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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
INTERDISCIPLINARIDADE E FORMAÇÃO HUMANA
Neuseli Pércio de Araújo1
Terezinha Oliveira2
Resumo: Neste artigo, intitulado Interdisciplinaridade e Formação Humana, apresentamos um conjunto de reflexões sobre o trabalho pedagógico na escola pública atual, fundando-nos na consideração de que a interdisciplinaridade é um princípio teórico metodológico para a apropriação do conhecimento científico.Com o aprofundamento dos estudos, percebemos a mútua relação entre trabalho interdisciplinar e formação humana no sentido da totalidade. Percebemos também os autores que estudam a natureza humana e, assim, oferecem a possibilidade de recuperação do compromisso, da ética e da responsabilidade para com o próximo, seja na escola ou no cotidiano social, são os filósofos clássicos. Por essa razão, apoiamo-nos em alguns deles. Em seguida, articulamos esses estudos e reflexões e, por meio de um projeto de implementação com professores da rede pública, procuramos promover debates a respeito do nosso comportamento, da nossa natureza humana. Entendemos que, à medida que nos damos conta de que o conhecimento é fundamental para o processo de humanização, as relações com o próximo tornam-se éticas e úteis e, dessa forma, a ação do professor faz a diferença: é ele quem conhece e que faz essa articulação com seus alunos. Por fim, concluímos que a interdisciplinaridade atua na natureza humana, sendo reconhecida na ética, na responsabilidade e na dignidade dos homens. Essa construção é resultado da educação e do conhecimento, essenciais para a formação humana.
Palavras chave: Interdisciplinaridade. Clássicos. Formação humana.
1.Introdução
O debate sobre a interdisciplinaridade na educação não é recente e continua
apontando um conjunto de medidas e de ações pedagógicas para a vivência em
sala de aula. No contexto em que se encontra a escola pública, com suas
inquietações, os baixos índices de avaliação em larga escala, como o IDEB, e nos
relatos de docentes a respeito do seu cotidiano escolar, encontramos elementos
motivadores de pesquisas e estudos que ofereçam contraposições ao que está
posto e argumentos para a adoção ou construção de uma postura que, no cotidiano,
ultrapasse o senso comum.
O PDE, programa criado pela SEED-PR, proporciona a realização de estudos
educacionais nos quais se relacionem diretamente a ação docente, ensino, e a ação
discente, aprendizagem.
As reflexões realizadas por nós, na forma de curso, foram direcionadas
especificamente a professores do Colégio Estadual Olavo Bilac-Sarandi/PR. Nossa
1 Profª Pedagoga da Rede Pública Estadual de Ensino do Paraná. [email protected] Profª Drª Orientadora PDE da Universidade Estadual de Maringá. [email protected]
finalidade foi levá-los a superar a ideia de que a crise na educação se fortalece no
senso comum e na descaracterização do que é educação. A interdisciplinaridade,
como princípio teórico metodológico, a nosso ver, coopera para a apropriação do
conhecimento científico produzido pela humanidade.
Outra razão para a escolha do tema da interdisciplinaridade é que essa teoria
metodológica pressupõe uma postura comportamental dos envolvidos: ética e
compromisso no fazer cotidiano, dentro ou fora da escola. Para o enfrentamento do
problema que apresentamos, buscamos entender a epistemologia da natureza do
homem, projetando no professor e no aluno o desenvolvimento das relações
construídas com base na ética, na responsabilidade e na dignidade dos homens.
Em relação ao exame dos teóricos, o levantamento das fontes bibliográficas
concentrou-se em pensadores clássicos e em contemporâneos que tratam da
formação humana e oferecem um aprofundamento teórico do tema proposto: a
interdisciplinaridade. Privilegiamos as produções bibliográficas disponíveis em livros,
teses e artigos, como é o caso da obra organizada por Ivani Fazenda em 1992,
intitulada Integração e interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: efetividade ou
ideologia. Quanto aos artigos, os principais datam de 1993 e 2008 e foram escritos,
respectivamente, por Bianchetti, Universidade e Interdisciplinaridade, e Thiesen, A
Interdisciplinaridade como movimento articulador no processo ensino-aprendizagem.
Os autores estudados são relevantes pela forma como caracterizam a
sociedade e evidenciam em seu interior a organização da prática educacional, bem
como pelo seu interesse em uma abordagem reflexiva com base na história. O
historiador Marc Bloch (2001), por exemplo, em Apologia da história ou o ofício de
historiador, propõe que se conheça o presente pelo passado, interrogando a própria
história dos homens. Tais homens não são distantes de nós, porque, tal como nós,
fazem a sociedade. Os clássicos também questionam a natureza humana.
Vemos, portanto, na obra de Marc Bloch (2001), a importância de uma
metodologia que interrogue a história, não para desmerecê-la, mas para criar
“hábitos” de reflexão que possibilitem o rompimento com a naturalização do meio.
Dentre os autores que abordam a formação humana no sentido de se
estabelecer uma relação entre a prática vivente e o discurso, priorizamos Aristóteles
(1973), com Ética à Nicômaco; Sêneca (2012), com Da tranquilidade da Alma, e
Tomás de Aquino (2005), com A Prudência, e na obra intitulada: Sobre o Ensino (De
Magistro)(2004). Estudamos também a obra de Pondé (2012): Guia Politicamente
Incorreto da Filosofia. Esse filósofo contemporâneo caracteriza e evidencia as
relações sociais travadas na contemporaneidade.
Com base nessas fontes, obtivemos significativos conhecimentos,
principalmente nos clássicos, que se mostraram tão atualizados ao descrever a
natureza humana, mesmo tendo sido escritos há séculos. Seus autores desvelaram
a ação humana no cotidiano como hábitos, costumes e vícios da nossa própria
natureza. Ou seja, mostraram que teoria e prática não se separam.
Nossas hipóteses tiveram origem em nossa própria vivência escolar como
pedagoga de escola pública. Seria a “falta de interesse” dos alunos, muito
comentado e naturalizado por nós professores, a causa do fracasso escolar
atualmente? Os problemas atuais, como altos índices de reprovação, insatisfação
com a carreira docente, a má fama das políticas públicas para com a educação,
justificariam a realidade frágil do contexto escolar atual, deturpando o objetivo
prioritário da escola, que é a apropriação dos conhecimentos científicos? Com efeito,
na implementação dos estudos realizados neste PDE, nossa intenção foi a de
organizar estudos e reflexões que alertassem para reelaboração de alguns modelos
criados e “naturalizados” na escola, os quais corrompem a finalidade do
conhecimento.
2.A materialização do tema
2.1.A ética em Aristóteles e a interdisciplinaridade
Usufruindo da possibilidade oferecida pela mantenedora, SEEDE-PR, e pela
instituição responsável pela formação do PDE (UEM), com a colaboração da Profª
Drª Terezinha Oliveira, e tendo em vista a importância do conhecimento para
educação e a formação humana, nossa intenção, a priori, foi buscar aprofundamento
teórico a respeito da interdisciplinaridade e também estudar os escritos dos filósofos
clássicos, de forma a utilizar esses conhecimentos em nossa proposta de formação
docente. Partimos sempre da premissa de que é preciso conhecer para fazer.
Considerando o contexto escolar referido anteriormente neste texto, nosso
alvo de pesquisa foram os professores e a equipe diretiva. As ações foram pensadas
e articuladas em uma proposta didática, cujo fundamento é a história social dos
homens. Tal escolha tem relação com nosso referencial teórico interdisciplinar e com
uma metodologia de questionamento da prática, a qual articula o movimento de
reflexões a respeito de como pensamos e agimos dentro ou fora da escola.
Na execução da proposta, professores e membros da equipe diretiva inscritos
tornaram-se alunos, cuja expectativa era a aprendizagem de novos conhecimentos.
De nossa perspectiva, a promoção de ações pontuadas de ensino resulta na
apropriação e na materialização desses conhecimentos. É natural do ser humano ter
certa curiosidade, mas não é natural questionar-se por si só para a apropriação do
saber; nesse sentido, elaborar questões pertinentes ao tema a ser trabalhado nos
debates demanda um voltar a si naquilo que conceitua a própria experiência de vida.
Os encontros foram articulados com base em obras teóricas sobre a
interdisciplinaridade, obras de filósofos clássicos e fontes atuais, como artigos,
vídeos, notícias e documentários. Como se pode deduzir, em nossa investigação,
procuramos estabelecer uma relação entre o saber aprofundado a respeito de
encaminhamentos pedagógicos significativos, a utilização de obras clássicas como
fonte teórica da formação humana e de fontes atuais que revelam a prática de hoje.
Como mencionamos anteriormente, o presente fornece-nos o caminho para uma
melhor atuação.
As questões a seguir fizeram parte do primeiro encontro e nortearam os
demais encontros de estudos. Por que estou na vida? O que estou fazendo na
educação? Por que é importante ensinar? Agimos na mente do outro? Temos
consciência de que ensinamos algo, dando condições de liberdade? Conhecimento
produz ou não liberdade? Como tenho essa condição de liberdade pelo
conhecimento?
Em nossas observações a respeito dessas questões, pudemos demonstrar
quão conflitante é dar respostas a elas. Nós, os cursistas e a professora do PDE,
juntos, percebemos o quanto nos falta estudar e debruçar em debates pertinentes à
nossa profissão.
Imbuídos de tal constatação, promovemos o primeiro encontro com o tema
proposto: Crise na educação, de Hannah Arendt (2009). A leitura do texto foi
realizada com intervalos para debates. Anteriormente a ela, pudemos observar que
alguns professores diziam-se saturados desse debate com título “crise na
educação”. Conforme o texto ia sendo desbravado, já não se considerava que a
discussão do tema estava desgastada, principalmente quando as ideias
ultrapassavam o espaço mais próximo. Ao situar a educação em um espaço mais
globalizado podemos fazer um parâmetro e distinguir as ideias postuladas das
impressões anteriores. A nosso ver, nenhum assunto está tão saturado que não
possa mais ser explorado. Nossa prática escolar fragiliza-se, então, na pouca busca
pelo conhecimento. A prática do senso comum pode ser contra-argumentada com o
conhecimento, que não é estagnado e nem finito.
Esboçadas as ideias e as relações instigadas pelas questões anteriores e
pelo estudo do texto de Hannah Arendt (2009), mais uma questão se fez necessária
aos propósitos da aprendizagem: qual a relação que se pode fazer entre a obra de
Hannah Arendt (2009) e a visão de educação da cada um de nós? Por meio dos
discursos dos participantes, percebemos que ainda nos perdemos em enxergar
apenas o cotidiano escolar, sem fazer as relações que extrapolam esse mesmo
cotidiano e continuando a agir com base nas ideias do senso comum. Avançar na
análise, ou seja, sair do senso comum, requer uma postura de estranheza diante do
mundo, sem deixar que a rotina educacional nos ponha em condição ingênua no
processo. Segundo a autora:
Isto significa que, no mundo moderno, onde quer que a crise tenha eclodido, não podemos contentar-nos com continuar ou simplesmente voltar atrás. Um tal retrocesso só nos faria regressar à situação em que a crise emergiu. Além disso, esse retrocesso seria simplesmente uma repetição ainda que talvez diferente na forma — uma vez que o número de possíveis noções absurdas e caprichosas que podem ser apresentadas como a última palavra em ciência é ilimitado. Por outro lado, a simples e irrefletida perseverança, quer atue no sentido da crise, quer adira à rotina que acredita ingenuamente que a crise não vai fazer submergir a sua esfera particular de vida, apenas pode, porque se rende ao curso do tempo, levar à ruína. Mais precisamente, apenas pode fazer crescer a estranheza face ao mundo que nos ameça já de todos os lados. A reflexão sobre os princípios da educação deve ter em conta este processo de estranheza face ao mundo. Pode-se mesmo admitir que se está aqui face a um processo automático, desde que se não esqueça que o pensamento e a ação humanos têm o poder de interromper e fazer parar este processo. ( ARENDT,2009, p.13).
Assim, o trabalho inicial para demais reflexões que iriam ocorrer nos próximos
encontros estava posto. Propusemos, então, para cada encontro, leituras
preliminares, por nós pensadas estrategicamente, dando o espaço de duas semanas
mais ou menos entre um encontro e outro.
Neste artigo, iremos expor os resultados dos melhores debates observados
durante os encontros, sem, contudo, relatar encontro a encontro. Segundo nossa
opinião, na forma como foi elaborado o quadro das nossas ações de implementação,
o objetivo maior era de que os professores usassem os clássicos como suporte de
entendimento da formação humana, relacionando-o intimamente com o fazer
interdisciplinar na proposta pedagógica.
Quanto aos clássicos, nossa primeira proposta foi a leitura dos livros I e II de
Ética à Nicômaco do filósofo Aristóteles (384 a.C., 322 a.C.), com a expectativa de
que os leitores colocassem em questão seus próprios conceitos de ética. Por meio
de seus depoimentos a respeito das leituras realizadas durante essas semanas, os
professores mostraram-nos que não tinham ideia do que o filósofo há tanto tempo
tinha escrito sobre ética e de que isso é o que hoje necessitamos recuperar.
Algumas passagens da obra, então, foram sugeridas por nós e outras pelos
professores como de relevância para a prática docente. Eis algumas das que
fizeram a diferença nos debates:
Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as outras — porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil —, devemos examinar agora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, como dissemos, eles determinam a natureza dos estados de caráter que daí surgem. ( ARISTÓTELES, 1973,p. 268).
O filósofo salienta bem que se trata de examinar nossos próprios atos e não
de nossos vícios de observarmos o outro, deixando de olhar para nós mesmos.
Percebemos o quanto é importante, nesse momento, desconstruirmos velhos
hábitos. Segundo nossos participantes, é um “ rasgar a pele” desconstruir conceitos
que acreditamos ser essenciais à nossa prática, materializados no viver do
cotidiano, atos de nós mesmos. Neste sentido, se a argumentação se refere à
investigação para a apreensão de novos conceitos para a prática, observamos que
o fazer pedagógico interdisciplinar com alunos também passa pela investigação dos
conteúdos e não apenas pela assimilação. É na prática desses conteúdos, formais e
não formais, que se aposta na aprendizagem.
Por essa razão, quem quiser ouvir com proveito as exposições sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre a ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. O fato é o princípio, ou ponto de partida, e se ele for suficientemente claro para o ouvinte, não haverá necessidade de explicar por que é assim; e o homem que foi bem educado já conhece esses princípios ou pode vir a conhecê-lo com facilidade. ( ARISTÓTELES, 2001, p.12).
Para Aristóteles, bem diferente do que pensamos da política atualmente, a
ciência política é o bem maior para humanidade, por isso, nos debates, aparece
como conflitante relacionar os conceitos atuais com os do filósofo. A ideia da ética
tem seu ápice na ideia de política. Na voz de nossos participantes, “política é algo
ruim”. Tudo o que é político é antiético. Ora, se a política pressupõe um espírito
comunitário, então, hoje, seria difícil fazer política com ética. Nesse momento, uma
questão se faz pertinente: o que é ético então? Sem resposta. A conclusão a que se
chega em face desse pensamento é que construir dá trabalho, pois a ética não está
pronta e a política também não. É preciso ensinar a ética, viver a ética. Se nosso
pensamento naturaliza que as coisas já estão prontas, então, de fato, vamos “rasgar
a pele” para desnaturalizar essa ideia. Finalizando o debate desse autor:
Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo ou temperante; mas não é temperante o homem que as pratica, e sim o que as pratica tal como o fazem os justos e temperantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera o homem justo, e pela prática de atos temperantes, o homem temperante; sem essa prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom. ( ARISTÓTELES, 1973, p. 260).
Nestas passagens, percebemos a estreita relação entre as questões
discutidas e a vida particular de cada um dos envolvidos. Ficou difícil debater
conceitos sem considerar a vivência própria dentro ou fora da escola. Ideia que fugiu
às nossas hipóteses: o estudo dos clássicos parece ser altamente terapêutico, uma
sessão de terapia para uma revisão de nossos comportamentos e até mesmo para
observar nossas reações em relação a colegas de trabalho que não partilham da
mesma opinião. Pode-se então concluir que a ética é uma virtude e a virtude pode
ser intelectual, advinda por meio do ensino, ou moral, por meio dos hábitos, não
sendo natural.
Para o filósofo contemporâneo Pondé (2012, p.133-135), falar da natureza
humana não é simples, mas perigoso na medida em que ele a põe como construção
do social e do histórico. Basta ver nas livrarias a grande quantidade de livros de
autoajuda que se apresentam como uma tentativa de elevar a autoestima das
pessoas. Esse tipo de literatura traz em seu bojo que “ a natureza humana é boa em
si”, naturalizando, assim, a forma de pensar “politicamente correta”. No entanto,
segundo o autor, essa forma de pensar foi forjada no nascente período medieval, na
maneira teológica de que, se somos assim, é herança de nossos pais. Pode-se
contra-argumentar que essa natureza humana, pensamento formatado em nós,
impede-nos de “ pensar em nós mesmos de modo adulto”, naturalizando um modo
de ser que foi construído nas relações sociais e passou despercebido, sem
questionamento. Como exemplo, Pondé (2012, p. 138) afirma: “ a própria ideia de
dizer, como na educação, que todos os alunos são iguais e têm competências é fruto
de nossa mentira. Não, alguns poucos carregam a aula e o mundo nas costas”.
Como se pode deduzir, para viver bem e construir pensamentos que ultrapassem o
senso comum, há de ser ter uma prática de estranheza diante do nosso próprio
modo de pensar.
Foi ponto comum nos debates que, em se tratando do comportamento
humano, vivemos hoje em um mundo tomado pelo oportunismo, pela ideia de se
levar vantagem em tudo, de se por a culpa sempre no outro, achar normal pensar
em si e não mais no coletivo. Fala-se tanto em ter “consciência” para a
transformação, mas o que se entende por consciência? Não basta discursar, é
preciso interferir e o que nos leva à melhor argumentação prática e teórica é o
conhecimento.
Quanto à questão da interdisciplinaridade, de sua trajetória histórica e das
possibilidades de usá-la na sala de aula, foi estudada a obra Integração e
interdisciplinaridade no ensino brasileiro, de Fazenda (1992). Antes da leitura de
parte da obra, questionamos os participantes a respeito de como eles entendiam a
interdisciplinaridade no contexto escolar. Metodologicamente, entendemos que é
preciso ter domínio dos conceitos estabelecidos até agora, para depois agregar
novos conhecimentos.
A ideia que os professores tinham de interdisciplinaridade era equivocada;
eles a relacionavam a conceitos “da moda como forma de solucionar os problemas”.
À medida que a leitura avançou, foi ficando mais claro que a interdisciplinaridade
não é posta em prática, mas caracteriza-se apenas como uma integração das
disciplinas para explicar determinado tema. Segundo Fazenda:
Não basta “importar” um novo conceito da moda e introduzi-lo como solução dos problemas presentes. É necessário questioná-lo quanto ao seu significado, e verificar quais os benefícios que dele poder-se-ia obter, face às possibilidades de seu emprego, tendo-se em vista a formação do homem-pessoa.” (FAZENDA, 1992, p. 98).
Dessa forma, ficaram estabelecidos os conceitos propostos pela autora e
partilhados com o grupo: a interdisciplinaridade é uma postura de trabalho, uma
atitude a ser tomada perante o conhecimento; substitui a forma fragmentada das
disciplinas expostas no currículo; a pesquisa faz parte desse encaminhamento; é
fundamental estabelecer a unidade perdida com o saber; não se trata somente de
articular as possibilidades do conhecimento no seu universo complexo, mas de
questionar o mundo e a nossa presença no mesmo. Segundo a autora, disso
decorre que a integração, a multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade são formas
de manutenção do conhecimento e que correspondem à preocupação de apenas
justapor conteúdos, ao passo que a interdisciplinaridade se preocupa com a
mudança social, uma vez que utiliza a pesquisa como instrumento pedagógico.
Nesta altura, com as ideias estabelecidas, voltamos à questão anteriormente
sugerida: conhecimento produz ou não liberdade? Lançamos então outra questão
que se aproxima das que Aristóteles expõe em Ética a Nicômaco: se a
interdisciplinaridade é uma postura de trabalho responsável para que os alunos
aprendam, o que permeia a ação do ensinar? Ética e compromisso responsável
devem estar presentes na prática das pessoas. Encontramos, portanto, na leitura do
filósofo Aristóteles respaldo para os princípios éticos.
Perguntamo-nos ainda: temos nós mesmos estabelecido ações éticas em
nosso modo de agir no dia a dia? Buscamos as falhas no “outro”, mas percebemos
as nossas? De nossa parte, pensamos que é preciso explorar o assunto, promover
debates, aprofundarmo-nos no conhecimento e sempre nos questionarmos,
estranhando este mundo, como afirma Hannah Arendt.
2.2.Sêneca: do particular para o bem público
O segundo clássico oferecido para leitura e debates foi Da tranquilidade da
Alma de Lúcio Anneo Sêneca (ca. 4a .C-ca.65d.C.). Alguns relatos de professores
são interessantes: no espaço de dias destinados à leitura, estavam atribulados, sem
tempo, mas, quando tinham alguns minutos, liam uma página. Eles se espantaram
por perceber quão boas eram as ideias do autor. Alguns deles relataram que
levavam o livro consigo para todo lugar, aproveitando cada minuto que tivessem de
sobra, qualquer que fosse o lugar, para continuar a leitura.
A expectativa era de que, diante desses relatos, outros que ali estavam
ouvindo as experiências de leitura do autor, com certeza, como primeira coisa a
fazer ao sair dali, realizassem a “tarefa” atrasada, ou seja, ler Sêneca.
O que nos faz sentir e pensar quando nos deparamos com essa situação?
Por que alguns autores causam tamanha paixão, vontade e admiração em umas
pessoas e em outra não? Qual mensagem implícita faz aflorar a sensibilidade em
nós humanos?
Com efeito, a questão maior que perpassa o texto é a que está explícita no
título, ou seja, como ter a tranquilidade na alma. É essa questão que vai sendo
argumentada por Sêneca na tentativa de ajudar o amigo Sereno, que passava por
um momento de “intranquilidade da sua alma”. Perguntamos: daquele tempo para
cá, na contemporaneidade, mudaram-se os tecidos, mas o traje é o mesmo? Ao
expor suas ideias a respeito da tão esperada tranquilidade da alma, nosso filósofo é
pontual em apontar o caminho: a formação humana.
A formação humana está diretamente ligada à construção social, o que
implica atos coletivos e individuais, ações políticas deliberadas em favor do bem
comum. O que parece nos alertar Sêneca é: como nos tornamos úteis para os
demais indivíduos. O homem toma gosto por si se for útil para outros. Acrescenta
ele:
Quem quer que tenha o firme propósito de se tornar útil aos cidadãos e, em geral, a todos os mortais, ao mesmo tempo quem trabalha e produz, deve administrar, de acordo com suas condições, tanto as coisas comuns quanto as particulares. (SÊNECA, 2012, p. 47).Assim, pois, se prescindirmos de toda comunicação, renunciarmos ao gênero humano e vivermos voltados unicamente para nós mesmos, resultará uma solidão vazia de ação. E, sem nada para fazer, começaremos a construir alguns edifícios, a derrubar outros, a remover o mar, a conduzir águas contra dificuldades dos terrenos, a gastar mal o tempo que a natureza nos concedeu para consumir proveitosamente. Alguns o utilizam com parcimônia, outros prodigamente. Uns gastam fazendo cálculos escrupulosos. Outros nada poupam, coisa muito estúpida. Frequentemente, alguém muito velho não tem outro argumento para provar que viveu muito a não ser a sua idade. (SÊNECA, 2012, p. 49).
Reconhecer que algumas fragilidades da educação hoje podem estar em nós
mesmos, professores, aponta para um estado de mudança. Sêneca (4 a.C, 65 d.C.)
menciona o ato de nos tornarmos úteis para com os outros. Pensemos que somos
seres capazes de mudanças e que isso tranquiliza nossa alma. Toda situação pode
estar sujeita à mudança; negá-la pode acarretar vícios humanos dolorosos para a
alma. O professor é a ponte de mudança para o aluno, ele é que divulga o
conhecimento. Nossa sociedade vive em constantes mudanças e a educação faz
parte delas. Em todos os momentos podemos buscar caminhos para uma melhor
compreensão e para a aquisição de conhecimento; isso pode implicar mudança. A
adoção da dimensão interdisciplinar como princípio metodológico também pode ser
um ato de mudança. Como já afirmava Sêneca:
Por isso, nós, com grande ânimo, não nos enclausuramos nas muralhas de uma única cidade, mas temos comunicação com a Terra inteira e proclamamos que a nossa pátria é o mundo, para dar à virtude um mais longo campo de ação. (SÊNECA, 2012, p. 50).
Segundo Pondé (2012), a educação está à mercê da reprodução do atual
comportamento social ideológico, especialmente do perfil globalizado da sociedade
contemporânea. Ficamos vulneráveis diante de cada teoria que surge e não damos
conta de verificar a fundo se procedem ou não. Na forma como o currículo está
organizado nas escolas, a fragmentação das disciplinas tem sua utilidade como
forma de organização didática, mas o conhecimento do todo precisa inter-relacioná-
las na prática cotidiana e não apenas no final de cada período ou conteúdo.
Desfragmentar, dispor as disciplinas de forma que o aluno entenda o todo a partir
de conhecimentos específicos, pesquisar, é desvelar, politicamente falando, o ser e
todo o seu legado histórico presente e futuro.
Pensamos que, no processo pedagógico, a interdisciplinaridade pode alertar
para essa forma de entender a totalidade e, juntamente com a consciente
responsabilidade dos educadores, pode tornar os educandos sensíveis para o
processo de conhecer e se perceber como ser social. Por meio dela, é possível
fazer o outro entender que o conhecimento faz diferença no processo de
humanização, levá-lo a superar o processo da reprodução passiva, a se apropriar do
saber, a criar ideias, a perceber sua natureza humana e a evoluir. Nas palavras de
Pondé (2012, p. 216):“sobre as ideias, que, ao nosso entender, são processos de
inteligencia, ideias não são sempre coisas boas. As vezes doem”.
Para Sêneca (2012), a alma precisa sempre ter uma conduta firme e igual, o
mal conduz ao descontentamento para consigo mesmo, ao desequilíbrio. O mal vem
de nós mesmos: “ Certas úlceras provocam a mão que as irritará”. É preciso investir
na virtude, fazendo seu uso para o bem público, sendo útil para si e para os outros,
tendo obrigações sociais.
Ora, não seria a interdisciplinaridade uma forma de se voltar para o público,
para estabelecer relações de entendimento social? Quando fragmentamos as
disciplinas e não as inter-relacionamos, corremos o grave risco de naturalizarmos
coisas menores, o que nos impede de interferir nas ações políticas.
Assim, vemos a obra de Sêneca como um suporte para compreensão de que
nosso comportamento, nossa natureza humana, em relação ao outro está ligado ao
processo de convivência. No processo de aprendizagem e ensino, os conteúdos
programados nos currículos que norteiam os planos de trabalhos na educação terão
sua significação, sua utilidade, pela ação do professor, que, a priori, já se apropriou
desse conhecimento e, por isso, torna-o acessível ao aluno, articulando-o à sua
totalidade.
2.3.Tomás de Aquino: o ensino como processo de humanização
Desde o século XIII, Tomás de Aquino já afirmava que o homem pode ser
ensinado3. Este foi um dos assuntos que nortearam os debates construídos por
Aquino nas obras Sobre o ensino(De magistro)(2004) e A Prudência (2005) . Por
meio desses debates, o autor explica detalhadamente como se deve ensinar e
aprender, mostrando do quanto o intelecto do homem é capaz.
Com efeito, mesmo depois de alguns séculos, por que existe tanta dificuldade
para entender que o conhecimento é o bem maior? Talvez por que ainda não
tenhamos aprendido a pensar, e pensar é propositalmente ensinado.
Comecemos, então, por expor as ideias debatidas no grupo. Aquino (1225-
1274) também viveu em um momento de crise: questionava e direcionava o modo
de pensar da sociedade. Afirmava que o homem prudente sempre avalia seu modo
de agir e que essa avaliação é feita por descoberta ou aprendida por meio do outro.
Ora, aprender com o outro é apostar na postura daquele que ensina e, acredita-se,
que se responsabiliza por si e pelo outro. No entanto, sendo uma forma de agir da
pessoa, a prudência passa também a ter em vista o bem do coletivo.
Como vemos a interdisciplinaridade nessa forma de aprender? Com base em
Aquino, vemos a interdisciplinaridade como processo pedagógico que pode resultar
na obtenção de conhecimentos universais e particulares:
As virtudes intelectuais são originadas e se desenvolvem pelo ensino e requerem portanto experiência e tempo. Ora, a prudência sendo virtude intelectual não é inata em nós, mas procede do ensino e da experiência.Como fica evidente pelo que vimos acima(a.3), a prudência inclui o conhecimento de universais e de particulares para o âmbito da ação, ao qual o homem prudente aplica os princípios universais. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 24-25).
Com a consciente responsabilidade dos educadores, deve-se sensibilizar os
educandos para o processo de conhecer, fazendo-os entender que o conhecimento
pode fazer a diferença em suas vidas. O processo de humanização, de
amadurecimento das ideias e de intervenção na sociedade passa pelo
conhecimento.
Em outra obra, De Magistro, (2004), Tomás Aquino, com seu ideário,
revoluciona a forma de ensinar e aprender em sua época. Nos dias atuais, vivemos
na educação características que apontam para mudanças semelhantes. Pela
3 Na Idade Média, até o século XIII, a ideia que se mantinha é de que o conhecimento era dom divino. Com Tomás de Aquino, apareceu a ideia de que o conhecimento pode ser ensinado pelo homem.
relevância de seu conteúdo, essa obra é leitura obrigatória para educadores cientes
de suas responsabilidades e competências, pois o ser humano é dotado de corpo e
intelecto e, portanto, pensa e aprende no convívio social.
Muitos questionamentos vêm à tona quando se fala de convívio social, no
qual o ser humano aprende e é ensinado, que é a questão da mídia. Nossas
crianças e jovens estão sendo vítimas das propagandas e programas que tornam
ainda mais difícil nossa missão como educadores. Estamos lidando com os
conhecimentos para a emancipação de nossos alunos em face das manipulações da
mídia? Em que medida sensibilizamos nossos alunos para o conhecimento?
Analisando as ideias de Tomás de Aquino, podemos perceber que o ensino,
de longa data, vem sendo pensado para a emancipação do ser humano. Com muita
coragem, esse autor expôs um estudo revolucionário para sua época, afirmando que
o homem deve ser entendido em sua totalidade: espírito e matéria integrados e, por
essa razão, deve ser ensinado. Em suas ideias, ele buscou respaldo no filósofo
Aristóteles, que, até então, era rejeitado pela doutrina dominante.
Terezinha Oliveira (2010), em seu artigo A Importância da Leitura de Escritos
Tomasianos Para a Formação Docente, discorre sobre a importância das leituras
dos clássicos pelos educadores, especialmente considerando as inúmeras
inquietações na atualidade educacional. De sua perspectiva, as propostas de
mudanças naturalizadas e com base no senso comum não contribuem para a
formação docente. Nas palavras de Oliveira:
Essa é uma das questões que consideramos das mais relevantes em Tomás de Aquino que poderia ser retomada na atualidade, ou seja, o tema da formação da pessoa. Para nós, que não vivenciamos o tempo e os debates travados à época do mestre, sabidamente temos consciência de que o ser humano é indivisível, que corpo e intelecto compõem o todo da pessoa. Mas, ainda assim, precisamos formar as pessoas, especialmente as crianças, para que convivam socialmente. É necessário que, desde a tenra infância, sejam cultivadas nelas os princípios da ética e da moral, fundamentos da vida comum, ou dito de outro modo, da vida em sociedade, em sua grande maioria, vivendo na ambiência citadina. Em última instância, entendemos haver uma urgência de formar o conhecimento intelectual na criança e, neste sentido, o propósito que animou o Aquinate pode ser atualizado. (OLIVEIRA, 2010).
Dessa perspectiva, os clássicos, dentre os quais Tomás de Aquino, perdem a
sua característica de antigos e passam a contribuir teoricamente para pensarmos
em soluções para a educação atual. Se, por um lado, necessitamos entender o
princípio da formação humana, por outro, precisamos estabelecer meios para
ensinar esse homem, sabendo que o saber não é nato. Com base nos autores
citados neste texto e considerando que a condição de conhecimento é universal e
particular ao mesmo tempo, postulamos que a interdisciplinaridade é o elo para esse
saber.
3.Considerações finais
Por meio desta proposta, da receptividade que tivemos durante o processo de
aplicação, percebemos que os autores estudados possibilitaram a compreensão da
educação no mundo, o que de fato é educação. A leitura dos clássicos ofereceu-nos
o entendimento de que, na formação humana materializada em nosso cotidiano, as
ideias são construídas dentro do fazer prático e que, de fato, teoria e prática não se
separam.
O compromisso com o próximo leva-nos à existência de uma ética, construída
ou não, nas relações sociais. Leva-nos a perceber o mundo em sua totalidade; de
forma que os conteúdos, que, a priori, apareciam isoladamente, possam valer
significativamente por meio daquele que ensina sensibilizando aquele que aprende.
Assim, a interdisciplinaridade não se apresenta como mera metodologia
modista e sim como articuladora de pesquisa, de vivência na totalidade que o
conhecimento promove.
Somos o que aprendemos e, portanto, podemos aprender. Este é o
compromisso político, humano dos educadores, pois a formação humana cabe tanto
naquele que ensina quanto naquele que está aprendendo. Não é fácil praticar
educação. Educar, estudar, é ver quem se pode sensibilizar e ajudar na aquisição do
conhecimento. Cabe ressaltar que, se conhecemos, temos que alertar o outro.
Sejamos éticos, firmes conosco e com o público, com a alma tranquila,
aprendendo e ensinando: assim é a educação.
Rererências
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Tomás de Aquino: tradução e estudos introdutórios: Luiz Jean Lauand – 2ª - São
Paulo : Martins Fontes, 2004 - ( clássicos).