os desastres da guerra - montepio.pt · 8 pedimos à arte a eternidade possível: o prolongamento,...

72

Upload: phamdung

Post on 17-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

2

31 Janeiro a 14 Abril de 2013

Graça MoraisOs Desastres da Guerra

4

ApresentaçãoMarina Bairrão Ruivo

Os Desastres da Guerra, pintura e desenho de Graça Morais, inaugura o ciclo de expo-sições temporárias do ano de 2013, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva. Comissa-riada por João Pinharanda, a exposição tem o apoio mecenático da Fundação EDP, dando continuidade a uma gratificante parceria iniciada em 2008 e que trouxe ao espaço do museu uma série de mostras de artistas portugueses: Mário Cesariny, António Sena, Fernando Lemos e, agora, Graça Morais.

Tanto Graça Morais como Maria Helena Vieira da Silva usam e metamorfoseiam recortes de imagens de jornais e revistas desde a infância e juventude, ordenando ou desorde-nando o mundo, cada uma à sua maneira. Ambas pintaram e desenharam, em tempos diferentes, os desastres da guerra.

A Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva manifesta o agradecimento mais profundo à Fundação EDP, ao seu Conselho de Administração e, em particular, a José Manuel dos Santos, Director Cultural, e João Pinharanda, Comissário da exposição, que permitiram a concretização deste projecto. O nosso reconhecimento a todos os que tornaram esta exposição possível, aos coleccionadores que cederam obras para a exposição e ao Montepio Geral pelo generoso apoio. Resta deixar o nosso agradecimento à pintora Graça Morais, pela garra e optimismo com que investiu nesta exposição, pelo seu olhar lúcido que vê para além das dificuldades e insiste em fazer sempre e bem.

Somos nós que nos reconhecemos nelas ou são elas que se reconhecem em nós? Na resposta a esta pergunta, marcamos o nosso lugar no mundo. Estas obras dizem o nosso nome, usam a nossa língua, olham-nos no nosso olhar. Arrastam-nos no seu movi-mento e na sua paragem: fugimos na sua fuga, paralisamos no seu medo, sofremos no seu sofrimento. Delas se pode falar de “terror” e de “piedade”– e era disso que Aristóteles falava quando falava da tragédia.

Vinda de um mundo que é (ou parece) um mundo sem tempo (o mundo eterno da terra, das suas lentidões e dos seus regressos), a obra de Graça Morais, com o ciclo que aqui se apresenta, cai abrupta-mente no tempo mais imediato para lhe dar um rosto (“Tu pintura es el lenzo de Verónica / de ese Cristo sin rostro / que es el tempo”, Octavio Paz).

“Todos os tempos se julgaram a viver sobre o abismo”, lembra Walter Benjamin. Mas isso não impede que, sob alguns tempos, o abismo seja mais abismo (abyssus abyssum invocat): embora o ovo da serpente esteja às vezes onde não pareça estar, o tempo dos comboios que paravam em Auschwitz não é o tempo em que a impe-ratriz Sissi atravessava a terra escoltada pelos seus fantasmas.

“Os cães de caça brincam ainda no pátio, mas a presa não lhes escapará, por muito que corra já pelas florestas”, informa-nos Kafka e as palavras geladas que usa para nos informar apontam para nós. Estes dese-nhos a pastel e a carvão de Graça Morais (desenhos pintados e pinturas desenhadas) fazem-se a partir das imagens que todos os dias, nas páginas dos jornais e nos

écrans das televisões, nos passam pela frente, sem que as consigamos parar ou fazer recuar. Mas, nestes desenhos, a pintora dá ao sensacionalismo um simbo-lismo, à superficialidade uma fundura, à banalização uma gravidade, ao efémero uma perenidade. E dá uma atenção à indiferença, uma proximidade à distância, uma recusa à aceitação, um juízo de valor ao juízo da realidade.

“Este é o tempo dos ASSASSINOS”, anuncia Rimbaud. Este é esse tempo tornado nosso. Subitamente, como num verão passado ou num inverno futuro, tudo se atirou a nós como os cães de caça desse judeu de Praga que não conseguia ver uma luz na sua treva. A este movimento que nos empurra para o abismo, para a catástrofe, para o desastre, para o deserto chamamos “crise”. Eu chamei-lhe um dia “a guerra de todos contra todos”. Nesta guerra, a lei é-nos imposta pelo exército do crédito e da dívida – e é uma lei marcial, um big brother bélico, um campo de extermínio planetário. A esta lei tudo foi submetido: o político, o social, o cultural, o humano. Sob o seu poder, cada casa tem uma forca, cada empresa é um teatro de guerra, cada pessoa é um alvo a abater.

A história da pintura tem muitos “desas-tres da guerra”. Os de Goya, assim mesmo chamados, fazem-se de crueldade e caos. O de Vieira da Silva (Le Désastre ou La Guerre) traz consigo as lanças de Paolo Uccello. Os de Manet são as várias versões de A Execução do Imperador Maximiliano e nelas há a memória do Tres de Mayo, de Goya, e dos instantâneos fotográficos do fuzilamento. Os de Picasso são a Guernica

O Tempo dos Assassinos

José Manuel dos Santos

6

(com os seus muitos estudos e esboços) e tudo nela é morte, noite e gume (Não, a pintura não se fez para decorar casas. É um instrumento de guerra ofensivo e defensivo contra o inimigo”, disse o pintor). O de Anselm Kiefer é o da Todesfuge e traz-nos Paul Celan: “Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer / Bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite/ Bebemos e bebemos / Cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados / (…) Açula os seus mastins contra nós oferece-nos um túmulo no ar / Brinca com as serpentes e sonha – a morte é um mestre da Alemanha”. Este ciclo de Graça Morais, feito de duas séries, tem esta ascendência, esta genealogia, esta linhagem. As suas armas dão-lhe uma heráldica de alerta e de protesto. À crueldade do mundo ela opõe a crueldade da imagem dele – no seu expressionismo trágico há aviso e repulsa.

A pintora conta que, muito nova e como tantos outros, estava em Paris a ver pintura. Ia aos museus e perguntava o que fazer com aquelas imagens que não lhe abandonavam os olhos. Um dia, foi ao cinema onde se estreara A Árvore dos Tamancos e esse filme deu-lhe resposta à sua pergunta. Decidiu trocar a cidade de todos os futuros pela terra de todos os passados – a sua, Trás-os-Montes. Nessa hora altiva, Graça tornou-se o que era e aprendeu o que já sabia: na terra que nos dá os frutos que alimentam, vivem também os vermes que destroem. Ela sabe que o humano e o inumano se misturam, mas que é preciso reconhecê-los, distingui-los, separá-los, nomeá-los. É a esse processo químico, uma espécie de electrólise do espí-rito, que podemos chamar moral.

Este ciclo que agora se apresenta é, na obra longa e contínua de Graça, a marcação nítida de uma metamorfose. A arte, que é a vida das formas, dá aqui forma ao medo do mundo. O que une todas as fases (digo “fases” no sentido em que se diz “fases da lua”) da obra de Graça Morais é aquilo a que Alberto Moravia, falando do autor de Accattone e do Evangelho Segundo S. Mateus afirma: “Pasolini escreveu que a piedade morrera. Ele entendia a piedade no sentido da relação religiosa com o real, isto é, o contrário da impiedade que ele via triunfar no hedonismo de massa.” Se, da sua madru-gada ao seu entardecer, atravessarmos a obra de Graça Morais, vemos que o senti-mento sagrado do real é o seu santo e a sua senha.

Neste ciclo, ao mostrar desastres, destrui-ções, destituições, destroços, vitórias, domi-nações, euforias, dores, a pintora faz uma teologia-antropologia do nosso tempo (nesta série o tema da Pietà é insistido). Aqui, o esgar do atleta que vence está próximo do esgar do prisioneiro que é derrotado. Aqui, há mortos, vivos, assassinos, assassinados, fugitivos, refugiados, perseguidos, persegui-dores, carrascos, vítimas, culpados, inocentes, mães, filhos, anjos, demónios. Aqui, há violência, crueldade, exaltação, pânico, perseguição, fuga, terror, sofrimento, piedade. Aqui, há a miséria do mundo, a violência da vida, a máscara da morte. Aqui, há bichos que são homens e homens que são bichos. Aqui, estão todos, mas não valem todos o mesmo.

Agora, estou a caminho do ateliê de Graça Morais, na Costa do Castelo. Vou acompanhado de um amigo. Ele é trans-

7

montano como ela e eles falam disso como os iniciados falam da sua iniciação e do seu templo. Continuam a falar e eu oiço-os, suspenso da minha exclusão. Depois, a artista começa a mostrar-nos a sua arte. Vemos fotografias de jornais e vemos as obras que ela fez a partir daí (“imitação” no sentido aristotélico, citação icónica e plágio metafísico, digo eu). De repente, o ateliê é o mundo. Subitamente, o ateliê é o medo. Ela fala e mostra. Mostra e fala. Fala da mãe como origem, fonte, terra, memória. Fala da vida e destes dias que a negam. Fala e aponta para um desenho: aí um homem leva ao colo outro homem. Então, diz: “Nesta crise, todos trazemos alguém ao colo: um desempre-gado, um desalojado, um faminto, um doente, um deprimido, um abandonado.”

Numa das suas parábolas mais terríveis, Franz Kafka conta que os leopardos entraram no templo e beberam o conteúdo dos vasos sagrados. Essa profanação repetiu-se com regularidade e método, tornando-se previ-sível. Acabou por pertencer ao ritual e passou a fazer parte da cerimónia.

Estamos num tempo entre estes dois tempos: o tempo da surpresa - medo do horror e o tempo da sua aceitação - norma-lização. Neste tempo entre esses dois tempos, a nossa responsabilidade é evitar a aceitação do inaceitável e a profanação do sagrado. O nosso dever é impedir a banali-dade do mal (Hannah Arendt). Sophia de Mello Breyner, que Graça tanto admira, afirma: “Não aceitamos a fatalidade do mal.

Como Antígona, a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres». Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estru-tura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa. // O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convi-vência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isola-mento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência, ele irá contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.”

Estas obras de Graça Morais são o sinal de uma responsabilidade e de um dever. São feitas de alerta e de alarme. Mas, nesse alerta e nesse alarme, acende-se a possi-bilidade de que Kafka não tenha inteira-mente razão quando afirma: “Existe esperança, esperança infinita, mas não para nós”. Porque, como diz Walter Benjamin, “é àqueles que não têm esperança que a espe-rança deve ser dada”.

Lisboa, Janeiro de 2013

8

Pedimos à Arte a eternidade possível: o prolongamento, até aos limites do tempo humano, da memória de cada indivíduo, de cada geração ou de cada civilização. No entanto, a eternidade não se alcança cons-truindo uma cena imóvel, alcança-se pela repetição do efémero, enfrentando o tempo passado e não negando o tempo presente. Cada tempo tem o seu tempo e é ele que resiste para memória futura.

O trabalho de Graça Morais trata do Tempo e do Lugar. Ela construiu a sua imagem investigando memórias e transfor-mando realidades: a do Portugal rural que mudava e perdia o seu tempo e o seu lugar no Mundo. Através dela vimos Trás-os-Montes agarrando-se à lonjura do céu, à dureza do ar, à antiguidade da voz, à violência de uma beleza esquecida.

As duas séries que agora se apresentam, embora encadeando-se nalguns outros momentos anteriores, surgem claramente como sobressalto cívico. Graça Morais reage, já não apenas a um presente que perde o seu passado mas a um presente que perde também o seu futuro. As longas e intensas cenas rurais de Graça Morais olhavam um mundo que lentamente se desagregava, eram uma acção de conser-vação, uma homenagem. Agora, são uma denúncia, um alerta. O tempo, aqui, é imediato e o espaço também – e ambos desabam vertiginosos sobre nós.

E, no entanto, cada uma das imagens que ela nos atira, retoma, repete, cita rostos, gestos, cenas que ao longo da história da Arte tantos outros artistas retomaram, repetiram, citaram transformando o quoti-diano em alguma coisa capaz de durar para

além do instante de um grito – transfor-mando-o em imagens, em símbolos. A crueza do desenho e a aspereza da cor, a ausência dos fundos e o peso das figuras são características e recursos: os riscos que se sobrepõem entre si, as cores que se desencontram dos limites do desenho, os fundos que permanecem nus à espera de mais sangue ou de algum azul sem nuvens.

Há uma reinventada tradição expressio-nista na obra de Graça Morais que não encontra nunca tal grau de exasperação na pintura portuguesa que a precede; também não se encontra tal exasperação na literatura ou na música portuguesas. Porque procu-ramos o céu, se tem cores violentas? Porque erguemos um corpo, se é para ser crucifi-cado? Porque se exibe a carne para um sexo ritualizado? Onde nos conduzem os caretos mascarados, cornudos, demoníacos? Ou as facas de matança e as lâminas das sacholas?

Talvez essa exasperação – vista na pintura europeia do Norte ou em arcaísmos euro-peus e não-europeus mas que Graça usa como coisa nossa – liberte uma memória antiga. Memória recalcada que aflora nas expressões populares das festas pagãs (nos Carnavais transmontanos, por exemplo), em momentos exactos da vida rural quotidiana (quando se mata um animal ou um homem, quando uma mulher é violentada, quando se ateia o fogo e arde um palheiro). Memória que a cultura dominante (primeiro católica, depois urbana) se esforça por adormecer ou escamotear sob a capa da inevitabilidade do trabalho, da necessidade da paciência, da santificação da dor, da pacificação social, da civilidade dos costumes.

Onde nos levam os corpos dobrados

Graça Morais:a Arte e o Presente

João Lima Pinharanda

Livrai-nos Senhor,da Fome da Peste

e da Guerra

(oração medieval)

9

sobre a terra, semeando, esperando e arrancando os frutos, dobrados sobre o colo, tecendo ou debulhando, dobrados sobre os joelhos, rezando ou penando? Penso que nos transportam directamente às imagens que a artista agora trabalha: aos indignados da miséria urbana, aos que têm fome e aos que têm raiva, aos sacrifi-cados das pequenas guerras que proliferam como doenças endémicas, às cenas sacri-ficiais e às cenas de piedade em que cada homem e cada mulher repete os gestos de todos os homens e mulheres de todas as cidades cercadas, queimadas, destruídas: Babilónia, Tróia, Persépolis, Cartago, Esta-linegrado, Berlim, Hiroshima, Sarajevo, Bagdade... São gestos de morte e gestos de amor: cada um de nós, assassino; cada um de nós, figura de uma Pietà.

Graça Morais usa fotografias da imprensa como fonte. Mas podia usar imagens de obras de Picasso ou Manet, Delacroix ou Goya, David ou Velázquez, Caravaggio ou Miguel Ângelo, Van Eyck ou Uccello, a escul-tura do Gaulês moribundo ou do Gálata suicida, podia repetir a perda de Eurídice por Orpheu, a dor de Aquiles por Pátrocolo, o salvamento de Anquises por Eneias, o golpe de espada de Judite sobre o pescoço de Holofernes, o terno abraço de Isabel e Maria, o peso de Cristo nos braços estremados de sua Mãe... – porque as mais certeiras dessas fotos de imprensa são as que coincidem com os estereotipos de dor e sacrifício, de violência e compaixão definidos nas imagens literárias e teatrais, orais e visuais da cultura ocidental desde a sua formação.

Qualquer imagem integra a História e constrói a sua própria história. Graça Morais

altera escalas, espaços, gestos, posições, direcções, muda protagonistas. Faz tudo para alcançar uma verdade sua que deseja venha a ser universalmente reconhecida. Mas como sempre, são as construções ficcionadas que melhor nos trazem ao coração do real. Entre O 3 de Maio de 1808 em Madrid de Goya e a Guernica de Picasso olhemos a Execução do Imperador Maximiliano, que Manet pintou em 1869 a partir de testemunhos directos. Se compararmos fotos e relatos escritos que o artista consultou com a obra que realizou, veremos alterados todos os elementos da composição e quase irreconhecíveis os laços entre o facto documentado e o facto-pintura. No entanto, é essa pintura que nos traz mais perto da realidade, é essa pintura que eter-niza o episódio como mais um exemplo da coreografia do poder e da queda, da morte e do sacrifício, é essa pintura que nos permite transcender o pessoal, o político, até o histórico, para integrar “o que acon-teceu” (o facto isolado) no arco de sentidos profundos da tragédia humana.

O discurso de Graça Morais coincide com a História. Mas usando as imagens dos perigos, dos medos e das sombras que cobrem os caminhos, nos entram em casa e nos assaltam nas ruas de todas as cidades do mundo, ela isola e destaca elementos, compõe situações novas de modo a sentir-se mais próxima de uma verdade trans-histórica. Se conhecermos a dureza dessa verdade profunda expulsa-remos as sombras e venceremos os medos dos nossos dias de chumbo: é essa a vontade da pintora com a sua pintura.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2012

10

HOMEM QUE PARTE – Não mais voltarei a carregar-te nos meus ombros, Pai, como há tantos e tantos anos, quando, destruída pelo inimigo, deixámos para trás a nossa cidade em chamas. Era longo o caminho que então percorri, lembras-te? Pesavas nos meus ombros com a leveza de uma pluma, consu-mido pelos anos e as penas. Disseste-me depois que parasse, querias o repouso eterno, eu continuei a caminho do Ocidente, porque é no Ocidente da Terra que existe a esperança de uma nova civilização, o Fado assim o quis. Nada trouxe comigo, levava para o Ocidente o nosso Oriente, o Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, o Oriente pomposo e fanático e quente, o Oriente onde – quem sabe? – Deus talvez exista realmente e mandando tudo... A tua candeia extin-guira-se, e com ela o meu passado. Segui caminho levando o meu filho pela mão.

CORO – Apressa-te, o barco está prestes a zarpar, temos de levantar âncora, o tempo urge.

HOMEM QUE PARTE – Pai, tenho de partir, Ascânio já está a bordo.

CORO – Não saiba o teu filho que vais partir! Ignaro, dorme no chão ainda quente dos incêndios, não podemos levá-lo connosco: crianças, o Ocidente não as quer, aceita quando muito a força dos teus braços.

PAI (murmurando) – Por que não deu ninguém ouvidos a Cassandra? CORO – Porque não há rebeldia contra o Fado, tentou-o Laocoonte, e os deuses enviaram duas serpentes marinhas que em

seus anéis o estrangularam, e a seus filhos. Esses mesmos deuses que enviaram o cavalo com a barriga de fogo para destruir os nossos costumes e trazer-nos os seus, a que chamam democracia.

HOMEM QUE PARTE – A democracia deles são ruínas fumegantes, morte, desespero e cinzas, e de tudo isso hão-de sacar muito dinheiro, porque é negócio a guerra que fazem.

CORO – Vem, estulto homem pronto a partir, aproveita o nosso barco, não és nenhum herói, já não és um cidadão, nem sequer és um homem, és tão-só um migrante.

PAI – Tens de ir, Eneias.

CORO – Eneias foi seu nome em tempos, agora Anónimo é seu nome. Anónimo, tens acaso documentos que digam que és alguém?

HOMEM QUE PARTE – Pai, não voltarei a ver-te nunca mais?

PAI – Encontraste-me em tempos nos Campos Elísios, a Sibila conduziu-te ao reino do Hades. Com ela atravessaste o Estige e por três vezes abraçaste a minha sombra.

CORO – A Sibila morreu há muito, e o Hades fechou. Existe, sim, o fundo do Mediterrâneo onde apodrecem os cadáveres dos migrantes deserdados pela sorte.

PAI – E depois do terceiro abraço a minha

FIM DO MITO

Breve autosobre um quadrode Graça Morais

Antonio Tabucchi

TraduçãoGaëtan Martins de Oliveira

In Graça Morais. 2011: A caminhada do medo. Porto:

Cooperativa Árvore, 2011.

11

sombra explicou-te a doutrina dos ciclos e dos renascimentos que rege o universo, e confortado com a minha explicação alcan-çaste a Itália, habitada por gente bárbara, e fundaste Roma, de cuja civilização nasceu a Europa.

CORO – Velho, nada ficou por fundar. Hoje, a Europa que nasceu da cidade fundada por teu filho já não quer intrusos, feroz-mente coalizada, tem uma frota costeira que vigia os desembarques, afunda embar-cações tão miseráveis como as nossas; essas criaturas outrora bárbaras enrique-ceram, uns mais, outros menos, porque os pobres fazem falta aos ricos, e sem os pobres nunca os ricos seriam ricos. Mas os ricos que aí ordenam não querem gente mais pobre do que os seus pobres, para que a sua riqueza não se desvalorize e não se perturbe o equilíbrio entre os ricos e os pobres que sustenta a sua sociedade. Apressa-te a subir, pobre migrante, a passagem que te oferecemos, por nossa conta e risco, custa-te apenas dois mil dinheiros, na moeda actual exactamente o

mesmo que um habitante itálico pagava para apanhar o vapor para as Américas, um habitante das Germânias para fugir para a Argentina, um lusitano para dar o salto. E hoje, quando cada um deles se encontra bem defendido nas fronteiras de um espaço comum, é difícil forçar as portas de Schengen. Eles desembarcaram na Lua e os astros não opuseram resistência. Mas é proibido desembarcar nas margens da Fortaleza de Schengen.

HOMEM QUE PARTE – E o nosso Mito, Pai?

PAI – Não sei.

CORO – Em tempos, o Mito era o nada que é tudo. Hoje, é apenas o nada. Partamos.

Isto diziam, sem o dizerem, as figuras de um quadro de uma pintora portuguesa numa luminosa tarde do Verão de 2011, em Lisboa, numa casa antiga da Costa do Castelo. Ao contemplá-lo, ouvi as suas vozes e, tal como as ouvi, agora as transformo em escrita, sem nada acrescentar.

12

Fuga do Caos e do Abismo.

São milhões de seres humanos que migram em busca de

um futuro melhor. Fugidos de guerras, de genocídios, do

terrorismo, de catástrofes naturais, lutando numa cruzada

contra a fome, a doença, as injustiças sociais e as perse-

guições políticas.

É através destas pinturas que faço uma reflexão profunda

sobre a resistência de mulheres e homens que procuram

o seu lugar na Terra, lugar no qual recusam a fatalidade

do Medo e a indignidade do Mal .

Janeiro de 2013

Série A Caminhada do Medo IV, 2011pastel e carvão sobre papel150 x 111 cmCol. Graça Morais

13

Série A Caminhada do Medo I, 2011, carvão e pastel sobre papel, 114 x 200 cm, Col. particular

15

16

Série A Caminhada do Medo II, 2011carvão e pastel sobre papel111 x 150 cmCol. particular

17

18

Série A Caminhada do Medo III, 2011carvão e pastel sobre papel111 x 150 cmCol. Graça Morais

19

20

Série A Caminhada do Medo V, 2011pastel e carvão sobre papel150 x 111 cmCol. Graça Morais

21

22

Série A Caminhada do Medo VI, 2011pastel e carvão sobre papel150 x 111 cmCol. Graça Morais

23

24

Série A Caminhada do Medo VII, 2011pastel e carvão sobre papel102 x 152 cmCol. Graça Marais

25

26

27

Série A Caminhada do Medo VIII, 2011pastel e carvão sobre papel102 x 152 cmCol. Casino da Póvoa do VarzimPrémio de Artes Casino da Póvoa’2011

28

29

Série A Caminhada do Medo XI, 2011pastel e carvão sobre papel102 x 152 cmCol. Graça Morais

30

31

Série A Caminhada do Medo X, 2011 pastel e carvão sobre papel.102 x 152 cmCol. Graça Morais

32

Série A Caminhada do Medo IX, 2011pastel e carvão sobre papel102 x 152 cmCol. particular

33

34

A Idade do Medo, 2011carvão e pastel sobre tela208 x 178 cmCol. Graça Morais

35

36

Série A Caminhada do Medo XVI, 2011colagem, acrílico, tinta da China e carvão sobre papel30 x 42 cmCol. Graça Morais

37

Série A Caminhada do Medo XV, 2011colagem, acrílico, tinta da China e sépia sobre papel46 x 38 cmCol. Graça Morais

38

Série A Caminhada do Medo XVIII, 2011colagem, acrílico, tinta da China e carvão sobre papel30 x 42 cmCol. Graça Morais

39

Série A Caminhada do Medo XIX, 2011colagem, acrílico, tinta da China e carvão sobre papel30 x 42 cmCol. Graça Morais

40

Série A Caminhada do Medo XXVII, 2011carvão sobre papel38 x 46 cmCol. Graça Morais

41

42

43

Série A Caminhada do Medo XXVIII, 2011carvão sobre papel38 x 46 cmCol. Graça Morais

44

Série A Caminhada do Medo XXIX, 2011carvão sobre papel38 x 46 cmCol. Graça Morais

45

Série A Caminhada do Medo XXX, 2011carvão sobre papel38 x 46 cmCol. Graça Morais

46

Série Sombras do Medo, 2012pastel e carvão sobre papel111,3 x 75,8 cmCol. Graça Morais

Pinturas nas quais homens e mulheres se transmutam

em animais.

Animais que ganham a força dos heróis.

Anjos que carregam nos seus braço seres que são

resgatados do Inferno e dos desastres das guerras e

das doenças.

Pietàs que revelam a natureza humana numa recusa

em aceitar a fatalidade da maldade sem rosto que

ensombra a Terra.

Estas pinturas e desenhos são o meu grito de alerta

e revolta perante um mundo que apreendo através dos

jornais, das televisões e dos media e que também sinto

no olhar das pessoas com quem me cruzo no meu

quotidiano, numa cumplicidade de olhares, cheios de

dignidade mas também de muito sofrimento.

Outubro de 2012

47

48

Série Sombras do Medo, 2012pastel e carvão sobre papel111,3 x 75,8 cmCol. Graça Morais

49

50

Série Sombras do Medo, 2012pastel e carvão sobre papel111,3 x 75,8 cmCol. Graça Morais

51

52

Série Sombras do Medo, 2012pastel e carvão sobre papel111,3 x 75,8 cmCol. Graça Morais

53

54

Série Sombras do Medo, 2012pastel e carvão sobre papel111,3 x 75,8 cmCol. Graça Morais

55

56

Série Sombras do Medo, 2012pastel e carvão sobre papel111,3 x 75,8 cmCol. Graça Morais

57

58

Série Sombras do Medo, 2012aguarela e acrílico sobre papel29,5 x 42 cmCol. Graça Morais

59

Série Sombras do Medo, 2012aguarela e acrílico sobre papel29,5 x 42 cmCol. Graça Morais

60

Série Sombras do Medo, 2012sépia e grafite sobre papel29,5 x 42 cmCol. Graça Morais

61

Série Sombras do Medo, 2012tinta da China, sépia e acrílico sobre papel29,7 x 40,5 cmCol. Graça Morais

62

Série Sombras do Medo, 2012grafite sobre papel29,5 x 42 cmCol. Graça Morais

63

Série Sombras do Medo, 2012tinta da China e aguarela sobre papel29,8 x 39,8 cmCol. Graça Morais

64

Série Sombras do Medo, 2012sépia e acrílico sobre papel29,7 x 40,5 cmCol. Graça Morais

65

Série Sombras do Medo, 2012tinta da China e acrílico sobre papel29,7 x 40,5 cmCol. Graça Morais

66

Série Sombras do Medo, 2012tinta da China e acrílico sobre papel29,7 x 40,5 cmCol. Graça Morais

67

Série Sombras do Medo, 2012tinta da China, sépia e acrílico sobre papel29,7 x 40,5 cmCol. Graça Morais

Graça Morais. 2012. Fotografia de Duarte Belo

Nasceu em Vieiro, Trás-os-Montes, em 1948. Concluiu o Curso de Pintura na Esco-la Superior de Belas-Artes no Porto em 1971. Entre os anos de 1976 a 79 vive em Paris, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Actualmente reside e tem o seu ateliê em Trás-os-montes e em Lisboa. É membro da Academia Nacional de Belas Artes e de diversas associações, confrarias e fundações culturais. Foi agraciada com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, pelo Presidente Jorge Sam-paio. Desde 1974 até 2013 realiza e partici-pa numa centena de exposições individuais e colectivas, dentro e fora do País.

Em 2008 foi inaugurado o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais em Bragança, da autoria do arquitecto Souto Moura com uma exposição de obras da Artista repre-sentativas das séries entre 1982 e 2005. Ciclicamente são renovadas as exposições nas salas destinadas à sua obra.

Graça Morais está representada em vá-rias colecções privadas e públicas: Assem-bleia da República, Millennium bcp, Banco Espírito Santo, Banco Português de Negó-cios, Culturgest, Cooperativa Árvore, Fun-dação Luso-Americana, Caixa Geral de De-pósitos, Caixa de Crédito Agrícola de Bra-gança, Ministério da Cultura – Museu de Serralves, Ministério das Finanças, Museu de Angra do Heroísmo, Museu Municipal de Vila Flor, Museu Abade Baçal de Bragança, Museu Anastácio Gonçalves em Lisboa, Mu-seu de Arte Moderna de São Paulo, C.A.M. – Fundação Calouste Gulbenkian, Colecção da Fundação Paço D’Arcos, Colecção Manuel de Brito, Colecção do Centro de Arte Con-temporânea Graça Morais.

Foram executadas obras da pintora pela Manufactura de Tapeçarias de Portalegre que se encontram expostas na Assembleia da República, Câmara Municipal de Lisboa, Universidade Técnica de Lisboa, Montepio Geral (Lisboa), Pousada de São Bartolomeu (Bragança) e na Fundação Mário Soares.

Intervenções artísticas em painéis de azu-lejos no Edifício sede da Caixa Geral de De-pósitos (Lisboa), na Estação de Bielorrússia do Metropolitano de Moscovo, na estação de comboios do Fogueteiro (Seixal) e na Estação de Metropolitano da Amadora – Falagueira. Painéis de azulejos no Mercado Municipal de Bragança, no Teatro Municipal de Bragança, na Caixa de Crédito Agrícola de Bragança, na Escola Miguel Torga em Bragança, na Clínica de hemodiálise em Mirandela, nas Escolas Monsenhor Jerónimo do Amaral (Vila Real) e na Biblioteca Municipal de Carrazeda de Ansiães. Destacam-se ainda os painéis em azulejo no Viaduto de Rinchoa/Rio de Mouro, no Centro de Astrofísica e Planetário do Porto e na Central Hidroeléctrica de Vilar de Frades (Vieira do Minho).

Ilustrou e colaborou com poetas e escri-tores, como: Agustina Bessa-Luís; José Saramago; Miguel Torga; Sophia de Mello Breyner Andresen; Pedro Tamen; António Alçada Baptista; Manuel António Pina; Nuno Júdice; Clara Pinto Correia; José Fernandes Fafe; António Osório; Ana Marques Gastão; José Carlos de Vasconcelos, entre outros.

Foram escritas monografias e textos crí-ticos, por: António Mega Ferreira, Fernando de Azevedo, Egídio Álvaro, Fernando Pernes, Vasco Graça Moura, Sílvia Chicó, Rui Mário Gonçalves, Lídia Jorge, Manuel Hermínio Monteiro, Eduardo Lourenço, Maria Velho

Graça Morais

70

da Costa, João Pinharanda, Bernardo Pinto de Almeida, António Carlos Carvalho, Júlio Moreira, Bruno Musatti, Frederico Morais, Ruth Rosengarten, Cristina Tavares Azeve-do, José Viale Moutinho, Manuel António Pina, João Fernandes, Jorge da Costa, Lau-ra Castro, António Tabucchi, entre outros.

Realizou a cenografia para os ‘Biombos’ de Jean Genet, no Teatro Experimental de Cascais, e a cenografia e figurinos para o

‘Ricardo II’ de W. Shakespeare, no Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa, ambas en-cenadas por Carlos Avilez, em 1993 e 1995 respectivamente.

Em 1997, Margarida Gil realizou um do-cumentário ‘As Escolhidas’ baseado na obra da Graça Morais. Em 1999, a filha Joana realizou ‘Na Cabeça de uma Mulher está a História de uma Aldeia’, sobre a vida e a obra da artista.

Fundação EDP

Conselho de AdministraçãoAntónio de Almeida (Presidente) António Mexia Sérgio Figueiredo

Director CulturalJosé Manuel dos Santos

Directora de Comunicação Catarina Seixas

Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva

Conselho de AdministraçãoManuel Pinho (Presidente) Jean-François Jaeger João Corrêa Nunes Luís dos Santos Ferro Maria Nobre Franco Raquel Henriques da Silva Vera Nobre da Costa

Directora e ConservadoraMarina Bairrão Ruivo

Agradecimentos

As imagens da série A caminhada do medo, da autoria de João Krull, e o texto de António Tabucchi, traduzido por Gaëtan Martins de Oliveira, são cortesia da Árvore – Cooperativa de Actividades Artísticas, CRL, Porto

Centro de Arte ContemporâneaGraça Morais, Bragança

Duarte Belo

Maria José Lancastre

apoio

ComissariadoJoão Pinharanda (FEDP)

ProgramaçãoMarina Bairrão Ruivo (FASVS)

DocumentalistaSandra Santos (FASVS)

ProduçãoSandra Quintas (FASVS)Sofia Sutre (FASVS)

ComunicaçãoFundação Arpad Szenes-Vieira da SilvaFundação EDP

Concepção gráficaatelier de designNuno Vale Cardoso + Nina Barreiros

Créditos fotográficos João Krull

MontagemAntónio José PereiraJosé Vieira

Embalagem e transportesapoio

Seguros apoio

Impressão???????

Depósito legal???????

ISBN978-972-8467-45-6

Janeiro 2013Tiragem – 500 exemplares

Praça das Amoreiras, 56/581250-020 Lisboa