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Os espelhos de Ana Clara Mercedes Calvo Ilustrações Fernando Vilela Tradução Fabio Weintraub Temas abordados Espelho • Realidade e fantasia • Poesia GUIA DE LEITURA PARA O PROFESSOR PARA QUE POESIA? POESIA PARA QUEM? Em um mundo acelerado pela informação, a poesia para crianças, sem deixar de divertir, constitui um valioso caminho de conhecimento e autoexpressão. A descoberta dos recursos expressivos da linguagem é uma conquista importantíssima no processo de aquisição e desenvolvimento das capacidades verbais da criança. Ao longo desse processo, o contato com o texto poético consti- tui marco importante, na medida em que fornece à criança meios para decodificar as diferentes estratégias discursivas que povoam, desde sempre, seu mundo em expansão. 48 páginas A AUTORA Mercedes Calvo nasceu em Salto, Uruguai, em 1949. Leitora de poesia desde menina, começou a lecionar para crianças em 1971, e ambas as atividades marcaram sua vida. Em sala de aula, sempre deu especial destaque à linguagem poética, escrevendo sobre o assunto em publicações especializadas. Este é seu livro de estreia. O ILUSTRADOR Fernando Vilela nasceu em São Paulo, Brasil, em 1973. Ilustrador, escritor, designer e arte-educador, é bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre pela Escolade Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA- USP). Por seus livros recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, entre os quais a menção honrosa no Bologna Ragazzi Award, em 2007, por Lampião e Lancelote. Em 2005, participou da Bienal Internacional de Ilustração de Bratislava, na Eslováquia.

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Os espelhos de Ana ClaraMercedes Calvo

Ilustrações Fernando VilelaTradução Fabio WeintraubTemas abordados Espelho • Realidade e fantasia • Poesia

GUIA DE LEITURA

PARA O PROFESSOR

PARA QUE POESIA? POESIA PARA QUEM?

Em um mundo acelerado pela informação, a poesia para crianças, sem deixar de divertir,

constitui um valioso caminho de conhecimento e autoexpressão.

A descoberta dos recursos expressivos da linguagem é

uma conquista importantíssima no processo de aquisição

e desenvolvimento das capacidades verbais da criança. Ao

longo desse processo, o contato com o texto poético consti-

tui marco importante, na medida em que fornece à criança

meios para decodificar as diferentes estratégias discursivas

que povoam, desde sempre, seu mundo em expansão.

48 páginas

A AutorA Mercedes Calvo nasceu em Salto, Uruguai, em 1949. Leitora de poesia desde menina, começou a lecionar para crianças em 1971, e ambas as atividades marcaram sua vida. Em sala de aula, sempre deu especial destaque à linguagem poética, escrevendo sobre o assunto em publicações especializadas. Este é seu livro de estreia.

o ilustrAdor Fernando Vilela nasceu em São Paulo, Brasil, em 1973. Ilustrador, escritor, designer e arte-educador, é bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre pela Escolade Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Por seus livros recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, entre os quais a menção honrosa no Bologna Ragazzi Award, em 2007, por Lampião e Lancelote. Em 2005, participou da Bienal Internacional de Ilustração de Bratislava, na Eslováquia.

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O papel desempenhado pelo texto poético em sala de aula

liga-se ao fato de ele pôr a própria linguagem em questão, li-

bertando-a dos automatismos. Por essa razão, uma poesia “para

crianças” não cumprirá seu papel enquanto subestimar a inteli-

gência do leitor, recorrendo a noções simplistas, a banalizações

de forma e conteúdo, a diminutivos pueris. Concorrendo com a

velocidade do desenho animado, do vídeo e da internet, a poesia

deve ser capaz de recuperar o sabor dos jogos e das brincadeiras,

atentar para temas, experiências e sentimentos que compõem o

universo cada vez mais heterogêneo do leitor mirim, estimulan-

do-o a indagar, a criar e a refletir.

No século XVIII, o filósofo iluminista francês Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778) protestou contra a visão da criança como

adulto em miniatura. A infância, então, passou a ser considera-

da uma etapa essencial do desenvolvimento, da qual dependia

a emergência do cidadão apto a participar plenamente da vida

coletiva.

No mundo contemporâneo, a sociedade da informação e do

mercado impõe a adultização precoce da criança. A poesia re-

presenta nesse contexto um espaço protegido em que é possível

recuperar o sentido lúdico da experiência com a palavra, bem

como fomentar uma abordagem alternativa a sua instrumenta-

lização. Fruto de grande liberdade criativa, a poesia incrementa

a potência fabuladora da criança. Mergulhando-a no frescor da

língua, ajuda a formar leitores ativos, mais habilitados a enfren-

tar a prosa do mundo.

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Os espelhos de Ana Clara Mercedes calvo

FORMAS E TEMAS

A famosa pergunta da madrasta de Branca de Neve serve de

mote a Mercedes Calvo nos versos do poema de abertura de Os

espelhos de Ana Clara. À diferença, porém, da rainha má, Ana

Clara se dirige ao espelho em busca do autoconhecimento. Não

lhe interessa saber “quem é a mais bela”.

A relação entre realidade e fantasia não demora a se colocar.

Os limites entre uma e outra ora estão claros (“O sinal já toca”,

p. 10), ora se embaralham (“A fada que vive no varal”, p. 31), ora

são questionados (“Coruja, serpente”, p. 23). O que se destaca

no conjunto é a riqueza do olhar infantil, que reinventa seres e

coisas a todo momento.

Para dar forma às andanças de Ana Clara, dentro e fora dos

espelhos, Mercedes Calvo não se limita ao uso de versos metrifi-

cados (redondilhas maior e menor, predominantemente), encon-

trando também no verso livre um caminho por onde seguir. Há

ainda brincadeiras visuais, como ocorre em “Com relógios tenho

um caso” (p. 19) e em “Galopa um cavalo” (p. 34), o que ilustra a

diversidade dos recursos compositivos de que se serve a autora.

Examinando a realidade por meio do espelho, Ana Clara atri-

bui-lhe outros sentidos. Não seria esse o movimento da poesia?

Um dos espelhos da menina é justamente a poesia, que revela as-

pectos do real subtraídos à percepção e desperta o desejo de par-

tilhar tais descobertas: “Atenção, não se esqueça:/ são seus olhos.

Anote o que vê. Escreva no vento”.

Olhar o mundo de outro modo, sob outro ângulo é o desafio que

Mercedes Calvo propõe a seu leitor, seja ele criança ou adulto.

MAIS DE PERTO

EspElho, EspElho mEu

Não poderia ser mais simbólica a porta pela qual Ana Clara

acede a mundos paralelos. Em “O sinal já toca” (p. 10), a meni-

na, voltando da escola para casa, se imagina como uma borbo-

leta voando entre as flores do caminho. Os dois primeiros e os

dois últimos versos são como que balizas marcando a fronteira

entre realidade e fantasia. Já em “Vou na beirada de um sonho”

(p. 16), Ana Clara, depois de andar “na beirada de um sonho”,

de cavalgar “na roda do tempo”, de voar “no ar impreciso”, in-

terrompe a fantasia “abrindo janelas”. A questão ressurge em

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Os espelhos de Ana Clara Mercedes calvo

“Coruja, serpente” (p. 23), cujos quatro primeiros versos são for-

mados por substantivos concretos (“coruja”, “serpente”, “toma-

tes”, “casa”, “chafariz”, “salgueiro”) que, no entanto, convertem-se

em elementos da fantasia, como os ogros, as fadas e o príncipe

sapo. Diante disso, protesta a menina: “Que absurda mania/ de

classificar!”. Também nesse poema o espelho aparece como bre-

cha aberta contra os limites da identidade: “Meu espelho, sua/

cara: onde ficam?”.

ANA CLARA E ALICEA relação entre Ana Clara e o espelho traz também à lembrança

a personagem Alice, de Lewis Carroll. Em Através do espelho e o

que Alice encontrou por lá, a menina se bandeia para o plano

da fantasia, para o outro lado do cristal. A aventura termina com

Alice despertando e descobrindo que o que aconteceu dentro do

espelho não passou de sonho. Já em Os espelhos de Ana Clara,

o fim da viagem fica em aberto, como se coubesse ao leitor o

desafio de prosseguir viagem fantasia afora.

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Os espelhos de Ana Clara Mercedes calvo

REcuRsos visuais

Ao longo do livro, não são poucos os momentos em que o leitor

depara com perguntas escritas de modo espelhado. Tal espelha-

mento, em alguma medida, reproduz o estranhamento da menina

diante de uma imagem que, embora familiar, está invertida por

habitar o outro lado do espelho: “Meu coração/ é o seu coração?”

“Se a direita é a esquerda/ o riso daqui/ será choro acolá?”.

Mercedes Calvo também se vale de recursos gráficos para mi-

metizar a ação de alguns verbos. Em “Galopa um cavalo” (p. 34)

por exemplo, ela repete letras (“se espicha, se espiiiicha”) ou uti-

liza maiúscula no meio de uma palavra (“estufa, estUfa”). Em “O

sonho que verdeja a primavera”, as letras do verbo “cair” despen-

cam pela página: “a maçã que c/ a/ i entre as folhas”.

Há um poema em que a autora vai ainda mais longe. Em, “Com

relógios tenho um caso” (p. 19), a disposição dos versos na página,

mais largos em direção às extremidades e estreitos no meio, lem-

bra uma ampulheta. É o que se chama de poema figurado, com-

posição cuja imagem traduz visualmente o conteúdo. Além disso,

a justaposição da ampulheta à ilustração do relógio, na página da

esquerda, põe em cena a temporalidade na própria forma de me-

dir o tempo, que se transforma ao longo da história.

Porém o tempo que dorme “nos relógios, prisioneiro” (p. 4)

nada tem que ver com o tempo do sonho “que não se esgota e

sempre está”. O livro todo tira partido desse confronto entre

tempo subjetivo e tempo físico, os quais coincidem e divergem

como os dois lados do espelho.

TECHNOPAEGNIAA técnica de compor poemas com versos de tamanho desigual

(cuja configuração na página imita o contorno dos objetos neles

tematizados) foi uma invenção da poesia alexandrina e recebeu

o nome de technopaegnia, termo que em grego significa “jogo,

brincadeira ou diversão de arte”. Explica o poeta e tradutor

José Paulo Paes que essa técnica “passou para a poesia latina

com a designação de carmem figuratum – poema figurado ou

emblemático –, alcançou certa popularidade na Renascença,

entrou pelo Barroco adentro, foi estilizada pelos neoclássicos

como manifestação de false wit e teve um avatar moderno nos

experimentos tipográficos dos futuristas e nos caligramas de

Guilherme Apollinaire”.

Ver PAES, José Paulo. O ovo por dentro e por fora. Folha de S.Paulo, caderno Mais!, 27 fev. 1994.

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Os espelhos de Ana Clara Mercedes calvo

cEntElhas do imagináRio

Em “Lanço a pedrinha” (p. 27), brincando com o tradicional

jogo da amarelinha, Ana Clara suspende o tempo e dá vazão ao

imaginário: “Se piso em falso,/ ah, tanto faz./ Sempre se pode/

voltar atrás”. Há nos versos do poema uma cadência (produzida

pela regularidade métrica dos versos tetrassílabos e pelas rimas

consoantes e toantes) que acompanha o ritmo do pula-pula.

A par das brincadeiras infantis, a autora utiliza referências dos

contos de fadas. Além do poema de abertura, que retoma a per-

gunta feita ao espelho mágico pela madrasta de Branca de Neve,

há dois outros em que aparecem elementos desse universo. Em

“A fada que vive no varal” (p. 31), a fada é ao mesmo tempo uma

figura entre elementos do cotidiano (“Protegida do vento/ so-

bre o telhado,/ divide os parapeitos com meu gato”) e um ser

à parte, sobrenatural (“Caso dela eu necessite,/ bem sei que

virá/ se invocar seu nome mágico”). Já em “Veio um sapo ao jar-

dim” (p. 32), a menina, observando o bicho sob a chuva, lamen-

ta não ser ele um príncipe encantado. Aqui, porém, o desejo de

transfiguração da realidade se frustra com a evasão da criatura,

que, no entanto, salta “desde” os olhos da menina. O advérbio

deslocado, ali onde se esperaria um “ante” ou coisa parecida, in-

dica a origem subjetiva do sapo, que se foi como veio, sob um

aguaceiro que talvez também seja irreal.

poEsia E vERdadE

Conforme destacamos, um problema recorrente ao longo

dos poemas de Mercedes Calvo é o da relação entre ficção e

realidade. “Vestiu seu traje de festa/ a realidade” (p. 12), “Retor-

no abrindo janelas/ para que entre a realidade” (p. 16), “Cha-

mam de real/ esta fantasia?” (p. 23), “É real este nome?” (p. 38),

“É realidade ou fantasia?” (p. 40).

Embora questione a “mania de classificar” (p. 23), em vários

momentos ela parece aderir à lógica que distingue aparência e

verdade, desconfiando dos sentidos como fonte de erro e ali-

nhando espelho, sonho, fantasia e linguagem. A flor no espelho é

falsa, “sem cheiro”, ao passo que, no jardim, está o jasmim “ver-

dadeiro” (p. 9).

Tais distinções, no entanto, são complicadas, pois a repre-

sentação poética é, ao mesmo tempo, aparência e verdade, ima-

gem e realidade, já que as palavras são elementos concretos,

com peso e materialidade próprios. Novalis (1772-1801), poe-

ta romântico alemão, afirma em seus Fragmentos que, “quanto

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mais poético, mais verdadeiro”, querendo designar com a poe-

sia uma espécie de real absoluto que não se evade do mundo,

antes o inaugura.

Por outro lado, pensando na “flor sem cheiro” de Mercedes

e insistindo na distância entre signos e coisas, é possível lem-

brar também a referência feita pelo simbolista francês Stéphane

Mallarmé (1842-1898) à flor “ausente de todos os buquês”, a pa-

lavra “flor”.

Mais perto de nós, Manuel Bandeira (1886-1968) explorou

de modo notável os conflitos entre coisa e representação em

“A realidade e a imagem” (ver boxe abaixo). A despeito da apa-

rência de neutralidade, de descrição objetiva, fotográfica de uma

cena urbana, o poema cria uma relação teórica entre a indetermi-

nação do título e os versos. A imagem refere-se apenas ao reflexo

do prédio na poça? As polaridades criadas pelo poeta (subida

× descida, pureza × lama, verticalidade × horizontalidade) des-

dobram a oposição do título e deslocam a percepção, incluindo

na imagem outros elementos além do reflexo (o edifício, o chão

e mesmo as pombas) ou, inversamente, extraindo realidade das

distinções que elas operam.

A REALIDADE E A IMAGEMO arranha-céu sobe no ar puro que foi lavado pela chuva

E desce refletido na poça de lama do pátio.

Entre a realidade e a imagem, ao chão seco que as separa,

Quatro pombas passeiam.

Manuel Bandeira, em "Belo belo" (1948).

Em Os espelhos de Ana Clara, transformações semelhantes

ocorrem, apresentando a realidade sob novos ângulos. Em “Este

sino” (p. 38), o sino perde seu peso e se converte em algo “mui-

to leve, cristalino,/ com graça voadora de cristal”. O objeto se

transforma aos olhos de quem lê. Não bastasse isso, a menina

pretende chamá-lo de “véu”. Ana Clara perce-

be, assim, a elasticidade da palavra em

sua dimensão simbólica, reinven-

tando, por conseguinte, o que

nomeia.

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Os espelhos de Ana Clara Mercedes calvo

dEpois dE tudo: o fim?Ao chegar ao último poema do livro, o leitor é surpreendido.

Em vez de um ponto final, Mercedes Calvo encerra com dois-pon-

tos e o anúncio de uma pergunta, que não chega a ser feita. Qual

seria o sentido disso? Algumas hipóteses podem ser levantadas.

O livro começa e termina com perguntas. Será que a pergunta

final não aparece por ser apenas uma variação das questões feitas

ao longo do livro (O que é a realidade? Onde está? Como ela se

distingue da fantasia? O que é o tempo? O que é a poesia)? A per-

gunta final não aparece porque o espelho, a quem se dirige Ana

Clara, quebrou-se? (Mas isso já não havia acontecido na página

24, no poema “Sete anos de desgraça”?) A pergunta não aparece

porque a encobre o barulho do vento e da rebentação?

Várias são as possibilidades de interpretação desse final em

aberto, mas é certo que tal escolha sacode o leitor, exigindo dele

uma postura mais ativa, da qual dependerá o acender de uma

nova luz, de uma nova página. Trata-se de um fim que engendra

um começo e que, de certa maneira, liberta o leitor da prisão

especular (todo livro não é também um espelho onde o leitor

se mira?), entregando-o à movimentação dos espaços abertos,

ao vaivém das ondas e do vento. É como se a autora contivesse

seu voo para ceder espaço à asa alheia, incentivando o leitor a

construir a própria história, redescobrir o mundo e reinventar

a realidade.

VERSO E REVERSO

Com a leitura do livro de Mercedes Calvo, o professor dispõe

de uma série de elementos passíveis de exploração em sala de

aula. São sugeridas a seguir algumas atividades nesse sentido.

dE tRás paRa fREntE

Sabemos que em algumas páginas do livro os versos estão

espelhados, cabendo ao leitor decifrá-los. O professor pode

aproveitar esse recurso para introduzir a noção de palíndromo,

isto é, uma frase ou palavra cuja leitura da esquerda para a di-

reita e em sentido inverso é coincidente. O ideal é começar com

palavras simples, como “ovo”, “ama”, “osso”, “socos”, “reviver”,

“sopapos”. Os alunos serão incentivados a criar listas de pala-

vras palindrômicas, com número crescente de letras. Depois

das palavras isoladas, o professor pode apresentar frases curtas,

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como “A vaca cava”, “Assam a massa”, “A sacada da casa”, expli-

cando que, em um palíndromo frasal, desconsideram-se os es-

paços entre palavras, bem como os acentos e sinais de pontua-

ção. Das frases curtas, passa-se a orações mais longas, como

“Anotaram a data da maratona” e a clássica “Socorram-me!

Subi no ônibus em Marrocos”. É possível falar ainda dos palín-

dromos “insensatos”, sem sentido, em que a única exigência é

agrupar palavras legíveis de trás para frente (como “Olé! Mara-

cujá, caju, caramelo”), e de composições mais complexas, como

o quadrado Sator, estrutura com cinco palavras em latim que

podem ser lidas não apenas da esquerda para a direita, mas

também de cima para baixo. Trata-se de uma composição mui-

to antiga, inscrita em vários acha-

dos arqueológicos da Europa, o

mais antigo deles na cidade de

Pompeia, nas escavações de um gi-

násio. A tradução aproximada da

composição seria “O semeador

(sator) Arepo (nome próprio)

mantém (tenet) a charrua (opera)

nos sulcos (rotas)” ou “O Criador

(metaforicamente designado pela imagem de quem semeia)

mantém nos eixos sua obra/sustém o mundo na órbita”.

Talvez também seja possível apresentar aos alunos algumas

canções brasileiras feitas a partir de palíndromos, como “Relp”,

de José Miguel Wisnik, em cuja letra encontram-se alguns pa-

líndromos inventados pela filha do compositor, Marina Wisnik,

como “lá vou eu em meu eu oval”, “ser cor e ser ocres”, “oi, rato

otário” e “só dote, dádiva é a vida de todos”. A canção faz parte

do CD independente São Paulo Rio, de 2000, e pode ser escutada

na voz do autor em http://youtu.be/hVw34h3eY_Y. A letra está

disponível em http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/

jose-miguel-wisnik/relp/2253927

Por fim, após tantos exemplos, propõe-se aos alunos um exer-

cício de produção textual com palíndromos. Valem poemas, car-

tazes ou mesmo canções.

S A T O RA R E P OT E N E TO P E R AR O T A S

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poEsia visual

Outra atividade passível de desenvolvimento em

sala de aula refere-se ao estudo dos recursos gráficos em

poemas figurados antigos, em experimentos das vanguardas

europeias e nos poemas do concretismo brasileiro. Pesquisan-

do na internet e em antologias de poesia visual, os alunos cons-

tituirão eles mesmos uma pequena amostra com poemas de

diferentes épocas. O professor pode dar o pontapé inicial apre-

sentando à classe poemas como “O ovo”, de Símias de Rodes (ou

“A flauta”, de Teócrito), “A chuva”, de Guillaume Apollinaire, e

algum poema de Augusto de Campos. A pesquisa fornecerá sub-

sídios para que os alunos elaborem composições semelhantes,

quem sabe em programas de computação gráfica, explorando

diferentes tipologias, variações no corpo e na cor das letras etc.

da palavRa à imagEm

As ilustrações de Fernando Vilela são outro estímulo poderoso

ao trabalho em sala de aula. Investigar a relação entre elas e os

poemas pode ampliar a compreensão sobre o livro. Com o auxílio

do professor de artes, os alunos devem ser orientados, inicialmen-

te, a compreender algumas das técnicas utilizadas pelo ilustrador

(xilogravura, nanquim, aguada), a escolha de cores (preto, azul e

magenta), bem como algumas escolhas interpretativas em relação

ao texto. Uma das questões recorrentes ao longo dos versos é a

da identidade posta em xeque pelo reflexo. Fernando Vilela soube

explorá-la, por exemplo, nas páginas 7 e 22, em que o reflexo no

espelho difere do objeto diante dele, seja por uma mudança de cor

(p. 7), seja por uma alteração mais radical, em que a menina com

coruja vira uma espécie de princesa ou fada, com coroa e varinha

mágica (p. 22). Outro ponto interessante de observar são as so-

breposições de elementos, que ocorrem nos versos e nas imagens,

como nas páginas 34 e 35, em que trem, cavalo e galinha se fun-

dem na mesma ilustração.

Depois de chamar a atenção da turma para esses aspectos, o

professor, escolhendo alguns dos poemas, estimulará os alunos a

criar outras ilustrações. Isso lhes possibilitará retornar aos versos

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e avançar em outras direções. Por fim, as ilustrações assim pro-

duzidas comporão uma mostra de artes, a ser exibida no mural

da escola.

fábula E cotidiano

São muitos os poemas nos quais o universo dos contos de

fadas está presente. Mercedes Calvo retoma elementos desse

universo, como fantasmas, fadas, ogros, bruxas, misturando-

-os ao cotidiano de Ana Clara, que encontra neles um modo de

transformar o mundo a seu redor. Usando como exemplo os

poemas “Quando cai a chuva” e “A fada que vive no varal”, ou

ainda “Galopa um cavalo”, o professor orienta a turma a trans-

formar uma experiência do cotidiano em algo fabuloso. Assim,

os alunos devem tomar como base um fato prosaico, intro-

duzindo nele elementos que o façam transitar para a fantasia.

Dessa maneira, são elaboradas breves narrativas. Num segundo

momento, o professor escolhe algumas delas para leitura em

voz alta, talvez com o apoio de recursos cênicos, como cenário,

roupas, objetos e sonoplastia.

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OUTRAS VIAGENS

• LIVROS

paRa o pRofEssoR

MENEZES, Philadelpho. Roteiro de leitura: poesia concreta e visual. São Paulo: Ática, 1998.

Excelente reflexão sobre a poesia concreta e visual brasilei-ra, acompanhada de diversos exemplos e análises úteis para

utilização em sala de aula.

paRa o aluno

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice: No país das maravi-lhas. Através do espelho e o que Alice encontrou por lá e outros textos. 9. ed. Rio de Janeiro: Summus Editorial, s/d.

Reunião das histórias de Alice traduzidas e apresentadas pelo poeta Sebastião Uchoa Leite. Acompanham os contos

cartas do autor e fotografias, entre outras coisas.

CRUZ, Nelson. Alice no telhado. São Paulo: Edições SM, 2010.

Cruz recupera os personagens de Lewis Carroll deslocando- -os de cenário. Aqui Alice se engaja numa perseguição portelhados de casas simples, encarapitadas no morro, quelembram o padrão de urbanização presente na periferia de

grandes cidades brasileiras.

LORCA, Federico García. Meu coração é tua casa. São Paulo: Comboio de Corda, 2007.

Cuidadosa seleção para crianças de poemas do autor de Ro-manceiro gitano (1928). Nesses poemas, destaca-se, entre outros aspectos, uma relação mais livre com o tempo, que em Lorca, como em Calvo, não quer ser “prisioneiro nos relógios”. “Oh,

poeta infantil,/ quebra o relógio”, propõe o gênio andaluz.

• CDNa rua agora (2012), de Marina Wisnik.

A jovem poeta obcecada por palíndromos explora nas can-ções de seu CD de estreia um jogo especular semelhante, conforme ela mesma explica: “De maneira não proposital, essas frases que vão e voltam – e tratam do espelhamento no conteúdo e na forma – estruturaram também as músicas. São mantras, com melodias simples, que se repetem, tentan-do pensar as relações do mundo entre o eu e o outro”.O CD está disponível para download gratuito em http://www.

amusicoteca.com.br/?p=6141. Acesso em: 25 mar. 2012

Elaboração do guia Carlos FrederiCo Barrère Martin (doutorando em Letras peLa FacuLdade de FiLosoFia, Letras e ciências Humanas da universidade de são pauLo); prEparação FaBio WeintrauB; rEvisão MarCia Menin; diagramação aM Produções