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Os Cristãos Africanos em Relação com o Espírito na Tradição: D. Kalilombe, M.Afr. 45 OS CRISTÃOS AFRICANOS EM RELAÇÃO COM O ESPÍRITO NA TRADIÇÃO Revd. Dom Patrick Kalilombe M.Afr. INTRODUÇÃO: Este trabalho trata de um problema pastoral especial. Como ajudar os nossos cristãos africanos a resolver a tensão que experimentam ao relacionar as crenças e práticas no referente aos espíritos no contexto da vida tradicional da qual são membros. A tensão vem do facto que se espera que os convertidos à fé cristã tenham abandonado as crenças e as práticas tradicionais. Porém, ao participar na vida diária das suas comunidades, não têm meios de evitar, ou tomar a sério essas crenças, na mesma medida que seus irmãos e irmãs que não se converteram. Os conceitos e a compreensão no que diz respeito ao espírito do universo que eles devem ter parece estar em contradição com a compreensão do mesmo espírito na Religião Tradicional. E assim, quando tomam parte nas práticas e rituais das suas comunidades, fazem-no com “má consciência”: é como se, de volta na sua vida diária, estivessem a trair o que professaram na Igreja. Esta tensão foi mencionada vezes sem conta no decorrer das Semanas Teológicas, especialmente na de 1997 e de 1999, cujos tópicos eram, respectivamente: Os Antepassados e a sua Veneração e Os Espíritos. 1 Portanto parece normal que nesta Semana Teológica façamos o esforça de sugerir caminhos de 1 Cf. Os Antepassados e sua Veneração, Actas da Segunda Semana Teológica da Beira: 3-8 de Fevereiro de 1997, Arquidiocese da Beira, Moçambique, ver em particular, Fr. José A. Alves de Sousa, “Os Antepassados: As Etapas Históricas do Problema e suas Implicações”, pp. 11 40. And Os Espíritos, Actas da 4ª Semana Teológica, 1999, ver Introdução pelo Pe. Odilo Cougil, pp. 5 13.

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Os Cristãos Africanos em Relação como Espírito na Tradição: D. Kalilombe, M.Afr. 45

OS CRISTÃOS AFRICANOSEM RELAÇÃO COM O ESPÍRITO NA TRADIÇÃO

Revd. Dom Patrick Kalilombe M.Afr.

INTRODUÇÃO:

Este trabalho trata de um problema pastoral especial.Como ajudar os nossos cristãos africanos a resolver a tensão queexperimentam ao relacionar as crenças e práticas no referenteaos espíritos no contexto da vida tradicional da qual sãomembros. A tensão vem do facto que se espera que osconvertidos à fé cristã tenham abandonado as crenças e aspráticas tradicionais. Porém, ao participar na vida diária das suascomunidades, não têm meios de evitar, ou tomar a sério essascrenças, na mesma medida que seus irmãos e irmãs que não seconverteram. Os conceitos e a compreensão no que diz respeitoao espírito do universo que eles devem ter parece estar emcontradição com a compreensão do mesmo espírito na ReligiãoTradicional. E assim, quando tomam parte nas práticas e rituaisdas suas comunidades, fazem-no com “má consciência”: é comose, de volta na sua vida diária, estivessem a trair o queprofessaram na Igreja.

Esta tensão foi mencionada vezes sem conta no decorrerdas Semanas Teológicas, especialmente na de 1997 e de 1999,cujos tópicos eram, respectivamente: Os Antepassados e a suaVeneração e Os Espíritos.1 Portanto parece normal que nestaSemana Teológica façamos o esforça de sugerir caminhos de

1 Cf. Os Antepassados e sua Veneração, Actas da Segunda SemanaTeológica da Beira: 3-8 de Fevereiro de 1997, Arquidiocese da Beira,Moçambique, ver em particular, Fr. José A. Alves de Sousa, “OsAntepassados: As Etapas Históricas do Problema e suas Implicações”,pp. 11 – 40. And Os Espíritos, Actas da 4ª Semana Teológica, 1999, verIntrodução pelo Pe. Odilo Cougil, pp. 5 – 13.

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enfrentar esta tensão que é um verdadeiro tormento para muitosCristãos.

A Fonte e Origem desta TensãoQuando olhamos para a maneira como esta questão dos

Espíritos dos Antepassados foi tratada desde os primeirosmomentos da Evangelização em África, não é de surpreender quese criasse esta tensão. O Pe. Sousa fez uma exposição deexemplos de questões e respostas em vários catecismos quetrataram desta questão na Religião e na Cultura Tradicional,especialmente no que diz respeito aos Espíritos dosAntepassados e a sua veneração.2 A nota dominante parece serque a Religião Tradicional é posta em contraposição com o 1ºMandamento do Decálogo. A conclusão comum é que esses ritose práticas da Religião Tradicional vão contra esse mandamento. Arazão é que se trata de “superstições” e portanto de coisas dodiabo. São sinais de idolatria. Portanto, no momento daconversão, o Cristão deve renunciar a eles e parar de tomar partenessas observâncias.

Uma tal condenação total mostra que, para os autoresdesses catecismos, o juízo sobre esse assunto era bastantesimples e directo. Portanto as directrizes de simplesmenterenunciar às práticas tradicionais, eram vistas como não sendoum grande problema para os fiéis. Somente tinham que dar-seconta desses maus costumes e parar de segui-los, e para o restocontinuar com a vida normal. Mas isso era ignorar a maneiracomo a cultura humana está estruturada e como realmentefunciona. A maneira de viver dum povo não é um conjuntodesorganizado de costumes e crenças pontuais, das quaisalguém pode facilmente seleccionar alguns elementos e suprimi-los, e conservar os outros.

Aqui aparecem dois pontos importantes. Primeiro, existe aconvicção que o que o Evangelizador traz para a gente é a féCristã, pura e simples, e portanto, tudo aquilo que na maneira de

2 “Os Antepassados…” Catecismos nos 1 –6 (pp. 12-15)

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viver do povo, é diferente dessa fé, automaticamente isso é pagãoe diabólico. Segundo, consequentemente, não há necessidade deestabelecer um diálogo entre esta fé Cristã e a Cultura e Religiãotradicional do Povo. “Cristianismo”, como a única religiãoverdadeira, pode julgar unilateralmente qualquer outra religiãonão cristã e decidir sobre a sua validade ou não.

A Fé Cristã está sempre exprimida em formas culturais.Os primeiros catecismos foram formulados num tempo

em que os Evangelizadores davam por certo, sem qualquerquestionamento, que a forma e a formulação da Religião Cristãque eles traziam pertencia à essência da Fé Cristã. Noutraspalavras tinham dificuldade em distinguir entre propriamente fé eas formas culturais em que se exprimia a fé. No nosso caso, a féCristã apresentada pelos Missionários nas últimas décadas doséculo XIX e as primeiras do século XX estava expressa emformas que, para a maior parte, eram formas da cultura actual daEuropa (e América). Através da longa história do Cristianismo noOeste, a fé foi actuando com as diferentes formas de cultura queiam evolucionando com o tempo. Mas em cada etapa seconsegue uma medida de “inculturação” da fé Cristã. Assim, hojeestamos conscientes que a fé Cristã (ou qualquer outra fé) nuncaexiste numa forma desencarnada e pura. Está sempre exprimidaatravés de formas concretas da cultura humana. É importante,portanto, distinguir, pelo menos mentalmente e nos conceitos,entre fé e cultura.

No tempo em que a Evangelização Cristã veio à África, anecessidade de fazer uma tal distinção não era comum. Asciências sociais que pretendiam estudar a estrutura e asdinâmicas da sociedade humana estavam ainda a nascer; aindanão tinham começado a influenciar seriamente a compreensão daReligião no contexto da cultura. Por outro lado a distinçãopercebida como importante naquele tempo era aquele entrepovos que eram “civilizados” e os que não eram “civilizados” (nassuas maneiras). Outra distinção era entre aqueles que eram“avançados” e os que, pensava-se, eram “atrasados/primitivos”(na ciência e tecnologia), e entre os “esclarecidos” e a“superstição” (nas crenças e nos costumes). De facto, os

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Ocidentais consideraram-se a si próprios como civilizados,avançados e esclarecidos, enquanto que os outros povos domundo, e os africanos em particular, eram vistos como ocontrário.

Na área da Religião, a distinção entre Nações Cristãs e“povos pagãos”, os Ocidentais, sendo herdeiros do Cristianismo,naturalmente se identificaram, como grupo, com o Cristianismo,mesmo quando alguns indivíduos entre eles não eram cristãospraticantes (como muitos no tempo colonial). No mesmo tempo, atendência era de pensar a cultura como a “civilizada, avançada eesclarecida” e Cristã. O resto era “incultura”. Por isso osEvangelizadores Cristãos, que eram Ocidentais, naturalmente seviam a si próprios como cultos, enquanto que os Africanos aosquais pregavam o Evangelho, obviamente, eram sem cultura. Nãosurpreende, portanto, que os primeiros catecismos julgassemcomo pagão, superstição e diabólico tudo o que era diferente damaneira de viver ocidental.

Cultura e ReligiãoNos Catecismos posteriores, especialmente os escritos

depois do Concílio Vaticano II, notamos uma mudança de atitudesignificativa3; a avaliação não é tão simplística como antes. Agorafala-se da existência de valores positivos nas religiões nãoCristãs, da importância de um estudo cuidadoso das outrasculturas, da necessidade de um diálogo entre as religiões e dodever de “adaptação” ou “inculturação”. É um sinal de que agorahá uma compreensão do que é a cultura, e como se relacionacom a Religião em geral e com a fé Cristã em particular. Cultura épercebida, agora, como algo que se aplica a todas e a cada umadas sociedades humanas, e a religião é um aspecto importante namaior parte das culturas, mesmo se as duas noções têm de serdiferenciadas entre si. O Cristianismo, é, na verdade, um tipo deReligião, mas de uma maneira mais precisa, é um tipo de fé cujacaracterística fundamental é de não se limitar a nenhuma cultura,mas que se pode relacionar e tomar forma em qualquer e em todaa cultura humana.

3 cf. Catecismos nos 7-12 (pp. 15-20) em Pe. Sousa, Os Antepassados.

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Mas, então, o que é cultura? Cultura foi definida e descritade maneiras diferentes. Eis aqui o que diz Charles H. Kraft:

Cultura é um mecanismo complexo e integrado dasociedade que consiste em conceitos aprendidos, ecomportamentos, além das perspectivas subjacentes(visão do mundo) e do material que daí resulta (materialcultural)4

Toda a Sociedade ou grupo humano de pessoas quevivem juntas para se entre - ajudar a sobreviver e a conseguir osseus objectivos comuns, tende a desenvolver uma maneira deviver estruturada. É como se, com o passar do tempo, tivessemchegado a uma maneira comum de entender a realidade etivessem elaborado certos modelos e costumes decomportamentos que acham que podem ajudá-los a lidar comsucesso na vida. Esse modelo está em dois níveis: aquele quepode ser observar de como fazer as coisas, e um mais profundode conceitos e valores guias. É importante, por isso, de ir maisalém do que as pessoas fazem e de como o fazem, paraconseguir encontrar as ideias e os valores que os motivam e osguiam. No nosso caso da veneração dos espíritos dosAntepassados, não seria suficiente observar as práticas e osrituais. É necessário perguntar-se que ideias estão detrás deles, ecomo tudo isso se relaciona com o sucesso do programa da gentepar uma vida autêntica.

O nível profundo da cultura é aquele a que fizemosreferência aqui como “visão do mundo”. Quer dizer, como a genteentende o conjunto de realidades do mundo: Que estrutura erelações vêem em tudo o que existe, que significado dão aouniverso. Cada cultura está baseada numa visão do mundoespecífica. Por exemplo, a cultura dos nossos povos, na qual osespíritos têm um lugar tão destacado, baseia-se na aceitaçãofundamental de que o mundo das realidades consiste em poderese forças. O Pe. Placide Tempels, no seu controverso mas

4 C.H. Kraft, Anthropology for Christian Witness, Maryknoll, N.Y.:Orbis Books, 1996, p. 38

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preceptivo livro Filosofia Banto, descreve o papel fundamental doconceito de “força vital”5. Alguns destes poderes são visíveis (édizer, observáveis pelos nossos sentidos). Ma a maior parte sãoinvisíveis ou além do sentido ordinário da percepção; este é ocaso dos espíritos. Os poderes podem ou por em perigo a via, oufortalecê-la de várias maneiras. Tudo depende como a gente serelaciona com eles. Mas para ter sucesso na vida é necessária amaneira correcta de se relacionar especialmente com as forçasinvisíveis.

Qual é a relação entre cultura e religião? De maneirageral, a religião é um aspecto da cultura. Religião é o conjunto derelações complexas entre as realidades supra-humanas ousobrenaturais e a sociedade que acredita nelas. Essa relaçãoforma parte da visão do mundo da gente em questão: faz a suacultura religiosa. Podemos muito bem pensar em culturas que nãoestão orientadas para a religião; as pessoas dessas culturas nãotêm a convicção de que forças sobrenaturais afectam as suasvidas de uma maneira significativa. Algumas das culturasmodernas, por exemplo de orientação científica ou tecnológica,tendem a ser seculares ou não-religiosas . Mas, em geral, asculturas Africanas são decididamente religiosas. Baseiam-se nacrença de forças sobrenaturais que afectam e determinam a vidahumana. Um estudo aprofundado de muitas culturas africanasdemonstra que, em muitas delas, essas forças sobrenaturais sãovistas como estruturadas hierarquicamente, com um DeusSupremo no topo, e categorias de espíritos debaixo dele,incluindo os espíritos dos Antepassados.

O que importa é lembrar que a religião, onde existe, éuma componente decisiva da cultura. Tende a dar uma orientaçãoe forma às outras dimensões da vida da gente, precisamenteporque os poderes sobrenaturais controlam e governam todo aexistência, segundo se pensa. Noutras palavras, Religião é,geralmente, um factor integrante no governar de toda aexistência. Não se pode mudar ou modificar a religião, sem

5 Placide Tempels, La Philosophie Bantoue, Paris: Presence Africaine,1949, especialmente o Cap. II: A Ontoliogia dos Bantu

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modificar ao mesmo tempo a configuração cultural; de maneirainversa, quando há uma mudança cultural significativa (nãosimplesmente superficial), geralmente há uma mudançacorrespondente na religião.

É fácil para os evangelizadores cristãos que pretendemsuprimir a veneração dos espíritos dos antepassados. Ma a tarefanão é tão simples como isso. O culto dos Espíritos é um pivô nareligião tradicional e na cultura, porque é uma parte essencial davisão do mundo. Não pode, portanto, ser mudado facilmente, anão ser que a visão do mundo mude. Tudo parece indicar que,mesmo com a chegada da modernidade, a visão do mundo danossa gente não tem mudado de maneira substancial. A tensãoressentida pela nossa gente mesmo depois de se ter convertidosinceramente ao Cristianismo, é que eles tentam ser fiéis àreligião apresentada como baseada numa visão do mundototalmente diferente a aquela que eles, no fundo, não tinhamabandonado.

Que é o Cristianismo?Este problema coloca-se pelo facto de que, nos tempos

passado, o Cristianismo foi apresentado como baseado numavisão do mundo, segundo a qual a veneração dos espíritos dosantepassados não tinha lugar. Mas esta apresentação eracorrecta? Como já vimos, a visão actual, depois do Vat. II,simplesmente não vai concordar com aquela visão antiga. Ao falardo respeito pelo que é válido na religião tradicional, os catecismosrecentes incluem a lembrança dos mortos entre os elementos quenão devem ser excluídos, já que está na linha da ideia cristã da“comunhão dos santos”6. Portanto, claramente, no tema delembrar os mortos (venerar, não adorar), a visão tradicional nãoestá em oposição com a visão (pelo menos a católica) na qual sebaseia a fé cristã. Neste ponto crucial as duas são semelhantes.

O Cristianismo pode muito bem dialogar com a culturaque acredita nos espíritos, do mesmo que com outras culturasque não acreditam. Em si mesmo o Cristianismo não é uma

6 cf. Os Antepassados, pg. 18 (Catecismo n.10)

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cultura entre outras. É uma “Fé”: uma compreensão religiosaparticular e um conjunto de ideias e valores. A característicaespecial é a sua conformidade com a visão e as normasreveladas por Deus através da mensagem e da prática dapessoa histórica de Jesus Cristo, como entendida etransmitida pela Tradição daqueles que acreditaram nelecomo o Senhor e Salvador (isto é, a Igreja Católica). Esta féestá autenticamente exprimida nas Sagradas Escrituras: não só oNovo Testamento, mas também, o Antigo Testamento, comointerpretado à luz da experiência Cristã. Mas esta expressão nãose limita à letra da Escritura, mas depende do poder do Espírito,isto é, a Inspiração omnipresente e orientação do Espírito Santoque vem do Pai por meio do Filho (Jo. 14,26).

Isto pode parece obscuro e difícil de perceber. Mas é, issoespero, uma tentativa esperançosa de descrever o queentendemos por “fé” Cristã. Isto ajuda-nos a ver como oCristianismo está sobre toda e qualquer cultura, e ao mesmotempo é capaz de penetrar, “avaliar” e transformar todas asculturas. A noção de “fé” como relacionada com cultura e religiãoem geral, é muito importante. A religião é todo o sistema derelações com a esfera sobrenatural. Isto inclui várioscomponentes possíveis como os rituais, estruturas de liderança,materiais culturais, etc. Mas como a cultura em geral, estábaseada num sistema diferente de crenças, ideias e visões enormas éticas. É à isto que chamamos “fé”. Assim, mesmo areligião tradicional tem o seu próprio sistema de fé. A Fé, cristã ounão, nunca está baseada numa fórmula facilmente concretizada,mas está sempre exprimida em e através de culturas humanas.Portanto Fés diferentes podem encontrar-se a implicar-se dentrodas culturas em que se exprimem. No nosso caso aqui, a FéCristã veio exprimindo-se na cultura ocidental, e encontrou a féreligiosa como exprimida na cultura tradicional do nosso povo.

Diálogo entre o Cristianismo e a Religião Tradicional Africanae a Cultura

Nas primeiras fases da Evangelização em África, não secostumava fazer o análise anterior. A distinção entre a fé Cristã eas formas culturais ocidentais em que se apresentava, não eram

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claras: O todo era Cristianismo pura e simplesmente. Por outrolado, o valor da cultura tradicional e da religião era raramentereconhecido. As maneiras de viver da gente eram vistas comouma misteriosa mistura de costumes primitivos, enquanto quesuas práticas religiosas eram descartadas como superstições:converter a gente mudando o seu modo de viver e fazendo-arenunciar às práticas pagãs. Mas o novo modo de entender asrealidades leva consigo uma mudança radical da maneira como aevangelização deve ser concebida e realizada.

Uma autêntica evangelização agora leva consigo umacompreensão da cultura dos povos e especialmente da sua féreligiosa tradicional. O caminho é por tanto claro para a fé Cristãde confrontar a cultura por meio da crítica da fé religiosa dando-lhe forma. Isto é o que é chamado diálogo entre fé. Neste diálogo,dá-se atenção primeiramente à visão básica do mundo na cultura,e depois à fé religiosa e à prática que dela depende.

No que diz respeito à visão do mundo, as perguntas afazer são mais ou menos estas: Até que ponto, (ou em quesentido) a fé cristã está de acordo com a maneira como a gentepercebe e avalia estas realidades? Nessa medida a visão domundo será aceite e fortalecida como válida para exprimir oCristianismo entre esses povos. E ainda depois: em que pontos afé cristã não está de acordo com essa visão do mundo? Essespontos terão de ser mudados para que o Cristianismo sejaexprimido autenticamente pelo povo. Uma observação importantedeve ser feita aqui. Se esta crítica deve ser legal, deve-se fazeratenção à variedade de visões culturais do mundo com quem a fécristã entra em contacto nos seus séculos de história e deexperiência. Escolhido como critério, somente um ou outro dosencontros prévios (por exemplo, o contacto com as culturasocidentais modernas orientadas cientificamente), cria o risco deestreitar indevidamente a catolicidade da fé Cristã, isto é, opotencial para o Cristianismo de se exprimir em qualquer culturahumana válida.

O Diálogo também deve ter lugar com o sistema da fé dareligião tradicional (suas crenças), como também com as práticas

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morais ou éticas promovidas por essas culturas. As crenças quedizem respeito à natureza e às relações entre Deus, ahumanidade e o resto do universo está em linha com a fé Cristã?Ou existem pontos que contradizem essa fé ou ficam aquém dasua plenitude? Em que medida os costumes e as práticasculturais estão de acordo ou em desacordo com as normas da féCristã como reveladas por Cristo?. Também aqui a grandeexperiência e encontros cristãos devem ser tidos em conta. Sóaqueles elementos que de nenhuma maneira são compatíveiscom a fé cristã devem ser condenados e mudados. O resto deveser confirmado e aceite como caminho para se exprimir na culturado povo.

A presença salvadora e a actividade nas culturas não-cristãsO Diálogo entre Cristianismo e a Cultura Africana, como

está sendo descrita aqui, coloca uma questão que deve serrespondida. Dá por seguro que a fé religiosa tradicional e aprática do nosso povo pode, em princípio, ser aceite comopotencialmente válida. De facto isto subentende-se na afirmaçãocorrente de que as culturas não-cristãs podem muito bem conter oque os Santos Padres chamam de Semina Verbi. Noutraspalavras, deve existir uma continuidade real entre ela e a fé cristã.Isto é possível somente se se desenvolveram sob a influência domesmo Deus que era Jesus Cristo. Isto coloca a questão: Épossível aceitar que Deus estava presente e activo nas culturasnão-cristãs, e que Ele estava a usá-las com uma finalidadesalvífica?

No passado uma pergunta assim seria respondida nosentido negativo. As religiões não-cristãs eram consideradascomo pagãs, significando que elas eram, por definição, opostas àreligião do verdadeiro Deus. O Cristianismo podia ser plantadoefectivamente só depois de as outras terem sido abolidas. Mascomo dissemos acima, uma tal condenação global já não épossível depois do que nos ensinou o Concílio Vaticano II. Defacto, o Concílio trata esta questão na sua “Declaração sobre a

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relação entre a Igreja e as Religiões não – Cristã” (NostraAetate)7. Diz:

A Igreja Católica não rejeita nada do que é verdadeiro esanto nessas religiões. Tem uma grande estima pelamaneira de viver e a conduta, os preceitos e a doutrina,que frequentemente reflectem um raio daquela verdadeque ilumina todo homem. Mais, ela proclama e é a suaobrigação de proclamar sem enfraquecer a Cristo que é ocaminho, a verdade e a vida (Jo. 1, 6). Nele, em quemDeus reconciliou todas as coisas com Ele próprio (“Cor. 5,18-19), as pessoas encontram a plenitude da sua vidareligiosa.8

Tudo isto, deve ser claramente afirmado, aplica-se àReligião Tradicional Africana na mesma medida que se aplica aoutras religiões que frequentemente são chamadas de “Maiores”ou “Religiões Mundiais”. Nós em África temos que fazer estaafirmação por meio de uma reflexão teológica sobre asimplicações desta afirmação conciliar.9 O ponto de partida é que oEspírito Santo de Deus sempre esteve em diálogo com os povosdo mundo e trabalhando no meio deles: indivíduos e sociedades,cultura e tempos. A sua presença, a sua actividade é real, mesmose por vezes fica escondida e anónima. Em cada esforço humanopor fazer o bem, por evitar o mal, vencer a morte em todas assuas manifestações, Deus está misteriosamente presente eactivo… Ele está a falar-lhes, convidando-os a procurar a verdadee a encontrá-la, apesar das trevas do pecado e do erro queescurece o mundo…

7 cf. Por ecemplo em Austin Flannery, ed. Vatican Council II: TheConciliar and Post-Conciliar Documents, Vatican Collection, Vol INorthport NY: Costello Publishing Company, 1975, 1984, pp. 738-742.8 Ibid, # 2, (p.739).9 See, for example, my essays “Evangelization and the Holy Spirit” and“The Salvific Value of African Religions”, pp 72-84 and 106-122respectively, in P.A. Kalilombe, Doing Theology at the Grassroots:Theological Essays from Malawi, Kachere Book No 7, Gweru: MamboPress, 1999.

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A pregação do Evangelho (Cristão) representa um juízo de Deuscontra o pecado humano e a resistência… A Palavra de Deuspregada vem para desmascarar esse pecado, expo-lo e tratardele, porque na medida em que o pecado reine no mundo,.. oReino de Deus não pode florescer. Em todas as pessoas oEspírito de Deus esteve activo contra o mal. Tem estado activo,inspirando os indivíduos e os grupos fazendo-lhes ver as obras domaligno em suas vidas: essas atitudes, maneiras de pensar e deactuar, instituições e costumes que se opõe ao florescimento debem. A pesar do mal, nós podemos ver em todo lugar, naconsciência (individual ou colectiva) dos seres humanos, esforçosverdadeiros para a “conversão” ou para acabar com o mal. Essesesforços podem não ser tão evidentes ou com um sucessoestridente, mas eles existem: É o resultado da presença contínuae da actividade do Espírito.10

Diálogo entre Cristianismo e a Veneração dos Antepassados donosso povo

Podemos agora voltar para a discussão mais directa dosproblemas que os nossos cristãos africanos encontramdiariamente no que diz respeito aos espíritos, e procurar umaorientação pastoral efectiva.

A primeira coisa a dizer é: o problema coloca-se porque anossa gente não foi dita que a evangelização Cristã, no casodeles, devia ter seguido o modelo do Diálogo de Religiões. Ascrenças e os costumes tradicionais não são coisas que devemsimplesmente ser deitadas fora ou desprezadas, como se fossemdiabólicas e “primitivas”. Pelo contrário, visto que são o produtode longos e sérios diálogos entre as gerações passadas e oEspírito Santo de Deus, deve haver nelas elementos que sãoválidos e positivos (resultado do sucesso de Deus), mesmo seoutros elementos são negativos e cheios de pecado (resultado dofracasso humano e da resistência). À luz da Revelação total de

10 “Evangelization and the Holy Spirit”, passim (pp 76-77).

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Deus em Cristo, que agora está disponível através daevangelização Cristã, um diálogo respeitoso mas investigativodeve ser começado. Através dele os elementos positivos devemser descobertos e afirmado. Mas os negativos devem serdesmascarados, para que sejam devidamente corrigidos ecurados.

A Visão Africana do Mundo e a Visão do Mundo na Revelação eTradição Cristã.

Comecemos com uma investigação sobre a visão queestá na base das crenças e das práticas referentes aos espíritos.Como compará-las com a visão do mundo na qual a fé cristã sebaseia?

Tomemos o caso dos Achewa do Malawi, mas com aconvicção de que a maneira como a gente entende o mundo dasrealidades e a interacção entre elas, é muito semelhante ecomparável com a de outros muitos povos de África. Estudiososda gente Chewa concordam geralmente que o caminho melhorpara compreender a ideia que a gente tem do mundo é estudar osseus mitos de origem, especialmente nas suas formas de “Mitosda Criação de Kapirintiwa”11. Eis aqui um sumário desse mito:

Quando ainda não existia nenhuma coisa viva sobre aterra, Chiuta fez o homem e a mulher e mandou-os para baixo.Eles chegaram a uma rocha chamada Kaphirintiwa em

11 This myth of origins can be found in Matthew Schoffeleers Religionand the Dramatisation of Life: Spirit Beliefs and Rituals in Southern andCentral Malawi, Kachere Monograph No 5, Blantyre: CLAIM, 1997, PP10-11; in J.W.M. van Breugel, Chewa Traditional Religion, KachereMonograph No 13, Blantyre: CLAIM, 2001, pp 34-38; and especially inMartin Ott, African Theology in Images, Kachere Monograph No 12,Blantyre: CLAIM, 2000, pp 159-60 with the extensive theologicalanalysis especially in Chapter 8: “Creation in Myth and Faith inCreation: A Theology of Home” pp 285-327, where he compares thismyth with the OT stories of creation and the NT Christological doctrines.

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Dzalanyama. Aquela rocha ainda estava mole, e deixaram ali assuas pegadas na rocha quando pousaram. Essas pegadas aindapodem ser vistas hoje. O mesmo dia Chiuta mandou a chuva parafazer germinar as sementes, que já tinham sido colocadas ali paraprover comida para o homem.

Junto com o primeiro homem e a primeira mulher vierampares de todos os animais, assim como o próprio Chiuta que eraacompanhado pelas primeiras chuvas. Durante este primeiroperíodo, Chiuta, as pessoas e os animais viviam juntos e em paz.Esta condição, porém, mudou completamente quando o homeminventou o fogo, que queimou o capim e fez que os animaisfugissem cheios de raiva contra o homem. Chiuta foi salvo pelaaranha, que teceu um fio pelo qual ele subiu ao Céu. Assimmandado embora pela maldade do homem, Deus proclamou queo homem deve morrer e reunir-se com Ele nas nuvens, onde eleteve que fazer as nuvens para apagar o fogo que tinhainventado.12

Mesmo a partir deste resumo, pode-se perceber como osAchewa entendem o universo e explicam porque as coisas sãocomo são. Observamos que o mundo das realidades estáclassificado: Deus (Chiuta) que voltou para trás nas nuvens, osanimais e o “mato”, que estão agora separados do homem; e ohomem mesmo, que provocou a separação por causa de terinventado o fogo. Mas há uma quarta categoria que está supostana história: os espíritos: “o homem que morre e vai juntar-se comChiuta nas nuvens”. As três primeiras categorias originariamenteestavam em harmonia e vivam felizes juntos. Mas o homemtrouxe a morte, por meio da qual ele se tornou espirito. As quatrocategorias relacionam-se entre si; e a vida entre os humanos évista como condicionada por estas interacções.

12 From van Breugel, pp 34-35

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Duma reflexão sobre este mito emergem duasconvicções, que têm a ver com a relação dos Chewa com omundo dos espíritos13

1. Para a comunidade dos vivos, o sucesso na vida ou ofracasso vem determinado pela interacção entre os sereshumanos vivos e as outras três categorias do universo: Deus,o mato e os Espíritos.

Todas essas categorias são vistas como canais das forças e dospoderes que podem aumentar, mas também diminuir a vida entreeles. A comunidade humana consegue viver negociando comessas forças, lutando para conseguir delas tudo o que podeajudá-la a conseguir sucesso ou uma vida significativa. Ao mesmotempo, tentam usar essas forças para neutralizar o mal, adesgraça, a doença e a morte. A vida é, de fato, uma luta entre asforças da vida e as da morte.

Os rituais Chewa são sobretudo em volta do nascimento,da chegada a adulto, da doença e da morte, e como conseguir achuva, a fertilidade e a segurança na vida. Há um ritual especial,o da dança ritual e complexa do Nyau (interpretada como osespíritos dos mortos que vêm interagir com os vivos). Todos estesrituais e práticas exprimem, de diferentes maneiras, anecessidade e o aspirar a uma vida e segurança perante osperigos e a ameaça da morte. Existe, escondido neste conjuntode ritos e práticas, a convicção optimística de que as forças davida e do bem são mais poderosas do que as do mal e da morte,porque em última análise, o mesmo Deus é supremo e Ele é ocampeão do bem, da justiça, da harmonia e da plenitude de vida.

Como pode ser avaliada esta visão do mundo à luz da féCristã? Como demostra Martin Ott, existe uma grandesemelhança entre muitas crenças que aparecem nos mitos

13 A more extensive exposition of these points can be found in mydiscussion on “Spirituality in the African Perspective”, in DoingTheology at the Grassroots,, especially on pp 218-226.

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Chewa e as histórias do Génesis. E quando tomamos a tradiçãoCristã em geral, mesmo a crucial quarta categoria, a dos espíritosdos mortos, pode estar em consonância com as crenças Cristãs.A afirmação da chegada da tensão e alienação por causa doegoísmo do homem e do uso inconsiderado do fogo, é umareminiscência da história bíblica. Muitas dessas crenças estão,portanto, em linha com a mensagem cristã, e o nosso povo podemuito bem continuar a viver com elas sabendo que sãoautenticamente Africanos e Cristãos.

2. A comunidade humana está composta por ambos, os vivos eos mortos: a morte não põe fim ao relacionamento, massimplesmente o transforma.

A comunidade dos vivos deste lado da morte, é o centrode atenção na visão Chewa do mundo. Também o Pe. Sousaobservava isto quando falava do “antropocentrismo” na visãoafricana da vida14. A comunidade está estruturada nasolidariedade por causa do sangue do parentesco, pela afinidadematrimonial ou por pura vizinhança. O conceito aqui é que a vidaé uma e que todos os parentes participam dela através dostempos e lugares. Aqueles que vivem deste lado da sepulturaestão simplesmente continuando a vida recebida dos seusantepassados; e eles por sua vez terão que transmitir a vida àsfuturas gerações. A morte não corta esta linha de vida; na morte,a pessoa simplesmente passa da esfera dos vivos / vivos paraaquela dos vivos / mortos. A solidariedade continua, de maneiraque há e deve haver, uma contínua interacção entre aquelesdeste lado e aqueles do outro lado da morte. Assim como a gentese relaciona e age entre si para o bem e o mal enquanto estãovivos, assim, também, se relacionam entre si e agem do outrolado da barreira da morte. A vida dos vivos é afectada por essascontínuas relações.

Aqui também há muito em comum entre a visãotradicional e a da fé Cristã. Certamente a Tradição da Igreja

14 Cf “Os Antepassados”, pp 32-33.

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Católica Romana, com suas crenças (e prática) da Comunhãodos Santos, basicamente concorda com a crença Chewa e nãoaparece nenhuma coisa má na lembrança dos mortos como tal.Na conversão, o nosso povo não tem que abandonar a sua visãotradicional neste ponto.

A Crítica Cristã da Prática Tradicional da Relação com osEspíritos.

Em teoria, portanto, é possível descobrir muitasemelhança entre o Cristianismo e a Religião TradicionalAfricana. Mas a realidade aparece realmente na maneira como osCristãos praticam a religião. Aqui o critério de juízo é aquele dadopor Cristo respeito ao discernimento entre os verdadeiros e falsosprofetas:

“Guardai-vos dos falsos profetas que vêm a vósdisfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes.Pelos seus frutos os conhecereis. Por acaso colhem-seuvas dos espinheiros ou figos dos cardos? Do mesmomodo, toda a árvore boa dá bons frutos, mas a árvore mádá frutos ruins. Uma árvore boa não pode dar frutos ruins,nem uma árvore má dar bons frutos. Toda a árvore quenão produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Épelos frutos, portanto, que os reconhecereis”.

Se a prática religiosa realmente redunda em bem para opovo, tanto indivíduos como comunidade, devemos concluir queas raízes dessa prática são seguras e boas, ou, noutras palavras,que estão em linha com o projecto do Reino de Deus como éapresentado pela fé Cristã. Mas se os resultados são maus, comomedo, ciúmes, engano, ódio, vingança, assassínio e a lista emGal. 5, 19 – 20, que é caracterizada como sendo “Obras dacarne”, então devemos concluir que há algo mau nessas práticas.Devemos examinar toda a “árvore”, para ver se encontramos afonte desse mal.

Antropocentrismo: a fonte das obras da carne

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Quando os primeiros evangelizadores cristãos seencontraram com as práticas referentes ao relacionamento comos espíritos dos mortos, rapidamente concluíram que isso era“idolatria”. Aconteceu porque se deram conta de que os efeitosdesses rituais e práticas eram contrárias ao Reino de Deus, e queconsequentemente eram obra do maligno. Embora essacondenação absoluta fosse demasiado forte e impedisse umconhecimento mais aprofundado da Religião Tradicional, a suaconclusão era funcionalmente correcta. O aspecto escuro dareligião era mais visível do que o lado positivo.

A veneração dos mortos estava frequentemente envolvidanuma atmosfera de medo mais do que de alegria e de esperança.Isto porque os Espíritos eram invocados para se ocupar dosproblemas da vida, em que a gente estava a lutar contra os malestais como desgraças, doenças, mesmo mortes, que se acreditavavinham de dentro da sociedade mas com intenções anti-sociais.Desses medos, frequentemente se originaram suspeitas,insegurança, falsas acusações, desejos de vingança, destruiçãode famílias e comunidades, e daí para frente. Os própriosespíritos eram considerados como capazes de dar serviçospositivos, como sabedoria e iluminação em situações difíceis,oferecer avisos úteis e protecção efectiva contra malesameaçantes. Mas na prática eram invocados por causa deprojectos negativos e anti-sociais. De onde vem estanegatividade?

Na sua análise, o Pe. Sousa apresenta uma chave deinterpretação muito útil para a nossa compreensão. Isto é, toda areflexão sobre as forças da natureza, sobre Deus, os espíritos eoutras forças, está centrada na pessoa humana e na comunidade(dos vivos)15. A preocupação não era primariamente nemsobretudo com as forças: Deus, os espíritos ou outras forças epoderes. Era sobretudo com os interesses prementes daspróprias pessoas, que se sentiam ameaçadas pelos perigosesmagadores e pretendiam proteger-se a si próprias.

15 Os Antepassados, pp 32-33

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Em si mesma, esta preocupação com as necessidadesvitais não é má. Quando não está balançada com outraspreocupações mais sociais, pode tornar-se um tipo negativo de sipróprio, onde só os interesses imediatos da pessoa ou do grupotêm interesse. As preocupações e os interesses dos outrospassam a ser secundários e até insignificantes. Para assegurar ospróprios interesses, a pessoa ou o grupo não vai hesitar eminfringir os direitos e interesses das outras pessoas. É como se aúnica coisa que interessa fosse ele próprio. Está-se tão absorvidoem querer e procurar-se a si mesmo que se torna incapaz de“amar o seu próximo como a si mesmo” (Mc. 12, 31). Esta é averdadeira definição do “pecado”. Na nossa discussão, nospodemos dizer, portanto que a veneração dos espíritos podetornar-se portadora de pecado: se é usada para o egoísmo e ospróprios interesses.

A Religião contra a Magia

Podemos exprimir isto de outra maneira, usando adistinção que os antropólogos sociais fazem entre religião emagia. Então podemos dizer: o perigo na veneração tradicionaldos espíritos é que pode ser usada como uma realização mágica,em vez de ser um ritual religioso. Em ambos, religião e magia,trata-se de pessoa humana e/ou comunidade em relação comseres e poderes supra-humanos. Quando a religião é percebidaduma maneira geral, é possível considerar a magia simplesmentecomo um tipo especial de prática religiosa. Mas quando os doisconceitos são separados e diferenciados, existe uma diferençaimportante entre as atitudes que estão na base da magia e dareligião.

Enquanto que a “atitude religiosa” é submissa e reverentepara com o sobrenatural, a “atitude mágica” pede submissão aela. Na situação de espírito religioso, a pessoa reconhece asuperioridade dos poderes sobrenaturais de cuja acção dependeo bem-estar… A magia, por seu lado, pensa que controla o podersobrenatural em certas condições. Ela tem poder sobre o poder.Pensa poder confirmar-se na sua crença de que se possui um

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fórmula contrastada, e, se executa a fórmula correctamente,protegendo-se contra uma interferência exterior, ela vai obter osresultados que aquela fórmula deve dar. O poder sobrenatural,não por vontade ou escolha própria, deve aceitar16.

No objectivo da nossa discussão, o ponto importante aquié que na atitude mágica, é o interesse da pessoa humana que écentral e que se impõe. O sobrenatural, mesmo Deus, os espíritosou outros poderes, são só meios para conseguir seu objectivo. Ospoderes sobrenaturais são considerados impessoais e amorais. Adecisão ética ou moral pertence ao manipulador humano. Emtermos bíblicos (cf Gn. 3, 1-5), a pessoa humana aqui come ofruto da árvore que está no meio do jardim. Ele/a tornou-se comoDeus, conhecedora do bem e do mal. Em termos teológicos, ele/atorna-se um ídolo usurpando o lugar de Deus como Senhor eMestre da vida dele/a.

Não queremos dizer que aqueles que praticam a religiãoduma maneira mágica se fazem a si mesmos ídolos ou falsosdeuses deliberadamente. Na verdade até afirmam (em teoria) queeles estão relacionados com poderes superiores. Mas ao fazerque os seus próprios interesses sejam o centro e sejamindependentes das decisões livres de Deus, realmente estão acolocar esses poderes como ídolos, isto é, instrumentos para overdadeiro ídolo que é o seu próprio ego. Já que, por causa doPecado Original os humanos estamos virados para o mal, não éde admirar que uma tal maneira de se relacionar com osobrenatural vai levar a todo o tipo de pecados. Em vez deconseguir a verdadeira Vida que procuram os seus praticantes,eles vão envolvendo-se mais e mais na espiral da Morte.

A Conclusão Fatal do Mito da Criação: “Deus abandonou-nos ànossa sorte”

16 C.H.Kraft, Anthropology for Christian Witness, p 206 (quoting E.Adamson Hoebel, Anthropology: the Study of Man, New York: McGraw-Hill, 1972, p. 578).

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Como podemos dar-nos conta desta tendência na religião e nacultura tradicional que tem recurso à magia? Penso que étomando a sério as implicações da visão tradicional do mundocomo decorrendo desses mitos de origem dos Chewa “Mito daCriação de Kapirintiwa”. A história termina com a afirmação deque Deus foi-se embora, longe da comunidade humana, para osCéus. É lá que ele reside desde então. Há uma nota de fatalismoe de desespero nesta conclusão do Mito. É como se Deus, apesar do seu poder supremo como Criador e preservador da vida,se tivesse retirado para uma posição de um “Senhor ausente” emrelação à humanidade. Perdeu um interesse real no que está aacontecer aqui na terra. Pode ser chamado, de vez em quando,em ocasiões especiais como seca, peste ou desastres ecológicos.Mas senão, assim como os Grandes Chefes, Ele não quer serimportunado por um qualquer pequeno assunto, que nóspodemos e devemos resolver por nós próprios.

Qual é a lógica por detrás desta maneira de pensar? Possosugerir que se trata da lógica da mesma visão do mundo.Tratando dos problemas da vida, a comunidade humana tem osoutros dois parceiros, além de Deus: o Mato e os Espíritos. Estessão poderes com os quais se pode negociar de maneiraadequada, para procurar o necessário e resolver qualquerassunto vital que possa surgir. Deus deu esses parceiros ecolocou-os ao dispor da humanidade, e Ele deu a sociedadehumana a capacidade de descobrir esses poderes e de usá-losquando necessário. Portanto cabe à própria gente defender-se ;não devem recorrer a Ele quando não é necessário.

Enfrentando-se com esses focos de poderes, a sociedadehumana avalia o alcance e os limites de cada um deles. O Mato érealmente um parceiro, mas é um parente mais afastado que osEspíritos, os quais, mesmo depois da morte, continuam a serparte da sua família e clã. Os espíritos são guardas responsáveisdo seu povo e conservadores da sabedoria e da moral quegarante a vida bem sucedida, da mesma maneira que eles eramirmãos mais velhos quando ainda vivos. Só que agora têmmaiores poderes, já que estão mais perto de Deus.

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No que diz respeito à fé Cristã, tudo isto é aceite e podeser assumido como uma maneira de entender e de viver oengajamento cristã. O problema está com o conceito da visão domundo com a ausência de Deus. É muito parecido ao conceito do“Deísmo”, segundo o qual, mesmo que Deus seja aceite comoCriador e origem do mundo, na vida real Ele está ausente da vidahumana. Dessa maneira a humanidade fica sozinha, literalmenteabandonada à sua sorte. Mesmo a relação com os espíritos e osantepassados não é uma resposta adequada para a sociedade.Depois de tudo, eles são só humanos. Fora da sua proximidadecom Deus, o seu poder para ajudar e salvar é limitado face àsoutras forças supra-humanas e invisíveis.

Numa tal situação, não existe uma fonte segura deconfiança ou uma orientação segura para a ordem, bem viver,justiça e compaixão. O fraco e o menos dotado não têm umafirme esperança, enquanto que o rico e o poderoso têm muitopouco que lhes impeça de tirar vantagem das outras pessoas.Quando deixados sozinhos, os seres humanos não são capazesde construir o Reino de Deus. Aqui é, então, onde podemosconstruir o Reino de Deus. Aqui, então, é onde podemosdescobrir a vantagem da Boa Nova.

A Santíssima Trindade: Um Deus que é Todo Poderoso, mas,também em solidariedade com as pessoas.Quando a fé Cristã entra em contacto com a Religião Tradicional,o diálogo que se segue é, em primeiro lugar e sobretudo sobre avisão do mundo. A fé Cristã oferece uma crítica radical da culturatradicional, sobretudo na sua percepção de quem é Deus e comoEle se relaciona com o mundo. O Cristianismo baseia-se na visãode Deus que não é “Deísmo”, mas eminentemente “Teísmo”. ODeus revelado por e em Jesus Cristo, é Trindade, e a Sua relaçãocom o mundo exprime-se nas palavras do Credo. Ele é, naverdade, o Pai que criou o mundo e a humanidade. Mas Ele é,também, o Deus presente, que mantém o mundo na existência eo dirige segundo o seu plano de Salvação. Como Filho, Ele veiodo Céu à terra e se fez “homem”: totalmente humano, igual a nósexcepto no pecado. A sua encarnação significa solidariedade coma experiência humana, mas uma solidariedade que pretende

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capacitar e transformar. Deus tornou-se humanidade para que ahumanidade se torne divina. O Mistério Pascal é a realizaçãodesta salvação, e o “modelo” pelo qual o mundo é salvo. ComoEspírito Santo, Deus é a presença capacitadora e acompanhanteno mundo e na comunidade humana. Portanto, embora se possadizer que Deus subiu aos céus por causa do pecado humano, Eleveio até nós, para vencer o pecado e para deitar a baixo aseparação entre Ele mesmo e a sua criação.

Nós poderíamos continuar assim desta maneira,mostrando como a fé Cristã é a resposta à Religião Tradicional donosso Povo. Deus vem em Cristo, não para abolir o que era válidona fé do nosso povo, mas para a levar a uma inesperadaperfeição (realização). Quando compreendemos com amor erespeito para com o que Deus já começou no seu diálogo com osnossos Antepassados, também podemos descobrir o que é maissignificativo na sua nova Revelação em Cristo. A área daCristologia é muito rica para prover respostas precisas àcaminhada espiritual dos nossos Antepassados. Mas na questãodo relacionamento com os espíritos ancestrais, a compreensãocristã e a experiência da Pneumatologia deve ser totalmenteexplorada. A ênfase característica dos movimentos pentecostais ecarismáticos são uma demonstração de como a ReligiãoTradicional Africana encontra a sua plena realização naMensagem Cristã.

Rt Rev Dr Patrick-Augustine Kalilombe, M.Afr.,Department of Theology and Religious Studies,Chancellor College, University of Malawi,P.O. Box 280,Zomba. MALAWI.

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