os limites da teoria da imprevisão

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1 Os limites da Teoria de Imprevisão: o “revisionismo” fora do lugar debilita o ambiente contratual brasileiro Gustavo H. B. Franco 1 SUMÁRIO: 1. A consulta – 2. Os riscos inerentes ao contrato entre as partes – 2.1. O sentido econômico das opções. – 3. Sobre a existência de fatores e circunstâncias excepcionais no período entre a assinatura do acordo de acionistas e o exercício das opções - 3.1. Cenários e políticas macroeconômicas: a continuidade – 3.2. Considerações de ordem setorial: a crise da “marcação a mercado” e suas conseqüências – 3.3. Ajuste e consolidação na indústria de fundos – 4. Interpretação econômica da “Teoria da Imprevisão”. 1. A consulta A consulta diz respeito à execução de acordo de acionistas contratado entre, por um lado, a instituição financeira internacional A (“a demandante”), e a instituição financeira internacional B (“a demandada”). As duas instituições são as únicas sócias, no Brasil, em instituição administradora de recursos de terceiros (“a DTVM”), sendo que a demandada é detentora de 70% do capital e o completo controle da condução dos negócios da DTVM. Em meados de 2001 as partes assinaram acordo de acionistas segundo o qual, no período entre março e junho de 2003, ou seja, cerca de dois anos depois, o sócio minoritário, a demandante, teria o direito de retirar-se da sociedade vendendo suas ações a um preço determinado (“Put”) e o sócio majoritário teria o direito de comprar a participação da demandante na DTVM também por um preço determinado (“Call”), ligeiramente maior que o preço fixado para o Put. Esses preços foram convencionados através de uma “fórmula de múltiplo”, ou seja, num valor equivalente a 1,2% do valor dos “ativos sob gestão e administração” (“ASAG”) no caso do Put, e de 1,3% do valor dos ASAG no caso do Call. O acordo de acionistas previa que, depois de junho de 2003, as partes mantivessem esses mesmos direitos de comprar e de vender, porém o preço deixava de ser o determinado pelas “fórmulas de múltiplo” e passava a ser, em essência, o resultado de uma avaliação do “valor de mercado” da DTVM. Neste desenho, é fácil ver que, se em abril de 2003, houvesse diferença significativa entre o efetivo valor de mercado da 1 Professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, ex-presidente do Banco Central do Brasil.

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Parecer. Acordos de acionistas e cláusulas de opção de compra (call) e opção de venda (put). Teoria da Imprevisão e exequibilidade das cláusulas de opção

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    Os limites da Teoria de Impreviso: o revisionismo fora do lugar debilita o

    ambiente contratual brasileiro Gustavo H. B. Franco1

    SUMRIO: 1. A consulta 2. Os riscos inerentes ao contrato entre as partes 2.1. O sentido econmico das opes. 3. Sobre a existncia de fatores e circunstncias excepcionais no perodo entre a assinatura do acordo de acionistas e o exerccio das opes - 3.1. Cenrios e polticas macroeconmicas: a continuidade 3.2. Consideraes de ordem setorial: a crise da marcao a mercado e suas conseqncias 3.3. Ajuste e consolidao na indstria de fundos 4. Interpretao econmica da Teoria da Impreviso.

    1. A consulta

    A consulta diz respeito execuo de acordo de acionistas contratado entre, por

    um lado, a instituio financeira internacional A (a demandante), e a instituio

    financeira internacional B (a demandada). As duas instituies so as nicas scias, no

    Brasil, em instituio administradora de recursos de terceiros (a DTVM), sendo que a

    demandada detentora de 70% do capital e o completo controle da conduo dos

    negcios da DTVM. Em meados de 2001 as partes assinaram acordo de acionistas

    segundo o qual, no perodo entre maro e junho de 2003, ou seja, cerca de dois anos

    depois, o scio minoritrio, a demandante, teria o direito de retirar-se da sociedade

    vendendo suas aes a um preo determinado (Put) e o scio majoritrio teria o direito

    de comprar a participao da demandante na DTVM tambm por um preo determinado

    (Call), ligeiramente maior que o preo fixado para o Put. Esses preos foram

    convencionados atravs de uma frmula de mltiplo, ou seja, num valor equivalente a

    1,2% do valor dos ativos sob gesto e administrao (ASAG) no caso do Put, e de

    1,3% do valor dos ASAG no caso do Call.

    O acordo de acionistas previa que, depois de junho de 2003, as partes

    mantivessem esses mesmos direitos de comprar e de vender, porm o preo deixava de

    ser o determinado pelas frmulas de mltiplo e passava a ser, em essncia, o resultado

    de uma avaliao do valor de mercado da DTVM. Neste desenho, fcil ver que, se em

    abril de 2003, houvesse diferena significativa entre o efetivo valor de mercado da 1 Professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, ex-presidente do Banco Central do Brasil.

  • 2

    DTVM e os valores dados pelas frmulas de mltiplo para o Put (1,2% dos ASAG) e

    para o Call (1,3% dos ASAG) previamente contratados, uma das partes naturalmente

    exerceria sua opo, seja para comprar barato, seja para vender caro. No resta dvida,

    portanto, que o mecanismo destinava-se a facilitar a sada da demandante, scia

    minoritria e passiva da DTVM.

    Com efeito, em abril de 2003, a demandante exerceu o Put, mas a demandada

    contestou o acordo, negando-se a dar curso compra das aes da demandante,

    argumentando que a discrepncia, contra si, entre o preo de compra da participao da

    demandada na DTVM, dado pela frmula de mltiplos definida no acordo de

    acionistas, e o efetivo valor de mercado da DTVM, caracterizava uma situao de

    onerosidade excessiva, criada por circunstncias excepcionais e imprevisveis a

    afetar os negcios da DTVM. Ficava, assim, configurado o litgio, tendo como fulcro o

    Artigo 478 do Cdigo Civil. fcil ver pelos temas envolvidos na consulta que a questo

    transcende o escopo da transao especfica, uma vez que trata dos exatos limites da

    aplicao da teoria da impreviso no contexto do Cdigo Civil de 2002.

    O enunciado preciso dos quesitos em que se compe a consulta como se segue:

    1. Se a frmula de preo das aes da DTVM estipulada com base em

    mltiplos do valor dos ativos sob gesto e administrao (ASAG) no momento da

    assinatura do acordo de acionistas, a ser aplicada em prazo determinado no futuro,

    no envolvia riscos inerentes ao acordo que poderiam beneficiar tanto a parte

    compradora quanto a vendedora, riscos estes que as partes de comum acordo,

    aceitaram correr e que, em boa medida, podiam controlar.

    2. Se durante o perodo entre a contratao do acordo de acionistas, e o

    efetivo exerccio de opo de venda pela demandante ocorreu alguma modificao

    drstica no ambiente econmico em geral, e no negcio de administrao de

    recursos de terceiros em particular, que possa ter tornado excessivamente onerosa

    a execuo do contrato e que possa, em conseqncia, justificar o descumprimento

    do mesmo pela demandada.

    A resposta a estes quesitos est dividida em trs sees. A primeira, que cuida do

    primeiro quesito, traz uma anlise da natureza do contrato entre as partes, e em particular

  • 3

    da magnitude dos riscos que cada parte implicitamente admitiu correr, tendo em vista o

    momento em que o acordo foi estipulado. A incerteza sobre o futuro e seus efeitos sobre

    contratos, um tema quase acaciano no domnio da Teoria Econmica, no deve ser

    confundido com outro, pertinente ao segundo quesito, onde a dvida se circunstncias

    efetivamente extraordinrias, alm de imprevisveis, como costumam ser os

    acontecimentos futuros, teriam destrudo por completo a lgica do negcio, tornado a

    execuo do contrato excessivamente onerosa, ou mesmo ruinosa para uma das partes a

    ponto de justificar o pleno e raso descumprimento do contrato. Assim sendo, a seo 3

    tem como propsito avaliar objetivamente se de fato ocorreram acontecimentos

    verdadeiramente extraordinrios, seja na macroeconomia, seja no domnio especfico do

    negcio de gesto e administrao de ativos que teriam o condo de tornar inexeqvel o

    contrato estipulado entre as partes. Na seo 4, de carter mais genrico, o parecer faz

    consideraes de natureza doutrinria sobre a chamada Teoria da Impreviso vista sob

    a tica do economista que observa a evoluo das instituies e prticas que regem a

    estipulao e cumprimento dos contratos no pas. Argumenta-se, em essncia, que seria

    uma deturpao no apenas da teoria da impreviso, mas tambm do conceito de

    funo social do contrato, se for possvel transformar tudo o que oneroso em uma

    suposta agresso boa f objetiva e s legtimas expectativas dos contratantes.

    Transformar o princpio da funo social do contrato num revisionismo amplo e

    idiossincrtico serviria apenas para reduzir o enforcement, ou a segurana jurdica dos

    contratos assim debilitando o ambiente contratual do pas com srios e deletrios efeitos

    sobre a economia.

    2. Os riscos inerentes ao contrato entre as partes A Teoria Econmica reconhece que contratos que se prolongam no tempo sempre

    so incompletos por que jamais sero capazes de prever todos os estados futuros da

    Natureza, alguns para a vantagem de uma parte, outros para a outra, inclusive aqueles

    cenrios extremos em que ocorrem as circunstncias de que trata o Artigo 478 do Cdigo

    Civil, ou seja, acontecimentos extraordinrios e imprevisveis que tornariam o contrato

    excessivamente oneroso para qualquer das partes, tema de que trataremos adiante, na

    prxima seo.

  • 4

    Dizer que os contratos so sempre incompletos uma forma tcnica, no jargo do

    economista, de afirmar que o futuro tem por ofcio ser incerto, e justamente em razo

    disto, e com o objetivo especfico de mitigar riscos recprocos, os agentes econmicos

    firmam contratos, ou seja, restringem as incertezas com respeito ao futuro na exata

    proporo dos compromissos assumidos entre si e com terceiros, tais como companhias

    de seguros ou contrapartes em operaes com derivativos, quando estas alternativas esto

    disponveis.

    As partes desta lide tiveram sua disposio muitas tecnologias contratuais para

    lidar com as incertezas que poderiam vir a afetar significativamente os negcios

    abrangidos pelo seu acordo de acionistas. As partes so instituies financeiras

    internacionais de porte e possuem pleno domnio do que h de melhor em frmulas

    econmicas e contratuais para melhor expressar suas vontades e resguardar seus

    respectivos interesses. No h que falar aqui de qualquer assimetria ou hiposuficincia,

    como nos casos de relaes de consumo, tampouco de potenciais prejuzos potenciais a

    interesses de terceiros ou difusos, como em relaes de repercusses ambientais ou

    pertinentes ao abuso do poder econmico e defesa da concorrncia, nas quais se

    pudesse conceber limitadores aos poderes das partes de contratar. A qualificao das

    partes por si s, ou o fato de que estamos no terreno em que a Professora Paula Forgioni

    designou como o das relaes jurdicas entre empresrios ou sociedades empresrias2,

    ou mais precisamente, dos negcios empresariais entre grandes empresas internacionais,

    exclui a maior parte dos requisitos para a caracterizao da onerosidade excessiva na

    forma do artigo 478 do Cdigo Civil. No fica excluda, todavia, a possibilidade de ter

    havido alguma enorme surpresa, algum acontecimento imprevisvel e extraordinrio,

    como ser discutido na prxima seo, de modo que ser produtivo retornar discusso

    sobre a aplicabilidade do artigo 478 depois de examinados os elementos de fato na seo

    3.

    Voltando construo do contrato entre as partes, de se notar que, tratando-se

    de fixar condies de um negcio a ser executado pouco menos de dois anos depois de

    contratado a venda da participao acionria da demandante para a demandada, por

    2 Paula A. Forgioni A interpretao dos negcios empresariais no novo Cdigo Civil brasileiro Revista de Direito Mercantil 130, ps. 8-9.

  • 5

    iniciativa desta (no caso do exerccio do put) ou daquela (no caso do exerccio do call) -

    as partes optaram por uma soluo engenhosa e consagrada para lidar com a incerteza

    quanto ao valor futuro da empresa que estavam a negociar: a frmula de mltiplo. Mais

    especificamente, as partes estipularam em 1 de julho de 2001, que entre 10 de maro e

    30 de junho de 2003, as demandantes teriam a opo de vender e as demandadas a opo

    de comprar, respectivamente aos preos de 1,2% e 1,3% do valor dos ASAG, a

    participao que as demandantes detinham em conjunto na DTVM.

    Deve-se ter clareza que, no momento da contratao deste acordo, implicitamente

    se aceitou que o valor de mercado da DTVM deveria estar prximo daquele obtido

    atravs das frmulas de mltiplos, e que, adicionalmente, era de se imaginar que essa

    equivalncia entre valor de mercado e o valor dado pela frmula de mltiplos viesse a

    se manter no futuro. Com efeito, adotando esta frmula, as partes estavam ajustando entre

    si uma espcie de indexao, porm, consideravelmente ampliada. De um lado,

    estavam se defendendo tanto da inflao, quanto de variaes na poltica monetria, pois

    o valor dos ASAG, ceteris paribus, cresce com a inflao, ou mais especificamente com

    os juros nominais, de modo que, ao fixar um preo linearmente relacionado ao valor dos

    ASAG, as partes definiram protees recprocas contra as flutuaes do poder de compra

    da moeda, e tambm contra variaes na poltica de juros do Banco Central, uma vez que

    contrataram implicitamente uma frmula com indexao pelo juro nominal embutida.

    De outro lado, as partes estavam tambm se resguardando de variaes no valor

    futuro da DTVM, ou do negcio onde militava a DTVM, que poderiam ir para qualquer

    direo, contra ou a favor da demandante. Com efeito, atravs da frmula de mltiplo,

    as partes associaram o preo do negcio a uma grandeza o tamanho da base de

    ASAG - que deveria refletir, e, em mdia, reflete o valor do negcio, como abaixo

    demonstrado na Tabela 1 atravs de uma ampla amostra de operaes de compra e venda

    de empresas de administrao de ativos. Assim procedendo, portanto, as partes

    tencionavam transportar para o futuro uma proporcionalidade, ou uma proxy de valor

    que: (i) se observava no momento da contratao; (ii) estava em linha com a prtica em

    transaes similares, ou mais precisamente abaixo da mdia internacional, conforme

    demonstrado na Tabela 1; e, principalmente, que (iii) se queria fazer valer para o

    momento especfico do exerccio das opes dois anos frente.

  • 6

    As frmulas de mltiplo so comuns na indstria financeira, pois oferecem uma

    forma simples de comparabilidade entre transaes de compra e venda de empresas, e

    como refletem mdias, se tornaram benchmarks quase que universalmente aceitos.

    Mltiplos setoriais so empregados em exerccios de anlise ou, como no caso em tela,

    como parmetro referncia para a execuo de transaes em determinado setor. Em

    geral os mltiplos consistem em um clculo ex post sobre transaes executadas, ou sobre

    avaliaes em bolsa, onde se observa uma relao estvel entre o valor da empresa e

    grandezas como o faturamento, o EBITDA (lucro bruto antes dos impostos, depreciao e

    amortizaes), os dividendos, bem como o nmero de clientes ou agncias (no caso de

    empresas de varejo ou bancos) ou o volume de ASAG, como neste caso.

    Para o negcio de administrao de ativos, objeto desta disputa, qualquer desses

    mtodos teria capturado a evoluo do negcio do momento da contratao do acordo de

    acionistas at o momento do exerccio das opes. Nada impedia que as partes tivessem

    contratado mltiplos de faturamento, de EBITDA ou do nmero e natureza dos clientes,

    ou concebessem outras frmulas de capturar mudanas no mix de atividades da

    empresa com implicaes na sua lucratividade e valor. Mas como cada mtodo envolve

    problemas especficos de apurao, parece razovel que as partes tenham optado pelo que

    parece ser o mtodo mais simples, o mltiplo linear do valor dos ASAG assim,

    implicitamente, aceitando o risco de haver desconexo entre este valor e o fornecido por

    outras frmulas envolvendo o faturamento ou o EBITDA.

    A Tabela 1 a seguir traz o resumo de diversas transaes executadas em diversos

    pases abrangendo perodos de tempo relativamente longos, e empresas de administrao

    de recursos de diferentes tipos. Infelizmente, no foram encontradas informaes

    comparveis para transaes deste tipo feitas no Brasil nos ltimos anos.

  • 7

    Tabela 1

    Resumo de transaes de compra e venda de empresas de administrao e gesto de recursos.

    Amostra Valor Total

    (US$) Mdia xAtivos xFatur xEBITDA 38 transaes, Europa, 1997-2004 * 23.144,37 689,31 3,10% 5,1x 24,2x 59 transaes, Estados Unidos, 1997-2004 41.271,12 687,85 3,20% 5,2x 12,2x * Valores convertidos em Dlar USA, cotao do ltimo dia do ms de cada transao Varejo 18 transaes, Europa, 1998-2004 * 10.009,79 556,10 5,40% 5,3x 19,0x 30 transaes, Estados Unidos, 1997-2003 16.125,25 537,51 4,00% 5,7x 11,0x * Valores convertidos em Dlar USA, cotao do ltimo dia do ms de cada transao Institucional 12 transaes, Europa, 1997-2004 * 9.359,50 779,96 1,60% 5,0x 26,1x 29 transaes, Estados Unidos, 1997-2004 25.145,87 838,20 2,50% 4,6x 13,5x * Valores convertidos em Dlar USA, cotao do ltimo dia do ms de cada transao Vida 8 transaes, Europa, 1997-2004 * 3.775,08 471,89 2,30% 5,0x 27,6x * Valores convertidos em Dlar USA, cotao do ltimo dia do ms de cada transao

    Fonte: Pesquisa Rio Bravo Servios Financeiros.

    Observadas cautelas referentes ao fato de que as amostras da tabela so compostas

    de transaes feitas em outros pases, e tambm observada a mxima de que o passado

    oferece apenas uma indicao sobre o futuro, a concluso que as partes estipularam

    mltiplos do valor dos ASAG3 que parecem baixos quando comparados aos parmetros

    de transaes da espcie mundo afora, o que encontra justificativa no fato de que os

    mltiplos para a transao entre as partes foram definidos tendo em mente o agregado

    ASAG, ou seja, considerado o mix entre recursos sob gesto e os sob

    administrao, sendo estes um negcio menos rentvel.

    Esta concluso no obstante, importante que se tenha claro que, a despeito do

    cuidado das partes em mitigar incertezas, nada poderia garantir que o valor de

    3 Nas transaes listadas na tabela no h diferenciao ou especificao se os mltiplos de ativos dizem respeito a ativos sob administrao, ou sob gesto, ou combinao de ambos, o que deve ser o mais provvel.

  • 8

    mercado da DTVM no momento em que o acordo de acionistas permitia o exerccio do

    Put ou do Call, fosse prximo dos preos fixados pelas partes cerca de dois anos antes,

    para ambas as opes, qualquer que fosse a frmula de fixao dos preos de exerccio

    dessas opes. Mesmo que se convencionasse um preo fixo em termos nominais, ou

    com correo monetria ou ndice seguindo frmula paramtrica, no ficaria eliminado o

    risco de o preo de mercado variar a favor de uma ou da outra parte, relativamente ao

    convencionado. Tenha-se claro que, em seu acordo de acionistas, ambas as partes fizeram

    um esforo evidente e bem conduzido no sentido de mitigar os riscos envolvidos na

    venda da DTVM para a demandada dois anos frente, riscos estes de natureza

    essencialmente empresarial, e sob os cuidados (no sob o inteiro controle, posto que no

    existe tal coisa) da parte compradora, a demandada. No se tratava de eliminar riscos,

    pois eles so inerentes ao mundo empresarial; tratava-se de colocar os riscos dentro de

    limites. Na verdade, tratava-se de compartilhar riscos, como prprio de scios

    empresrios, uma vez que no se podia, por bvio, adquirir seguro ou instrumento de

    hedge de um terceiro, a fim de reduzir a exposio de ambas as partes aos riscos que

    corriam. Nestas circunstncias seria absolutamente natural, portanto, que existissem

    ganhos e perdas, entendidas como divergncias entre o preo ex ante e o preo de

    mercado ex post, e que as vantagens que as partes derivassem do negcio mudassem com

    o tempo, inclusive de modo a que o negcio se tornasse, para uma das partes, pior do que

    originalmente contratado, ou mesmo ruim, a ponto de uma das partes, se pudesse voltar

    no tempo, preferisse no faz-lo.

    Riscos so inerentes a quaisquer entendimentos para execuo futura, e no caso

    em tela, no poderiam ser transferveis a terceiros. No deve haver uma minscula

    sombra de dvida que as partes desta lide sabiam perfeitamente que o valor de mercado

    (ou o preo justo) da DTVM entre 10 de maro e 30 de junho de 2003, podia ser

    substancialmente diferente dos valores representados pelos mltiplos para o Put e a

    Call. Na verdade, nenhuma das partes, de s conscincia, e em vista de sua expertise em

    matria financeira e empresarial, esperaria que no existisse uma diferena. Deve ser

    evidente, outrossim, que os incentivos econmicos das partes eram no sentido de que se

    estipulasse uma frmula que representasse a previso mais limpa e neutra possvel, a

    mais alinhada com as prticas da indstria, para o valor futuro da DTVM.

  • 9

    Na verdade, parecia clara a absoluta simetria entre os riscos assumidos pelas

    partes, o que nada tinha de acidental, posto que refletia uma simetria negocial, uma

    abordagem equilibrada, de partes iguais, diante de incertezas que lhes so comuns. Se,

    atingido o momento do exerccio das opes, o mercado fosse tal que a DTVM valesse,

    digamos, 2% do valor dos ASAG, a demandada exerceria seu Call a 1,3% com evidente

    vantagem. Em contraste, caso o negcio valesse 0,5% do ASAG, as demandantes

    exerceriam seu Put a 1,2% tambm com vantagem. Assim sendo, caso a DTVM fosse

    muito lucrativa, as demandantes seriam foradas a vender barato a sua participao,

    porm a um valor que no seria de todo discrepante das referncias internacionais das

    transaes da espcie. Alternativamente, se a DTVM no fosse to bem, as demandantes

    poderiam retirar-se do negcio tambm recebendo um mltiplo que no seria de todo

    discrepante das referncias internacionais das transaes da espcie, e ao que tudo indica

    refletia o valor da DTVM no momento da contratao do acordo. As partes elegeram ex

    ante, as referncias internacionais das transaes da espcie, consagradas numa frmula

    de mltiplo, para orientar a retirada das demandantes da sociedade no futuro.

    interessante tabular, como feito na Tabela 2 abaixo, as diversas possibilidades

    de desfecho para as opes estipuladas em seu acordo de acionistas considerando

    diferentes valores de mercado da DTVM.

  • 10

    Tabela 2:

    Riscos e possibilidades de cada parte no exerccio das opes da fase 2 do acordo de acionistas, avaliao

    ex-ante (valores expressos como percentuais da base de ASAG) Valor da DTVM

    no Preo a ser

    pago Preo a ser pago ganhos ou perdas momento do se put se o calli vis vis valor de mercado

    exercicio do Put exercido exercido demandante demandada 0,5 1,2 0 0,7 -0,7 0,6 1,2 0 0,6 -0,6 0,7 1,2 0 0,5 -0,5 0,8 1,2 0 0,4 -0,4 0,9 1,2 0 0,3 -0,3 1,0 1,2 0 0,2 -0,2 1,1 1,2 0 0,1 -0,1 1,2 0 0 0 0 1,3 0 1,3 0 0 1,4 0 1,3 -0,1 0,1 1,5 0 1,3 -0,2 0,2 1,6 0 1,3 -0,3 0,3 1,7 0 1,3 -0,4 0,4 1,8 0 1,3 -0,5 0,5 1,9 0 1,3 -0,6 0,6 2,0 0 1,3 -0,7 0,7 2,1 0 1,3 -0,8 0,8 2,2 0 1,3 -0,9 0,9 2,3 0 1,3 -1,0 1,0 2,4 0 1,3 -1,1 1,1 2,5 0 1,3 -1,2 1,2 2,6 0 1,3 -1,3 1,3

    FONTE: elaborao prpria. A primeira coluna mostra diferentes valores hipotticos para o preo de mercado

    da DTVM medido em termos de mltiplo do valor dos ASAG. A segunda e terceira

    colunas mostram os preos pagos pela demandada nos casos do exerccio do Put e do

    Call, conforme disposto no acordo de acionistas, em cada cenrio, e as colunas quarta e

    quinta mostram ganhos e perdas das partes em cada situao, relativamente ao valor de

    mercado da DTVM.

    Com efeito, conforme se pode ver na tabela, o negcio estipulado entre as partes

    tinha riscos relativamente equilibrados ex ante: caso a conduo dos negcios de

    administrao e gesto de ativos fosse muito boa, os ganhos seriam da demandada em

    detrimento das demandantes, e vice versa. E o que dava sentido a esta estrutura, e

    alinhava os interesses das partes, era o fato de que era a demandada quem administrava a

    companhia, de modo que seria de seu interesse trabalhar bem, pois quanto melhor fosse o

  • 11

    desempenho da companhia maior seria a sua vantagem no exerccio do Call. Se fosse o

    inverso, ou seja, se fossem as demandantes os administradores, haveria conflito de

    interesse, o que definitivamente no foi o caso.

    Deve ficar muito claro, todavia, que a possibilidade de a DTVM valer menos que

    o equivalente a 1,2% dos ASAG, estava perfeitamente contemplada dentro da estrutura

    montada de comum acordo entre as partes em seu acordo de acionistas, e que poderia

    perfeitamente ter ocorrido o inverso, vale dizer, uma diferena entre preo estipulado e

    preo de mercado a favor da demandada. No se deve tergiversar sobre o fato de que o

    contrato avenado trazia para as partes os riscos demonstrados na Tabela 2 e que a

    possibilidade de perda, ou ganho, estava implicitamente contemplada, como em qualquer

    obrigao para liquidao futura.

    2.1. O sentido econmico das opes.

    Algumas observaes conceituais adicionais sobre as opes que as partes se

    concederam para exerccio entre 10 de maro e 30 de junho de 2003 devem ser feitas.

    Pode-se legitimamente indagar por que os agentes econmicos fazem contratos para

    execuo futura, sob a forma de opes em particular, sabendo que o preo de

    mercado, no momento da execuo do contrato e entrega da contraprestao ser

    inevitavelmente diferente ao que vigora no momento da contratao?

    A Teoria Econmica no encontra dificuldade com esta pergunta, pois a reside a

    motivao para a existncia dos contratos futuros, opes, swaps e outros instrumentos

    conhecidos como derivativos, e tambm da indstria do seguro. Deve haver clareza em

    que os derivativos tiveram desenvolvimento absolutamente explosivo em tempos

    recentes, pois tm enorme e indiscutvel utilidade para a melhor alocao de riscos numa

    economia global repleta de incertezas. Este no o lugar para uma resenha das

    motivaes do crescimento dos derivativos, mas vale observar que, nesta lide, tudo se

    passa como se estivssemos a discutir uma operao simples envolvendo opes

    conhecidas como europias, ou seja, opes cujo exerccio deve se dar em uma data

    determinada no futuro. A negociao de opes deste tipo, em bolsa ou em balco, para a

    compra ou venda de aes de companhias abertas aqui ou no exterior, muito comum,

    no havendo qualquer diferena conceitual relevante, no terreno econmico, entre as

  • 12

    opes regularmente negociadas em bolsa e as de que trata esta lide. uma s a teoria

    (no fosse assim no teramos uma teoria) que explica o processo de formao de preo

    de opes, conhecida pelos seus autores Fischer Black e Myron Scholes, este ltimo

    agraciado com um Nobel em Economia em 1997. E o princpio bsico para o clculo do

    preo, ou do prmio de opo, o de que seu valor reside justamente em mitigar riscos,

    de modo que o valor de uma opo deve ser tomado como diretamente proporcional

    volatilidade do preo do ativo objeto da opo. Ou seja, temos aqui o que parece ser um

    truismo: tanto mais incerto o futuro, tanto mais valiosa deve ser a opo.

    No caso em tela o Put e o Call tinham valor para seus respectivos detentores por

    que os protegiam de situaes que definiram como indesejadas, e criaram uma

    distribuio de probabilidades de ganhos e perdas, conforme explicitadas na Tabela 2,

    distribuio esta que transformou um futuro incerto em um futuro inteligvel. Este o

    servio proporcionado pelo seguro, ou pelo derivativo (hedge ou opo), o qual,

    evidentemente, nada contm de especulativo ou aleatrio4. Pelas opes concedidas

    os lanadores deveriam receber o que se conhece como o prmio, o que no ocorre neste

    caso apenas por que os riscos so recprocos e simtricos. Num jogo de soma zero,

    como este, os prmios se cancelam.

    Por outro lado, de se ressaltar com bastante nfase que as partes no

    estipularam o preo justo ou o preo de mercado como o preo de exerccio das

    opes para o perodo entre maro e junho de 2003, mesmo sabendo que poderiam existir

    diferenas substanciais entre estes e os preos que resultariam das frmulas do Put e da

    Call. As partes reservaram o preo de mercado apenas para o perodo posterior a julho

    de 2003, deixando, assim, evidente a sua vontade de fixar um preo pr-determinado para

    logo anterior. Um raciocnio econmico absolutamente lmpido sobre as razes desta

    escolha o de que, efetivamente, no h sentido em estipular em um contrato para

    execuo futura Puts e Calls no preo de mercado, pois a este preo, conforme nos

    informa a Teoria Econmica, e por construo, as opes no tm valor, dado que a

    qualquer momento, em tese, e abstrado o direito de preferncia, as partes sempre tero a 4 Tenha-se claro que no totalmente apropriado, mas tambm no inteiramente descabido, tomar como um contrato aleatrio, em princpio, uma opo europia sobre preo de empresa a ser exercida dois anos depois, especialmente se a contraparte compradora tambm acionista controladora e gestora da empresa cujas aes so objeto da opo. Este tema, todavia, no ser desenvolvido aqui, e no teria implicaes para as concluses que se seguem.

  • 13

    possibilidade de vender ou comprar suas participaes na DTVM ao preo de mercado.

    Considerando-se o caso mais geral das aes de companhias abertas, de se observar que

    nenhuma bolsa de valores deste planeta negocia Puts e Calls da modalidade europia

    onde o preo de exerccio ps-fixado e idntico ao preo no mercado spot na data do

    exerccio, isto seria um contra-senso absoluto, como, efetivamente, absurdo dizer, nesta

    lide, que os preos de exerccio teriam que ser equivalentes ao preo de mercado, ainda

    mais tendo em mente que as partes deixaram explcito e expresso que o preo de

    mercado seria a regra a vigorar depois de julho de 2003.

    Por fim, resta observar que tudo indica que o valor de mercado da DTVM no

    momento do exerccio do Put pela demandante era substancialmente inferior ao preo

    resultante da aplicao da frmula de mltiplo sobre o valor dos ASAG. Ex post facto,

    a demandada teria feito um mau negcio, o que no poderia prever no momento da

    contratao, mas tambm no poderia excluir. Bons negcios e maus negcios so

    partes componentes da realidade do complexo ambiente econmico e empresarial em

    que vivemos. No deve ser o trabalho da arbitragem melhorar um mau negcio (ou

    piorar um bom negcio) com vistas a sempre equilibrar o relacionamento entre as

    partes contratantes, assim tornando sempre inexeqvel tanto o ganho expressivo, quanto

    o fracasso empresarial, como quem corrigisse a natureza supostamente perversa da

    economia de mercado. A este respeito vale destacar o que observa a Professora Paula

    Forgioni (op. cit. pgs.14-23 passim, grifos meus) a propsito do chama de erro do

    empresrio:

    Os agentes econmicos algumas vezes adotam estratgias equivocadas, e esses enganos so previstos e desejados pelo sistema jurdico, na medida em que, diferenciando os agentes, permitem o estabelecimento do jogo concorrencial ... Ou seja, a diferena entre as estratgias adotadas pelos agentes econmicos e entre os resultados obtidos (uns melhores, outros piores) que d vida a um ambiente de competio (por que todos buscam o prmio do maior sucesso, da adoo da estratgia mais eficiente). ... Se no considerarmos que uma empresa pode ter adotado uma estratgia equivocada, jamais entenderemos um prejuzo suportado por uma das partes na execuo de negcio decorrente de sua lea normal (e que, portanto, no seja derivado de alteraes contextuais imprevisveis) ... Note-se, entretanto, que o empresrio no considerado pelo sistema de direito comercial como um tolo irresponsvel e o direito no pode ter a funo de corrigir os erros eventualmente praticados. ... O ordenamento no ampara as concretas expectativas de lucro que cada operador coloca na troca contratual por que um certo grau de risco

  • 14

    indissocivel de qualquer contrato, como de qualquer iniciativa econmica. Em suma, ao direito compete preservar o mercado (i.e., a fluncia das relaes econmicas) viabilizando o jogo mediante um sistema que procura levar ao respeito de suas regras, entre as quais a do pacta sunt servanda.

    Ressalvadas, novamente e portanto, as situaes de assimetria, como as que

    envolvem consumidores, contratos de trabalho e as que envolvem o que os economistas

    designam como externalidades, as que ferem a concorrncia ou o meio ambiente, as

    relaes empresariais devem ser tais que o mau negcio no pode ser vedado, nem

    deve ser o papel do rbitro, ou do Juiz, corrigi-lo sobrepondo algum conceito de

    fairness lgica da economia de mercado, inclusive e principalmente atravs de

    interpretaes paternalistas sobre o que deve ser a funo social do contrato. Um

    revisionismo excessivo e deslocado, apenas serve para reduzir o enforcement dos

    contratos com prejuzo evidente para o conjunto dos agentes econmicos, tema de que

    trataremos especificamente e em profundidade na seo 4 adiante. Resta saber, por ora, se

    mesmo tendo em conta que a presente lide trata de negcio de natureza empresarial, entre

    iguais, se o mau negcio resultou do desenvolvimento de estratgias no muito boas,

    meramente equivocadas ou mesmo totalmente erradas, ou se foi produzido por

    circunstncias desfavorveis, porm, dentro da realidade inescapvel do ciclo natural dos

    negcios e dos desafios competitivos da indstria, ou, alternativamente, se o mau

    negcio foi conseqncia direta de elementos de natureza nica, inesperada,

    imprevisvel e extraordinria, como foram os planos econmicos e a hiperinflao, que

    teriam destrudo a lgica de negcios da DTVM a despeito dos melhores esforos da

    demandada para que a empresa fosse bem. o que passamos a examinar.

    3. Sobre a existncia de fatores e circunstncias excepcionais no perodo

    entre a assinatura do acordo de acionistas e o exerccio das opes.

    Com vistas a verificar a pertinncia da chamada teoria da impreviso para a

    presente lide, e responder ao segundo quesito enunciado acima, esta seo divide o

    problema em trs tpicos: (i) se possvel se observar alguma ruptura ou modificao

    substancial nas polticas e cenrios macroeconmicos em 2003 relativamente ao que se

    praticava e se esperava em 2001, o mesmo valendo para 2005 relativamente a 2003; (ii)

  • 15

    se possvel se observar alguma ruptura ou modificao substancial na indstria de

    fundos mais especificamente, seja em razo da turbulncia macroeconmica diretamente,

    seja em razo do episdio conhecido como a crise da marcao a mercado; (iii) se

    possvel se identificar explicaes alternativas para uma reduo no valor para os

    mltiplos setoriais, vale dizer, explicaes que no passam por nenhum evento

    imprevisvel e extraordinrio, na prpria dinmica de competio e consolidao entre

    os principais players na indstria de fundos.

    3.1. Cenrios e polticas macroeconmicas: a continuidade.

    O perodo compreendido entre junho de 2001 e abril de 2003 testemunhou grande

    turbulncia na economia brasileira, principalmente em razo das eleies presidenciais

    ocorridas em outubro de 2002, que produziram expectativas muito negativas sobre o que

    poderia ser o governo do Presidente Luiz Incio Lula da Silva, expectativas estas que

    foram gradualmente frustradas pelas aes e declaraes do ainda candidato e

    posteriormente pelo j empossado Presidente de Repblica. A despeito dos temores que

    motivaram a instabilidade em meados de 2002, no resta hoje nenhuma dvida que o

    trao mais marcante da poltica econmica da administrao petista iniciada com o ano

    calendrio de 2003 foi a continuidade das polticas econmicas convencionais, no terreno

    fiscal, monetrio e cambial, anteriormente praticadas, inclusive compreendendo o

    prosseguimento ao acordo com o FMI e obrigaes associadas. A mudana de governo,

    portanto, como bem sabido, no causou nenhuma espcie de ruptura ou

    descontinuidade nas polticas macroeconmicas bsicas, e mesmo na postura, filosofia e

    conduta do Banco Central com respeito regulao do sistema financeiro. A identidade

    de perfis e de prticas entre as diretorias do Banco Central na administrao petista e

    tucana quase que total, sendo absolutamente ocioso alongar-se sobre o fato de que no

    existe nada, no terreno das polticas macroeconmicas, que possa ter viciado ou

    prejudicado o desempenho macroeconmico do pas relativamente ao que se esperava no

    momento da assinatura do acordo de acionistas em 1 de junho de 2001.

    Para os fins desta consulta, e em particular no que pertinente ao segundo quesito

    acima enunciado, duas hipteses especficas merecem apreciao: (i) se a turbulncia

  • 16

    macroeconmica concentrada no segundo semestre de 2002, ou seja, exatamente no

    interior do perodo entre 1 de junho de 2001 e 30 de abril de 2003, foi transitria, de tal

    sorte a que se possa dizer que em meados de 2003 a macroeconomia volta ao ponto de

    partida; (ii) se mesmo que possamos responder positivamente esta primeira questo,

    seria ainda assim possvel que as expectativas em 2003 para o curso futuro da

    macroeconomia teriam ficado muito piores que aquelas que existiam em 2001, em razo

    dos acontecimentos de meados de 2002, ainda que transitrios .

    Para testar estas hipteses que dizem respeito ao que se passou com a mdia das

    expectativas de mercado, felizmente contamos com uma alentada base de dados oferecida

    pelo survey semanalmente conduzido pelo Banco Central desde 1997 sobre as

    expectativas de uma ampla amostra de participantes do mercado para as principais

    variveis macroeconmicas. Existem, portanto, registros fidedignos sobre o que eram as

    expectativas do consenso de mercado para datas passadas especficas, expectativas estas

    que podemos cotejar com os valores efetivamente observados, e assim verificar as

    hipteses acima propostas. Com este esprito, a Tabela 3 foi construda de forma a

    verificar especificamente se os valores esperados para as principais variveis

    macroeconmicas em 1 de junho de 2001 para dois anos adiante, em 2003, foram muito

    diferentes daqueles que realmente se observaram, e, da mesma forma, verificar se as

    expectativas em abril de 2003 para dois anos adiante, em 2005, foram frustradas ou

    confirmadas.

  • 17

    Tabela 3: Expectativas e valores efetivamente realizados para variveis macroeconmicas

    relevantes para a avaliao da DTVM, 2001-2005

    FONTE: Banco Central do Brasil

    Em 1 de jun de

    2001 Em 30 de abril

    de 2003

    Realizado em 2001

    Expectativas para 2003

    Realizado em 2003

    Expectativas para 2005

    Realizado em 2005

    Taxa de Cmbio

    Mdia 2,35 2,72 3,07 3,68 2,43

    Fim de perodo 2,32 2,36 2,89 3,77 2,29

    PIB (taxa de cres. %) 1,3% 4,3% 0,5% 3,6% 2,3%

    SELIC 19,05% 12,41% 16,91% 15,50% 18,24%

    IGP-M 9,92% 3,71% 8,42% 6,90% 1,21%

    IPCA 7,42% 3,25% 8,95% 3,55% 5,69% Dvida Lq. Setor Pblico (% do PIB) 52,1% 49,3% 57,2% 53,3% 51,5% Supervit primrio (% do PIB) 3,64% 2,55% 4,25% 3,91% 4,83% Balana Comercial (US$ bi) 2,65 0,65 24,79 16,18 44,75 Invest. Estrang.Direto (US$ bi) 21,00 19,9 12,90 14,8 15,1

    A Tabela 3 traz variveis que tm relao direta com o clculo do valor de

    mercado da DTVM, como os juros nominais, cmbio e as medidas de inflao, e tambm

    um grupo de outras variveis macroeconmicas definidoras do estado geral da

    macroeconomia. A Tabela 3 permite que se observem as diferenas entre o que se

    esperava para 2003 em 2001, e o que efetivamente se passou em 2003, e igualmente, a

    diferena entre o que se esperava em 2003 para 2005, e o que efetivamente se passou em

    2005 at onde possvel observar. O cmbio foi mais desvalorizado em 2003 do que se

    esperava em 2001, mas est bem mais valorizado em agosto de 2005 do se esperava em

    2003. As taxas de cmbio de hoje esto se aproximando do que eram em 2001. Quanto ao

    PIB, o crescimento em 2003 (0,5%) foi bastante modesto relativamente ao que se

    esperava em 2001 (4,3%), mas no foi tomado como uma recesso. J em 2005 as taxas

    foram ligeiramente menores do que se esperava em 2003. Os juros nominais em 2003 e

    2005 foram bem maiores do que esperava. A inflao pelo IGPM foi pior em 2003, mas

    bem abaixo do que se esperava para 2005, e medida pelo IPCA foi mais alta em 2003

    (8,9% contra 3,2%), mas em 2005 ficou um pouco mais alta do que esperava em 2003. A

  • 18

    situao fiscal, capturada pelo supervit primrio e pela dvida lquida do setor pblico, e

    a do balano de pagamentos, resumida pela balana comercial e pelo investimento direto

    estrangeiro, so melhores do que as expectativas em 2003 e 2005.

    Em concluso, no possvel dizer, com os dados da Tabela 3, que as

    expectativas e cenrios para 2003, previstos em junho de 2001, quando foi assinado o

    acordo de acionistas, tenham sido violentamente agredidos pela realidade ou

    substancialmente frustradas. Antes pelo contrrio, as pequenas variaes entre valores

    esperados e realizados apiam totalmente a conjectura segundo a qual, a despeito da

    turbulncia produzida pelos momentos culminantes das eleies de 2002, as principais

    variveis macroeconmicas em 2003, com variaes para melhor ou para pior conforme

    o caso, no registram flutuaes contundentes, relativamente s expectativas de 2001, que

    as retirem de dentro da normalidade. Ficam, portanto, grosso modo, validadas as

    hipteses que nortearam a avaliao da DTVM em 2001, ao menos no que toca

    macroeconomia, nada existindo neste terreno que aponte no sentido de circunstncias

    excepcionais.

    De forma semelhante, os valores realizados para as principais variveis

    macroeconmicas em 2005 no diferem muito substancialmente do que se esperava em

    2003, no momento em que se encerrava a segunda fase do acordo de acionistas, o que

    apia a conjectura segunda o qual tambm no houve variao relevante nas expectativas

    para alm de 2003, as quais grosso modo no estiveram substancialmente distantes do

    que efetivamente se passou em 2005, a despeito da crise poltica que se inicia em julho.

    A concluso mais importante deste exerccio a de que as hipteses

    macroeconmicas que orientaram as partes desta lide no clculo do valor presente do

    fluxo de caixa esperado, vale dizer, no clculo do valor da DTVM de acordo com os

    mtodos usuais, foram fundamentalmente validadas, de tal sorte que, no que tange

    macroeconomia, no se pode encontrar nenhum apoio tese segundo a qual alguma

    mudana drstica, inesperada, extraordinria e profunda teria modificado

    fundamentalmente o valor da DTVM relativamente ao que as partes, como o consenso do

    mercado, esperavam no momento da assinatura do acordo de acionistas.

    Desta forma, a busca de alguma sustentao para a aplicao da Teoria da

    Impreviso para o caso em tela teria que percorrer os caminhos da microeconomia, ou

  • 19

    seja, buscar fatores bastante especficos ao negcio de administrao e gesto de recursos

    que, no curto espao de tempo entre abril de 2001 e julho de 2003, tivessem mudado

    radicalmente as perspectivas do negcio relativamente s percepes convergentes das

    partes no momento da contratao do acordo de acionistas, e que fossem, alm de

    excepcionais, totalmente inesperadas no momento da contratao do acordo em abril de

    2001. do que passamos a tratar na prxima sub-seo.

    3.2. Consideraes de ordem setorial: a crise da marcao a mercado e

    suas conseqncias.

    Tal como na macroeconomia, mas no inteiramente em conseqncia desta, a

    indstria de fundos mtuos no Brasil experimentou turbulncias em meados de 2002,

    refletindo os temores que afetaram os mercados, porm agravadas por dificuldades

    especficas ao setor, estas, por sua vez, associadas a providncias tomadas ad hoc pelo

    regulador que tiveram o condo de criar problemas especficos para indstria de fundos.

    Estas providncias referiam-se a regras para a marcao a mercado de ttulos pblicos

    nas carteiras de fundos de investimento e sua motivao foi uma situao singular e

    indita, onde as LFTs (Letras Financeiras do Tesouro Nacional) comearam a apresentar

    desgios expressivos.

    As LFTs so ttulos cujo rendimento dado pela taxa mdia ajustada dos

    financiamentos dirios apurados pelo Sistema Especial de Liquidao e de Custdia

    SELIC para ttulos pblicos federais, divulgada pelo Banco Central do Brasil (Decreto

    3.859/2001, Art. 2, IV). Trata-se da chamada taxa de juros do overnight, ou seja, a taxa

    praticada diariamente para as operaes de mercado aberto do Banco Central por prazo

    de um dia com lastro em ttulos do Tesouro Nacional. A prpria criao das LFTs

    (Decreto-Lei 2.376 de 25 de novembro de 1987), no tempo da inflao muito alta, foi

    motivada pelo desejo de simplificar a rolagem da dvida pblica criando uma espcie de

    um sinttico para o ttulo pblico de prazo de um dia com rendimento igual taxa do

    overnight, qualquer que ela fosse. Pela sua prpria construo, as LFTs (tal como as

    LBCs, Letras do Banco Central, que as precederam) tinham como caracterstica tcnica

    mais importante a durao(duration em ingls) igual a zero. O conceito de

    durao, na cincia das finanas, refere-se elasticidade, ou sensibilidade, do preo do

  • 20

    ttulo a variaes na taxa bsica de juros, ou seja, prpria taxa do overnight. Em razo

    desta insensibilidade das LFTs s variaes dos juros do overnight, os preos da LFTs

    (e LBCs) raramente tiveram gio ou desgio, independentemente do vencimento do

    papel, que podia ser de vrios anos, pois o mercado sempre teve claro que carregar uma

    LFT era o mesmo que manter uma aplicao no overnight, especialmente diante da

    prtica j sedimentada, por parte do Banco Central de zerar o mercado de reservas

    bancrias, ao fim do dia, dando ou tomando dinheiro a fim de tabelar a taxa do

    overnight no percentual desejado5.

    Como as LFTs sempre foram entendidas pelos profissionais de mercado como um

    ttulo que funcionava, conforme observado acima, como um sinttico para uma operao

    de um dia, o tema marcao a mercado sempre pareceu deslocado quando se tratava de

    LFTs, que eram consideradas uma forma administrativamente simples de se fazer uma

    sucesso de aplicaes no overnight. O fato , todavia, que quando o Tesouro comeou

    a colocar volumes significativos de LFTs de prazo longo, a marcao a mercado

    passava a se tornar uma considerao, ainda que, no incio, meramente terica. Sendo um

    ttulo de durao zero parecia evidente que, abstrado o problema do risco de crdito, a

    marcao a mercado, na prtica, era equivalente chamada marcao na curva (custo

    de aquisio somado aos rendimentos at o momento), uma vez que o clculo era

    automtico e no se justificava nenhum esforo para se construir um mercado secundrio

    institucionalizado de onde se retirasse o registro de negociaes que trouxessem

    referncias para uma efetiva marcao a mercado, como seria normal para instrumentos

    de dvida com juros ou cupons fixos.

    A despeito desta realidade de mercado h certo debate sobre a exata natureza da

    regulamentao sobre marcao a mercado em fundos que estava em vigor quando

    comea a se verificar a ocorrncia de desgios nas LFTs de prazo maior, ou mais

    precisamente, antes da edio, pelo Banco Central, da Circular 3.086 de 15 de fevereiro

    de 2002. Com efeito, quando as pesquisas relativas s intenes de voto das eleies

    presidenciais de 2002 comearam a mostrar probabilidades elevadas de vitria para o

    candidato do Partido dos Trabalhadores, observou-se que as LFTs de vencimentos mais

    5 Para um amplo painel de explicaes e anlises sobre as LFTs vale a leitura do texto organizado por Edmar L. Bacha e Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho Mercado de capitais e dvida pblica: tributao, indexao e alongamento Rio de Janeiro: Contracapa Editora, ANBID e Casa das Garas, 2006.

  • 21

    longos comearam a ser negociadas com desgio, situao que vai se agravando at

    agosto de 2002 , conforme pode ser visto no Grfico 1, o que parecia refletir a percepo

    de risco de crdito, ou de que um governo do PT pudesse implementar alguma forma de

    confisco ou tributao especial da dvida pblica. Grfico 1

    Desgios nas LFTs (jan/04 e dez/05)

    0,0%0,3%0,5%0,8%1,0%1,3%1,5%1,8%2,0%2,3%2,5%2,8%

    jan/

    02

    fev/

    02

    mar

    /02

    abr/0

    2

    mai

    /02

    jun/

    02

    jul/0

    2

    ago/

    02

    set/0

    2

    out/0

    2

    nov/

    02

    dez/

    02

    jan/

    03

    fev/

    03

    mar

    /03

    Dez/2005

    Jan/2004

    Fonte: Andima

    Antes da Circular 3.086/01, vigorava a Circular 2.654/96 que, genericamente

    determinava a marcao a mercado dos ttulos pblicos nas carteiras dos fundos e

    tambm a Carta Circular 2.929/00 que expressamente dispunha que no admitido

    proceder a avaliao dos ativos que compem a carteira dos fundos de investimento pelo

    custo de aquisio acrescido dos rendimentos auferidos. Em se tratando de LFTs, a

    interpretao dada por profissionais de mercado a esta norma de que era redundante ou

    desnecessria, pois a distino entre valor de mercado e custo de aquisio acrescido dos

    rendimentos auferidos, para as LFTs, era apenas uma possibilidade terica. Tendo em

    vista que os fundos de investimento tinham liquidez diria, era de se presumir que CC

    2.929/00 fosse pertinente a ttulos prefixados, e expressando o zelo do regulador em fazer

    com que fundos mantivessem rigorosamente todos os seus ativos marcados a mercado

    ainda que fossem ttulos prefixados curtos e que houvesse a disposio de mant-los at o

    vencimento, pois a liquidez diria poderia sempre permitir resgates inesperados e

    macios que fizessem mudar a inteno do administrador de manter determinado papel

    at o vencimento.

  • 22

    As interpretaes e presunes sobre quais eram efetivamente as normas para as

    LFTs se tornaram confusas na medida em que comeou a crescer o desgio nas LFTs

    longas, conforme mostrado no Grfico 1. Era plausvel, mas no incontroverso, que se

    interpretasse que a marcao na curva das LFTs era permitida ou admitida pelo

    regulador, ainda que implicitamente. Igualmente plausvel era a percepo de que,

    estritamente falando, a marcao na curva no era permitida, mas era indistinguvel da

    marcao a mercado at fevereiro. Certas ou erradas estas presunes, o fato que o

    texto da Circular 3.086/02, que vem em fevereiro, favorece a primeira interpretao, pois

    na medida em que a Circular 3.086/01 reforou e detalhou a obrigatoriedade de

    marcao a mercado, mas deu um prazo para enquadramento de vrios meses,

    terminando em 30 de setembro, expressamente admitiu a existncia e a permanncia do

    desenquadramento durante um bom tempo.

    De fevereiro a maio de 2002, como pode ser visto no Grfico 1, o desgio nas

    LFTs vai se elevando, e como ainda estamos dentro do prazo de enquadramento da

    Circular 3.086/02, o que se verifica uma grande heterogeneidade de tratamento, por

    parte de diferentes gestores de fundos, de suas carteiras de LFTs. Alguns fundos j

    enquadrados, j tinham contabilizado perdas em suas quotas. Outros vinham retardando o

    enquadramento, e o registro de perdas em suas quotas, esperando uma reverso da

    situao, por exemplo, atravs de operaes de recompra ou troca dos papeis pelo Banco

    Central, em formas que vinham sendo sugeridas por entidades de classe. Esta situao era

    problemtica, uma vez que caracterizava desigualdade de tratamento e possibilidades de

    arbitragem e de quebra de isonomia entre quotistas, o que motivou o regulador, que neste

    momento j era a CVM, a emitir a Instruo 365 de 29 de maio de 2002 determinando, na

    prtica, a marcao a mercado imediata das carteiras de LFTs com desgio. Esta

    providncia ocasionou o reconhecimento imediato de perdas substanciais nas quotas dos

    fundos que vinham retardando o enquadramento, o que resultou em provocar uma espcie

    de corrida contra fundos de investimento de forma genrica. Os resgates macios

    apenas faziam piorar a situao, pois os ttulos ficaram excessivamente ofertados, e com

    isso os desgios cresceram ainda mais, produzindo uma reduo no patrimnio lquido

    desses fundos de R$ 341 bilhes no final de maio para R$ 301 bilhes no final de agosto,

    merc da captao lquida negativa e desvalorizao das carteiras. Sensvel a esta

  • 23

    situao, que ficou conhecida como a crise da marcao a mercado, em 14 de agosto de

    2002, a CVM recua e, atravs da Instruo 375, ameniza a obrigatoriedade de marcao a

    mercado de LFTs. apenas depois deste recuo que os desgios comeam a diminuir,

    conforme se observa no Grfico 1.

    Muita celeuma foi gerada em razo deste episdio. Diversos processos

    administrativos contra administradores de fundos foram iniciados na CVM, por suposto

    descumprimento de normas, e um processo judicial movido pelo IDEC Instituto

    Brasileiro de Defesa do Consumidor e uma Ao Civil Pblica proposta pelo Ministrio

    Pblico Federal foram iniciadas contra o Banco Central e outros. Para os efeitos da

    questo de que tratamos neste documento, a pergunta a se fazer sobre as conseqncias

    desses episdios para as perspectivas da indstria de fundos genericamente, e

    especificamente sobre o valor da DTVM e sobre a alegao segundo a qual a DTVM

    teria de mudar seu mix de negcios na direo da administrao em detrimento da gesto

    de recursos, ou seja, na direo de um nicho menos rentvel do mercado.

    Como resultado dessas idas e vindas, a indstria de fundos teve perdas

    significativas na captao lquida, que foram posteriormente recuperadas amplamente,

    como se observa no Grfico 2. Considerando um perodo mais longo de observao

    (janeiro de 1997 a junho de 2005), a taxa de crescimento real mdia anual para a indstria

    foi de 13,8% anuais, sendo que efetivamente em 2002 registrou-se uma queda real de

    9,8%, embora em 2003 o crescimento tenha sido da ordem de 30%, parecendo indicar

    que os problemas de 2002 foram superados logo em seguida.

  • 24

    Grfico 2:

    Patrimnio Lquido do conjunto dos fundos mtuos com registro na ANBID, janeiro de 1997 a julho de

    2005, em moeda constante de janeiro de 1997 (deflacionada pelo IPCA)

    PL Fundos Moeda Constante

    0

    50.000

    100.000

    150.000

    200.000

    250.000

    300.000

    350.000

    400.000

    jan/97

    abr/9

    7jul

    /97ou

    t/97jan

    /98ab

    r/98

    jul/98

    out/9

    8jan

    /99ab

    r/99

    jul/99

    out/9

    9jan

    /00ab

    r/00

    jul/00

    out/0

    0jan

    /01ab

    r/01

    jul/01

    out/0

    1jan

    /02ab

    r/02

    jul/02

    out/0

    2jan

    /03ab

    r/03

    jul/03

    out/0

    3jan

    /04ab

    r/04

    jul/04

    out/0

    4jan

    /05ab

    r/05

    PL Fundos Moeda Constante Fonte: ANBID.

    Em alguma medida, parece observar-se aqui o que se passou no mercado de

    cmbio, uma instabilidade passageira motivada por eventos tpicos ou expectativas

    momentaneamente distorcidas, ou mesmo por medidas regulatrias confusas, mas de vida

    curta, que se esgota naturalmente e que faz crer que o mercado retorna normalidade

    posteriormente ao tumulto. No parece haver, portanto, indicaes consistentes de uma

    ruptura ou descontinuidade na evoluo da indstria de fundos, vista de forma genrica,

    que alterasse as perspectivas do setor.

    Diante da narrativa sobre a exata natureza da chamada crise da marcao a

    mercado, tudo parece indicar que, tal como no domnio da macroeconomia, no tocante

    aos fundos mtuos, observamos uma espcie de retorno normalidade depois de 2002,

    que trouxe a indstria de administrao e gesto de recursos ao status quo ante.

    Ademais, no parece haver, em conseqncia dos episdios tratados nesta sub-seo,

    nenhuma mudana paradigmtica, ou modificao fundamental na indstria que pudesse

    afetar muito substancialmente a avaliao, a lucratividade e o modelo de negcios das

  • 25

    empresas do setor. Ressalte-se especificamente que no existe, na viso do signatrio,

    nada na chamada crise da marcao a mercado que viesse a forar ou induzir a

    DTVM, ou qualquer outra instituio neste ramo de negcio a ampliar suas atividade

    de administrao em detrimento das atividades de gesto, e portanto, a tornar-se menos

    rentvel em conseqncia do episdio. O signatrio no consegue vislumbrar qualquer

    relao entre uma coisa e outra. Esta mudana de mix pode ter ocorrido em razo de

    estratgias empresariais especficas que a DTVM resolveu adotar face aos desafios

    competitivos do setor, que so o objeto da prxima sub-seo, em nada relacionadas s

    andanas da macroeconomia e da chamada crise da marcao a mercado.

    3.3. Ajuste e consolidao na indstria de fundos.

    As estratgias empresariais empregadas pelas instituies competindo neste

    mercado grosso modo podem ser descritas com a ajuda do Grfico 3 abaixo onde,

    essencialmente se distinguem duas estratgias tpicas: a especializao em certos

    nichos de mercado, em boa medida capturada pelo percentual das carteiras aplicados

    em ativos de renda varivel, e a busca de economias de escala especialmente atravs da

    distribuio no varejo. O Grfico 3, cuja base fevereiro de 2002, mostra trs atributos

    dos diferentes participantes deste mercado: o fee mdio, medido no eixo horizontal, o

    percentual dos ativos totais representados pela renda fixa, medido no eixo vertical, e o

    volume de ASAG medido pelo volume da esfera correspondente a cada instituio no

    grfico.

  • 26

    Grfico 3: Principais players na indstria de fundos

    de se notar que existem pelo menos duas estratgias de expanso disponveis

    para as instituies dispostas no grfico: (i) o crescimento dos volumes sob gesto, que

    deve representar maior lucratividade especialmente se os recursos vm do varejo, onde os

    fees so maiores, mas tambm, embora em menor grau, se os volumes adicionais vm de

    investidores institucionais, em administrao fiduciria ou gesto passiva, na medida em

    que as instituies administradoras conseguem capturar as economias de escala evitando

    que a presso competitiva resulte em compresso dos fees. (ii) a especializao em

    nichos pode ser um bom caminho para maiores fees dependendo da capacidade da

    instituio em trabalhar no segmento de renda varivel (ou em derivativos), com vistas a

    buscar diferenciais de desempenho relativamente gesto passiva, sem que isto

    represente o enfraquecimento da capacidade de a empresa atingir os clientes de varejo. O

    caminho virtuoso no grfico , portanto, na direo leste, ou idealmente para o

    nordeste.

    Naquela ocasio, como hoje, a indstria de fundos era fortemente dependente do

    carregamento de ttulos pblicos, de modo que as decises das autoridades quanto ao

    perfil da dvida pblica terminavam afetando muito diretamente a natureza das polticas

    de gesto, e das estratgias empresariais, de cada instituio administradora. No perodo

  • 27

    que vai de meados de 2001, quando o acordo de acionistas foi firmado, at os dias de

    hoje, duas tendncias so muito claras na poltica oficial de administrao da dvida

    pblica: (i) a manuteno, desde meados de 1998, de um alto percentual da dvida em

    LFTs; e (ii) uma reduo substancial do percentual da dvida pblica em ttulos com

    correo cambial. No se pode argumentar com clareza, por outro lado, que se reduziu a

    volatilidade cambial e das cotaes na Bolsa de Valores seno a partir de meados de 2003

    quando o novo governo assentou a crena de que polticas macroeconmicas

    convencionais seriam praticadas consistentemente. Mas se, por um lado, a volatilidade

    poderia apontar para estratgias mais especializadas durante o perodo de turbulncia,

    por outro, estiveram presentes durante todo o governo anterior, e tambm no governo

    Lula, expectativas de que a Reforma da Previdncia, bem como o crescimento da

    previdncia privada aberta, representariam um gigantesco aumento de escala para a

    indstria de fundos. Com efeito, muitos players internacionais de porte se estabeleceram

    no Brasil com esta expectativa, que j estava um tanto esmaecida no final do governo do

    presidente Fernando Henrique Cardoso, a despeito da anunciada e confirmada inteno

    do novo governo em prosseguir com a Reforma.

    O fato que com a manuteno da dvida pblica predominantemente em LFTs,

    cuja gesto, a rigor, no requer maiores habilidades e esforos, e com a frustrao de

    expectativas talvez mesmo exageradas sobre as implicaes da Reforma da Previdncia

    sobre a indstria de fundos, o que se observou foi um movimento de consolidao,

    vendas e compresso competitiva de fees no contexto da qual deve ser entendida a perda

    de valor da DTVM relativamente s expectativas consagradas nos preos do Put e da Call

    acertados em junho de 2001. Ao que tudo indica, o posicionamento estratgico adotado

    na gesto da DTVM no logrou sucesso em caminhar para o nordeste no grfico, e ao

    privilegiar o crescimento de volumes (ASAG), ou seja, inchar a esfera, a DTVM teve

    pouco sucesso em evitar a compresso de fees que, ademais, foi o que se verificou para a

    mdia da indstria. O Grfico 4 adiante mostra efetivamente que as taxas de

    administrao mdias para diversas modalidades de fundos experimentaram um contnuo

    movimento de declnio, porm, de magnitude modesta em termos absolutos, algo da

    ordem de 0,10%, longe de ser uma depresso ou uma mudana paradigmtica para pior

    na indstria.

  • 28

    Grfico 4: Taxas de administrao mdias

    Taxa de adm. mdia

    0,94

    0,96

    0,98

    1,00

    1,02

    1,04

    1,06

    1,08

    1,10

    1,12

    1,14

    abr/2001 nov/2001 mai/2002 dez/2002 jun/2003 jan/2004 ago/2004 fev/2005 set/2005

    Taxa de adm. mdia Mdia no ponderada simples de taxas mdias praticadas por cinco classes de fundos conforme survey publicado pela ANBID, a saber, Referenciado DI, Renda fixa com alavancagem, Balanceados, Multimercados com renda varivel com alavancagem, e Aes Ibovespa ativo. A amostra utilizada para o clculo do grfico compreende 1.655 fundos de um total de 2.823 reportados pela ANBID em junho de 2005.

    Nada disso deixou de ser percebido no momento em que o acordo de acionistas

    estava sendo desenhado, bem assim as estratgias empresariais da DTVM. Parecia claro

    que era preciso fazer crescer a escala do negcio, e que havia um caminho a ser

    explorado nesta direo, especialmente no campo da administrao, e, com efeito, foi

    fenomenal o crescimento dos volumes nas atividades de administrao e particularmente

    administrao fiduciria. A queda na lucratividade mediante a compresso dos fees,

    mostrada no Grfico 4, tinha que ver com um processo de consolidao na indstria de

    fundos que nada tinha de imprevisvel, extraordinrio ou superlativo, e que se apresenta

    como uma das explicaes para a perda de valor da DTVM, relativamente ao mltiplo

    fixado em junho de 2001. A escolha de estratgia empresarial consistindo no crescimento

    agressivo no segmento da administrao de recursos, adicionalmente e no em detrimento

    do crescimento dos volumes sob gesto, no resultou especialmente bem sucedida, haja

    vista a lide e a diferena entre valor de mercado e valor previsto no acordo de acionistas

  • 29

    para o exerccio do Put sobre as aes da demandante. Conforme j observado na seo

    2, todavia, as estratgias empresariais podem errar ou acertar, como prprio nas

    economias de mercado, sem que acertos e erros sejam dados por circunstncias

    excepcionais ou mirabolantes. Temos aqui, sem dvida, um caso de uma estratgia

    empresarial de resultados muito aqum do esperado, o que est longe, muito longe de ser

    incomum.

    4. Interpretao econmica da Teoria da Impreviso.

    Antes de concluir este parecer de se notar que, na essncia, estamos a discutir o

    fato de a demandada buscar abrigo em interpretaes bastante abrangentes da Teoria da

    Impreviso. Por isso importante somar anlise j empreendida das circunstncias

    objetivas que poderiam ensejar alguma aplicao do disposto no Artigo 478, uma

    pequena digresso sobre a importncia da Teoria da Impreviso, seu papel nas

    interpretaes geralmente associadas ao princpio da funo social do contrato, e o

    modo como o economista percebe esta problemtica e suas conseqncias.

    Os economistas aprenderam a conhecer as clusulas rebus sic stantibus, e mais

    genericamente a chamada Teoria da Impreviso, no estudo do desenvolvimento do

    instituto da correo monetria no Brasil6. A experincia inflacionria brasileira

    absolutamente singular, uma das mais dramticas deste planeta, tanto pela intensidade

    quanto pela durao, e no por outro motivo nenhum pas se iguala ao Brasil na produo

    jurisprudencial e legislativa no tocante correo monetria, ao que corresponde e

    compensa, lamentavelmente, um dficit na construo de instituies que

    constrangessem o Estado de abusar de seu poder de senhoriagem ou de sua irrestrita

    capacidade de criar poder de compra meramente atravs da pintura e distribuio de

    6 Cf. Arnoldo Wald A evoluo da correo monetria da era da incerteza em Gilberto Ulhoa Canto e Ives Gandra da Silva Martins (eds) A correo monetria no direito brasileiro Rio de Janeiro: Saraiva, 1983. Ver tambm obra em co-autoria por economistas e juristas: Julian Chacel, Mario H. Simonsen e Arnoldo Wald (eds.) Correo monetria Rio de Janeiro, Apec, 1974.

  • 30

    pedaos de papel pintado7. Com efeito, o processo inflacionrio brasileiro comea a se

    agravar, e a trazer enormes desafios ao mundo jurdico, ainda sob a gide do Decreto Lei

    23.501/33, ou seja, na vigncia de um ordenamento monetrio essencialmente

    nominalista. Mesmo depois da publicao do Decreto 857/67, que revogou a vedao

    genrica s clusulas de correo monetria do Decreto Lei 23.501/33, a aplicao de

    correo monetria a determinado universo de relaes sempre foi seletiva, vale dizer,

    definida por lei especfica e restrita aos casos a definidos. Nos Tribunais, por outro lado,

    os evidentes desequilbrios provocados pela inflao, devastadores e generalizados,

    abriram espao para a proliferao de revises em muitos tipos caractersticos de

    obrigaes pecunirias, em boa medida atravs da diferenciao, cada vez mais clara,

    entre dvidas em dinheiro e dvidas de valor. Nestas, era como se o direito correo

    monetria, ou correspondncia entre a prestao e alguma noo qualitativa de valor

    real, estivesse garantido, em contrate com aquelas, onde a correo precisaria ser

    convencionada e prevista em lei, ao menos em tese, cabendo sempre o recurso

    onerosidade excessiva quando o chamado imposto inflacionrio fosse

    excessivamente corrosivo.

    No se deve perder de vista que o Brasil passa a viver circunstncias

    especialssimas a partir dos anos 1980 onde temos sempre presente um elemento

    extraordinrio, alm de imprevisvel, pois a inflao, insistente e sucessivamente,

    lograria romper qualquer limite que pudesse existir em seu desenvolvimento. Com efeito,

    no perodo entre abril de 1980 e maio de 1994, a inflao brasileira acumulou a

    assombrosa cifra de 20.759.903.275.651% (Vinte trilhes, setecentos e cinqenta e nove

    bilhes, novecentos e trs milhes, duzentos e setenta e cinco mil e seiscentos e cinqenta

    e um por cento)!8 neste contexto superlativo que prospera a Teoria da Impreviso,

    mesmo entre as dvidas de dinheiro, pois em situaes desta gravidade, aqui como

    7 Cf. Gustavo H. B. Franco Entre o horizontalismo e o privilgio sobre a tenso na regulao da moeda em Arthur Ituassu e Rodrigo de Almeida (eds.) O Brasil tem jeito? Rio de Janeiro, Editora Zahar, 2006. Ver tambm Antonio Mendes e Edson Bueno Nascimento Estudo de direito monetrio: a moeda e suas funes, obrigaes monetrias; estipulao e indexao de obrigaes monetrias Revista de Direito Mercantil XXX (nova srie) n. 84, outubro/dezembro de 1991. 8 Cf. Tabela 10.1, pg. 265, Gustavo H. B. Franco Auge e declnio do inflacionismo no Brasil em Fbio Giambiagi et alli (orgs.) Economia Brasileira Contempornea Editora Campus, Rio de Janeiro, 2005.

  • 31

    alhures9, que se pode admitir que os contratos tenham sua validade sempre

    enfraquecida, e o Juiz amide seja chamado a rever a obrigao. Com efeito, em

    decorrncia dessa experincia que o novo Cdigo Civil consagra este entendimento sobre

    a aplicabilidade da Teoria da Impreviso sobre dvidas em dinheiro (cf. Art. 315), ao

    estabelecer em seu Artigo 317 que quando, por motivos imprevisveis, sobrevier

    desproporo manifesta entre o valor da prestao devida e o do momento de sua

    execuo, poder o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto

    possvel, o valor real da prestao (grifos meus).

    Durante os anos 1980, portanto, enquanto se desenrolava processo inflacionrio

    considerado excepcional por qualquer critrio que se o tomasse, a impreviso, e

    conseqentemente a reviso merc de circunstncias excepcionais ia se tornando to

    freqente a ponto de parecer a regra e no a exceo. Ou seja, dentre as extraordinrias

    distores provocadas pela inflao em contnua e surpreendente acelerao estava a de

    que, crescentemente, os contratos no existem para serem cumpridos, mas para serem

    revistos.

    Com a lenta adoo da inovao institucional representada pela correo

    monetria (que se mostra, sublinhe-se, como um substituto inferior de instituies que

    teriam o condo de evitar o caos monetrio), as revises decorrentes da perda

    inesperada ou exagerada de poder aquisitivo da moeda vo se tornando no apenas

    rotineiras e de periodicidade cada vez menor, mas tambm limitadas perda de

    poder de compra da moeda nacional. Ou seja, do revisionismo motivado pela genuna

    emergncia proporcionada pela hiperinflao que surge espontaneamente e se consolida o

    instituto da correo monetria10, cujo apogeu parece levar a uma reduo do escopo de

    aplicao ad hoc da Teoria da Impreviso, pois a mais freqente das surpresas, a

    inflao, poderia ser prevista e mitigada ou tinha seus efeitos limitados por clusulas

    cada vez mais elaboradas, e de aplicao cada vez mais ampla, de correo monetria.

    9 Em outros casos de grandes inflaes, como o da Alemanha, a Teoria da Impreviso teve alguma importncia na discusso sobre a chamada revalorizao de obrigaes (dvidas de dinheiro) destroadas pela inflao, mas sua aplicao no restante da Europa foi bastante limitada, cf. Alfred Nussbaum Money in the law, national and international Brooklyn, The Foundation Press, 1950, section 12-III, pp. 188-192. 10 Uma vez estabelecido o direito, ou expectativa de direito reconstituio do poder de compra decorrente de inflao, parece funcionar o Teorema de Coase, ou seja, surge o arranjo institucional que reduz custos de transao e se torna conveniente e econmico para ambas as partes de um contrato.

  • 32

    Todavia, na segunda metade dos anos 1980, cresce a conscincia de que o mesmo

    expediente institucional inteligente, a indexao, que servia para neutralizar a inflao,

    como diziam os economistas, parecia servir tambm para a sua contnua reproduo11.

    Sendo este um dos elementos importantes na cadeia de causas da inflao, os planos

    econmicos heterodoxos que se iniciam com o Plano Cruzado em 1986,

    invariavelmente traziam mudanas no padro monetrio, congelamentos de preos e

    extensas alteraes em contratos privados, especialmente nas clusulas de correo

    monetria. A Teoria da Impreviso adquire a um novo a alentado campo de aplicao,

    pois no mais a inflao que se apresenta como elemento desestruturador das relaes

    contratuais, mas os prprios planos de combate inflao, que promovem intervenes

    do Estado no mbito das relaes econmicas constitudas numa extenso ento

    desconhecida, comparvel em violncia com o Mal que procuram extirpar. So imensas

    as controvrsias envolvendo o poder do Estado de alterar relaes contratuais no

    momento de uma mudana de padro monetrio - pois se a moeda uma criatura da lei,

    as clusulas de correo monetria tambm o so - tendo em vista o desejo, ou o

    imperativo de no desequilibrar contratos e manter a neutralidade distributiva, ou

    mesmo, por que no?, corrigir injustias12.

    Quando a experincia de hiperinflao termina, com o advento do Plano Real, o

    pas tinha de enfrentar muitas adaptaes nova realidade da moeda estvel. Tal como

    nas tentativas anteriores, as normas da estabilizao monetria teriam de buscar, no plano

    formal, o que os economistas designavam como neutralidade distributiva, e os juristas

    como manuteno do equilbrio contratual, ou mais genericamente a protees

    constitucionais ao ato jurdico perfeito e ao direito adquirido. O Plano Real, como bem

    sabido, teve uma arquitetura diferente dos planos anteriores ao definir uma fase dita de

    transio, na qual existiria a URV como uma meia moeda, ou moeda para contratos,

    dotada de curso legal para servir exclusivamente como padro de valor monetrio (Art.

    1, Lei 8.880/94), e permitiria que os prprios agentes econmicos, de moto prprio,

    11 Deve-se ao professor Mario Henrique Simonsen esta simples idia, desenvolvida num trabalho de 1970, posteriormente malversada de forma variada atravs da chamada teoria da inflao inercial. 12 Cf. Arnoldo Wald O novo direito monetrio: os planos econmicos, os contratos, o FGTS e a Justia So Paulo, Editora Malheiros, 1996. Ver tambm Letcio Jansen Direito Monetrio: ensaios e pareceres Rio de Janeiro, Editora Lmen Jris, 1997 e Limites jurdicos da moeda Rio de Janeiro, Editora Lmen Jris, 2000.

  • 33

    conduzissem as revises que bem entendessem em seus relacionamentos e contratos, sem

    se limitar mera converso na nova moeda13. Nesse desenho ficou bastante diminuda,

    relativamente a quaisquer dos planos de estabilizao anteriores, a quantidade de relaes

    a serem convertidas na moeda nova no momento da instituio e por fora da lei

    instituidora do novo padro monetrio, bem como a quantidade de questionamentos

    constitucionalidade de dispositivos especficos do Plano Real que ferissem direitos

    adquiridos14.

    Independentemente do sucesso do Plano Real, todavia, parecia difcil limitar as

    seqelas da hiperinflao e dos planos econmicos passados, ou mais precisamente,

    parecia difcil conter o revisionismo ensejado pelas feridas, transtornos e injustias

    reais ou imaginrias, trazidas pela hiperinflao, pelos planos econmicos, ou pelas

    mudanas trazidas pelas reformas econmicas. Era como se esses danos, ou

    ressentimentos, tivessem sido amplos demais para que no permanecesse aberta uma

    vlvula de ajuste, a Teoria da Impreviso, que permitisse que o Judicirio pudesse

    oferecer a possibilidade de reviso de todas as relaes que tinham sido tocadas pelo caos

    monetrio e pelas tentativas de corrigi-lo. Nesse contexto, certo que muitos problemas

    foram resolvidos e arbitrados pelo Judicirio, mas tambm verdade que a recuperao e

    reparao de supostas perdas decorrentes de planos econmicos se tornou uma

    indstria repleta de oportunismo e falsas alegaes. Para o economista preocupado com a

    solidez do ambiente contratual, o revisionismo ensejado pela Teoria da Impreviso

    parece uma espcie de herana maldita da instabilidade econmica, por um lado, uma

    janela de soluo de problemas residuais deixados pelos planos econmicos, mas de

    outro, um elemento de subjetividade na disciplina dos contratos que parece cada vez mais

    deslocado na medida em que se assenta em bases cada vez mais slidas a normalidade no

    plano da macroeconomia.

    13 Implicitamente se admitia que, se a inflao no era distributivamente neutra, sendo amide caracterizada como um imposto sobre o pobre, seguramente a estabilizao tambm no o seria. Desta forma, a passagem para uma realidade de moeda estvel traria muitas alteraes nas relaes econmicas que teriam de se compatibilizar com sua expresso formal no mundo dos contratos. 14 Este resultado tornava-se ainda mais significativo tendo em mente que, juntamente reviso de uma vasta gama de relaes econmicas em decorrncia da estabilizao monetria, se somavam os extensos efeitos da reformas econmicas que constituam o ataque aos desequilbrios econmicos que compunham as causas fundamentais da hiperinflao.

  • 34

    Na verdade, quando o economista indaga sobre o exato papel para a Teoria da

    Impreviso uma vez ultrapassada a absoluta excepcionalidade, representada pela

    hiperinflao e pelos planos econmicos anteriores a 1994, chega-se ao mago de uma

    discusso de enorme atualidade e importncia no mundo jurdico, aquela relacionada ao

    entendimento preciso do chamado princpio da funo social do contrato, uma das mais

    interessantes e controversas inovaes trazidas pelo novo Cdigo Civil. De acordo com

    Miguel Reale15, trata-se a do seguinte:

    Firme conscincia tica da realidade scio econmica norteia a reviso das regras gerais sobre a formao dos contratos, a garantia de sua execuo eqitativa, bem como as regras sobre resoluo dos negcios jurdicos em virtude de onerosidade excessiva, s quais vrios dispositivos expressamente se reportam, dando medida do propsito de conferir aos contratos estrutura e finalidade sociais. um dos tantos exemplos da socialidade do Direito.

    fcil ver que esta submisso da individualidade representada pela comunho de

    vontades expressa em um contrato pode ser levada a um extremo indesejvel de estender-

    se um vu de paternalismo, ou de dirigismo estatal, por sobre toda a malha de relaes

    contratuais da economia, tal como se o Direito a posto, ou a interpretado, quisesse andar

    frente da realidade social e implantar um novo paradigma contratual um tanto hostil

    economia de mercado. Com efeito, conforme observa Paula Forgioni (op. cit. pg. 17,

    grifos meus):

    Ningum pode ignorar que a santidade do pacto no um cnone interpretativo inafastvel. Mesmo antes da vigncia do Novo Cdigo Civil, institutos como a excessiva onerosidade, a leso, a represso ao abuso do dependncia econmica eram implementados pelos Tribunais...Chega a ser desnecessrio frisar que, por conta desses valores, mitigou-se o dogma identificado com o brocardo pacta sunt servanda. Mas a autonomia privada no desapareceu e continua sendo uma viga mestra do sistema de mercado. ... Nenhuma interpretao de um contrato empresarial ser coerente e adequada se retirar o fator erro do sistema, neutralizando os prejuzos (e os lucros) que devem ser suportados pelos agentes econmicos, decorrentes de sua atuao no mercado. Regra geral, o sistema jurdico no pode obrigar algum a no ter lucro (ou prejuzo), mas apenas agir conforme os parmetros da boa f objetiva, levando em conta as regras, os princpios e as legtimas expectativas da outra parte. ... [Assim] possvel compreender que um ordenamento que em nome da proteo do agente econmico mais fraco neutralize demasiadamente os efeitos nefastos do erro para o empresrio pode acabar distorcendo o mercado e

    15 Miguel Reale O projeto de cdigo civil: situao atual e seus problemas fundamentais So Paulo, Saraiva, 1984, pg. 39 ss.

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    enfraquecendo a tutela do crdito. Em termos bastante coloquiais, o remdio erradicaria a doena, mas tambm mataria o doente.

    neste contexto de dilogo entre a economia e o Direito que se deve definir a

    justa medida de subordinao das individualidades ao todo. Entende-se, conforme j

    observado, que nas relaes assimtricas, includas as do contrato de trabalho e que

    envolvem consumidores, e sujeitas a externalidades, e mesmo genericamente as relaes

    que envolvem no empresrios, que a interferncia externa em um contrato possa ter

    lugar, por exemplo, ao amparo do Artigo 478 do Cdigo Civil caso, evidentemente, os

    requisitos ali dispostos sejam observados. Com efeito, para o economista preocupado

    com a solidez das instituies, em particular no que toca ao ambiente contratual, torna-se

    absolutamente fundamental que o descumprimento de contratos pela via da impreviso

    fique circunscrito a um reduzidssimo conjunto de possibilidades decididamente

    excepcionais a fim de no se criar a um foco de enfraquecimento do enforcement dos

    contratos em geral e, em ltima instncia, da segurana jurdica e do direito de

    propriedade. Com efeito, mundo da globalizao o tema do respeito aos contratos, e

    mesmo a chamada estabilidade de regras (vale dizer, a obedincia aos compromissos

    explcitos e implcitos de poltica econmica, de natureza no contratual, por parte do

    poder pblico), se tornaram crticos para a comparao internacional entre pases na

    mente de investidores e conseqentemente para a as possibilidades de desenvolvimento

    econmico das naes. ampla e crescente a literatura econmica associando a solidez

    da ordem jurdica e o crescimento econmico das naes16. J existem estudos

    econmicos propondo que a incerteza jurisdicional, seja uma das principais causas para

    os juros excepcionalmente elevados praticados no Brasil e o baixo crescimento

    econmico17. claro que na exata medida em que prevalece certa subjetividade no

    tocante ao respeito aos contratos em razo da popularidade da Teoria de Impreviso, ou 16 O trabalho pioneiro neste campo o de Robert Barro Determinants of economic growth: a cross country empirical study Cambidge: MIT Press, 1997, onde se demonstra empiricamente que a varivel rule of law tem importante e significativo efeito de longo prazo no crescimento econmico das naes, cf. pgs. 26-27. Genericamente, o Banco Mundial patrocina pesquisas e estudos sobre o assunto; em http://www1.worldbank.org/publicsector/legal/index.cfm pode-se encontrar muito material sobre a importncia da ordem jurdica para o desenvolvimento. 17 Veja-se Persio Arida, Edmar Bacha e Andr Lara Rezende Credit, interest and jurisditional uncertainty: conjectures on the case of Brazil em Inflation targeting, debt, and the Brazilian experience, 1999 to 2003 coletnea de ensaios organizada por Francesco Giavazzi, Ilan Goldfajn e Santiago Herrera para a MIT Press, Cambridge, 2005.

  • 36

    do dispositivo da Constituio que estabelece a funo social da propriedade (Art. 5,

    XXIII e Art. 170, III), ou do dispositivo do Novo Cdigo Civil enunciando uma funo

    social do contrato (Art. 421), prevalece tambm, e proporcionalmente, a percepo de

    certa subjetividade quando se trata das obrigaes do Estado, que tendem a se refletir nas

    mtricas de risco soberano, e que por sua vez afetam para pior o custo do capital no pas.

    As agncias de classificao de risco soberano Moodys e Standard & Poors avaliam

    negativamente a capacidade de o Tesouro Nacional honrar suas obrigaes. Seguramente

    existe correlao entre as notas baixas para o risco soberano (e os altos spreads

    praticados em mercado) e o ambiente contratual domstico, que, no quesito direitos de

    propriedade tambm recebeu notas baixas no survey anual conduzido pela Heritage

    Foundation em conjunto com o Wall Street Journal - The Index of Economic Freedom

    onde o Brasil aparece na 90 posio numa amostra de 150 pases e a proteo

    propriedade privada no pas descrita como apenas moderada.18 Em rankings

    internacionais especificamente voltados para a qualidade da governana em diversos

    pases, como os regularmente produzidos pelo Banco Mundial19, um de seis atributos da

    boa governana o que a pesquisa define como rule of law. Neste quesito, onde o

    respeito aos contratos figura com o mais absoluto destaque, o Brasil tem um score de

    menos 0,32, numa escala que vai de 2,5 a + 2,5, o que nos coloca no topo do quarto

    quartil, uma posio ruim, como pode ser visto no Grfico 5 abaixo:

    18 Veja-se http://www.heritage.org/research/features/index/countries.cfm. 19 Daniel Kaufmann, Aart Kraay e Massimo Mastruzzi Governance matters III: governance indicators 1996-2002 The World Bank Policy Research Working Paper Series n. 3106, agosto de 2003.

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    Grfico 5:

    Ranking para atributos de governana em 155 pases no quesito rule of law

    Fonte: Kaufmann et alii, op. cit. pg. 50

    Por tudo isso o revisionismo e a subjetividade no respeito aos contratos devem

    ser vistos como prejudiciais aos interesses econmicos do pas. Suas razes so

    profundas; o problema nada tem de novo. O paternalismo contratual deve ser visto

    como resultante da tenso bem descrita pelo antroplogo Roberto Da Matta entre a

    casa e a rua, esta representando o horizontalismo, a impessoalidade de lei e do

    mercado e a universalidade das regras de convivncia social e da cidadania, e aquela

    representando o personalismo, a parentela, o casusmo, o jeitinho, o privilgio e o

    imprio das circunstncias e do caso-a-caso. Conforme ensina o mestre Da Matta20:

    Vivemos numa sociedade onde existe uma espcie de combate entre o mundo pblico das leis universais e do mercado; e o universo privado da famlia, dos compadres, parentes e amigos. uma sociedade que possui formas diferenciadas de definio de seus membros, de acordo com o conjunto de relaes que eles possam clamar ou demonstrar em situaes especficas. Assim, se sou um cidado na festa cvica da Independncia e no comcio poltico, no quero, de modo algum ser apenas cidado quando estou s voltas com a polcia num caso de roubo, ou me vejo tendo que tomar um emprstimo bancrio ... Em outras palavras, h uma forma de cidadania universalista, construda a partir dos papeis

    20 Roberto Da Matta A casa e a rua: espao, cidadania, mulher e morte no Brasil So Paulo, Editora Brasiliense, 1985, pgs. 72-73.

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    modernos que se ligam operao de uma burocracia e de um mercado; e tambm outras formas de filiao sociedade brasileira outras formas de cidadania que se constroem atravs de espaos tipicamente relacionais, dados a partir do espao da casa. claro que, nesse contexto, o revisionismo contratual, ou a interpretao

    socialista ou paternalista do que se entende por funo social do contrato, apela ao

    tradicional e ao relacional, e propenso nacional ao trato subjetivo, pessoal e cordial,

    no sentido dado palavra pelo mestre Sergio Buarque de Hollanda, de qualquer

    controvrsia envolvendo contratos. No caminho contrrio da impessoalidade, o

    paternalismo contratual procura a individualizao, pretende dar poderes a um Juiz

    para sempre reequilibrar um relacionamento abalado pela existncia de um perdedor,

    a priori uma vtima inocente (como se existisse tal coisa nos negcios empresariais),

    geralmente carente de indenizao inclusive pelo Estado, amide o culpado por tudo que

    fracassa no pas. Deve-se ter claro que o paternalismo contratual o correspondente

    microeconmico do que o populismo representa no plano da macroeconomia. Tanto o

    paternalismo contratual, quanto o populismo, so manifestaes de inconsistncia

    entre o falso alvio no curto prazo, geralmente destinado ao hipossuficiente,

    categoria que parecia incluir a todos, e a segurana jurdica necessria para o

    verdadeiro equilbrio nas relaes econmicas. Nesta linha valem as sbias palavras do

    ilustre ministro Eros Grau, a propsito de supostos novos paradigmas quando se trata

    de contratos21:

    Infelizmente, nossa jurisprudncia s vezes se esmera em fazer ruir [o] pressuposto de certeza e segurana, intervindo em contratos privados celebrados entre agentes econmicos que n