentesPuseram em fugida, de maneira Puseram em fuga, de tal maneiraQue sete ilustres Condes lhe trouxeram Que sete ilustres condes trouxeramPresos, afora a presa que tiveram? Presos, além dos ricos despojos que tiveram?

1) Henrique: Dom Afonso, primeiro rei português.

«Com quem foram contino sopeados 17o Com quem contaram para manter continuamente refreadosEstes, de quem o estais agora vós, estes castelhanos, que agora reprimem a vós,Por Dinis e seu filho sublimados, Dinis (1) e seu filho sublimado,Senão cos vossos fortes pais e avôs? Senão com os vossos fortes pais e avôs?Pois se, com seus descuidos ou pecados, Pois se, com a sua tibieza ou pecado,Fernando em tal fraqueza assim vos pôs, Fernando (2) tanta covardia vos pôs,Torne-vos vossas forças o Rei novo, Que lhes restitua a coragem o Rei Novo,Se é certo que co Rei se muda o povo. Se for certo que com o Rei se muda o Povo.

1) Dinis: Sexto rei de Portugal e pai de Afonso IV.2) Fernando: nono rei de Portugal.

«Rei tendes tal que, se o valor tiverdes 18o Tendes um rei de muito valor e se tiverdesIgual ao Rei que agora alevantastes, A coragem desse soberano, que há pouco tempo aclamastes,Desbaratareis tudo o que quiserdes, Derrotareis a tudo o que quiserdes,Quanto mais a quem já desbaratastes. Principalmente aos espanhóis a quem já derrotastes.E se com isto, enfim, vos não moverdes Mas, se nem assim vós não se moverdesDo penetrante medo que tomastes, E se libertarem do medo que vos tomastes,Atai as mãos a vosso vão receio, Juntem as suas inúteis mãos ao vosso receio,Que eu só resistirei ao jugo alheio. Que, sozinho, eu resistirei ao domínio alheio.

«Eu só, com meus vassalos e com esta 19o Apenas eu, com meus vassalos e com esta(E dizendo isto arranca meia espada), (E dizendo isso saca meia espada),Defenderei da força dura e infesta Defenderei da força dura e funestaA terra nunca de outrem sojugada. A terra que por ninguém foi subjugada.Em virtude do Rei, da pátria mesta, Para a glória do rei, da pátria e de sua gente honesta.Da lealdade já por vós negada, Com a lealdade que por vós é negada,Vencerei não só estes adversários, Vencerei não só a estes adversários,Mas quantos a meu Rei forem contrários!» Mas a todos que ao meu rei forem contrários.

«Bem como entre os mancebos recolhidos 20o E foi Igual ao que aconteceu quando dentre os soldados escondidosEm Canúsio, relíquias sós de Canas, Em Canússio (1), relíquias vivas da batalha em Canas,

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Já pera se entregar quási movidos E que já se sentiam derrotados e impelidosÀ fortuna das forças Africanas, A entregar-se à sorte na mão das forças africanas,Cornélio moço os faz que, compelidos Cornélio (2), ainda jovem, fez com que, ameaçadosDa sua espada, jurem que as Romanas Por sua espada, reanimem-se e jurem que as romanasArmas não deixarão, enquanto a vida Armas não entregarão, enquanto a vidaOs não deixar ou nelas for perdida: Neles existir e enquanto, na luta, não for perdida:

1) Canússio: Lugar na Apúlia (região da Itália) para onde fugiram os

sobreviventes do exército romano derrotado por Aníbal em Canas.

2) Cornélio: Públio Cornélio Cipião, o Africano, que venceu Aníbal em Zama.

«Destarte a gente força e esforça Nuno, 21o Desse modo, encoraja àquela gente, o nobre NunoQue, com lhe ouvir as últimas razões, Que por ouvir-lhe as ponderações,Removem o temor frio, importuno, Afastam de si o temor frio e inoportuno,Que gelados lhe tinha os corações. Que lhes congelam os corações.Nos animais cavalgam de Neptuno, Cavalgam nos animais de Netuno (1),Brandindo e volteando arremessões; Brandindo e girando os arremessões (2);Vão correndo e gritando, a boca aberta: Vão correndo e gritando, com a alma desperta:- «Viva o famoso Rei que nos liberta!» Viva o poderoso rei que nos liberta!

1) Netuno: deus do mar, a quem os cavalos eram consagrado.

2) Arremessão: antiga arma para lançar objetos.

«Das gentes populares, uns aprovam 22o Nas camadas populares, alguns aprovamA guerra com que a pátria se sustinha; A guerra que a pátria mantinha;Uns as armas alimpam e renovam, Alguns limpam as armas e as renovam,Que a ferrugem da paz gastadas tinha: Pois a ferrugem da paz, gastada as tinha;Capacetes estofam, peitos provam, Estofam capacetes, protetores para o peito provam,Arma-se cada um como convinha; E cada qual arma-se como lhe convinha;Outros fazem vestidos de mil cores, Outros fazem trajes de várias cores,Com letras e tenções de seus amores. Com os nomes e dedicatórias de seus amores.

«Com toda esta lustrosa companhia 23o Com toda essa brilhante companhiaJoane forte sai da fresca Abrantes, O poderoso Joane (1) sai da aprazível Abrantes (2);Abrantes, que também da fonte fria Abrantes, que também da fonte friaDo Tejo logra as águas abundantes. Do rio Tejo desfruta de suas águas abundantes.Os primeiros armígeros regia Os primeiros combatentes quem regiaQuem pera reger era os mui possantes Era aquele que poderia ter regido os possantesOrientais exércitos sem conto Exércitos orientais, mais poderosos que qualquer conto (3)Com que passava Xerxes o Helesponto; Com que Xerxes (4) atravessou o Helesponto (5).

1) Joane: Dom João I.2) Abrantes: Cidade portuguesa.3) Conto: neste contexto, como sinônimo de narrativa.4) Xerxes: Rei da Pérsia, filho de Dario I. Retomando os

projetos do pai invadiu a Atica mas foi derrotado em Salamina por

Temístocles.5) Helesponto: No Estreito que separava Tróia do

Quersoneso, o ponto onde Hele caiu enquanto fugia de sua sogra, rumo a

Cólquida.5) No sentido de que superavam qualquer narrativa que

deles se fizessem.

«Dom Nuno Alveres digo: verdadeiro 24oDom Nuno Álvares (1) de quem eu digo, o verdadeiro,Açoute de soberbos Castelhanos, Açoite dos arrogantes Castelhanos,Como já o fero Huno o foi primeiro Como já tinha sido o feroz Huno (2), primeiro

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Pera Franceses, pera Italianos. Para os franceses e depois para os italianos.Outro também, famoso cavaleiro, Também cito um outro famoso cavaleiro,Que a ala direita tem dos Lusitanos, Que seguia com o lado direito dos exércitos lusitanos,Apto pera mandá-los e regê-los, Bravo e apto para comandar e regê-los,Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos. Chamado Mem Rodrigues (3) e conhecido por Vasconcelos.

1) Nuno Álvares: Condestável de Portugal e grande auxiliar de Dom

João I nas lutas contra Castela, pela independência de Portugal.

2) Huno: Átila, rei dos hunos, que se intitulava de “Flagelo de Deus”.

3) Mem Rodrigues: cavaleiro português que comandou a “Ala dos Namorados”, na batalha de Aljubarrota.

«E da outra ala, que a esta corresponde, 25o No flanco esquerdo, que ao direito corresponde,Antão Vasques de Almada é capitão, O valoroso Antão Vasquez de Almada (1) é o capitão,Que despois foi de Abranches nobre Conde; O qual, depois, foi elevado a nobre condeDas gentes vai regendo a sestra mão. De Abranches (2); e que comanda a tropa com rígida mão.Logo na retaguarda não se esconde Na retaguarda, soberbas, não se escondeDas Quinas e Castelos o pendão, As ordens de Quinas e de Castelos, com o respectivo brasão,Com Joane, Rei forte em toda parte, Seguem a Joane, o forte rei, por toda parte,Que escurecendo o preço vai de Marte. Que com o seu valor encobre as glórias de Marte.

1) Antão Vasques de Almada: nobre português. Camões confunde-o

com o seu sobrinho Álvaro, quando lhe chama de conde de Abranches.

2) Abranches: Situada na região da Normandia.

«Estavam pelos muros, temerosas 26o Debruçavam-se nos muros, temerosas,E de um alegre medo quási frias, Num misto de orgulho e medo e quase frias,:Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas, Ardorosamente rezando, as mães, irmãs, damas e esposas,Prometendo jejuns e romarias. Prometendo jejuns, rezas e romarias.Já chegam as esquadras belicosas Entretanto já chegavam as tropas belicosasDefronte das imigas companhias, Em frente das inimigas companhias,Que com grita grandíssima os recebem; Que com enorme alarido os recebe;E todas grande dúvida concebem. E em todos uma grande expectativa se percebe.

«Respondem as trombetas mensageiras, 27o Respondem aos gritos as trombetas guerreiras,Pífaros sibilantes e atambores; As flautas sibilantes e os tambores;Alférezes volteiam as bandeiras, Os oficiais giram as bandeiras,Que variadas são de muitas cores. Variadas e de muitas cores.Era no seco tempo que nas eiras Era a estação das secas, quando nas eiras (1)Ceres o fruto deixa aos lavradores; Ceres (2) deixava os frutos aos lavradores;Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto; O sol entrava em Astréia (3), no mês de agosto;Baco das uvas tira o doce mosto. Quando Baco (4) tira das uvas o doce mosto (5).

1) Eiras: Terreno onde se trabalha com cereais.2) Ceres: Deusa da agricultura.3) Astréia: Filha de Júpiter e de Temis. Deu nome ao signo de Virgem. A conjunção do sol com Virgem a que Camões se refere acontecia em 23 de agosto, segundo o calendário gregoriano. Porém no tempo de Camões vigorava o

calendário Juliano, segundo o qual a junção acontecia a 12 de agosto. A batalha de Aljubarrota aconteceu em 14 de agosto de

1.385.4) Baco: o deus do vinho.5) Mosto: o primeiro suco que sai da uva, preparada para o

vinho.

«Deu sinal a trombeta Castelhana, 28o Deu o sinal a trombeta castelhana,

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Horrendo, fero, ingente e temeroso; Som horrível, feroz, enorme e pavoroso;Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana Ouviu-o o monte Artabro (1), e o rio Guadiana (2)Atrás tornou as ondas de medroso. Correu para trás de tão medroso.Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana; Ouviu-o o Douro (3) e a terra Transtagana (4);Correu ao mar o Tejo duvidoso; Correu para o mar o rio Tejo temeroso;E as mães, que o som terríbil escuitaram, E as mães que o terrível som escutaramAos peitos os filhinhos apertaram. No próprio peito os filhinhos aconchegaram.

1) Artabro: Cabo da Galizia, atual Ortegal.2) Guadiana: Rio Português e espanhol que em algumas

partes marca fronteira entre eles3) Douro: Região no norte-nordeste de Portugal4) Transtaganas: Terras além do rio Tejo.

«Quantos rostos ali se vêm sem cor, 29o Quantos rostos vêem-se ali, pálidos e sem cor,Que ao coração acode o sangue amigo! Pois para o coração correu o sangue amigo!Que, nos perigos grandes, o temor É que nos grandes perigos, o temorÉ maior muitas vezes que o perigo. Muitas vezes é maior que o real perigo.E se o não é, parece-o; que o furor E se não é, parece que o furorDe ofender ou vencer o duro imigo Em vencer e ferir o duro inimigoFaz não sentir que é perda grande e rara Insensibiliza para o fato de que é uma perda grande e raraDos membros corporais, da vida cara. Mutilar os membros ou exterminar a vida cara.

«Começa-se a travar a incerta guerra: 30o Começa-se a travar a incerta guerra:De ambas partes se move a primeira ala; De ambas partes move-se a primeira ala;Uns leva a defensão da própria terra, Alguns defendem a própria terra,Outros as esperanças de ganhá-la. Enquanto outros são movidos pela esperança de ganhá-la.Logo o grande Pereira, em quem se encerra Logo o grande Pereira (1), que em si encerraTodo o valor, primeiro se assinala: Grande valor é o primeiro que se destaca na batalha:Derriba e encontra e a terra enfim semeia, Encontra e derruba e por fim a terra semeiaDos que a tanto desejam, sendo alheia. Com os corpos daqueles que tanto a desejam, embora lhes fosse alheia.

1) Nuno Álvares Pereira.

«Já pelo espesso ar os estridentes 31o Pelo ar espesso os estridentesFarpões, setas e vários tiros voam; Farpões, setas e tiros voam;Debaxo dos pés duros dos ardentes Debaixo dos duros cascos dos ardentesCavalos treme a terra, os vales soam. Cavalos a terra treme e os vales ressoam.Espedaçam-se as lanças, e as frequentes Despedaçam-se as lanças e as freqüentesQuedas co as duras armas tudo atroam. Quedas com as pesadas armaduras em tudo ecoam.Recrecem os imigos sobre a pouca Recarregam os inimigos sobre a pequenaGente do fero Nuno, que os apouca. Tropa do feroz Nuno, que, todavia, os apequena.

«Eis ali seus irmãos contra ele vão 32o Eis que ali, seus próprios irmãos (1) contra ele vão,(Caso feio e cruel!); mas não se espanta, (Fato feio e cruel), mas que não espanta,Que menos é querer matar o irmão, Pois é quase nada querer matar o irmão,Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta. Para aquele que contra o rei a própria pátria se levanta.Destes arrenegados muitos são Estes renegados em grande número estãoNo primeiro esquadrão, que se adianta Naquele primeiro esquadrão, que se adiantaContra irmãos e parentes (caso estranho), Contra irmãos e parentes (Fato tão estranho),Quais nas guerras civis de Júlio [ e ] Magno Igual ao acontecido nas guerras civis de Julio e de Magno (2).

1) Os irmãos de Nuno Álvares Pereira que combateram em Aljubarrota,

mas pelo lado castelhano.2) Julio César e Pompeu Magno, romanos. Leia-se Magno

como “Manho” para rimar com estranho.

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«O tu, Sertório, ó nobre Coriolano, 33o Ó tu, Sertório (1), ó nobre Coriolano (2),Catilina, e vós outros dos antigos Catilina (3), e todos os outros antigos,Que contra vossas pátrias com profano Que das próprias pátrias, com profanoCoração vos fizestes inimigos: Coração tornaram-se inimigos:E se lá no reino escuro de Sumano Se lá no reino escuro de Sumano (4)Receberdes gravíssimos castigos, Receberem grandes castigos,Dizei-lhe que também dos Portugueses Digam que também entre os portuguesesAlguns tredores houve algüas vezes. Existiram traidores em algumas vezes.

1) Sertório: General romano que depois da morte de Mario, de quem era

partidário, organizou na Península Ibérica um movimento contra Roma,

sendo assassinado em 73 A.C. por Perpena.2) Coriolano: General romano que depois de ter prestado

grandes serviços a Roma aliou-se aos inimigos.3) Catilina: Patrício romano que fomentou uma conspiração contra o Senado.4) Sumano: Sobrenome de Plutão, rei do Inferno.

«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros, 34o Fraquejam dentre os portugueses, os primeiros,Tantos dos inimigos a eles vão! Tantos são os inimigos que contra eles vão.Está ali Nuno, qual pelos outeiros Ali está Nuno, igual quando pelos outeirosDe Ceita está o fortíssimo lião Da cidade de Ceita (1) o poderoso leãoQue cercado se vê dos cavaleiros Vê-se cercado por cruéis cavaleirosQue os campos vão correr de Tutuão: Que caçam nos campos de Tutuão (2):Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso, Perseguem-no com as lanças e ele, furioso,Torvado um pouco está, mas não medroso; Mostra-se um pouco perturbado, mas não medroso.

1) Ceita ou Ceuta: Cidade marroquina, que pertenceu aos portugueses.

2) Tutuão ou Tetuão: cidade no Marrocos.

«Com torva vista os vê, mas a natura 35o Com a vista turvada ele avista os inimigos, mas a sua naturezaFerina e a ira não lhe compadecem E o seu caráter, feroz e irado, não se arrefecem;Que as costas dê, mas antes na espessura E faz com que contra os inimigos de tanta malvadeza,Das lanças se arremessa, que recrecem. Ele e os seus companheiros se arremessem.Tal está o cavaleiro, que a verdura Assim está o cavalheiro, que com dureza,Tinge co sangue alheio; ali perecem Tingiu o campo com o sangue alheio: mas onde falecemAlguns dos seus, que o ânimo valente Alguns dos seus, pois mesmo o coração mais valentePerde a virtude contra tanta gente. É insuficiente para combater tanta gente.

«Sentiu Joane a afronta que passava 36o Joane sentia a pressão terrível por que passavaNuno, que, como sábio capitão, Nuno, pois ele, como grande capitão,Tudo corria e via e a todos dava, Para todo lugar corria, tudo via e a todos dava,Com presença e palavras, coração. Ânimo, coragem, incentivo e determinação.Qual parida lioa, fera e brava, Como se fosse uma leoa parida, feroz e brava,Que os filhos, que no ninho sós estão, Cujos filhotes sozinhos estão,Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara, E que pressente que enquanto comida lhes buscara,O pastor de Massília lhos furtara, O cruel pastor de Massilia (1) os furtara,

1) Massilia: grande região da África. Para Camões, praticamente

representa toda a África.

«Corre raivoso e freme e com bramidos 37o E então corre raivosa, vibra e com rugidosOs montes Sete Irmãos atroa e abala: Os montes Sete Irmãos (1) atordoa e abala:Tal Joane, com outros escolhidos Assim fez Joane, junto de alguns escolhidosDos seus, correndo acode à primeira ala: Dentre os seus, e correndo socorre a primeira ala:- «O fortes companheiros, ó subidos - Ó fortes companheiros, ó erguidos

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Cavaleiros, a quem nenhum se iguala, Cavaleiros, a quem nenhum outro se iguala,Defendei vossas terras, que a esperança Defendei as vossas terras, que a esperançaDa liberdade está na nossa lança! Da liberdade está na vossa lança!

1) Montes Sete Irmãos: cordilheira na África do Norte.

«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro, 38o Vejam-me aqui, vosso rei e companheiro,Que entre as lanças e setas e os arneses Que entre as lanças, setas e os arneses (1)Dos inimigos corro e vou primeiro; Dos inimigos eu prossigo e vou primeiro;Pelejai, verdadeiros Portugueses! » Lutem, verdadeiros portugueses!Isto disse o magnânimo guerreiro Assim falou o magnífico guerreiroE, sopesando a lança quatro vezes, E, levantando a lança por quatro vezes,Com força tira; e deste único tiro Com força atira; e por causa deste tiroMuitos lançaram o último suspiro. Muitos inimigos lançaram o último suspiro.

1) Arneses: armaduras.

«Porque eis os seus, acesos novamente 39o Porque os soldados, inflamados novamente,Dua nobre vergonha e honroso fogo, De uma nobre vergonha e honroso fogo,Sobre qual mais, com ânimo valente, Que mais inflama o ânimo valente,Perigos vencerá do Márcio jogo, Lutam com mais ardor e vencem os perigos do guerreiro jogo,Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente; Tiniam o ferro das armas e o fogo ardente;Rompem malhas primeiro e peitos logo. Primeiro rompem-se as armaduras e os peitos logoAssi recebem junto e dão feridas, Depois; sofrem e provocam feridas,Como a quem já não dói perder as vidas. Como se para eles já não importasse perder as vidas.

«A muitos mandam ver o Estígio lago, 40o Mandam muitos castelhanos para o Estigio (1) lago,Em cujo corpo a morte e o ferro entrava. Quando neles o ferro e a morte entrava.O Mestre morre ali de Santiago, Ali morre o Mestre de Santiago (2),Que fortìssimamente pelejava; Que tão bravamente lutava;Morre também, fazendo grande estrago, Também morre, fazendo um grande estrago,Outro Mestre cruel de Calatrava. Outro cruel Mestre, da ordem de Calatrava (3).Os Pereiras também, arrenegados, Também os irmãos Pereira (4), resignados,Morrem, arrenegando o Céu e os Fados. Morrem, negando o céu e o país, atraiçoados.

1) Estigio ou Estige: rio ou lago do Inferno.2) Santiago: mestre da Ordem Militar deste nome. Mas, ao

contrário do que cita Camões, não morreu nessa batalha de Aljubarrota e

segundo Fernão Lopes, na de Valverde.3) Calatrava: Ordem da cavalaria fundada por Dom Sancho

III, rei de Castela. O nome do mestre é: Dom Pedro Álvares Pereira.4) Vide nota na estrofe 32.

«Muitos também do vulgo vil, sem nome, 41o Também muitos plebeus, sem nome,Vão, e também dos nobres, ao Profundo, Vão, juntos com os nobres, para o Profundo (1),Onde o trifauce Cão perpétua fome Onde vive Cérbero (2), o cão de três cabeças e eterna fomeTem das almas que passam deste mundo. Pelas almas que saem de nosso mundo.E por que mais aqui se amanse e dome E porque cada vez mais se amanse e domeA soberba do imigo furibundo, A arrogância do inimigo furibundo,A sublime bandeira Castelhana A sublime bandeira castelhanaFoi derribada òs pés da Lusitana. Foi derrubada aos pés da lusitana.

1) Profundo: Inferno2) Cérbero: Cão de três cabeças e cauda de serpente que

guarda a entrada do Inferno.

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«Aqui a fera batalha se encruece 42o Noutro canto a batalha recrudesceCom mortes, gritos, sangue e cutiladas; Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;A multidão da gente que perece A multidão de gente que faleceTem as flores da própria cor mudadas. Tem as cores das faces mudadas.Já as costas dão e as vidas; já falece Já dão as costas e as vidas; já esmoreceO furor e sobejam as lançadas; O furor e tornam-se excessivas as lançadas;Já de Castela o Rei desbaratado Já o rei de Castela vê que está arruinado,Se vê e de seu propósito mudado. Bem como o seu propósito, que foi desmanchado.

«O campo vai deixando ao vencedor, 43o Vai deixando o campo ao vencedor,Contente de lhe não deixar a vida. Contente de não ter deixado a própria vida.Seguem-no os que ficaram, e o temor Seguem-no os que sobreviveram, e o temorLhe dá, não pés, mas asas à fugida. Dá-lhes, não apenas pés, mas asas para a fuga corrida.Encobrem no profundo peito a dor Encobrem dentro do peito a dorDa morte, da fazenda despendida, Da morte, da riqueza despendida,Da mágoa, da desonra e triste nojo Da mágoa, da desonra e o triste nojoDe ver outrem triunfar de seu despojo. De assistir a outros triunfar em seu despojo.

«Alguns vão maldizendo e blasfemando 44o Alguns vão maldizendo e blasfemandoDo primeiro que guerra fez no mundo; Contra aquele que primeiro fez a guerra no mundo;Outros a sede dura vão culpando Outros, as horríveis ganâncias, vão culpandoDo peito cobiçoso e sitibundo, Daquele coração cobiçoso e furibundo,Que, por tomar o alheio, o miserando Que para tomar o alheio, o miserandoPovo aventura às penas do Profundo, Povo expõe às penas do Profundo,Deixando tantas mães, tantas esposas, Deixando tantas mães, tantas esposas,Sem filhos, sem maridos, desditosas. Sem filhos, sem maridos, sempre chorosas.

«O vencedor Joane esteve os dias 45o O vencedor Joane (1) ficou os diasCostumados no campo, em grande glória; Necessários no campo, em grande glória;Com ofertas, despois, e romarias, Com oferendas e depois romarias,As graças deu a Quem lhe deu vitória. Deu graças a Deus que lhe permitiu a vitória.Mas Nuno, que não quer por outras vias Mas Nuno, que não quer outras viasEntre as gentes deixar de si memória Para deixar entre o povo a sua memóriaSenão por armas sempre soberanas, Que não seja por suas proezas militares soberanas,Pera as terras se passa Transtaganas. Segue incontinenti para as terras Transtaganas (2).

1) Joane: Dom João.2) Transtaganas: as terras além do rio Tejo.

«Ajuda-o seu destino de maneira 46o O seu destino lhe ajuda de tal maneiraQue fez igual o efeito ao pensamento, Que o efeito de sua ação corresponde ao seu planejamento,Porque a terra dos Vândalos, fronteira, Porque a terra dos Vândalos (1), na fronteira,Lhe concede o despojo e o vencimento. Concede-lhe o despojo da vitória após um breve enfrentamento.Já de Sevilha a Bética bandeira, Logo depois em Sevilha (2) a Bética (3) bandeira,E de vários senhores, num momento Assim como a de vários outros territórios, num momento,Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa, Caem a seus pés, sem defesa,Obrigados da força Portuguesa. Ante o poder da força portuguesa.

1) Aqui Camões refere-se a Andaluzia, antigamente chamada de Vandália

em função de ter sido dominada por muito tempo pelos Vândalos, povo

bárbaro da Europa central. 2)Sevilha: cidadã da Andaluzia, Espanha. 3) Bética: Região da Espanha que corresponde

aproximadamente a atual Andaluzia.

«Destas e outras vitórias longamente 47o Por estas e outras vitórias, longamente,Eram os Castelhanos oprimidos, Os castelhanos ficaram oprimidos,

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Quando a paz, desejada já da gente, Quando a paz, já desejada por toda gente,Deram os vencedores aos vencidos, Os vencedores ofereceram aos vencidos;Despois que quis o Padre omnipotente Depois que quis Deus onipotenteDar os Reis inimigos por maridos Dar os reis inimigos como maridosAs duas Ilustríssimas Inglesas, Às duas ilustríssimas inglesas,Gentis, fermosas, ínclitas princesas. Gentis, formosas e nobres princesas.

«Não sofre o peito forte, usado à guerra, 48o Mas sofre o forte coração, acostumado à guerra,Não ter imigo já a quem faça dano; Por já não ter mais inimigo a quem faça dano;E assi, não tendo a quem vencer na terra, Assim, não tendo mais a quem vencer na terra,Vai cometer as ondas do Oceano Vai aventurar-se nas ondas do Oceano.Este é o primeiro Rei que se desterra Dom João I é o primeiro rei que se desterraDa pátria, por fazer que o Africano Da pátria, para fazer que o africanoConheça, pelas armas, quanto excede Conheça, pela força de suas armas, o quanto é superiorA lei de Cristo à lei de Mafamede. A religião de Jesus Cristo, Nosso Senhor.

«Eis mil nadantes aves, pelo argento 49o Eis que mil navios, pelo argento (1)Da furiosa Tétis inquieta, Mar da furiosa Téthis (2) inquieta,Abrindo as pandas asas vão ao vento, Abrindo as infladas velas seguem ao vento,Pera onde Alcides pôs a extrema meta. Para onde Alcides (3) traçou a sua extrema meta.O monte Abila e o nobre fundamento Logo o monte Abila (4) e o nobre povoamentoDe Ceita toma, e o torpe Mahometa De Ceita (5) ele conquista e o sórdido Mahometa (6)Deita fora, e segura toda Espanha Expulsa, enquanto assegura que toda a EspanhaDa Juliana, má e desleal manha. Se livre da força Juliana (7), má e desleal artimanha.

1) Argento: prateado.2) Téthis: Deusa do mar, filha do céu e da Terra, mulher do

Oceano, do qual pariu mais de três mil filhos, ou seja, todos os rios do

mundo.3) Alcides: Hércules, que por ser neto de Alceu, era assim

chamado.4) Monte Abila: nas proximidades de Ceuta.5) Ceita ou Ceuta: cidade marroquina que pertenceu aos

portugueses.6) Mahometa: islamita seguidor da religião maometana7) Camões refere-se a Julião, conde visigodo que se aliou aos

árabes para invadir a Península Ibérica no século VIII. Leia-se,

portanto, Espanha como Península Ibérica.

«Não consentiu a morte tantos anos 50o Porém, a morte não consentiu, que por muitos anos,Que de Herói tão ditoso se lograsse De um herói tão poderoso desfrutassePortugal, mas os coros soberanos Portugal, pois ela quis que nos soberanosDo Céu supremo quis que povoasse. Reinos do céu supremo ele morasse.Mas, pera defensão dos Lusitanos, Mas, para defender os lusitanos,Deixou Quem o levou, quem governasse Deus que o levou, deixou quem governasseE aumentasse a terra mais que dantes: E aumentasse as conquistas mais que antes:Ínclita geração, altos Infantes. Nobre descendência e valorosos Infantes (1)

1) Infantes: filho de reis de Portugal e da Espanha, porém não

herdeiro da coroa.

«Não foi do Rei Duarte tão ditoso 51o O sucessor de Dom João I, Dom Duarte, não foi tão venturosoO tempo que ficou na suma alteza, Enquanto ficou na suprema alteza,Que assi vai alternando o tempo iroso Onde alternou um governo ruim e às vezes glorioso,O bem co mal, o gosto co a tristeza. O bem e o mal, o júbilo e a tristeza.Quem viu sempre um estado deleitoso? Mas quem é que já viu um estado sempre prazeroso?Ou quem viu em Fortuna haver firmeza? Ou quem já viu na boa sorte haver firmeza?

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Pois inda neste Reino e neste Rei Então como duvidar que com este reiNão usou ela tanto desta lei? A instável sorte não usou e abusou desta lei?

«Viu ser cativo o santo irmão Fernando 52o Viu tornar-se cativo o seu santo irmão Fernando(Que a tão altas empresas aspirava), (Que a tantas proezas aspirava),Que, por salvar o povo miserando Que, para salvar o povo miserando,Cercado, ao Sarraceno se entregava. Cercado pelo Sarraceno a ele se entregava.Só por amor da pátria está passando E apenas por amor à pátria está passandoA vida, de senhora feita escrava, Uma vida, que de senhora tornou-se escrava,Por não se dar por ele a forte Ceita. E tudo por não se bater por ele a forte Ceita (1).Mais o público bem que o seu respeita. Pois ele, prezando mais ao bem público, a tudo se sujeita.

1) Ceita: ou Ceuta, cidade marroquina que pertenceu aos portugueses.

«Codro, por que o inimigo não vencesse, 53o Codro (1), para que o inimigo não vencesse,Deixou antes vencer da morte a vida; Deixou que a morte vencesse a sua vida;Régulo, por que a pátria não perdesse, Régulo (2), para que a pátria não perdesse,Quis mais a liberdade ver perdida. Optou por ter a sua liberdade perdida.Este, por que se Espanha não temesse, Fernando, como a Espanha não lhe socorresse,A cativeiro eterno se convida! Ao terrível cativeiro eterno se convida.Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto, Codro, nem Curcio (3), cujo heroísmo causa espanto,Nem os Décios leais, fizeram tanto. Nem os Décios leais, fizeram tanto.

1) Codro: ultimo rei de Atenas. Sacrificou-se pela pátria, deixando-se

matar pelos dórios para cumprir um oráculo.2) Régulo: cônsul romano, apontado como exemplo de amor

à pátria. Aprisionados pelos cartagines foi enviado a Roma, sob

palavra, e persuadiu o Senado a resistir. Ao regressar a Cartago , como tinha

prometido, foi supliciado.3) Marco Curcio: sacrificou-se por Roma, lançando-se a

cavalo num abismo que os oráculos haviam anunciado que só se fecharia quando

recebesse no seu seio o que o povo romano tivesse de mais precioso.

Neste caso a coragem de um soldado.4) Décios: nome de três romanos (pai, filho e neto) que em

três batalhas sesacrificaram para dar a vitória aos exércitos de Roma.

«Mas Afonso, do Reino único herdeiro, 54o Mas Afonso (1), que era do reino o único herdeiro,Nome em armas ditoso em nossa Hespéria. Nome famoso pelas proezas militares em nossa Hespéria (2),Que a soberba do Bárbaro fronteiro Que a arrogância do bárbaro fronteiroTornou em baxa e humílima miséria, Abaixou e transformou em humilde miséria,Fora por certo invicto cavaleiro, Seria certamente um invicto cavaleiro,Se não quisera ir ver a terra Ibéria. Se não quisesse ir combater a terra Ibéria (3).Mas Africa dirá ser impossíbil Mas toda a África dirá ser impossívelPoder ninguém vencer o Rei terríbil. Alguém poder vencer a este rei terrível.

1) Afonso: sucessor de Dom Duarte, chamado de “O Africano” por suas

conquistas na África.2 Hespéria: a península Ibérica.3) Em 1475 Afonso invadiu o reino de Castela (uma província

da Espanha), quando a ele se aliaram vários fidalgos castelhanos. Trazia

um poderoso

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exército, porém não soube aproveitar o tempo de progressão da campanha

e na planície de Toro encontrou os exércitos de Fernando de Aragão e o

e na planice de Toro encontrou-se com os exércitos de Fernando d

e na planície de Toro encontrou-se com os exércitos de Fernando de Aragão

e Isabel de Castela e saindo-se mal na batalha retirou-se em desordem.

«Este pôde colher as maçãs de ouro 55o Afonso, o Africano, pôde colher as maçãs de ouro (1),Que somente o Tiríntio colher pôde. Que apenas o Tirintio (2) colher pôde.Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro Do jugo que impôs ao bravo mouroA cerviz inda agora não sacode. A coluna, ainda agora, ele não sacode.Na fronte a palma leva e o verde louro Na testa leva a palma e o verde louroDas vitórias do Bárbaro, que acode Das vitórias sobre o bárbaro, que acodeA defender Alcácer, forte vila, Para defender Alcácer (3), forte vila,Tângere populoso e a dura Arzila. O Tanger (4) populoso e a resistente Arzila (5).

1) Maçãs de Ouro: eram os frutos cultivados pelas Hespérides, filhas de

Atlas, num pomar guardado por um dragão de cem cabeças. Hércules

matou o dragão e apoderou-se dos frutos, sendo esse o seu 12o trabalho.

Segundo Camões, esse pomar ficaria no Marrocos.2 Tirintio; natural de Tirins, na Argólida. Nessa estrofe,

Camões refere-se a Hércules que nasceu ali. 3) Alcácer ou Cequer: cidade marroquina tomada aos

mouros em 1458, por Afonso V.4) Tangere ou Tanger: porto de Marrocos, perto do Estreito

de Gibraltar.5) Arzila: cidade marroquina.

«Porém elas, enfim, por força entradas 56o Mas, por fim, as terras da Espanha foram adentradasOs muros abaxaram de diamante E se abaixaram as suas muralhas, duras como o diamanteÀs Portuguesas forças, costumadas Ante as poderosas forças portuguesas, sempre acostumadasA derribarem quanto acham diante. A derrubarem tudo o que encontram adiante.Maravilhas em armas, estremadas Proezas militares maravilhosas e estremadasE de escritura dinas elegante, Dignas de livros e de história elegante.Fizeram cavaleiros nesta empresa, Fizeram os bravos lusitanos nesta empresa,Mais afinando a fama Portuguesa. Tornando maior e mais digna a fama portuguesa.

«Porém despois, tocado de ambição 57o Porém, depois, movido pela ambiçãoE glória de mandar, amara e bela, E pela vaidade de conquistar, amarga e bela,Vai cometer Fernando de Aragão, Afonso V vai afrontar Fernando de Aragão (1),Sobre o potente Reino de Castela. E o poderoso reino de Castela (2).Ajunta-se a inimiga multidão Junta-se a tropa espanhola numa grande multidãoDas soberbas e várias gentes dela, Com os povos das várias regiões dela,Desde Cáliz ao alto Perineu, Desde Cáliz (3) até ao alto Pirineu (4),Que tudo ao Rei Fernando obedeceu. O imenso exército ao rei Fernando obedeceu.

1) Fernando de Aragão: Fernando, o Católico, rei de Aragão, um dos reinos

que compunham a Espanha.2) Castela: nesse contexto, um dos reinos, o principal, da

Espanha. Tradicional inimigo de Portugal.3) Cáliz ou Cádiz: cidade na Andaluzia, Espanha.4) Pirineu: os montes Pirineus.

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«Não quis ficar nos Reinos occioso 58o Entretanto, não quis ficar em Portugal, ocioso,O mancebo Joane, e logo ordena O jovem Joane (1), e logo ordenaDe ir ajudar o pai ambicioso, Que lhe acompanhem para ajudar ao pai ambicioso,Que então lhe foi ajuda não pequena. Para quem, naquela hora, a ajuda não foi pequena.Saiu-se, enfim, do trance perigoso, Por fim, Afonso V saiu daquele aperto perigoso,Com fronte não torvada, mas serena. De cabeça não curvada, mas serena.Desbaratado o pai sanguinolento, E embora fosse confusa a retirada do pai sanguinolento,Mas ficou duvidoso o vencimento; Restou a dúvida se o Espanhol tinha o vencimento.

1) Joane: Dom João II, filho de Afonso V – O Africano – rei de Portugal

entre 1481 a 1495 e grande incentivador dos descobrimentos portugueses.

* Vide notas na estrofe 54.

«Porque o filho, sublime e soberano, 59o Porque o filho de Afonso, sublime e soberano,Gentil, forte, animoso cavaleiro, Gentil, forte, esplendido cavaleiro,Nos contrários fazendo imenso dano, Nos inimigos fazendo um imenso dano,Todo um dia ficou no campo inteiro. Ficou um dia todo pelo campo inteiro (1).Destarte foi vencido Octaviano, Assim como quando foi vencido Otaviano (2),E António vencedor, seu companheiro, E o vencedor foi Antonio (3), que foi seu companheiro,Quando daqueles que César mataram Quando daqueles que a César mataramNos Filípicos campos se vingaram. Nos campos Filípicos (4) eles se vingaram.

1) Naquela batalha o príncipe D. João II destroçou os inimigos e obrigou a Fernando de Aragão a recuar.2) Otaviano: Augusto, imperador romano.3) Antonio: Marco Antonio, triúnviro romano.4) Filípicos campos: referência ao lugar da Macedônia

(Filipos) onde Brutus venceu Otaviano, sendo, posteriormente, derrotado

por Antonio. Camões, aqui, alude as voltas entre lealdades e guerras.

Entre aliados que se tornam inimigos.

«Porém, despois que a escura noite eterna 60o Depois que a escura noite eternaAfonso apousentou no Céu sereno, Aposentou Afonso (O Africano) no céu sereno,O Príncipe que o Reino então governa O príncipe que lhe sucede e que governa,Foi Joane segundo e Rei trezeno. É Joane II (1), o rei trezeno (2).Este, por haver fama sempiterna, Este, para ter renome e fama eterna,Mais do que tentar pode homem terreno Mais do que já ousara o homem terrenoTentou, que foi buscar da roxa Aurora Ousou chegar no Oriente onde está a Aurora,Os términos, que eu vou buscando agora. O mesmo objetivo, que eu vou buscando agora.

1) Joane: Dom João II.2) Trezeno: o décimo terceiro rei de Portugal.

«Manda seus mensageiros, que passaram 61o Manda os seus mensageiros, que passaramEspanha, França, Itália celebrada, Pela Espanha, França e Itália celebrada,E lá no ilustre porto se embarcaram E lá no porto ilustre embarcaramOnde já foi Parténope enterrada: Onde Parténope (1) foi enterrada.Nápoles, onde os Fados se mostraram, Nápoles, onde os Fados se mostraram,Fazendo-a a várias gentes subjugada, Fazendo com que fosse subjugada,Pola ilustrar, no fim de tantos anos, Por vários povos e no fim de tantos anos,Co senhorio de ínclitos Hispanos. Que brilhasse com o domínio dos ilustres Hispanos.

1) Parténope ou Partenôpe: o nome poético da cidade Nápoles. Uma

das Nereidas, com este nome, que se suicidou por ter sido desprezada

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por Ulisses e cujo corpo teria sido lançado à costa, no lugar onde foi

fundada a cidade de Nápoles. Nápoles foi dominada pelos normandos,

alemães, franceses e na época de Camões pelos aragoneses.

Os ilustres hispanos.

«Polo mar alto Sículo navegam; 62o Pelo alto mar, chamado de Sículo (1) eles navegam;Vão-se às praias de Rodes arenosas; Logo alcançam às praias de Rodes (2), arenosas;E dali às ribeiras altas chegam E dali às ribeiras altas chegamQue com morte de Magno são famosas; Que com a morte de Magno (3) ficaram famosas.Vão a Mênfis, e às terras que se regam Vão a Mênfis (4) e às terras que se regamDas enchentes Nilóticas undosas; Com as enchentes do rio Nilo, tão suntuosas;Sobem à Etiópia, sobre Egipto, Sobem à Etiópia, acima do Egito,Que de Cristo lá guarda o santo rito. Que de Cristo guarda o Santo Rito.

1) Sículo: o mar que contorna a Sicília, no sul da Itália.2) Rodes: ilha no mar Mediterrâneo3) Magno: Pompeu Magno, político romano, adversário de

César.4) Mênfis: capital do Egito antigo, situada nas margens do rio

Nilo.

«Passam também as ondas Eritreias, 63o Passam também as ondas Eritréias (1),Que o povo de Israel sem nau passou; Onde o povo judeu, entre as ondas, passou (2);Ficam-lhe atrás as serras Nabateias, Deixam para trás as serras Nabatéias (3),Que o filho de Ismael co nome ornou. Que o filho de Ismael (4), com o seu nome enfeitou.As costas odoríferas Sabeias, As perfumadas costas Sabéias (5),Que a mãe do belo Adónis tanto honrou, Que a mãe do belo Adonis (6) tanto honrou,Cercam, com toda a Arábia descoberta, Eles cercam; e toda a Arábia é descoberta,Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta. Primeiro Feliz (7) e depois avançam por Pétrea (7) e Deserta (7).

1) Eritréias: a costa do Mar Vermelho.2) A travessia dos Judeus pelo mar Vermelho, com Moises.3) Nabatéias: cordilheira da Nabateia, no noroeste da Arábia.4) O filho de Ismael: Nabate, o primogênito de Ismael.5) Sabéias: região dos Sabeus, cuja capital Sabá, era famosa

pela produção de perfumes.6) A mãe de Adonis é Mirra, que foi transformada numa

planta com o mesmo nome.7) As três regiões em que a Arábia era dividida: Feliz, Pétrea

e Deserta.

«Entram no Estreito Pérsico, onde dura 64o Entram no Estreito Pérsico (1), onde perduraDa confusa Babel inda a memória; Da confusa torre de Babel (2) a memória;Ali co Tigre o Eufrates se mistura, Ali com o rio Tigre (3) o rio Eufrates (3) se mistura,Que as fontes onde nascem têm por glória. Cujas fontes de onde nascem é que lhes dá a glória.Dali vão em demanda da água pura Dali partem em busca da água pura,(Que causa inda será de larga história) O que será motivo de uma longa historia,Do Indo, pelas ondas do Oceano, Do rio Indo (4) e seguem pelas águas do Oceano,Onde não se atreveu passar Trajano. Por onde não se atreveu nem Trajano (5).

1) Estreito Pérsico: o Estreito de Ormuz.2) Babel: a Torre de Babel, que os filhos de Noé pretenderam

construir para atingir o céu e por isso, sofreram o castigo de Deus,

que semeou a confusão entre os construtores determinando que falassem

línguas diferentes.

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3) Tigre: grande rio da Ásia que nasce no Tauro Armênio (Monte Ararat,

onde Noé parou a sua arca no fim do dilúvio) e deságua no golfo pérsico,

formando com o rio Eufrates o chate árabe.4) Rio Indo: importante rio da Índia.5) Trajano: imperador romano celebre como administrador e

conquistador.

«Viram gentes incógnitas e estranhas 65o Viram gentes desconhecidas e estranhas,Da Índia, da Carmânia e Gedrosia, Da Índia, da Carmânia (1) e Gedrosia (2),Vendo vários costumes, várias manhas, Vendo vários costumes e várias artimanhas,Que cada região produze e cria. Que cada região produz e cria.Mas de vias tão ásperas, tamanhas, Mas de tantos caminhos ásperos e de dificuldades tamanhas,Tornar-se fàcilmente não podia. Retornar, facilmente, não se podia.Lá morreram, enfim, e lá ficaram, Lá morreram finalmente e por lá ficaram,Que à desejada pátria não tornaram. E à desejada pátria amada não retornaram.

1) Carmânia: região da Pérsia, atual Quirman.2) Gedrosia: região da Pérsia a leste da Carmânia.

«Parece que guardava o claro Céu 66o Parece que reservava o claro céuA Manuel e seus merecimentos Para Manuel (1), de tantos merecimentos,Esta empresa tão árdua, que o moveu Esta árdua empreitada, que o moveuA subidos e ilustres movimentos; A elevados e ilustres movimentos.Manuel, que a Joane sucedeu Manuel, que a Dom João II sucedeuNo Reino e nos altivos pensamentos, No governo de Portugal e nos nobres sentimentos,Logo como tomou do Reino cargo, Logo que tomou do reino o encargo,Tomou mais a conquista do mar largo. Tornou maior a conquista do vasto mar, tão largo.

1) Manuel ou Emanuel: 14o rei de Portugal, grande impulsionador

dos descobrimentos.

«O qual, como do nobre pensamento 67o Ele, daquele nobre pensamento (1),Daquela obrigação que lhe ficara Daquela obrigação que herdaraDe seus antepassados, cujo intento De seus antepassados, cujo intentoFoi sempre acrecentar a terra cara, Sempre foi conquistar mais a terra tão cara,Não deixasse de ser um só momento Não conseguia deixar nem por um momentoConquistado, no tempo que a luz clara De ser arrebatado; e quando o dia findava e a luz claraFoge, e as estrelas nítidas que saem Fugia; quando as estrelas brilhantes saemA repouso convidam quando caem, E ao repouso convidam enquanto caem,

l) A cobiça por novas terras, que herdara dos seus antecessores, era

uma constante em seus pensamentos e mesmo a noite dele não se

desgrudava.

«Estando já. deitado no áureo leito, 68o Já estando deitado no leito,Onde imaginações mais certas são, Onde as divagações mais claras são,Revolvendo contino no conceito Pensava continuamente no conceitoDe seu ofício e sangue a obrigação, Dos seus encargos e na sua obrigaçãoOs olhos lhe ocupou o sono aceito, Até que adormeceu; mas ainda estava agitado o peito,Sem lhe desocupar o coração; Pois as preocupações não saiam de seu coração,Porque, tanto que lasso se adormece, Porque quando cansado adormece,Morfeu em várias formas lhe aparece. Morfeu (1), em várias formas lhe aparece.

1) Morfeu: deus dos sonhos.

«Aqui se lhe apresenta que subia 69o Naquela hora, lhe parece que subia,Tão alto que tocava à prima Esfera, Tão alto que tocava à primeira Esfera (1),

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Donde diante vários mundos via, Onde na sua frente vários mundos via,Nações de muita gente, estranha e fera. Nações de muita gente, estranha e fera.E lá bem junto donde nace o dia, E, lá, junto de onde nasce o dia,Despois que os olhos longos estendera, Depois que os olhos mais longe estendera,Viu de antigos, longincos e altos montes Viu em antigos, longínquos e altos montesNacerem duas claras e altas fontes. Nascerem duas claras e sublimes fontes.

1) Primeira Esfera: o primeiro céu, segundo o sistema ptolomaico.

«Aves agrestes, feras e alimárias 70o Aves agrestes, feras e alimárias(1),Pelo monte selvático habitavam; Pelo selvagem monte habitavam;Mil árvores silvestres e ervas várias Milhares de arvores silvestres e ervas váriasO passo e o trato às gentes atalhavam. O caminho e a sobrevivência dos povos atrapalhavam.Estas duras montanhas, adversárias Estas duras montanhas que são contráriasDe mais conversação, por si mostravam A uma melhor descrição, por si mostravamQue, dês que Adão pecou aos nossos anos, Que desde que Adão pecou no inicio dos nossos anos,Não as romperam nunca pés humanos. Nelas, nunca estiveram pés humanos.

1) Alimárias: animais de carga.Pelo contexto, provavelmente, camelos.

«Das águas se lhe antolha que saíam, 71o Ele vislumbra que das águas saiam,Par'ele os largos passos inclinando, E vinham em sua direção, com largos passos andando,Dous homens, que mui velhos pareciam, Dois homens, que muito velhos pareciam,De aspeito, inda que agreste, venerando. De aspecto, embora rude, venerando.Das pontas dos cabelos lhe saíam Das pontas de seus cabelos lhes caiamGotas, que o corpo todo vão banhando; Gotas, que aos seus corpos iam banhando;A cor da pele, baça e denegrida; A cor de suas peles era sem brilho e enegrecida,A barba hirsuta, intonsa, mas comprida. A barba era dura, emaranhada e comprida.

«D'ambos de dous a fronte coroada 72o De ambos a testa era coroadaRamos não conhecidos e ervas tinha. Com ramos desconhecidos e outra ervazinha.Um deles a presença traz cansada, Um deles tem a aparência mais cansada,Como quem de mais longe ali caminha; Como se fosse o que de mais longe caminha;E assi a água, com ímpeto alterada, E assim a água, que dele saia era alterada,Parecia que doutra parte vinha, Parecendo que de outra região vinha,Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa Igual ao rio Alfeu (1) da Arcádia, que em Siracusa (2)Vai buscar os abraços de Aretusa. Vai buscar os abraços de Aretusa (3).

1) Alfeu: rio da Arcádia que se apaixonou por Aretusa, transformada em

fonte, e assim unia as suas águas com as da amada.2) Siracusa: cidade situada na costa Oriental da Sicília, Itália.3) Aretusa: ninfa que foi transformada em fonte, por Liana,

quando era perseguida por Alfeu.

«Este, que era o mais grave na pessoa, 73o O homem que aparentava ser a mais severa pessoa,Destarte pera o Rei de longe brada: De longe, para o rei assim brada:- «Ó tu, a cujos reinos e coroa - Ó tu, a cujo reino e coroaGrande parte do mundo está guardada, Grande parte do mundo está subjugada,Nós outros, cuja fama tanto voa, Nós, cuja fama tanto voa,Cuja cerviz bem nunca foi domada, E de quem a impetuosidade nunca foi domada,Te avisamos que é tempo que já mandes Alertamos-te que já é hora para que mandesA receber de nós tributos grandes. O teu povo e que recebam os nossos tributos grandes.

«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra 74o Eu sou o ilustre rio Ganges (1), que na terraCeleste tenho o berço verdadeiro; Celeste tem o nascedouro verdadeiro;Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra Este outro é o Indo rei (2), que nesta serraQue vês, seu nascimento tem primeiro. Que tu vislumbras é o que nasce primeiro.

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Custar-t'-emos contudo dura guerra; A nossa conquista, lhe custará uma dura guerra;Mas, insistindo tu, por derradeiro, Mas se insistires, por derradeiro,Com não vistas vitórias, sem receio Com vitórias ocultas e sem receioA quantas gentes vês porás o freio.» Verá em quantos povos colocarás o freio.

1) Rio Ganges: que segundo a lenda, nascia no Paraíso.2) Rio Indo: importante rio da Índia.

«Não disse mais o Rio ilustre e santo, 75o Nada mais disse o rio ilustre e santo,Mas ambos desparecem num momento. E ambos desapareceram num momento.Acorda Emanuel cum novo espanto Dom Manuel I acorda com espantoE grande alteração de pensamento. E com grande aflição no pensamento.Estendeu nisto Febo o claro manto Nisto, Febo (1) estendeu o claro mantoPelo escuro Hemispério somnolento; Pelo escuro Mundo ainda sonolento;Veio a manhã no céu pintando as cores A manhã veio pelo céu pintando as coresDe pudibunda rosa e roxas flores. De corado róseo e rubras flores.

1) Febo: o outro nome de Apolo, o deus do Sol. O sol.

«Chama o Rei os senhores a conselho 76o O rei chama os nobres do ConselhoE propõe-lhe as figuras da visão; E lhes relatando a estranha visãoAs palavras lhe diz do santo velho, Repete as palavras ditas pelo santo velho,Que a todos foram grande admiração. Que a todos causou uma grande admiração,Determinam o náutico aparelho, E, assim, decidem que o náutico aparelho,Pera que, com sublime coração, Seja preparado e parta, com a sublime intenção,Vá a gente que mandar cortando os mares E que siga cortando os maresA buscar novos climas, novos ares. Em busca de novos climas e novos ares.

«Eu, que bem mal cuidava que em efeito 77o E eu, que mal imaginava que um efeitoSe pusesse o que o peito me pedia, Haveria, ao que o peito sempre me pedia,Que sempre grandes coisas deste jeito, Pois sempre, proezas e grandes feitos,Pres[s]ago, o coração me prometia, O meu ousado coração pressentia;Não sei por que razão, por que respeito, Não sei por qual razão e de que jeito,Ou por que bom sinal que em mi se via, Ou por quais qualidades que em mim se via,Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave O ilustre rei me põe nas mãos a chaveDeste cometimento grande e grave. Para empreendimento tão grande e grave.

«E com rogo e palavras amorosas, 78o E com solicitações gentis e palavras afetuosas,Que é um mando nos Reis que a mais obriga, Deu-me a ordem, o que a maior responsabilidade me obriga.Me disse: - «As cousas árduas e lustrosas Disse-me: - As coisas árduas e valorosasSe alcançam com trabalho e com fadiga; São alcançadas com trabalho e fadiga;Faz as pessoas altas e famosas Torna-se uma pessoa elevada e famosa,A vida que se perde e que periga, Aquela, cuja vida perde ou que periga;Que, quando ao medo infame não se rende, E que ao medo infame não se rende,Então, se menos dura, mais se estende. E que tendo a vida interrompida, pela fama mais se estende.

«Eu vos tenho entre todos escolhido 79o Eu o tenho como o escolhidoPera üa empresa, qual a vós se deve, Para esta missão, que, pelos seus méritos, a vós se deve;Trabalho ilustre, duro e esclarecido, Um trabalho afamado, duro e decidido,O que eu sei que por mi vos será leve.» Que eu sei que tu o farás por mim e lhe parecerá leve.«Não sofri mais, mas logo: - «Ó Rei subido, Não agüentei mais e logo respondi: - Ó rei erguido,Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve, Aventurar-me ao ferro, ao fogo e à neve,É tão pouco por vós que mais me pena É muito pouco, se for por vós e do que mais sinto penaSer esta vida cousa tão pequena. É ser a minha vida uma coisa tão pequena.

«Imaginai tamanhas aventuras 80o Imaginai as imensas aventurasQuais Euristeu a Alcides inventava: Que Euristeu (1) a Alcides (2) ordenava:O lião Cleonéu, Harpias duras, O leão Cleonéu (3), as Hárpias duras (4),O porco de Erimanto, a Hidra brava, O porco de Erimanto (5), a Hidra brava (6),Decer, enfim, às sombras vãs e escuras Descer, por fim, aos campos das sombras escuras,

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Onde os campos de Dite a Estige lava; Ao reino de Dite (7) que o Estige (8) lava;Porque a maior perigo, a mor afronta, Pois a maiores perigos e a maior afrontaPor vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta.» Por vós, ó rei, a minha alma está pronta.

1) Euristeu: rei de Micenas, que impôs os Doze Trabalhos a Hércules.

2) Alcides: Hércules, que assim era chamado por ser neto de Alceu.

3) O leão de Cleonéu: referência a um vale da Neméia onde Hércules

estrangulou um leão.4) Hárpias: monstro alado com rosto de mulher e corpo de

ave de rapina.5) Porco de Erimanto: monte na Arcádia, onde vivia um javali

monstruoso que Hércules capturou vivo, sendo esse o seu terceiro

trabalho.6) Hidra: monstro nascido de Tifon e Equidna, cujo veneno

estava misturado à água do rio Anigro, na Elida, o que lhe dava o

odor fétido.7) Dite: o diabo. O reino do Inferno.8) Estige: lago ou rio do Inferno.

«Com mercês sumptuosas me agardece 81o Com expressões amistosas me agradeceE com razões me louva esta vontade; E vê razões para louvar a minha boa vontade;Que a virtude louvada vive e crece E a virtude sendo louvada revive e cresceE o louvor altos casos persuade. E que enfrentemos grandes perigos nos persuade.A acompanhar-me logo se oferece, Para acompanhar-me logo se oferece,Obrigado d'amor e d'amizade, Por um dever de amor e fraternidade,Não menos cobiçoso de honra e fama, E também por desejar a honra e a fama,O caro meu irmão Paulo da Gama. O meu querido irmão Paulo da Gama.

«Mais se me ajunta Nicolau Coelho, 82o A mim, também, se junta Nicolau Coelho,De trabalhos mui grande sofredor. Neste trabalho, um grande colaborador,Ambos são de valia e de conselho, Ambos me são de muita valia e de sábio conselho,D'experiência em armas e furor. Experientes nas armas e de muito vigor.Já de manceba gente me aparelho, Logo em seguida, de jovens marujos eu me aparelho,Em que crece o desejo do valor; Nos quais cresce o desejo, o valorTodos de grande esforço; e assi parece E a grande determinação; e assim apareceQuem a tamanhas cousas se oferece. Todo aquele, que a tamanha empreitada se oferece.

«Foram de Emanuel remunerados, 83o Pelo nobre rei Dom Manuel I todos foram agraciados,Por que com mais amor se apercebessem, Para que com mais ardores se preparassem,E com palavras altas animados E com palavras sublimes foram animadosPera quantos trabalhos sucedessem. Para vencer as dificuldades que encontrassem.Assi foram os Mínias ajuntados, Igual quando os Mínias (1) foram agrupados,Pera que o Véu dourado combatessem, Para que o Velo de Ouro buscassem,Na fatídica nau, que ousou primeira Naquela fatídica nau que ousou ser a primeiraTentar o mar Euxínio, aventureira. A aventurar-se no mar Euxínio (2), como pioneira.

1) Mínias: os Argonautas, assim chamados por descenderem de Mínias, rei da Tessália.2) Euxínio: o atual Mar Negro.

«E já no porto da ínclita Ulisseia, 84o E então, já no porto da ilustre Ulisséia (1),Cum alvoroço nobre e cum desejo Com nobre alvoroço e muito desejo(Onde o licor mistura e branca areia (Ali onde a água se mistura com a branca areiaCo salgado Neptuno o doce Tejo) E o salgado mar de Netuno com o doce rio Tejo)As naus prestes estão; e não refreia As naus já estão prontas; e não refreiaTemor nenhum o juvenil despejo, Temor algum o jovem tripulante sobejo,

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Porque a gente marítima e a de Marte E assim os marujos e a tropa que é famosa nas guerras de MarteEstão pera seguir-me a toda a parte. Ficam prontas para seguir-me por toda parte.

1) Ulisséia: Lisboa, que segundo a tradição foi fundada por Ulisses.

«Pelas praias vestidos os soldados 85o Pelas praias os soldadosDe várias cores vêm e várias artes, Vêm vestidos com várias cores, experientes em várias artes,E não menos de esforço aparelhados E cheios de esforço e muito determinadosPera buscar do mundo novas partes. A descobrirem do mundo, novas partes.Nas fortes naus os ventos sossegados Nas poderosas naus os ventos sossegados,Ondeiam os aéreos estandartes; Balançam os aéreos estandartes.Elas prometem, vendo os mares largos, As naus prometem, vendo os mares largos,De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos. Serem estrelas no Olimpo, como a de Argos (1).

1) Argos: constelação no Norte e que representava a nau dos

Argonautas, daí a alusão de Camões.

«Despois de aparelhados, desta sorte, 86o Depois de preparados, desta sorte,De quanto tal viagem pede e manda, De tudo que uma viagem como essa pede e manda,Aparelhámos a alma pera a morte, Preparamos a alma para a morte,Que sempre aos nautas ante os olhos anda. Que sempre, ante os olhos do navegante, anda.Pera o sumo Poder, que a etérea Corte Para o Sumo Poder, que a celeste corteSustenta só co a vista veneranda, Dirige apenas com a vista veneranda,Implorámos favor que nos guiasse Imploramos a graça e que nos dirigisseE que nossos começos aspirasse. E que o inicio de nossa jornada, Ele permitisse.

«Partimo-nos assi do santo templo 87o Assim partimos do santo Templo (1)Que nas praias do mar está assentado, Que nas praias do mar está assentado,Que o nome tem da terra, pera exemplo, E que tem o nome do lugar, como exemplo,Donde Deus foi em carne ao mundo dado. Onde Deus, feito em carne, ao mundo foi dado.Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo Confesso-te, ó Rei, que se relembroComo fui destas praias apartado, Como fui dessas praias separado,Cheio dentro de dúvida e receio, Tão cheio de dúvidas e de receio,Que apenas nos meus olhos ponho o freio. Para não chorar, nos meus olhos, tenho que por o freio.

1) Templo: igreja no povoado de Belém, nos arredores de Lisboa.

«A gente da cidade, aquele dia, 88o A gente da cidade, naquele dia,(Uns por amigos, outros por parentes, (Alguns por serem amigos, outros por serem parentesOutros por ver somente) concorria, E outros apenas para ver) acorria,Saüdosos na vista e descontentes Tristes e já saudosos e carentes.E nós, co a virtuosa companhia E nós, com a virtuosa companhiaDe mil Religiosos diligentes, De mil sacerdotes e fiéis diligentes,Em procissão solene, a Deus orando, Em solene procissão, a Deus orando,Pera os batéis viemos caminhando. Para os batéis fomos caminhando.

1) Batéis: pequenos barcos que faziam o transporte da praia aos navios.

«Em tão longo caminho e duvidoso 89o Em um caminho tão longo e duvidosoPor perdidos as gentes nos julgavam, Perdidos, as pessoas já nos julgavam,As mulheres cum choro piadoso As mulheres com um choro copioso,Os homens com suspiros que arrancavam. Os homens com uns suspiros que do peito escapavam.Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Mães, esposas e irmãs cujo temerosoAmor mais desconfia, acrecentavam Amor é o que mais desconfia, acrescentavamA desesperação e frio medo À dor e ao desespero, o frio medoDe já nos não tornar a ver tão cedo. De não nos ver novamente, tão cedo.

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«Qual vai dizendo: - «Ó filho, a quem eu tinha 90o Uma mãe ia dizendo: - Ó filho, a quem eu tinhaSó pera refrigério e doce emparo Como consolo e doce amparoDesta cansada já velhice minha, Para esta cansada velhice minha,Que em choro acabará, penoso e amaro A qual acabará, de tanto chorar, de modo penoso e amaro (1),Porque me deixas, mísera e mesquinha? Por que me deixas miserável e sozinha?Porque de mi te vás, ó filho caro, Por que para longe de mim partes, ó filho caro,A fazer o funéreo enterramento Para que ficar sujeito a um horrível sepultamentoOnde sejas de pexes mantimento?» Onde dos peixes será um triste alimento?

1) Amaro: amargo.

«Qual em cabelo: - «Ó doce e amado esposo, 91oOutra, descabelada, dizia ao marido: - ó doce e amado esposo,Sem quem não quis Amor que viver possa, Sem quem, não quis o Amor, que viver eu possa,Porque is aventurar ao mar airoso Por que vais aventurar no mar furiosoEssa vida que é minha e não é vossa? Essa tua vida, que é mais minha do que vossa?Como, por um caminho duvidoso, Como pode por um empreendimento duvidoso,Vos esquece a afeição tão doce nossa? Esquecer uma doce afeição como a nossa?Nosso amor, nosso vão contentamento, O nosso amor, o nosso ingênuo contentamento,Quereis que com as velas leve o vento?» Queres que junto com as velas, o leve para longe o vento?

«Nestas e outras palavras que diziam, 92o Nestas e noutras palavras que diziam,De amor e de piadosa humanidade, De amor e precoce e dolorida saudade,Os velhos e os mininos os seguiam, Os velhos e os meninos as seguiam,Em quem menos esforço põe a idade. Ainda que neles a dor fosse menor em função da idade.Os montes de mais perto respondiam, As Serras mais próximas, com ecos, respondiam,Quási movidos de alta piedade; Parecendo que também eram tocadas pela piedade;A branca areia as lágrimas banhavam, A branca areia as lagrimas banhavam,Que em multidão com elas se igualavam. As quais eram tantas que em quantidades se igualavam.

«Nós outros, sem a vista alevantarmos 93o Nós, sem os olhos levantarmosNem a mãe, nem a esposa, neste estado, Para não ver a mãe ou a esposa naquele estadoPor nos não magoarmos, ou mudarmos E assim não nos magoarmos ou mudarmosDo propósito firme começado, Do firme propósito que tínhamos iniciado,Determinei de assi nos embarcarmos, Com rapidez, conforme determinei, logo embarcamos,Sem o despedimento costumado, Sem as despedidas a que estávamos acostumados,Que, posto que é de amor usança boa, As quais, ainda que sejam, uma pratica boa,A quem se aparta, ou fica, mais magoa. Para quem parte ou para quem fica, mais magoa.

«Mas um velho, d'aspeito venerando, 94o Mas um velho, de aspecto venerando,Que ficava nas praias, entre a gente, Que estava na praia, entre toda gente,Postos em nós os olhos, meneando Colocando em nós os olhos e balançandoTrês vezes a cabeça, descontente, Por três vezes a cabeça, visivelmente descontente,A voz pesada um pouco alevantando, A rude voz foi um pouco levantando,Que nós no mar ouvimos claramente, Que nós, já no mar, ouvimos claramente,Cum saber só d'experiências feito, Com o conhecimento que apenas de experiências era feito,Tais palavras tirou do experto peito: Estas palavras, ele tirou do sábio peito:

- «Ó glória de mandar, ó vã cobiça 95o Ó vaidade de conquistar, ó inútil cobiça,Desta vaidade a quem chamamos Fama! Destas futilidades a quem chamamos Fama!Ó fraudulento gosto, que se atiça Ó enganadora satisfação, que se atiçaCüa aura popular, que honra se chama! Com a promessa de reconhecimento popular, que a isto, de honra chama!Que castigo tamanho e que justiça Mas que duro castigo e que justiçaFazes no peito vão que muito te ama! Fazes no coração vazio daquele ambicioso que muito te ama.Que mortes, que perigos, que tormentas, Que suplícios, que perigos, que tormentas,Que crueldades neles experimentas! Quanta aflição, neles experimenta!

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«Dura inquietação d'alma e da vida 96o Tanta angustia na alma e na vida,Fonte de desemparos e adultérios, Fonte de tantos abandonos e adultérios,Sagaz consumidora conhecida Pérfida consumidora, destruidora reconhecidaDe fazendas, de reinas e de impérios! De riquezas, reinos e impérios!hamam-te ilustre, chamam-te subida, Chamam-te de ilustre, de elevada,Sendo dina de infames vitupérios; Mas na verdade só és digna de insultos e vitupérios;Chamam-te Fama e Glória soberana, Chamam-te de Fama e de Glória, soberana,Nomes com quem se o povo néscio engana! E é com esses nomes que ao povo ignorante se engana!

«A que novos desastres determinas 97o A que novos desastres tu intencionaDe levar estes Reinos e esta gente? Levar este reino e esta gente?Que perigos, que mortes lhe destinas, A que perigos e a que mortes você lhes destinas,Debaixo dalgum nome preminente? Encobertos por algum nome imponente?Que promessas de reinos e de minas Que promessas de reinos e de minasD'ouro, que lhe farás tão facilmente? De ouro, que dizes, acharão tão facilmente?Que famas lhe prometerás? Que histórias? Que fama lhe prometerás? Que historias?Que triunfos? Que palmas? Que vitórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

«Mas, ó tu, geração daquele insano 98o Mas, ó tu, descendência daquele insano (1)Cujo pecado e desobediência Cujo pecado e desobediênciaNão somente do Reino soberano Não apenas do Paraíso soberanoTe pôs neste desterro e triste ausência, Privou-te, deixando-te nesta triste ausência.Mas inda doutro estado mais que humano, Como do outro estado, sobre-humano,Da quieta e da simpres inocência, Da quieta e simples inocência;Idade d'ouro, tanto te privou, Também da “Idade do Ouro” tanto te privou,Que na de ferro e d'armas te deitou: Que na de ferro e das armas, para sempre te condenou:

1) Referindo-se à Humanidade, descendente de Adão.

«Já que nesta gostosa vaidade 99o Já que esta agradável veleidadeTanto enlevas a leve fantasia, Tanto arrebata a doce fantasia,Já que à bruta crueza e feridade Já que à bruta crueldade e à ferocidade,Puseste nome, esforço e valentia, Chama de “esforço e valentia”,Já que prezas em tanta quantidade : Já que estimas em tanta quantidade,O desprezo da vida, que devia O desprezo pela vida, que deviaDe ser sempre estimada, pois que já Ser sempre estimada, pois jáTemeu tanto perdê-la Quem a dá: Temeu perdê-la Quem (1) a dá:

1) Referência a Jesus que receou a morte na noite anterior a sua

crucificação.

«Não tens junto contigo o Ismaelita, 100o Não tens nas proximidades o Ismaelita,Com quem sempre terás guerras sobejas? Com quem sempre terá guerras sobejas?Não segue ele do Arábio a lei maldita, Ele não segue o Arábio (1) e a sua religião maldita,Se tu pola de Cristo só pelejas? E tu não dizes, que apenas para defender a lei de Cristo, é que pelejas?Não tem cidades mil, terra infinita, Ele não tem mil cidades e terra infinita,Se terras e riqueza mais desejas? E não é mais terras e riquezas o que desejas?Não é ele por armas esforçado, Não é ele nas batalhas, valente e determinado,Se queres por vitórias ser louvado? E não é o que desejas, vencê-lo e depois ser glorificado?

1) Arábio: referência a Maomé.

«Deixas criar às portas o inimigo, 101o Deixa que se fortaleça na tua porta o inimigo,Por ires buscar outro de tão longe, Enquanto vais buscar outro, lá longe,Por quem se despovoe o Reino antigo, Por quem irá despovoar o reino antigo,Se enfraqueça e se vá deitando a longe; Enfraquecendo-o, da segurança tão longe,Buscas o incerto e incógnito perigo Buscas o incerto e desconhecido perigo,Por que a Fama te exalte e te lisonje Apenas para que a Fama te celebre e te lisonje,Chamando-te senhor, com larga cópia, Chamando-o de Conquistador, ilusória cornucópia,

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Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia. Da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia (1).

1) Etiópia, que na época de Camões correspondia a toda a África.

«Oh, maldito o primeiro que, no mundo, 102o Oh! Maldito seja aquele que foi o primeiro, no mundo,Nas ondas vela pôs em seco lenho! A por no mar as velas e um seco lenho (1)!Dino da eterna pena do Profundo, É digno de pena eterna no Profundo (2),Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Se realmente é justa a crença que eu sigo e tenho!Nunca juízo algum, alto e profundo, Tomara que nunca lhe tenham em alto conceito,Nem cítara sonora ou vivo engenho E nem lhe dediquem musicas ou qualquer outro engenho,Te dê por isso fama nem memória, Que lhe dê fama e glória,Mas contigo se acabe o nome e glória! Mas que consigo se enterre, a sua triste memória.

1) Seco lenho: os navios.2) Profundo: o inferno.

«Trouxe o filho de Jápeto do Céu 103o O filho de Japeto (1) trouxe do céuO fogo que ajuntou ao peito humano, O fogo que inflamou o coração humano,Fogo que o mundo em armas acendeu, E que as guerras, em todo o mundo acendeu,Em mortes, em desonras (grande engano!). Das quais resultaram as mortes e as desonras (Ó que grande engano!).Quanto milhor nos fora, Prometeu, Melhor nos teria feito Prometeu,E quanto pera o mundo menos dano, E muito menor para o Mundo seria o dano,Que a tua estátua ilustre não tivera Se dentro da estatua do Homem, que trouxestes,Fogo de altos desejos, que a movera! Tu não tivesses colocado o fogo da cobiça, que roubastes.

1) Filho de Japeto: Prometeu, que fez uma estatua de barro, do Homem,

e nela ocultou o fogo que roubou do Olimpo, por conta do que, foi

condenado por Zeus a ser acorrentado num rochedo e ter as suas

entranhas devoradas por uma águia. Por fim, foi libertado por Hércules.

«Não cometera o moço miserando 104o Se Ícaro (1), não tivesse sido homenageado,O carro alto do pai, nem o ar vazio Por ter afrontado o Carro Alto (2) do Pai e o ar vazio,O grande arquitector co filho, dando E se o grande construtor (3), não continuassem dando,Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio. Um deles, nome ao mar (4) e o outro, fama ao rio,Nenhum cometimento alto e nefando Nenhum atentado grande e nefandoPor fogo, ferro, água, calma e frio, Por fogo, ferro, água, inércia e frio,Deixa intentado a humana geração. Deixaria tentada a humana criação.Mísera sorte! Estranha condição!» Que sorte miserável! Que terrível maldição (5)!

1) Ícaro, filho ou sobrinho de Dédalo.2) O sol.3) Dédalo, grande construtor da mitologia. Edificou o

Labirinto onde vivia o Minotauro.4) O mar Egeu.5) Dédalo construiu o Labirinto onde vivia o Minotauro, na

ilha de Creta e ficou aprisionado pelo rei Minos que temia que ele

contasse ao mundo sobre o seu filho. Dédalo, então, fez uma asa para si e outra

para Ícaro, que embora fosse advertido que as suas asas eram coladas

apenas com cera, se aproximou demasiadamente do Sol que as derreteu

e ele caiu e morreu no mar Egeu.Com essa lenda, Camões, alude ao fato

de que

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desde então e movidos por esse exemplo de imprudência que resultou

em fama e glória, o ser humano aceita os riscos para desfrutar de um

frívolo reconhecimento.

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CCanto Vanto V

ESTAS sentenças tais o velho honrado 1o Estas palavras o velho honradoVociferando estava, quando abrimos Estava vociferando, quando abrimosAs asas ao sereno e sossegado As velas ao sereno e sossegadoVento, e do porto amado nos partimos. Vento, e do amado porto partimos.E, como é já no mar costume usado, E como nessas ocasiões é um habito arraigado,A vela desfraldando, o céu ferimos, À vela desfraldando, com os nossos gritos o céu ferimos,Dizendo:- «Boa viagem!»; logo o vento Dizendo: - Boa viagem! Logo o ventoNos troncos fez o usado movimento. Nos navios fez o esperado movimento.

«Entrava neste tempo o eterno lume 2o Nestes dias o sol que é o eterno lumeNo animal Nemeio truculento; Entrava no signo zodiacal do Nemeio (1) truculento;E o Mundo, que co tempo se consume, E o Mundo, que com o correr do tempo se consome,Na sexta idade andava, enfermo e lento. Já em avançada idade andava enfermo e lento.Nela vê, como tinha por costume, Na idade já se vê, como é de costume,Cursos do Sol catorze vezes cento, Quatorze voltas vezes cento (2),Com mais noventa e sete, em que corria, E mais noventa e sete, sendo este o ano que transcorria,Quando no mar a armada se estendia. Quando a nossa frota do porto se despedia.

1) Nemeio: alusão ao leão que Hércules matou na Neméia. O signo

de Leão.2) (14x100)+97 = 1.497. O ano em que a expedição de

Vasco da Gama partiu.

«Já a vista, pouco e pouco, se desterra 3o Logo de nossas vista, pouco a pouco, se afastava a terra,Daqueles pátrios montes, que ficavam; Aqueles pátrios montes, que longe já ficavam;Ficava o caro Tejo e a fresca serra Ficava o amado rio Tejo e a fresca serraDe Sintra, e nela os olhos se alongavam; De Sintra (1) e nela os nossos olhos se alongavam.Ficava-nos também na amada terra Também ficavam na terra amadaO coração, que as mágoas lá deixavam; Os nossos corações, que as magoas lá deixavam.E, já despois que toda se escondeu, E depois que toda terra se escondeu,Não vimos mais, enfim, que mar e céu. Não vimos mais nada, além de mar e céu.

1) Sintra: cidade serrana próxima a Lisboa.

«Assi fomos abrindo aqueles mares, 4o Assim fomos desbravando aqueles mares,Que geração algüa não abriu, Que nenhuma outra nação abriu,As novas Ilhas vendo e os novos ares Vendo as novas ilhas e sentindo os novos aresQue o generoso Henrique descobriu; Que o pródigo Henrique (1) descobriu;De Mauritânia os montes e lugares, Na Mauritânia (2) vimos os montes e os lugares,Terra que Anteu num tempo possuiu, Daquela terra, a qual, na antiguidade, Anteu (3) possuiu;

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Deixando à mão esquerda, que à direita Seguindo sempre pela esquerda (4), pois à direitaNão há certeza doutra, mas suspeita. Não há a certeza de haver outra terra, apenas uma suspeita.

1) Henrique: o Infante Dom Henrique, filho de Dom João I e grande

impulsionador das navegações.2) Mauritânia: África do norte, onde hoje se situam

Marrocos, Argélia e Tunísia.3) Anteu: um dos gigantes, filho de Netuno e da Terra. Era

invencível enquanto os seus pés tocassem a terra e para vencê-lo

Hércules teve que erguê-lo para sufocar-lhe.4) O lado direito se refere às terras e caminhos, então

desconhecidos, para a América.

«Passámos a grande Ilha da Madeira, 5o Ultrapassamos a grande Ilha da Madeira,Que do muito arvoredo assi se chama; Que por ter muitas arvores assim se chama;Das que nós povoámos a primeira, Dentre as terras que povoamos, foi a primeira,Mais célebre por nome que por fama. Mais célebre por nome de que por sua fama.Mas, nem por ser do mundo a derradeira, Pois nem mesmo sendo no Mundo a derradeira (1),Se lhe aventajam quantas Vénus ama; É exaltada como aquelas que Vênus (2) ama;Antes, sendo esta sua, se esquecera Mas se ela fosse a sua, o mundo já se esqueceraDe Cipro, Gnido, Pafos e Citera. De Cipro (3), Gnido (4), Pafos (5) e Citera (6).

1) Na época de Camões era considerada como a ultima ilha do Mundo.

2) Vênus: deusa da beleza e do amor.3) Cipro: atual Chipre, ilha do Mediterrâneo Oriental cuja

beleza foi cantada pelos gregos.4) Gnido: Cidade na Grécia onde existia um templo de

Vênus.5) Pafos: cidade na ilha de Chipre.6) Citera: atual Cérigo, na antiguidade, ilha dedicada a

Vênus.

«Deixámos de Massília a estéril costa, 6o Deixamos para trás, de Massilia (1), a estéril costa,Onde seu gado os Azenegues pastam, Onde o seu gado, os Azenegues (2) pastam,Gente que as frescas águas nunca gosta, Gente para quem a fresca água nunca está expostaNem as ervas do campo bem lhe abastam; E que nem das ervas do campo, que inexistem, se fartam;A terra a nenhum fruto, enfim, disposta, Pois ali, a nenhuma plantação a terra dá resposta.Onde as aves no ventre o ferro gastam, Onde até de ferro as aves se sustentam,Padecendo de tudo extrema inópia, Carente de tudo, em extrema penúria,Que aparta a Barbaria de Etiópia. Fronteira entre a Barbaria (2) e a triste Etiópia (3), em constante lamúria.

1)Massilia: grande região da África oriental compreendendo a Numidia e a Mauritânia.2)Azenegues: povo Africano que vivia ao sul do Saara, em uma região deserta e árida.3) Barbária: região da África do norte.4) Etiópia: nome antigo que se dava à parte da África que

fica ao sul do Egito.

«Passámos o limite aonde chega 7o Ultrapassamos o limite aonde chegaO Sol, que pera o Norte os carros guia; O sol, que rumo ao norte os carros guia;Onde jazem os povos a quem nega Ali, onde vivem os povos a quem negaO filho de Climene a cor do dia. O filho de Climene (1) a cor clara, igual a do dia.

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Aqui gentes estranhas lava e rega Ali, um povo estranho, lava e regaDo negro Sanagá a corrente fria, Do negro rio Sanagá (2) a água fria,Onde o Cabo Arsinário o nome perde, Onde o Cabo Arsinario (3) o nome perde,Chamando-se dos nossos Cabo Verde. Sendo por nós chamado de Cabo Verde.

1) O filho de Climene e de Apolo, Fáeton, que guiando desastradamente

o carro de seu pai, o Sol, aproximou-se demais da Terra queimando a

pele dos africanos.2) Sanagá: rio africano que nasce no Fuja-Djalão e deságua

no Atlântico. Atual rio Senegal.3) Cabo Arsinario: Na África ocidental que Camões identifica

como o Cabo Verde, sendo, no entanto, contestado por alguns

estudiosos que julgam tratar-se do Cabo Branco.

«Passadas tendo já as Canárias ilhas, 8o Já tendo passado as Canárias Ilhas,Que tiveram por nome Fortunadas, Que já foram chamadas de Fortunadas (1),Entrámos, navegando, polas filhas Entramos, navegando, pelas IlhasDo velho Hespério, Hespéridas chamadas; Do velho Hespério, que de Hespéridas (2) são chamadas;Terras por onde novas maravilhas Nas quais novas maravilhasAndaram vendo já nossas armadas. Já andaram vendo as nossas armadas.Ali tomámos porto com bom vento, Ali, chegamos ao porto com bons ventos,Por tomarmos da terra mantimento. Para na terra nos abastecermos de suprimentos.

1) Fortunadas: antigo nome da ilhas Canárias. 2) Hespéridas: as ilhas de Cabo Verde.

«Àquela ilha aportámos que tomou 9o Aportamos naquela ilha que tomouO nome do guerreiro Santiago, O nome do guerreiro Santiago (1),Santo que os Espanhóis tanto ajudou Santo que aos espanhóis tanto ajudoufazerem nos Mouros bravo estrago. A fazerem nos mouros um grande estrago.Daqui, tanto que Bóreas nos ventou, Dali, de tanto que o vento Bóreas (2) assoprou,Tornámos a cortar o imenso lago Retornamos para singrar o imenso lagoDo salgado Oceano, e assi deixámos Do salgado Oceano, e assim deixamosA terra onde o refresco doce achámos. A terra onde um doce repouso achamos.

1) Santiago: a ilha de Santiago que foi descoberta em 1o de Maio,

dia de Santiago de Compostela, padroeiro da Espanha.2) Bóreas: vento do norte.

«Por aqui rodeando a larga parte 10o Por ali fomos rodeando a vasta parteDe África, que ficava ao Oriente Da África que fica no lado do oriente,(A província Jalofo, que reparte A província de Jalofo (1), que se repartePor diversas nações a negra gente; Em várias nações da negra gente;A mui grande Mandinga, por cuja arte A enorme Mandinga (2), por cuja arteLogramos o metal rico e luzente, Conseguimos o metal rico e luzente,Que do curvo Gambeia as águas bebe, E que do curvo rio Gambéia as águas bebe,As quais o largo Atlântico recebe), As quais o oceano Atlântico também recebe;

1) Jalofo: região africana que ia da foz do rio Senegal até o Cabo Verde.

2) Mandinga: antigo reino da África ocidental ao sul de Gâmbia.

«As Dórcadas passámos, povoadas 11o Ultrapassamos as ilhas Dórcadas, que já foram habitadasDas Irmãs que outro tempo ali viviam, Pelas Irmãs (2), que na antiguidade ali viviam,

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Que, de vista total sendo privadas, E que por serem das vistas privadas,Todas três dum só olho se serviam. Todas três de um único olho se serviam.Tu só, tu, cujas tranças encrespadas Só tu, Netuno, com as tranças encrespadas,Neptuno lá nas águas acendiam, Que até na sua superfície subiam,Tornada já de todas a mais feia, Poderia tê-la tornado, dentre todas, a mais feia,De bívoras encheste a ardente areia. Quando de serpentes encheste a escaldante areia.

1) As ilhas Dórcadas: embora pelo contexto pareçam estar no

arquipélago de Bijagós, optamos em considerá-las como as Górgodas,

ilhas fabulosas que foram habitadas pelas Górgonas. Baseamos-nos

nas outras referências que Camões usa, como a quantidade das irmãs,

o pavor que inspiravam e as serpentes.2) Irmãs: alusão as Górgonas. Eram três, Esteno, Euríale e

Medusa. Todas com as cabeças cercadas por serpentes e de tão feias

espantavam não apenas aos homens, mas até aos deuses. Ou então uma

alusão as Gréias que eram as irmãs mais velhas das Górgonas, que

são chamadas de Gréias ou Velhas, porque já nasceram de cabelos

brancos. Também eram três: Enio, Pefredo e Dino. Diz-se que só tinham um

olho e um dente para todas as três.

«Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa, 12o Sempre inclinando para o sul a aguda proa,No grandíssimo gôlfão nos metemos, No imenso golfo (1) nos metemos,Deixando a Serra aspérrima Lioa, Deixando para trás a árida Serra Leoa ,Co Cabo a quem das Palmas nome demos. Bem como ao Cabo (3), para o qual o nome de Palmas nós demos.O grande rio, onde batendo soa O grande rio (4), onde batendo ecoaO mar nas praias notas, que ali temos, O mar nas praias do sul, que ali temos,Ficou, co a Ilha ilustre, que tomou Para trás também ficou, junto com a Ilha ilustre (5) que tomouO nome dum que o lado a Deus tocou. O nome de um apóstolo que o lado de Deus tocou.

1) Referência ao Golfo de Guiné.2) Cabo das Palmas: próximo à Libéria e Costa do Marfim.3) O grande rio: provavelmente o Niger, na Nigéria.4) Ilha ilustre: a ilha de São Tomé.

«Ali o mui grande reino está de Congo, 13o Perto dali, está o grande reino do Congo (1),Por nós já convertido à fé de Cristo, Que já foi, por nós, convertido à fé de Cristo,Por onde o Zaire passa, Claro e longo, Por onde corre o rio Zaire (2), claro e longo,Rio pelo antigos nunca visto. E que pelos antigos nunca foi visto.Por este largo mar, enfim, me alongo Finalmente, por este vasto mar me alongoDo conhecido PóIo de Calisto, Onde brilha a constelação de Calisto (3),Tendo o término ardente já passado Já tendo a linha ardente (4) ultrapassadoOnde o meio do Mundo é limitado. Onde o meio do Mundo é delimitado.

1) Congo: região da África ocidental descoberta em 1.484, por Diogo Cão.

2) Rio Zaire: rio africano, também conhecido por rio Congo.3) Calisto: constelação da Ursa Maior4) A linha do Equador.

«Já descoberto tínhamos diante, 14o Já tínhamos visto adiante,Lá no novo Hemispério, nova estrela, No novo hemisfério, uma nova estrela,

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Não vista de outra gente, que, ignorante, Desconhecida pelos outros povos, que, ignorante,Alguns tempos esteve incerta dela. Por muito tempo não teve certeza sobre a existência dela.Vimos a parte menos rutilante Vimos a parte menos brilhanteE, por falta de estrelas, menos bela, E, por falta de outras estrelas, menos bela,Do Pólo fixo, onde inda se não sabe Daquele ponto ainda não se sabeQue outra terra comece ou mar acabe. Se há outra terra que comece ou se o mar ali acabe.

«Assi, passando aquelas regiões 15o Assim, passando por aquelas regiõesPor onde duas vezes passa Apolo, Onde por duas vezes passa Apolo (1),Dous Invernos fazendo e dous Verões, Ocasionando dois invernos e dois verões,Enquanto corre dum ao outro Pólo, Enquanto corre de um para outro pólo,Por calmas, por tormentas e opressões, E enfrentando calmarias, tormentas e furacões,Que sempre faz no mar o irado Eolo, Que sempre acontecem no mar por culpa do irado Eolo (2),Vimos as Ursas, a pesar de Juno, Vimos as Ursas (3), que apesar de Juno (4),Banharem-se nas águas de Neptuno. Banham-se nas águas do deus Netuno (5).

1) Apolo: do deus do Sol. O sol.2) Eolo: o deus dos ventos.3) As constelações da Ursa Maior e Ursa Menor.4) Júpiter amou uma ninfa chamada Calisto de quem teve

um filho. Juno, enciumada, transformou-os em ursos, que Júpiter colocou no

céu criando essas constelações.5) Netuno: o deus do mar.

«Contar-te longamente as perigosas 16o Relatar-lhe detalhadamente as perigosasCousas do mar, que os homens não entendem, Coisas do mar, que a humanidade não compreende,Súbitas trovoadas temerosas, Súbitas trovoadas pavorosas,Relâmpados que o ar em fogo acendem, Relâmpagos, que o ar como fogo acende,Negros chuveiros, noites tenebrosas, Escuras tempestades, noites tenebrosas,Bramidos de trovões, que o mundo fendem, Rugidos de trovões, que parece que o mundo fende,Não menos é trabalho que grande erro, Não apenas é desnecessário como seria um grande erro,Ainda que tivesse a voz de ferro. Mesmo que eu tivesse uma voz de ferro.

«Os casos vi, que os rudos marinheiros, 17o Vi acontecimentos que os rudes marinheiros,Que têm por mestra a longa experiência, Apoiados apenas na larga experiência,Contam por certos sempre e verdadeiros, Contam como se fossem reais e verdadeiros,Julgando as cousas só pola aparência, Julgando os fatos apenas pela aparência.E que os que têm juízos mais inteiros, Mas, para quem tem conhecimentos mais inteiros,Que só por puro engenho e por ciência E que apenas pela racionalidade e pela ciência,Vêm do mundo os segredos escondidos, Vem os mistérios do mundo, tão escondidos,Julgam por falsos ou mal entendidos. Não passam de tolas crendices ou fenômenos incompreendidos.

«Vi, claramente visto, o lume vivo 18o Vi claramente o lume (1) que parece estar vivoQue a marítima gente tem por santo, E que os marujos julgam como se fosse Santo,Em tempo de tormenta e vento esquivo, Quando aconteciam as tormentas e o vento esquivo,De tempestade escura e triste pranto. As tempestades escuras e o triste pranto.Não menos foi a todos excessivo E também vi o que me pareceu um excessivoMilagre, e cousa, certo, de alto espanto, Milagre, e que me causou um grande espanto,Ver as nuvens, do mar com largo cano, Quando vi que as nuvens, como se formassem um largo cano,Sorver as altas águas do Oceano. Sorviam as águas do vasto oceano.

1) Lume: o fogo de Santelmo.

«Eu o vi certamente (e não presumo 19o Eu vi claramente (e presumoQue a vista me enganava): levantar-se Que a vista não me enganava): levantar-seNo ar um vaporzinho e sutil fumo No ar um vaporzinho e um sutil fumo (1)E, do vento trazido, rodear-se; Que pelo vento era trazido e com o qual estava a rodear-se;

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De aqui levado um cano ao Pólo sumo Ali, levando como se fosse um cano ao céu sumoSe via, tão delgado, que enxergar-se Via-se, mas tão estreito que enxergarDos olhos fàcilmente não podia; Facilmente quase que não se podia;Da matéria das nuvens parecia. Pois com o material das nuvens se parecia.

«Ia-se pouco e pouco acrecentando 20o Aos poucos ia aumentandoE mais que um largo masto se engrossava; E mais do que um largo mastro já se engrossava;Aqui se estreita, aqui se alarga, quando Ali se estreita, acolá se alarga, quandoOs golpes grandes de água em si chupava; Uma grande porção de água para si tomava;Estava-se co as ondas ondeando; Ao sabor das ondas ia ondulando;Em cima dele ua nuvem se espessava, Em cima dele uma nuvem se espessava,Fazendo-se maior, mais carregada, Tornando-se maior, mais carregada,Co cargo grande d'água em si tomada. Com a grande carga de água para si canalizada.

«Qual roxa sangues[s]uga se veria 21o Igual uma rubra sanguessuga, se veria,Nos beiços da alimária (que, imprudente, Nos beiços de uma cavalgadura (que, imprudente,Bebendo a recolheu na fonte fria) A recolheu enquanto bebia na fonte fria)Fartar co sangue alheio a sede ardente; Saciando com o sangue alheio a sua sede ardente;Chupando, mais e mais se engrossa e cria, Sugando cada vez mais, se engrossa e procria,Ali se enche e se alarga grandemente: E ali se enche e se alarga grandemente:Tal a grande coluna, enchendo, aumenta Assim a grande coluna, enchendo, aumentaA si e a nuvem negra que sustenta. A si mesma e à nuvem negra que alimenta.

«Mas, despois que de todo se fartou, 22o Depois que completamente se fartou,O pé que tem no mar a si recolhe O ponto que encostava ao mar, para si recolhe,E pelo céu, chovendo, enfim voou, E pelo céu, chovendo, finalmente voou,Por que co a água a jacente água molhe; Para que com a água recolhida a tudo molhe;Às ondas torna as ondas que tomou, Para as ondas devolve as águas que tomou,Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe. Mas o sabor do sal, ela tira e tolhe.Vejam agora os sábios na escritura Que vejam os sábios nas escrituras, com destreza,Que segredos são estes de Natura! Que prodígios são estes da natureza.

«Se os antigos Filósofos, que andaram 23o Se os antigos sábios, que andaramTantas terras, por ver segredos delas, Por tantas terras, para descobrirem os segredos delas,As maravilhas que eu passei, passaram, Tivessem visto os prodígios que eu vi e que pouco mudaram,A tão diversos ventos dando as velas, Nestes lugares onde fui levado pelas velas,Que grandes escrituras que deixaram! Fariam maiores estudos, além daqueles que nos deixaram!Que influïção de sinos e de estrelas! Que magníficas descobertas sobre os sinais e sobre as estrelas,Que estranhezas, que grandes qualidades! Quantas curiosidades, que grande qualidade!E tudo, sem mentir, puras verdades. E tudo real, concreto, a mais pura realidade.

«Mas já o Planeta que no Céu primeiro 24o O Planeta (1) que no Céu PrimeiroHabita, cinco vezes, apressada, Aparece, já mostrara por cinco vezes, apressada,Agora meio rosto, agora inteiro, Numa hora meio rosto e noutra o rosto inteiro (2),Mostrara, enquanto o mar cortava a armada, Enquanto o mar era singrado pela armada,Quando da etérea gávea, um marinheiro, Quando na gávea (3) suspensa um marinheiro,Pronto co a vista: «Terra! Terra!» brada. Atento com a vista: - Terra, terra – brada.Salta no bordo alvoroçada a gente, Salta alvoroçada no convés toda genteCos olhos no horizonte do Oriente. Mirando o horizonte do Oriente.

1) Na época de Camões a Lua era considerada um planeta. O primeiro,

segundo o sistema ptolomaico.2) Referência às fases da Lua.3) Gávea: ponto de observação no alto dos mastros.

«A maneira de nuvens se começam 25o Inicialmente, como se fossem nuvens, começamA descobrir os montes que enxergamos; A mostrar-se os montes que, depois, claramente enxergamos;

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As âncoras pesadas se adereçam; As pesadas âncoras se arremessam;As velas, já chegados, amainamos. E as velas, pois já tínhamos chegado, amainamos.E, pera que mais certas se conheçam E para que melhor se conheçamAs partes tão remotas onde estamos, A distante região em que estamos,Pelo novo instrumento do Astrolábio, Usamos o novo instrumento, chamado de Astrolábio (1),Invenção de sutil juízo e sábio, Invenção esplêndida do raciocínio sábio.

1) Astrolábio: instrumento astronômico inventado por Hiparco, astrônomo

e matemático grego. Mede a altura de um astro acima da linha do

horizonte.

«Desembarcamos logo na espaçosa 26o Logo desembarcamos na espaçosaParte, por onde a gente se espalhou, Região, por onde a tropa se espalhou,De ver cousas estranhas desejosa, Para ver as coisas estranhas, como estava desejosa,Da terra que outro povo não pisou. Daquela terra que outro povo não pisou.Porém eu, cos pilotos, na arenosa Porém, eu e os pilotos, na arenosaPraia, por vermos em que parte estou, Praia, para ver em que parte estou,Me detenho em tomar do Sol a altura Detenho-me para medir a alturaE compassar a universal pintura. Do sol e me situar na universal arquitetura.

«Achámos ter de todo já passado 27o Concluímos já ter ultrapassadoDo Semícapro Pexe a grande meta, Do Trópico de Peixes (1) a grande meta,Estando entre ele e o circulo gelado E que estávamos entre este trópico e o Pólo geladoAustral, parte do mundo mais secreta. No sul, a parte do mundo que é a mais secreta.Eis, de meus companheiros rodeado, De repente, por meus companheiros aprisionado,Vejo um estranho vir, de pele preta, Vejo um estranho surgir, de pele preta,Que tomaram per força, enquanto apanha Que prenderam a força, enquanto ele apanhavaDe mel os doces favos na montanha. Na montanha, o mel e a doce fava.

1) Na verdade, o “Semicapro Peixe” é o Trópico de Capricórnio

representado por uma figura que é metade cabra e metade peixe, daí o nome.

«Torvado vem na vista, como aquele 28o Que ele está perturbado logo se avista, tal como aqueleQue não se vira nunca em tal extremo; Que nunca se vira em perigo tão extremo;Nem ele entende a nós, nem nós a ele, Nem ele nos entende e nem nós a ele,Selvagem mais que o bruto Polifemo. Mais selvagem que o rude Polifemo (1).Começo-lhe a mostrar da rica pele Começo por lhe mostrar a rica peleDe Colcos o gentil metal supremo, Adornada com o Colco (2) metal supremo,A prata fina, a quente especiaria: A refinada prata, a ardente especiaria:A nada disto o bruto se movia. E a nada disto o selvagem se movia.

1) Polifemo: filho de Netuno, um dos ciclopes, morto por Ulisses.

2) Colco: oriundo da Cólquida, na Ásia, onde os argonautas foram

buscar o Velocino de Ouro. P.ex. o tecido recamado com ouro, ou dourado.

«Mando mostrar-lhe peças mais somenos: 29o Então, mostramos-lhe as peças de menosContas de cristalino transparente, Valor: contas cristalina e transparente,Alguns soantes cascavéis pequenos, Alguns sonoros chocalhos pequenos,Um barrete vermelho, cor contente; Um chapéu vermelho, de cor brilhante;Vi logo, por sinais e por acenos, Logo vi, pelos seus sinais e acenos,Que com isto se alegra grandemente. Que estas peças o alegravam grandemente.Mando-o soltar com tudo e assi caminha Mando soltarem-no com esses presentes e ele se encaminhaPera a povoação, que perto tinha. Para a povoação que perto dali tinha.

«Mas, logo ao outro dia, seus parceiros, 30o Logo no outro dia, seus parceiros,

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Todos nus e da cor da escura treva, Todos nus e da cor da escura treva,Decendo pelos ásperos outeiros, Descendo pelos rudes outeiros,As peças vêm buscar que estoutro leva. Vem buscar as peças que aquele primeiro leva.Domésticos já tanto e companheiros se nos Muitos dóceis e companheirosmostram, que fazem que se atreva Já se mostram, e fazem com que se atrevaFernão Veloso a ir ver da terra o trato Fernão Veloso (1) a ir ver a terra e o tratoE partir-se co eles pelo mato. E com eles embrenhar-se pelo mato.

1) Fernão Veloso: um dos tripulantes da Armada.

«É Veloso no braço confiado 31o Veloso segue na força de seu braço confiadoE, de arrogante, crê que vai seguro; E, arrogante, crê que vai seguro;Mas, sendo um grande espaço já passado, Mas um grande tempo já havia passado,Em que algum bom sinal saber procuro, Sem que eu tivesse dele algum sinal e então o procuro,Estando, a vista alçada, co cuidado Com a vista apurada e com bastante cuidado,No aventureiro, eis pelo monte duro E eis que vejo o aventureiro, pelo monte duroAparece e, segundo ao mar caminha, Aparecer e que para o mar, rapidamente se encaminha,Mais apressado do que fora, vinha. E que com muito maior pressa do que fora, ele vinha.

«O batel de Coelho foi depressa 32o Com o bote, Coelho (1) foi depressaPolo tomar; mas, antes que chegasse, Para o mar, mas, antes que chegasse,Um Etíope ousado se arremessa Um etíope (2) ousado se arremessaA ele, por que não se lhe escapasse; Contra ele, para que não lhe escapasse.Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa Outros também saem; vê-se apurado e com muita pressaVeloso, sem que alguém lhe ali ajudasse; Veloso, sem que houvesse alguém que lhe ajudasse,Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto, Eu, então, acudo logo e enquanto o ritmo dos remos aperto,Se mostra um bando negro, descoberto. Vislumbro um bando de negros, a descoberto.

1) Coelho: Nicolau Coelho, um dos companheiros de Vasco da Gama

e comandante de uma das caravelas.2) Etíope: nativo .

«Da espessa nuvem setas e pedradas 33o Espessa nuvem de flechas e de pedradasChovem sobre nós outros, sem medida; Chove sobre nós, sem medida;E não foram ao vento em vão deitadas, E não foram em vão atiradas,Que esta perna trouxe eu dali ferida. Pois essa perna, dali, eu trago ferida.Mas nós, como pessoas magoadas, Mas nós, como as pessoas afrontadas,A reposta lhe demos tão tecida Demos-lhes uma resposta tão dolorida,Que em mais que nos barretes se suspeita Que o vermelho nas suas cabeças, como se suspeita,Que a cor vermelha levam desta feita. Não eram os chapéus, mas as feridas que lhes foram feitas.

«E, sendo já Veloso em salvamento, 34o Já estando Veloso em salvamento,Logo nos recolhemos pera a armada, Logo nos recolhemos na armada,Vendo a malícia feia e rudo intento Revendo a malícia feia e o malévolo intentoDa gente bestial, bruta e malvada, Daquela gente bestial, bruta e malvada,De quem nenhum milhor conhecimento De quem, aliás, nenhum bom conhecimentoPudemos ter da Índia desejada Obtivemos sobre a Índia tão desejada;Que estarmos inda muito longe dela. Exceto aquele de que ainda estávamos muito longe dela.E assi tornei a dar ao vento a vela. Sendo assim, mandei que novamente se soltasse ao vento a vela.

«Disse então a Veloso um companheiro 35o Então disse a Veloso um companheiro(Começando-se todos a sorrir): (O que nos levou a sorrir):- «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro - Ora, ora, Veloso amigo, aquele outeiroÉ milhor de decer que de subir!» É melhor para descer do que para subir.- «Si, é (responde o ousado aventureiro); - Sim, é mesmo, responde o ousado aventureiro;Mas, quando eu pera cá vi tantos vir Mas é que quando olhei, que para cá, vocês estavam a virDaqueles cães, depressa um pouco vim, Daqueles cães, com um pouco de pressa eu vim,Por me lembrar que estáveis cá sem mim.» Mas só por me lembrar, que aqui, vocês estavam sem mim.

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«Contou então que, tanto que passaram 36o Depois, contou que logo que passaramAquele monte os negros de quem falo, Aquele monte, os negros de quem eu falo,Avante mais passar o não deixaram, Que ele fosse mais à frente não deixaram,Querendo, se não torna, ali matá-lo; Querendo, se ele não fugisse, ali matá-lo;E tornando-se, logo se emboscaram, E logo que ele retornou, eles se emboscaram,Por que, saindo nós pera tomá-lo, Para que ao sairmos para procurá-lo,Nos pudessem mandar ao reino escuro, Eles pudessem nos mandar para o Reino Escuro,Por nos roubarem mais a seu seguro. Podendo, então, nos roubar de modo mais seguro.

«Porém já cinco Sóis eram passados 37o Cinco vezes o sol já tinha passadoQue dali nos partíramos, cortando Desde que dali nós partimos, cortandoOs mares nunca d'outrem navegados, O mar que nunca por outro fora navegado,Pròsperamente os ventos assoprando, Favoravelmente os ventos iam soprando,Quando üa noute, estando descuidados Quando numa certa noite, despreocupados,Na cortadora proa vigiando, Na cortante e aguda proa vigiando,üa nuvem que os ares escurece, Vimos uma nuvem que o céu escurece,Sobre nossas cabeças aparece. E que sobre as nossas cabeças aparece.

«Tão temerosa vinha e carregada, 38o Tão pavorosa vinha e tão carregada,Que pôs nos corações um grande medo; Que pôs nos nossos corações um grande medo;Bramindo, o negro mar de longe brada, Rugindo, o negro mar de longe brada,Como se desse em vão nalgum rochedo. Como se em vão batesse em algum rochedo.- «Ó Potestade (disse) sublimada: - Ó divindade, eu disse, sublimada:Que ameaço divino ou que segredo Que ameaça divina ou que segredoEste clima e este mar nos apresenta, Esta adversidade representa,Que mor cousa parece que tormenta?» Que coisa será esta que parece maior que uma tormenta?

«Não acabava, quando üa figura 39o Nem bem eu acabava, quando uma figuraSe nos mostra no ar, robusta e válida, Mostra-se no ar, robusta, sólida e desarrumada,De disforme e grandíssima estatura; Com uma deformada e imensa estatura;O rosto carregado, a barba esquálida, Tinha o rosto carregado e a barba desalinhada,Os olhos encovados, e a postura Os olhos eram opacos e a sua posturaMedonha e má e a cor terrena e pálida; Era assustadora e má, sendo de cor marrom e pálida;Cheios de terra e crespos os cabelos, Cheio de terra e muito crespos eram os seus cabelos,A boca negra, os dentes amarelos. A boca era escura e os dentes amarelos.

«Tão grande era de membros que bem posso 40o Eram tão grandes os seus membros que bem possoCertificar-te que este era o segundo Certificar-te de que era um segundo,De Rodes estranhíssimo Colosso, Ou uma cópia do magnífico ColossoQue um dos sete milagres foi do mundo. De Rodes (1), que foi uma das “Sete Maravilhas” do mundo.Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso, Nos fala com um tom de voz horrendo e grosso,Que pareceu sair do mar profundo. Que pareceu vir do mar profundo.Arrepiam-se as carnes e o cabelo, Arrepiam-se as peles e os cabelosA mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo! De todos, apenas por ouvir-lhe e vê-lo!

1) Colosso de Rodes: estátua de Apolo, feita com bronze e com mais de

trinta metros, situada na ilha de Rodes, no Mediterrâneo. Considerada

uma das “Sete Maravilhas” da antiguidade.

«E disse: - «Ó gente ousada, mais que quantas 41o Ele disse-nos: - Ó gente ousada, mais que tantasNo mundo cometeram grandes cousas, Outras, que no mundo fizeram grandes feitos,Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, Tu, que das duras guerras santasE por trabalhos vãos nunca repousas, E das árduas dificuldades nunca repousa nos doces leitos;Pois os vedados términos quebrantas Agora, os proibidos limites do mar quebrantas;E navegar meus longos mares ousas, E navegas em meu mar, com tanta ousadia e de tal jeito,Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, Que devassam este mar que há tempo eu guardo e tenhoNunca arados d'estranho ou próprio lenho; E que nunca foram singrados por outro lenho (1):

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1) Lenho: navio.

«Pois vens ver os segredos escondidos 42o Agora vens conhecer os mistérios escondidosDa natureza e do húmido elemento, Da natureza e do liquido elemento,A nenhum grande humano concedidos O que a nenhum grande humano foram permitidosDe nobre ou de imortal merecimento, Ainda que tivessem um nobre e imortal merecimento,Ouve os danos de mi que apercebidos Ouça de mim os danos que preparadosEstão a teu sobejo atrevimento, Estão pelo teu insolente atrevimento,Por todo o largo mar e pola terra Por todo o vasto mar e pela terraQue inda hás-de sojugar com dura guerra. Que ainda há de conquistar com uma dura guerra.

«Sabe que quantas naus esta viagem 43o Saiba que a todas as naus que esta viagemQue tu fazes, fizerem, de atrevidas, Que tu fazes, fizerem, tão atrevidas,Inimiga terão esta paragem, Inimiga lhes será esta paragem,Com ventos e tormentas desmedidas; Com ventos e tormentas desmedidas!E da primeira armada que passagem E com a primeira frota que esta passagemFizer por estas ondas insofridas, Fizer, por estas ondas enfurecidas,Eu farei de improviso tal castigo Eu farei de improviso tal castigoQue seja mor o dano que o perigo! Que será maior o dano que o presumido perigo!

«Aqui espero tomar, se não me engano, 44o Aqui espero revidar, se não me engano,De quem me descobriu suma vingança; Contra quem me descobriu com uma terrível vingança.E não se acabará só nisto o dano E não ficará apenas nisto o pretendido danoDe vossa pertinace confiança: Contra a tua insolente autoconfiança:Antes, em vossas naus vereis, cada ano, Pois vereis em vossas naus, a cada ano,Se é verdade o que meu juízo alcança, Se for verdade o que a minha percepção alcança,Naufrágios, perdições de toda sorte, Naufrágios e prejuízos de toda sorte,Que o menor mal de todos seja a morte! Onde o menor dos males será a morte!

«E do primeiro Ilustre, que a ventura 45o Assim será com aquele ilustre (1), cuja grande bravuraCom fama alta fizer tocar os Céus, Tornará tão famoso que tocará os Céus,Serei eterna e nova sepultura, Para quem eu serei a triste e eterna sepultura,Por juízos incógnitos de Deus. Por decisão misteriosa de Deus.Aqui porá da Turca armada dura Aqui ficarão, após vencerem a Turca (2) armada dura,Os soberbos e prósperos troféus; Os imponentes e ricos troféus;Comigo de seus danos o ameaça Comigo e com os seus próprios danos lhe ameaçaA destruída Quíloa com Mombaça. A destruída Quíloa (3) e Mombaça (4).

1) Alusão a Dom Francisco de Almeida, Vice-Rei na Índia, que morreu no

Cabo da Boa Esperança, em luta contra os Cafres, quando voltava a

Portugal.2) Alusão aos muçulmanos de Constantinopla.3) Quíloa: ilha da costa oriental da África. Vide Canto I4) Mombaça: Cidade na costa oriental da África.

«Outro também virá, de honrada fama, 46o Um outro também virá, de honrada fama,Liberal, cavaleiro, enamorado, Liberal, cavaleiro e enamorado,E consigo trará a fermosa dama E consigo trará uma linda damaQue Amor por grão mercê lhe terá dado. Que o Cupido, por grande generosidade, lhe terá dado.Triste ventura e negro fado os chama Triste sorte e negro destino, lhe chamaNeste terreno meu, que, duro e irado, Neste meu lugar, rude e irado,Os deixará dum cru naufrágio vivos, Onde de um terrível naufrágio escaparão vivos,Pera verem trabalhos excessivos. Mas apenas para serem forçados a desgostos sucessivos.

«Verão morrer com fome os filhos caros, 47o Verão morrer de fome os filhos que lhes são tão caros,Em tanto amor gerados e nacidos; Que com tanto amores foram gerados e criados;Verão os Cafres, ásperos e avaros, Verão os Cafres (1), rudes e bárbaros,Tirar à linda dama seus vestidos; Tirar da linda dama os seus vestidos;

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Os cristalinos membros e perclaros Os cristalinos membros tão clarosÀ calma, ao frio, ao ar, verão despidos, A calmaria, o frio, o ar, verão despidos,Despois de ter pisada, longamente, Depois de ser obrigada a pisar longamente,Cos delicados pés a areia ardente. Com os delicados pés na areia ardente.

1) Cafres: natural da Cafraria, antigo nome da parte da África habitada

pelos não muçulmanos e que hoje designa duas regiões da África do Sul.

«E verão mais os olhos que escaparem 48o E verão mais os olhos que escaparamDe tanto mal, de tanta desventura, De tanta maldade e de tanta desventura;Os dous amantes míseros ficarem Os olhos dos dois miseráveis amantes que ficaramNa férvida, implacábil espessura. Na tórrida e implacável tortura.Ali, despois que as pedras abrandarem Ali, depois que até as pedras amoleceram,Com lágrimas de dor, de mágoa pura, Com lágrimas de dor e de mágoa pura,Abraçados, as almas soltarão Abraçados, as pobres almas se soltarão,Da fermosa e misérrima prisão.» Da triste, escura e tenebrosa prisão.

«Mais ia por diante o monstro horrendo, 49o Mais adiante ia o monstro horrendoDizendo nossos Fados, quando, alçado, Falando de nossos destinos, quando, levantado,Lhe disse eu: - «Quem és tu? Que esse estupendo Eu lhe disse: - Quem és tu? O quê está dizendo?Corpo, certo me tem maravilhado!» Saiba que o teu imenso corpo me deixa atordoado!A boca e os olhos negros retorcendo A boca e os negros olhos retorcendoE dando um espantoso e grande brado, E soltando um espantoso e imenso brado,Me respondeu, com voz pesada e amara, Responde-me, com a voz grave e queixosa,Como quem da pergunta lhe pesara: Como se a pergunta lhe fosse desgostosa.

«Eu sou aquele oculto e grande Cabo 50o Eu sou aquele oculto e grande CaboA quem chamais vós outros Tormentório, Que vocês chamam de Tormentório (1),Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, E que nunca a Ptolomeu (2), Pompônio (3), Estrabo (4),Plinio e quantos passaram fui notório. Plínio (5) e todos os outros que aqui estudaram, fui notório.Aqui toda a Africana costa acabo Aqui, toda a costa africana terminaNeste meu nunca visto Promontório, Neste meu desconhecido promontório,Que pera o Pólo Antártico se estende, Que para o Pólo Antártico (1) se estendeA quem vossa ousadia tanto ofende. E a quem a vossa ousadia tanto ofende!

1) Cabo Tormentório: Cabo das Tormentas, depois mudado por

D.João II para Cabo da Boa Esperança. Situado no extremo sul da

África.2) Ptolomeu: Cláudio Ptolomeu, astrônomo grego cujo

sistema do mundo durou até Copérnico.3) Pompônio: Pompônio Mela, geógrafo romano, autor de

“De Sittu Orbis” que inspirou a obra de Duarte Pacheco Esmeraldo autor de

“Sitti Orbis”.4) Estrabo: geógrafo grego que, aproximadamente viveu

entre 58 e 21 aC.5) Plínio: Caio Plínio Segundo, autor da “Naturalis Historia”,

espécie de enciclopédia de ciências na antiguidade.6) Pólo Antártico: o Pólo Sul.

«Fui dos filhos aspérrimos da Terra, 51o Fui um dos Gigantes (1), filhos da Terra,Qual Encélado, Egeu e o Centimano; Irmão de Encélado (2), Egeu (2) e Centimano (2);Chamei-me Adamastor, e fui na guerra Chamei-me Adamastor (3) e fui para a guerraContra o que vibra os raios de Vulcano; Contra aquele (4) que lança os raios de Vulcano (5);Não que pusesse serra sobre serra, Não cheguei a mover serra sobre serra,Mas, conquistando as ondas do Oceano, Mas, conquistando as ondas do Oceano (6),

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Fui capitão do mar, por onde andava Fui capitão no mar, por onde andavaA armada de Neptuno, que eu buscava. A armada de Netuno (7), que eu procurava.

1) Gigantes: Titãs, os filhos da Terra que tentaram atingir o Olimpo, mas

foram derrotados por Júpiter que os soterrou sob os montes que eles

usaram para a escalada.2) Encélado, Egeu e Centimano: Gigantes filhos da Terra.3) Adamastor: um dos Gigantes, que foi transformado no

Cabo da Boa Esperança. Aqui simboliza a luta dos portugueses contra a

natureza.4) Referência a Júpiter. 5) Vulcano: o deus do fogo e o fabricante das armas de

Júpiter.6) Oceano: o mais velho dos Titãs, filho de Urano e Gaia,

personificava o mar.7) Netuno: deus do Mar, filho de Saturno e Cibele e irmão de

Júpiter e de Plutão.

«Amores da alta esposa de Peleu 52o Amores pela sublime esposa de Peleu (1)Me fizeram tomar tamanha empresa; Fizeram-me tomar tamanha empresa.Todas as Deusas desprezei do Céu, Eu desprezei todas as deusas do céu,Só por amar das águas a Princesa. Por amor àquela, que do reino das águas, é a princesa.Um dia a vi, co as filhas de Nereu, Num certo dia eu a vi, junto com as filhas de Nereu (2),Sair nua na praia e logo presa Sair nua na praia: imediatamente ficou presaA vontade senti de tal maneira A minha alma e o meu coração e de tal maneiraQue inda não sinto cousa que mais queira. Que ainda agora, não existe outra que eu mais queira.

1) Peleu: rei da Tessália, pai de Aquiles e marido de Tétis.2) Filhas de Nereu: as Nereidas. Filhas de Nereu, divindade

marinha e de Doris. Eram as ninfas do mar.

«Como fosse impossíbil alcançá-la, 53o Como fosse impossível conquistá-laPola grandeza feia de meu gesto, Devido a grande feiúra do meu rosto,Determinei por armas de tomá-la Decidi, pelas armas, tomá-laE a Dóris este caso manifesto. E a Doris (1) este desejo eu manifesto.De medo a Deusa então por mi lhe fala; Amedrontada, a deusa em meu nome lhe fala:Mas ela, cum fermoso riso honesto, Mas ela, como um riso belo e honesto,Respondeu: - «Qual será o amor bastante Respondeu-me: - Qual será o amor bastanteDe Ninfa, que sustente o dum Gigante? De uma ninfa, que sustente o de um Gigante?

1) Doris: filha do Oceano e de Tétis, casada com Nereu e mãe das

Nereidas.

«Contudo, por livrarmos o Oceano 54o Contudo, para livrarmos o Oceano (1)De tanta guerra, eu buscarei maneira De tamanha guerra, eu procurarei uma maneiraCom que, com minha honra, escuse o dano.» De com a minha honra evitar esse dano;Tal resposta me torna a mensageira. Tal resposta me trouxe a mensageira.Eu, que cair não pude neste engano Eu não pude deixar de cair neste engano(Que é grande dos amantes a cegueira), (Pois é grande nos amantes a cegueira),Encheram-me, com grandes abondanças, E encheu-se o meu coração,O peito de desejos e esperanças. De desejos, esperança e emoção.

1) Oceano: o mais velho dos Titãs, filho de Urano e Gaia, personificava o mar.

«Já néscio, já da guerra desistindo, 55o Já inerte, e da guerra desistindo,

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üa noite, de Dóris prometida, Uma noite, aquela que por Doris me foi prometida,Me aparece de longe o gesto lindo Aparece-me ao longe com o corpo lindo,Da branca Tétis, única, despida. A clara Téthis (1), só e despida.Como doudo corri de longe, abrindo Como um doido eu corri, abrindoOs braços pera aquela que era vida Os braços para aquela que era a vidaDeste corpo, e começo os olhos belos Deste meu corpo, e começo pelos belos olhosA lhe beijar, as faces e os cabelos. A beijar-lhe, seguindo para as faces e cabelos.

1) Téthis: uma das Nereidas, filha de Nereu e de Doris, e uma das

mais belas divindades. Não confundir com a outra Téthis, filha do

Céu e Terra.

«Oh que não sei de nojo como o conte! 56o Oh! Apesar da imensa dor, é preciso que eu lhes conte:Que, crendo ter nos braços quem amava, Crendo ter nos braços quem eu amava,Abraçado me achei cum duro monte Vi, que na verdade, eu abraçava um duro monteDe áspero mato e de espessura brava. De áspero mato e espessura brava.Estando cum penedo fronte a fronte, Estava com um penedo em minha frente,Qu'eu polo rosto angélico apertava, E eu imaginando que era o rosto angelical que apertava,Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo Não me humanizei não; mas mudo e quedoE, junto dum penedo, outro penedo! Junto daquele penedo, tornei-me também um rochedo.

«Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano, 57o Ó ninfa, a mais bela do Oceano,Já que minha presença não te agrada, Já que a minha presença não te agrada,Que te custava ter-me neste engano, O que te custava ser minha neste engano,Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada? Que não sei se foi monte, nuvem, sonho ou nada?Daqui me parto, irado e quási insano Dali eu parti, irado e quase insanoDa mágoa e da desonra ali passada, Pela mágoa e desonra ali passada,A buscar outro mundo, onde não visse E fui buscar lugar no mundo, onde não visseQuem de meu pranto e de meu mal se risse. Quem do meu pranto e de minha dor risse.

«Eram já neste tempo meus Irmãos 58o Neste tempo, já eram os meus irmãos (1)Vencidos e em miséria extrema postos, Vencidos e em extrema miséria estavam postos,E, por mais segurar-se os Deuses vãos, E, para melhor se assegurarem os deuses vãos,Alguns a vários montes sotopostos. Colocam sobre eles vários montes sobrepostos.E, como contra o Céu não valem mãos, Mas como contra o Olimpo não bastam as mãos,Eu, que chorando andava meus desgostos, Eu, que andava chorando os meus desgostos,Comecei a sentir do Fado imigo, Comecei a sentir do destino inimigo,Por meus atrevimentos, o castigo: Pelos meus atrevimentos, o severo castigo.

1) Referência aos Gigantes que tentaram atingir o Olimpo mas

foram vencidos por Júpiter que os soterrou sob os montes que

tinham usado na escalada.

Converte-se-me a carne em terra dura; 59o A minha carne se transformou em terra dura;Em penedos os ossos se fizeram; Em rochedos os meus ossos se fizeram;Estes membros que vês, e esta figura, Estes membros que vês, esta figura,Por estas longas águas se estenderam. Por estas vastas águas se estenderam.Enfim, minha grandíssima estatura Finalmente, a minha imensa estatura,Neste remoto Cabo converteram Neste distante Cabo converteramOs Deuses; e, por mais dobradas mágoas, Os deuses; e para aumentar as minhas mágoas,Me anda Tétis cercando destas águas.» Téthis vive rodeando estas águas.

«Assi contava; e, cum medonho choro, 60o Isto ele contava; e com um medonho choro,Súbito d'ante os olhos se apartou; Subitamente de ante dos nossos olhos se afastou.Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro Desfez-se a nuvem negra e com um sonoroBramido muito longe o mar soou. Rugido, de muito longe o mar ecoou.Eu, levantando as mãos ao santo coro Eu, levantando as mãos ao Divino Coro,

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Dos Anjos, que tão longe nos guiou, Que a tão longe nos guiou,A Deus pedi que removesse os duros Pedi a Deus que afastasse o duroCasos, que Adamastor contou futuros. Vaticínio que Adamastor previu para o nosso futuro.

«Já Flégon e Piróis vinham tirando, 61o Nisto, Flegon (1) e Pirois (1) já iam retirando,Cos outros dous, o carro radiante, Junto com os outros dois, o carro do sol radiante,Quando a terra alta se nos foi mostrando Quando então a terra alta foi-se mostrandoEm que foi convertido o grão Gigante. Em que fora transformado o grande Gigante.Ao longo desta costa, começando Ao longo dessa costa, já começandoJá de cortar as ondas do Levante, A cortar as águas do Oriente,Por ela abaixo um pouco navegámos, Um pouco mais abaixo navegamos,Onde segunda vez terra tomámos. Onde pela segunda vez em terra aportamos.

1) Flegon e Pirois: os cavalos que puxavam o carro do Sol. Os outros dois são Eôo e Eton.

«A gente que esta terra possuía, 62o O povo que esta terra possuía,Posto que todos Etiopes eram, Rudes e Etíopes também eram,Mais humana no trato parecia Mas muito mais generoso nos pareciaQue os outros que tão mal nos receberam. Se comparado àqueles outros que tão mal nos receberam.Com bailos e com festas de alegria Com bailados, festas e alegria,Pela praia arenosa a nós vieram, Pela arenosa praia até nós vieram,As mulheres consigo e o manso gado Traziam consigo as mulheres e o manso gadoQue apacentavam, gordo e bem criado. Que pastoreavam, gordo e bem criado.

«As mulheres, queimadas, vêm em cima 63o As mulheres, bronzeadas, vêm em cimaDos vagarosos bois, ali sentadas, De lentos bois, confortavelmente sentadas,Animais que eles têm em mais estima Animais que eles tem com mais estimaQue todo o outro gado das manadas. Que a qualquer outro de suas manadas.Cantigas pastoris, ou prosa ou rima, Cantigas bucólicas, em prosa ou rima,Na sua língua cantam, concertadas Cantavam na sua língua, todas bem arranjadas,Co doce som das rústicas avenas, E as acompanhavam com o suave som das rudes avenas (1),Imitando de Títiro as Camenas. Imitando de Títiro (2) as Camenas (3).

1) Avenas: flautas feitas com talos de aveia.2) Títiro: pastor citado por Virgilio.3) Camenas: ninfas que depois foram associadas às musas inspiradoras da poesia do campo.

«Estes, como na vista prazenteiros 64o Eles, como se podia ver, eram hospitaleirosFossem, humanamente nos trataram, E amistosamente nos trataram,Trazendo-nos galinhas e carneiros Trazendo-nos galinhas e cordeirosA troco doutras peças que levaram; A troco de poucas peças que levaram.Mas como nunca, enfim, meus companheiros Mas como sempre, os meus companheirosPalavra sua algüa lhe alcançaram Nenhuma palavra do que diziam, entenderamQue desse algum sinal do que buscamos, E foi impossível alguma orientação sobre o que buscamos,As velas dando, as âncoras levamos. E, então, soltamos as velas e a âncora levantamos.

«Já aqui tínhamos dado um grão rodeio 65o Já tínhamos dado um grande volteio,À costa negra de Africa, e tornava Em toda costa da África negra e tornavaA proa a demandar o ardente meio A proa a navegar rumo ao ardente meio (1)Do Céu, e o Pólo Antártico ficava. Desenhado no céu; e o Pólo Antártico para trás ficava.Aquele ilhéu deixámos onde veio Aquela ilha nós deixamos, para onde veioOutra armada primeira, que buscava Antes uma outra armada, que buscavaO Tormentório Cabo e, descoberto, O Cabo Tormentório, o qual sendo descobertoNaquele ilhéu fez seu limite certo. Fez daquela ilha o seu extremo mais certo.

1) Ardente Meio: a Linha do Equador.

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«Daqui fomos cortando muitos dias, 66o Dali nós fomos navegando por muitos dias,Entre tormentas tristes e bonanças, Entre tristes tormentas e generosas bonanças,No largo mar fazendo novas vias, No vasto mar fomos criando novas viasSó conduzidos de árduas esperanças. Movidos apenas por crédulas esperanças.Co mar um tempo andámos em porfias, Com o mar, por muito tempo, andamos em porfiasQue, como tudo nele são mudanças, Pois nele há constantes mudanças,Corrente nele achámos tão possante, E achamos até uma correnteza tão possante,Que passar não deixava por diante: Que não nos deixava seguir adiante:

«Era maior a força em demasia, 67o A sua força era desproporcional e em demasia,Segundo pera trás nos obrigava, E para trás, violentamente, nos empurravaDo mar, que contra nós ali corria, No mar, que ali, contra nós corria.Que por nós a do vento que assoprava. Contávamos apenas com a força do vento que soprava.Injuriado Noto da porfia Injuriado, o vento Noto (1) com aquela porfia,Em que co mar (parece) tanto estava, Que (parecia) que com o mar travava,Os assopros esforça iradamente, Os sopro aumenta, furiosamente,Com que nos fez vencer a grão corrente. O que nos fez vencer a grande corrente.

1) Noto: o vento do sul

«Trazia o Sol o dia celebrado 68o O sol trazia o dia consagradoEm que três Reis das partes do Oriente Aos três Santos Reis do Oriente (1)Foram buscar um Rei, de pouco nado, Que foram homenagear um outro Rei, de posses deserdado,No qual Rei outros três há juntamente; Mas que em si trazia outros três (2) simultaneamente.Neste dia outro porto foi tomado Neste dia um outro porto, por nós, foi visitado,Por nós, da mesma já contada gente, E que era habitado pela mesma raça de gente,Num largo rio, ao qual o nome demos Nele entramos por um largo rio, ao qual, o nome demosDo dia em que por ele nos metemos. Daquele dia (3), quando nele nos metemos.

1) Santos Reis do Oriente: os Reis Magos.2) Alusão à Santa Trindade, contida em Jesus.3) Alusão ao dia dos Santos Reis.

«Desta gente refresco algum tomámos 69o Desta gente, algum conforto nós recebemos,E do rio fresca água; mas contudo Assim como a água fresca do rio; mas, contudo,Nenhum sinal aqui da Índia achámos Nenhuma orientação sobre a Índia nós tivemosNo povo, com nós outros cási mudo. Pois aquele povo, para nós, era quase que mudo.Ora vê, Rei, quamanha terra andámos. Veja, ilustre Rei, quanta terra nós andamos,Sem sair nunca deste povo rudo, Sem nunca sair da terra daquele povo bruto,Sem vermos nunca nova nem sinal Sem nunca termos tido uma noticia ou um mero sinalDa desejada parte Oriental. Da desejada região Oriental.

«Ora imagina agora quão coitados 70o Agora, imagina como estávamos amargurados,Andaríamos todos, quão perdidos Pobres navegantes sem rumo, tão perdidos,De fomes, de tormentas quebrantados, Com fome e pelas tempestades quebrantados,Por climas e por mares não sabidos, Errando por mares e climas desconhecidos!E do esperar comprido tão cansados E da longa espera estávamos tão cansadosQuanto a desesperar já compelidos, Que quase ao desespero já éramos impelidos.Por céus não naturais, de qualidade Passando sob tantos céus de diferentes qualidades,Inimiga de nossa humanidade! Adversos à nossa sensibilidade e longe das nossas necessidades.

«Corrupto já e danado o mantimento, 71o Já estava deteriorado o nosso suprimento,Danoso e mau ao fraco corpo humano E já era até nocivo ao já enfraquecido corpo humano;E, além disso, nenhum contentamento, E, além disso, nenhum contentamento,Que sequer da esperança fosse engano. Nem uma esperança, ainda que fosse fruto de um engano.Crês tu que, se este nosso ajuntamento Tu acreditas, que se esse nosso agrupamentoDe soldados não fora Lusitano, Não fosse constituído pelo soldado lusitano,Que durara ele tanto obediente, Seria, por tanto tempo, tão obedientePorventura, a seu Rei e a seu regente? Ao seu rei e a mim, seu regente?

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«Crês tu que já não foram levantados 72o Tu acreditas que não teriam se rebeladoContra seu Capitão, se os resistira, Contra o seu Capitão, se a eles resistira,Fazendo-se piratas, obrigados Tornando-se um bando pirata, insano, desvairado,De desesperação, de fome, de ira? Insuflados pelo desespero, pela fome e pela ira?Grandemente, por certo, estão provados, Certamente estão aprovados,Pois que nenhum trabalho grande os tira Pois nenhuma dificuldade lhes tiraDaquela Portuguesa alta excelência A portuguesa alta excelênciaDe lealdade firme e obediência. Da firme lealdade e nobre obediência.

«Deixando o porto, enfim, do doce rio 73o Finalmente, deixando o porto do doce rioE tornando a cortar a água salgada, E tornando a singrar a água salgada,Fizemos desta costa algum desvio, Fizemos dessa costa um certo desvio,Deitando pera o pego toda a armada; Virando para o lado mais fundo toda a armada;Porque, ventando Noto, manso e frio, Para que ventando o Noto (1), manso e frio,Não nos apanhasse a água da enseada Não nos aprisionasse nas águas da enseadaQue a costa faz ali, daquela banda Que a costa faz ali, naquela bandaDonde a rica Sofala o ouro manda. Onde a rica Sofala (1) o ouro manda.

1 Noto: o vento sul.2) Sofala: cidade e antigo reino da África oriental.

«Esta passada, logo o leve leme 74o Ultrapassada a enseada, o frágil lemeEncomendado ao sacro Nicolau, É encomendado a São Nicolau (1),Pera onde o mar na costa brada e geme, E para onde o mar bate na costa e geme,A proa inclina düa e doutra nau; As proas viram, uma e outra nau;Quando, indo o coração que espera e teme Foi então que o coração que espera e teme,E que tanto fiou dum fraco pau, Que tanto confiou um fraco pau,Do que esperava já desesperado, E que já se mostrava desesperançado,Foi düa novidade alvoroçado. Foi, por uma boa novidade, alvoroçado.

1) São Nicolau: padroeiro dos navegantes.

«E foi que, estando já da costa perto, 75o E assim, já estando da costa muito perto,Onde as praias e vales bem se viam, Pois até as praias e os vales já se viam,Num rio, que ali sai ao mar aberto, Num rio, que ali deságua no mar aberto,Batéis à vela entravam e saíam. Pequenos botes a vela, nós vimos, que entravam e saiam.Alegria mui grande foi, por certo, A alegria foi muito grande, por certo,Acharmos já pessoas que sabiam Por encontrarmos pessoas que já sabiamNavegar, porque entre elas esperámos Navegar, pois com elas esperávamosDe achar novas algüas, como achámos. Achar alguma novidade, como de fato, nós achamos.

«Etíopes são todos, mas parece 76o Eram todos Etíopes (1), mas pareceQue com gente milhor comunicavam; Que conosco melhor se comunicavam;Palavra algüa Arábia se conhece Algumas palavras em árabe, ali se conheceEntre a linguagem sua que falavam; Em meio ao idioma que falavam;E com pano delgado, que se tece Com um fino pano que se teceDe algodão, as cabeças apertavam; De algodão, as cabeças envolviam;Com outro, que de tinta azul se tinge, Com um outro tecido, que de azul se colore,Cada um as vergonhosas partes cinge. A parte vergonhosa, cada um se cobre.

«Pela Arábica língua que mal falam 77o Pelo idioma árabe, que eles mal falam,E que Fernão Martins mui bem entende, Mas que Fernão Martins (1) muito bem entende,Dizem que, por naus que em grandeza igualam Eles nos dizem que em navios que se igualamAs nossas, o seu mar se corta e fende; Aos nossos, é possível navegar, pois ali o mar se fende;Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam E que lá onde o sol nasce, os navios não se abalam;Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende, Seguindo a costa sul que se alarga e se estende,E do Sul pera o Sol, terra onde havia E do sul indo para o Oriente chega-se a uma terra onde haviaGente, assi como nós, da cor do dia. Gente branca como nós, da cor do dia.

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1) Fernão Martins: tripulante da esquadra e intérprete para a língua

árabe.

«Mui grandemente aqui nos alegrámos 78o Ali, com aquela gente, muito nos alegramos;Co a gente, e com as novas muito mais. E com aquela boa novidade, muito mais.Pelos sinais que neste rio achámos Pelas boas novas que neste rio achamosO nome lhe ficou dos Bons Sinais. Demos-lhe o nome de “Bons Sinais”.Um padrão nesta terra alevantámos, Um monumento nesta terra nós levantamosQue, pera assinalar lugares tais, Pois, para assinalar lugares iguais,Trazia alguns; o nome tem do belo Trazíamos alguns: e a este demos o nome beloGuiador de Tobias a Gabelo. Do condutor de Tobias a Gabelo (1).

1) Referência a São Rafael Arcanjo, que levou Tobias (o filho) através

de muitos perigos até a casa do Ninivita Gabelo, que devia certa

importância a Tobias (o pai).

«Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos, 79o Ali, o limo, as cascas e os ostrinhos,Nojosa criação das águas fundas, Nojenta criação das águas profundas,Alimpámos as naus, que dos caminhos Limpamos das naus, que nos longos caminhosLongos do mar vêm sórdidas e imundas. Do mar, foram sujando-se e tornando-se imundas.Dos hóspedes que tínhamos vizinhos, Dos anfitriões que tínhamos por vizinhos,Com mostras aprazíveis e jocundas, Com mostras de amizades fecundas,Houvemos sempre o usado mantimento, Sempre recebemos o necessário mantimento,Limpos de todo o falso pensamento. Isentos de qualquer mau pensamento.

«Mas não foi, da esperança grande e imensa 80o Porém a esperança feliz e imensaQue nesta terra houvemos, limpa e pura Que tivemos nesta terra, não foi limpa e pura,A alegria; mas logo a recompensa Pois junto com a alegria, tivemos uma triste recompensa,A Ramnúsia com nova desventura. Quando a Ramnusia (1) trouxe-nos uma nova desventura:Assi no Céu sereno se dispensa; Pois disto o céu sereno não nos dispensa;Co esta condição, pesada e dura, Com esta condição, pesada e dura,Nacemos: o pesar terá firmeza, Nós nascemos: o pesar terá muita firmeza,Mas o bem logo muda a natureza. Mas o bem, logo perde a sua grandeza.

1) Ramnusia: sobrenome de Nêmesis, uma das Fúrias, assim chamada

porque o seu maior santuário ficava em Ramnos, na Ática.

«E foi que, de doença crua e feia, 81o E foi assim que de uma doença (1) brutal e feia,A mais que eu nunca vi, desempararam Como eu nunca vi, muitos se separaramMuitos a vida, e em terra estranha e alheia Da vida e em terra estrangeira e alheiaOs ossos pera sempre sepultaram. Os seus ossos para sempre ficaram.Quem haverá que, sem o ver, o creia, Quem haverá que, sem ter visto, creia,Que tão disformemente ali lhe incharam Como terrivelmente lhes incharamAs gingivas na boca, que crecia As gengivas nas bocas, onde cresciaA carne e juntamente apodrecia? A carne que, simultaneamente, apodrecia?

1) A doença citada por Camões é o Escorbuto.

«Apodrecia cum fétido e bruto 82o Degenerava com um fétido e brutoCheiro, que o ar vizinho inficionava. Cheiro, que o ar vizinho infeccionava.Não tínhamos ali médico astuto, Ali, não tínhamos um médico astuto,Cirurgião sutil menos se achava; Menos ainda, um cirurgião competente se achava;Mas qualquer, neste ofício pouco instruto, Mas qualquer um, ainda que fosse pouco arguto,Pela carne já podre assi cortava Aquela carne apodrecida cortava,Como se fora morta, e bem convinha, Como se já estivesse morta, e isso muito convinha,Pois que morto ficava quem a tinha. Pois de qualquer forma, morto ficaria quem a tinha.

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«Enfim que nesta incógnita espessura 83o Finalmente, nesta desconhecida amarguraDeixámos pera sempre os companheiros Deixamos para sempre os companheirosQue em tal caminho e em tanta desventura Que em nossos caminhos e em tanta desventuraForam sempre connosco aventureiros. Sempre estiveram conosco, bravos aventureiros.Quão fácil é ao corpo a sepultura! Como é fácil dar a um corpo, a triste sepultura!Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros Qualquer onda do mar, quaisquer outeirosEstranhos, assi mesmo como aos nossos, Estranhos, assim como aos nossos,Receberão de todo o Ilustre os ossos. Receberão de todos os ilustres ossos.

«Assi que deste porto nos partimos 84o Assim, deste porto nós partimosCom maior esperança e mor tristeza, Com grande esperança mas também com enorme tristeza,E pela costa abaixo o mar abrimos, E pela costa abaixo seguimos,Buscando algum sinal de mais firmeza. Buscando algum sinal de maior clareza.Na dura Moçambique, enfim, surgimos, A dura Moçambique (1), enfim, descobrimos,De cuja falsidade e má vileza De cuja falsidade e grande vilezaJá serás sabedor, e dos enganos Em breve saberás, e dos enganosDos povos de Mombaça, pouco humanos. Do povo de Mombaça (2), tão desumano.

1) Moçambique: ilha da costa oriental, descoberto por Vasco

da Gama, nesta expedição.2) Mombaça: cidade na costa oriental da África.

«Até que aqui, no teu seguro porto, 85o Até que aqui, no teu seguro porto,Cuja brandura e doce tratamento Cuja generosidade e doce tratamentoDará saúde a um vivo e vida a um morto, Dará saúde a um vivo e vida a um morto,Nos trouxe a piedade do alto Assento. Nos trouxe a Divina Piedade do Firmamento.Aqui repouso, aqui doce conforto, Aqui encontramos repouso e um doce conforto,Nova quietação do pensamento, Paz de espírito e de pensamentoNos deste. E vês aqui, se atento ouviste, Nos destes. E veja, que se com atenção me ouviste,Te contei tudo quanto me pediste. Contei-lhe tudo, conforme me pediste.

«Julgas agora, Rei, se houve no mundo 86o Agora julgas, ilustre Rei, se houve no mundoGentes que tais caminhos cometessem? Outros povos que por tais caminhos se aventurassem?Crês tu que tanto Eneias e o facundo Tu acreditas que Enéas (1) e o facundoUlisses pelo mundo se estendessem? Ulisses (2) pelo mundo tanto navegassem?Ousou algum a ver do mar profundo, Algum outro avistou do mar profundo,Por mais versos que dele se escrevessem, Por mais que sobre ele versos se escrevessem,Do que eu vi, a poder d'esforço e de arte, Mais do que eu vi, a poder de muito esforço e arte,E do que inda hei-de ver, a oitava parte? E do que ainda verei, mesmo que seja apenas a oitava parte?

1) Enéas: príncipe troiano, herói de Virgilio em “Eneida”.2) Ulisses: rei lendário de Itaca. Um dos heróis da guerra de

Tróia.

«Esse que bebeu tanto da água Aónia, 87o Que esse poeta (1) que tanto bebeu da água Aônia (2),Sobre quem têm contenda peregrina, E com a qual imaginou uma guerra ferina,Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia, Entre Rodes (3), Smirna (4), Colofônia (5)Atenas, Ios, Argo e Salamina; Atenas (6), Ios (7), Argo (8) e Salamina (9);Essoutro que esclarece toda Ausónia, Ou então esse outro poeta (10) que abrilhanta toda a Ausônia (11)A cuja voz, altíssona e divina, Cuja voz grave, poderosa e divina,Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece Sendo ouvida por Míncio (12), logo o adormece,Mas o Tibre co som se ensoberbece: Enquanto que o rio Tibre (13), com esse som se envaidece:

1) O poeta: referência a Homero, poeta grego.2) Aônia: “a água aônia” provinha da fonte de Aganipe, que

inspirava os poetas. Ficava situada na Beócia.

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3) Rodes: ilha no Mediterrâneo onde havia uma estátua de Apolo com

mais de trinta metros. O famoso “Colosso de Rodes”.4) Smirna: cidade na costa da Ásia Menor.5) Colofônia: cidade na Lídia, Ásia Menor.6) Atenas: capital grega.7) Ios: uma das ilhas Cícladas, entre Naos e Santorim.8) Argo: cidade da Grécia situada no Peloponeso.9) Salamina: ilha no mar Egeu. Celebre pela vitória de

Temístocles na batalha naval contra os persas de Xerxes em 480 A. C.10) Referência a Virgilio, poeta italiano.11) Ausônia: nome de uma parte da Itália antiga, aplicado

pelos poetas à Itália inteira.12) Míncio: afluente do rio Pó que banha Mantua, pátria de

Virgilio.13) Tibre: rio italiano que banha Roma e deságua no

Tirreno.

«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos 88o Cantem e exaltem e sempre escrevam extremosDesses seus Semideuses e encareçam, Sobre esses seus “Semideuses” e os enalteçam,Fingindo magas Circes, Polifemos, Criando as ilusórias feiticeiras Circe (1), Polifemos (2),Sirenas que co canto os adormeçam; Ou Sirenas (3) que com os seus cantos os adormeçam;Dêm-lhe mais navegar à vela e remos Que inventem para eles mais navegações à vela e a remos,Os Cícones e a terra onde se esqueçam As lutas contra os Cícones (4) e a terra onde se esqueçamOs companheiros, em gostando o loto; Dos companheiros, satisfazendo ao povo loto (5),Dêm-lhe perder nas águas o piloto; Que relatem a fábula de perder nas águas o piloto;

1) Circes: filha do sol, feiticeira que desempenha importante papel na

“Odisséia” de Homero. Para reter Ulisses junto dela, transformou seus

companheiros em porcos e metamorfoseou em monstro a ninfa Cila,

que posteriormente, personificou o famoso rochedo da Sicília, que junto

com Caribis, constituía um grande perigo à navegação.2) Polifemos: filho de Netuno e um dos Ciclopes que foi

cegado e depois morto por Ulisses.3) Sirenas: seres fabulosos, metade mulher e metade ave

(ou peixe) que atraía os navegantes com o seu canto melodioso fazendo-os

naufragar.4) Cícones: povo da Trácia que lutou contra Ulisses.5) Relativo à terra dos Lotófagos, na África do norte.

Segundo a “Odisséia”, ali haveria frutos que provocavam o completo

esquecimento. Os marujos de Ulisses os comeram e esqueceram-se de tudo, inclusive

de voltar para o navio.

«Ventos soltos lhe finjam e imaginem 89o Finjam que há ventos terríveis contra eles e imaginemDos odres, e Calipsos namoradas; Que peguem barris de ouro, que Calipso (1) lhe seja enamorada:Harpias que o manjar lhe contaminem; Inventem as Hárpias (2) que a sua comida contaminem:Decer às sombras nuas já passadas: Ou então, que já foram até na infernal morada (3);Que, por muito e por muito que se afinem Contudo, por mais louvores que vocês lhes destinem,Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas, Nesta fábula vazia, ainda que bem imaginada,A verdade que eu conto, nua e pura, O que eu relato é apenas a verdade nua e pura,Vence toda grandíloca escritura!» A qual, supera a sua vibrante literatura.

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1) Calipso: ninfa da Ilha Ogígia. Apaixonada por Hércules impediu-o

durante sete anos de voltar à pátria.2) Harpias: monstro alado que poluía o alimento que tocava.3) Alusão à descida de Ulisses, na Odisséia, ao reino dos

mortos.

Da boca do fecundo Capitão 90o Da boca do eloqüente CapitãoPendendo estavam todos, embebidos, Todos estavam ouvindo embevecidos,Quando deu fim à longa narração Quando ele finalizou a longa narraçãoDos altos feitos, grandes e subidos. Dos grandes feitos, sublimes e erguidos.Louva o Rei o sublime coração O rei louva o sublime coraçãoDos Reis em tantas guerras conhecidos; Dos reis portugueses, em tantas guerras celebrados;Da gente louva a antiga fortaleza, Do povo luso, louva a eterna fortaleza,A lealdade d'ânimo e nobreza. A lealdade, a obediência e a nobreza.

Vai recontando o povo, que se admira, 91o O povo reconta os trechos que mais admira,O caso cada qual que mais notou; Cada um vai repetindo o fato que mais lhe tocou.Nenhum deles da gente os olhos tira Mas nenhum deles os olhos tiraQue tão longos caminhos rodeou. Daquela gente que tanto navegou.Mas já o mancebo Délio as rédeas vira Mas o jovem Délio (1) as rédeas do carro do sol vira,Que o irmão de Lampécia mal guiou, Aquele carro que o irmão de Lampacéia (2) tão mal guiou,Por vir a descansar nos Tétios braços; Para vir descansar nos Thétios (3) braços;E el-Rei se vai do mar aos nobres paços. Foi então que nobre rei deixou a armada e foi para os nobres paços.

1) Délio: um dos nomes de Apolo, o deus do Sol.2) Lampacéia: ninfa, filha do Sol e irmã de Fáeton, que

aproximando em demasia o Sol da terra, queimou os africanos.3) Thétios braços: nas águas do oceano.

Quão doce é o louvor e a justa glória 92o Como são doces o louvor e a merecida glóriaDos próprios feitos, quando são soados! Das próprias proezas, quando são ecoadas!Qualquer nobre trabalha que em memória Qualquer nobre trabalha visando ficar na memória,Vença ou iguale os grandes já passados. E que os seus feitos superem as proezas passadas.As envejas da ilustre e alheia história A inveja da ilustre e alheia históriaFazem mil vezes feitos sublimados. Faz com que aconteçam mil novas façanhas sublimadas.Quem valerosas obras exercita, Aquele que nas valorosas obras se exercita,Louvor alheio muito o esperta e incita. Sempre espera ser louvado, o que mais o incita.

Não tinha em tanto os feitos gloriosos 93o Não eram tão grandes os feitos gloriososDe Aquiles, Alexandro, na peleja, De Aquiles (1) e Alexandre (2) na peleja,Quanto de quem o canta os numerosos Como foram cantados em numerososVersos: isso só louva, isso deseja. Versos, que apenas os louvam para que o mundo os veja.Os troféus de Milcíades, famosos, Os êxitos de Milcíades (3), tão famosos,Temístocles despertam só de enveja; Temístocles (4) os deseja apenas por inveja;E diz que nada tanto o deleitava. E sempre dizia que o que mais gostavaComo a voz que seus feitos celebrava. Era ouvir a voz que os seus feitos celebrava.

1) Aquiles: herói grego. 2) Alexandre: Alexandre Magno, rei da Macedônia, que

conquistou a Pérsia e a Índia. 3) Milcíades: general ateniense que derrotou os persas na

batalha de Maratona. 4) Temístocles: vencedor da batalha de Salamina, contra os

persas. Segundo a tradição invejava as vitórias de Milcíades.

Trabalha por mostrar Vasco da Gama 94O Assim argumentava Vasco da Gama,

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Que essas navegações que o mundo canta Dizendo que as aventuras daqueles heróis que o mundo cantaNão merecem tamanha glória e fama Não merecem tamanha glória e famaComo a sua, que o Céu e a Terra espanta. E nem se igualam a sua, que ao céu e a terra espanta.Si; mas aquele Herói que estima e ama Todavia, aquele herói da antiga Roma,Com dões, mercês, favores e honra tanta Recebeu tantos louvores e tantaA lira Mantuana, faz que soe Honra, nos versos de Virgilio, que as suas proezas ecoamEneias, e a Romana glória voe. Por todo mundo e o nome de Enéas e fama romana voam.

Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares, 95o A terra lusitana gera heróis como Cipiões (1),Alexandros, e dá Augustos; Cesáres (2), Alexandres (3) e Augustos (4);Mas não lhe dá contudo aqueles dões Porém não gera os grandes poetas que tenham os donsCuja falta os faz duros e robustos. Para exaltá-los, o que os faz ignorados mesmo sendo robustos.Octávio, entre as maiores opressões, Octavio (5), mesmo entre as maiores opressões,Compunha versos doutos e venustos Compunha versos graciosos e astutos,(Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira, (E não dirá Fúlvia (6), certamente, que é mentiraQuando a deixava António por Glafira). Quando Antonio (7) a traía com Glafira (8)).

1) Cipião: Cipião Emiliano, que, diz a tradição, colaborou nas peças de

Terêncio. 2) Cesáres: generais e imperadores romanos3) Alexandres: Alexandre Magno.4) Augustos: Imperador romano e sobrinho e herdeiro de

César.5) Octávio: o outro nome de Augusto. 6) Fúlvia: mulher de Marco Antonio.7) Antonio: Marco Antonio, triúnviro romano.8) Glafira: esposa do Sumo Sacerdote Arquelau, da

Capadócia, e segundo Camões, amante de Marco Antonio. Entretanto há

controvérsias sobre a sua real identidade.

Vai César sojugando toda França 96o César ia subjugando toda a FrançaE as armas não lhe impedem a ciência; Mas os combates não lhe impedem de exercitar a ciência,Mas, nüa mão a pena e noutra a lança, Numa mão levava a pena e na outra a lança;Igualava de Cícero a eloquência. Com Cícero (1) se igualava em eloqüência.O que de Cipião se sabe e alcança De Cipião se sabe, até onde o conhecimento alcança,É nas comédias grande experiência. Que nas comédias tinha uma grande experiência.Lia Alexandro a Homero de maneira Alexandre lia Homero (2) de tal maneiraQue sempre se lhe sabe à cabeceira. Que sempre o tinha na cabeceira.

1) Cícero: escritor e orador romano.2) Homero: poeta grego.Camões cita os dois, para lamentar que os portugueses não

tenham poetas como eles para perpetuar as suas glórias.

Enfim, não houve forte Capitão 97o Enfim, não houve nem um forte CapitãoQue não fosse também douto e ciente, Que também não fosse culto e inteligente,Da Lácia, Grega ou Bárbara nação, Tanto na lácia (1), quanto na grega ou na bárbara nação,Senão da Portuguesa tão somente. Apenas na portuguesa é que existiram, infelizmente.Sem vergonha o não digo: que a razão Não é sem envergonhar-me que digo: a razãoDe algum não ser por versos excelente De nenhum deles ser um poeta excelenteÉ não se ver prezado o verso e rima, É que desprezam o verso e a rima,Porque quem não sabe arte, não na estima. Pois aqueles que não sabe fazer arte, não a estima.

1) Lácia: a Itália. A nação italiana.

Por isso, e não por falta de natura, 98o Por isso, e não por defeito da natureza,

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Não há também Virgílios nem Homeros; É que não há poetas como Virgilio ou Homero;Nem haverá, se este costume dura, E nem haverá, se perdurar esta rudeza,Pios Eneias nem Aquiles feros. Heróis como o casto Enéas e o Aquiles severo.Mas o pior de tudo é que a ventura Mas o pior de tudo é que a aventuraTão ásperos os fez e tão austeros, Os fez tão ásperos e tão austeros,Tão rudos e de engenho tão remisso, Tão rudes e de brilhantismo tão omisso,Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso. Que a muito deles, pouco se dá, ou nem mesmo isso.

Às Musas agardeça o nosso Gama 99o Às musas (1) deve agradecer o glorioso Vasco da GamaO muito amor da pátria, que as obriga O imenso amor que elas tem à pátria, o qual as obriga,A dar aos seus, na lira, nome e fama A dar aos lusos, nos seus cantos, renome e fama,De toda a ilustre e bélica fadiga; Por toda a ilustre e guerreira fadiga;Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Pois ele, e nem ninguém que de sua família chama,Calíope não tem por tão amiga Não tem na musa Calíope uma grande amigaNem as filhas do Tejo, que deixassem Ainda que as filhas do rio Tejo deixassemAs telas d'ouro fino e que o cantassem. Suas telas de ouro para que o exaltassem.

1) As musas: aqui Camões refere-se as Tágides, ninfas do rio Tejo.

2) Calíope: musa da poesia épica.

Porque o amor fraterno e puro gosto 100o Porque o amor fraterno e o puro gostoDe dar a todo o Lusitano feito De dar a todo heróico lusitano êxitoSeu louvor, é somente o pros[s]uposto O devido louvor é o único pressupostoDas Tágides gentis, e seu respeito. Das gentis Tágides (1) e o seu respeito.Porém não deixe, enfim, de ter disposto Porém, não deixe ninguém de estar dispostoNinguém a grandes obras sempre o peito: Para as grandes obras que exigem valente peito:Que, por esta ou por outra qualquer via, Pois, por essa ou por outra via,Não perderá seu preço e sua valia. A proeza não deixará de ter valor ou serventia.

1) Tágides: ninfas do rio Tejo.