os cinco e meio no vale do loire - fep.up.pt · só serviam até às 20h00 mas, atendendo à...

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1 Os Cinco e Meio Os Cinco e Meio Os Cinco e Meio Os Cinco e Meio Os Cinco e Meio no Vale do Loire no Vale do Loire no Vale do Loire no Vale do Loire no Vale do Loire De 5 a 12 de Agosto de 2002

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Os Cinco e MeioOs Cinco e MeioOs Cinco e MeioOs Cinco e MeioOs Cinco e Meiono Vale do Loireno Vale do Loireno Vale do Loireno Vale do Loireno Vale do Loire

De 5 a 12 de Agosto de 2002

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Dedicamos este livro aos cinco heróis da navegação loiriana.

Agradecemos ao Gustavo a amabilidade de se ter portado bem.

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PrefácioPrefácioPrefácioPrefácioPrefácioFazer uma viagem de barco no Loire era um sonho acalentado há muitos anos.Num mesmo projecto juntava-se o prazer do núcleo duro do agregado familiarestar junto e partilhar em comunhão sentimentos e ideias, o encanto da navega-ção através de paisagens antecipadamente consideradas como paradisíacas e aindauma atracção por França que remonta às tradições culturais portuguesas, a umaaprendizagem precoce da língua por mão materna e a uma prática científica.Havia todos os ingredientes para o sucesso de um empreendimento, preparadocom muita antecedência: marcação do barco, aquisição do livro de navegação,consultas frequentes a páginas web relacionadas com a região, uma viagem cui-dadosamente preparada.Assim estava determinado: férias conjuntas de Carlos e Fernanda, Catarina, Edgare Marta.Entretanto surge um novo elemento para a aventura. Marta grávida, Edgar deli-rante, futuros avós e tia embevecidos. A viagem dos cinco passou a ser dos cincoe meio. Um acréscimo pequeno mas que mudou bastante o rumo dos aconteci-mentos. Imperceptivelmente “Gustavo” transformou-se no centro das atenções.

Apesar do tempo não estar à altura da alegria dos participantes, de ser uma pá-lida sombra do que os cânones afirmam sobre a normalidade em pleno mês de

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Agosto, a excursão iniciou-se com alegria, com a descoberta de recantos de Françadesconhecidos do turista urbano.Já decorriam alguns dias de viagem quando surgiu a ideia de se fazer um diáriode bordo, escrito colectivamente, mais precisamente repartindo os diversos diaspelos diferentes elementos. Este desfasamento entre o início da viagem e a aber-tura do diário e a diferente motivação dos participantes tanto pela ideia comopelo gosto da escrita fizeram com que surgissem desigualdades de relato, paraalém das inevitáveis idiossincrasias da escrita de cada um.Apesar destas deficiências parece-nos interessante construir este livro e guardá-lo como uma experiência a reproduzir noutras situações, como a realização deum sonho, como uma prenda antecipadamente ao neto, que encontrará nestaspáginas as primeiras reacções colectivas à sua futura existência.Que sirva de memória, de sonho e de amor!

Carlos

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A ChegadaA ChegadaA ChegadaA ChegadaA Chegada

Sábado, 3 de AgostoDomingo, 4 de Agosto

Conjugando o verbo entreter es-peram um Godot chamado auto-carro.Logo havia de haver um acidente!

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Finalmente um hotel paradisíaco emChateau Gontier.

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Deambulando por Chateau Gontier...

A artista

Os amores e os pontos negros...

O gineceu no jardim.

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Chegados a Orly! Hum! Que bom! Já cá estamos!O comboio que nos levava ao destino só estava em funcionamento até às 23h00.Estugamos o passo, fomos até à caixa comprar o bilhete, a madame já tinhafechado o guichet! A máquina dos bilhetes fazia alguma resistência em trabalharna altura, mas, lá conseguimos.Hotel Parc de Monssourris – o paraíso daquele dia, mas a barriga dava horas e láfomos numa caminhada até à Porta de Orleães. Alguns lembraram bons e maustempos. Ceamos, pois era disso que se tratava, e que boa ceia! No caminho e à1h00 de noite compramos uma garrafa de água numa loja de um árabe, claro, ealguns lembraram que são as lojas que em Paris estão sempre abertas.Confortado o estômago, era hora de confortar o espírito, e fomos até à horizon-tal, fazer um sono reparador depois de um dia de “matar horas”.

No dia seguinte saímos cedo e de armas e bagagens partimos para a estação decaminho de ferro. Um mundo de gente diversa. Para nós uma grande estação decaminho de ferro e, pequenos que somos, até íamos perdendo o comboio.Era esperável chegarmos a Laval às 13h30 mas ... a 1ª novidade desta aventura:havia que sair em Le Mans! O transito ferroviário estava interrompido na linhadevido a acidente. Uma espera na estação, passeia aqui, pergunta acolá, come-seum sanduíche e passadas duas horas fomos transportados por camioneta a Laval.Viagem de lindas paisagens, sem sobressaltos. Aqui esperavam-nos decisões –

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ou tomar um taxi, ou esperar aligação de camioneta. Os 5½ da aventura e as 5 bagagensaventureiras lá seguiram numacamioneta à hora aprazada.A meio do percurso uma segun-da novidade: a máquina regista-dora na camioneta começou a fu-megar! Tudo reparado a tempo,uma condutora simpatiquíssima,conversadora, e lá chegámos aofim – Chateau Gontier. O hotel a100 m de caminho andado. Oaspecto exterior, os jardins, co-lheram o agrado do grupo. Che-

gados aos quartos, o 2º paraíso! O espacinho de relva, as cadeiras, a mesa, ocardápio convidaram-nos logo para um repasto inicial.A informação do sítio onde jantar dada pela gentil moça do hotel pôs-nos à des-coberta do “Aguarela” sobre a Mayenne. Encontrámos. Perplexos, soubemos quesó serviam até às 20h00 mas, atendendo à proveniência lá fomos contemplados..Teciam-se comentários sobre a comida francesa, sobre as diferenças de quanti-

O carimbo de Chateau-Gontier sobre uma paisagem da re-gião. Aquela bela terra foi então o ponto de chegada do pos-tal ilustrado. Para nós seria o ponto de partida.

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dade, e eis que diante dos nossos olhos é-nos colocado um lindo prato (emforma) e conteúdo. Lá fora começa a cair chuva forte e os 5½ questionam o re-gresso ao hotel. A descontração aconselhou calma, que era época de chuveirões.E assim foi! S.Pedro fechou as suas portinhas a tempo de chegarmos ao hotel. Umboa noite colectivo e desejos de um bom sono e eis-nos caídos nos braços deMorfeu.

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Finalmente o BarcoFinalmente o BarcoFinalmente o BarcoFinalmente o BarcoFinalmente o Barco

Segunda-feira, 5 de Agosto

Com um tal capitãonão haveria naufrá-gio a espreitar-nos.Nem Adamastor seatreveria

E a fotógrafa captou este momento dramático.Desesperados de fome, tudo fechado. A muitasimpatia de uma dona de café salva as nossas vi-das. Alegria, cansaço e cabelos no ar.

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E assim começaram a sucederem-se as belas paisagens.

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E assim aconteceu a primeira noite...com um encontro imediato do 3º grau.Valeu a atenção do timoneiro e os pri-meiros raios da aurora.

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Neste dia os bons dias colectivos reflectiram o bom soninho do dia anterior. Opequeno almoço fizemo-lo reforçado pois no fundo no fundo todos esperávamoso dia da aventura. Um passeio pela vila florida, pelas margens tranquilas deixa-ram-nos uma vontade de voltar a Chateau Gontier que ficou na memória.Fomos de tarde até Daon. Uma breve vista de olhos sobre as embarcações anco-radas e descobrimos a nossa. Com grande curiosidade, tal como fazem ascriancinhas, deitamos uma olhadela para o interior pelos buraquinhos possíveis.Mas era preciso aguardar até às 16h00 e era preciso abastecer-nos de algumacoisa, mas 2ª feira e Agosto estava quase tudo fechado. Até a “boulangerie” esta-va de férias. De pergunta em pergunta no melhor francês possível lá encontramosuma “épicerie”. O essencial já estava, mas um dos aventureiros é pescador e aguar-dava insistentemente a obtenção da licença. Convicto, lá fez esse aventureirouma subida íngreme até ao “quiosque”. Alcançou o objectivo e era ver os seusolhos orgulhosos a exibirem a dita!Fomos para o barco. As instruções comunicadas em flecha pelo proprietário, uma1ª aula de experiência, e aí está o início da aventura dos 5½. Para onde ir, subir oudescer ... mas se decidiram os 5½. Organizado o percurso e tudo sobre rodas. Oshomens dedicados à tarefa de pôr o barco a bom rumo, as mulheres dedicadas àtarefa de organizar o espaço. E conseguiram!A navegação, a passagem das eclusas , o contacto com outros navegantes, umanovidade do 1º dia que já passava a ser habitual.

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Aproximava-se a hora de jantar! O colectivo pensava numa refeição à maneira!Acostamos em frente a uma creperia. Estava fechada! O mensageiro dos 5½ foi deBTT à pesquisa e traz-nos a nova de 1 café!Terrinha muito simpática, mas Agosto é o fim do mundo! E fomos até ao café.Um jantar que, no dizer da madame, era ligeiro e a salada era com os tomates doquintal. Caiu como sopa no mel!Fomos dormir na esperança de que no próximo dia se ía tomar o pequeno almoçona dita creperia. Sonhos de aventureiros.

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Depois de algumas dificuldadesalimentares, a primeira granderefeição no barco, com sol radioso.

Contingências do DesconhecidoContingências do DesconhecidoContingências do DesconhecidoContingências do DesconhecidoContingências do Desconhecido

Terça-feira, 6 de Agosto.

Quem acreditasse nas setas estava mal servido. Paisagem bonita, das maisbonitas, vontade de prosseguir pela eclusa indicada pela seta mas insuficien-te água no rio impede a progressão. Entre o verde das árvores os sinais deuma cana de pesca pendente do barco, que assim continuo eternamente, semactividade, sem emoção.

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A tranquilidade do silêncio...

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Acordámos às 8h30 com a luz e com o desejo de comer um crepe mesmo emfrente ao cais, mas, esperava-nos uma pouco boa notícia – a creperia só abria aomeio-dia!O mensageiro de bicicleta foi comprar pão para o pequeno-almoço à boulangerieda outra margem que tínhamos visto na noite anterior. Outra pouco boa notícia –em Agosto a boulangerie só abria às quartas-feiras!Com a fome a apertar e ao perceber que a vila mais parecia uma vila fantasma –tudo fechado e sem se ver vivalma – fomos falar com a senhora da éclusa paraesta nos aconselhar. E o conselho – o qual nós seguimos – foi voltar para trás,voltar a passar a éclusa, e ir até Lion d’Angers – talvez lá encontrássemos algumacoisa aberta! De facto, a vila era bem mais movimentada (e bem bonita!) e acaba-mos por encontrar um café e tomar um óptimo pequeno-almoço de café comleite e sandes de camenbert! Melhor ainda – achámos um supermercado onde nospudemos abastecer para o almoço!Já que tínhamos mudado de rumo e tínhamos entrado num outro rio – o Oudon –decidimos continuar em frente para conhecer Segré que acreditávamos ser muitointeressante. Foi então que tivemos a terceira pouco boa notícia do dia – ao che-garmos à éclusa (por volta da hora do almoço) fomos informados que não pode-ríamos passar porque o rio estava muito baixo, logo, não navegável. Enfim, nadacomo ir alterando os planos à medida que os obstáculos vão surgindo! No mo-mento, já que tínhamos atracado e a paisagem era tão bonita, resolvemos ficar

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por ali um bocado a curtir e a almoçar! Uns apanharam sol e o pescador fez a sua1ª tentativa de pesca, primeiro com pão, depois, atribuindo o seu insucesso àprovável “esquesitice” dos peixes, tentou com camenbert. Mas, parece que estetambém não era da preferência daqueles peixes! Quem sabe se fosse um Serra ...Voltámos aos planos originais – ir até Angers. Fomos a todo o gás! Prego a fundoa 10 km /hora. E, como tínhamos mudado de planos poucas vezes, mudámosmais uma! Em vez de ir dormir a Angers, decidimos parar numa terrinha queficava um pouco antes e só no dia seguinte seguir para Angers e passar lá o dia.Cantenay Épinard era uma terrinha pequenina mas muito bonitinha! O mensagei-ro foi fazer uma voltinha de reconhecimento de BTT enquanto nós nos acabáva-mos de arranjar e fechávamos o barco. Voltou passados cinco minutos (como eudisse, a terra era pequena) já com a indicação de um restaurante mesmo alipertinho. Quando lá chegámos e perguntámos se podíamos comer qualquer coi-sa responderam que não serviam jantares – só almoços! Mas, depois olharambem para estes aventureiros, perguntaram se éramos dos barcos e disseram quese esperássemos meia hora nos arranjavam qualquer coisita simples! Até porquetínhamos poucas alternativas, resolvemos dar um voto de confiança! O destinorecompensou-nos! Serviram-nos de entrada uma salada maravilhosa, variada ebem apresentada como só os franceses o sabem fazer, uns bifinhos de peru comum molho óptimo acompanhados de feijão verde, uma garrafa de vinho e, parasobremesa, um belo prato de variadíssimos queijos. A 1½ ainda se consolou com

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um gelado. Os outros já não tiveram barriga para mais! Por isto e pelas cervejasque tínhamos bebido antes da refeição pagámos 55 euros – o jantar mais baratoaté então. Convém referir que neste restaurante, tal como em todos os sítiosonde tínhamos parado até então, o atendimento foi sempre de uma simpatiaextrema, não fazendo juz à fama que os franceses têm! Assim, combinámos logoir lá tomar o pequeno almoço no dia seguinte.Voltámos ao barco. O cais estava completamente cheio (5 barcos). Aliás, se nóstivéssemos chegado 10 minutos mais tarde já não teríamos arranjado lugar. Ape-sar disso estava um ambiente super tranquilo ! Ficámos um bocado na parte defora do barco (não estava frio nenhum, não corria uma aragem) a contemplar apaisagem, a encher a alma de toda aquela beleza, também a observar os nossosvizinhos italianos e os seus barcos maiores e a sonhar como seria fazer umadestas viagens com a Marina, o Lúcio, a Miguel e o Gonçalo. Sempre que vivemosmomentos bons desejamos partilhá-los com quem mais gostamos!Depois, quatro dos 5½, a Marta e o Edgar foram para dentro jogar Scrable en-quanto o Carlos continuava lá fora a ver o reflexo das árvores e das estrelas naágua e a ler na companhia de um gatinho simpático refastelado no seu ombro.Mais tarde acabou por se juntar ao resto do grupo e também jogou scrable. Quandojá não podíamos mais com os olhos abertos, fomo-nos deitar com aquela sensa-ção maravilhosa de um dia bem passado!

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Urbano no BucólicoUrbano no BucólicoUrbano no BucólicoUrbano no BucólicoUrbano no Bucólico

Quarta-feira, 7 de Agosto.Os peritos observam ascondições de navegação.Conclusão boas...

A pose dagrandesenhora.Enquanto seespera pelacomida umapose para aposteridade.

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Uma nova forma de la-vagem de dinheiro

Esperando comida oucomendo. Almoço emrestaurante, jantar nobarco. Sempre com ape-tite e alegria.

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Uma cidade e o rio...

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Num dos portos mais concorridos onde estivemos, acordamos com diversos vizi-nhos. Italianos, patos (que a 1½ se prontificou a alimentar) e um nosso amigo danoite anterior: o gato. Logo pela manhã entrou-nos pelo barco dentro, com umacarência quase surreal. Com algum esforço lá o colocamos no exterior do barcopara no dirigirmos a um café para um pequeno almoço que se mostrou, à seme-lhança do jantar da noite, um excelente desenrasque com croissants para nin-guém pôr defeito. E assim, juntamente com uns deliciosos cacetes com camembert,tomamos um excelente pequeno almoço.No regresso ao barco, uns dos nossos vizinhos avisa-nos que o “nosso” gatoestava no barco dele. Esclarecemo-los que o gato não era nosso.Rumamos a Angers, onde iríamos passar o dia. Mas este dia tinha algumas sur-presas preparadas para nós...No caminho, passamos por uma das eclusas com maior desnível, após a qualresolvemos parar para um passeio. Ao atracar, um primeiro aviso: o ganho (paucom um gancho na ponta, para ajudar à acostagem) caiu à água. Felizmente, dadaa baixa profundidade da água, os dois machos do grupo conseguiram recuperá-lo.O passeio, embora seco, também meteu alguma água. A terrinha mais próximaainda era um pouco longe, embora nós só no tenhamos apercebido disso apósuns bons 20 minutos a subir, momento no qual resolvemos regressar ao barco.Como Angers ainda estava longe, o aventureiro mais gorducho aproveitou para

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tomar banho e se arranjar.O caminho pelo rio apresentava uma inovação: um barco para passagem de umamargem para a outra. A forma de funcionamento deste barco obrigava a algumaatenção: existia um cabo de aço a cruzar o rio, a cerca de 1,5 m de altura que erautilizado para mover o barco. Ao aproximarmo-nos, sopramos a corneta duasvezes, a indicar que queríamos passar. Enquanto esperávamos que a corda fossebaixada, aportamos. Um dos aventureiros timoneiros saltou para o porto parasegurar o barco. Um pequeno passo em falso e... caiu na água. Companheiraassustada. Os restantes a tentar trazê-lo para o barco. Aí vai bóoooia... Depois deuns momentos mais confusos, o mergulhador (que sempre teve pé) decidiu andaraté à margem para sair por lá. E lá regressou ele ao barco, molhado, enlameado,etc. Como estava prontíssimo para passear, tudo o que ele levava foi com ele àágua: dinheiro, passaporte, etc...Enquanto se procedia às secagens, chegamos a Angers. Sem dúvida uma cidadebem maior (a 6ª maior de França, segundo nos disseram posteriormente). A zonade acostagem era enorme e muito bonita.Depois de um início de dia animado, dirigimo-nos ao centro de Angers, ondeencontramos um posto de turismo que nos deu óptimas informações. Tinha umaexcelente casa de banho, muito espaço que fez as delicias dos ocupantes de umpequeno barco.Aproximava-se a hora de almoço e a opção recaiu num restaurante próximo, com

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uma esplanada convidativa. Mostrou-se uma boa opção.Fim do almoço e rumo ao centro para um passeio de cerca de uma hora num“comboio” turístico que nos permitiu ter uma perspectiva muito boa da cidade.Após o passeio, fomos para uma outra zona central, onde existia mais comércio,ruas sem trânsito e crepes... Fomos visitar a Loja dos artesãos, uma casa muitoantiga onde trabalhavam artesões. Uma pequena decepção, uma vez que se visi-tava apenas o RC onde era a loja propriamente dita e cujos artefactos à vendadeixavam bastante a desejar.De seguida separamo-nos, indo um dos aventureiros visitar algumas livrarias,outros dois caminhar pelo quarteirão e tomar um chocolate quente numaesplanada, e os restantes foram também passear e aproveitaram para comprarum casaco e um biberão para o ½.Encontramo-nos mais tarde numa esplanada (isto é só esplanadas) para decidircomo seria o jantar.Depois de alguma indecisão, optamos por jantar no barco (que se tinha transfor-mado em estendal de secar a roupa e documentos do aventureiro do mergulho damanhã).Perto do local de acostagem existia um parque que parecia muito engraçado,pelo que dois aventureiros foram fazer uma pequena prospecção. Dada a dimen-são deste, o mensageiro resolveu lá voltar para um passeio na sua BTT.Jantamos no exterior do barco, numa noite muito agradável. Os nossos vizinhos

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italianos da noite anterior foram novamente nossos vizinhos, tendo feito um jan-tar de churrasco.Após o jantar, as actividades do costume: um foi “pescar”, utilizando salsicha econseguindo assim a primeira mordidela. Os restantes jogaram uma partida deScrable.Não muito tarde, o sono foi a melhor opção.

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Relógio LentoRelógio LentoRelógio LentoRelógio LentoRelógio Lento

Quinta-feira, 8 de Agosto.

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Uma refeição muito bucólica e plena de boa comi-da, alguma de nomes desconhecidos

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Este dia teve poucas novidades para serem relatadas. Continuamos a nossa via-gem pelo vale do Loire.Acordamos em Angers. O mensageiro teve a brilhante ideia de ir de bicicletabuscar pão e algo mais para o pequeno almoço. Estava tudo pronto, posto namesa mas faltava o mensageiro! Passado uma hora lá veio, depois de muito cami-nhar atrás do pequeno almoço lá fomos nós.As horas foram passando e a hora do almoço estava a chegar. Parámos numaesplanada perto do rio. Sem sabermos muito bem o que estava escrito na ementa,escolhemos algo para comer. Três dos aventureiros escolheram o que pensavamser uma espetada, mas afinal era peixe!O almoço passou e continuamos na nossa aventura. Muito calmamente, coisarara comparada com as aventuras dos dias anteriores.Durante a tarde o pescador tentou mais uma vez pescar. Depois de experimentarcom as mais variadas iscas (salsicha, queijo, pão) experimentou com uma mosca.Espetou-a pelos olhos no anzol. Vários minutos passados foi verificar que o an-zol só continha os olhos da mosca. Depois desta observação o pescador chegouà brilhante conclusão que os peixes dos rios franceses são maricas – só gostamde Cu!Chegou finalmente a hora de jantar. Parámos inicialmente numa terra que eraindicada como tendo todos os apoios. Dois dos aventureiros entraram num pe-queno café onde uma senhora muito calma deu logo a entender que nada havia

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nesse local. Voltaram para o barco e partimos para um outro porto seguro. Umdos aventureiros estava furioso com a iniciativa da mulher e com a falta de “olho”para o negócio. Chegados ao porto seguro os dois habituais aventureiros foramnum primeiro reconhecimento da área e logo ali descobriram um restaurante queservia depois das 20h00. Trocamos de roupa, assim o impunha o local, e fomosnós comer uma maravilhosa refeição. Depois de um bom prato com um bomvinho, o corpo começou a pedir descanso. Adormecemos a ouvir a chuva (quecaía com força), e a sermos embalados no barco.

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A Modernidade KafkianaA Modernidade KafkianaA Modernidade KafkianaA Modernidade KafkianaA Modernidade Kafkiana

Sexta-feira, 9 de Agosto.

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A noite tinha sido de intensa chuva e algum vento. A margem direita com baixorelevo e mostrando os campos cultivados de amarelo torrado permitia o livre fluirdo ar, fazendo sentir a pequena ondulação que teimosamente batia contra a em-barcação.Lentamente todos foram acordando. Reclamando uns contra o sistemático balan-cear do barco, ignorando outros o sistemático som húmido da ondulação, recla-mando uns contra a penetração de água por alguma fenda do couraçado e igno-rando outros que algum problema tivesse havido reinava a habitual mistura desatisfação pela presença comum e descanso em paisagens paradisíacas com aimpiedosa crítica impotente a algum deus que se lembrou de mandar mau tempoem mês de férias.Olhando à volta ali estavam os campos planos, o cais tosco, o verde escuro dasfrondosas árvores por iluminar, os telhados das casas à distância entre a belezade um rio prenhe de histórias e um céu nebuloso, cinzento, um pouco ameaça-dor. Ao fundo, emoldurando o ancoradouro próximo, o moinho, na sua pedra dealguns andares, dominava a paisagem. E a duzentos metros, na distância de umcaminho rural, ali estava o restaurante que nas vésperas tinha aconchegado osestômagos, numa estranha combinação de requintes decorativos, qualidade dealimentação e ruralidade de uma região onde os habitantes pareciam estar au-sentes.O desafio de procurar pequeno almoço entusiasmava todos. Mais uma vez, numa

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rotina que a tranquilidade do lugar reforçava, era imperioso e urgente alimenta-rem-seArrumado minimamente o barco, aconchegados com a roupa possível, evitandomolharem-se na saída para o cais, meteram-se ao caminho, explorando percur-sos que na noite anterior, à luz de lanterna, não tinham encontrado. Estradaalcatroada fazendo o ângulo recto mostrou ao longe a localidade. Aumentava aesperança.Chenillé-Changé não apresentava na carta de navegação cardápio acolhedor, masos erros desta e a qualidade do restaurante previa boa refeição. Chegados à pe-quena localidade, mesmo no cruzamento central da vila, anunciava-se café em-preendedor, quiçá único em zona de ruralidade: café, multiserviços, ligação èInternet e outras coisas que os tempos actuais aconselham. A fachada estreita doestabelecimento plena de cartazes e dizeres não enganava.O mesmo não se poderá dizer do horário de abertura. Anunciada para as dez,hora local porque outra não seria de esperar, meia-hora de atraso lançava algu-ma desconfiança sobre o que iria acontecer. Interrogados alguns habitantesconcluirem que seria de esperar que o empreendedor empresário chegasse aoseu local de trabalho. Pacientemente decidiram aguardar, pois alternativas nãoexistiam: padeiro não tinha mercado que o aliciasse, «mairie» era edifício toscocondenado ao abandono.Porque não caminhar para os lados do rio, com parque de campismo e, empresa

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de aluguer de barcos, aspectos pouco interessantes naquele momento, mas ondeparecia existir, segundo informação recolhida no lugar, uma máquina de café,bem supremo para grupo alimentarmente descorçoado?O local era aprazível. Muito agradável se o sol se mostrasse. Em pouco tempo eespaço as informações amontoavam-se. Uma cabine telefónica que não aceitavacartão de crédito, a identificação da nacionalidade da família de língua estranhapresente na véspera no restaurante, uma entrada tranquila para um parque decampismo meio selvagem, a empresa de aluguer das embarcações, um jardimonde os pingos de água de suspendiam da folhagem frondosa, uma pequenaesplanada, um posto de turismo e a presença de alguns bens comestíveis. Comernão havia mas um aguado chocolate de máquina que aqueceu alguns estômagos.Combinando o útil (evitar a chuva e fazer esquecer o desespero alimentar) com oagradável decidiram ir visitar o moinho a água. Título oficial da visita ilustrada empequena brochura razoavelmente concebida e tipograficamente desaprimorada:«LE MOULIN A EAU DE CHENILLE-CHANGE, D’HIER A AUJOURD’HUI».Peça única no rio Mayenne, ainda a funcionar, teve a sua data de construção emperíodo que a história parece não clarificar. Apenas sabe-se que em 1551 o mo-inho foi vendido e que entre 1700 e 1900 foi propriedade de latifundiário daregião. Tendo tido um incêndio no século passado foi reconstruído internamentena base de tecnologia italiana.Quatro andares esperavam os visitantes, mas a pouca argúcia de uns e a muita

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fome de outros escondeu o quarto piso a quase todos. Máquinas, escritórios,máquinas. A água, a grande roldana moldando a força ao engenho humano, rol-danas e correntes, muitas delas traçadas e engenhosamente dobradas, enchiam oambiente de som fabril. No andar burocrático uns admiravam as peças expostas,outros desfolhavam os livros de contabilidade e outros ainda procuravam entrecartas e jornais a presença de algum carimbo de correio menos conhecido.Estava visto e a fome apertava. Como borboletas atraídas pela luz – era mais comos mosquitos que tal acontecia, mas a realidade nublaria a poesia da descrição! –todos se dirigiram para o café, na derradeira esperança que já estivesse aberto. Eestava. Que descanso cavalgando na esperança da alimentação!Muitos outros «visitantes» revelavam a sua ansiedade. Entrada a porta, o caféanunciava-se à esquerda. Balcão compacto ao fundo, uma planta junto à janela,meia-dúzia de mesas, na última do lado esquerdo um computador com o pro-grama de ligação à Internet no visor. Finalmente!Identificadas as necessidades alimentares (café com leite e cafés grandes) foraminformados pelo empregado-empresário que não havia nada para comer. Quempretendesse trincar sandes teria que solicitar na véspera que no dia seguinte oqueria. O grupo ficou descorçoado. Se o corpo fosse um jogo de legos muitoprovavelmente muitos órgãos teriam caído ao chão. A fome era tanta que nem seaperceberam da riqueza antropológica e económica da descoberta. Ali estava, emplena ruralidade francesa a simbiose do velho café de aldeia (taberna num linguajar

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mais consentâneo com a realidade) com as novas tecnologias da aldeia global,que Chenille-Change não era. Ali estava a o lampião da racionalidade empresari-al: tudo racional, nada de risco, procedimentos inequívocos de afastamento docliente para que brilhante cérebro empresarial tivesse tempo disponível para apren-der a funcionar com a Internet, quiçá ocupando posto de trabalho que algumcliente pudesse desejar se o encontrasse disponível.Como era possível aquele grupos de intrépidos turistas, engenheiros, economis-tas e outras coisas mais, não terem tido a capacidade de olvidar o sofrimento dosseus estômagos e elevarem-se para tão grandiloquêntes empreendimentos daracionalidade económica?! E no entanto foi isso que aconteceu. E contra a gran-deza que tais espíritos ilustres mereciam desta crónica, em abono da verdadesomos obrigados s confessar que todo o grupo se agarrou, literalmente falando,ao desespero da falta de comida. Uma revolta desesperada passou pelo olhar detodos.Anularam o pedido das bebidas e quando se preparavam para abandonar o esta-belecimento foram informados pelo funcionário-empresário que ao lado haviaum estabelecimento com bens onde se podia ir comprar víveres e trazer para ocafé. Não é esta divisão técnica do trabalho, um hino aos textos históricos deAdam Smith? Não é um desafio à cultura da economia regional? Espantoso.Mas ainda se tornou mais espantoso quando dois elementos do grupo se dirigi-ram para o estabelecimento «ao lado». Tratava-se de uma divisória do próprio

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café onde se poderiam comprar alguns bens de mercearia, de padaria, de pesca.A grande diferença é que «neste estabelecimento» trabalhava a esposa, enquantono cyber-café fingia que trabalhava o marido. Afinal toda a estratégia empresari-al se explicava pela antiquíssima divisão de trabalho entre homem e mulher, es-tabelecido de acordo com a argúcia e poder de cada um.O fundamental é que se comprou pão, queijo, voltou-se para o dito café onde emmáquina rudimentar de qualquer cozinha se tiraram meias-de-leite e café e to-dos conseguiram, finalmente, aconchegar os seus desesperados estômagos.Aleluia.Com outro ânimo e aconchego o grupo iniciou o regresso por rua principal des-povoada, restaurante ainda fechado, caminho rural agradável e cais ainda molha-do. Entre cada nuvem procurava-se vislumbrar um raio de sol que tinha conse-guido atravessar o flocos cinzentos mas, apesar do optimismo reinante, pareciamuito difícil ter tais visões.Motor a trabalhar, cordas guardadas seguiu-se rumo até à povoação mais próxi-ma, a grande, enorme, majestática aldeia de Daon. Mais umas eclusas e aí esta-vam, junto ao parque de campismo, junto a restaurante, junto a tanta coisa quenão tinham conseguido descobrir no dia da chegada.Confirmado taxi para na segunda-feira próxima apanharem o comboio para Pa-ris, sem pizaria a funcionar, pois só ao fim do dia tal se justificava, almoçaram,pagaram em notas, entre a atrapalhação da funcionária que não sabia trabalhar

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com a máquina de pagamento com cartão e as refilisses dos machos do grupo,deram uma pequena volta pelo parque e retomaram o barco aproveitando algumahesitação da chuva.Partiram em direcção a Laval, esperando que o tempo permitisse sem grandesesforços chegar o mais longe possível. A paisagem nesta região era magnífica.Frondosas árvores, rio amplo com curvas ligeiras imposto em cada momento umavisão de lago, pescadores pelas margens em toscos barcos ou acampamentos,eclusas floridas e quedas de água baixas e longas. Sempre muitos patos de todosos tamanhos. Um deles navegava entre os nenúfares e com a aproximação dobarco fugiu misturando a natação, a tentativa de voar e o caminhar sobre aslargas folhas da planta.Ao aproximarem-se de Château-Gontier a paisagem começou a ser maishumanizada: campos cultivados, luxuosas residências. Chegados à simpática vila,de uma monumentalidade associada à ruralidade e tranquilidade, quiçá centroregional de serviços de saúde a analisar pela grande quantidade de hospitais,alguns datando do início da nacionalidade portuguesa, atracaram, escolhendo oporto mais longe do centro da vila.Sempre o mesmo sossego inebriante. O suave deslizar das águas.Havia que continuar o trabalho mais regular da semana: jogar às cartas, passear,comer, dormir. Uma pizaria próxima do porto, com ambiente simpático e cidra àpressão foi o local comodamente escolhido, não fosse a chuva surpreender o

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grupo.Um pequeno passeio e estava passado mais um dia, esperando que o tempomelhorasse. A noite não acalentou essas esperanças mas depois de dormidostudo seria diferente, tudo continuaria igual.

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Os Últimos CartuchosOs Últimos CartuchosOs Últimos CartuchosOs Últimos CartuchosOs Últimos Cartuchos

Sábado, 10 de Agosto.

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– Hummm… Queres passar?– Não te preocupes que consigo. Tenho que ir mijar...tenho a garganta seca.– Já me levanto, só mais um bocadinho...Carlos levanta o oleado da janela.– Possa, continua a chover! Esta chuva nunca mais pára...– Bom, vou-me levantar, pôr istodireito... preparar o pequeno almo-ço.– Calma, temos tempo. Levantei-meporque já me dói as costeletas to-das!Fernanda espreguiça-se, insinua al-guns ruídos, senta-se na borda dacama de olhos meios fechados, en-treabre-os para olhar para o exteri-or, observa lentamente o reduzidoespaço que a rodeia, volta a olhar elevanta-se.– Bom, vamos a isto, vamos pôr istodireito para se poder colocar o pe-queno almoço.

No regresso a Daon passámos por zonas retratadascomo sendo de intensa actividade piscatória. Algunstraços da paisagem permitem descortinar que estamosno mesmo local, mas nem um pescador profissional sevislumbra.

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Fernanda tira as almofadas e os lençóis, os rectângulos de tentativa de colchão,retira as tábuas dos bancos, dobra a roupa e atira para o sepulcro nocturno osmateriais de dormir. Recoloca as tampas e a proa do barco já começa a parecermais espaçosa.– Sempre a chover! O céu está bem cinzento!– Mas olha que alguns dos nossos vizinhos já se puseram a navegar. Este aqui nãoe aquele também não. Continua tudo muito fechado.– Carlos, põe a mesa direita.Desencaixada a improvisada tábua de cama, colocada de pernas para o ar, desen-caixado o gancho de segurança, hei-la de pernas compridas, verdadeira mesaque suportará comida e muito trabalho com cartas de jogar.– Já está!– Olá, bom dia! Como está a querida?– Bom dia! Que tempo! Isto é praga! Passei a noite às voltas! Oh mãe! esta noiteressonaste...– De facto o tempo assim é praga.Entretanto a roupa tinha sido endireitada, a banca da cozinha liberta para outrasactividades, uma lufada de ar fresco e húmido entrou com a abertura da porta dafrente, o frigorífico abriu-se, começou-se a ouvir ruídos nos aposentos do lado.– Que dia é hoje?– Sábado.

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Apesar da chuva a tribo apresentava-se satisfeita, bem disposta com algumaspragas ao S. Pedro entre dentes, com alguma fome e com um grande entusiasmopor continuar a gozar as férias.– Bom dia! bom dia!– Dormiram bem?– O Gustavinho está bom?– Ah! ah! se dormimos, com aquela roupa toda estendida... parecia um acampa-mento de ciganos!– Estava um ambiente húmido...– Vamos comer?E em redor da mesa, prestaram honras ao apetite, à libertação de uma noitechuvosa e à imperiosidade de se entreterem em dia de férias: leite, pão, salchichas,queijo, café e capuccino, açúcar e muito mais.Estava iniciado um novo dia.

Depois do tempo do dia anterior, ancorados solidamente na bonita vila de Chateau-Gontier, com estabelecimentos abertos e belas paisagens para admirar, onde nãofaltava uma feira que tudo parecia conter, havia uma opinião generalizada que seavizinhava um sábado tranquilo, mais urbano que fluvial.Depois, a «creperie» ficava ali mesmo a dois passos do cais. Fome não haveria e acidra e cerveja aconselhava algum repouso.

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– Bom, vou-me arranjar! Que gaita, as sapatilhas continuam molhadas. Nuncamais secam! Edgar, hoje vou utilizar outra vez as tuas sandálias.Concentrado o resto da tribo na cozinha-sala, Carlos entrou de marcha a trás naretrete, onde em simultâneo se reproduziram os habituais sons, uns humanos,outros mecânicos e ecológicos. Abriu-se a porta mas ninguém saiu. Abriu-seoutra porta, a do chuveiro defronte, As duas portas abertas eram um herméticobiombo. Tudo se fecha e activa-se a bomba da água. Ouve-se o chuveiro, ou-vem-se grunhidos que mais parecem de ser não falante... Novamente ambas asportas se abrem numa sequência assimétrica e o ilustre membro da tribo desapa-rece no quarto do fundo, onde depois de bem enxugado se trajará de formaadequada à barba por fazer e aos locais a visitar. As tribos têm destes rituais etodos os membros procediam na mesma sequência, em ondas sucessivas.Tudo operacional para avançar.

Porque o descanso e a pacatez abre o apetite, chegou a hora de almoçar. Feliz-mente que a pizzaria era tão próxima, porque a alternância de chuva e simples-mente nublado era forte e os riscos de uma molha afiguravam-se credíveis.Chegados ao templo da gula defrontaram-se com as portas fechadas. Será porser sábado? Será por ser muito cedo? Será porque é praga? Só o futuro encontra-ria a resposta certa, mas outros rumos se impunham. Estes veraneantes lusitanosainda não se tinham apercebido das subtilezas linguísticas do mundo dos negó-

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cios: pizzaria é por definição um local que só abre à tarde para ficar aberto umpouco pela noite fora. Apenas Edgar, quiçá por profissão, tinha percebida que emFrança, pelo menos em Agosto, o horário dos estabelecimentos não era o queinteressava ao público mas o que era conveniente para o dono e funcionários.Enfim, poucas alternativas existiam: caminhar na procura de restaurante. Infor-mados pela exploradora do grupo, a Fernanda, que ali próximo estava tudo fe-chado, atravessaram a ponte, começaram a percorrer a zona dos edifícios histó-ricos. Eureka, ali mesmo, um letreiro de restaurante! Alegria de pouca dura! Oletreiro era um resquício da Idade Média! Nada de significativo aberto.E eis senão que num largo desafogado, com flores sarapintando janelas e cantei-ros, surge um restaurante agradável.Finalmente podíamos rezar à gula e a baco! Um dos elementos da tribo, Catarina,em plena recordação de rituais da época pré-vacas-loucas até reconstituiu umcerimonial de bife tártaro.A compra de uma botas de caminhante para Carlos, ainda à espera que as suassapatilhas secassem após a inesperada exploração dos fundos do rio, mais umascaminhadas pela encantadora cidade, muitos jogos de cartas, leitura, e algumastarefas de reabastecimento, preencheram o resto do dia.Uma ida à feira da terra foi uma outra aventura.Foi um dia de recompor forças esperando que o sol do dia seguinte lhes permitis-se navegar em condições!

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O Dia do MistérioO Dia do MistérioO Dia do MistérioO Dia do MistérioO Dia do Mistério

Domingo, 11 de Agosto.

Foi exactamente aqui que tudo aconteceu.Aquelas colunas testemunharam-no!

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No domingo os bravos descasaram.Descansaram tanto que a crónica desse dia ficou por escrever.

A ansiedade da espera do taxi, a simpática conversa com o motorista, a chegadaa Angers, a passagem do tempo e o repasto, embarque no comboio rumo a Paris,o infernal movimento da estação de chegada, a opção por múltiplos meios detransporte rumo ao hotel e muitos outros acontecimentos palpitantes eimorredouros ficaram por narrar.A preguiça de alguém incapaz de ser identicado trará a delícia dos historiadoresdo futuro.

Será à luz dos modos de vida do ano 2107 que eles terão que interpretar osarcaicos e dramáticos momentos vividos pelos cinco e meio nesse longínquo anode início do anterior século.Face aos escritos produzidos pelos dignos historiadores reunirãopsicoinformáticos, metalofilósofos, astrosociólogos, bioengenheiros e outroseminentes especialistas da posciência de então e descobrirão que foi nesse dia,exactramente nesse momento, quando o fortuito rompia as malhas dodeterminismo que o Gustavo que haveria de ser encontrou a magia de ser Ho-mem.

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PosfácioPosfácioPosfácioPosfácioPosfácioNoutro Espaço e noutro Tempo

Quando o Grande Meio é o Pequeno Um

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França marca ritmos de nossas vidas.Foi em França que a primeira vez senti a alegria de ter liberdade, em 1969.Foi em França que essa liberdade foi a angústia de a não ter em Portugal, vivendoem 1972/74 o encontro quotidiano da confiança, da luta, da saudade e do deses-pero. Sempre ao lado de Fernanda, temperada em aço, caldeada em ternura.Foi em França que acolhi nos meus braços sem treino o aconchegante gesticularde Catarina, numa adaptação lenta ao barbudo que nunca tinha sentido como pai.Foi em França que o espermatezoide edgariano fecundou o óvulo, para aqui vol-tar no momento da apoteóse.Foi de França que se partiu para um Portugal melhor, de que tu nunca recordarásos prelúdios.Se desilusões e dificuldades existiram desde então, não tomemos a árvore pelafloresta. Como vão distantes as trevas do obscurantismo, as dores de parto donovo Portugal na Revolução de Abril, a angústia dos sonhos perdidos. Do meiodas contradições jorrou uma sociedade aberta, em paz, capaz de sonhar e lutar,disponível para pertencer ao mundo, em tudo que este tem de contraditoriamen-te bom e mau.Catarina, na sua grande generosidade, no seu amor capaz de transpor monta-nhas, nas hesitações e angústias de quem procura a felicidade como Cinderela,com a grande coragem que sempre revelou nos momentos decisivos da vida é umgrande orgulho para nós.

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Edgar, na sua grande generosidade, na sua racionalidade de projecto em que asensibilidade se encobre nos enterstícios dos objectivos, com uma sorte na vidaque nada tem de fortuito, com a grande determinação lúcida que sempre revelouna vida é um orgulho para nós.

E mais uma vez foi em França que a geração seguinte, que tu inauguraste nanossa família, respirou as brisas da natureza e da cultura.Aqui passámos uma maravilhosa quinzena quando já eras o ídolo revelado naimponente barriga de Marta.Aqui voltámos a encontrar-nos quando cada sorriso, cada reviravolta, cadasincronismo de movimentos, cada manifestação de atenção, cada refeição, cadahabilidade, cada passo nesse glorioso percurso de conheceres o mundo e conhe-ceres-te a ti próprio, preenchia cada segundo de todos os que te rodiavam.

Por aqui andámos a construir o teu quotidiano.Por aqui nasceu teu paiPor aqui navegaste nas torrentes do nascimentoPor aqui passeaste.Paris, Loire ou Dijon. Sempre esta França da Revolução da “liberdade, iguadade,fraternidade”.Sempre este amor que faz com que esta minha lágrima cresça e caia; role, cresça

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e serpenteie por encostas e planícies, riachos e florestas, lagos e cascatas. É umalágrima de alegria, de confiança no futuro, de missão cumprida, de paz.Gostava de ser poeta, de traduzir em versos o que as palavras não conseguemexprimir.Gostava de ser músico, de orquestar o que as palavras não conseguem exprimir.Gostava de ser pintor, de tingir em cores fortes o que as palavras não conseguemexprimir.Gostava mas não sou capaz.Gostava de ser cientista e talvez o seja, mas a ciência não consegue exprimir oque as palavras não conseguem exprimir.Por isso este posfácio no dia em que regressaste a Portugal, no dia em que acabeia composição deste livro.

Carlos

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Um fim que continua ...Um fim que continua ...Um fim que continua ...Um fim que continua ...Um fim que continua ...