os cartazes do círio de n. s. de nazaré: mística e ... · envolve celebrações litúrgicas,...
TRANSCRIPT
Os cartazes do Círio de N. S. de Nazaré: mística e identidade de um povo
José Maria Guimarães Ramos1 Resumo
Neste artigo trato da mística e da identidade do devoto de Nossa Senhora de
Nazaré, a santa peregrina, analisando um de seus importantes elementos que o é o
cartaz de divulgação do Círio de Nazaré em Belém do Pará. Com o presente
trabalho pretendo aprofundar esta reflexão que iniciei em minha dissertação de
mestrado tomando a religiosidade do povo paraense como objeto para entender a
sua interação humana e sua religião. A mística como relação íntima com o sagrado
que na religiosidade popular expressa aspectos importantes do carisma segundo as
análises de Weber são fundamentais para entender as sociedades modernas,
aproveitei o momento para refletir sobre a identidade do paraense, ou “caboclo”, que
expressa sua devoção e a divulga nos cartazes do Círio. Esta experiência do
sagrado é contextualizada na mística das aparições marianas que é um fenômeno
da religiosidade popular que conjuga catolicismo lusitano e imaginário amazônico
que forjam uma visão de mundo peculiar da região amazônica.
Palavras-chave: Imaginário, identidade, catolicismo.
Introdução O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma importante procissão que
acontece desde 1793, todo segundo domingo de outubro em Belém, capital do
estado do Pará. Tal manifestação religiosa iniciou-se do achado de uma imagem da
Virgem de Nazaré por Plácido José de Souza em 1700. Achado de imagem de Maria
é, segundo Steil (2003), uma modalidade de aparição mariana, com efeito, as
aparições são um fato de longa duração, não somente pela sua permanência
cronológica, mas pela sua estrutura que evoluiu ao ritmo do tempo. Tal fenômeno
atravessou diversas épocas, passou por transformações, e conseguiu adaptar-se às
1 Doutorando em Ciências Sociais e Antropologia na Universidade Federal do Pará. E-mail:
variações históricas organizando-se em símbolos, místicas e rituais, conservando
elementos da tradição aparicionista cristã e elementos específicos de cada cultura
onde Maria se manifestou.
Nesse sentido, o Círio de Nazaré é uma manifestação da mística das
aparições, pois a procissão expressa vários significados do fenômeno religioso,
como mostra Maués (2013: 122):
A peregrinação ou romaria é também sacrifício de consagração à divindade. Tanto no
caso do protestante, que segue seu caminho metafórico imbuído de comportamento
ascético, quanto no do peregrino o romeiro católico (cuja caminhada é literal, com esforço
físico que o conduz a pequenas ou grandes distâncias, como ou sem asceticismo ou
misticismo aparente), assim como no do peregrino tupi-guarani, ou mulçumano, hindu,
budista, ou pertencente a qualquer outra forma de religião, culto ou igreja. Porém, como
em todos os casos de sacrifício, não se deve pensar somente em sofrimento – que é real
na peregrinação ou romaria –, mas também em alegria, comportamento folgazão e
prazeroso, mesmo daquele que carrega a cruz de cristo ou que leva a imagem peregrina
(várias formas de cruzes ou imagens).
Assim, o Círio com os inúmeros elementos que o compõem, entre eles o
cartaz, aponta para aquilo que Weber (1999) chama de influências religiosas no
desenvolvimento das sociedades, como por exemplo, de um ethos econômico,
essenciais para a compreensão da própria sociedade. Entre essas influências
Weber destaca a mística que pode exprimir-se na autodisciplina ascética, como na
mística protestante ou levar em romaria uma imagem peregrina como vimos no texto
acima. Em ambos os casos o carisma está presente, a mística então se configura
como a relação pessoal e coletiva com o sobrenatural. Mallimaci (1987: 54, tradução
minha) mostra a mística, lendo Troelstch, como a “interiorização e a imediatização
do universo, das ideias fossilizadas sob a forma de dogmas e cultos, no sentido de
uma posse verdadeiramente pessoal e íntima”. Em sentido weberiano Maués
(2013:3) mostra como o carisma se manifesta em senso amplo como na igreja, na
seita, e fortemente na mística,
[...] mas não necessariamente em um líder que conduza intensamente seus seguidores,
pois aqui a relação com a entidade sobrenatural é de grande proximidade, a ponto de
muitas vezes até mesmo prescindir de liderança humana forte ou carismática, já que nem
sempre se manifesta através de alguma forma de organização. Por isso, mais importante
ainda, neste terceiro tipo ideal, não se trata necessariamente de criar nova denominação
(seja seita ou igreja) independente, pois ela pode estar presente dentro de seitas ou –
principalmente – de igrejas, implicando até mesmo no trânsito sem necessariamente um
compromisso mais firme entre igrejas e seitas diferentes.
A análise weberiana é importante pois possibilita perceber a relação entre a
racionalização moderna ocidental e mística cristã tecida numa longa tradição como a
popular devoção a Maria que continua produzindo significado, não obstante, o novo
e hostil contexto que a modernidade possibilitou. Mallimati (1987) fala de três tipos
de estruturas cristãs, a saber, a igreja, seita e a mística, esta ultima desenvolveu-se
ao longo dos séculos assumindo diversas formas e utilizando-se de diversos
instrumentos e objetos. Ao analisar a mística cristã, nomeada pelos próprios cristãos
de “espiritualidade”, percebo que ela tem duas fontes a igreja oficial e a religiosidade
popular. A primeira é estruturada em ações rituais cuidadosamente elaboradas,
onde os cultos são descritos, regidos e executados de acordo com livros que os
regulam, é a sagrada liturgia da igreja. Os livros litúrgicos são elaborados por
comissões eclesiásticas especializadas e são importantes porque funcionam como
normas do culto. A segunda fonte da mística cristã é a religiosidade popular que tem
nos místicos seus principais atores, Mallimaci (1987: 56) ao falar do culto faz a
seguinte distinção: igreja: forma rígida, ritos, funções precisas; seita:
espontaneidade, intensidade, não diferencia funções e os místicos: não tem culto ou
é espontâneo. A principal característica dos místicos é trabalhar a espiritualidade
interior, as formas de culto e os elementos simbólicos que daí nascem têm uma
relação quase sempre conflituosa com norma do culto oficial, mas é enganoso
pensar que norma eclesiástica e religiosidade popular sejam em tudo antagônicas,
ambas, apesar do conflito, no sentido amplo da mística cristã são complementares.
A experiência íntima com o sagrado do místico católico dá ao leigo um papel
de protagonista em sua comunidade de fé competindo em importância com a
hierarquia da igreja, como o caso de são Francisco de Assis que tornou-se um
grande reformador da igreja e o índio Juan Diego Cuauhtlatoatzin vidente de Nossa
Senhora de Guadalupe no México canonizado por João Paulo II em 2002, visto que,
Guadalupe é a maior devoção do povo mexicano. Estes e outros místicos leigos de
grande relevância no cristianismo muito o influenciaram determinando a sua própria
forma, culto, orações e aquilo que ele tem de mais interior que é a sua
espiritualidade. Por isso, posso perceber o grande interesse de Weber pela religião.
Segundo Mariz (2003: 74-75):
A religião interessa a Weber na medida em que ela é capaz de formar atitudes e
disposições para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida ou para criar novos. A
importância dada por Weber para a subjetividade e intencionalidades dos atores sociais
nos ajuda, portanto, a entender sua dedicação ao estudo da religião.
Podemos dizer que ao influenciar o cristianismo os místicos não somente
ajudaram a determinar o estilo de vida ocidental como ajudaram a criar novos, como
se vê acima. A subjetividade e intencionalidade dos atores sociais religiosos são
importantes para Weber porque produzem ação dando-lhe sentido e plausibilidade
que permitem entender as disposições dos indivíduos sob o ponto de vista mais
amplo que é o da intersubjetividade. A autonomia das sociedades de produzir seus
valores que as caracterizam provém de todos esses fatores onde a mítica, mais do
que latente, se mostra, pelos estudos de Weber, como uma de suas forças mais
ativas.
Assim, a religião é um dos fatores que influenciaram a construção das
identidades das sociedades modernas e dos regionalismos visto que uma das
características de tais sociedades é a organização em torno de símbolos religiosos
especialmente no Brasil onde muitas cidades importantes foram fundadas por
missionários acentuando ainda mais a importância da religião. Pensar na identidade
de uma sociedade a partir do papel religioso me leva, como mostra Pace (1990: 313-
314), a pensar na ideia de consenso interiorizado de Parsons na linha de Durkheim
e Weber sem o qual um sistema não pode existir, no sentido em que “a religião é
fonte da consciência coletiva da unidade do sistema, acima das diferenciações que
envolvem [...]. Neste sentido, ela cumpre fundamentalmente uma função integrativa
do sistema social”.
1 A mística do cartaz: entre o tecnológico e o tradicional
O cartaz do Círio de Nossa Senhora de Nazaré é um pôster de divulgação da
festa, situa-se no âmbito do catolicismo popular brasileiro que se expressa em
símbolos, ritos e preces fruto da espontaneidade popular. A cada ano a confecção
do cartaz é confiada a uma empresa publicitária que usa os mais modernos meios
de produção. São feitos vários cartazes inspirados no tema do Círio, o cartaz é
escolhido por votação entre os membros da Diretoria da Festa2, que são leigos, e
pelo clero responsável pelo Círio. A elaboração dos cartazes é um processo que
“deve ser simpático” a todos, como me disse um informante membro da Diretoria.
Assim, o cartaz tem função de conciliadora. Este processo de elaboração é
intencional, teleológico, sentimental, imaginário, artístico e artesanal, parecido com a
produção de um signo, como descreveu Croatto (2010: 97-99), pelo seu caráter
convencional e arbitrário de expressar algo conhecido, que precisa ser explicado e
experimentado que segue uma relação de “causa e efeito”, mas que pode converter-
se em símbolo.
O cartaz gira na órbita do símbolo principal do Círio que é Nossa Senhora de
Nazaré. A simbologia de Maria configura-se como elemento central e universal da
devoção, oficial e popular. Assim, Maria é o símbolo mais importante do evento,
aquela unidade simbólica que Turner (2005: 50) chama de “símbolo sênior”, ou
“dominante”, “que com maior importância, se referem a valores que são
considerados fins em si mesmos, quer dizer, a valores axiomáticos”.
Outro aspecto da imagem da Virgem de Nazaré enquanto símbolo dominante
é a quantidade de símbolo e rituais que nasceram em torno dela, o que Turner
(2005: 63) chama de “símbolos instrumentais” que compõe um sistema total de
símbolos de um ritual, cada símbolo instrumental tem uma teleologia própria e
funciona como meios para atingir propósitos. Assim como a dança das mulheres
ndembo o cartaz gera ação, visa objetivos e intenções em um processo ritual que
converge para Maria, a santa peregrina.
2 O primeiro Círio de Nazaré aconteceu em 1793 e foi organizado pelo Capitão Geral Dom Francisco de Souza
Coutinho, encargo que posteriormente foi confiado às irmandades para planejar, organizar e realizar a festa que
envolve celebrações litúrgicas, romarias, festa social, etc. A Irmandade de Nossa Senhora de Nazaré do Desterro
foi a primeira a assumir este trabalho. Em 1910 a Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré instituiu a Diretoria da
Festa para substituir as irmandades.
O cartaz do Círio nasceu com o objetivo de divulgar a festa, não se sabe ao
certo quando foi impresso o primeiro, especulações apontam o ano de 1882. Apesar
disso, o cartaz mais antigo que se tem notícia é o de 1901 (Figura 1). Em meados do
século XIX a expansão industrial deu vida à “era da reprodutibilidade técnica”, assim
como a fotografia e o cinema conseguiram espaço na esfera da arte após muitas
controvérsias, o cartaz, um produto tecnológico, conseguiu também espaço na
religião acompanhando o processo sócio-histórico, pois extrapola os objetivos de
marketing da festa a ponto de tornar-se objeto de culto ao reproduzir imagens
sacras. Com o desenvolvimento da tecnologia da informação e dos mass media, do
qual a festa do Círio não ficou de fora como mostrou Alves (2002), que a divulgação
do Círio acompanhou toda esta evolução da informação ao ponto de sua
transmissão,
[...] ser exibida pela TV Nazaré simultaneamente pela internet. A rede mundial de
computadores vai proporcionar, virtualmente, o acesso de todos ao Círio, rompendo-se a
Figura 1 - Cartaz de 1901. Fonte:http://www.or m.com.br/projetos/galeria/fotos/1259/index. asp. Acesso em: 14 jan. 2015.
restrição geográfica colocada pelo texto do anúncio da primeira transmissão da TV
Marajoara, em 1961, quando a televivência do Círio foi pela primeira vez garantida, mas
apenas a todos os que aqui moram. O material publicitário da transmissão de 1998
anuncia a globalização da festa: Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, poderá
assistir ao Círio pelo site da TV Liberal. (ALVES, 2002: 148).
No entanto, o cartaz não perdeu sua importância, come disse-me um membro
da Diretoria da Festa que o cartaz é a maior peça publicitária do Círio, pois ele
penetra em todos os ambientes, casas, órgãos públicos, veículos, embarcações,
empresas, comércios, são enviados a devotos distantes que vivem em outras
cidades, estado e até mesmo outros países, uma vez que são formas de divulgação
e de fé. A diretoria da festa distribui 900 mil unidades, mas somados com as cópias
não autorizadas a quantidade ultrapassa um milhão de cartazes. Com o objetivo de
ampliar a divulgação, a apresentação do cartaz, que acontece em uma celebração
solene na Basílica Santuário de Nazaré que foi antecipada de setembro para maio,
que é o mês mariano para os católicos.
O cartaz, lentamente, tornou-se objeto sacro, pois muitos fiéis não mais o
descartam, os emolduram para guardá-lo como relíquia ou “lembrança”, isto mostra
a sua progressiva aquisição de valor simbólico. Por isso, posso dizer que o cartaz,
como afirma Turner (2005: 63) sobre os símbolos instrumentais é um “modo de
relacionar-se como o símbolo”.
E importante perceber essa relação do cartaz com o símbolo dominante da
devoção que é Maria enquanto mãe que em Belém é venerada com o título de
Nossa Senhora de Nazaré que como mostra Maués (2013: 125),
[...] é santa peregrina. No mito de origem da devoção, isso se expressa claramente. A
imagem foi esculpida por São José, tendo como modelo a própria virgem, com seu filho ao
colo e “encarnada” (pintada) por São Lucas. Tempos depois, chegou às mãos de São
Jerônimo (na Terra Santa) e de Santo Agostinho (no norte da África), que doou a um
convento da Península Ibérica. Muito depois, peregrinou novamente nas mãos do monge
Romano e do rei Rodrigo, dos visigodos, derrotados pelos mouros na Batalha de
Guadalete (ano de 711). Na fuga empreendida pelo rei, foi escondida em uma gruta, tendo
ficado perdida por séculos até ser achada por pastores, próximo à povoação de Nazaré,
no litoral português. Seu culto tornou-se muito importante em Portugal nos séculos XVII e
XVIII, a partir da maior divulgação do famoso milagre de D. Fuas Roupinho, fidalgo salvo
de cair em abismo por intercessão da Santa.
O culto foi trazido para o Brasil e para a Amazônia ainda no século XVII e se estabeleceu
no Pará inicialmente na povoação que veio a se chamar mais tarde de Vila de Nossa
Senhora de Nazaré da Vigia. Algum tempo depois, a Santa teria sido também encontrada
nas cercanias de Belém, por um roceiro chamado Plácido José de Souza, no ano de 1700,
dando origem à devoção que, quase cem anos depois desse achado, resultou na
realização do primeiro Círio de Nazaré, em 1793 [...]. Hoje, mais de duzentos anos depois
do primeiro Círio, a Santa não mais deixou de “peregrinar” pela cidade, na chamada
Trasladação (véspera do acontecimento principal) e no Círio propriamente dito, que,
segundo cálculos recentes, reúne, numa única manhã, mais de dois milhões de pessoas.
Bem mais recentemente, porém, iniciaram-se novas formas de peregrinação da Santa
pelos bairros da cidade, precedendo e “preparando” a festa maior da grande romaria do
Círio e da Festa de Nazaré.
As peregrinações da santa não param de se expandir, hoje ela peregrina além
da região metropolitana de Belém, vai a outras cidades do Pará e também em outros
estados do Brasil. A peregrinação de Nossa Senhora de Nazaré tem algo particular
como mostra Ximemes Ponte (2011: 12),
Diferente do que indica o próprio nome “Peregrinação”, que é definido [...] como uma
viagem feita por um peregrino a um local sagrado: seja para cumprir promessa, ou buscar
benção. Nesta peregrinação, quem se desloca é a santa, ela é a peregrina. Ela é que
torna cada lar sagrado, um lugar de seu pouso e distribuição de bênçãos e dádivas.
São milhares de imagens – 5,5 mil em 2010 – de Nossa Senhora de Nazaré que
peregrinam [...].
Deste modo, o cartaz que trás sempre em primeiro plano a Imagem Peregrina
tem a função de continuar a peregrinação da santa, que inverte a lógica do
peregrino, pois é ela quem leva ao devoto aquilo que ele normalmente busca como
peregrino, ou seja, “pelo seu ideário de transformação interior e aperfeiçoamento
pessoal” (STEIL; CARNEIRO, 2008: 107) entre outros motivos. Os milhares de
cartazes que são distribuídos percorrem durante todo o ano o Brasil e o mundo não
somente divulgando a o Círio, mas transmitindo a mensagem de fé da mística
mariana. Dessa forma, a devoção e a peregrinação da santa tem um alcance
transnacional.
2 O cartaz do círio: expressão de identidade de um povo
Oscilando entre o regional e o universal, entre o popular e o oficial o cartaz
adquire significado e valor, isto acontece, por outro processo, o da construção
coletiva da devoção, que altera, reinterpreta e produz novos significados e novos
objetos simbólicos. Deste modo, o fenômeno aparicionista se reconstrói em um novo
contexto, se expressa em gestos, objetos e imagens que levam os fiéis a uma
relação com o sagrado constituindo uma nova experiência do fenômeno.
O cartaz do Círio passou por um processo de regionalização, processo
composto pelo imaginário do caboclo amazônico e pelo catolicismo popular e oficial,
elementos presentes neles. O processo de regionalização dos cartazes começou no
início da década de 1990, quando começou a retratar aspectos da religiosidade
Figura 2 - Cartaz de 1909 Fonte: https://edenice.files.wordpress.com/20 09/12/cartaz-19091.jpg. Acesso em: 04 mar. 2015.
Figura 3 - Cartaz de 1924 Fonte: http://www.orm.com.br/projetos/galeri a/fotos/1259/index.asp. Acesso em: 14 jan.
2015.
popular, até então os símbolos usados eram do catolicismo oficial, estas são as
fontes da mística presente nos cartazes nos quais percebe-se a espontaneidade da
mística popular, a tradição mística da igreja católica e o imaginário local. Assim, o
cartaz tem a função de harmonizar estes segmentos do catolicismo sob o manto de
Maria.
Com isso os primeiros cartazes retratavam aspectos do mito fundador da
devoção ressaltando o poder milagroso da de Nossa senhora de Nazaré como se vê
nos cartazes de 1909 e 1924 (Figura 2 e 3).
O processo de regionalização dos cartazes começou no início da década de
1990, quando começou a retratar aspectos da religiosidade popular, até então os
símbolos usados eram do catolicismo oficial. Isto é observável no cartaz de 1990
(Figura 4) que coloca a imagem da santa no meio do “mar de gente” que acompanha
o Círio. Desde então, segundo meu informane, começou a ser usada a imagem
Figura 4 - Cartaz de 1990. Tema: Festa de todos os irmãos. Fonte: http://www.orm.com.br/projetos/galeria/ fotos/1259/index.asp. Acesso em: 04 mar. 2015.
Figura 5 - Cartaz de 2007. Tema: Com a Rainha da Amazônia, formemos comunidades missionárias. Fonte: http://www.ciriodenazare.com.br/portal /cartazes.php. Acesso em: 16 jan. 2015.
peregrina em primeiro plano nos cartazes e que essa decisão tornou-se regra há
alguns anos, segundo ele, a imagem peregrina tem uma identificação maior com a
população, pois se trata de uma santa jovem, que se parece como o povo ao
contrário da imagem original3 que é uma senhora. No cartaz de 2007 (Figura 5)
percebe-se essa ideia, a imagem peregrina colocada no meio de uma paisagem
típica do lugar, em meio à Vitória Régia, com sua coroa reluzente a santa é colocada
como rainha da Amazônia.
Em se projeto pastoral a Igreja tomou a devoção mariana como um poderoso
instrumento de evangelização que demarcou a religião e a cultura amazônica. Nossa
senhora de Nazaré tornou-se a padroeira dos paraenses, a região amazônica
começou a estruturar características regionais próprias distinguindo-se das outras
regiões do Brasil, “N. Sra. de Nazaré, em Belém do Pará, centraliza as atenções no
Norte”, como afirmou Rubem César Fernandes (FERNANDES, 1988: 88). A devoção
ajudou estruturar uma identidade regional peculiar que se expressa em objetos
como o cartaz do Círio que através de sua visualidade oferece uma percepção da
interação social, pois o objetivo do cartaz, além de divulgar o Círio, é fazer com que
os devotos neles reconheçam sua fé e região, ou seja, que se reconheçam a si
mesmo.
3 A “Imagem Autêntica” ou “Imagem do Achado”, encontrada por Plácido em 1700, esculpida em madeira mede
28 centímetros, está exposta no “Glória” da Basílica Santuário de Nazaré. A “santa de feições portuguesas,
vestida de escarlate e azul, sustentando nos braços um menino a brincar com um globo terrestre, é uma cópia fiel
da imagem venerada em Portugal. Além da Imagem autêntica existe a “Imagem Peregrina” usada a partir de
1969 nas procissões por motivos de segurança, durante o ano fica na sacristia da Basílica.
Olhar para os cartazes do Círio é olhar para a identidade plural da sociedade
amazônica, identidade formada pela mestiçagem, produto europeu, indígena e
africano, que deu origem ao caboclo amazônico, homem típico do lugar. O caboclo
demarca um espaço geográfico de identidade cultural. Tal identidade é formada pela
pluralidade que é um aspecto típico das sociedades estruturadas na modernidade
que forjam uma ideia de identidade, diferente das sociedades tradicionais. Sobre a
ideia de identidade Hall (2006: 17-18), diz o seguinte:
As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela “diferença”;
elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma
variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos. Se
tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas
porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser
conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da
identidade permanece aberta. Sem isso, argumenta Laclau, não haveria nenhuma história
[...].
Figura 6 - Cartaz de 2011. Tema: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Fonte: http://www.ciriodenazare.com.br/portal /cartazes.php. Acesso em: 16 jan. 2015.
Figura 7 - Cartaz de 2015. Tema: Maria, Mulher Eucarística. Fonte: http://www.ciriodenazare.com.br/porta l/cartazes.php. Acesso em: 16 jul. 2015.
Ele desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre a possibilidades de
novas articulações: criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos e o que
ele chama de “recomposição da estrutura em tono de pontos nodais particulares de
articulação”.
São essas divisões e antagonismos sociais que estão presentes na
mestiçagem, que na Amazônia produziu a identidade cabocla, que marca uma certa
posição do sujeito. O caboclo foi uma invenção que formou uma identidade aberta,
ou seja, neste caso, ao mesmo tempo em que o caboclo define a todos, não define
ninguém, pois é produto da mestiçagem uma classificação social de inferioridade. O
termo caboclo pode agradar ou desagradar, como diz Hall (2006: 19), segundo “o
jogo das identidades”.
Um bom exemplo é o cartaz de 2011 (Figura 6) que tentou mostrar a
composição do povo paraense. O objetivo de seus idealizadores era promover ainda
mais a identificação dos devotos fazendo-os participar ativamente da confecção do
cartaz, em forma de um mosaico de rostos. Para isso, foi lançada uma campanha
em que se podiam enviar fotos respondendo à pergunta: porque você quer sua foto
no cartaz? As melhores respostas eram selecionadas. Segundo um membro da
diretoria da festa tal cartaz não foi bem recebido pelos devotos. Uma hipótese do
insucesso do cartaz de 2011 é que ele expressou mais a identidade nacional, pois o
Brasil é um país formado de muitos rostos, que a identidade paraense que tem como
estereótipo o “caboclo”. Outra hipótese é que pela simbologia étnica pejorativa do
termo, como afirma Motta Maués (MAUÉS, M., 1989: 203), ninguém quer ser
identificado como o caboclo, ou com as ‘coisas de caboclo’ – a chamada “caboclice”.
Portanto, o caboclo é uma identidade construída para o homem amazônico, mas
rejeitada por ele próprio, produto de uma elite intelectual movida pela crença da
superioridade do branco, fruto da ideologia racista. No entanto essa identidade
mestiça não é totalmente negada, isto acontece ou não, como disse Hall (2006: 18),
depende de “uma situação concreta e do que está ‘em jogo’ nessas contestadas
definições de identidade e mudança”. O cartaz de 2011 anulou a hierarquia social ao
nivelar todos os rostos como uma única massa de devotos, pois dependendo da
situação a identidade cabocla pode ser aceita ou não como “termo de auto-
designação” como disse Lima (1999: 11).
O cartaz de 2015 (Figura 7) é centrado no tema do Círio: “Maria, Mulher
Eucarística”. Da Imagem Peregrina resplandece raios de “fitinhas” que dão a ideia
de um ostensório para expressar Maria como Eucaristia, onde é fácil perceber
elementos da religiosidade popular. Tais elementos que fazem dos cartazes um
modo de perceber as peculiaridades do povo paraense, longe de serem uma
interpretação subjetiva eles comunicam através da representação e da imagem a
forma da cultura amazônica.
3 Considerações finais
Para concluir esta reflexão sobre como o cartaz do Círio consegue exprimir
através da religiosidade popular a relação com o sagrado ao mesmo tempo em que
mostra aspectos característicos das sociedades modernas, como a reprodutibilidade
técnica, e sua relação com o tradicional, como as festas de santo, basta pensar no
modelo peculiar de peregrinação que nasceu da devoção a N. S. de Nazaré, ou seja,
uma santa que peregrina ora sob a forma de imagem, ora sob a forma de cartazes.
Isto é indício do imaginário sedimentado sobre a santa que “foge” como em seu mito
fundador que fugiu da casa de Plácido, como do palácio do governador. Narrativas
semelhantes de santos que caminham ainda podem ser ouvidas no interior do
estado, santos que ao amanhecer estão com os pés sujos, indícios de suas
“caminhadas”. Em uma metrópole moderna como Belém este imaginário continua
presente, mudando somente os meios de peregrinação, não mais os caminhos
enlameados, mas os caminhos da tecnologia da informação como a televisão, o
rádio, a internet, a impressa escrita, o marketing e também os cartazes. A
peregrinação utiliza-se desses meios harmonizando modernidade tecnológica e
devoção popular.
Referências
ALVES, Regina. Círio de Nazaré: Da taba marajoara à aldeia global. 2002. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Universidade federal do Pará / Universidade Federal da Bahia. Belém, 2002. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2010. FERNANDES, Rubem César. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá!. In: SANCHS, Viola et al. Brasil & EUA: religião e identidade Nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LIMA, Deborah de Magalhães. A construção histórica do termo caboclo. Novos cadernos NAEA. Belém, v.2, n.2, dez. 1999. MAUÉS, Maria Angélica Motta. A questão étnica: índios, brancos, negros e caboclos. In: Estudos e problemas amazônicos. Belém, Ideso/Seduc, 1989. p. 195-204. MAUÉS, Raymundo Heraldo. A Mãe e o Filho como peregrinos: dois modelos de peregrinação católica no Brasil. Religião e sociedade. Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, 2013. p. 121-140. Disponível em: www.scielo.br/pdf/rs/v33n2/07.pdf. Acesso em: 30 mar. 2015. _____ A mística em algumas formas de manifestações religiosas. Trabalho apresentado durante as XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, Porto Alegre, de 11 a 14/11/2013. MALLIMACI, Fortunato. Ernest Troelstch y la Sociología Histórica del Cristianismo. Sociedad e Religión. n. 4, 1987. p.1-22. (CdRom). MARIZ, Cecília Loreto. A sociologia da religião de Max Weber. In TEXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religão: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 67-93. PACE, Enzo. Sociedade complexa e religião. In: FERRAROTTI, Franco; et al. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1990. p. 301-323. STEIL, Carlos Alberto (Org.). Maria entre os vivos: reflexões teóricas e etnográficas sobre aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. STEIL, Carlos Alberto; CARNEIRO, Sandra de Sá. Peregrinação, turismo e Nova Era: caminhos de Santiago de Compostela no Brasil. Religião e sociedade. n. 28, v. 1, 2008. p. 105-124.
TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2005. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999. XIMENES PONTE, Mariana Pamplona. No primeiro, ela dorme, no segundo a gente reza: etnografia de um grupo de peregrinação de Nazaré no bairro do Umarizal em Belém – PA. 2011. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Pará. Belém, 2011.