os escravos e o imaginário social: as imagens da ... · de questões e reacendeu o debate em torno...

93
Os Escravos e o Imaginário Social: As Imagens da Escravidão Negra nos Jornais de São Luís (1830-1850) Esmênia Miranda Ferreira

Upload: lamanh

Post on 08-Oct-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Os Escravos e o

Imaginário Social:

As Imagens da

Escravidão Negra nos

Jornais de São Luís

(1830-1850)

Esmênia Miranda

Ferreira

1

CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

ESMÊNIA MIRANDA FERREIRA

OS ESCRAVOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL: AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃO NEGRA NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS (1830-1850)

São Luís 2007

2

ESMÊNIA MIRANDA FERREIRA

OS ESCRAVOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL: AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃO NEGRA NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS (1830-1850)

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito para obtenção do grau de licenciatura em História.

Orientadora: Profª. Drª. Adriana de Souza Zierer.

São Luís 2007

3

Ferreira, Esmênia Miranda.

Os escravos e o imaginário social: as imagens da escravidão negra nos jornais de São Luís (1830-1850) / Esmênia Miranda Ferreira. – São Luís, 2007.

91 f.

Monografia (Graduação) – Curso de História – Universidade Estadual do Maranhão, 2007.

1. Escravo 2. Imaginário 3. Jornais. 4. São Luís I. Título.

CDU: 94(812.1).056

4

ESMÊNIA MIRANDA FERREIRA

OS ESCRAVOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL: AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃO NEGRA NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS (1830-1850)

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito para obtenção do grau de licenciatura em História.

Aprovado em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________ Profª. Adriana Maria de Souza Zierer (Orientadora)

Drª. em História Medieval – UFF

________________________________________________________

1° Examinador

_______________________________________________________ 2° Examinador

5

À Deus, o grande Pai da Criação de quem tudo nos foi dado.

6

AGRADECIMENTOS

A minha mãe, Esmeralda Rodrigues Miranda Ferreira pelo exemplo de mulher

que soube com honra e honestidade encarar as batalhas da vida.

A minha irmã, Estefânia Miranda por ter agüentado os momentos de

aborrecimento e azedume, característico de um orientando, e ao meu sobrinho Cauã Ferreira

por quebrar com seus sorrisos estes mesmos momentos.

A Sandro Ribeiro, meu companheiro de todas as horas que fez acordar em mim

sentimentos jamais despertados.

Aos meus amigos de Curso, com os quais dividi os melhores momentos da vida

universitária. Em especial Eloy Barbosa e Edyene Moraes, dupla dinâmica que sempre me

iluminou com sabedoria, aos amigos Lívio Bruno, Carol, Luana e Camila sempre presentes

nesta fase da vida.

Aos professores do Curso de História da UEMA que contribuíram para minha

formação e para aquilo em que hoje acredito. Em especial, ao professor Marcelo Galves, pelo

seu humor irônico que me fez ver a História de forma mais crítica e bem-humorada; à

professora Elizabeth Abrantes pela compreensão e apoio nos momentos de (in)definição do

meu objeto de estudo; à professora Adriana Zierer, por me aceitar orientar e não me fazer

desistir de uma pesquisa que se apresentava cheia de obstáculos.

7

"[...] a cobertura ideológica não engana ninguém,

ela convence apenas os convencidos, o 'homo

historicus' não se deixa curvar pelos argumentos

ideológicos de seu adversário quando seus

interesses se encontram em jogo."

George Duby

8

RESUMO

A Província do Maranhão se destacou no século XIX pela sua economia agro-exportadora que

tinha suas bases alicerçadas no trabalho escravo e também pela sua produção impressa,

jornalismo e seus letrados que juntos formavam a “inteligência maranhense” e foram

colaboradores do sistema ideológico de dominação que definia os papéis sociais e o lugar de

cada indivíduo na sociedade. O período de duas décadas que separa as Leis de ilegalidade e a

de extinção do tráfico de escravos africanos para o Brasil poderia até não ser discutida nos

jornais ludovicenses por questão de conveniência, mas os escravos não deixaram de ser alvos

dos mais variados juízos de valor quando, no fundo, se temia o fim da reposição da mão-de-

obra escrava e sentia-se a perda de legitimidade do sistema. A presente pesquisa constitui-se

num estudo das imagens forjadas sobre os escravos e suas atitudes, analisando como essas

encontraram força no consenso social e consolidaram-se no tempo.

Palavras-chaves: Escravo. Imaginário. Jornais. São Luís.

9

SUMMARY The Province of the Maranhão if detached in century XIX for its economy agro-exporter who

also had its bases construed in the eslaved work and for its production printed, journalism and

its scholars who together formed "maranhense intelligence" and had been collaboration of the

ideological system of domination that defined the social papers and the place of each

individual society. The period of two decades that separates the laws of illegality and of

extinguishing of the traffic of African slaves for Brazil could until not being argered in

ludovicenses periodicals for convenience question, but the slaves had not left of white of

being varied value judgments when, in the deeps one, if he feared the end of the replacement

of the enslaved man power and felt it loss of legitimcy of the system. A research consists in a

study of the images forged on the slaves and its attitudes, analyzing as these had found force

in the social consensus and had been consolidated in the time.

Word-Keys: Slave. Imaginary. Periodicals. Sant Louis.

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................ 11

1 INTELECTUALIDADE E IMPRENSA MARANHENSES: OS

ASPECTOS EM COMUM .............................................................................. 15

2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR E A MOBILIDADE ESCRAVA NAS

“RACHADURAS” DA IDEOLOGIA LIBERAL-ESCRAVISTA ................. 28

3 SÃO LUIS ENTRE A BARBÁRIE E A CIVILIZAÇÃO ............................ 42

4 A FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO LUDOVICENSE ............................... 49

4.1 As imagens mais constantes do escravo nos jornais .................................. 53

4.2 “Inimigo social”: as imagens dos escravos mediante a segurança

pública ........................................................................................................ 61

4.3 “Jogo dos contrários”: as imagens dos escravos mediante os projetos de

imigração européia ........................................................................................... 71

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 86

REFERÊNCIAS................................................................................................. 88

11

INTRODUÇÃO

O sistema de cotas para negros nas universidades públicas brasileiras adotado pela

primeira vez em 2001 pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro trouxe a tona uma série

de questões e reacendeu o debate em torno do preconceito racial no Brasil, explicitando ainda

mais os conflitos sociais e as tensões raciais existentes em nosso país. O mito da democracia

racial e a utopia de uma sociedade misturada caem por terra com as discussões provenientes

da política de cotas, incentivando uma reflexão sobre o que é 'ser negro no Brasil'?

Responder a esta pergunta não é tão fácil assim, requer um entendimento sobre a própria

construção do racismo ao longo da nossa história. Para encontrar respostas às estas questões

tão presentes e a outras que fazem parte no nosso cotidiano se torna necessário vasculhar os

baús do passado.

Entendemos o preconceito racial como uma construção histórica e social forjada

pela sociedade escravista para definir, separar e hierarquizar categorias sociais. A imagem do

negro e do escravo foram tão diluídas ao ponto de, passados mais de um século, o negro

continuar absorvendo os preconceitos e estereótipos que eram renegados ao escravo. Por isso

a intenção desta pesquisa é compreender em que momento negro e escravo se tornam um só, o

porquê de até hoje as imagens relacionadas ao escravo se perpetuaram na figura do negro que

continua a ser relacionado à violência, à falta de caráter, à sensualidade e está tão presente na

mentalidade e expresso na linguagem coloquial, que mesmo quando as pessoas querem

mostrar que não são preconceituosas.

Podemos dizer que o tema da escravidão negra nunca 'sai de moda', pois não só a

renovação metodológica, diversificação de técnicas e a revisão das fontes usadas pelos

estudiosos do assunto, mas também a própria evolução social não permite que se esgotem as

questões que podem encontrar respostas nas características de uma instituição que perdurou

por mais de três séculos no Brasil, além de que uma nova reflexão do objeto pode fazer a

diferença de um trabalho. Por isso a produção historiográfica acerca desse assunto é cada vez

mais vasta e sua dinâmica tem possibilitado uma visão mais abrangente sobre as

conseqüências da instituição escravista na sociedade brasileira.

Dessa forma, para responder às questões por nós levantadas a partir da análise das

diferentes imagens criadas sobre os escravos e suas atitudes, durante os anos de 1830 a 1850,

levamos em consideração a constituição dos discursos proferidos pelos jornais de São Luís na

primeira metade do século XIX e como eles contribuíram na formação do imaginário social

12

sobre os escravos negros, no momento delicado das discussões sobre a ilegalidade e extinção

do tráfico de escravos africanos para o Brasil.

A imprensa, em especial os jornais que na visão de Duby(1995) se perfazem em

instrumentos culturais capazes de traduzir em formas duráveis uma visão de mundo e que é

privilégio de um grupo específico, tem sido cada vez mais utilizada como fonte de informação

histórica. Não apenas por se constituir nesse poderoso instrumento de construção e divulgação

de idéias e imagens numa dada sociedade, mas também pelo seu poder de manipular

interesses e intervir na vida social. Não por menos denominada de ‘o quarto poder’, a

imprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados de

discursos e ideologias que expressam o movimento de idéias circulantes numa determinada

época e interagem na complexidade de um contexto histórico e social.

Vainfas (1997) sugere que para se analisar um discurso é importante compreender

as condições de produção, as condições de circulação e as condições de reconhecimento e,

seguindo esta 'receita' refletimos sobre o momento sócio-econômico que passava a cidade de

São Luís, sem esquecer a indefinição política, pela qual enfrentava a Província do Maranhão

no período pós-independência e que completava o cenário onde se desenvolveu a imprensa

maranhense, fator que favorecia e até incentivava essa produção e por fim, perceber o

consenso ou as contradições existentes entre o proferido e o mentalizado.

Para a elaboração desta pesquisa, utilizamos como metodologia o estudos dos

jornais O Publicador Oficial, o Chrônica Maranhense, O Publicador Maranhense e o

Progresso por terem sido os jornais de circulação mais constante e mais significativos da

primeira metade do século XIX. Utilizamos ainda a historiografia referente ao assunto, e os

romances: O Cativeiro, de Dunshees de Abranches (1992), O Mulato, de Aluízio Azevedo

(2002), e Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1988). Nestas obras seus autores abordam não

só a sociedade maranhense escravista e seus preconceitos, como permitem analisar a

influência dos intelectuais na consolidação das idéias das classes dirigentes.

Sandra Pesavento (2004) diz que o imaginário é percebido na relação do texto

com o contexto, por isso no primeiro capítulo do trabalho daremos destaque aos aspectos em

comum entre a formação da intelectualidade e a consolidação da imprensa maranhense, não

só para compreender o ‘lugar da fala’, mais também para analisar de que forma os periódicos

ludovicenses dominados pelos intelectuais-jornalistas representaram os interesse da classe

proprietária de terras e escravos e foram usados como meios de reprodução e legitimação do

sistema escravista.

13

No segundo capítulo, analisamos a teoria liberal que inaugurou o século XIX, a

forma como os liberais maranhenses adequaram-na aos interesses escravistas e as

conseqüências desse suposto paradoxo, que possibilitou a mobilização da massa popular, os

levantes de escravos, e por vários momentos alertou as elites dirigentes dos perigos de uma

abertura liberal dentro do sistema escravista.

No terceiro capítulo, especificamos o recorte espacial da pesquisa ao falarmos da

cidade de São Luís, que além do espaço físico, é o lugar da prática social, onde se

desenvolvem as relações cotidianas, o que nos permite avaliar as transformações que a

relativa prosperidade material vai provocar, não só no perfil urbano de São Luís, mas vai ser

determinante na formação de novos padrões e valores sociais, o qual a sua imposição por

muitas vezes vai gerar conflitos entre o ideal de civilização que se pretendia imitar e as

características de uma cidade eminentemente escravista.

Por fim, o quarto capítulo que é subdividido em outros três tópicos. São três

subconjuntos de imagens que se relacionam aos temas mais correntes nos jornais pesquisados.

Optamos por não analisar imagens específicas de cada seção dos jornais, pois as variadas

seções que contém mensagens e incentivam a criação de imagens sobre os escravos, tem uma

ligação muito forte entre si, tal como peças de um quebra-cabeça, podendo assim, juntas,

formarem uma ou mais imagens ou uma seção reafirmar a imagem já forjada anteriormente.

Essa opção se fez também, pelo fato de não acharmos em nossa pesquisa grandes

artigos que tratassem especificamente da escravidão, afinal em meados do século XIX o

sistema escravista estava tão diluído e era tão proveitoso para a sociedade maranhense que as

características da escravidão e as condições dos escravos não apareciam enquanto tema a ser

questionado ou debatido, mesmo no período de grandes discussões com o possível fim do

tráfico de escravos, parecia que não se tinha o que discutir sobre a legitimidade do regime.

Entretanto preferimos acreditas que o silêncio ou o ‘não-dito’ deixa a entender muita coisa, ou

porque não se fala num assunto que incomoda, ou por está tão assimilado como verdade ou

natural, que realmente não tinha o que se questionar.

As imagens mais comuns ou consensuais sobre os escravos presentes nas falas dos

jornais, referem-se aos juízos de valor que revestem o escravo, dentro de uma ótica moralista

e preconceituosa; o outro conjunto de imagens trata do escravo como uma ‘questão de

polícia’, presente na legislação, nos códigos de posturas da cidade e nas estatísticas criminais;

e por último, quando aparecem os primeiros projetos imigrantistas, tanto o escravo quanto o

negro passa ter suas qualidades comparadas ao branco, não somente como trabalhador e sim

enquanto agente civilizador e do progresso da Nação.

14

Nossa intenção ao estudar a escravidão no imaginário social de São Luís, não é só

apresentar as formas como a sociedade ludovicense do oitocentos via o escravo, mais

importante para nós é compreender em que momento e baseado em quê essas imagens se

formaram, e como elas se cristalizaram ao longo do século, se tornando armas em potencial

do preconceito social no Brasil.

15

1 INTELECTUALIDADE E IMPRENSA MARANHENSE: OS ASPECTOS EM

COMUM

A vida social e econômica do Maranhão alterou-se significativamente após a

instalação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão no final do século XVIII.

Houve um surto econômico que permitiu ao Maranhão desenvolver uma economia de

exportação e alcançar o nível das capitanias mais ricas da Colônia. O desenvolvimento das

plantações de algodão veio atender às necessidades de matérias-primas das máquinas inglesas

num período em que a maior fornecedora desse gênero, os Estados Unidos, estava em luta

pela sua independência.

Segundo Maria Januária Vilela Santos (1983), esse boom algodoeiro

acompanhado das plantações de arroz, da criação de gado e do comércio de couro ainda foi

sentido pelas duas primeiras décadas dos oitocentos, quando começou a entrar em decadência

devido a fatores tais como a falta de melhoramentos técnicos, a concorrência de outros

mercados, a queda dos preços do algodão e as dificuldades do mercado de exportação, além

do alto preço dos escravos que formavam a principal mão-de-obra da época, e que após a

extinção da Companhia, que também era responsável pelo fornecimento da mão-de-obra

africana, o negócio passou a ser feito diretamente com traficantes que, sem fiscalização

nenhuma, impuseram excessivos preços, dada a importância dos escravos para os agricultores

maranhenses.

Os anos seguintes até o surgimento e incentivo à empresa açucareira, a partir de

meados de 1840, o Maranhão vive um período de transformações econômicas e de redefinição

das relações sociais, bem como passa por uma seleção de valores que guiarão essa nova

sociedade. O escravo também terá lugar nessas mudanças, visto cada vez mais como símbolo

de opulência e prestígio social para quem os possuía.

A forma de produção baseada no trabalho escravo do negro é que vai definir as

relações sociais no Maranhão oitocentista, as quais eram rigidamente divididas e

hierarquizadas de acordo com a condição jurídica e econômica das pessoas. No entanto, em

nossa análise, não limitaremos esse conjunto social simplesmente entre aqueles que tinham

posses ou eram despossuídos, quem era livre ou era escravo, pois há uma complexidade bem

maior nessa sociedade.

Porém, podemos afirmar que quem tinha poder econômico detinha mais

facilmente o poder político e aqueles que ficavam à margem das decisões políticas geralmente

16

eram designados como o ‘povo’, e ainda havia uma numerosa população escrava que não

tinha direito algum, mas que nem por isso ficou fora das transformações do período.

A maioria da população maranhense era composta de escravos, correspondendo a

mais 70% do total, entre os anos 1819 e 18211. Essa superioridade numérica foi sentida de

forma mais intensa nos anos seguintes, quando “ [...] essas infortunadas criaturas mais cedo

ou mais tarde teriam de vir influenciar sobre a sociedade que supusera explorá-las apenas

como bestas de carga.” (ABRANCHES, 1992, p. 44). Proféticas pareciam ser as palavras de

D. Martinha, espanhola que residira em São Luís nos momentos de maior agitação política e

social da Província maranhense2, percebendo que além das convulsões políticas havia um

intenso conflito social que não demoraria a eclodir e a denunciar as contradições do regime

escravista.

Politicamente, as tensões entre as elites regionais e locais que já marcaram outros

episódios nas décadas antecedentes e caracterizaram as lutas entre portugueses e nacionais se

mantiveram vivas e, pelos anos de 1830, se agrupavam em dois partidos: os conservadores

chamados Cabanos e os liberais mais conhecidos como Partido Bem-te-vi. Ideologicamente

essas facções políticas que se formaram a partir das camadas sociais enriquecidas no final do

século XVIII, viviam uma indefinição política, que tinha em comum a criação de uma

consciência nacional que se calcava no ódio aos portugueses.

Esses conflitos atingiram seu ápice durante o governo cabano de Vicente

Camargo em 1837, quando foram aprovadas duas leis de caráter centralizador pela

Assembléia provincial do Maranhão – a Lei dos Prefeitos e a Lei das Guardas Nacionais –

que estendia o poder do presidente da Província por todo o interior do Maranhão,

formalizando uma ligação direta do poder policial ao governo e anulando, assim, qualquer

participação dos fazendeiros do interior, principais colaboradores dos Liberais.

Para neutralizar qualquer manifestação, através de projetos por parte dos Bem-te-

vis, foi reforçado o recrutamento indiscriminado de forma sistemática e arbitrária, que apesar

de já existir, pelas circunstâncias desse período, ficou conhecido popularmente como ‘tempo

do pega,’ colocando nas fileiras das Guardas Nacionais muitos dos dependentes que estavam

ligados aos fazendeiros do interior. Medida que afetava indiretamente os fazendeiros, que

1 Dados referentes às anotações de viajantes estrangeiros que fizeram suas observações sobre o Maranhão nas primeiras décadas do século XIX, em especial Maria Graham, que apesar de não ter visitado a região, tem seus dados corroborados por Frei Francisco Nossa Senhora dos Prazeres que escreveu que “O número de cativos é para o dos livres como 2 para 1 pelo menos.” (CALDEIRA, 1991, p. 19-20). 2 D. Martinha Alonso Veado Alvarez de Castro foi a esposa do português Garcia de Abranches grande intelectual dos primórdios da imprensa maranhense e avó do escritor Dunshee de Abranches e que residiu em São Luís nos tumultuados anos do pós-independência e também no período da Balaiada.

17

perdiam poder sobre sua clientela e diretamente as camadas populares, que se tornaram alvo

nas intrigas entre os poderosos.

Os escravos, por sua vez, sentiram o impacto desse conflito. Muitos aproveitaram

para se rebelar contra seus senhores, para fugirem das fazendas e para, à sua maneira,

contestar contra as condições em que viviam. Muitos deles engrossaram as fileiras dos

rebeldes balaios, mas a presença escrava só foi sentida um ano depois, em 1839, quando

Cosme Bento das Chagas iniciou uma insurreição em algumas fazendas do interior, facilitada

pela evasão de famílias inteiras para a Capital.

Pela composição social da Balaiada, com livres e escravos, pode-se perceber que

apesar de os balaios e os escravos liderados por Cosme não terem o mesmo ideário, as

motivações nasceram do mesmo aglutinado de transformações pelo qual passava a sociedade

maranhense. Corroborando com Mathias Assunção que afirma o fato do tema da escravidão

nunca ter sido colocado como reivindicação pelos rebeldes balaios, entretanto, ter a presença

escrava nas fileiras dos rebeldes não foi totalmente um incômodo (ASSUNÇÃO, 1998).

Porém, Maria Januária Santos (1983) coloca que a dinâmica do movimento determinou

mudanças no comportamento de seus participantes o que possibilitou a aproximação dos

balaios com as motivações da insurreição dos escravos nos momentos finais da revolta

quando a Balaiada já agonizava, mas que desde o início do movimento, houve a rejeição do

escravo e a total despreocupação com a sorte deles.

O letramento da elite maranhense foi um destaque na primeira metade do século

XIX. Os viajantes estrangeiros que passaram por aqui já retratavam o costume das famílias

enriquecidas de mandarem seus filhos completarem seus estudos na Europa, preparando-os

para futuramente ocuparem os cargos administrativos da Província. A partir do final da

década de 1830 o Maranhão passa por um deslumbramento cultural decorrente da euforia

econômica da agro-exportação, passando a cultivar o gosto pelas artes e a adotar um modelo

de comportamento e de valores que seria responsável por conferir à Província maranhense

uma singularidade que a destacaria no cenário nacional. As habilidades refinadas de escrita e

leitura vão estar presentes não só na literatura, mas também na imprensa que se dizia na época

uma das mais brilhantes do Império.

As gerações de 1820 em diante receberam uma formação européia, coimbrã, britânica ou francesa, prevalecendo, contudo, os hábitos parisienses. Uma nova mentalidade daqueles jovens em retorno ao Maranhão permitiu a implantação de certo comportamento europeu. (LACROIX, 2002, p. 52).

Todas essas transformações possibilitaram a projeção da Província no âmbito

intelectual e um envaidecimento da intelectualidade maranhense que aos poucos cria o mito

18

da Atenas Maranhense3. Entretanto, toda essa prosperidade econômica e cultural só foi

possível graças ao sistema escravista que possibilitou o enriquecimento de uns poucos à custa

da exploração do trabalho de muitos. Como bem enfatiza Rossini Corrêa (1993, p. 116):

Os alicerces, as paredes e os telhados das casas-grandes e dos sobrados nasceram da exploração da força dos escravos, responsáveis principais pela produção econômica, de resultados financeiros concentrados no senhoriato, no usufruto ostensivo da opulência e no pagamento da educação européia aos descendentes privilegiados.

No Maranhão o florescimento cultural, tido como conseqüência do crescimento

econômico, esclarece a ligação da intelectualidade maranhense com os interesses senhoriais

que ia muito além do simples fato daqueles serem provenientes destes. Rossini Corrêa (1993)

nos fala de dois poderes que se complementam: o material e o cultural. Para este autor, os

ganhos das lavouras de algodão e arroz foi o sustentáculo para a formação dos intelectuais

maranhenses, enquanto estes davam à classe senhorial sua pena, sua representação política e

administrativa e, com o poder da palavra combatiam qualquer tipo de oposição e defendiam o

seguimento ao qual estavam vinculados, garantindo o lugar dessa classe na organização do

Estado Nacional. Coube aos 'intelectuais' da oligarquia maranhense fazer exalar os ares

aristocráticos que encobriam a elite da Província.

Só dentro desse jogo de interesses sobreviveu o liberalismo dos intelectuais, numa

sociedade escravista como a maranhense, apagando as contradições das teorias européias –

seio da intelectualidade maranhense – com as práticas reais. As teorias progressistas e

possíveis subversões nunca foram ameaça ou sinal de ruptura da estrutura social vigente,

sendo prova disso os vários anúncios que encontramos nos jornais, em que não era raro

encontrar o nome de alguns desses intelectuais à procura de seus escravos fugidos. Ou mesmo

encontrar anúncios de venda em que ao lado de grandes obras literárias o anunciante vendia

escravos. Aqui se situa a verdadeira face da sociedade ilustrada que marcou a história do

século XIX.

Os intelectuais maranhenses, também jornalistas que dominavam o meio

midiático mais importante do século XIX, foram os representantes dessa elite ‘ilustrada’ e

tiveram papel importantíssimo na manutenção da estrutura social escravista. Deixaram

transparecer em suas falas os medos, as pretensões e expectativas que tinham, as quais não

eram muito diferentes das do grupo dominante do qual faziam parte.

Assim, os jornais do início do século XIX foram a arma mais poderosa nas mãos

dos intelectuais da elite maranhense, na defesa de seus interesses, pois deve-se considerar o

3 Sobre esse assunto ver A Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos, de Maria de Lourdes Lauande Lacroix.

19

importante papel da imprensa enquanto difusor das idéias de um grupo social específico o

qual representa.

A imprensa foi um setor da sociedade que se manteve atento para o

desenvolvimento de todas as questões que sacudiram o país no início do século XIX. De

acordo com Morel (2003, p. 7), “[...] o surgimento da imprensa no Brasil acompanha e

vincula-se a transformações nos espaços públicos, à modernização política e cultural das

instituições, ao processo de independência e de construção do Estado Nacional.”

Apesar do surgimento tardio, pois só em 1808 com a vinda da família real

portuguesa para o Rio de Janeiro, é que se instala a Imprensa Régia, e do fato de num

primeiro momento ela vir atender à “[...] necessidade de se fazer imprimir os atos do governo

e de divulgar as notícias interessantes à Coroa"(LUSTOSA, 2003, p. 8), aos poucos se

desencadeou “[...] o surgimento de inúmeros jornais na Capital do Reino e também nas

províncias: Bahia, Pernambuco, Maranhão, São Paulo.” (CAPELATO, 1994, p. 38).

O desenvolvimento da ‘opinião pública’ esteve totalmente atrelado ao processo

de separação entre Portugal e Brasil. Nessas primeiras décadas os jornais que surgiram se

diferenciavam, em geral, pela adoção ou não da causa emancipacionista, que se acirrou ainda

mais a partir de 1820, ano da Revolução Constitucional do Porto e da percepção dos

interesses de recolonização dos portugueses. Esses jornais foram o meio mais apropriado

encontrado pelas facções políticas para expressarem seus ideais políticos. “Os impressos, suas

idéias e informações relacionavam-se de forma dinâmica com a sociedade, circulavam, eram

repetidas e podiam ser reapropriadas.” (MOREL, 2003, p. 44).

Não esquecemos que os jornais eram um meio de informação limitado e que

poucas pessoas tinham acesso a ele, bem como era pequeno o número de alfabetizados os

quais tinham contato direto com as notícias escritas, embora desde de 1817 já circulassem

diários e panfletos com debates de conteúdo político antilusitanismo e anticolonialismo e com

ideais de liberdade que transpunha a barreira do público estritamente leitor, atingindo até as

camadas mais populares.

A imprensa maranhense acompanhou de muito perto todo o desenvolvimento da

imprensa nacional e também estava dividida entre os adeptos da causa emancipacionista e os

contrários à independência, ou seja, os periódicos do período estavam sensivelmente ligados

às discussões em voga nas primeiras décadas do século XIX. Sua gênese esta associada às

disputas políticas entre facções rivais, à lusofobia e estruturação do Estado, e acompanha as

transformações em andamento no âmbito nacional.

20

A estrutura jornalística era quase que exclusivamente dedicada a uma causa

específica, o que ficava evidente na escolha dos temas e na linguagem empregada. A análise

desta linguagem é reveladora do posicionamento do jornal quanto aos acontecimentos na

província, assim como da influência e participação ativa dos intelectuais na vida pública

maranhense. Localizando o papel da linguagem no interior dos relatos escritos e atribuindo-

lhes valor de signo pelo qual a sociedade se desnuda, consciente e inconscientemente, Duby

(1995, p. 136) acredita que:

[...] é necessário descobrir os termos reveladores, e mais que as palavras, as representações, as metáforas e a maneira pela quais os vocábulos se acham associados; aqui reflete-se inconscientemente a imagem que tal grupo, num dado momento, tem de si próprio e dos outros.

Os longos artigos, a linguagem carregada e panfletária, o estilo incisivo na defesa

da opinião, ataques aos jornais de idéias contrárias ao governo ou, a defesa intransigente das

medidas oficiais, caracterizaram as páginas dos periódicos maranhenses. O tom agressivo das

críticas, em geral, endereçadas sem qualquer dissimulação a um determinado nome da

administração pública ou da alta sociedade, o uso de extenso cardápio de figuras de

linguagem, o ataque claro e direto a outros periódicos de idéias divergentes, os artigos

extensos e por vezes complexos e os discursos inflamados, marcaram o modo de fazer

jornalismo na São Luís da época.

A imprensa era o principal núcleo dos intelectuais maranhenses na primeira

metade do século XIX, ao mesmo tempo em que dela se utilizaram para expressar o modo

como viam ou percebiam a sociedade. O papel do jornalista confundia-se, portanto, com a

figura do intelectual engajado, movido por convicções políticas, funcionando como uma

espécie de incitador dos debates, e no Maranhão se destacava, por ser dotado do poder da

palavra e pela aptidão diferenciada em uma sociedade que, no início dos oitocentos, nutria

“pequeno ou nenhum gosto pela leitura” (KOSTER apud CALDEIRA, 1991, p.26).

De certa forma, a opinião pública surge como uma nova fonte de legitimidade

política, daí o caráter partidário dos periódicos, seus representantes acreditavam nisso ao

ponto de se apresentarem como esse grupo diferenciado do resto da sociedade e não

relutavam quanto à importância do papel da imprensa:

Obra digna de sua onnipotencia, a redenção do erro e do barbarismo realisou-a Deos, por meio da acção da imprensa, qual d’antes realizara a redenção da culpa por obra da palavra evangélica, pela missão santíssima de Jesus Cristo. Mas, como Jesus Cristo, a imprensa devia ter os seus dias maós, a sua perseguição e tormento, o seu martyrologia...

21

Eis que por toda a parte abrem-se os antros da inquisição para sepultar os apóstolos da filosofia, ascendem-se as fogueiras do fanatismo para abrazar as paginas evangelisadoras da imprensa [...] (O Progresso, 12 de outubro de 1850)

Nesse artigo transcrito do jornal carioca A Imprensa, a imprensa se supera

enquanto 'a marcha do progresso', e atinge o grau de evangelho moderno, verdadeira obra de

divina que traz luz à escuridão pelo qual passava a humanidade, tendo seu papel comparado à

própria missão de Jesus Cristo na terra, como a redentora "do erro e do barbarismo". A falta

de liberdade de imprensa é comparada ao martírio de Cristo e seus representantes são tidos

como "apóstolos da filosofia", ou seja, os escolhidos para continuar missão de tão alta

relevância. E enquanto quarto poder, ela jamais poderá ser silenciada, tentar reprimi-la será

em vão, pois como a fênix, ela sempre 'renascerá' para se vingar de seus inimigos e alguns

fatos históricos são usados pelo autor do texto como exemplo para dar veemência a esse

argumento.

Ainda no artigo, mais uma vez a Europa e os Estados Unidos são citados como

símbolos de civilização e progresso, dessa vez o fato é que “[...] esses governos

comprehenderão melhor que os outros a destinação providencial da imprensa; deixão-n’a ir

seu caminho impertubavel [...]” Para este autor, a falta de liberdade da imprensa é fator

suficiente para tornar esta e a tirania, eternos inimigos.

Esta era a visão que os jornalistas tinham da imprensa e do que eles

representavam para a sociedade. A comparação usada não só designa o lugar que a imprensa e

os jornalistas ocupavam na sociedade, como sugere o respeito que deveria ser-lhes concedido,

e essa comparação pode alcançar o efeito desejado numa sociedade onde a religião tinha mais

poder que a razão. Mas como todo poder, a imprensa pode ser bem ou mal empregada,

precisando em alguns momentos ter seu ímpeto controlado e suas conseqüências medidas, é a

idéia transmitida por este outro artigo d’O Publicador Maranhense:

A imprensa tem mudado a face do mundo com os immensos progressos que por causa della tem feito a civilização: é com effeito um meio admirável de propagar a instrucção, e de communicar as opiniões [...]. Tem portanto servido de muito a humanidade, contribuindo grandemente para seu esclarecimento, porem é preciso também notar que lhe tem sido algumas vezes bem funesta, propagando facilmente livros máos e idéias perigosas: é uma arma terrível na mão dos malvados ; porém, sempre se abusa das melhores cousas, e nem por isso deixa ella de ser-nos muito útil.(O Publicador Maranhense, 20 de junho de 1850)

Apesar da imprensa sempre ser vista por seus representantes como a luz da

verdade e o seu poder sempre ser superestimado, ela é passível da falhas e, neste caso, as

falhas são consideradas os abusos que se fazem dela. No entanto, estas falhas, das quais o

texto trata, não passam das denúncias de jornais contrários e instigantes, que pregam muito

22

mais que a obediência às Leis e ao governo, e são considerados maus por não se enquadrarem

no sistema de valores pregado pela elite dominante, pela diversidade de opiniões que

difundem e por contrariar a concepção de mundo que prevalece.

A estrutura física dos jornais por nós analisados é muito semelhante. Eram

compostos por duas folhas, ou seja, quatro páginas, separação pouco nítida entre as seções,

que pareciam seguir uma seqüência lógica, mas que nem sempre eram constantes. Estas

seções tratavam das notícias do exterior, da Capital do Império, das outras províncias e do

Maranhão, aqui se publicavam ofícios, relatórios, novidades da Câmara Legislativa e da

Tesouraria da Fazenda, além das ocorrências policiais, dos obituários, das correspondências,

das transcrições e, por fim, geralmente na última página, os anúncios e avisos. A partir desses,

podemos perceber em que nível estava o comércio com a Europa, com a chegada constante de

navios que traziam tecidos, chapéus, roupas, mobílias e outros acessórios que enchiam os

olhos consumidores de uma elite que se espelhava nos moldes europeus. Esta seção nos dá

uma noção das transformações pelas quais passava a cidade de São Luís.

Acreditamos que a imprensa pertence ao jogo de poder e se transforma em um

eficaz instrumento ideológico a serviço do grupo político que a detêm, ao mesmo tempo em

que nos jornais encontram-se visões de mundo representativas dos setores sociais que expõem

suas posições e interesses. Dessa forma, achamos de interesse para este trabalho identificar as

principais ligações dos jornais ludovicenses por nós arrolados e buscar identificar as

características mais peculiares inerentes aos discursos por eles proferidos, uma vez que o

lugar do discurso e as formas de abordar a realidade e lhe atribuir significados variam de

acordo com posição ideológica do grupo o qual lhe é representativo.

Dos jornais que pesquisamos dois deles foram bem efêmeros, não ultrapassando 5

ou 6 anos de existência, os outros dois chegaram a ultrapassar uma década. Não chegamos a

fazer grandes análises da trajetória desses jornais, o que, de certa forma, extravazaria nosso

recorte temporal, mas foi possível identificar suas principais características e perceber quais

posições defendiam ou atacavam, além da forma como contextualizavam a realidade,

capturando e reproduzindo sentidos do social, avaliando assim seu poder de construir aquilo

que são por eles representados.

O Publicador Oficial apareceu em 1831 em substituição ao Semanário Oficial, e

era uma folha que, basicamente, se ocupava do expediente do governo da época, por isso, à

primeira vista, parece um jornal que só interessava àqueles que faziam parte da esfera política.

23

Ficou por cerca de cinco anos na ativa desaparecendo em 1836, circulava duas vezes por

semana e era o mais barato dos jornais que pesquisamos.

Suas seções mais constantes eram os decretos, os relatórios e os artigos d’Ofício

nos quais há uma correspondência mútua das autoridades maranhenses sobre os problemas da

Província e mesmo de fazendeiros pedindo auxílio para o problema dos quilombos. Mas, é

nas seções de artigos não-oficiais e de anúncios que podemos perceber o posicionamento do

Publicador Oficial quanto às questões que agitavam o Maranhão.

Na historiografia sobre a imprensa maranhense o mais significativo que

encontramos sobre este periódico está em Joaquim Serra (2001)4 que assim se refere ao

jornal: “[...] eram muito limitados os assuntos de que se ocupava.” De certa forma, ao folhear

as páginas do Publicador Oficial, fica evidente a sua ligação com o governo e a defesa de seus

atos, eram impressos todos os dias de sua publicação as atividades governamentais sem muita

ou nenhuma crítica, não se liam neste jornal aqueles artigos que atacavam diretamente seus

opositores, tão comuns dessa época. A não ser em relação à perturbação da ordem e ao abuso

da liberdade, em que seu redator era veementemente defensor. Prova disso, é que no seu

primeiro número, apesar não trazer um nota específica sobre suas intenções, traz um grande

artigo transcrito do jornal carioca Diário do Governo intitulado "O uso das palavras Liberdade

e Pátria" que denuncia sua posição conservadora num momento de agitação política e social, e

prega o discurso do contrato social, em que o homem social para garantir a paz, a segurança,

a ordem e a prosperidade “[...] não pode gozar aquela liberdade absoluta e natural em que

nasceo”, tem que reprimir os excessos e abusos de liberdade. (Publicador Oficial, 23 de abril

de 1831)

O jornal Chrônica Maranhense surge em 1838 e tem seu último número em 1841.

Era órgão do Partido Liberal e foi redigido por João Lisboa, um dos nomes mais importantes

da história da imprensa maranhense. Não foi coincidência o período de vida dessa folha que

discutia com veemência as questões que impulsionaram a Balaiada. Em seu primeiro número

ao apresentar seu prospecto, o redator é bem enfático quanto à missão desse periódico,

movida pelas "[...]aspirações de uma alma cheia de tristes pressentimentos". Após apresentar

os 'sintomas' que acometiam a Província maranhense, o redator esclarece o objetivo da nova

folha que consiste em prevenir maiores males decorrentes desses sintomas, e que serão

empregados grandes “[...] esforços e desvelos para pacificar os ânimos que tantos homens

4 SERRA, Joaquim. Sessenta anos de jornalismo: a imprensa no Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001.

24

imprudentes ou corrompidos lidam por azedar.” (O Chrônica Maranhense, 02 de janeiro de

1838)

A ligação do Chrônica com o movimento da Balaiada era tão forte que todos os

dias se tinham notícias sobre a revolta, e por vezes seu redator foi acusado de insuflar as

massas e de ser o influenciador teórico do movimento. O que não deixa esconder o verdadeiro

instrumento de combate à revolta dos balaios que se tornou esta folha, pois seu redator, apesar

de perceber e denunciar os abusos de poder das autoridades maranhenses não tinha nenhuma

intenção de destruir a ordem vigente. Fato que evidenciava os limites do liberalismo

maranhense.

Na obra de Joaquim Serra (2001) não são poucos os elogios a esse periódico que

saía duas vezes por semana. O Chrônica Maranhense, segundo este autor, foi nada menos que

a melhor folha de quantas se publicaram no Maranhão. Em suas páginas encontramos seções

que parecem seguir uma seqüência, começando com os artigos oficiais sobre o exterior e a

Capital, as notícias das outras províncias e do Maranhão, em geral as novidades da revolta dos

balaios. Na seção de correspondência ao redator, são constantes as cartas inflamadas

defendendo ou acusando alguma personalidade importante no cenário político de então. Havia

ainda a seção Variedades, os editais e os anúncios.

Dos jornais que analisamos, o Chrônica Maranhense foi a folha que mais parecia

falar por si mesma, e por isso, a primeira vista era o jornal que mais deixava transparecer suas

motivações e seus medos enquanto expressão viva de uma sociedade apavorada com os

efeitos de uma guerra civil, ao mesmo tempo em que pareciam tão vivas as relações

cotidianas da cidade de São Luís, e que, apesar de ser um órgão do Partido Liberal, no

momento mais tenso da Balaiada, recuou e mostrou seu lado verdadeiramente conservador.

Nesse momento, o Chrônica valeu-se da estratégia de minimizar os episódios da participação

e rebeldia dos escravos para aliviar a tensão social causada pela revolta.

O Publicador Maranhense surge no ano de 1842, tendo a frente de sua redação

João Lisboa que assume uma postura menos polêmica e agressiva quando da redação do

Chrônica Maranhense. Possivelmente, por ser um órgão oficial, e apesar de continuar

discutindo algumas questões inerentes àquele período, passa a usar um tom menos direto,

revestindo-se de uma pretensa neutralidade. Podemos dizer que a redação do Publicador

Maranhense marca uma fase de transição na carreira desse jornalista – carreira comum aos

intelectuais do período que se utilizavam da imprensa como um trampolim para a carreira

política –, que a essa época já tem pretensões a uma cadeira na Assembléia Legislativa na

Província.

25

Esta folha saía três vezes por semana até 1862, quando se torna diário. Por seu

caráter oficial, publicava o expediente do governo com os relatórios dos atos administrativos,

o que dava a esse periódico um aspecto sóbrio e ao mesmo tempo carregado. Sua estrutura

não era muito diferente do que já vimos até aqui. As seções Parte Official, Governo da

Província e Thesouraria da Fazenda se ocupavam dos ofícios, requerimentos e decretos entre

as autoridades governamentais do Império e da Província. As notícias e publicações de outros

paises e províncias, as novidades do comércio, as correspondências, as variedades, folhetins e

anúncios eram as outras seções que completavam as páginas do Publicador Maranhense.

Uma seção que diferenciou esta folha pela sua constância – pelo menos durante os

dois primeiros anos de sua publicação – foi a seção da Repartição de Polícia, pois em nenhum

outro periódico ela foi tão constante. Aqui as personagens mais comuns foram os escravos.

Eram relatados os motivos e as infrações que levavam à prisão ou detenção, as circunstâncias

da apreensão e as posturas mais infringidas. De certa forma, esta seção e a dos anúncios

dentre os quatro jornais que analisamos, O Publicador Maranhense foi o que mais deu espaço

a estas publicações, nos permitindo perceber melhor o cotidiano da São Luis da primeira

metade dos oitocentos, nos aproximando das representações mais comuns e dos valores que

dominavam o imaginário dessa sociedade.

No seu primeiro número, ao apresentar o prospecto, anunciava sua ‘missão’, que

se fazia contrária daqueles periódicos que surgiam a essa época – ou seja, um ano após o fim

da Balaiada – os quais “revolviam os punhais nas feridas ainda abertas”. Por isso, sua tarefa

era “romper a monotonia de tais discussões”. Seu redator ao corroborar que não estaria ligado

ou defendendo nenhum partido enfatizava: “E nos o declaramos alto e bom som para evitar

engannos e suposições a que a época poderia facilmente dar lugar”. (O Publicador

Maranhense, 7 de julho de 1842)

Baseado nesse discurso de neutralidade partidária traz ainda, no seu primeiro

número, um longo artigo esclarecendo que o dualismo político-partidário da Província não

passava de uma constante disputa familiar para tomar controle da máquina estatal, e que não

havia qualquer rigidez ideológica que separava partidos Cabanos e Bem-te-vis, sendo que a

maior prova disso foi o apoio mútuo dos partidos ao presidente da Província para combater a

revolta dos balaios, exemplo de movimento revolucionário e dos riscos à paz pública

apontado como resultante das divergências partidárias.

O que percebemos na fala do Publicador Maranhense é o discurso de ‘ordem e

progresso’ já pregado por outros jornais após a avaliação dos riscos de uma revolta popular

26

para a organização do trabalho e para a estrutura social. Apesar de pregar em ‘alto e bom

som’ uma rigorosa neutralidade não há em momento algum o descomprometimento com a

realidade política faccionária da Província.

O Progresso foi a primeira folha diária da Província. Surgida em 1847, sob a capa

de liberal, trazia muitos melhoramentos técnicos e inovações na imprensa maranhense, como

adiantava seu slogan: ‘Le progrés est um avancement vers le mieux’. É nesta folha que

encontramos o melhor ajuste das teorias liberais numa sociedade eminentemente escravista.(O

Progresso, 02 de janeiro de 1847)

A visão que o jornal tinha de si era de um periódico avançado que mostrava suas

preocupações com a prosperidade e o progresso da Província, os quais só seriam alcançados

quando a rixa partidária se fundisse em um único pensamento: a conciliação, a fusão completa

dos partidos. O Maranhão parecia acompanhar de muito perto o processo histórico que se

desenrolava no Brasil, a caminho de um período de estabilidade conhecido como Conciliação,

que não passava de um arranjo político entre liberais e conservadores que garantiu a

consolidação do Império Brasileiro. Por este motivo apoiava o programa conciliador do

presidente da Província, vendo neste a única 'tabua de salvação' para reorganização e o futuro

do Maranhão.

[...] porque o povo [...] sabe que preciza de paz, de união, de seguridade e ordem para poder resolver suas faculdades e empregal-as em proveito seu e de seus irmãos; para fundar e assentar incontrastavelmente a marcha santa de liberdade e da igualdade sobre a única baze indestructível e eterna == o trabalho creador == a industria: == o povo tem consciência de qual é seu augusta missão sobre a terra, e precisa e quer mudar de situação: porque a actual não é verdadeira, é de desorganização, é revolucionária, é filha legítima da situação de 1839 e 1840. (O Progresso, 09 de janeiro de 1847)

Mais uma vez a Revolta dos Balaios é citada, mostrando o temor causado nas

elites dirigentes com um movimento que mobilizou uma grande massa marginalizada do

círculo decisório do poder. Sob ideários de liberdade e igualdade, a fala é direcionada ao

'povo', ao mesmo tempo em que o texto fala pelo povo, o qual toma para si toda a

responsabilidade de atingir o progresso e garantir a tranqüilidade pública, isentando qualquer

ação política por parte das rusgas partidárias. Esta passagem evidencia a importância do papel

da imprensa no processo de centralização do poder, mostrando que esta situação de rebelião é

falsa, ocultando as contradições e os conflitos sociais.

Quanto à estrutura física d’O Progresso, diremos apenas que este jornal, apesar de

possuir as mesmas seções que os outros até aqui analisados, tem um aspecto peculiar quanto a

uma seção que levava o nome do próprio e que eram considerações mais pessoais sobre as

questões mais urgentes da época. Estava bem atualizado quanto às críticas ao trabalho

27

escravo, que sempre pincelado sobre um fundo econômico – característico do antiescravismo

brasileiro – era considerado improdutivo e ineficaz para os novos tempos que se desenhavam.

Assim como os outros periódicos, a maior parte dos artigos era transcritos de

jornais do Rio de Janeiro, o que nos comprova algo bastante curioso e não menos interessante:

as críticas produzidas ou repetidas pelos jornais ludovicenses ficavam num plano mais

superficial, nunca sendo apontadas diretamente aos proprietários maranhenses, que eram o

principal alvo dos 'ataques literários' à manutenção da escravidão.

Possivelmente, esta foi a forma mais sutil encontrada pelos intelectuais

maranhenses, muitos deles jornalistas, para ajustarem seu liberalismo à sociedade em que

viviam. Não pretendiam mudanças radicais na estrutura social, não podiam negar a ligação

quase umbilical que mantinham com uma classe de poderosas famílias proprietárias de terras

e de escravos, que indiretamente foi o sustentáculo de toda a primorosa educação destes

parcos maranhenses que completaram seus estudos nas universidades européias e garantiram a

esta intelectualidade sua posição confortável na sociedade. Mas conseguir juntar em um único

'balaio' teorias liberais e escravidão, além de contrabalancear pressões externas pelo término e

pressões internas pela continuidade do tráfico e do sistema escravista, não foi tão fácil assim.

Foram décadas agitadas e decisivas para a consolidação das estruturas de poder, não só na

Província Maranhense, mas em todo o Império Brasileiro.

A imprensa foi o meio difusor e propagador dessas idéias e das suas contradições.

Mesmo como espaço de representação do real, ela é o fruto de determinadas práticas sociais,

onde percebemos o poder de intervenção na vida social. No Maranhão, ela surge como uma

arma de persuasão muito eficaz no momento decisivo de firmação das classes dirigentes no

poder, eliminando qualquer obstáculo aos interesses dessa classe, especialmente a

manutenção da ordem escravista e o alijamento das camadas populares das decisões políticas.

28

2 A PARTICIPAÇÃO POPULAR E A MOBILIDADE ESCRAVA NAS ‘RACHADURAS’ DA IDEOLOGIA LIBERAL-ESCRAVISTA

A continuidade do tráfico de escravos africanos para o Brasil, durante toda a

primeira metade do século XIX, está intimamente ligada ao processo de independência e à

construção do Brasil enquanto Estado autônomo. A escravidão negra representava não só o

suporte de toda prosperidade econômica da Colônia como, ao mesmo tempo, era a pedra

angular de manutenção de sua unidade territorial, se tornando a base de consolidação do

Império brasileiro.

Apesar das luzes da ‘era das revoluções’ com todos seus ideais liberais e teorias

econômicas e a crescente pressão inglesa contra o tráfico negreiro ter contribuído para o

colapso do sistema escravista na maioria das colônias européias na América, no Brasil, o

período em que o tráfico foi considerado clandestino, de 1831 a 1850, a média anual de

importação de cativos não diferiu muito de nível em relação ao período de sua legalidade5.

Fato explicado no contexto econômico, pela crescente demanda de mão-de-obra escrava nas

fazendas de café que começavam a despontar no sudeste do Império.

Para a emergente Nação brasileira, o tráfico de escravos se tornou um problema

político que se impôs antes mesmo de efetivada sua separação da Metrópole portuguesa.

Ainda em 1810 D. João – a principal autoridade portuguesa que se fixara no Brasil desde

1808 – assinara o "Tratado da Aliança e Amizade" com a Inglaterra, que dentre suas

determinações estabelecia a gradual extinção do tráfico negreiro. Esta foi uma questão que

perpassou todo o processo político de formação do Império brasileiro e de suas relações com a

Inglaterra, desde a transferência da corte real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 até o

reconhecimento externo da independência.

Para a Inglaterra, que intermediou as negociações internacionais para o

reconhecimento do Brasil enquanto nação independente, interessava reforçar os privilégios

comerciais mantidos com a ex-colônia desde a abertura dos portos. Assim, com o Brasil cada

vez mais atrelado e dependente das relações com a Inglaterra, em 1827 é assinado um novo

acordo que estabelece, além de mais privilégios e concessões aos navios e mercadorias

inglesas, a extinção do tráfico negreiro em, no máximo, três anos.

5 Segundo os dados referentes às médias anuais de importação de cativos analisados por Kátia Mattoso que vão de 1826 a 1851, a autora concluiu que as diferenças foram mínimas entre elas, ao ponto de não haver alterações significativas no nível médio de importação. ( MATTOSO, 2003, p. 61-2)

29

É interessante notar que a Inglaterra, na qual desde 1810 já exigia o fim do tráfico,

não colocou a questão como prioridade para aceitar a independência do Brasil, uma vez que

era ciente da base de sustentação do Império: a classe dos grandes proprietários de terras e

escravos e que a cessação imediata do tráfico de escravos para o Brasil acarretaria graves

problemas na afirmação de sua elite dirigente e manutenção da unidade territorial. Vale

lembrar ainda o que diz Alfredo Bosi (1988) sobre a abolição da escravidão em países como a

própria Inglaterra, a Holanda e a França, onde os proprietários foram ressarcidos com

indenizações, fato que ratifica que mesmo no pensamento liberal burguês desses países,

baseado na ideologia do trabalho livre, o que prevalecia era a vontade de autonomia do

cidadão-proprietário.

O período que nos atemos tem como pano de fundo todas estas questões no

âmbito nacional e que serão pulsantes por todo o período de consolidação do Império até a

Lei Eusébio de Queiroz, que extingue em definitivo o tráfico de escravos africanos para o

Brasil.

Os discursos proferidos em defesa do tráfico, especificamente, e do regime

escravocrata no geral, sob a capa liberal ou conservadora, sempre se alinhavam com interesses

oligárquicos e revelavam a verdadeira face dos pensamentos dominantes da classe política

brasileira, que se utilizava de argumentos bastante eficazes para justificar a escravidão. Dizia-

se que a escravidão era um meio encontrado para moralizar e civilizar os povos inferiores e,

ainda, que toda a prosperidade econômica, a segurança e a integridade nacional ruiriam com o

fim do tráfico, por isso a escravidão justificava-se como um 'mal necessário'. E em última

instância, se valeram dos próprios princípios liberais para justificar a continuidade do tráfico.

No Brasil, a segunda maior sociedade escravista, também eram exigidas as

liberdades tão proferidas na Europa: liberdade de produzir, de mercar e de representar-se no

cenário político. Aplicada ao Brasil, chamava-se assim, 'liberal' a nova prática mercantil pós-

colonial – ou neocolonial – que via na proibição do comércio negreiro uma restrição à livre

iniciativa, tanto do vendedor quanto do comprador da força de trabalho. Firmava-se uma

estreita conexão da economia nacional com as necessidades do mercado internacional e com

tráfico negreiro. A esse ajuste de idéias liberais aos interesses específicos da burguesia

agroexportadora brasileira, Bosi (1988) chamou de ideologia liberal-escravista.

É importante ressaltar que nem sempre as teorias estrangeiras se ajustam as

especificidades do lugar onde elas são aplicadas, e no caso do Brasil, a contradição da

aplicação da teoria liberal num sistema baseado no escravismo gerou cisões que colocaram

30

em risco o poder vigente, concretizadas por inúmeras revoltas políticas e sociais que

marcaram toda a primeira metade do século XIX.

A Província do Maranhão é um exemplo sintomático de que o tráfico de escravos

africanos não perdeu sua força, mesmo sendo considerado ilegal desde a lei de 1831. Além da

publicação dessa lei em periódicos governamentais, nada mais foi dito na imprensa

maranhense a respeito da proibição do tráfico. O que pode ser explicado pelo fato de, por essa

época, as discussões se limitarem à questão entre brasileiros e portugueses, que no ano de

1831 atingiu um ponto de guerra civil no Maranhão, conflagrando o movimento que ficou

conhecido, na historiografia maranhense, como Setembrada. Mas o silêncio pode ser

justificado também pelo fato de a Província maranhense ter se beneficiado e se destacado no

cenário nacional graças a sua economia agroexportadora baseada no trabalho escravo, motivo

significativo que calou os jornalistas diante de tão grave questão.

Quando foi assinada a Lei Eusébio de Queiroz em 1850 proibindo por definitivo o

tráfico negreiro para o Brasil, o Maranhão já não era um de seus maiores beneficiários. Antes

mesmo da Lei de 1850, a importação de escravos para a província já havia diminuído

bastante, tendo na decadência da lavoura de algodão seu principal motivo.

Regina Faria defende que a entrada de africanos na Província continuou por todo

o período de clandestinidade do tráfico, considerando que foi a partir da década de 1840 que

houve uma significativa diminuição na importação de cativos, período em que são

encontrados os primeiros registros de que o Maranhão passava a integrar a nova “costa

d’África” e de um dos mais importantes compradores se transformava em um dos maiores

exportadores de escravos para as fazendas de café do, então chamado, sul do Brasil. (2004)

A imprensa maranhense só vai tocar no assunto no momento em que percebe a

questão maior por trás das leis que coibiam o tráfico: a própria extinção da escravatura.

Aqueles foram golpes decisivos que pressupunham o fim da escravidão no Brasil e a

proibição definitiva do tráfico – único meio de aquisição de escravos, uma vez que não era

costume dos proprietários brasileiros incentivarem a procriação entre seus escravos – era um

sinal claro de que o fim do sistema escravista estava próximo. Os jornais que discutiram a

questão preferiram reproduzir os artigos de jornais mais significativos da Capital do Império,

como nos mostra um artigo de 1847 do jornal O Progresso, intitulado "O tráfico de escravos",

resultado das medidas de repressão, em que fica evidente o quanto a lei de 1831 foi

considerada letra morta.

Este artigo trata do episódio de um suposto massacre de dois mil negros pelo

próprio negociante de escravos que, não querendo acumular gastos com o sustento dos

31

escravos, se viu sem saída diante do bloqueio promovido pela esquadra inglesa num certo

ponto de desembarque na costa brasileira. O texto é narrado de forma a pôr em dúvida o

oficial inglês que foi o relator dos fatos, com expressões como ‘segundo se diz’, ‘segundo

parece’, pois para o redator, parecia impossível acreditar que um europeu, mesmo um

traficante de escravos, pudesse cometer tal ato, ainda mais com uma justificativa tão

improvável como os sustento de escravos, que segundo o redator, é de um custo

insignificante.

E para reforçar sua tese de que não haveria motivos que levassem um europeu a

tomar tal atitude, o redator termina o texto confirmando não só a continuidade do tráfico

ilegal de escravos como ainda demonstra a facilidade dos negreiros em burlar a legislação.

Os negreiros sabem perfeitamente que podem embarcar os escravos em um abrir e fechar de olhos. Todas as notícias que temos nos dizem que, máo grado os cruzadores, continúa a fazer-se o tráfico com toda atividade e a dar grandes lucros. E pois não he provável que a matança de dous mil negros nas Gallinhas fosse acto de um negreiro europeu. He porem muito possivel que esses desgraçados fossem decapitados por ordem dos chefes indígenas que não achassem meios de vendê-los. Essas scenas de carnagem repetem-se continuamente na costa d’África, e parece certo que se tornaram mais freqüentes depois que a venda dos escravos se tornou mais difficil. (O Progresso, 06 de julho de 1847)

Na fala é possível perceber a idéia que se tem dos europeus, os quais teriam

atingido um alto nível de civilização, os impossibilitando de cometer atos criminosos como

um massacre de dois mil negros. E a argumentação é reforçada quando se faz a oposição

dessa imagem do europeu civilizado com a dos chefes africanos considerados bárbaros, os

quais, pela sua índole natural, seriam muito mais capazes de cometer atos tão brutos quanto o

massacre dos negros, e eles sim, o fariam por questões financeiras. E para que não fique

dúvida alguma da natureza dos africanos, ávidos por dinheiro, o autor do artigo faz uma

pequena descrição do que seria uma verdadeira 'caçada' que acontece entre eles próprios que

não respeitam nem os laços familiares vendendo uns aos outros no momento mais oportuno.

Para este redator, todas estas situações são conseqüências, não do sistema

escravista que provoca a desestruturação de sociedades africanas, impondo a renovação

constante de mão-de-obra escrava, através do comércio de africanos, mas o que levaria a tudo

isso, era a imposição da legislação repressora do tráfico de escravos. E conclui de forma

taxativa: “Em uma palavra o tráfico não diminue sensivelmente, torna-se assim mais atroz.

Tal o resultado mais claro do novo systema de repressão, de que tanto se glorificou o nosso

governo. (O Progresso, 06 de julho de 1847)

Logicamente que a escravidão não teria sua legitimidade colocada em dúvida ou

seria responsabilizada por fatos como esses, mas a questão é colocada de uma forma tão

32

simplista que, no máximo, o artigo desferia uma crítica às medidas tomadas pelo governo para

reprimir o tráfico negreiro. No entanto, os argumentos usados para fazer tal crítica terminam

por evidenciar o preconceito que marcou todo o século XIX, o eurocentrismo que colocava de

um lado o europeu civilizado e cordato, e do outro o africano bárbaro e violento, um jogo de

imagens contrárias que foi bastante utilizado nos discursos dos jornais.

O artigo supracitado, por exemplo, foi transcrito do periódico carioca Jornal do

Comércio, e apesar de extenso, é de fundamental importância para analisar algumas questões

referentes ao tráfico e a oposição entre europeus e africanos que marcava não só o imaginário

ludovicense, mas o brasileiro em geral. Sobre esta questão, que coloca em oposição europeus

e africanos, falaremos mais especificamente na segunda parte deste trabalho.

Boa parte dos artigos que discutiam a questão do tráfico de escravos foi transcrita

de jornais como o Jornal do Comércio, o periódico de maior circulação na Capital do Império

e que, por publicar os atos e leis do governo e as discussões parlamentares sem opinar ou

fazer críticas severas, pairava sobre este uma idéia de imparcialidade e respeitabilidade. Não

só o fato da proximidade com o lócus das discussões, mas provavelmente pelas idéias que eles

defendiam e pela sobriedade com que as apresentava, fosse considerado digno de transcrição

pelas folhas maranhenses, que tinham, por isso, a mesma característica de publicar atos

oficiais.

Em alguns casos, os trechos mais significativos – ou os que lhes interessava – da

própria sessão entre os senadores ou deputados eram transcritos literalmente. De certa forma,

acreditava-se que o jornal, ao deixar os políticos falarem por si mesmos, revestia-se de certa

neutralidade, justamente a capa que os jornais maranhenses tentavam se vestir, por exemplo,

ao publicar os ofícios entre as autoridades e os atos do governo provincial.

Dois dos jornais que pesquisamos e que estavam na ativa durante as discussões

sobre a questão do tráfico, O Progresso e O Publicador Maranhense, tem opiniões bem

parecidas e até transcrevem o mesmo jornal, Jornal do Comércio, que segundo Gonçalves &

Silva(2001)6, apesar de não esta vinculado à máquina estatal, é difusor da ideologia

dominante que defendia a manutenção da ordem escravista e a centralização do poder político

sob o regime monárquico. Desta forma, os jornalistas ludovicenses preferiram se omitir e

deixar que falassem por eles. No entanto, as transcrições representavam o primeiro indício das

6 Artigo de Maurício José da Silva e Alex Gerson Gonçalves, intitulado "Um ensaio sobre a consolidação do Estado Nacional e o papel da imprensa" (2001). Disponível em: <http://www.clepsidranet.com.br/mjoseealex>. Acesso em 22 de outubro de 2006

33

posturas assumidas pelos periódicos maranhenses diante das principais questões do momento,

dentre elas o tráfico de escravos e as relações com a Inglaterra.

Nos outros jornais ludovicenses as incursões inglesas em mares brasileiros e o

apresamento de embarcações suspeitas de fazerem o tráfico de africanos sempre é

apresentada, mesmo em forma de documentos oficiais que usam de uma linguagem mais

sóbria, como uma injúria à Nação Brasileira, um desrespeito a autoridade brasileira que,

segundo os mesmos jornais, não nega esforços para que se faça cumprir a lei. E apesar disso,

sempre são detectadas irregularidades e contravenções por parte dos ingleses, sempre

acusados de abuso de poder e contraventores das leis que regem as relações internacionais

entre os dois paises. Num comentário de João Lisboa, redator do Chrônica Maranhense a

respeito de um desses ofícios, encontramos:

Nós cremos que o motivo da violencia foi a insolencia que tantas occorrencias similhantes há produzido nas relações das nações poderosas com as mais fracas, e que a satisfação, attenuando um pouco a gravidade do facto, não isenta os culpados das penas que lhes impõe as leis que elles quebrataram. (Chrônica Maranhense, 27 de fevereiro de 1841)

A violência a qual se refere o redator maranhense foi mais um dos constantes

apresamentos de navios brasileiros suspeitos do comércio ilegal de escravos pela esquadra

inglesa, o qual não foi constatado a denúncia, colocando os responsáveis pela missão em

constrangimento pelo não cumprimento das normas que orientam as formas de abordagens

neste tipo de situação.

Os jornais maranhenses refletem as angústias nacionais em relação a proibição do

tráfico de africanos, que por muitos anos passa a ser vista como uma necessidade imposta

pelas exigências do governo britânico e pelas violências cometidas pela suas tripulações

contra embarcações brasileiras. Apesar do Tratado de 1827 e da Lei de 1831, foi conveniente

para o governo brasileiro não discutir o assunto, atitude considerada prudente, que no entanto,

com os incidentes cada vez mais freqüentes no litoral brasileiro, as autoridades públicas se

sentiram obrigadas a reconhecer o fato e reparar os erros, a fim de não piorar ainda mais as

relações com o governo britânico.

Paralelamente a estas angústias, também pudemos perceber nos periódicos

maranhenses as aflições sociais dum Império periclitante, pois relações internas

convulsionavam-se e a introdução massiva de escravos na sociedade acentuou ainda mais as

diferenças sociais provocando em alguns momentos a revolta popular e a insurreição dos

escravos em diversos pontos do território nacional, chegando a pôr em risco não só a estrutura

social vigente, como a própria consolidação do Império Brasileiro.

34

Apesar do processo de independência no Brasil não ter deflagrado uma

encarniçada luta entre os grupos sociais, como ocorrera com a maioria das ex-colônias na

América, pois a briga que acontecera aqui foi entre os interesses dos colonos e os projetos

recolonizadores dos portugueses, a separação ‘pacífica’ não implicou em uma imediata

estabilidade política.

O período de nove anos do reinado de D. Pedro I foi marcado por tensões e forte

oposição dos novos políticos brasileiros sempre ligados aos proprietários rurais e também de

homens fiéis ao parlamento inglês, que não viam com bons olhos os projetos dinásticos do

imperador o que culminou com a abdicação de D. Pedro I em 1831. Sua política absolutista,

reforçada pelo poder Moderador, evidenciada na repressão à Confederação do Equador, e a

forte ligação com a política portuguesa que o fazia enviar vultosas somas para manutenção do

poder também na antiga metrópole reforçavam sua posição ambígua sempre com um pé no

Brasil e outro em Portugal, razões que contribuíram para sua derrocada.

O vazio de poder provocado pelo afastamento do Imperador deu espaço à

violentas disputas entre as várias facções da aristocracia rural entremeadas por manifestações

revolucionárias das camadas populares. O período regencial iniciado em 1831 foi marcado até

o fim por revoltas regionais que não deixaram de fora, pelo menos desta vez, as camadas

populares e até os próprios escravos, principalmente no Norte e Nordeste.

Como já era costume os senhores de terras e escravos armarem seus escravos, pois

“[...] o Brasil nasceu herdando um amplo uso militar dos cativos, desde as lutas pela

independência a classe senhorial arma seus dependentes e escravos de confiança para

defender o partido de sua escolha” (CARVALHO, 2005, p. 887). Fato que colocou essa

parcela da população em contato com idéias liberais e possibilitou releituras, por parte dos

escravos, do discurso anticolonial que usava termos como ‘liberdade’, ‘grilhões’, ‘escravidão’

e ‘independência’ para caracterizar as relações entre o Brasil e Portugal.

No Maranhão foi uma realidade a participação de escravos nos movimentos que

agitaram a Província na primeira metade dos oitocentos. Apesar da participação de membros

das camadas populares nesses conflitos esconder o verdadeiro conflito intra-oligárquico que

marcou a nossa história, é impossível pensar que aquelas pessoas saíram incólumes desses

movimentos, sem desenvolverem certa consciência crítica da sociedade a qual estavam

inseridos, e uma profícua visão de futuro. De acordo com Carvalho “[...] isso não impedia os

excluídos de fazerem suas próprias leituras dos processos que viviam, interpretando os

acontecimentos em que estavam inseridos através do prisma fornecido por suas condições

gerais de existência, formação e consciência.” ( 2005, p. 881).

35

Muitos escravos que tiveram grande participação no processo de adesão à

independência no Maranhão participaram dos lustros7 e até deram peso às forças libertadoras

que derrubaram, em São Luís, o governo controlado por portugueses até 1823, tinham

também seus objetivos: queriam em troca sua própria liberdade.

Apesar do Maranhão ter aderido tardiamente à independência com a implantação

do primeiro governo brasileiro em 1823, a elite portuguesa manteve muitos dos seus

privilégios concedidos desde o período colonial, assim como a maior parte dos cargos

públicos nas instâncias superiores da Província como no exército e no judiciário, além do

controle do comércio. Motivo que impulsionou os liberais exaltados maranhenses a exigirem

a completa expulsão não só dos portugueses que ocupavam os cargos públicos como de todos

aqueles que foram opostos à independência. Este episódio ficou conhecido como Setembrada.

Para atrair o maior numero possível de adeptos, os jornais a favor do movimento proferiam

discursos como este:

Maranhenses! Meus amados Patrícios, não vedes aqui o braço oculto dos partidos inimigos da Liberdade? [...] Não vimos a união que reinou entre os nossos concidadãos militares, e o povo no sempre lembrado dia 18 de Setembro? [...] Em que se fundão esses monstros para espalharem que os Brasileiros que tem côr branca, menospresão os que tem a côr parda? Quantos patrícios nossos “pardos” não estão empregados; quantos não merecerão os suffragios da elleição popular? Quem os despreza, malvados são os marinheiros, e esses corcundões que ainda fallão em fidalguia no Brasil livre! Todos somos Brasileiros, todos somos iguaes perante a Lei; a côr é indifferente: o merito do homem é quem lhe dá consideração na sociedade, os seus vícios só o podem tornar despresível entre os seus semelhantes... Maranhenses! Alerta! Preveni-vos contra as trahiçoens dos nossos inimigos...Lembrai-vos do Brasil; da Liberdade, e ficai sertos que só a União poderá livrar-nos dos nossos inimigos e salvar o Brasil e a Liberdade. (Farol Maranhense, 18 de outubro de 1831)

Apesar de o artigo não apresentar explicitamente nada sobre os cativos, é bem

enfático em relação à questão de que somente a união de todos os brasileiros – militares e o

povo –, não importando a origem ou a cor, alcançaria a verdadeira liberdade, e que todos são

iguais perante a lei. O fato é que o povo que sempre ficou à margem das decisões políticas,

era composto por livres pobres, na maioria pessoas de cor (mestiços, libertos, forros e até

escravos fugidos se passando por libertos), que querendo ou não, mantinham alguma

identidade cultural com os escravos negros, além de sofrerem preconceitos pela cor da pele e

discriminação na justiça, podendo “[...] ser sujeitados às mesmas medidas disciplinares que os

escravos e ser controlados na sua liberdade de movimento” (ASSUNÇÃO, 1998, p. 14)

7 Surras que, durante a noite nas ruas e becos escuros de São Luís, sofriam os portugueses quando voltavam para suas casas.

36

Este texto nos traz outras informações importantes sobre as circunstâncias do

momento e algumas características reveladoras da sociedade maranhense. O preconceito

realmente existia nessa sociedade, é nisso que os portugueses chamados, no artigo, de

"Marinheiros e Corcundões", se fundamentaram e aproveitaram para atiçar a “gente de cor” e

criar cisões entre as camadas populares e os liberais maranhenses. Muitos estigmas recaíam

sobre os mulatos no Maranhão, considerados como ‘classe perigosa’, e chamados

sarcasticamente de cabras ou bodes. Mathias Assunção é enfático em dizer que essa

discriminação era uma influência do próprio regime escravista. E sobre a participação dos

escravos nos movimentos da primeira metade do século XIX, lança a seguinte questão:

“Existiam neste período intentos de mobilização popular ultrapassando as barreiras entre

livres e escravos, entre negros e cablocos?” (1998, p. 23)

Em O Cativeiro obra de Dunshee de Abranches (1992), numa das cartas de Dona

Martinha, esposa de Garcia de Abranches, do qual o filho Frederico Magno foi um dos líderes

da Setembrada, se referindo ao movimento afirma que os cativos formaram o grosso da massa

popular que se reuniu em frente ao Palácio do governo para exigir as reivindicações de

expulsão dos portugueses. E que, depois de controlado esse levante, ainda resistiram como

insurretos no interior por mais dois meses (ABRANCHES, 1992, p. 27).

Outro movimento com grande participação popular e de escravos, onde ficou

explícito que esses não eram apenas marionetes nas mãos dos poderosos e que defendiam

interesses próprios na luta, foi a Balaiada entre 1838 e 1841, um movimento que começou

como mais uma das rixas entre as facções políticas e tomou um rumo totalmente diverso do

que imaginavam seus primeiros colaboradores, os liberais exaltados, chamados popularmente

de Bem-te-vis.

Dentro dos limites deste trabalho, mais importante do que relatar a Balaiada e

fazer grandes análises sobre esse movimento que refletiu tão perfeitamente as convulsões

políticas e sociais da época, é a reflexão sobre a participação dos escravos negros num

movimento que abalou as estruturas de poder no Maranhão provincial e que possibilitou a

criação e a reafirmação, por parte das elites maranhenses, de várias imagens sobre os negros

envolvidos na rebelião ou ‘persuadidos’ pelos rebeldes balaios.

A historiografia mais atual é concisa quanto à relação da origem da Balaiada com

os conflitos que se fizeram no Maranhão desde a época da Independência, ou seja, fazia parte

de uma luta política “[...] resultante das divergências dentro do grupo dominante acerca da

melhor forma de governar o país.” (JANOTTI, 1998, p. 46). Entretanto, no Maranhão, essa

disputa atingiu o nível de guerra civil, colocando em risco a manutenção da ordem escravista,

37

com a participação cada vez maior das camadas populares na vida política e privada da

Província.

Cabe, então, repensar o momento em que o movimento se torna uma ameaça real

à ordem estabelecida com a entrada do negro Cosme Bento das Chagas na luta e a adesão de

milhares de cativos ao movimento. A heterogeneidade do movimento e a divergência de

interesses das diversas categorias sociais que o compunham, fatos registrados por autores

como Dunshee de Abranches (1992), Maria Januária Vilela Santos (1983), Maria de Lourdes

Mônaco Janotti (1991) e do próprio Mathias Assunção (1998) talvez responda à questão do

parágrafo anterior quanto o envolvimento de diversos grupos sociais e de diferentes interesses

nos levantes revolucionários da primeira metade dos oitocentos.

Sentiam-se já as conseqüências do longo período em que dominadores vinham armando os dominados, para empregá-los como instrumentos de suas aspirações, esquecendo-se, contudo, de que homens não são instrumentos passivos. O medo de uma revolta da população mestiça e escrava propagava-se com vigor. (JANOTTI, 1991, p. 34).

Esse desvencilhamento de objetivos e o rumo diferente que a Balaiada tomou

mostraram que assim como nos movimentos antecedentes a este, a classe senhorial que

sempre armara sua clientela e seus dependentes para defender seus interesses, podia perder o

controle da situação e passar a ter como inimigos aqueles que outrora estavam sob seu

comando.

O grande contraste da abertura liberal dentro do escravismo brasileiro foi

justamente esse contato dos escravos e das classes subalternas com o ideário liberal e

anticolonial, que possibilitou desenvolver uma visão crítica da sociedade usando esses

discursos a seu favor e como instrumentos para atingir seus interesses e objetivos.

O perigo de usar as camadas populares como instrumento de manipulação para

alcançar interesses próprios pelas classes dirigentes não passou despercebido por algumas

pessoas mais 'iluminadas' do período, que percebiam o nível de conscientização que o 'Povo'

poderia alcançar e o risco das agitações populares ao manifestarem suas próprias

reivindicações:

O uso que se faz da liberdade é injusto, quando transpomos as raias que nos prescrevem as leis: é ilícito, quando se não encerra nos limites marcados pelo pacto social [...] Quando se diz que os homens são livres por natureza, não se quer significar que os homens nascem em uma inteira independência [...] Faço esta nota, porque esta folha pode ser lida por homens rudes que confundem os termos [...] Não cuidemos, todavia que a liberdade possa estabelecer uma igualdade quimerica que a natureza recuzou aos homens. (Argos da Lei, 04 de fevereiro de 1825)

A liberdade que era a esse momento a palavra de ordem nos discursos dos

patriotas maranhenses, apesar de ser constantemente proferida não poderia ser entendida de

38

qualquer maneira e por qualquer 'homem rude', não se poderia fazer uso abusivo do termo.

Essa liberdade não queria dizer igualdade, pois estava definida nos limites da ordem social. E

não podemos esquecer que estamos falando de uma sociedade escravocrata e rigidamente

hierarquizada em que cada membro tinha seu o seu papel, e que, segundo o redator, era ditada

pela natureza e por isso a igualdade não passaria de um sonho.

Cinco anos depois, no jornal Farol Maranhense8, maior representante do

Liberalismo Maranhense, também encontramos apelos de seu redator, o jornalista José

Cândido, para o perigo de se confundir liberdade com a ausência de leis. Para ele a

"Liberdade e as Leis", sempre escritas com letra maiúscula, andam juntas e aquela não existe

sem esta, não pode existir ao lado de agitações e perturbações sociais, pois à sua companhia

só andam a tranqüilidade e a paz.

Só com Leis soberanas conformes á natureza do homem, he que a Sociedade póde ser feliz e tranquilla, e que os Cidadãos podem gozar de Liberdade. [...] Eis aonde está a verdadeira Liberdade; he á sombra de Leis santas que existe o repouso, a segurança, e a verdadeira felicidade [...] Não confundamos o momento de quebrar os ferros com o tempo do gozo da Liberdade. Em quanto hum Povo lucta contra seus opressores, não goza da Liberdade, está apenas trabalhando por gazal-a. A Liberdade he companheira da paz, da tranqüilidade. Não sabem alguns defensores desta sagrada causa o mal que lhe fazem, apresentando-a sempre cercada de agitações e perigos [...] He da natureza do homem querer tranqüilidade, e he por isso que todos trabalhão; não podem portanto sympatisar com huma causa, que lhes dão como destruidora ou incompatível com essa tranqüilidade. (Farol Maranhense 24 de setembro de 1830)

Apesar de o 'Povo' ser sempre chamado a lutar contra os 'inimigos da liberdade',

em defesa do Maranhão, "sua tendência para revoluções" não deve se sobressair às leis que

promovem a paz e a tranqüilidade. E esse ímpeto de exaltação deveria ser controlado, pois,

segundo as idéias pregadas na época, não era possível gozar de liberdade no meio da agitação.

Possivelmente, mesmo José Cândido, liberal inveterado que ficou conhecido como um mártir

na imprensa maranhense pela sua trágica morte, conhecia os limites entre a participação

popular e os riscos de uma convulsão social, em que o grupo dominante poderia perder o

controle sobre aqueles usados como massa amorfa nos conflitos particulares.

Considerando todas essas questões, é válido recorrer aos fundamentos da

Balaiada, não pelo movimento em si, mas para nos inserirmos no contexto geral da sociedade

maranhense do período por nós pretendido – 1830 a 1850 – para que possamos 'preparar

8 Farol Maranhense surgiu em janeiro de 1828 e ficou conhecido na história da imprensa maranhense como um dos periódicos mais populares e, segundo a historiografia, com idéias adiantadas para sua época, por ter um forte apelo popular e uma linguagem que, segundo Antônio Lopes, era “clara o bastante para ser compreendida pelo povo”. Sua publicação é suspensa em 1831devido à morte trágica e precoce de seu redator José Cândido de Moraes e Silva.

39

terreno' para o principal objetivo de nosso trabalho: as imagens dos escravos negros formadas

no imaginário social maranhense.

O movimento dos Balaios deixou marcas profundas nesse imaginário, sendo a sua

imagem invocada diversas vezes pelos autores de artigos ou mesmo relatórios oficiais para

pintar um quadro de horrores do que foi e do que poderia voltar a ser caso não se

controlassem as querelas políticas e se contivesse os conflitos sociais.

O periódico ludovicense que ‘cobriu’ com maior atenção a revolta dos balaios foi

o Chrônica Maranhense. A publicação de ofícios, de correspondências e artigos foram os

meios mais comuns de se propagarem as idéias que se tinham das causas e origem do

movimento. Essas publicações estavam carregadas de juízos de valor sobre os rebeldes e suas

ações, sendo reforçadas nos momentos mais críticos da revolta, que por sua vez, sempre foi

pincelada e apresentada pormenorizada ao leitor de forma a abrandar seus efeitos e minimizar

sua luta.

No entanto, os registros da história nos mostram que foi através de concessões e

ameaças que o governo conseguiu acabar com o movimento, sempre justificando que se não o

fazia pela força das armas era porque era benevolente e misericordioso, quando na verdade

encontrou no suborno dos líderes o caminho mais fácil para dar fim ao movimento.

Os chefes rebeldes Pio e Tempestade, que o S Ex. havia deixado em S. Francisco sob a vigilância do Snr. Major Ernesto Emiliano de Medeiros, fizeram finalmente a sua submissão a Legalidade, entregando-se com a sua gente da qual huma grande porção marchou immediatamente, unida a uma Partida nossa, para bater o facinoroso Cosme, que logo batido, deixando mortos no campo cinco africanos e 33 prizioneiros. [...]. ainda alguns grupos rebeldes ousam empunhar as armas, mas não tardarão a dexa-las certos de sua fraquesa, e ainda mais certos do generosos procedimento que tem havido para com os arrependidos. (Chrônica Maranhense, 17 de dezembro de 1840)

O 'procedimento generoso, que não ofende a dignidade e a integridade do

Império', a que se refere o ofício, foi a anistia e o perdão concedidos aos desertores que se

rebelaram e a promessa aos escravos participantes de que não voltariam a seus senhores e se

quisessem o governo lhes custearia a viagem de volta à África, em troca de não voltarem para

os matos e não continuarem com no mesmo modo de vida que tinham, ao mesmo tempo em

que serviriam como reforço nas tropas do governo. Esse é o custo para que “[...] deixem de

ser tratados como rebeldes do Imperador e das Leis e possam entrar no gozo dos direitos de

cidadãos Brasileiros.” (idem)

O Exm. Snr. Presidente da Província, é que há de mandar destroçar o malvado Cosme, com os negros que o seguem, e aquelles, que forem bons Brasileiros, se apresentarão para não ficarem no número de taes malvados: os que ficarem armados nos mattos são tão malvados, quanto o Cosme, e seus companheiros.

40

[...]. Vejão, pensem bem, e facão o melhor, para depois não se arrependerem sem remedio. (Chrônica Maranhense, 24 de dezembro de 1840)

Cosme Bento das Chagas, o líder dos escravos é sempre apresentado como um

malvado, infame, facinoroso, assassino e "fera que só de humano tem a figura". Por muitas

vezes ‘o chefe dos negros’ é desqualificado, a fim de se fazer criar mentalmente a imagem de

um desordeiro que insuflava os escravos sem motivo aparente, simplesmente levado pela sua

natureza bárbara e índole ruim.

A mensagem do jornal e suas significações repassadas ao leitor são bem

recebidas à medida que o movimento se desenvolve e os fazendeiros do interior fogem para

São Luís, estabelece-se uma relação entre jornal e leitor que se fundamenta no nível de

‘violência’ ao qual atingiu a revolta. No entanto, forja-se uma outra imagem de tranqüilidade,

para convencer aqueles mesmos fazendeiros a voltarem para suas propriedades e

estabelecerem a ordem entre a escravatura.

Seria agora muito para desejar que os Lavradores se retirassem para suas casas, visto nada haver que receiar, afim de conter a subordinação nos seus escravos, que por tanto tempo tem estado na ociosidade, e por conseguinte propensos a aquilombarem-se por essas matas. (Chrônica Maranhense, 19 de fevereiro de 1841)

Por alguns momentos a elite maranhense e a imprensa como sua representante,

atingiram sua consciência máxima, dando à revolta dos balaios seu verdadeiro valor e

deixando transparecer o medo, ao perceber que a massa de escravos que poderiam se insurgir

era grande, o que seria uma grande tragédia para a Província.

Sérios cuidados me tem dado os centros do município do Codó aonde se contão melhor de doze mil escravos; e por esta rasão vim a este ponto, e tendo dividido partidas por differentes partes, para evitar que o veneno da insurreição se comunique a essa enorme massa: bem findadas esperanças tenho, que passará a procella sem maior borrasca, principalmente se os Lavradores que inda estão fora vierem, como alguns já o tem feito, para suas fazendas tornar obediente a escravatura que vacilla. (Chrônica Maranhense, 31 de outubro de 1840)

No fim do movimento, já capturados todos os seus líderes, retorna-se a falsa

consciência de que o levante dos escravos, capitaneados por Cosme, não passou de um

'atrevimento' e o medo de uma revolta maior, que mereceu 'sérios cuidados', por parte das

autoridades maranhenses, se converte em simples receio pela falta de braços na lavoura. A

estratégia usada pelos jornais e por quem fala através deles é desqualificar e combater uma

revolta que durou quase três anos, e que causou um pânico ainda maior com a insurreição dos

escravos nos ludovicenses, que só ouviam falar dos fatos ocorridos no interior da Província. O

mesmo temor social que os fizeram perceber os riscos da comunicação da insurreição entre os

41

escravos, foi o mesmo que os fizeram retroceder na tomada inicial de consciência (VAINFAS,

1986).

Está finalmente pacificada a Província do Maranhão, pois que de todas as partes officiaes que temos visto, não consta que nas Comarcas que foram invadidas pela rebeldia nenhum grupo se encontre, restando apenas estes dous numerosos, que se acabão de apresentar. Cumpre agora convergir todas as nossas forças a debellar o infame negro Cosme, que com quanto seja cousa que nunca nos deu cuidado, todavia é preciso que esses escravos que o accompanhão voltem ao trabalho de seus Senhores que tanto tem soffrido com a presente guerra, e que o chefe deles pague em um cadafalso os enormes crimes que há commettido. (Chrônica Maranhense, 29 de janeiro de 1841)

É evidente que eles não queriam perceber ou, simplesmente, omitiam as

motivações sociais da revolta, que nos jornais é sempre explicada como resultado das "guerras

intestinas entre partidos", por isso desconsidera-se quaisquer motivações para a luta, sendo

apontada como conseqüência mais relevante a falta de braços para trabalhar na lavoura. Esse

repúdio da emergência e do desenrolar da Balaiada pela maioria dos jornalistas evidencia um

caráter defensivo dos interesses senhoriais por parte da imprensa.

Destarte, tira de Cosme e dos escravos, que em muitos avisos são mostrados como

passíveis de se persuadir, qualquer tipo de consciência ou motivação pessoal, e chegam a

afirmar que o que Cosme fez foi somente insurgir a rebeldia natural dos escravos. A

insurreição dos escravos é tratada como um caso isolado da Balaiada, não dimensionado nos

quadros mais amplos da estrutura social escravista.

Outro ponto importante que se pode refletir destes ofícios das autoridades

maranhenses é a questão do trabalho enquanto organizador da ordem fragilizada. Ele aparece

como a garantia da obediência e da sujeição dos escravos, por isso os fazendeiros se tornam

colaboradores da tranqüilidade social ao passo em que voltam para suas propriedades e fazem

a escravatura retomar suas atividades. A ociosidade é apontada como a causa de

insubordinação e do envolvimento dos escravos na Revolta e o trabalho como segurança e

coação, servindo como eficaz instrumento de poder (VAINFAS, 1986).

Essa mesma ociosidade é revertida em vadiagem quando o assunto é controlar os

espaços de sociabilidade dos escravos, principalmente, no perímetro urbano de São Luís, mas

adaptar os escravos e os pobres livres a um sistema de valores que exige um nível de

civilização tão alto que nem a elite ludovicense conseguiu atingir, apesar de se esforçar, foi

um embate constante vivido pela sociedade ludovicense.

42

3. SÃO LUIS ENTRE A BARBÁRIE E A CIVILIZAÇÃO

A maior parte da população maranhense estava situada na zona rural, nas fazendas

de algodão e arroz do interior da Província, com cerca de mais de 80% da população total,

mostrando a importância da atividade agrícola no Maranhão. Porém, o que nos interessa é

analisar o modo de vida e a visão de mundo da população que habita a cidade de São Luís,

capital do Maranhão que vai apresentar características peculiares da relação escravista.

Capital da Província, São Luís, como a maioria dos principais centros urbanos surgidos no

período colonial, é um entrelaçado de porto marítimo, centro comercial de exportação e

entreposto do tráfico de escravos.

A cidade de São Luís está localizada na parte norte da ilha do Maranhão, de frente

para oceano Atlântico e, no início do século XIX, era rodeada por sítios de recreio. Estava

dividida em dois bairros: a freguesia de Nossa Senhora da Vitória, ou bairro da Praia Grande e

a freguesia de Nossa Senhora da Conceição, este bairro era o mais despovoado apesar de ter a

maior extensão, à época aí se situava o quartel militar. Já o bairro da Praia Grande era onde

funcionava o centro administrativo e comercial de São Luís, onde se encontravam a maior

parte dos prédios do governo, as principais igrejas e as grandes casas comerciais, além de ser

o bairro de moradia de grande parte da elite ludovicense.

Na primeira metade do século XIX São Luís acompanhou o conjunto de

transformações oriundas dos lucros da lavoura de algodão. Em conseqüência, além do

aumento populacional a capital maranhense, alcançou certa prosperidade material: a

importação crescera bastante e novas oportunidades de consumo surgiram juntamente ao um

crescente apego da elite ao conforto e ao luxo. Era aí onde mais se percebia o desejo de copiar

os costumes europeus, pelo fato também da presença cada vez maior de estrangeiros, a qual se

fez sentir consideravelmente com a abertura dos postos brasileiros ao comércio internacional.

Nesse período, São Luís se tornou passagem obrigatória para os vários viajantes

que percorreram e registraram o norte do Brasil. Dizia-se que a capital maranhense vivia de

costa para a Corte – ou seja, o Rio de Janeiro e todo o resto do Brasil – e de frente para a

Europa. Fora o clima, em nada a cidade lembrava a tropicalidade característica das cidades

brasileiras do século XIX, por tudo ela queria se afastar do sertanismo interiorano típico de

cidades com o mesmo índice populacional.

O surto econômico, não só possibilitou mudanças nos hábitos dos ludovicenses

como propiciou mudanças no aspecto urbanístico da Capital ao longo dos oitocentos. Em

43

1825 as ruas eram iluminadas por lampiões à base de azeite que concentravam nas ruas mais

importantes e das famílias mais ricas. O abastecimento era feito com o típico sistema de

aguadeiros e só fora organizada a partir de 1850, quando o governo assinou um convênio com

uma companhia que ficaria responsável pela canalização e abastecimento da cidade.

O transporte coletivo era feito em carruagens e carroças, e individualmente por

redes e cadeirinhas levadas por escravos. Nas ruas havia uma movimentação intensa,

circulavam mercadorias, pessoas, animais, carroças, redes e palanquins. A essa característica

das ruas de São Luis, Josenildo de Jesus Pereira, assemelha às cidades medievais com suas

ruas estreitas, originárias de caminhos e com suas praças que serviam como espaço para a

prática de muitas atividades (PEREIRA, 2001).

Nestas condições, o poder público municipal tomou várias medidas com a

intenção de melhorar o ambiente urbano da Capital, e ao mesmo tempo, de estimular hábitos

de civilidade no usufruto do espaço público. Com estas finalidades, a partir de 1840, as

posturas municipais servirão como instrumentos tanto de organização do espaço urbano de

São Luís, como de normalização da sociabilidade e reguladora dos hábitos citadinos.

Após o estabelecimento de europeus no comércio, que desde fins do XVIII já o

dominavam, intensificou bastante o intercâmbio cultural entre a Europa e o Maranhão que

começa a passar por um verdadeiro processo de europeização. Fator que explica uma

expressiva modificação do comportamento da sociedade maranhense, mas especificamente a

elite ludovicense, que aos poucos abolia certos usos e os substituíam pela prática de 'boas

maneiras'. Transformações na educação, no vocabulário, na culinária e no vestuário, tudo à

moda francesa, serão lembradas por vários autores na historiografia maranhense e relatadas

por viajantes estrangeiros (LACROIX, 2002).

Essa constatação permitiu captar o embrião da intelectualidade ludovicense que

ficaria conhecida nos anos seguintes e daria a São Luís a alcunha de 'Atenas Brasileira'. O

período de intensa atividade literária e de efervescência cultural vivido pela cidade na

primeira metade do século XIX, que consagrou nomes como de João Lisboa, Sotero dos Reis,

Odorico Mendes, Gonçalves Dias e outros, cristalizou uma imagem difundida por anos e que

até hoje é usada para identificar as peculiaridades da cidade de São Luís em relação às outras

capitais nordestinas. Prevaleceu no período a idéia de civilização como nas polis gregas

antigas, em que era considerado bárbaro tudo aquilo que estivesse à margem tanto geográfica

quanto culturalmente do 'centro do mundo'. Ou seja, pela sua localização privilegiada

aproximava-se não só geograficamente da metrópole como em termos culturais.

44

Porém é importante lembrar que a maior parte dos habitantes desta cidade era

composta de escravos – cerca de 60% da população de São Luís era escrava – e uma gente

completamente analfabeta e sem instrução e não falamos apenas dos despossuídos. De acordo

com Dunshee de Abranches, ‘a ignorância, os baixos costumes e o analfabetismo que

embruteceram a vida colonial em São Luís, ainda prejudicariam por mais vinte anos esta terra

depois da Independência’ (ABRANCHES, 1992). Mesmo algumas mulheres ‘bem-nascidas’

não acreditavam na importância da leitura e da escrita, as próprias autoridades não viam como

necessidade a criação de estabelecimentos de ensino.

Ou seja, apesar dos novos tempos que se desenhavam, não foi fácil disciplinar as

relações dos habitantes de São Luís entre eles próprios e entre eles e o espaço urbano. De

acordo com Dunshee de Abranches (1992), na cidade de São Luís, que já era a capital da

província, reinava um obscurantismo que perdurou praticamente até os anos 40 do século

XIX, quando, segundo o mesmo autor, inicia-se um período de "renascença" que marcaria

profundamente a história do Maranhão. Sendo que essa situação começa a mudar com a

criação de instituições de ensino e outros estabelecimentos como o teatro e a biblioteca que se

fixaram nas décadas de 30 e 40, e explicam uma expressiva modificação do comportamento

da sociedade ludovicense.

Lojas de tecidos finos e acessórios e as joalherias, além de costureiras, alfaiates e

cabeleireiros formam um novo conjunto de estabelecimentos e profissionais que se instalaram

e se tornaram os mais requisitados pela elite ludovicense. Os anúncios dos jornais são

representativos de todas estas mudanças, são cada vez mais numerosos e diversificados os

seus produtos e novos profissionais que oferecem seus serviços a uma elite ávida pelas

novidades de além-mar.

Mas são nesses mesmos anúncios onde também percebemos que seguindo esta

tendência estão os escravos, responsáveis por parte das atividades na cidade e elemento

indispensável para o desenvolvimento da Província, se profissionalizando de acordo com as

necessidades dos citadinos.

Os escravos são cada vez mais cedo entregues aos mestres profissionais para

aprenderem um oficio que futuramente dariam grandes lucros aos seus senhores pelo aluguel

de seus serviços. “As qualificações profissionais dos escravos se apuraram e diversificaram

com a influência de artífices europeus, após a liberação do Brasil à imigração não-lusitana.”

(GORENDER, 1992, p. 475). Costureiras, modistas, alfaiates, rendeiras de peças nobres,

doceiras de iguarias finas eram exemplos da diversificação profissional exigida pelo conjunto

de novos valores e costumes de uma elite que pretendia se europeizar.

45

Quem tiver e quiser vender huma escrava, que seja boa costureira modista, e saiba bem vestir e ornar huma senhora, participe-o na loja de Jozé Domingues Castro, de fronte do Coronel Magalhães, junto à Praia Grande. (O Publicador Oficial, 31 de julho de 1833) Pertende-se comprar huma escrava, que seja boa engomadeira e costureira, quem a tiver e queira vender pode procurar em caza de Manoel Ferreira da Silva, defronte do Largo de João do Valle. (O Publicador Maranhense, 11 de outubro de 1843) Terça-feira 25 do mez de Maio o Corretor Lemos Guimarães fará leilão em seu Armazém, dos seguintes escravos:Huma mulata, idade de 35 annos, costureira, lavadeira e gomadeira, faz renda de toda a qualidade, cozinheira, e faz todo o serviço de caza, é muito fiel, e não tem vicio algum. Hum mulato, idade 25 annos, tem princípios de Alfaiate, trabalha de Pedreiro, sem vicio algum. (O Progresso, 1 de maio de 1848)

O aluguel de escravos para os mais diversos serviços, por sua vez, se tornou uma

prática urbana cada vez mais comum, pois mesmo quem não tinha condições de comprar um

escravo tomava-o de aluguel, e outros que não tendo meio de vida específico faziam dessa

prática o sustento de toda a família. Isso nos revela uma característica específica das relações

escravistas nos centros urbanos, o fato de a mão-de-obra escrava não ter sido exclusividade de

meia dúzia de fazendeiros abastados, mas ser amplamente disseminada havendo uma grande

diversidade social das pessoas que a utilizavam, formando uma rede de pequenos senhores de

escravos.

O novo cenário que se desenhava com o surto de crescimento econômico exigia,

além de mudanças na estrutura física da cidade, mudanças no comportamento de seus

habitantes e na dinâmica das relações sociais as quais teriam que ser concordantes com uma

sociedade urbana e com a idéia de progresso difundida. Ou seja, além dos novos valores de

consumo era necessária a adoção de outros valores condizentes com o ideal de civilização que

se propunham. Não sendo suficiente o consumo de roupas, mobílias, livros e iguarias de

origem estrangeira, mas uma adaptação dos habitantes a um comportamento dito civilizado.

No entanto, os novos valores que se tinham na época como civilizados chocavam-

se constantemente com as práticas sociais consideradas bárbaras. A elite ludovicense tinha

uma idéia de civilização que se baseava na regra da lei e da cultura, enquanto a barbárie

representava a falta de ambos e o domínio da brutalidade. Uma e outra conviviam lado a lado,

ao mesmo tempo em que se conflitavam no cotidiano de São Luís.

Os códigos das posturas municipais de São Luís são um exemplo sintomático

dessas contradições. Em forma de manuais de civilização, a fim de expurgar as práticas e

costumes bárbaros que reinavam na capital maranhense, eles evidenciam a dificuldade das

autoridades em educar os ludovicenses e, ao mesmo tempo, o choque entre o que se pretendia

e o que realmente era. A pretensão da elite ludovicense era de adaptar os pobres e escravos da

46

cidade a uma nova conjuntura econômica e social, mesmo que para isso fosse necessário o

uso coercitivo do poder do Estado mascarado nas posturas que regulamentavam o

comportamento social.

A exemplo do confronto cotidiano entre as práticas costumeiras da população e as

exigências da lei, tem as posturas que dentre os assuntos diversos insistem na limpeza e

conservação dos espaços públicos da cidade como ruas, praças, praias e terrenos, cobrando

rigidamente a tomada de atitude por parte de seus moradores, chegando a regularizar os

espaços limites entre o público e o privado como as calçadas e as sacadas das casas.

Há também um outro conjunto de normas que mostra a preocupação constante das

autoridades quanto à saúde pública e quanto aos 'costumes do povo' que são considerados

prejudiciais para a manutenção das boas condições de higiene e causadores de doenças.

Algumas posturas chegam a obrigar a vacinação e internação dos moradores com a aplicação

de multas para aqueles que se negarem a tal.

As posturas 96 e 97 do Código da Cidade de 1840 que regularizam quanto ao

tratamento de carnes, a limpeza e o processo de conservação das mesmas são até bem

enfáticas chegando a demonstrar, através de alguns termos, certa irritação do legislador com

relação à persistência de algumas práticas prejudiciais a saúde pública, no texto dessas

posturas encontramos: “Ficão de todo extinctos os salgadouros de cuoros verdes [...]

evitando-se por esta forma as grandes immundicias, e pestilento cheiro de sangue pútrido que

diariamente infecciona a att’mosfera, vindo por tanto a saúde pública a sofrer grande

detrimento.”

Ou ainda:

A pessoa alguma d’ora em diante he permitido alimpar os factos verdes das Rezes na praça do Açougue publico.... sendo por tanto, esta postura em toda a sua plenitude applicavel aos que abusiva, e escandalosamente custumão lançar na referida praça do Açougue, e outros lugares as pontas, sabugos, ossos, e unhas das rezes.

E quanto à postura 51, ela é bem explícita quando se refere à permanência de

certos hábitos:

Tendo mostrado a pratica, que os Criadores de Porcos se eximem de os mudar do centro desta Cidade para os lugares, que lhe forão designados na Postura 32, que continuão a fazellos tranzitar pelas Ruas, e Praças, pois é impraticavel o conhecer-se a quem pertencem, e mesmo se negão alguns indivíduos, em menos cabo da Postura, e em desprezo da saúde publica, a declarar taes proprietários [...]

As leis constituem indicadores especialmente úteis de mudanças nas atitudes

sociais. A postura 50 já demonstra uma lenta modificação no comportamento dos citadinos

47

que sentem a necessidade de abolição de certos costumes, que até um dado momento eram

aceitáveis passando, posteriormente, a ser reprovados por uma parte da população.

“Fica prohibido o desembarque de gado Vacum que se destina á matança, em

prayas, e Caes da Cidade [...] para que, cesse o tranzito do gado pelas ruas da Cidade,

com que ultimamente tem sido incommodado o público [...]”.

Como a ação precede a lei, ou seja, a lei antes de coibir uma ação constata a sua

existência e seu prejuízo para a vida em sociedade, é lógico pensar que todas estas práticas

eram toleráveis e até aceitas, mas com a imposição de novos valores, foram sendo

consideradas desviantes do comportamento social que se pretendia civilizado e por isso,

passaram a ser intoleráveis e passíveis de punição.

O confronto da lei com a prática social a qual aquela tentar regular é ainda mais

evidente quando são colocadas lado a lado as relações sociais entre os ludovicenses e os

comportamentos civilizados pregados pelas posturas. Posturas que normatizam as formas de

diversão, as vestimentas, o vocabulário são cada vez mais comuns como forma de moldar as

práticas sociais e redefinir os valores de acordo com a lógica do progresso e da civilização.

Por isso, o uso constante das multas como forma de pagamento às contravenções,

se perfazendo em um mecanismo essencial para normatizar comportamentos. A multa é uma

forma mais leve de punição, usada quando as transgressões são ainda muito corriqueiras

servindo como parte de um processo de adaptação da população com a norma, como se essas

práticas tivessem uma tolerância mínima e aceitação mediante pagamento, pois pela

facilidade com que acontecem aboli-las bruscamente do quadro social acarretaria grande

número de transgressores punidos.

Entretanto, muito interessante é perceber a forma como estas regras de ‘bem-

viver’ foram impostas aos pobres e aos escravos da cidade, que pareciam ser o principal alvo

das posturas. Era uma forma de separar e marginalizar os espaços utilizados pelos diferentes

públicos.

Postura nº 30: Fica prohibida toda a edificação de cazas cobertas de palha nas ruas da Cidade, pena de seis mil reis; e igualmente se prohibem as novas coberturas de palha em todas as existentes, pena de trez mil reis; o que se não entenderá com a pobreza, que não tiver meios para recobrillas de telha.

Ou a Postura nº 94:

Toda a pessoa que de hora em diante côrar, enxugar e estender roupa nas ruas desta Cidade tanto no chão, como em cordas; e ainda mesmo nas testadas de suas propriedades, excepto nos subúrbios, pagará de multa pela primeira vez para as obras da Câmara cinco mil reis, e na reincidência dez mil reis.

48

Percebe-se com isso, que ao mesmo tempo em que as posturas serviram como

mecanismo de adaptação das classes subalternas ao novo ideal de civilização e para redefinir

valores sociais, elas excluem e expurgam o que é considerado bárbaro aos olhos da elite e do

Estado, delimitando espaços e definindo fronteiras. Mas o que Wagner Cabral chamou de

duas faces de uma mesma moeda não se limita a isso, é uma questão muito maior que envolve

a própria estrutura social maranhense a qual reproduziu valores e padrões dominantes

consolidando as diferenças sócio-econômicas. Todo esse 'carnaval de máscaras' que encanta,

mas também esconde não deixa de entrever a verdadeira base de toda a euforia e prosperidade

que reinou na cidade de São Luís nessa primeira metade dos oitocentos.

O ideal de civilização chocava-se constantemente com o mais bárbaro dos

trabalhos: o escravo, que foi o sustentáculo da Atenas Brasileira por séculos, que possibilitou

o afloramento econômico e o reconhecimento cultural de São Luís enquanto a mais européia

das cidades brasileiras. No entanto, era na mesma cidade que encontraríamos senhoras bem

vestidas à moda francesa, recobertas dos tecidos e rendas mais finos carregadas por negros

escravos pobremente vestidos, quase nus, uma platéia ouvinte que apreciava a boa música

tocada ao piano, mas por um negro acorrentado nos pés dentro de um templo sagrado9; ou

pais pregadores da boa moral que obrigavam suas filhas a casarem com seus empregados para

darem continuidade às suas fortunas, enquanto na noite dormiam com escravas debaixo do

mesmo teto de sua ‘sagrada família’.

Era entre os baixos costumes herdados do período colonial, marca da barbárie e os

ideais de civilização soprados pelos ventos europeus que vivia a população ludovicense da

primeira metade do século XIX e que permitiu uma atmosfera propícia á construção das mais

diversas imagens relativas à própria elite ludovicense, às camadas populares e,

principalmente, aos escravos.

9 Fato relatado por um leitor do periódico Argos da Lei e publicado na seção de correspondências, no dia 19 de abril de 1825.

49

4. A FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO10 LUDOVICENSE

Georges Duby (1995) diz que a força dos fenômenos mentais é tal qual a força

dos fenômenos econômicos para se compreender a ordenação de uma sociedade e para

discernir as forças que movem a evolução de suas relações. Dessa forma, além das condições

concretas de existência, a imagem que os homens fazem de sua condição são também

importantes para entender o sistema de valores adotado por uma sociedade. E Jacques Lê Goff

(1995) ainda enfatiza quanto à dificuldade de traçar a fronteira que separa o real material do

real imaginário, ou seja, o que realmente é do que imaginamos ser.

Apoiados nesses dois autores acreditamos que o imaginário ludovicense na

primeira metade do século XIX teve sua base concreta de existência na euforia material

vivenciada pela cidade de São Luís, adquirido em conseqüência dos lucros da lavoura agro-

exportadora sustentada pelo trabalho escravo, e em conjunto com as representações

elaboradas pela elite maranhense sobre esse momento e sobre a composição da estrutura

social maranhense, que incluía a si própria e os outros estratos sociais.

Estas representações são traduções mentais da realidade, e a forma como esta é

percebida e abstraída depende da visão que se tem do mundo vivido. Dessa forma, o passado

que nos chega através dos jornais, por exemplo, também vem em forma de discurso,

carregado de uma ideologia aqui considerada como interpretação de uma situação real que

apresenta, de forma simplificada, a realidade e a organização social.

Desvendando um período específico da história maranhense, momento em que já

estão firmados os princípios de formação de uma sociedade eminentemente escravista, pode-

se perceber como foi possível manter por tanto tempo milhares de homens escravizados sob o

jugo de uma diminuta camada da sociedade que detinha o poder político e econômico, além

de compreender como algumas imagens sobre o negro, formadas enquanto na condição de

escravo, se cristalizaram de tal forma que até hoje permeiam o imaginário social brasileiro.

Existiam sutilezas na política de domínio de trabalhadores escravos, pois sem a introjeção pelo menos parcial de certos símbolos de poder seria impossível imaginar que uma determinada forma de organização das relações de trabalho pudesse se reproduzir por tantos séculos. (CHALHOUB, 1990, p. 150).

Ou seja, procuramos compreender os mecanismos que possibilitaram a longa

existência do sistema ideológico escravista, as adaptações possíveis e o peso de sua influência

na evolução das relações sociais.

10 O termo imaginário é usado enquanto expressão do pensamento manifestada por imagens e discursos que

50

Os intelectuais-jornalistas que foram os interlocutores da elite ludovicense nos

oitocentos através de seus jornais e escritos, foram divulgadores do discurso ideológico de

dominação e contenção de uma grande massa não só de escravos, mas de todos aqueles das

camadas subalternas que poderiam ir contra os interesses de manutenção e justificativa da

ordem escravista. Tinha-se a necessidade, na expressão de Célia Azevedo11, de interiorização

da dominação pelo dominado para definição dos papéis sociais de acordo com os interesses da

classe dirigente. Para tal, a formação de estereótipos pela elite se tornou uma arma eficaz de

dominação, o que por outro lado, demonstrava o medo de uma minoria branca.

Ao depararmos com a grande quantidade de escritos e informações sobre a

sociedade ludovicense na primeira metade do século XIX, em especial aqueles contidos nos

jornais, surgiram as seguintes questões: Os discursos que encontramos decorrem de qual

postura ideológica ou política? Que imagens esses discursos permitem formar? Que papel

essas idéias assumiram na sociedade? Em defesa de quais interesses elas eram elaboradas?

Quais as condições de produção dessas mensagens? Responder a todas estas questões não é

trabalho fácil, pois a primeira coisa que constatamos foi a complexidade das relações

cotidianas na cidade de São Luís, que acabaram por corroborar as especificidades da

escravidão nos centros urbanos.

Certamente que as imagens que nos vem à cabeça quando lemos hoje os jornais

do século XIX não são as mesmas que se formavam nos leitores da primeira metade dos

oitocentos. Esse distanciamento temporal apesar de decorrer alguns riscos comuns á pesquisa,

nos traz uma grande vantagem ao passo em que nos possibilita perceber motivações

emocionais e pessoais que entremeavam aquelas relações cotidianas.

Nosso interesse não é, necessariamente, desvendar as imagens que os escravos

tinham da escravidão, mas para nosso estudo é de crucial importância fazer uma reflexão

sobre a visão que os africanos, em especial, formavam ao chegar numa terra diferente da sua e

ao assumir um papel social que muito provavelmente não condizia com o seu no ambiente

social do qual ele foi retirado, e ao mesmo tempo entender os meios usados por eles para se

incorporarem no novo meio em que foram inseridos. Tal análise se torna importante para se

perceber, por exemplo, porque algumas atitudes de sobrevivência ou de resistência escrava

era vista como submissão do negro ou mesmo como rebeldia natural do escravo. Sobre essa

questão Vainfas (1986, p. 35), é incisivo:

pretendem definir a realidade. 11 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no imaginário das Elites Século XIX. 2ª. Edição. São Paulo: Annablume, 2004

51

Ao africano reduzido a escravidão interessava, quando não a fuga, buscar os meios de se integrar à nova ordem, do modo menos penoso, com objetivo mínimo de garantir a sua sobrevivência pessoal. Tratava-se, em suma, de buscar uma identidade diante da escravidão.

Assim, passado todo o processo violento de desaculturação que transformava o

africano em escravo (apresamento, escravização, venda ao traficante, travessia marítima,

negociação em leilões públicos ou mesmo venda a compradores diretos), ele ainda encontraria

as dificuldades de comunicação, devido à diversidade étnica e lingüística dos povos que

desembarcaram no Brasil, junto a isso estaria o desconhecimento da língua portuguesa e a

incompreensão das normas do cristianismo12. “O estupor e o medo, o abatimento e o pavor, o

horror diante do desconhecido, do estranho e da coação” são as primeiras sensações definidas

por Kátia Mattoso (2003, p. 43).

Diante dessa situação de desalento, “a referência básica que o sistema dava ao

africano para socialização era de natureza dupla: a condição de escravo, com todas as

exigências que tal condição acarretava, e a condição de negro, comum aos escravos,

submetidos todos a senhores brancos” (VAINFAS, 1986, p. 35). Vainfas (1986) faz tal

afirmação ao analisar as bases de formação da ideologia escravista na sociedade colonial. No

entanto, essa imagem do africano enquanto negro, e deste enquanto escravo se cristalizou de

tal modo no imaginário social, que ainda hoje é objeto de estudo na historiografia, ainda mais

quando em fins do século XIX as teorias científicas vêm reforçar a tese da inferioridade racial

dos africanos.

Com toda essa argumentação queremos lembrar o nível de violência simbólica a

qual estavam sujeitos os africanos ao desembarcarem em terras brasileiras e depararem com

uma sociedade dominada por um modelo branco, ou seja, o controle psicológico funcionou

mais eficazmente do que o controle pelas armas, o que explicaria a 'facilidade' de dominação

da minoria senhorial sobre uma população numericamente maior e a disseminação do sistema

escravista. Não queremos dizer com isso que houve passividade ou mesmo paralisação dos

dominados, mas a reação estava dentro dos limites da ordem social imposta e por vezes se

sobressaía a esta, como nos mostra a existência de inúmeros registros de revoltas escravas que

marcaram a história do Brasil.

12 Para melhor compreender o processo de dessocialização do africano e que vai implicar a sua despersonalização ver Kátia Mattoso, 2003, na parte Ser escravo, da obra Ser Escravo no Brasil.

52

Como mecanismo de ajuste social ou simplesmente para garantir sua

sobrevivência pessoal13, o africano, de certa forma, é obrigado aceitar a posição que lhes

impõe, sua ‘repersonalização’ estará ligada, prioritariamente, ao trabalho14, especificamente

ao tipo de atividade que ele irá desempenhar e que lhe identifica enquanto escravo. De certa

forma, é uma tática de sobrevivência, o escravo se utilizar dos valores da sociedade de adoção

para se inserir num espaço social desconhecido e que lhe atribui um novo lugar na estrutura

social, a exemplo disso, temos o sincretismo religioso que permitiu a sobrevivência do culto a

entidades africanas, apesar da imposição de cristianização do escravo.

A aparente amenidade das relações que se estabelecem entre senhores e escravos, a semelhança de uma adaptação da mão-de-obra obediente e humilde é, na verdade, uma forma eficaz e sutil de resistência do negro face a uma sociedade que pretende despojá-lo de toda uma herança moral e cultural. (MATTOSO, 2003, p. 103).

Quanto a essa questão ressaltamos a importância do espaço urbano ludovicense na

diferenciação das relações escravistas. Era grande o número de atividades desempenhadas

pela mão-de-obra escrava e os que se beneficiavam dela eram variados também, desde

grandes senhores até pequenos proprietários das mais variadas condições sociais e

econômicas, ou seja, a própria condição do senhor iria influenciar no momento de

ressocialização do africano.

Dentre os vários povos que desembarcaram no Maranhão, além de diferenças

culturais e lingüísticas, existia uma grande diversidade quanto à organização política e social,

a organização familiar e a religião. Toda essa diversidade foi simplificada e desconsiderada a

fim de despojar do africano toda sua carga cultural e facilitar o domínio senhorial. Era uma

estratégia comum entre os proprietários de escravos misturar africanos de nações diferentes,

dificultando a organização ou mesmo a formação de uma comunidade escrava. Estratégia que

não foi suficiente para impedir a penetração e mesmo conservação de certos aspectos da

cultura negra na sociedade ludovicense.

Havia a ampla disseminação da propriedade escrava e para a sociedade

ludovicense a posse de escravos, nem que fosse um único escravo, era uma forma de

diferenciação social, isso explica o fato de forros serem proprietários de escravos ou de

pessoas descendentes de escravos também os possuírem. Numa sociedade escravista que

13 Outras questões devem ser observadas como o fato de a maioria da população escrava viver em fazendas dispersas pelo gigantesco território brasileiro, o que explicaria a dificuldade de uma organização mais completa; a questão de haver laços familiares já formados na comunidade escrava que comprometeria atitudes isoladas e até mesmo o próprio medo das armas e das punições. Todos são fatores que fazem refletir sobre o ponto em que sobreviver ao sistema se torna mais importante que enfrentá-lo

53

valoriza quem tem posses e que a cor é um fator negativo, o poder de compra será de

relevância para aceitação social, e o escravo, por sua vez, era visto como o melhor exemplo

para mostrar opulência.

Muitos autores que escreveram sobre o Maranhão enfatizam a opulência dos

senhores de escravos maranhenses. Raimundo de Sousa Gaioso, no seu "Compêndio

Histórico-Político dos Princípios da Lavoura do Maranhão"(1818), célebre obra da

historiografia maranhense, aponta esse fator como um dos preponderantes da decadência das

lavouras de algodão e da falência de muitos fazendeiros do interior maranhense, os quais

pagavam uma fortuna por um escravo macho na idade ideal para o trabalho, não se

contentando com quantidade que já possuíam, e o faziam por pura vaidade.

4.1 As imagens mais constantes do escravo nos jornais

Ao primeiro instante tudo que encontrávamos nos jornais parecia falar de política,

e poucos artigos tratavam, ou discutiam diretamente o sistema escravista, este era ausente

enquanto tema específico, pois na primeira metade do século XIX, a escravidão não era

contestada, e na Província maranhense nem chegava a ser discutida.

Entre os artigos que discutiam ou criticavam as atividades dos políticos

maranhenses havia certa agressão, comum nos periódicos da época. Os termos e expressões

utilizados nos textos denunciavam a visão que seus autores tinham da sociedade e, por muitas

vezes, a utilização de figuras de linguagem, como metáforas, comparações e analogias se

transformavam em instrumentos perversos para identificar quem pretendiam criticar, mas ao

fazê-lo, terminavam por caracterizar a própria escravidão, denunciando – meio sem querer – a

condição do escravo maranhense.

O interesse dos depositários do poder, quasi sempre separado do da nação, os torna commumente inimigos os mais cruéis da liberdade. Affeito a considerar os súditos como um rebanho de escravos, de quem pode dispor á vontade. O Rei imagina que as acções, e até os pensamentos dos seus governados, devem ficar sujeitos às suas supremas vontades [...] ao passo que os súditos definhão nos ferros [...] (Argos da Lei, 8 de fevereiro de 1825)

14 A questão da relação escravidão e trabalho será amplamente discutida ao longo do século XIX, principalmente no momento de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, sendo este tema usado como argumento para desvalorizar a mão-de-obra escrava.

54

Desse artigo produzido ainda no furor das discussões pós-independência, o

redator faz severas críticas às atitudes despóticas de políticos representativos desse período, e

para caracterizar as condições dos governados diante do abuso de poder político, ele usa do

recurso da comparação com a condição dos cativos, considerados propriedade e comparados a

animais, dos quais seu senhor tem supremo poder, sem direito a ações ou mesmo pensamentos

próprios; ao fim, o sofrimento dos súditos é comparado ao sofrimento dos escravos presos a

ferros, impossibilitados de tomar qualquer atitude, ou se defenderem.

Essa comparação é muito eficaz, pois a imagem do escravo enquanto propriedade

e sempre preso a ferro é forte o suficiente para incentivar a reflexão do leitor, pois está

inserido num contexto social ou consenso social anterior e já compartilhado, ou seja, a idéia

que se tem do escravo já fazia parte de uma mentalidade escravista que, aqui, está ligada à

manutenção do status quo, e apesar de no texto se fazer menção a um rebanho de escravos, e

isso lembrar o grupo dos grandes proprietários rurais, não podemos esquecer que uma grande

parte da elite urbana era igualmente servida por essa mão-de-obra desde o século XVIII.

Quanto à imagem do escravo comparado ao gado, ela era corrente, admitindo-se

seu valor de mercadoria, o tratamento dispensado não era muito diferente, é o que se percebe

em anúncios onde se oferecem à venda escravos e mulas ou que apontam uma marca feita a

fogo num escravo fugido. O Regulamento das Administrações de Diversas Rendas, ao tratar

Da Administração Econômica da Fazenda, sua Escravatura, e Gado, assim se refere em seu

artigo 49: “A Escravatura, em quanto for conservada, e os Gados, ficarão sujeitos, e a cargo

do Feitor, que recorrerá immediatamente ao Vice Director, em todos os casos, para

providenciar sobre o sustento, vestuário, e curativo d’elles.”

Na própria legislação provincial que regulamentava os bens móveis e imóveis, o

escravo era um bem como um prédio, uma fazenda, um terreno, uma chácara, um sítio, era

como todos, uma propriedade, passível de todas as ações monetárias características dessas

propriedades.

Havia uma variedade de atividades comercias do qual o escravo era objeto: além

das mais comuns como compra, venda, aluguel, temos algumas menos freqüentes como

leilões, a permuta, hipoteca e seqüestro da Fazenda em execução do Tesouro Provincial.

Inúmeras são as pendengas judiciais as quais os bens disputados são escravos, ou mesmo são

objetos de denúncia de enriquecimento ilícito, por parte de alguns proprietários fraudulentos.

O poder privado do senhor sobre seus escravos, vistos enquanto propriedade, é

que define a essência da ordem escravista, sendo um consenso no imaginário ludovicense.

55

Assim, foi a imagem do escravo enquanto mercadoria a predominante e a mais disseminada

na sociedade ludovicense no século XIX. Talvez isso não seja surpresa, mas surpresa é pensar

as peculiaridades dessa mercadoria, a qual, além das leis de mercado que lhe recaia, também

havia aquelas que regulavam seu comportamento impostas pelas Posturas Municipais, e as

imagens mentais sobre esta estranha mercadoria que inundavam o pensamento da sociedade

ludovicense não eram assim tão simples.

São muitos os textos que possibilitam perceber o paradoxo .da mercadoria escrava

Os anúncios foram sintomáticos desta questão, ao venderem seus escravos, os anunciantes

qualificando-os enquanto mercadorias, como sem vícios, de bons costumes, boa conduta e

qualidade, trabalhador, de boa figura, sem defeito, moléstia ou lesão alguma; e para comprá-

los, exigindo que fossem muito fieis, ágil e sadio, que não fosse bêbado, ladrão, fujão. Todas

estas são características que designam um escravo e chegam a ser consideradas como próprias

dessa 'classe'.

Para analisar a diversidade dessas imagens comecemos com uma questão muito

evidente nos textos da primeira metade do século XIX: a relação africano-negro-escravo. Os

termos se tornam quase sinônimos chegando ao ponto de se confundirem quando tratam dos

costumes e hábitos, prevalecendo a idéia de inferioridade, tanto pela cor da pele quanto pela

cultura, fatores sempre mencionados como diferencial para caracterizar os africanos. Aos

escravos recaem todos estes preconceitos de herança genética e ao negro sobra-lhe o

estereótipo e a estigma.

Destarte, para alguns escritores do século XIX, ser africano no Brasil é ser escravo

e também ser negro, as diferenças não são claras e uma única imagem é invocada quando um

dos termos é utilizado nos textos do período. Ou em outros casos, a herança africana é

lembrada para explicar o comportamento dos escravos e, por conseguinte, do negro que

parece não se encaixar na sociedade. Dessa forma, a primeira imagem do escravo disseminada

na sociedade ludovicense, que conseguimos captar dos textos dos jornais é aquela ligada à

depreciação do escravo pela sua origem africana, pela sua cor e pelos costumes.

Para exemplificar a assertiva temos um artigo intitulado "O valor de uma

pretinha" publicado na seção ‘Variedades’ do jornal O Progresso. O título do artigo, enquanto

primeiro contato do impresso com o leitor, por ser o início de qualquer leitura, e o primeiro

passo na produção de sentidos, por si só já produz um grande efeito sobre o que vai ser

narrado ou a intenção do impresso e a mensagem que se deseja transmitir, que no mínimo

estimula dois sentidos: o valor enquanto mercadoria ou o valor enquanto qualidade de uma

56

mulher negra, que no caso tem o vocábulo na forma diminutiva, que no mínimo, soa

pejorativo.

O caso narrado trata da trajetória da soberana de um dos reinos africanos, o Reino

de Angola, e suas estratégias para alcançar o poder. A primeira característica da rainha Zingha

apontada no texto é o fato dela ser negra e ter vassalos negros, depois ela é lembrada por seu

espírito belicoso, que o texto deixa bem claro a relação com a ambição da rainha, que foi

capaz de fingir converter-se ao cristianismo para ganhar a confiança, matar o irmão herdeiro

do trono e o sobrinho - segundo herdeiro – para se apossar do Reino. Após esta parte da

narrativa, o autor do texto o conclui com a seguinte frase: "Vejam que tal era a negrinha".

Com esta frase o autor corrobora a assertiva do título, no sentido do valor se referir às

qualidades da rainha africana e do que ela era capaz de fazer para alcançar seus objetivos.

Aliás, os vocábulos pretinha, negrinha, mulherzinha, sempre no diminutivo, estão presentes

por todo o texto para se referir a rainha Zingha, produzindo um efeito de desprezo e de

desvalorização dela enquanto mulher e enquanto africana.

O texto ainda se refere ao "ódio natural" da Rainha para explicar seus

procedimentos e ao "instinto", que nela não parecia ser materno, pois segundo o autor a

mulher "tinha o diabo no ventre". Esta frase usada para caracterizar uma mulher em pleno

século XIX, num período em que a mulher era vista como um ente que veio a terra com a

missão de gerar vidas e educar os homens que conduziriam a sociedade, produziria, no

mínimo, um sentimento de repulsa do leitor pela rainha. Este pensamento é reafirmado

quando o autor segue narrando o quanto era difícil torná-la "doméstica e reduzi-la a termos

hábeis".

Dito desta forma, além de fazer referência àquela mulher denunciada por Maria

Firmina dos Reis, no seu romance Úrsula, e sua situação nos lares maranhenses caracterizada

em O Cativeiro por Dunshee de Abranches, como o cativeiro das brancas15, invoca também a

própria condição do escravo que se despojará de sua ‘herança bárbara’ africana para adaptar-

se ao mundo civilizado europeu.

Esta é outra questão muito evidente no texto, a forma como o autor fala dos

costumes dos povos africanos – identificados até hoje como uma homogeneidade

desconsiderando as particularidades e a faceta multicultural e étnica dos vários reinos e paises

que compõem o continente africano – produzindo uma sensação de repúdio do leitor pelas

15 A saga da personagem Úrsula mostrando as limitações das mulheres numa sociedade machista e paternalista como a maranhense do século XIX e história de preconceitos e reclusão de D. Emília Branco, mãe do escritor maranhense Aluísio Azevedo.

57

práticas culturais africanas e evidenciando a idéia que se tinha de suas crenças e valores,

apresentando os africanos como inferiores, também pela cor e qualidades.

Comtudo, atraz do tempo tempo vem. A mulher foi-se tornando mais macia e menos inexorável [...] sua política tornou-se menos agreste [...] e Zingha se deixa persuadir e abraçar de novo a religião chrstãa. [...] Pouco depois ella publica um decreto, edital, ordem ou o quer que seja, que proscreve a idolatria e a polygamia; isto he, prohibio que certas carantonhas fossem adoradas e que os homens tivessem muitas mulheres. Não ficou só nisso: a senhora D. Zingha abolio a cruel ceremonia do Tombo que não era nada menos que, na occasião dos funeraes dos reis, sacrificar immensas vítimas humanas. [...] Ella viveu mais dous annos, e persistio no seio da religião catholica apostólica romana, e levou tão longe o seu zelo, que muitas vezes ella fez queimar vivos a vários de seus vassalos que não quizeram deixar de ser idolatras!(O Progresso, 04 de janeiro de 1848)

È evidente no texto a clara oposição feita entre a "patriótica ocupação" portuguesa

em terras africanas e a "guerra teimosa e incómoda" da rainha acompanhada de "povos

ferozes" tentando retomar suas possessões, mostrando o quanto é forte a idéia de colonização

a favor do cristianismo, o que justifica a atitude imperialista dos europeus, nunca sendo

contestada ou se quer questionada, antes vistas como missão civilizatória. Esta oposição

também existe quanto aos rituais religiosos de africanos e europeus, enquanto o cristianismo é

o redentor das almas perdidas na barbárie – e matar aqueles que o renegam é considerado um

sinal de lealdade e obediência – a cerimônia africana, em homenagem aos deuses de sua

crença de origem, é considerada cruel e bárbara e que, por isso, deve ser abolida.

E quando se fala dessas oposições entre africanos e europeus, e entre negros e

brancos, não só os aspectos culturais são ressaltados, mas a origem e a cor da pele é um fator

que se destaca e, que em muitos casos, aparece intimamente ligada a qualidades e virtudes das

pessoas, chegando a sobressair-se em relações a outros aspectos, até mesmo o econômico.

Esta é a questão que perpassa um outro artigo intitulado "Aviso aos solteiros", publicado n’O

Publicador Maranhense:

Falla-se com muito interêsse nos soirées de Pariz de uma estrangeira que alli chegou recentemente das colônias hespanholas. É uma senhorita de 24 a 25 annos, e possue uma fortuna considerável. Alguns lh’a avaliam em dez ou doze milhões mas ainda que seja só metade é bastante para a fazer mui linda. A estas circunstancias reúne ella o ser inteiramente livre e senhora absoluta de sua mão, accrescentando que veio a Pariz com o especial objetivo de casar-se com um jovem que seja bom rapaz e que pertença à Aristocracia. [...] A rica herdeira exige que seu marido a appresente ao grande mundo, que a leve aos bailes, aos concertos, à ópera francesa e à italiana. E isso é a cousa mais fácil deste mundo! Dirão por aí com um dote tão grandioso aquella senhora encontrará centenares de maridos aristocratas complacentes e elegantes que a regalem de luxo e de prazeres, e lhe abrão as portas dos mais brilhantes salões. – Sem dúvida! porem há uma pequena difficuldade que talvez intimidará os partidistas das milionárias. A encatadora herdeira é uma negra. (O Publicador Maranhense, 26 de abril de 1843)

58

Este artigo estava na seção Variedades que, segundo o mesmo jornal, tem objetivo

de instruir recreando. Essa é uma seção característica dos periódicos de maior circulação em

São Luís e é uma espécie de recreação e instrução com a clara intenção de dá lições de moral,

e justamente por isso, não fica claro se os artigos narrados são fatos verídicos ou estórias

ficcionais. Mais uma vez chamamos atenção para a força dos títulos, que neste artigo expressa

nitidamente uma espécie de alerta e é direcionado a um público específico, os solteiros.

O preconceito quanto à origem e a cor é tão arraigado na sociedade e estes

aspectos são tão negativos para a aceitação social, que o fato da moça ser uma negra é

considerado mais importante e derruba quaisquer outros argumentos como a sua fortuna e

beleza. Em nenhum momento é citado o fato dela ter sido escrava ou qualquer relação sua

com a escravidão, mas só o fato dela ser negra parece ser o suficiente para que assim se pense,

e sobre ela recaiam todos os preconceitos comuns a uma sociedade escravista.

A oposição entre os povos africanos e europeus para caracterizar uma hierarquia

cultural é tão comum nos discursos dos jornais, que alguns textos surgem, aparentemente sem

estar ligados à seção alguma, como uma espécie de curiosidade, mas que nem por isso deve

ter desconsiderada sua importância, como este intitulado Côr dos negros, no jornal Chrônica

Maranhense:

A religião e a razão nos ensinam que todos os homens descendem de um tronco, e um exame philosophico da espécie humana mostra claramente que os europeus, pela excellencia de sua organização, e ellegancia de suas formas, são os que mais se assemelham áquelle tronco primordial, que devemos suppõr como perfeito em sua natureza. Em todos os séculos tem a raça chamada branca gosado da preeminência, e é hoje incontestável que os europeus dominam o universo. E se algumas nações ha nos confins da Ásia, ou em África, livres do seu império, é porque rasões políticas tem embaraçado a sua sugeição, ou porque a natureza do clima tornaria a sua conquista de pouca importancia. A côr e conformação das outras cinco raças humanas são devidas ao clima e modo de vida de cada uma, não por meio de impressões repentinas, senão por graduações imperceptíveis, que sendo transmitidas de geração em geração chegam por fim a formar uma raça distincta. (Chrônica Maranhense, 16 de janeiro de 1841)

Após descompor as camadas da pele, caracterizando-as e explicando a origem da

verdadeira cor dos humanos, que, segundo o autor, não passa de uma substância em gradação

maior ou menor nas diferentes raças e considerando todas as demais partes do corpo iguais

nas raças branca, negra e acobreada, o texto conclui que:

[...] Em quanto às feições do rosto parece-nos que a variedade é produzida por causas accidentaes, assim como a formação do craneo: uma família de cabeças compridas e achatadas, sem mescla de qualquer outra, e reduzida ao simples exercício das propensões animaes e sentimentos communs, acabará por ser privada de sentimentos moraes e faculdades intellectuaes, a ponto de sêr incapaz de civilização: pelo mesmo modo as diformidades artificiaes, praticadas por muito tempo, obrigaraão a natureza a comformar-se com uma tal violencia, e a diformidade virá a ser hereditária.

59

É uma referência explícita da visão de superioridade racial que coloca a chamada

'raça branca', aqui idenficada como européia, no topo da pirâmide das raças, não só pela cor

da pele, mas também pelas características físicas e morais. No início do artigo está o

argumento que sustenta tais suposições: a religião e a ciência, que não pressupunham um

diálogo, mas uma afirmação na qual se baseava o grupo dirigente confiante e orgulhoso de

seu diferencial. Diferencial este que explica desde a "excelência da organização" dos europeus

até a facilidade de dominação sobre os outros povos.

A inferioridade das outras raças é explicada por uma espécie de determinismo

geográfico, que por ser transmitido por gerações se torna hereditário, o que explicaria também

a inferioridade intelectual e moral, além da incapacidade de alcançarem à civilização,

deixando bem evidente uma espécie de predestinação a que estes povos estariam submetidos.

Assim, mais uma vez a imagem de uma Europa de paz, progresso e civilizada é invocada para

mostrar o que seria o seu contrário, a barbárie dos povos asiáticos e africanos propensos a

serem dominados pela sua inferioridade racial. Nesses tipos de artigo ressaltavam-se,

sobretudo, os estereótipos negativos através da clara oposição de imagens.

Todos os argumentos utilizados, seja para explicar a origem da espécie humana e

das diferentes etnias, seja para justificar a posição imperialista da Europa, vociferados aos

quatro ventos pelos intelectuais e escritores maranhenses, foram utilizados também um século

antes pelos políticos que se digladiavam na Assembléia Nacional Francesa na produção de

leis que regulavam o sistema escravista nas colônias francesas e que já evidenciavam a

solidificação de uma ideologia racial, que tinha nas ciências naturais os fundamentos

‘objetivos’ para absolutização do pensamento racionalista do século XVIII.

Neste mesmo período o conceito de raça e da distinção entre as raças foi

sistematizado e adquiriu aura de autoridade científica inatacável, principalmente por ter

constado do Histoire naturelle générale et particulière (1749-1788), de Buffon16 e a

referência aos naturalistas tornaram-se cada vez mais comuns. Estas observações não isentam

nossos jornalistas que, como intelectuais renomados no seu tempo, mantinham relações

institucionais privilegiadas com as estruturas de poder, o que lhes permitia transmitir

facilmente tais idéias à sociedade em geral, por isso não podemos esquecer o importante papel

16 BOULLE, Pierre H. “Em Defesa da Escravidão: Oposição à Abolição no Século XVIII e as Origens da Ideologia Racista na França”. (1999). Disponível em: <http://www. wikipedia.com/boulleescravidão> Acesso em: 23 de novembro de 2006

60

dos intelectuais na difusão da ideologia racista, que usaram os jornais como meio não-violenta

de legitimar o controle pelas elites dirigentes.

Além dos aspectos morais, a aparência física do escravo é sempre ressaltada,

principalmente nos anúncios de fuga de escravos. Os corpos de homens e mulheres são

apresentados diariamente nos periódicos ludovicenses com marcas e deformações que

facilmente denunciam sua condição de escravo. Expressões como ‘feio de cara e respeito’,

‘fisionomia disforme’ ou ‘rosto pouco agradável’, apesar de não serem muito específicas, são

comumente usadas para identificar um escravo que se deseja capturar.

Também nos anúncios de compra e venda, ou mesmo aqueles que oferecem seus

serviços à população, o escritor do anúncio, que geralmente é o próprio leitor, deixa entrever

seu pensamento sobre a estranha mercadoria anunciada. Num desses anúncios, em que se

oferecem aulas de primeiras letras para meninos e meninas, há a disposição do

estabelecimento para ensinar escravas e prepará-las para as exigências do mercado com um

programa que inclui costuras e diversos tipos de bordados, engomar e produzir uma variedade

de doces típicos da culinária maranhense.

[...] No mesmo estabelecimento acima indicado, se recebe escravas menores para ensinar-se, na fórma que abaixo se declara. Será a residência na casa do ensino durante o tempo em que estiverem nesta occupação, admittindo-se só poderem sahir fóra quando tenhão de hir a casa de seus senhores devendo vir quem as conduza e tragão ao lugar da residência. Esta ordem de recato é conveniente por muitos motivos; pois que assim se praticando evitar-se-ha o reparo da libertinagem e vicios frequentes nestas classes, que na infancia recebem no tranzito diario da cidade. (O Progresso, 21 de abril de 1847)

A vigilância a que estão submetidas às 'escravinhas' não se faz simplesmente por

elas serem mercadorias que valem, mas também por fatores morais. A partir das exigências do

anunciante percebemos a visão que se tinham das crianças escravas vivendo numa cidade

como São Luís. Uma postura do Código da cidade de 1866 se refere à falta de controle das

mães escravas e senhores à liberdade excessiva dessas crianças nas ruas da cidade. ‘Maus

costumes’ adquiridos na infância – e na escravidão – que marcam as características dos

escravos.

Noutro anúncio uma senhora quer vender sua escrava por ela “vadiar muito, seu

único defeito, sendo em tudo perfeita”. Apesar de a escrava ter suas qualidades profissionais

ressaltadas, as quais encheriam os olhos de um comprador de escravos domésticos, o aspecto

moral que a caracteriza é suficiente para que sua proprietária a queira vender17. Essa espécie

de controle do próprio tempo de serviço que a escrava tem, aos olhos de sua senhora é

17 Anúncio do Chrônica Maranhense, de 30 de novembro de 1839

61

considerada vadiagem, que no consenso social parece ser uma característica própria dos

escravos. A vadiagem foi um tema que fez parte não só do discurso civilizatório que

objetivava incorporar o escravo ao sistema de valores adotado pela elite ludovicense, mas do

problema muito maior: a questão da ordem pública.

4.2 ‘Inimigo social’: as imagens dos escravos mediante a segurança pública

Noutro conjunto de textos foi possível destacar imagens sobre os escravos na

visão do sistema judiciário e policial, onde encontramos a escravidão sendo tratada como

‘caso de polícia’ e o escravo como um ‘inimigo social’. Há uma imensa legislação que é

apresentada como necessária para garantir a segurança pública e a ordem social.

O Publicador Oficial foi o jornal onde mais encontramos material para este

assunto, de preferência a publicação de ofícios e requerimentos trocados entre as autoridades

maranhenses. A freqüência com que apareciam demonstrava uma preocupação constante não

só de fazendeiros e outros proprietários de escravos, como do próprio Estado que cada vez

mais se fazia presente nas relações entre senhores e escravos, apesar de sempre respeitar os

limites do direito de propriedade dos senhores, sem interferir diretamente no controle do

senhor sobre seus escravos, agindo apenas como meio legitimador da violência do sistema

escravista.

O aparato jurídico-policial, formado a partir da década de 1830 com a criação do

Código Criminal, tinha como objetivos conter a rebeldia escrava, inibir a mobilização dos

escravos e dispersar comunidades de escravos fugidos. A multiplicação das medidas de

segurança na legislação e a regulamentação das atividades e ações dos escravos se faziam

necessário numa sociedade que dependia do trabalho escravo e que sentia presente a ameaça

de uma desordem social.

A formação do Estado Brasileiro não foi um processo independente de uma base

econômica e social específica. Os grupos sociais dominantes exerceram seu poder através das

instituições governamentais, o que explica a unidade de interesses entre senhores,

comerciantes e o Estado. Sendo assim, a elite que organiza o Estado, a partir dele, procura

implantar um aparato jurídico-policial responsável pela inclusão dos outros segmentos sociais

no modelo de nação pretendido. Nesse momento, há uma redefinição de valores e tradições, e

comportamentos até então considerados irrelevantes passam a ser considerados intoleráveis e

nocivos a ordem pública.

62

Na Província do Maranhão, especificamente, a grande população escrava, as fugas

constantes e a formação de quilombos se constituíram num problema que sempre atemorizou

os lavradores do interior maranhense, os quais por diversas vezes pediam o auxilio do Estado

não só através da repressão direta na destruição dos quilombos, como exigia a elaboração de

medidas mais eficazes e a criação de um corpo policial preventivo para conter a rebeldia

escrava.

Em um desses ofícios encontramos:

Tendo constado que a maior parte dos roubos de Gados, e assassínios que se commettem pelas Fazendas dos Lavradores desse Districto, são feitos por escravos fugidos, que em grande numero existem aquilombados com apoio de alguns moradores; ordeno a V.S., assim como que recomende a todos os Inspectores do seu Districto a maior atividade e vigilância na destruição dos quilombos, e aprehensão dos referidos escravos, e mesmo de quaesquer Desertores que nelles se acharem. [...] Por esta occasião previno a V.S. que a Escolta, durante a sua estada ahi, deve ser fornecida a custa dos Lavradores, que assim o requererão [...] (O Publicador Oficial, 19 de outubro de 1833)

Diante do exposto, podemos analisar algumas questões que possibilitam

compreender as relações escravistas no Maranhão. Primeiramente, os escravos fugidos são

apresentados como “a praga que assola os campos”, ou seja, são sempre apontados como

perigosos e criminosos que roubam e matam, constituindo esta a imagem mais corriqueira

sobre os escravos do meio rural, presente nos ofícios entre os Presidentes de Província e as

autoridades locais. A primeira impressão deixada por esta documentação é que existe uma

guerra sem fim travada entre os escravos e, especificamente, os grandes proprietários, pois

como fica bem evidente no documento, a rede de solidariedade se estende entre os escravos

fugidos, os quilombolas e, alguns moradores da região, provavelmente pequenos comerciantes

e desertores das tropas legais18.

Outra questão muito clara no oficio é a relação entre poder privado dos lavradores

e o poder público do Estado, pois a ação do Estado, que no âmbito das fazendas é omissa, é

requerida a partir das necessidades dos proprietários, que colocam seus problemas como

sendo os da coletividade, sendo os interesses particulares sobrepostos aos interesses públicos.

Isso é evidenciado em outro oficio enviado ao Juiz de Paz da Freguesia de Santo Antonio e

Almas, o qual pede todo o esforço do Presidente da Província na captura de escravos fugidos

“interessando nisso os proprietários”. (O Publicador Oficial, 12 de novembro de 1831)

Em resposta às medidas de repressão do governo outros ofícios de agradecimento

são publicados como o do Comandante do Destacamento da Villa do Itapecurú-Mirim, que

63

assim diz: “[...] sendo de esperar que V.S. continue como athe agora a mostrar-se zeloso da

tranqüilidade, e segurança dos pacíficos Cidadãos dessa Riberira. Porém, no mesmo oficio são

feitas mais cobranças: a fim de proceder, como lhe cumpre as providencias precisas acerca

dos quilombos de pretos fugidos[...] por quanto é de necessidade estabelecer-se o socego

geral.” (O Publicador Oficial, 27 de fevereiro de 1833). Com o mesmo intuito escreve o Juiz

de Paz da Villa de Guimarães, agradecendo a atitude do governo em conjunto com os

fazendeiros, na constituição de uma tropa que atue na mata, na caça aos escravos fugidos e

destruição de quilombos:

[...] que louva o zelo com que V.S. tem ajudado os Cidadãos probos procura expurgar o seu Distrito de Escravos fugidos e malfeitores. O meio por V.S. adoptado de uma subscrição voluntária entre os proprietários, e interessados na tranqüillidade geral, para ter sempre uma força do Mato em exercício, conseguirá o desejado effeito, como já tem conseguido na Freguesia de S. Bento, onde o respectivo Juiz de Paz lançou mão de igual medida. Praza a Deos que ella seja immitada por toda a parte, em quanto não se estabelece à custa da Nação uma Polícia campestre que tão necessária me parece! (O Publicador Oficial, 21 de janeiro de 1832)

Mais uma vez estes escravos aparecem como símbolos de desordem e violadores

da tranqüilidade pública. Os escravos fugidos e os quilombos serão os assuntos mais

debatidos entre as autoridades provinciais e as locais, que sempre tentam mostrar a

necessidade de criação não só de leis, como de um corpo policial que as faça cumprir. Tais

mecanismos são complementares no discurso da norma e fazem parte da mentalidade

escravista que sempre se orientou pelo mundo da ordem.

As imagens dos escravos como transgressores da ordem se fortaleceram ainda

mais no período pós-Balaiada, onde as atitudes dos escravos, que viram naquele momento

uma oportunidade para manifestarem suas insatisfações, foram vistas como resultantes da

violência e hostilidade natural dos negros. Nesse período uma série de Leis foi aprovada tendo

como objetivo claro a contenção da rebeldia escrava, seja através da fuga, da formação de

quilombos ou de insurreições. E este fantasma da insurreição escrava marcou tanto o interior

quanto a capital maranhense, tanto que em 1842, um ano depois de terminada a revolta dos

balaios, entra em vigor o primeiro Código de Posturas da Câmara Municipal de São Luís, que

traz no seu corpo um conjunto de medidas normativas e regularizadoras da ordem na vida

cotidiana.

Durante toda a década de 1840 foram aprovados códigos de posturas de vários

municípios maranhenses como os de Caxias, Alcântara, Viana, Codó e Guimarães. E não só

18 O Corpo Policial era formado a partir do alistamento voluntário e, como o pagamento não era vantajoso, não atingindo o efetivo necessário de homens, era comum o governo adotar o recrutamento forçado, o que, por sua vez, causava constantes deserções entre as tropas do governo.

64

as posturas municipais foram usadas como mecanismo de controle da mobilização escrava,

mas foram criados a Polícia Rural (1836), a Guarda Campestre (1840) e o posto de Capitão-

do-Mato (1847), além dos editais de convocação de pessoas que poderiam ajudar nas rondas

da Polícia (1832).

Em um relatório do Presidente da Província de 1843, publicado no jornal O

Publicador Maranhense, antes de dá garantias quanto ao estado de tranqüilidade e segurança

pública, o Presidente apresenta os males a serem combatidos e as medidas já tomadas para o

"melhoramento material e moral" da Província o que nos permite perceber o motivo de

tamanho empenho das autoridades maranhenses na garantia da "ordem pública e da segurança

individual e de propriedade":

[...] Não he lisongeiro o quadro, que tenho de traçar-vos. A desastrosa guerra civil, que por mais de dous annos assolou esta bella Província, diminui-lhe a riquesa, paralisou-lhe a industria, abrio-lhes feridas que ainda infelizmente sangrão, afrouxou-lhes os laços da obediência e respeito às leis, e às Authoridades, e por tal forma desmontou a maquina social, que só o tempo por um lado, e por outro a energia e o bom senso da authoridades, e o patriotismo de todos os Cidadãos honestos, podem remediar os estragos, que essa guerra causou [...]

Após expor os problemas decorrentes da Balaiada, como que se justificando pela

eficácia ou não de suas medidas, uma vez que o doente aos seus cuidados já estava ao pé da

morte, o Presidente explica, ostentando uma imagem de controle diante da situação social, o

porquê da persistência de certos problemas, que não chegam a alterar em muito ‘o sossego e a

tranqüilidade que a Província tem gozado’.

[...] Em um paiz, cuja população he em grande parte composta por escravos, não he de admirar, que alguns, subtrahindo-se ao jugo dos seus Srs., e formando os denominados quilombos, roubem as lavouras visinhas com grande damno dos que para ellas concorrerão com os seus constantes esforços; e bem que a providente Lei Providencial n. 98 tenha creado em cada município um corpo de guardas campestres com o intuito de prender esses escravos, atacando-os nos escondrijos, onde se acoutão, tem elles continuado a subsistir, talvez por não se haver dado toda a execução possível á essa disposição legislativa. (O Publicador Maranhense, 13 de maio de 1843)

A resistência escrava nunca tem sua força verdadeiramente avaliada, sempre

sendo subestimada como responsável pelas vitórias escravas, e neste relatório, por exemplo,

ela é apontada como fruto da ineficiência das leis. Nos discursos da ideologia dominante ela é

sempre apontada como pretexto para práticas violentas e hostis. A resistência escrava sempre

cai no discurso de rebeldia dos escravos e o negro acaba tendo reforçada a imagem de rebelde.

A verdadeira caça que se faz ao escravo fugido ou ao quilombola exemplifica isso.

A lei específica da qual trata o Presidente é a de criação das Guardas Campestres

assinada ainda em 1840, pelo então Presidente Luis Alves de Lima, sendo sua utilidade

65

principal ‘o ataque e a destruição dos quilombos e coutos de malfeitores’; a mesma define o

valor dos prêmios que serão pagos pelos donos dos escravos apreendidos, e as condições para

o uso dos guardas por particulares, além da custódia e alimentação dos escravos apreendidos.

Outro ponto que consideramos importante para nossa análise é o que diz no

Artigo 9º sobre a publicação, nos jornais da Capital, das relações com os nomes dos escravos

apreendidos, ou seja, além da divulgação dos avisos de escravos fugidos, a imprensa fez parte

direta da rede de solidariedade dos grupos dominantes no combate a resistência escrava

encarada como ameaça de desordem social.

Outra lei assinada em 1847 define as competências e cria um posto específico para

um personagem que já fazia parte do conjunto repressor da sociedade escravista e que, com a

dita lei, se constitucionaliza, é o capitão-do-mato. Usando da lógica que a lei constitucionaliza

uma prática cultural, ousamos dizer que o Estado patenteou uma categoria já há muito

disseminada nas práticas de repressão a resistência escrava19. Sendo assim, a partir daquele

ano, “haverá em todos os termos da Província Capitães de mato para a captura de escravos

fugidos.” ( O Progresso, 24 de julho de 1847).

Um aspecto interessante desta lei é o fato de os proprietários e as autoridades

locais estarem sujeitos à punição, mais especificamente a pagar multas, caso não cumprissem

suas obrigações ou cometessem omissões; é como se a própria lei punisse aqueles que, por

negligência mesmo indiretamente, facilitassem a mobilidade dos escravos em fuga. O objetivo

era não permitir possíveis brechas que pudessem levar às arbitrariedades20 ou ainda, limitar ao

máximo os espaços de mobilidade escrava e enrijecer o controle sobre a força de trabalho, o

que fica evidente no artigo 10 da lei que considera qualquer escravo, encontrado longe uma

légua das propriedades de seu senhor, fugido ou aquilombado, desde que não estivesse

trabalhando.

A falta de punição foi considerada, em muitos casos, a motivação na reincidência

de transgressões, por isso era muito comum os instrumentos de punição estarem expostos em

pontos públicos da cidade, fato que transformava o castigo de um escravo em verdadeiro show

de horrores, mas que aos olhos das autoridades serviria como exemplo para inibir a rebeldia

dos escravos.

Disem-nos que o preto Sebastião estava desde o dia anterior a morte resolvido a perpetra-la, pelo haver o mestre castigado, havendo disso dado manifestos indícios; e que na noite

19 De acordo com Jacob Gorender, a categoria de homens do mato já tinha regimento e hierarquia próprios e surgiu com intuito de destruir quilombos, ficando popularizada no Brasil como capitão-do-mato. (2001, p. 60) 20 Não parecia raro os capitães-do-mato passarem mais tempo do que o permitido por lei com escravos capturados explorando-os em proveito próprio.

66

seguinte, quando assassinava o pobre homem, cosendo-o com algumas doze facadas, nenhum do seus companheiros da tripulação acodira aos gritos que dava a desgraçada victima, sendo necessário que alguns passageiros os fossem acordar do somno em que fingiam estar sepultados. Apezar disso, afora o assassino, nenhum dos negros da tripulação foi castigado, e estão todos livres e soltos! Nenhum interesse temos em que se castiguem esse desgraçados negros, a estarem innocentes; mas entendemos também que a serem cúmplices e sabedores do crime, devem ser punidos exemplarmente, e de mais obrigados a presenciar o supplicio do reo principal. (Chrônica Maranhense, 20 de março de 1839)

Dessa notícia do assassinato do mestre de canoas Joaquim dos Santos Gaia

podemos fazer algumas considerações a respeito dos significados dos crimes cometidos por

escravos na sociedade ludovicense. Primeiramente, o castigo dado ao escravo pelo seu mestre

nunca seria levado em consideração para justificar as motivações de Sebastião, uma vez que

numa sociedade escravista o proprietário dispõe de seus bens como bem entender, e neste

caso não seria diferente, pois o escravo, a primeira vista, não passava de uma mercadoria

imbuída de todas as transações comerciais possíveis.

Mas se o castigo foi a causa que levou o escravo Sebastião a matar Joaquim,

possivelmente, foi pelo excesso da punição que deve ter ultrapassado o limite do ‘castigo

justo’21 ou aceitável, ofendendo seus direitos adquiridos na própria relação entre o senhor e o

escravo. A cumplicidade dos outros escravos, ao se fingirem adormecidos, talvez corrobore a

hipótese da justificativa de vingança pelo rigor do tratamento dispensado aos escravos pelo

mestre de canoas, ou simplesmente demonstre a que nível estava os laços de solidariedade

entre os escravos da mesma tripulação.

Apesar da coerência da justificativa, ela jamais seria aceita para explicar tão

horroroso atentado, que aos olhos do redator da noticia traria prejuízos ainda maior pela

impunidade a qual poderiam ficar os outros escravos, que participaram da ação apenas com o

silêncio e a negação de socorro ao mestre de canoas Joaquim. O mau exemplo poderia

incentivar a violência e o sentimento de vingança dos negros contra seus senhores, por isso o

castigo deveria ser exemplar.

O interessante dessa notícia é a forma como ela é comentada e apresentada ao

leitor, o redator vai além do objetivo de informar sobre o assassinato do mestre de canoas

Joaquim, e a notícia ganha contornos de alerta geral “a todos os proprietários de canoas e de

escravos”, e a sociedade como um todo, pois a preocupação intrínseca não está na punição do

escravo Sebastião suspeito pelo crime, mas no reflexo que a impunidade a qual poderiam ficar

21 Vainfas (1998) faz reflexões a respeito do discurso da punição persuasiva que tinha intenção de coibir desordens e insolências dos escravos e que para conseguir a disciplina, precisaria ter suas regras e normas a fim de não sofrer represálias m rebeliões e vinganças.

67

os escravos considerados cúmplices do crime poderia causar nas relações escravistas de modo

geral.

Este e outros casos da resistência dos escravos deixam entrever um misto de medo

e impotência, não só dos ‘probos cidadãos maranhenses’, mas das próprias autoridades, as

quais são responsáveis por coibir as lutas cotidianas implícitas e postular medidas diretas ou

mesmo indiretas para evitar que elas continuem a se repetir ao ponto de se constituírem em

ameaça de desordem social às elites dominantes.

Tipos de persuasão como os castigos exemplares são medidas indiretas no

controle da mobilidade escrava, pois ao serem aplicados sem dar razão às motivações e aos

sentimentos das ações dos escravos, figura-os apenas como violentos, viciosos e indolentes.

Em várias posturas do código municipal de São Luís de 1842, especificamente aquelas que se

referem aos escravos, exige-se que os castigos sejam aplicados publicamente. Mas, apesar da

finalidade está em se dar o exemplo aos demais, o objetivo maior poderia estar em, além de

coibir as desordens disciplinando a população escrava às novas regras de comportamento,

fortalecer a relação de dominação entre senhores e escravos, não permitindo concessões que

pudessem atingir o nível de direito adquirido. O castigo exemplar, por ser temido por quem o

assiste se faz mais eficaz que o experimentado, sendo usado como instrumento de coação

persuasiva eficaz para abater o orgulho e quebrar a rebeldia escrava.

De certa forma, não só as posturas municipais como todo o conjunto jurídico-

policial forma a expressão materializada do Estado nas relações cotidianas, que em momento

algum poderia deixar de fora os escravos que formavam a maioria da população maranhense.

Acreditamos que a presença cada vez maior do Estado nas relações entre senhores e escravos

em momento algum significou uma sobreposição de seus direitos e interesses em relação aos

dos proprietários, mas pelo contrário, o Estado facilitou e ajudou a manter o sistema

produtivo, pois era tênue a fronteira que separava a ação repressiva institucionalizada que

previa a manutenção da ordem pública e a violência intrínseca a ordem privada escravista.

Diariamente podemos encontrar nos periódicos, referência ao movimento das

patrulhas policiais que rondavam a cidade de São Luís. Encontrados em alguns jornais com o

título de ‘estatística criminal’, foi no jornal O Publicador Maranhense que tornou mais

constante ‘as novidades da repartição policial’. Nesta seção, o escravo é a figura mais comum,

estando dessa forma sua imagem sempre associada à criminalidade. A constância com que

aparecem faz um leitor menos informado questionar que se não houvesse escravos na cidade,

não haveria problemas na segurança pública. No entanto, ao darmos maior atenção aos

68

motivos que levaram tantos escravos a prisão, percebemos que aquela sociedade via no

escravo um inimigo social tão voraz que diminuía ao máximo seus espaços de sociabilidade,

ao mesmo tempo em que a sua cor e a condição de escravo eram suficientes para que lhes

recaíssem todas as suspeitas.

Mais uma vez fica evidente o quanto a questão da cor tinha enorme peso naquela

sociedade, que antes de se anunciar qualquer informação sobre o preso ou sobre os motivos

que levaram a prisão, evidenciava-se logo a cor do preso, e não foram raras as vezes que

pessoas livres ou libertas, por não serem brancas, foram presas sempre suspeitos de serem

escravos fugidos ou de terem roubado.

A 2ª Patrulha prendeu ás 11 horas da noite no Trapixe de José dos Reis e Brito a preta Maria Antonia, por suspeitar ser escrava e estar fugida. Verificou-se ser forra e foi solta. (O Publicador Maranhense, 05 de abril de 1843) Foi preso o preto Domingos, escravo de Manoel Ignácio Machado, por andar vendendo tres camizas de paninho novas, metidas em hum saco de chita e parecer serem furtadas. Verificou-se que as vendia por ordem de seu senhor. (O Publicador Maranhense, 05 de julho de 1843) A 8ª patrulha prendeu ás 9 horas da noite em a rua que há por detrás do muro do Convento das Mercez, os pretos Lourenço escravo de D. Adelaide Soeiro e Luiza forra, por denuncia que teve a mesma Patrulha d’aquelle estar fugido e ter furtado humas galinhas no sitio de Henrique Guilhon, e esta por acoitar em sua caza. O preto foi entregue á sua senhora por não se verificar o furto, e a negra forra Luiza foi solta. (O Publicador Maranhense, 01 de abril de 1843) Os soldados Victor Alves Ferraz, e Thiago José Aniceto prenderão ás 8 horas da noite na rua do sol, o preto Marcelino, escravo do Coronel Joaquim Raimundo Marques, por trazer uma lanceta. Verificou-se ser barbeiro e ter sido chamado para fazer huma sangria; por isso foi solto. (O Publicador Maranhense, 03 de junho de 1843) Foi preso no Portinho, o preto José Alexandre, que diz ser forro, porêm desconfia-se ser fugido da cidade de Caxias. Foi solto por verificar-se ser livre. (O Publicador Maranhense, 09 de setembro de 1843)

A escravidão já havia estigmatizado o negro e determinava sua posição social,

sendo que sua cor denunciava sua provável origem e, por isso, sempre foi considerado o

suspeito número 1, dando uma cor específica ao crime. Tais imagens se cristalizaram tanto no

imaginário brasileiro que até hoje marca com preconceito a vida de milhões de negros

brasileiros. Na São Luís do século XIX, casos como o de Maria Antonia, Domingos,

Marcelino e tantos outros se justificaria não só pelas especificidades do ambiente urbano,

onde havia uma variedade de funções e atividades desenvolvidas pelos escravos, ou pela

diversidade de condições do negro da cidade (livre, liberto, forro, escravo), mas pela própria

tentativa de controle total do Estado sobre os espaços de sociabilidade escrava.

69

Da seção da repartição de polícia que está associada às notícias sobre

assassinatos ou atentados de escravos contra seus senhores, feitores ou mesmo outros

escravos, estão presentes variadas representações dos escravos como ladrões, bêbados,

violentos e agressores. Geralmente são imagens contrárias às das vítimas sempre apresentadas

como cidadãos honrados ou homens de bem e pais de família. A própria condição de cativo

era suficiente para apontá-lo como suspeito. Ao apresentarem as condições dos crimes, antes

de cogitarem os possíveis motivos, os escravos são os primeiros a serem indagados e

revistados.

No dia 17 de Abril ás 3 horas da tarde o Chefe de Policia foi a casa do defunto e depois de longa revista nos bahús dos escravos foram elles conduzidos a prisão. E a final não se lhes achou cumplicidade. [...] Quem conheceo aquelle cidadão, que fazia a sua existência aprasível obsequiando seus amigos, e esmolando a muitas famílias pobres, que elle amparava com sua caridade, não deixara de pedir a Deus pelo seu eterno descanço. (O Progresso, 02 de julho de 1847)

No entanto, o grande número de prisões sofridas e infrações cometidas pelos

escravos podem sugerir que, ao invés de simples transgressores, eles aproveitavam os

chamados ‘bolsões de liberdade’ que o ambiente urbano lhes possibilitava. Um exemplo seria

o número de vezes que escravos foram presos por infringirem a postura 86 do código de 1842,

que proibia a saída de escravo sem autorização de seus senhores, por escrito, após o toque de

recolher22; ou ainda as várias posturas que determinavam sobre o comércio de gêneros

alimentícios que levaram a prisão um grande número de escravos e escravas que procuravam

aumentar a renda com a venda de carnes, peixes, aves, frutas e hortaliças.

Outra questão que aparece claramente na legislação sobre o escravo é a

preocupação com possíveis insurreições no perímetro urbano de São Luís. Além das posturas

que proibiam o ajuntamento de escravos e o uso de armas por eles, o controle se mostrou mais

rígido nos artigos anexados ao código de 1842 que determinam sobre o uso de quaisquer

armas, onde dos nove artigos, quatro legislam sobre o limite do uso de armas por escravos,

levando em consideração seus ofícios e instrumentos de trabalho e até o horário de sua

utilização. No entanto, não só o uso de armas de fogo e armas brancas foi combatido, mas

qualquer coisa que nas mãos de um escravo representasse algum perigo para aqueles que os

temia.

Suicidou-se á poucos dias com uma porção d’acido arcenioso um Preto, Escravo de João Francisco Colares por se ver perseguido pela Polícia, em conseqüência d’uma facada que dera em outro Preto, escravo de Thiago José Salgado.

22 Entre o ano de 1842 e 1843, na seção da repartição de policia, a contravenção da postura 86 foi a mais citada e o principal motivo que levava a prisão os escravos de São Luís.

70

He para admirar que um Escravo podesse obter tão grande porção de uma substancia tão perniciosa! Cumpre que Policia investigue o facto para que possa desse modo evitar que em outra occasião seja homicídio em vez de suicídio. (grifo nosso). (O Progresso, 03 de janeiro de 1848)

O temor é a constante nessas posturas e artigos que veêm no escravo armado uma

ameaça à ordem estabelecida. No exemplo acima, um veneno letal em posse de um escravo

poderia representar um risco ainda maior para aqueles de seu convívio, como por exemplo,

uma represália aos castigos de um senhor mais cruel, sendo que casos cotidianos presentes nas

páginas dos jornais são apresentados ao público com ares proféticos de futuras tragédias.

Olhando a questão pelo lado estratégico da estrutura dos jornais, a seção d’As

novidades da repartição de polícia está bem ligada à seção dos anúncios, ao passo em que,

publicando as constantes prisões de escravos e apresentando os motivos que levaram a estas,

possibilitavam ou reforçavam certas representações sobre eles, pois os motivos mais comuns

que levaram à cadeia muitos escravos, como a fuga, a embriaguez, o roubo, a vadiagem e a

agressão figuravam em características relevantes nos anúncios de compra ou venda, ou ainda

nos anúncios de escravos fugidos.

Antonio Manoel dos Santos compra os seguintes escravos – 1 moleque de 16 a 20 annos para serviço de caza 2 negras que sejam boas lavadeiras e engomadeiras, ou pelo menos que uma seja perfeita em lavar, e outra em engomar – hum preto de 16 a 25 annos de bonita figura, que saiba cozinhar, mas que não seja bêbado, ladrão ou fujão. (O Progresso, 24 de maio de 1848, grifo nosso). Em princípios de Agosto fugio a D. Anna Margarida Gançalves Nina, hum escravo de nome Paulo, Nação maçanbique, idade 35 a 40 annos, estatura ordinária, côr um tanto fulla, tem nas costas e nádegas sinaes de castigos, falla bastante serrada, é muito dado ao vicio de embriaguez. (O Publicador Maranhense, 06 de setembro de 1843, grifo nosso). Fugirão da Canôa Emília na Ribeira do Itapecurú á Severino de Barros e Vasconcellos os escravos seguintes: Bernardo, preto crioulo, alto, magro, cara comprida, bexigoso, dentes limados, tem a ponta d’uma orelha cortada formando duas pontas, signaes de feridas nas pernas, falla muito bem, he dom cosinheiro, e muito amigo de bebidas espirituosas [...] (O Publicador Maranhense, 14 de junho de 1843, grifo nosso). D. Maria Alexandrina de Castro tem para vender huma preta, creoula, de nome Margarida, de idade 23 annos he costureira, bórda alguma cousa, goma, lava, cozinha, sabe arear açúcar, e fazer toda a quallidade de doces, de calda e secos, he intelligente para todo o serviço de huma caza; e declara-se, que se vende a dita preta tão somente por que quando sahe fora de caza, vadia muito, único defeito, que tem, e he escrava de bons costumes, e sadia. (Chrônica Maranhense, 30 de novembro de 1839, grifo nosso). UM ESCRAVO crioulo de idade de doze annos com pricipio de alfaiate, de excellente conducta e qualidade; vende-se no escritório do Snr. Manoel Antonio dos Santos ao trapixe. (O Progresso, 07 de janeiro de 1847, grifo nosso).

A embriaguez, o jogo e a vadiagem são categorias subjetivas que foram

incorporadas pela redefinição de crime e que passaram a ser comportamentos considerados

71

intoleráveis, nocivos e ‘ameaçadores da ordem pública e da paz das famílias’, requerendo,

assim, punições mais severas. De certa forma, com as posturas houve uma ‘estatização’ dos

conflitos cotidianos que passaram a condenar condutas até então irrelevantes, construindo,

assim, uma nova noção de criminoso. Já a boa conduta, fidelidade e qualidade nos costumes

foram qualidades esperadas pelos senhores dos seus escravos e que por muitas vezes tiveram

suas expectativas frustradas pelas reações contrárias dos escravos, que por suas ações

negavam o discurso jurídico que limitava o escravo ao mundo do trabalho, reafirmando

cotidianamente sua subjetividade.

Há uma grande indefinição do limite entre o poder do Estado e o poder dos

proprietários de escravos, resultando em uma unidade de poderes público e privado ao

promoverem representações que pretendiam diminuir o inimigo social moralmente e limitar

ao máximo sua subjetividade através de proibições e punições que objetivavam mais do que a

manutenção da ordem pública, a manutenção da ordem escravista. Essa unidade de poderes

representada pelo aparato repressor no século XIX cristalizou imagens do negro no

imaginário brasileiro e permitiu que, por mais de um século, a população marcada pelo

sangue negro sofresse preconceitos sem nenhuma legislação que a defendesse.

Em relação à questão do trabalho escravo, ela não só condenou o trabalho

manual como inferior, por sempre ter sido ‘coisa de escravo’, como também, no fim do século

XIX, no momento da substituição do trabalho escravo pelo livre, subjugou o negro mais uma

vez, pois para mostrar as vantagens deste, os intelectuais da época tiveram que demonstrar as

desvantagens daquele e do seu executor que teve sua capacidade intelectual mais uma vez

inferiorizada. Condenar o sistema escravista não foi suficiente para convencer os proprietários

de terras que o trabalho livre, executado por imigrantes europeus, era rendoso e benéfico tanto

para ele proprietário, como para própria sociedade e economia brasileira, por isso a estratégia

de condenar o escravo enquanto trabalhador e enquanto cidadão livre.

4.3 ‘Jogo dos contrários’: as imagens dos escravos mediante os projetos de imigração

européia

Ainda de gancho no discurso civilizatório, encontramos as imagens da escravidão

que estão contidas nos projetos de imigração européia, que pelo adiantamento da questão –

72

discutida desde meados do século XVIII23 – fica nítido um projeto de branqueamento da

Nação Brasileira como uma forma de exortar qualquer ‘nódoa’ que a escravidão e os negros

poderiam deixar. A repulsa pela imoralidade e vícios causados pela escravidão era uma

constante nos discursos civilizatórios, servindo como argumento a favor da imigração

européia, que se impôs ainda mais com a proibição do tráfico e o preço cada vez mais alto dos

escravos.

Ligado a isso havia um discurso progressista que valorizava cada vez mais o

trabalho livre em depreciação do trabalho escravo, considerado uma fase do caminho em

direção ao progresso que deve ser ultrapassada por não ser mais tão lucrativo. Mas para poder

convencer os fazendeiros das vantagens não só do trabalho livre, com também do trabalhador

europeu, foi utilizada uma estratégia já bastante conhecida: a contraposição de imagens que

colocavam de um lado o africano e o europeu, o negro e o branco, o trabalhador escravo e o

trabalhador livre, a barbárie e a civilização.

A idéia do sistema de coudelaria24 dos escravos por algum momento se apresentou

como uma alternativa de salvação para a situação da economia maranhense, mas que logo foi

combatida por se reconhecer as péssimas condições em que viviam os escravos maranhenses e

o tratamento dispensado pelos seus senhores, o qual ganhou má fama entre as outras regiões

do Império.

É nos jornais O Progresso e O Publicador Maranhense onde esta questão vai ser

mais discutida. Os discursos civilizatório e progressista vão se sustentar tanto com as

doutrinas da Economia Política de Adam Smith como com as teorias do funcionamento

racional do sistema escravista defendida por Montesquieu, reproduzindo as principais linhas

da crítica francesa à escravidão. Entretanto, nem o argumento da ineficácia econômica da

escravidão, nem o falso sentimento humanitário serão barreiras para a defesa dos interesses

dominantes que estavam implícito nos projetos imigrantistas.

No Maranhão a questão se impõe com a crise da lavoura do algodão atrelada à

necessidade de substituição pelo açúcar e a impossibilidade de aquisição de mais escravos

pelas dívidas dos lavradores que passam a partir da década de 1840 a vender seus escravos

para as crescentes fazendas de café do Sudeste. Outra questão que sempre perpassou os

23 È possível encontrar a questão da imigração européia nos projetos de Pombal, quando este sugere a imigração de outros povos para a colônia, além de portugueses. CORRÊA, Lucelinda Schamn. Políticas Públicas de imigração européia não-portuguesa para o Brasil: de Pombal à República. Disponível no site: <http://www.anpuh.mepg.br/artigolucelindaschramn> Acesso em: 25 de julho de 2007

73

projetos de incentivo à imigração de europeus foi a segurança pública que se via cada vez

mais ameaçada pelas constantes rebeliões escravas.

Em meio a revolta dos balaios o periódico Chrônica Maranhense publicava um

documento de uma Comissão que pretendia aprovar na Assembléia Provincial do Maranhão

um projeto que requeria fundos para o estabelecimento de uma Sociedade de Colonização, e

para isso argumentava:

[...] apezar de V. Exc. recommendar o estabelecimento de Colônias em Pastos Bons; e que o Regente na sua falla na abertura da Sessão actual da Assembléia Geral Legislativa, deu todo o valor a Colonização; e como a introdução de Colonos Europeos já se não pode dizer somente útil; ella se torna necessária nesta Província attentas as circunstancias. Sem essa providencia ninguém poderá contar para o futuro com a segurança pública; uma vez que o Governo não faça o sacrifício de sustentar grande força armada, e disciplinada, em diversos pontos do interior. Só uma representação dos Habitantes principais desta cidade, e das Comarcas de Caxias, Brejo e Pastos Bons a Assembléia Geral Legislativa, poderia convencer da necessidade da introdução de Colonos brancos [...] visto o que tem soffrido com as desordens da Província. (Chrônica Maranhense, 26 de julho de 1840, grifo nosso).

Apesar da idéia de uma colonização estrangeira vir de longo tempo – ainda em

1827 é fundada em São Luís uma sociedade com esse fim25 – as desordens pelo qual passava

o Maranhão pareciam um forte motivo para a aprovação de um projeto que criaria uma

Sociedade de Colonização, tendo no seu intuito a introdução de imigrantes europeus na

Província, que pela atual situação, que incluía a desorganização do trabalho escravo e a

ameaça de rompimento da ordem social, necessitavam de trabalhadores livres para assegurar a

tranqüilidade pública e a paz social. A introdução de trabalhadores livres deveria remediar o

mal que a escravidão causava a governabilidade, e como colocava em risco a segurança do

Estado, as revoltas de escravos sempre eram citadas para mostrar a necessidade de mudanças

na instituição.

No entanto, é em meados do século XIX que a questão da falta de braços toma

novas cores e surgem outras alternativas como o sistema de coudelaria humana, que apesar de

no Brasil não ser considerada economicamente lucrativo, pois a renovação da escravatura

fazia parte de uma rede de comércio bem maior que envolvia traficantes, intermediários e

proprietários, servia de defesa aos interesses a uma enorme massa de pequenos e médios

24 Segundo o dicionário Aurélio, o temo significa haras, sendo no período usado para designar a reprodução e procriação de escravos. O termo reforça a comparação do escravo a um animal e a imagem do escravo como propriedade. 25 Jerônimo de Viveiros diz que em 1825, no governo do então Presidente da Província Costa Barros, foi fundada em São Luís uma sociedade para promover a colonização de estrangeiros. História do Comércio do Maranhão. 1994, p.304.

74

proprietários que não via vantagem no incentivo ao trabalho livre de imigrantes estrangeiros26.

Esta defesa se sustentava no discurso da racionalidade do sistema escravista que proferia que

sendo tratada de forma melhor, a escravidão poderia gerar lucros.

N’O Progresso, de 03 de agosto de 1840, encontramos um longo artigo em

defesa da reprodução de escravos onde seu autor justifica que, para tal intento, era necessário

melhorar o tratamento com a escravaria. Mas além de denunciar, a seu modo, as condições

dos escravos, o texto está repleto de representações de uma sociedade escravista.

[...] um dos maiores males que soffre o Brasil [...] é o máo trato da escravatura no Brasil, proveniente que mór parte dos homens, que pisam o seu território, assentam que pretos, ou escravos não são raça humana, ou antes viventes, e sim meros autômatos; e se assim não fõra não se veria tanta barbárie, tanta falta de caridade com que se tratam os míseros escravos. (grifo nosso).

Logo no primeiro parágrafo o autor declara ser um combatente de longo tempo e

que, apesar de terem repelidas suas sugestões, continuaria a lutar contra o mal que assola o

Brasil que é o mau tratamento dos proprietários com seus escravos, e a falta de humanidade

nesse tratamento é explicada pelo autor por não se considerarem os escravos humanos, sendo

vistos apenas como máquinas. Aqui vale lembrar que o interesse na reprodução dos escravos e

no crescimento da população escrava só aumentou com as ameaças de cessação definitiva do

tráfico negreiro, pois enquanto este perdurou e possibilitou o acesso constante de mão-de-obra

escrava, a questão da reprodução de escravos foi desconsiderada. Continuando o texto, o autor

se refere à experiência que teve ao assumir os negócios de sua sogra, expondo costumes

típicos de donos de escravos.

[...] fiquei morando com minha sogra: posto que fosse esta senhora dotada das mais excellentes qualidades, que a tornavam uma optima mãe de família, todavia seguia... à risca o exemplo de seus maiores, que isto nas senhoras é muito usual, e tratava os seus escravos como quasi todos os possuidores desta desgraçada gente. [...] Viveo em estado de viúva vinte e tantos annos, e neste tempo comprou sempre escravos: falleceu esta senhora em 1842, deixou 55 escravos, e não deixou dinheiro, porque tudo quanto fazia era para os comprar.

Este trecho é elucidativo das práticas comuns entre as grandes matronas tão bem

caracterizadas no romance ‘O Mulato’ de Aluízio Azevedo e também lembrado por Dunshee

de Abranches (1992)em ‘O Cativeiro’ por suas perversidades e a crueldade no tratamento com

os escravos. No entanto, aqui o autor aponta tal característica como um costume que vem dos

maiores e que não é exclusivo só dessas mulheres, mas próprio de todos os que possuem

26 Jacob Gorender, na sua obra O Escravismo Colonial já apontara os motivos que levavam a preferência dos senhores brasileiros na compra de escravos adultos, uma vez que a criação e manutenção dos filhos das escravas constituíam um ônus a mais nas despesas com a produção.

75

escravos. A tendência geral para o sadismo criada no Brasil colonial é uma questão muito

bem discutida por Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala, a qual este autor tenta explicá-

la segundo o viés cruel da escravidão e pelo abuso do negro pelo colonizador.

Outra questão que podemos apontar como característico das práticas sociais

escravistas, principalmente entre os proprietários maranhenses, é a posse de escravos como

um sinal de prestígio social, que passava a idéia de luxo e de opulência, Raimundo Gaioso

(1818) no início do século XIX já apontava esta obsessão por comprar escravos como uma

das causas da decadência dos lavradores maranhenses, que deixou muitos deles endividados

sem capital para investir no melhoramento técnico da lavoura.

O autor continua com seu artigo contando em forma de testemunho suas experiências como proprietário de escravos.

Depois de sua morte (da sogra) fui administrador da caza, e depois inventariante. Segui outro regime na conservação dos escravos [...] Note-se, que em 2 annos e dez mezes não morreo um escravo, nenhum fugio, nem foi castigado; e os rendimentos da caza foram muito mal arrecadados, por falta de um feitor que assistisse ao trabalho dos mesmos, e os fizesse trabalhar como deviam... Assim que os escravos passaram ás mãos de outros herdeiros morreram, em menos de 6 mezes 3, e das escravas que foram pejadas, a primeira que pario morreo a cria, depois de ter vivido uns mezes. É triste, e vergonhosa a maneira porque morreo aquella desgraçada, ou melhor, aquella feliz criança: porque padeceo só em quanto innocente!.... É inqualificável este procedimento; e assim acabam quasi todos; por isso qual é o motivo porque os brancos, ou livres augmentam consideravelmente, e os pretos desapparecem da mesma maneira [...] A vista disto, quanto não soffre o Brasil de prejuizo na sua população, e por conseqüência nas sua rendas! (grifo nosso).

O autor exemplifica com a experiência de sua própria administração que um

tratamento melhor dado aos escravos pode não só diminuir a taxa de mortalidade entre os

escravos, como ao mesmo tempo inibe as fugas e faz diminuir os castigos, deixando bem

claro na sua fala que a rebeldia dos escravos encontrava seus motivos no mau tratamento lhes

prestado. Essa correlação da rebeldia escrava ao tratamento brutal dados pelos senhores no

Brasil já havia sido constatada desde o século XVII por alguns letrados do período, como

Antônio Vieira, Antonil e Jorge Benci, que faziam algumas reflexões sobre a violência, a

rebeldia escrava e as formas de controle social.

Entretanto, a violência “necessária” concretizada na figura do feitor é sentida pela

falta de rendimentos no trabalho, uma vez que para fazer os escravos 'trabalhar como deviam'

era preciso coação, generalizava-se que a violência é um dos fundamentos da eficiência do

trabalho escravo e reconhecia-se que para o rendimento do trabalho não cair era necessário a

vigilância contínua. Tal vigilância visava obter o máximo de eficiência da força de trabalho,

uma vez que a repulsa do escravo pelo trabalho sempre foi vista como indolência natural

deles.

76

Além dos elevados índices de mortalidade infantil, a morte de escravos por

fome, excesso de trabalho ou de castigo, ou pela simples falta de assistência dos senhores é

apontada como o motivo pelo não crescimento da população escrava, e talvez pelo seu futuro

aniquilamento, o que seria um prejuízo não só para a população como para a economia do

Brasil. Interessante neste trecho do texto é o nível de consciência do autor que reconhece, na

morte da escrava ainda criança, uma forma de escapar aos horrores do cativeiro. Além da sua

experiência na administração dos negócios da sogra e do exemplo dos herdeiros no tratamento

com os escravos, o autor descreve outro fazendeiro e a sina para a falência.

No mesmo anno de 1842 falleceu um fazendeiro de uma das melhores fazendas do Rio de Janeiro: era este homem probo em toda a extensão da palavra, por suas brilhantes qualidades, só com defeito de tratar os seus escravos vergonhosamente, prejuizo que tinha herdado de seus maiores....Em 12 annos nem uma só cria vingou, apezar das escravas parirem muito; e só vingarem com effeito, três filhos que o fallecido teve das escravas! E porque foi isto? Porque estes eram filhos do Senhor, e como taes tinham outro tratamento, e aquelles que eram só filhos das escravas, também como taes tinham um tratamento miserável, e vergonhoso!...Por este máo procedimento, e falta de economia, os bens que deixou apenas chegaram para as dividas. (grifo nosso).

Mais uma vez o mau tratamento dado aos escravos é apontado como costume

herdado, hábitos adquiridos desde a infância de arbítrio, tirania e violência que são repassados

a novas gerações, o que evidencia a violência como uma prática social disseminada nas

sociedades escravistas, sendo que tal procedimento não permitia a procriação das escravas as

quais muito cedo eram afastadas de suas crias, motivo pelo qual não vingavam, fator

considerável que minou, segundo o autor, a fortuna daquele lavrador e só lhe gerou dívidas.

Poderíamos ainda atentar para o fato de que para os proprietários não era conveniente a

redução da capacidade de trabalho das escravas grávidas e paridas, e que a falta dos cuidados

necessários com os recém-nascidos explicaria a alta taxa de mortalidade infantil entre os

escravos, fator que prejudicava ainda mais a renovação da escravaria.

Outra questão que poderia parecer uma denúncia, se não fosse um costume entre

os proprietários de escravos é o nascimento dos filhos ilegítimos, tema de muitos romances

por ser uma das chagas sociais mais espinhosas do sistema escravista, pois as crianças

nascidas desses relacionamentos eram além de filhos, escravos de seu próprio pai, além do

surgimento da geração de uma classe miscigenada considerada mais tarde a responsável pelo

abastardamento da raça portuguesa. O texto é concluído numa espécie de síntese que aponta

não apenas o tratamento dos fazendeiros com seus escravos como causa pela mortandade dos

mesmos, mas toda uma rede de pessoas e instituições que contribuem para a não reprodução

dos escravos no Brasil, e consequentemente para o atraso da economia nacional.

77

[...] Assim devemos concluir que a mortandade dos escravos é procedida do máo trato que elles tem;... e é por isso que elles estão sempre a fugirem, e outros a suicidarem-se, e assassinarem as vezes, aos senhores, ou a quem os maltrata....A final das contas, o escravo perde a vida, e o senhor o seu dinheiro, tudo isto em prejuizo do Brasil, tão falto de braços para manejar a sua agricultura, que vai definhando consideravelmente. Os nossos estadistas, e legisladores vêm, e sabem tudo isto; mas é tal a sua indifferença, que não procuram dar remédio a tantos males que nos cercam. Nem estes, nem os escriptores ainda se lembraram de consagrar as suas luzes a misera escravidão, que tanto nos suavisa a vida, visto que a nossa desgraça permitte que sirvamo-nos com escravos. Quanto melhor fora que esses escriptores de periódicos incendiários propagadores de intrigas e falsas doutrinas se occupassem com objetos concernentes a lavoura, de que os escravos fazem parte principal [...]; enfim que se occupassem de todos os objectos que podem fazer a nossa riqueza, que tratassem de moralisar os povos, sem o que não podemos ser felizes, do que empregar os seus talentos em couzas tão inúteis, ou antes perniciosas, que só tem servido de fomentar os partidos, de corromper e desmoralisar os povos! Avista disto onde fica a gloria destes homens? [...] Mas ao menos tratemos melhor os nossos escravos. É de própria utilidade nossa, grandes serão as vantagens que teremos quando os vestir-mos melhor, os alimentar-mos como é preciso, os tratarmos bem nas suas enfermidades, e lhe dermos o descanço conveniente para recuperar as forças perdidas com o trabalho. Sem isto os escravos trabalharão mal, e durarão pouco; o que certamente será a causa do atrazo da nossa agricultura, e por tanto da ruína da Pátria. (O Progresso, 03 de agosto de 1840, grifo nosso)

Novamente a rebeldia escrava concretizada nas fugas, suicídios e assassinatos, é

apontada como conseqüência dos maus tratos dados aos escravos, já a violência recíproca a

essa rebeldia gerada por um sentimento de vingança e ódio dos senhores, traz prejuízo no

momento em que a morte de um escravo por excesso de castigos, enquanto, mercadoria, é

dinheiro e equivale à falta de trabalhadores na agricultura, aumentado consideravelmente

nesse período com as pressões pela extinção do tráfico de escravos. Alguns ilustrados do

começo do século já apontavam para a violência gerada pelo sistema escravista que

embrutecia senhores e escravos.

No trecho do artigo acima percebemos que além dos proprietários de terras e

escravos, a mensagem se direciona a outros dois grupos considerados importantes neste

projeto de racionalização da escravidão: os intelectuais e o governo. Os estadistas e

legisladores têm sua atenção chamada por calarem diante dessas práticas, já que todos são

servidos por escravos e, possivelmente, lhes dão tratamento semelhante. Aqui o governo é

apontado como único que pode fazer leis que racionalizem escravidão, tornando-a mais

suportável e produtiva. Às instituições governamentais era entregue uma parte da

responsabilidade, a qual cabia não só a aplicação de leis como a fiscalização dessas leis para

que fossem cumpridas, no entanto, a eficácia da legislação esbarrava nos interesses de grupo

que raramente permitia que os ideais humanitários prevalecessem e impedia a ação da justiça.

78

Já os intelectuais, especificamente os jornalistas, tem seu poder da escrita

exaltado pelo autor, que critica o jornalismo doutrinário e partidário, apontado como causador

de intrigas e dissidências políticas que só provocam a desmoralização dos povos, ou seja, o

autor acredita que tipos de textos carregados de idéias liberais são responsáveis pela

mobilização das massas em favor de mudanças estruturais, através de revoltas e insurreições.

E justamente por acreditar no poder desse escritos é que o autor sugere o recrutamento dos

jornalistas para contribuir com a prosperidade da Nação.

Por trás da política assistencialista de apelo humanitário que objetivava poupar os

escravos e promover a propagação deles através de casamentos e do amparo à infância e à

maternidade e da melhoria das condições de vida dos cativos, encontramos o representante de

uma classe desesperada que previa e temia a falta de braços para o trabalho, o que se

prenunciava com as dificuldades impostas pelo tráfico. Os significados do mau trato e seus

efeitos são utilizados como argumento na defesa de interesses próprios, pois a maior

preocupação não era com a situação dos escravos em si, mas os inconvenientes da situação

que atingiriam a Pátria, ou seja, que prejudicariam a classe proprietária detentora do poder.

Assim os avanços na agricultura e a prosperidade do Império dependiam da união

da elite dirigente – aqui no texto, composta de lavradores, políticos e intelectuais – a favor de

um projeto de mitigação da escravidão para seu bom funcionamento e a manutenção da ordem

escravista que já parecia perder sua legitimidade. A doutrina da mitigação do sistema

escravista baseado nas teorias de Montesquieu atendia a três objetivos básicos: a crítica

humanitária implícita na compaixão pela condição dos cativos, a defesa dos interesses da

Nação – segurança e prosperidade – e dos senhores de escravos, não ameaçando seu direito de

propriedade.

No entanto, na maioria dos artigos que encontramos, a preferência era realmente

pela imigração estrangeira que aparecia nestes textos como a única solução para todos os

problemas do Brasil. A introdução de trabalhadores brancos e livres atenderia às necessidades

mais urgentes que se apresentavam ainda na primeira metade do século XIX. E para

comprovar os benefícios e as vantagens da colonização espontânea, seus idealizadores

precisavam apresentar os efeitos e os males causados pela escravidão, assim, além do trabalho

escravo, o negro foi sendo pintado das mais variáveis cores que pretendiam mostrar não só a

improdutividade de seu trabalho, como sua própria inferioridade em relação ao branco

europeu.

79

Dessa forma, estes textos contrapunham as imagens do imigrante ideal, introdutor

e agente do progresso e da civilização ao negro sempre estigmatizado pela escravidão,

'inimigo interno' que marca a sociedade com seus maus costumes. O jogo dos contrários foi a

estratégia mais utilizada para chamar a atenção do leitor, que com a constante oposição de

imagens poderia refletir sobre o que seria bom, se baseando no que acreditavam ser ruim, ou

seja, para esboçar um futuro de prosperidade, os jornalistas e responsáveis pela publicação

dos periódicos tiveram que opor a um presente em constante crise. Dentro desse jogo foram

invocadas as qualidades que formavam imagem de um trabalhador perfeito, europeu e branco

o oposto do que se tinha, o escravo, africano ou descendente de africano, negro e

supostamente bárbaro e cheio de vícios.

A maioria dos artigos não foi escrita por autores maranhenses, pois foram

transcritos de jornais do Rio de Janeiro, mas seus discursos eram veementemente repetidos

pelos jornalistas maranhenses e suas idéias passavam por uma espécie de crivo para atender às

necessidades regionais. Destarte, os projetos imigrantistas apoiados por intelectuais

maranhenses eram adaptados às especificidades da Província que já vinha mergulhada numa

crise econômica que começava amedrontar algumas pessoas, as quais previam e planejavam

problemas e soluções que garantiriam a manutenção da ordem vigente.

Num artigo do jornal O Progresso, seu autor começa o texto com uma metáfora

comparando a situação do progresso do Brasil com uma parábola cristã que fala dos talentos

de ouro que Deus deu a três servos e que um deles enterrou, e por isso foi amaldiçoado,

despertando, de imediato, no leitor a idéia central a ser discutida. A ociosidade e a indiferença

com que os habitantes do Brasil vêm levando a questão do progresso do país.

[...] Todos conhecem estas verdades, todos conhecem a verdadeira necessidade do Brasil que não é outra senão a abundância de população, e todos sabem que o único remédio a isso seria a colonisação Européa. [...] O problema da colonisação para o Brasil é facílimo de resolver: dous únicos resultados se devem ter em vista, – o augmento de população livre nacional, e desenvolvimento de sua agricultura peculiar: nada mais e nada menos. O mais que fôr útil e agradável se seguirá immediatamente ao que é essencialmente necessário. É a ordem natural das coisas. (O Progresso, 18 de fevereiro de 1847)

A grande questão discutida é a população total livre do Brasil, que por ser

pequena em relação ao território nacional não contribui como deveria para o progresso da

nação. A proposta de incentivo à introdução de colonos europeus viria a atender, além da

necessidade de um mercado interno, ao progressivo aumento e branqueamento da população

brasileira livre, a qual seria a verdadeira população capaz de solidificar a grandeza e a força

do Império.

80

Uma massa de negros escravizados não era necessariamente o que se pretendia,

mas implicitamente é o que não se queria para a melhoria da qualidade da população e para o

desenvolvimento das forças produtivas da nação. "A ordem natural das coisas" a que se refere

o autor deste artigo seria a substituição do trabalho escravo pelo livre, o que

consequentemente diminuiria a introdução de africanos, ao passo que incentivaria a vinda de

brancos europeus, e em pouco tempo, com a superioridade numérica de brancos e o sucessivo

cruzamento com eles, a população se homogeneizaria.

A idéia de branqueamento da população implícita na ‘taboada das misturas’ do

Compêndio Histórico-Poítico dos Princípios da Lavoura do Maranhão, do lavrador Raimundo

José de Sousa Gaioso, apresentada no começo dos oitocentos, renasce e ganha argumento

ideológico e científico ao ponto de tomar total força na campanha pela aprovação de projetos

imigrantistas, que assim com o lavrador, viam como única vantagem nas poucas gotas de

sangue africano – precisamente “1 oitavo” – que pintariam a futura população brasileira, a

laboriosidade e a formação robusta e que os tornava aptos e resistentes para qualquer

atividade. (GAIOSO, 1818).

A crítica concerne àqueles que resistiam aos projetos imigrantistas,

caracterizados como materialistas, sem visão progressista, e que por isso mereciam o castigo

de Deus, por não apostarem no que parece ser a única solução para o problema do Brasil: a

colonização européia. É evidente que a mensagem foi direcionada aos fazendeiros que

insistiam na compra de escravos africanos e não viam com bons olhos o trabalho livre. Toda a

argumentação a favor da imigração européia para o Brasil será direcionada aos maiores

detentores de capital – únicos capazes de investir num projeto de tal amplitude – a fim de

convencê-los da importância e dos benefícios da substituição do trabalho escravo pela

introdução de braços livres e brancos.

Além dos apelos ao aumento da população, a melhoria da qualidade da mesma

será outro forte argumento de persuasão. Para isso, serão exaltadas as qualidades dos

imigrantes e apontados os malefícios da escravidão e do contato com os negros na sociedade,

ao passo em que será pintado – de branco – um futuro de glória e prosperidade para o Brasil.

O augmento da população livre nacional!! Idéia mágica que representa o augmento da força moral physica da nação, das virtudes christãs e civicas, das rendas fiscais, a realisação da extincção do vergonhoso cancro da divida publica, em fim a verdadeira nacionalidade brasileira!!! [...] Ora o systema de emigração, como todos os bens reaes deste mundo tanto tem de beneficio, quanto sua execução é facílima. Se algum incrédulo, ou qualquer outro espírito de retrogadação ou de rotina levantar contra a emigração européia para o Brasil objeções farisaicas fundadas nos máos resultados de todas as empresas de colonisação, que em diversas épocas e por

81

diversos meios se tem intentado, taes capciosas objecções fundadas puramente na ignorância e mero indifferentismo, e no estulto espírito de contradicção de uns, e no damnado interesse que certa gente tem de não querer para o Brasil outra importação de colonos que não sejão africanos, taes objecções se evaporão com uma única reflexão; e vem a ser – que tudo o que no sentido de emigração europea para colonizar o paiz se tem posto em pratica no Brasil desde o governo colonial até o presente – nada merece o nome de colonisação; nada mais tem havido do que mesquinhos arremedos de colonisação; quando não tem sido o mais cruel e falsário trafico de escravatura branca! (O Progresso, 01 de março de 1847, grifo nosso).

Na formação da "verdadeira nacionalidade brasileira" não tinha lugar para o

trabalho escravo nem para o negro maculado pela escravidão. Para legitimar a colonização

européia foi preciso mostrar o quanto a escravidão era prejudicial à sociedade e que o melhor

meio de reverter a situação de crise – imagem sempre evocada neste tipo de discurso – em que

ela se encontrava era a moralização e civilização dos costumes, papel destinado ao imigrante

europeu.

E para reforçar a imagem de superioridade do imigrante, enquanto agente de

civilização e do progresso, foi preciso recorrer à idéia de inferioridade do escravo negro

mostrando-o como representante da desordem e símbolo da negação do progresso. A

escravidão sempre foi tida como culpada pela corrupção dos costumes e pela degradação da

sociedade, e a entrada maciça de africanos como nociva a moralidade, a civilização e a

liberdade do povo brasileiro. A missão do imigrante europeu seria, então, reverter esse quadro

não só através de seu sangue e cor, como também de seus costumes.

De novo uma crítica severa é feita à resistência contra a imigração européia.

Sobre este assunto, Emília Viotti da Costa (1998) aponta para os motivos de ordem social,

hábitos intelectuais e mentais que mantinham o apego da classe senhorial pelo trabalho feito

por escravos que os fazia criarem um vínculo tão forte, que não conseguiam vê outra

possibilidade de imigração senão a forçada de africanos. Outro ponto tocado no artigo diz

respeito às primeiras experiências na introdução de colonos estrangeiros frustradas pelos mais

variados motivos, que num geral se resumem a despreparação de homens tão acostumados a

serem servidos por escravos e não saberem lidar com trabalhadores livres, o que manchou

enormemente a imagem do Brasil no exterior.

Esse tratamento dado aos colonos pode ser explicado justamente por esse

despreparo, por não estarem acostumados com exigências diretas dos novos submissos, por

terem que encontrar outros meios, que não a violência, para impulsionarem a produção, por

terem que adotam um sistema completamente diverso do qual estavam habituados. Tudo isso

só deixa transparecer a força da mentalidade escravista na sociedade brasileira. Por isso,

82

alguns jornalistas acreditavam que só mesmo a cessação definitiva do tráfico de africanos para

o Brasil incentivaria a substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra livre.

Em quanto a África contribuir para satisfazer a uma das mais imperiosas necessidades da producção enviando nos braços, desenganemo-nos de uma vez para sempre, nunca os receberemos de outra parte do mundo. [...] O agricultor brasileiro nasce no meio da trabalho escravo, com elle vive, cresce, e augmenta sua fortuna. Já o tem estudado em relação ao lucro que d’elle póde tirar. Sabe da existência do trabalho livre, apenas pelo que tem lido ou ouvido, e o não comprehende praticamente, e, se o comprehende, não se anima a tentar a experencia, receoso de ser mal sucedido. He evidente, portanto, que sempre que elle tiver à sua disposição escravos para comprar, não irá entregar-se aos azares de emprezas cujo andamento e costeio elle não tem calculado, cuja direção ignora, cujos lucros não póde avaliar. As duas emigrações europea e africana, livre e escrava, não podem acaminhar uma a par da outra, porque não há capitães que possam dar emprego e trabalho a ambas; a europea não pode repellir a africana concorrendo com ella, pela preferência que agricultor dá a esta; logo, cumpre supprimir de todo a emigração africana, para que a europea venha encher o vácuo deixado por ella. [...] O trabalho, como os metais preciosos, tende a retirar-se do logar em que menos vale para aquelle em que vale mais. (O Progresso, 03 de outubro de 1850, grifo nosso ).

O autor desse artigo parece mais compreensivo ao criticar o agricultor brasileiro,

percebendo a questão de outro ponto de vista. A crítica parece mais uma conformação com a

situação do presente momento, pois se nos atentarmos para data do artigo perceberemos que

ele foi escrito cinco dias depois da aprovação da lei Eusébio de Queiroz, que extingue para

sempre o tráfico de escravos africanos. Ou seja, não tinha mais nenhuma solução a tomar, a

não ser aceitar seu destino e poupar capital para outro tipo de mão-de-obra que acenava como

única forma de salvação para os proprietários brasileiros.

Aqui outra questão se desenha, a questão da superioridade do trabalho livre em

relação ao escravo que será outro discurso a favor da imigração européia. Para valorizar o

trabalho livre foi preciso inferiorizar o trabalho escravo, e para isso buscaram-se argumentos

no próprio escravo, enquanto agente executor do trabalho. Buscaram comprovar a

inferioridade do escravo negro para julgar seu trabalho improdutivo. Mais difícil ainda, foi a

missão de mostrar que o trabalho dignifica o homem enquanto a escravidão mostrava o

contrário. A revalorização do trabalho foi o primeiro passo na direção de conseguir

trabalhadores estrangeiros disponíveis a vir para o Brasil. Parecia inconcebível a idéia de ter

trabalhando lado a lado homens livres e escravizados, pelo nível de aviltamento a que atingiu

as atividades manuais tanto no campo como nas cidades.

Os mesmos que construíram a idéia do trabalho como uma forma de remissão

para conseguir dominarem os africanos convencendo-os da pretensa inferioridade que os

condenava à situação de escravos, são os mesmos, ou pelo menos têm os mesmos interesses,

83

que farão todo possível para criticar os escravos negros pelos males causados ao trabalho.

Mais uma vez recorre-se às imagens do negro preguiçoso, ocioso, imoral e dado a vícios para

provar que foi a índole dos escravizados que contribuiu para a desvalorização do trabalho.

O trabalho para ter benefícios effeitos, que a industria humana póde racionavelmente deseja e consegui, deve ser livre, isto é, não só feito por pessoa isenta de domínio do outro, se não também por discreta escolha do mesmo trabalhador. [...] Não entrarei no exame (alheio do meu intuito) se é lícita a escravidão, e se são justos os títulos, com que se tem ella introduzido e perpetuado ainda entre nações cultas. Seria crueza magoar uma chaga, que talvez não possa curar. A uniforme experiência de todos os séculos e paizes, de concerto com a razão, mostra, que o trabalho do homem livre é melhor e mais produtivo, que o do escravo. Por mais que o senhor se esforce e vigie, o escravo não póde resolver-se a trabalhar, se não por força e negligentemente, cedendo só por momentos a violencia de quem exige e inspecta o serviço. Sendo o escravo reduzido à estado de máquina, não esperando melhoria de condição, nem podendo adquirir propriedade, as faculdades do corpo e espírito ficam mutiladas ... Constituindo-se o próprio interesse em eterna guerra com o senhor, seu empenho e sagacidade consistem em subtrair-se ao serviço, evitando sómente o castigo imminente [...] [...] De taes, e outros indizíveis inconvenientes que a obra do escravo não póde mais competir com a do homem livre em quantidade, perfeição e valor. São incalculáveis os males do trabalho forçado: original barbarismo e insolência do homem, o medo e a violência, acirra-se a hostilidade de classes, os mais baixos e vis costumes e paixões animais, desonra o trabalho manual. (O Publicador Maranhense, 15 de junho de 1850, grifo nosso).

A discussão no artigo não se limita a explicar do porque o trabalho livre ser mais

produtivo que o trabalho escravo, mas pretende comprovar o que leva a improdutividade do

trabalho feito por escravos e quais os seus malefícios. Para fundamentar sua teoria, o autor do

texto usa de um dos argumentos mais incisivos do sistema escravista: o emprego de violência

necessária como meio de conseguir rendimentos dos escravos. Esse trabalho forçado e o não-

aproveitamento dos seus lucros teriam como conseqüência a negligência e má vontade por

parte do escravo que não via nenhuma expectativa de benefícios próprios. Sendo que o único

interesse que o escravo tinha era de fugir ao trabalho, enxergando no seu senhor o responsável

pela sua situação.

Neste momento o autor explicita a constante tensão existente nas relações

escravistas, que se perfaziam entre o medo e a violência, mostrando o quanto a escravidão

segregava a sociedade ao passo que aviltava o trabalho manual, pois estando todas as

atividades entregue às mãos de escravos, não teria outros executores que se rebaixariam a esta

condição.

Essa improdutividade também é explicada pela ausência de princípios morais nos

escravos, o que justamente estimulava no homem livre a aumentar e aperfeiçoar o trabalho.

Até a criatividade era, para este autor, inata ao homem livre que via no seu trabalho sua

84

própria imagem e se orgulhava disso, procurando sempre aprimorar sua obra. Enquanto o

escravo esgueirava-se sempre que podia e via no trabalho a própria imagem do castigo e de

sua inferioridade na estrutura social.

Um ponto relativamente silenciado pela historiografia da escravidão e que na

historiografia maranhense mais tradicional é omitido quase que completamente, é a violência

do sistema escravista e as condições dos escravos. Os autores parecem não tocar no assunto

por medo de ‘magoar essa chaga’ que marcou a nossa história, possivelmente por não

negligenciar o fator de que a riqueza de várias províncias e da sustentação do próprio Império

foi fundamentada pela escravização de milhões de africanos.

Apesar de se fazerem rogados pela situação do escravo maranhense, nunca

contestaram a legitimidade do regime. O silêncio de suas falas é a maior prova disso. Autores

como Raimundo Gaioso, Frei Francisco dos Prazeres e o próprio Visconde de Cayru – autor

do artigo citado acima – em momento algum deixaram explicitas suas opiniões e seu

posicionamento diante da escravidão, apesar de serem a favor da escravidão, quando era o

momento de escreverem sobre as condições dos escravos maranhenses, por exemplo, eles

preferiam silenciar. Possivelmente o mesmo motivo que silenciou muitos intelectuais e

jornalistas do século XIX, ou seja, a preocupação que motivaram seus escritos nunca foi a

crítica humanitária pelas condições dos escravos, mas especificamente, eram os princípios de

prosperidade e segurança que perpassavam seus discursos.

De certa forma, as doutrinas de Adam Smith e Montesquieu vieram a calhar com

o ideário liberal brasileiro e maranhense, pois estes autores também não esclareceram qual

seria o melhor futuro para os escravos e descendentes de africanos. Ao demonstrarem as

desvantagens e implicações negativas da escravidão, só criticavam o que lhes era conveniente,

e sempre que podiam ludibriar-se com que seria o melhor para o tal ‘progresso do país’, o

faziam com vistas a um futuro de prosperidade com uma população livre, laboriosa e branca,

e nestes sonhos não havia lugar para o negro, que segundo alguns intelectuais, era uma

população em extinção, a qual não seria nenhuma inconveniência para os projetos da Nação.

E aquelles interesses (os projetos imigrantistas), senhores, ostensivamente se fazem sentir nos muitos operários de todos os officios e serventes, que dentro desta capital, sem fallar em outros de maior numero espalhados por diversas províncias do imperio vierão encher o vasio que vão deixando os braços captivos; beneficio que só saberá devidamente apreciar quem, conhecedor da estatística dos óbitos dos escravos fallecidos dentro de igual período nesta cidade, se fizer cargo do avaliar os prejuizos que de tão considerável diminuição de braços deveriam necessariamente ter resultado, se não tivessem sido opportunamente em alguma parte substituídos por outros de mais súbito valor: diminuição que a morte diariamente augmenta até sua total anniquilação, com graves embaraços para o serviço do paiz, se quanto antes se não empregarem meios efficazes para chamar braços industriosos [...](Chrônica Maranhense, 02 de julho de 1840, grifo nosso).

85

A aniquilação total da população escrava, pelos altos índices de mortalidade entre

os cativos e a supressão dos descendentes de africanos com o cruzamento contínuo com os

europeus eram os efeitos esperados com a substituição do trabalho escravo pelo do imigrante

branco e livre. O negro perdia também seu valor monetário, seus braços não eram mais vistos

como as ‘mãos e pés do senhor’, e a questão que veio a galope junto á questão da extinção do

tráfico foi o que fazer com uma população ainda muito grande de negros quando do fim da

escravidão que se pronunciava.

O escravo sempre foi uma mercadoria diferente das outras. Os jornalistas, os

intelectuais e a sociedade, apesar da indiferença com que o tratavam, não podiam negar isso.

E no momento das discussões sobre a ilegalidade e a extinção definitiva do tráfico de

africanos para o Brasil, o escravo tomou conta das páginas de jornais, e seja nos anúncios,

seja nas estatísticas criminais, seja nos artigos sobre economia, todos os dias na cidade de São

Luís desfilavam as mais diversas imagens sobre ele. As quais não só definiram o lugar do

escravo na sociedade ludovicense do século XIX, como ainda marcam a vida de milhares de

negros e mestiços que até hoje lutam para alcançar seu verdadeiro lugar numa sociedade

refém de um imaginário preconceituoso de raízes tão profundas.

86

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos, neste trabalho, compreender como o preconceito com a população negra

teve sua base solidificada também a partir da construção e difusão de imagens relativas aos

escravos e às suas atitudes, diante das condições as quais estavam submetidos e da

discriminação que sofriam. Ao encontrarmos uma grande diversidade de imagens pintadas

pelos jornais, percebemos que a ligação entre a imprensa e a escravidão extrapolava o âmbito

de mercadoria, e os jornais serviram de instrumentos eficazes nas mãos das elites dirigentes

para controlar uma população, que apesar de numericamente maior, não dispunha do poder da

escrita, importante meio de persuasão num combate ideológico que definia as relações de

poder.

A escravidão negra estava plenamente naturalizada no imaginário da sociedade

ludovicense. Ter escravos era o mesmo que ser possuidor de gado ou terras, ou seja, era uma

relação de propriedade regida por uma legislação, com impostos a serem pagos e submetida a

todas as relações monetárias específicas de uma mercadoria. No entanto, há um paradoxo

quando analisamos a diversidade de imagens referentes aos escravos forjadas pelos jornais,

sintomático de que a subjetividade do escravo não foi totalmente suprimida.

A imprensa não é mais o único meio de informação, no entanto, ainda tem poder

suficiente para construir e difundir imagens sobre qualquer objeto. E apesar de hoje os jornais

não terem mais o valor de verdade absoluta, no século XIX quando do surgimento da

imprensa no país, eles representavam muito mais que uma máquina de criar e divulgar

imagens, mas se revestiam de representatividade social, como verdadeiros porta-vozes do

pensamento da época. O sistema escravista, mesmo sob a ameaça de seu fim com a

ilegalidade e cessação do tráfico de africanos, não fazia parte da pauta de discussões entre os

periódicos e os jornalistas maranhenses, e estes, na sua maioria adeptos da teoria liberal, em

momento algum cogitaram mudanças na estrutura de poder, pelo contrário foram

colaboradores na conservação do regime vigente.

Os movimentos da agitação popular que marcaram a primeira metade dos oitocentos

na Província maranhense e que tiveram em sua conjuntura a participação dos escravos, muitas

vezes como figurantes, foram momentos importantes que incentivaram a formação de

imagens sobre as atitudes dos escravos. Um deles, a Balaiada, marcou profundamente o

imaginário da sociedade maranhense e possibilitou a projeção dessas atitudes vistas sempre de

forma pormenorizada, onde apesar de se perceber a intenção de diminuir o valor social da

87

revolta, por parte dos jornalistas, e se pretender tirar qualquer subjetividade do escravo,

deixava transparecer “o medo branco diante da onda negra”. As imagens da Revolta dos

Balaios e da participação dos escravos sempre eram invocadas para lembrar os riscos de uma

abertura liberal numa estrutura social que tinha bases no trabalho escravo.

As frustrações diante do conflito cotidiano entre os ideais de progresso e de

civilização, pregados pelos manuais de urbanidade, e as práticas sociais herdadas do período

colonial também permitiram julgar e definir o escravo como atrasado, bárbaro, imoral, vadio,

violento, indolente, imprimindo-lhe deformidades que mostravam sua incapacidade em

adaptar-se aos projetos civilizadores para uma cidade como São Luís, ou seja, o escravo,

próprio elemento de degeneração bárbara, era visto como um obstáculo à consolidação de um

modelo urbano de valores e comportamento que se baseava nos moldes europeus.

A resistência escrava, seja ela direta através da contestação contra as condições

impostas pelo sistema, ou na forma mascarada de aceitação, de modo a sobreviver dentro do

mesmo sistema, foi um aspecto que marcou profundamente o escravo, muitas vezes visto

como uma figura passiva, acomodado, abnegado, incapaz de reagir diante do opressor, e ao

mesmo tempo, quando reagia era apontado como indolente, rebelde, o “criminoso em

potencial”, que por qualquer motivo deixava transparecer sua natureza bárbara e cruel.

No decorrer da pesquisa compreendemos mais facilmente o porquê de alguns termos e

expressões terem tanta força no imaginário social. Eles não só são significativos de uma

época, como também, mesmo que inconscientemente, são sintomáticos da rigidez da estrutura

do preconceito racial que sobrevive no Brasil. Na sociedade brasileira como um todo, a cor do

negro tornou-o escravo, ou seja, o preconceito racial, da forma como ele foi construído não se

baseia nas prerrogativas biológicas que especificam uma raça, a cor é que vai (in)definir as

relações sociais em nosso país, e dependendo das condições econômicas, outros preconceitos

lhes recaem continuando cristalizando imagens ainda muito vivas na imaginação da

sociedade.

Negro ou preto viraram sinônimos do que é ruim, a cor da pele determina muito

mais que a tez, ainda hoje ela (des)qualifica uma pessoa. E mesmo passados mais de um

século da abolição da escravidão, o negro continua marginalizado e prisioneiro de uma

sociedade preconceituosa que o estigmatiza e o escraviza dentro de um sistema excludente e

opressor.

88

REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Dunshee. O Cativeiro. 2. ed. São Paulo: ALUMAR, 1992. (Coleção Documentos Maranhenses).

ASSUNÇÃO, Mathias Rohring. A Guerra dos Bem-te-vis: a Balaiada na memória oral. São Luís: SIOGE, 1998.

ASSUNÇÃO, Mathias Rohring. Estruturas de poder e evolução política, 1800-1841. São Luís, [19-?]. Mimeografado.

AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Martin Claret, 2002.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2004.

CALDEIRA, José de Ribamar. O Maranhão na literatura dos viajantes do século XIX. São Luís: AML/SIOGE, 1991.

CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na história do Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto; EDUSP, 1994. (Coleção Repensando a História).

CARVALHO, Marcus J. M. Os negros armados pelos brancos e suas independências no nordeste (1817-1848). In: JANCSÓ, István (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

______________. Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.8, n. 16, p. 83-105.

89

CORRÊA, Rossini. Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luís: SIOGE, 1993.

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

COSTA, Yuri Michael Pereira. Criminalidade escrava: fala da civilização e urro bárbaro na Província do Maranhão (1850/1888). In: COSTA, Wagner Cabral da (Org.). História do Maranhão: novos estudos. São Luís: Edufma, 2004.

DUBY, Georges. História social e ideologias das sociedades. In: LE GOFF, Jaques; NORA, Pierre. História: novos problemas. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. S. Alves, 1995.

FARIA, Regina Helena Martins. Demografia, escravidão africana e agro exportação no Maranhão oitocentista. Ciências Humanas em Revista, São Luís, v. 2, n. 2, 2004.

___________________ Escravos, livres pobres, índios e imigrantes estrangeiros nas representações das elites do Maranhão oitocentista. In: COSTA, Wagner Cabral da (Org.). História do Maranhão: novos estudos. São Luís: Edufma, 2004.

FRIAS, J.M.C. Memória sobre a tipografia maranhense. São Paulo: Siciliano, 2001. (Coleção Maranhão Sempre).

GAYOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão. Paris: Officina de P.N. Pogeron, 1818.

GALVES, Marcelo Cheche. Luzes na imprensa: jornais ludovicenses no primeiro reinado. Ciências Humanas em Revista, São Luís: Edufma, v. 3, n. I, jul. 2005.

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Ática, 1992.

90

JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. A Balaiada. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. (Coleção Tudo é História).

LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. A fundação francesa de São Luís e seus mitos. 2. ed. São Luís: Lithograf, 2002.

LE GOFF. Jaques. O imaginário medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. p. 10-30.

LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

MARANHÃO. Coleção das leis, decretos e resoluções da província do Maranhão (1835-1848). São Luís.

MARQUESE, Rafael de Bivar. Escravismo e independência: a ideologia da escravidão no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos nas décadas de 1810 e 1820. In: JANCSÓ, István (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005.

MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003.

MOREL, Marco. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

PEREIRA, Josenildo de Jesus. Na fronteira do cárcere e do paraíso: um estudo sobre as práticas de resistência escrava no Maranhão oitocentista. 2001. Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História: Representações. São Paulo, v.15, n. 29, 1995. p. 14-27.

91

________________________História e História Cultural – Belo Horizonte: Autêntica, 2004, Cap. I e III Francisco, Frei de Nossa Senhora dos Prazeres. Poranduba Maranhense. Rio de Janeiro: Livraria J. Leite, 1890. RAMOS, Clóvis. Os primeiros jornais do Maranhão (1821-1830). São Luís: 1986. (Coleção “Opinião Pública Maranhense”).

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 3 ed. Rio de Janeiro: Presença, 1988.

REIS, João José. “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”: a resistência negra no Brasil oitocentista. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: SENAC, 2000.

SANTOS, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão. São Paulo: Ática, 1983.

SÃO LUÍS. Código de Posturas da Câmara Municipal de Capital – 1842. São Luís.

SCHWARCZ, Lílian Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

SERRA, Joaquim. Sessenta anos de jornalismo: a imprensa no Maranhão. São Paulo: Siciliano, 2001. (Coleção Maranhão Sempre).

SOARES, Flávio José Silva. Escravidão no Maranhão do século XIX: situações e características das fugas nos anos oitenta. 1988. ? f. Monografia (Bacharelado em História) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 1988.

VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História cultural. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro.: Campus, 1997.

92

_______________ Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1986. (História brasileira 8).

VIEIRA, filho. Domingos. A escravidão negra através de anúncios de jornal. São Luís: Departamento de Cultura do Estado do Maranhão, 1968.

VIVEIROS, Jerônimo de. História do comércio do Maranhão. São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1994. 4 v.

Jornais:

Publicador Oficial (1831-1836)

Crônica Maranhense (1838-1841)

Publicador Maranhense (1842-1846)

O Progresso (1847-1850)