os cristãos-novos em portugal no seculo xx

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OS CRISTÃOS-NOVOS EM PORTUGAL NO SÉCULO XX

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O presente estudo de Samuel Schwarz representa um dos pilares da colecção Judaica.

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Page 1: Os cristãos-novos em Portugal no seculo XX

OS CRISTÃOS-NOVOS EM PORTUGAL NO SÉCULO XX

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1.a edição: Separata da revista “Arqueologia e História”, da Asso-ciação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1925.

2.a edição: Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, Uni-versidade Nova, Lisboa, 1993.

Título: Os cristãos-novos em Portugal no século XX

© Herdeiros de Samuel Schwarz

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010

ISBN 978-972-795-309-7

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Samuel Schwarz

Os cristãos-novos em Portugalno século XX

Prefácio de

Ricardo Jorge

Cotovia

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À memória do meu saudoso sogro

Samuel Barbasch

Que Deus Haja

Deus vos salve lá passadoFostes vivo como nósNós seremos como vós,Lá nesse céu onde estaisPedi ao Senhor por nósQue neste vale de lágrimasPediremos ao Senhor por vós.

(Oração dos cristãos-novos aos mortos)

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Ce que vous me dites de vos recherches surles cryptojuifs du Portugal est extrêmementintéressant. Je ne doute pas que vous commu-niquerez au monde leurs résultats dans unavenir pas trop éloigné.

(De uma carta do Dr. Max Nordau ao autor)

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IN PERPETUAM MEMORIAM…

É à memória de todos os judeus mártires da InquisiçãoPortuguesa que dedicamos, piedosamente, este humilde tra-balho.

Quantos foram?Quase a totalidade do judaísmo português, que, depois

da conversão geral forçada de 1497 e das leis que proibirama sua saída, ficou no país sob a alçada do terrível Tribunal.

A toda essa multidão anónima de vítimas, a todos essesSoldados Desconhecidos, que, durante séculos, sofreram oconstante martírio da intolerância religiosa, o nosso bradode admiração.

A todos os santos mártires que, no momento do suplí-cio final, preferiram ser queimados vivos a renegar a sua féjudaica, como Fr. Diogo da Assunção, Isaac de Castro Tar-tas, Miguel Henriques da Fonseca, António Bicho, ManuelSandoval e tantos outros, a nossa devota veneração.

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Aos grandes vultos, vítimas nobres da Inquisição, comoAntónio Homem, António José da Silva, Tomé Vaz, Andréde Avelar, etc., o veemente protesto da nossa indignação.

O sacrifício destas dezenas de milhares de mártires nãofoi inútil, porquanto já desapareceu o sinistro Tribunal esubsiste ainda, triunfante, o Ideal Judaico, entre os descen-dentes das suas vítimas.

Evocando a visão alegórica de Moisés, junto do MonteHoreb, da “Sarça Ardente que o fogo não pode consumir”,aparecem-nos, hoje, os Cristãos-Novos portugueses, dignosherdeiros da Fé Judaica dos seus antepassados, como res-suscitados das fogueiras da Inquisição…

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PRO ISRAEL

Prefácio do Dr. Ricardo Jorge (1925)

Vão os tempos de feição para o hebraísmo. Nunca oLeão de Judá alçou tanto as falcadas garras e sacudiu comtanta altivez a juba: nunca a raça dispersa, oprimida e perse-guida do judeu errante avançou assim à boca da cena domundo no poderio da acção social e na preocupação espiri-tual da humanidade.

Ruiu há tantos séculos o templo de Herodes o Grande,mas a Tora emblemática, em vez de esmaecer, resplandece, ea sarça ardente do monte Horeb, em vez de se consumir,recresce em línguas de fogo que bradam e alumiam o nomesempre sagrado de Moisés. A exegese dos livros santos e aevolução do povo eleito absorvem cada vez mais a atençãodos homens cultos e a pena dos eruditos. A vida palpitantedo velho e do novo gueto, — ou no bairro sequestrado eamaldiçoado dos burgos medievais —, ou no refúgio daspraças flamengas e das escalas levantinas, onde foi varar a

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vaga da nação desterrada do seu paraíso ocidental, — ou noformigueiro das póvoas judaicas da Polónia, da Moscóvia eda Hungria, — ou enfim no enxame migrátil dos peregrinossionistas revertidos à terra bíblica de Canaã, — essa vida étema fecundo de actualidade, como relanço histórico, comoestudo sociológico, como entrecho de romance e cenário dedrama. Uma literatura omnímoda, a atestar a perpetuidadee a revivescência de Israel, a contrastar o poder espiritualdas gerações de Abraão e Jacob, — placenta ubérrima deprofetas e pro homens, criadores do ideal do varão justo,amante do próximo e temente a Deus, clarividentes dosarcanos e das vicissitudes da alma humana, ora rojada derastos no muladar de Job, ora sublimada à visão augusta doreino dos céus. Da sua ambiência se desentranha encarnadoo símbolo supremo da fé, esperança e caridade, o nazarenoJesus: o seu brado de piedade e redenção prostra um mundoe gera outro. À voz do Evangelho refaz-se a Europa, e toda asua civilização, ao depois irradiada pela terra, tem porprimo movente o cristianismo, concebido no seio de Israel,apostolizado pelas suas gentes, bafejado de nascença pelabrisa que varre os outeiros de Jerusalém e os vales da Judeia,onde se precipita caudalosa a torrente baptismal do Jordãoe serpeia manso o veio do Cedron, a murmurarem perenes oeco da voz do Filho do Homem e dos seus discípulos.

Judá domina pela estesia religiosa que de si expandiu, edomina até pelo dom da mentalidade, como se o judeumedisse o estalão mais avançado da capacidade cerebral.Intervém com preponderância económica na circulação dasriquezas, como intervém com ascendente intelectivo na cir-culação das ideias — exemplar subido ao mesmo tempo dohomo economicus e do homo sapiens. Leroy-Beaulieu dá porfacto assente que os seis ou sete milhões de judeus da Europa

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produziram relativamente mais homens de talento que ostrezentos milhões de cristãos; e que há três ou quatro vezesmaiores probabilidades de encontrar uma personalidade dis-tinta, um sábio ou um artista, entre mil judeus do Ocidente,do que entre mil ingleses, franceses ou alemães.

Ensinou outrora letras, ciência, medicina e filosofia aoeuropeu bárbaro, e quantos luminares procedentes da greinão balizam como faróis a estrada do progresso. Espinosa,luso-hebreu, orienta primacialmente a especulação metafí-sica e filosófica: Einstein consubstancia genialmente numasíntese assombrosa a conceituação dinâmica do universo.Em plano subjacente, as congeminações psico-analíticas deFreud, embora arriscadas e discutidas, trazem agora à rodaas testas pensantes.

Se das culminâncias da ciência pura descemos à arenaem que as paixões e os interesses dos homens se entrecho-cam, surge-nos o oráculo da nova religião sociopolítica, ojudeu Karl Marx, caudilho doutrinário da guerra sem quar-tel do proletariado, que encontra na cabeça e no braço deLenine a realização dos seus credos, inspiradores do estadosoviético que ameaçam subverter até aos alicerces as insti-tuições tradicionais da sociedade.

Se tais obras e tais homens atestam apenas a possançacerebral da raça, outras e outros certificam que o próprioespírito bíblico renasce com a tenacidade inflexa e o vigorintemerato da fé atávica. Ele aí está presente e activo a con-vocar em massa a chusma israelita para a terra da promissão,como na idade mosaica: o sionismo, pregado como as cruza-das dos cristãos, arrasta os judeus espalhados por toda aterra, os judeus da Diáspora, à gleba erma da Palestina, paradesbravá-la, lavrá-la e colonizá-la; armam-se as tendas, pas-toreiam-se as manadas, e atulham-se os celeiros, como no

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século doirado dos patriarcas. Uma cidade de mais de30 mil habitantes brotou em pouco mais de seis anos dosareais de Jaffa, a Colina da Primavera, Telavive, onde não hápolícia armada nem cadeia. Páginas deliciosas as que, entreoutras, os exotistas irmãos Tharaud e a jerusalemita MyriamHarry dedicam a estes Amantes de Sião, — páginas ondemais se espelha o rosto em suor dos cavadores, dos Haluzimextenuados, que o idílio de Jacob em casa de Labão e o deRuth, a Moabita, nos trigais de Booz. Entra de ganhar sen-tido real a saudação e o voto ritual na colação doméstica dapáscoa hebraica: — Leshana haba be iurashalaim — Para oano que vem, em Jerusalém.

Samuel Usque, o elegista alanceado e místico da Conso-laçam ás Tribulaçoens de Israel — livro tinto de todo onegrume dos infernos que supliciaram seus irmãos, mascolorido de todo o esplendor das esperanças messiânicas,livro que na literatura luso-hebraica só tem por parelho nopatético e no expressivo os gritos da alma ansiada do míseroUriel da Costa no Exemplar humanae vitae, — mal pensavaele, apesar da sua sinceridade e do seu fervor, quanto acerta-riam, quatro séculos depois, as palavras postas na boca doAltíssimo:

“Que, ajuntando-vos dos povos e apanhando-vos das terras ondeestais esparzidos, e dando-vos a terra de Israel por vossa morada, umcoração novo e um espirito novo porei em vossas entranhas, e tirareide vossas carnes o coração de pedra e em seu logar coração de carneporei nelas… Ó Ierusalaim, gira teus olhos ao redor e vê que todosestes que véem, a ti se véem a ajuntar, teus filhos de longe virão…”

A 130 mil monta já o refluxo na Judeia, parcelados emcolónias, agregados por instituições florescentes: é um factoenfim a Erez-lsrael, a terra de Israel, pátria e nação. Assisti àcena das lamentações proferidas às sextas-feiras em ladainha

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cortada de soluços perante o Muro do Pranto, resto dassubstruções ciclópicas do templo destruído de Jerusalém: ecomoveu-me fundo este espectáculo da súplica rojada, atra-vés dos séculos, aos pés do Deus da defunta Sião, súplicacompungida de perdão para os pecados de Israel, causado-res de todo o mal padecido, súplica ardente da mercê da res-tituição da cidade santa. Chegaria enfim a prece lacrimosa,expressão a mais viva do arraigado da crença e da espe-rança, às orelhas de Adonai? Secarão as bagas do prantomilenário, vertidas sem cessar, e estarão prestes a correroutras lágrimas, essas de gozo, pelas faces dos que há tantosséculos beijam em vão aquelas pedras, relíquia bruta e mudade tamanha glória?! Então se entoará um novo canto coralao Altíssimo, mais retumbante que o do Êxodo — CantateDomino canticum novum quia mirabilia fecit.

Neste ressurgimento, até a língua santa quase de todomorta recobra fala. O judeu enxotado da península, refu-gido pelo Mediterrâneo oriental à sombra da tolerânciamuçulmana, guarda ainda nas relações de família e de conví-vio a linguagem da procedência, o espanhol e até o portu-guês; maravilhou-me esta remanência do idioma ancestralentre aqueles com quem o viajante entra em conversa, dro-gomanos e mercadores dos bazares. Nas regiões eslavasengendrou-se uma algaravia, o ydish, manta de farrapos detrama hebraico, urdido de toda a casta de retalhos das lín-guas circundantes. O hebraico das orações e dos sagradostextos esse, morrera, conhecido pouco mais que dos doutose dos rabinos sábios, reduzido a língua clássica e litúrgica;pois ressurge da tumba como Lázaro, à voz de um tauma-turgo: eis o maior milagre do Israel hodierno. Um homemsó, vindo da Rússia, Eleazer Ben Jehuda, assenta lar emJerusalém, e profeta de nova espécie restaura o verbo

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mosaico, abre escola de hebreu, organizando o ensino dasua gramática e do seu dicionário. Ouvi a Renan nas liçõesdo Colégio de França que precisaria de seis anos para fazerum curso de gramática hebraica, o que lhe tirava a coragemde professá-la. Este vidente soube fazer mais e melhor doque o sábio, e através de que espantosas perseguições atiça-das pela ignorância odienta dos batibarbas das velhas sina-gogas. Quando há anos morreu, roído de desgostos e detubérculos, estava consumada a grande obra. Tinha cortadoa trave às línguas da cidade santa, capaz agora de ler e perce-ber Isaías. A linguagem de Salomão tornara-se de uso cor-rente como na época da destruição do templo e da expulsãoda Judeia; a ponto tal que à quina da Porta de Jaffa vi comsurpresa o cartaz de um cinema, todo em hebraico, anun-ciando as fitas de Charlot.

A revivescência lingual e o ingresso dos sionistas tiveramo seu coroamento este ano na inauguração estrondosa da Uni-versidade de Jerusalém, sob a égide potente da Inglaterra,que, libertada a terra santa do jugo turco, entendeu deverfavorecer por todos os modos a recriação do home hebraico ea re-espiritualização da Palestina. Será o centro intelectual dohebraísmo, esse solene monumento erecto no Monte Scopusa cavaleiro do vale do Jordão e do vale de Josaphat.

Sem falar na literatura inglesa, tanto europeia comoamericana — onde livros, periódicos e revistas, consagradosa assuntos israelitas mantêm aceso o candeeiro da Menorá,onde rebrilha um dos mais célebres escritores da Inglaterra ojudeu Israel Zangwill, o romancista subtil e sentimental dosDreamers of the Ghetto — basta atentar como sinal banal dapolarização hebraizante, no estendal dos volumes franceses àporta das lojas do bulevar ou nas tendas das gares. Topam-sea granel os livros caroados da judiofilia; por entre traduções

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de contos e de poesias originárias de autores judeus — por-que no hebreu moderno conta-se já entre outros, um poetagrandíssimo, Bialik, herdeiro remontado da lira das Escritu-ras — surdem a flux os romances, desde L’ Ombre de la Croixdos irmãos Tharaud, poema tétrico da alma angustiada efanática dos sopharim polacos, até ao Puits de Jacob, lavradiletante do noveleiro à la moda, Pierre Benoit. Tanto emvoga está Judá, mesmo nas letras correntes de recriação. Nãofalo, é claro, da contribuição literária comum dos autores decostela hebraica: bastará dizer que são judeus os que forne-cem hoje o maior e o melhor da cena francesa.

Na escassa literatura portuguesa acusa-se este movi-mento — e mal feito se assim não fora. A frase tantas vezeseditada de que cada país tem os judeus que merece, não seajusta, ousamos já dizê-lo, a Portugal que teve judeus de quenão era digno nem merecedor — porque o homem de nação,o marrano, era o que de melhor havia entre a nossa gente, e aesse escol inteligente, activo e culto espezinhámos-lhe a cons-ciência na mais revoltante das violências, atirámo-lo execran-damente ao degredo, ao cárcere e à fogueira — barbárie tãovil e malvada, que nos seus requintes de atrocidade provocoua repulsa generosa de fr. Amadeu Arraez, e mais que tudoestupidez política de que proclamou as consequências funes-tas o corajoso patriotismo do P.e António Vieira.

Na judiaria peninsular luziram a sabedoria e o génio —os seus rabinos, personalidades de cabeça enciclopédica,primam de par nas letras sagradas e profanas, na poesia, namedicina e na filosofia. Deixaram nomes dos mais brilhan-tes na história da ciência universal. Os seus astrónomos ematemáticos guiaram as empresas náuticas e geográficas —a grande glória dos nossos descobrimentos encabeça-se pri-mariamente no seu génio. A medicina era por assim dizer

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toda sua: açambarcam a quase totalidade dos nossos gran-des médicos do passado. Finos e instruídos, aristocratizam--se como tribo selecta entre os Bené-Israel: o ilustre lsaacPinto, ao quebrar lanças certeiras contra os remoques deVoltaire, apregoa a distinção inata dos de raiz espanhola eportuguesa entre os judeus de toda a parte. A origem penin-sular acusa-se na própria disciplina eclesiástica, obedecendoas suas sinagogas a um rito particular; o dos sephardim, o danação portuguesa, oposto ao dos askenazim, os judeus deprocedência alemã, polaca e eslava. Envaidece-os a descen-dência da tribo de Judá e do seu estabelecimento na Ibériaem tempo do cativeiro de Babilónia.

A esnoga de Amesterdão, foco sagrado do êxodo luso--hebreu, como que foi um pedaço da pátria portuguesa trans-portado às chãs dos Países-Baixos. Ali ilustraram o nomenacional continuando até a escrita da língua materna: e comoos bardos que desferiam nas harpas as glórias e as lástimas deSião “sobolos rios de Babilónia”, eles carpiam à borda doscanais da Holanda o seu triste desterro, possuídos da sau-dade da terra d’além, exaltando as proezas de Portugal,orgulhosos de serem seus filhos, embora enjeitados pela maisfera e desalmada das madrastas. Tomou-me uma emoçãoindizível ao passar os penetrais da sinagoga portuguesa deAmesterdão, que celebrou agora o seu 250.º aniversário, aomirar as efígies dos seus velhos rabinos e maiorais, e ao ler overnáculo castiço das antigas actas do Mahamad. Em tantapreclaridade a ofuscar os meus olhos enternecidos de lusi-tano, uma mancha apenas: — o processo de Uriel da Costa,o livre pensador do Porto, condenado a rojar-se no chão àporta da sinagoga, para que o seu corpo de réprobo fossecalcado aos pés, existe lá e não se mostra, sequestrado eescondido à história, hoje sua legítima dona, como docu-

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mento imprescindível para a biografia espiritual do desgra-çado precursor de Espinosa.

As achegas, dizíamos, trazidas na nossa terra à judio-grafia, avultam cada vez mais. Tais as obras gerais de Men-des dos Remédios, de Lúcio de Azevedo, os relanços deAntónio Baião sobre os processos do Santo Ofício, as mono-grafias de Maximiano de Lemos sobre os nossos arquiatrasjudeus, a dois dos quais, Amato e Ribeiro Sanches, tambémdedicámos trabalhos e comentos. Joaquim Bensaude pene-tra nos arcanos científicos dos descobrimentos, metendo emfoco a interferência original dos astrónomos matemáticos deraça israelita. Joaquim de Carvalho levanta a figura literário--filosófica de Leão Hebreu, e D. Carolina Michaëlis pro-jecta-nos com sentimental relevo a imagem alucinada deUriel da Costa. O próprio romance hebraico, tanto up-to--date, teve entre nós como precursoras as novelas camilianasd’O Judeu e d’O Olho de Vidro.

O livro presente vem-se enquadrar neste movimentojudiográfico com particular destaque e em lugar de eleição.Aceitei a sua apresentação ao público com gosto íntimo, porencerrar uma página preciosa que traz à luz um dos maisdesconhecidos e íntimos recessos da alma religiosa e popu-lar da nossa terra. Ao sacar da pena para rabiscar prefaçãotão grata, reconheci que impulsão inconsiderada me traíra:dar-me-ão por presumido de mim e presumido de judeu.Àquela presunção oporei como atenuante a simpatia quenutro pelo assunto e pelo autor; à segunda, que mais queuma vez me perguntei a mim mesmo se a minha judiofiliaviria de afinidades sanguíneas, abonáveis até por certa pare-cença de cara. Aconteceu com frequência tomarem-me porGuerra Junqueiro, que era o retrato escrito e escarrado dofamoso Rabino de Rembrandt no museu londrino. Quando

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agora na Holanda tive de encontrar-me na estação deUtrecht com um professor da sua universidade sem nosconhecermos um ao outro, o colega amigo da Haia, aliás desangue israelita, que me recomendara por carta, dava nelaentre outros sinais de reconhecimento que eu tinha l’aird’un rabbin. Tenho razões para crer que esta semelhançacom o tipo hebraico — aliás frequente et pour cause em Por-tugal, onde no costado mais aristocrático raro falha costelamendinha de judeu ou de frade — é mais aparente que real,analisados os traços fisionómicos. Esmiucei até onde pude— e para plebeus os pergaminhos não vão longe — a ascen-dência tripeira e beiroa sem se me deparar geração de mar-rano: declaro sinceramente que, ao contrário de tantos quenão confessam ou escondem envergonhadamente o paren-tesco da gente a que uma fantasia anatómica popular dotoucom o cóccix alongado, sentiria orgulho em pertencer a umacasta à qual, mesmo que ela não fosse como é a primeira domundo, me bastaria ser português para respeitar-lhe as pri-mazias e me julgar honrado de tal sangue. Acoimar alguémde judeu, como estigma depreciativo, sobretudo em Portu-gal, é simplesmente uma idiotia.

O Sr. Samuel Schwarz é um engenheiro de minas queveio há dez anos exercer a sua actividade no nosso país: temcom a sua inteligência empreendedora e o seu trabalho per-severante concorrido para a exploração das riquezas donosso solo. Israelita polaco, é um hebraizante acérrimo, tri-lhando as pisadas do mestre hebraísta que é seu pai: comotal, deu também em minerar o passado dos coirmãos najudiaria portuguesa, berço o mais nobre e remontado da suaraça. Há dois anos publicava uma memória de investigaçõesmetódicas sobre As inscrições hebraicas em Portugal. Desco-berta a sinagoga de Tomar — a única de pé entre tantas —

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adquiriu-a à sua custa para assegurar à veneranda relíquia aconservação e a restauração, acalentando a ideia beneméritade criar um museu no seu recinto.

Agora traz à colação de todos quantos prezem as tradi-ções nacionais e judias, precedida de um interessante tran-sunto das notabilidades luso-hebraicas, esta lição admiráveldo viver espiritual e religioso do cristão-novo. À virga-férreaviolentaram o judeu ao mimetismo católico — por fora oevangelho de Cristo, por dentro a lei de Moisés. Deste cons-trangimento resultara, como dizia outrora o bispo de Porta-legre, que — “Porque querem mostrar no exterior seremcristãos, sendo judeus no interior, nem ficam judeus nemcristãos”. Católicos sem fé e judeus sem saber, são as mesmaspalavras de Carl Gebhardt ao perfilar psicomoralmente acabeça revoltada de Uriel da Costa. Essa insciência judaicaacabaria por delir de todo os ritos e costumes nos ninhostrasmontanos e beirões onde o criptojudeu se alapardavapara fugir às perseguições e prosseguir secretamente naobservância religiosa dos antepassados? Quando andei aremexer no Ribeiro Sanches, judeu de Penamacor, e na suaparentela, um médico meu amigo que praticara na região,me assinalava a persistência de algumas cerimónias e usan-ças entre os chamados calmões (Cartas de Rib. Sanches,1908), o que deveras me surpreendeu como traço apagadode uma religião extinta à força de cadeia e queima. Agora oSr. Schwarz, aproveitando as peregrinações do seu mister,consegue descortinar essa vida velha e catar uma antologiainteira de orações em prosa e em verso, assim como a cele-bração das festas e dos jejuns do repertório israelita, vigentesainda nas aldeias da Beira Baixa. Como era arreigada a fé deIaveh naqueles peitos para que nem o temor do in-pace e da

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lenha acesa, nem o suceder de tempos tão diferentes, atenham arrancado inteiramente do peito do Israel português.

Estas flores, escondidas como violetas abafadas pelomatagal, foi preciso rebuscá-las com paixão; descobriu-as osentido delicado do nosso hebraísta, ávido de aurir-lhes operfume. Um verdadeiro descobrimento como o de veiosignorados de minério rico. Porque o recato forçado e osegredo das crenças tinham-se implantado com tal impériono ânimo timorato do cristão-novo, que, desaparecida anefanda inquisição há muito mais de um século, acabada aintolerância católica e proclamada a liberdade de cultos, nemmesmo assim o marrano beirão queria dar a saber aos curio-sos como rezava no seu lar e quanto guardava o seu culto, talcomo se houvera ainda perigo e escrúpulo em professá-lonestes milésimos despojados já do ano da graça. Só as instân-cias do investigador e o exemplo das suas próprias orações,em que o nome pio de Adonai ressoa a miúdo, obtiveramque a contumácia se rendesse. E a colheita foi de beleza ebênção. Rasgou-se enfim o segredo do folklore judio-portu-guês — dir-se-ia um fóssil do velho Portugal ressurgido emcarne e espírito. Que mimo este, que será festejado por certono grémio dos lusitanizantes e dos hebraizantes.

Os prejuízos irredutíveis do cristão-velho, afistulado derancores sectários contra os homens de nação, geraram osmais disparatados conceitos e os mais aviltantes ápodos.“Livra-te do moiro e do judeu” é o princípio da curiosa lenga-lenga de um refrão lá do Norte a pôr de sobreaviso os pruden-tes a respeito de certos habitantes da nossa terra. Estes, pelaraça repulsa, vinham na cabeceira do rol — seguia-se-lhe o“homem de Viseu, o braguês pior que todos três, o do Portocom o seu contrato pior que todos quatro, o de Santo Tirsopior que tudo isso”. Neste ponto todavia a sabedoria popular

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não foi injusta de todo na apotegma, porque, se alanhava ojudeu como má rês, julgava ainda piores os cristãos de certasterras, tanto no trato, como no carácter. O chamado deicídiomaculara-os dos pecados mais mofentos, a pesarem comomaldição sobre os descendentes dos que gritaram — Crucifigeeum — dos que tinham vendido, crucificado e enterradoCristo, o deus vivo. Outro aranzel picaresco é posto na bocade um cristão que caloteava um judeu, em demanda de justadívida, com este engraçado despejo: “À segunda não te pago,à terça é dia aziago, à quarta vendeste-lo, à quinta crucificaste--lo, à sexta enterraste-lo, o sábado guarda-lo tu, o domingoguardo-o eu, vem outro dia judeu.”

Das suas feições características inferiam que “deus queo marcou, algum erro lhe achou”, e forjaram-lhe estigmasantropológicos e fisiológicos de toda a extravagância. A atri-buição da cauda é daqui e de lá de fora, talvez por analogiacom o porco sujo: sobre a implantação do rabo ouvi dizerfacécias. Um libelo de maligna imbecilidade fanática — Sen-tinela contra Judeus — traz este trecho: “Ha muitos sinala-dos pela mão de Deus, depois que crucificaram a Sua DivinaMajestade: uns teem uns rabinhos que lhe saem do corpo doremate do espinhaço; outros lançam e derramam sangue desuas partes vergonhosas cada mez como se foram mulheres,outros em se deitando ou encostando a dormir lhe entram esaem imensidade de bichos a morder a lingua…” Emmemória da paixão, ferve-lhes o sangue à sexta-feira, diz-selá no Norte: a sua maldade passou a proverbial, judeu ejudiaria metaforizaram-se na linguagem como sinónimos deperversidade e crueldade.

Imputaram-lhes toda a casta de delitos e atentados,tornando-os useiros e vezeiros dos mais monstruosos. Entreessas autorias odientas não faltou a de atribuir aos médicos

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judeus, modelos de probidade e dedicação humanitária,mortes e envenenamentos no exercício da profissão quemais os nobilitou, abrindo-lhes a porta dos paços reais e dacúria romana. Dessas inculpações, uma circulou entre nósaté à actualidade — a dos abafadores, que nas famílias doscristãos-novos se incumbiriam de acelerar a morte por sufo-cação, abreviando a agonia. Uma espécie de eutanásia, deque ouvi e li afirmações comprovantes; o Sr. Schwarz desfazcompletamente mais esta falsidade — a última de tantas des-fechadas sobre os desditosos judeus.

A esta página lendária tão tristemente tenebrosa con-trapõem-se as deste livro — as que aí vão para regalo do lei-tor. Que unção e que compunção! Bem-haja quem no-lasprocurou. A alma hebreia eleva os cânticos e as preces aobom senhor Adonai — bendito seja ele — na linguagem chãe castiça, singela e sentida do nosso povo. Um encantopegado de ternura e afectividade mística, parelha à queimpregna as orações populares cristãs. Algumas vezes pen-sei estar a ouvir as precezinhas infantis que minha mãe meensinava em pequenino a rezar, de joelhos e de mãos ergui-das, ao deitar e levantar da cama.

Há-as que datam seguramente do século XVI, e entreelas aquela poética Oração da Água, recitada pela Páscoa,em métrica de romance, ainda com laivos de castelhano:

A quatorze da luaDo primeiro mez do anno,Parte o povo do Egypto,Israel meu irmano.As cantigas que vão cantandoAo Senhor vão louvando.— Aonde nos trazes Moisés,Aqui neste despovoado,Onde não ha pão nem lenha,Nem nunca pastou o gado?

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Louvemos ao alto SenhorQue é o Senhor do nosso cabo…

Aqui está um belo espécime a juntar ao nosso velhoromanceiro.

Similares, dissemos, às que as bocas cristãs endereçamao pai do Céu, tal e tanto que lá nas alturas — perdoe-se aheresia, se a há — os ouvidos do Eterno não saberão separá--las, e muito menos apartar os corações singelos e contritosque as proferem. Voltaire tem razão quando se espanta deque a religião cristã e a muçulmana reconheçam a judaicapor mãe delas, e por singular contradição professem poressa mãe mais horror que respeito. Mais que uma vez, semsaber do passo de Voltaire, quando divagava pelo orientetrilhando o berço comum da trilogia hierática de Moisés,Cristo e Mafoma, cismei na absurdeza da sanha recíprocados prosélitos das três grandes religiões, assinalada porespantosas carnificinas a ferro e fogo em que o rancor reli-gionário se cevava em peitos de fera para eterna vergonha dahumanidade e descrédito até dos próprios sistemas de cren-ças, nascidos e propagados com o único fim de implantar nocoração humano o instinto da divina perfeição, arrancando--o à bestialidade nativa. Ó cruzadas, autos-de-fé e pogroms!

Como compreender a fobia da igreja contra a sinagoga,se em ambos se adora o mesmo deus único e os livros doVelho Testamento são por igual sagrados? Tão pouco é per-cebível que o israelita cubra de opróbrio o adorador deCristo e da sua cruz. Na aldeia polaca do romance dos Tha-raud, ao passarem pelo crucifixo das encruzilhadas, o sopherfanático e o petiz catequizado arremessam aos braços docruzeiro o anátema da maldição — “Maldito sejas tu quefizeste outra religião!” Se a tradição hebraica, assim como a

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sua literatura, a temporânea e a ulterior, ignoraram propo-sitadamente Jesus ou hostilizaram a sua memória, enegre-cendo-a e caluniando-a — se os próprios cristãos, calcandocruíssimos a lição do divino mestre e fazendo o crucifixo ocarrasco desalmado que pegava fogo ao queimadeiro eatravés das chamas era a última visão dos olhos envidraça-dos dos justiçados, atiçavam na alma dos perseguidos aabominação da cruz — hoje que tempos e costumes desas-sombraram a luz do entendimento, varrendo a treva daspaixões mesquinhas, outra corrente de sentimentos entroude animar o meio religioso e sábio do judaísmo. Dir-se-iaque regressa o Rabi da Galileia à casa de Israel circundadode palmas e hossanas, como na entrada triunfal de Jerusa-lém pela páscoa florida. Começam de abrir-se entre os rabi-nistas braços e corações à meiga criança que brincou nasquebradas viçosas de Nazaré, ao pescador de homens domar de Tiberíades, ao que elevou aos pés do justo juiz aprece do Padre-Nosso, ao que pregou o consolo das bem--aventuranças no Sermão da Montanha, ao Filho de David,judeu retinto que na vida e na morte manteve o credohebreu no peito e nos lábios — alma nada e educada nainspiração do livro santo, mas dotada de uma tal originali-dade de génio, a desentranhar-se em tanto amor, recon-forto e bondade, tão empolgante no ardor e na poesia daideia e da expressão, que sobrepuja não só todos os profe-tas e heróis de Israel, mas as eminências todas da história— a Jesus enfim, o homem sem par, criador da mais purabeleza espiritual e da mais sublime força moral derramadano mundo.

Reivindicam-no já como glória máxima da sua nação, enada conheço, na evolução hodierna das ideias cardeais, decomparável a este movimento de aproximação judio-cristã,

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que no meu próximo livro sobre a Terra Santa tentarei ras-trear de espaço. Sinal dos tempos, quem sabe se penhor demelhores, esta convergência de vistas a incidirem no sobre--homem do Novo Testamento: a cristologia a enlaçar, quemo dissera, o padre jesuíta e o pastor luterano ao rabino tal-mudista e ao crítico incrente, todos acordes na maravilhaideal do Mestre do Evangelho: olhado, bem entendido,enquanto homem, na natureza terreal que os próprios teólo-gos ortodoxos separam da divina: essa está fora de discussãoe concerto, como acto de crença e ponto de fé.

E os nossos criptojudeus, esses coitados que há quatroséculos rezam reconditamente ao bom senhor Adonai? Nãoseria caso para os seus irmãos em Moisés os trazerem aoredil da comunidade de que a força e o terror os aparta-ram? Amante do lusitanismo arcaico, não se me dava de veroperar essa restauração de cultos e ritos, como no tempoem que a velha e a nova lei, a Tora e o Evangelho, viveramem paz na sociedade portuguesa com brilho e proveito.Nem S. Paulo, o apóstolo dos gentios, nem a igreja triun-fante, nem a inquisição homicida, conseguiram exterminaro judaísmo: nem mesmo, como se vê, neste recanto. A suafé é indomável e a sua esperança indefectível — forçahumana sem quebranto, religião imorredoira que viveu,vive e viverá como a cristã. As duas, como mãe e filha, por-que, em vez de se excluírem, não hão-de conviver congra-çadas?! Ambas expressões apenas diferenciadas da religio-sidade congenial do coração humano, dissociadas e melhorainda consociadas, alvejam a mesma finalidade providen-cial nos destinos dos indivíduos e das sociedades. “Quemsabe — profetiza o notável rabinista Rev. Herford — quemsabe se por fim as duas grandes religiões, depois de cadauma ter cumprido aquilo para que Deus criou duas e não

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uma só, se não ajuntarão um dia inspiradamente a bem doseu serviço e da vida dos seus filhos?” Para quando essesincretismo a pôr ponto nas paixões seculares? Felizes osque sabem ver e crer sub specie aeternitatis.

Campo de S.ta Ana28-8-25

Ricardo Jorge

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