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Os cartazes do Círio de N. S. de Nazaré: mística e identidade de um povo José Maria Guimarães Ramos 1 Resumo Neste artigo trato da mística e da identidade do devoto de Nossa Senhora de Nazaré, a santa peregrina, analisando um de seus importantes elementos que o é o cartaz de divulgação do Círio de Nazaré em Belém do Pará. Com o presente trabalho pretendo aprofundar esta reflexão que iniciei em minha dissertação de mestrado tomando a religiosidade do povo paraense como objeto para entender a sua interação humana e sua religião. A mística como relação íntima com o sagrado que na religiosidade popular expressa aspectos importantes do carisma segundo as análises de Weber são fundamentais para entender as sociedades modernas, aproveitei o momento para refletir sobre a identidade do paraense, ou “caboclo”, que expressa sua devoção e a divulga nos cartazes do Círio. Esta experiência do sagrado é contextualizada na mística das aparições marianas que é um fenômeno da religiosidade popular que conjuga catolicismo lusitano e imaginário amazônico que forjam uma visão de mundo peculiar da região amazônica. Palavras-chave: Imaginário, identidade, catolicismo. Introdução O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma importante procissão que acontece desde 1793, todo segundo domingo de outubro em Belém, capital do estado do Pará. Tal manifestação religiosa iniciou-se do achado de uma imagem da Virgem de Nazaré por Plácido José de Souza em 1700. Achado de imagem de Maria é, segundo Steil (2003), uma modalidade de aparição mariana, com efeito, as aparições são um fato de longa duração, não somente pela sua permanência cronológica, mas pela sua estrutura que evoluiu ao ritmo do tempo. Tal fenômeno atravessou diversas épocas, passou por transformações, e conseguiu adaptar-se às 1 Doutorando em Ciências Sociais e Antropologia na Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]

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Os cartazes do Círio de N. S. de Nazaré: mística e identidade de um povo

José Maria Guimarães Ramos1 Resumo

Neste artigo trato da mística e da identidade do devoto de Nossa Senhora de

Nazaré, a santa peregrina, analisando um de seus importantes elementos que o é o

cartaz de divulgação do Círio de Nazaré em Belém do Pará. Com o presente

trabalho pretendo aprofundar esta reflexão que iniciei em minha dissertação de

mestrado tomando a religiosidade do povo paraense como objeto para entender a

sua interação humana e sua religião. A mística como relação íntima com o sagrado

que na religiosidade popular expressa aspectos importantes do carisma segundo as

análises de Weber são fundamentais para entender as sociedades modernas,

aproveitei o momento para refletir sobre a identidade do paraense, ou “caboclo”, que

expressa sua devoção e a divulga nos cartazes do Círio. Esta experiência do

sagrado é contextualizada na mística das aparições marianas que é um fenômeno

da religiosidade popular que conjuga catolicismo lusitano e imaginário amazônico

que forjam uma visão de mundo peculiar da região amazônica.

Palavras-chave: Imaginário, identidade, catolicismo.

Introdução O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma importante procissão que

acontece desde 1793, todo segundo domingo de outubro em Belém, capital do

estado do Pará. Tal manifestação religiosa iniciou-se do achado de uma imagem da

Virgem de Nazaré por Plácido José de Souza em 1700. Achado de imagem de Maria

é, segundo Steil (2003), uma modalidade de aparição mariana, com efeito, as

aparições são um fato de longa duração, não somente pela sua permanência

cronológica, mas pela sua estrutura que evoluiu ao ritmo do tempo. Tal fenômeno

atravessou diversas épocas, passou por transformações, e conseguiu adaptar-se às

1 Doutorando em Ciências Sociais e Antropologia na Universidade Federal do Pará. E-mail:

[email protected]

variações históricas organizando-se em símbolos, místicas e rituais, conservando

elementos da tradição aparicionista cristã e elementos específicos de cada cultura

onde Maria se manifestou.

Nesse sentido, o Círio de Nazaré é uma manifestação da mística das

aparições, pois a procissão expressa vários significados do fenômeno religioso,

como mostra Maués (2013: 122):

A peregrinação ou romaria é também sacrifício de consagração à divindade. Tanto no

caso do protestante, que segue seu caminho metafórico imbuído de comportamento

ascético, quanto no do peregrino o romeiro católico (cuja caminhada é literal, com esforço

físico que o conduz a pequenas ou grandes distâncias, como ou sem asceticismo ou

misticismo aparente), assim como no do peregrino tupi-guarani, ou mulçumano, hindu,

budista, ou pertencente a qualquer outra forma de religião, culto ou igreja. Porém, como

em todos os casos de sacrifício, não se deve pensar somente em sofrimento – que é real

na peregrinação ou romaria –, mas também em alegria, comportamento folgazão e

prazeroso, mesmo daquele que carrega a cruz de cristo ou que leva a imagem peregrina

(várias formas de cruzes ou imagens).

Assim, o Círio com os inúmeros elementos que o compõem, entre eles o

cartaz, aponta para aquilo que Weber (1999) chama de influências religiosas no

desenvolvimento das sociedades, como por exemplo, de um ethos econômico,

essenciais para a compreensão da própria sociedade. Entre essas influências

Weber destaca a mística que pode exprimir-se na autodisciplina ascética, como na

mística protestante ou levar em romaria uma imagem peregrina como vimos no texto

acima. Em ambos os casos o carisma está presente, a mística então se configura

como a relação pessoal e coletiva com o sobrenatural. Mallimaci (1987: 54, tradução

minha) mostra a mística, lendo Troelstch, como a “interiorização e a imediatização

do universo, das ideias fossilizadas sob a forma de dogmas e cultos, no sentido de

uma posse verdadeiramente pessoal e íntima”. Em sentido weberiano Maués

(2013:3) mostra como o carisma se manifesta em senso amplo como na igreja, na

seita, e fortemente na mística,

[...] mas não necessariamente em um líder que conduza intensamente seus seguidores,

pois aqui a relação com a entidade sobrenatural é de grande proximidade, a ponto de

muitas vezes até mesmo prescindir de liderança humana forte ou carismática, já que nem

sempre se manifesta através de alguma forma de organização. Por isso, mais importante

ainda, neste terceiro tipo ideal, não se trata necessariamente de criar nova denominação

(seja seita ou igreja) independente, pois ela pode estar presente dentro de seitas ou –

principalmente – de igrejas, implicando até mesmo no trânsito sem necessariamente um

compromisso mais firme entre igrejas e seitas diferentes.

A análise weberiana é importante pois possibilita perceber a relação entre a

racionalização moderna ocidental e mística cristã tecida numa longa tradição como a

popular devoção a Maria que continua produzindo significado, não obstante, o novo

e hostil contexto que a modernidade possibilitou. Mallimati (1987) fala de três tipos

de estruturas cristãs, a saber, a igreja, seita e a mística, esta ultima desenvolveu-se

ao longo dos séculos assumindo diversas formas e utilizando-se de diversos

instrumentos e objetos. Ao analisar a mística cristã, nomeada pelos próprios cristãos

de “espiritualidade”, percebo que ela tem duas fontes a igreja oficial e a religiosidade

popular. A primeira é estruturada em ações rituais cuidadosamente elaboradas,

onde os cultos são descritos, regidos e executados de acordo com livros que os

regulam, é a sagrada liturgia da igreja. Os livros litúrgicos são elaborados por

comissões eclesiásticas especializadas e são importantes porque funcionam como

normas do culto. A segunda fonte da mística cristã é a religiosidade popular que tem

nos místicos seus principais atores, Mallimaci (1987: 56) ao falar do culto faz a

seguinte distinção: igreja: forma rígida, ritos, funções precisas; seita:

espontaneidade, intensidade, não diferencia funções e os místicos: não tem culto ou

é espontâneo. A principal característica dos místicos é trabalhar a espiritualidade

interior, as formas de culto e os elementos simbólicos que daí nascem têm uma

relação quase sempre conflituosa com norma do culto oficial, mas é enganoso

pensar que norma eclesiástica e religiosidade popular sejam em tudo antagônicas,

ambas, apesar do conflito, no sentido amplo da mística cristã são complementares.

A experiência íntima com o sagrado do místico católico dá ao leigo um papel

de protagonista em sua comunidade de fé competindo em importância com a

hierarquia da igreja, como o caso de são Francisco de Assis que tornou-se um

grande reformador da igreja e o índio Juan Diego Cuauhtlatoatzin vidente de Nossa

Senhora de Guadalupe no México canonizado por João Paulo II em 2002, visto que,

Guadalupe é a maior devoção do povo mexicano. Estes e outros místicos leigos de

grande relevância no cristianismo muito o influenciaram determinando a sua própria

forma, culto, orações e aquilo que ele tem de mais interior que é a sua

espiritualidade. Por isso, posso perceber o grande interesse de Weber pela religião.

Segundo Mariz (2003: 74-75):

A religião interessa a Weber na medida em que ela é capaz de formar atitudes e

disposições para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida ou para criar novos. A

importância dada por Weber para a subjetividade e intencionalidades dos atores sociais

nos ajuda, portanto, a entender sua dedicação ao estudo da religião.

Podemos dizer que ao influenciar o cristianismo os místicos não somente

ajudaram a determinar o estilo de vida ocidental como ajudaram a criar novos, como

se vê acima. A subjetividade e intencionalidade dos atores sociais religiosos são

importantes para Weber porque produzem ação dando-lhe sentido e plausibilidade

que permitem entender as disposições dos indivíduos sob o ponto de vista mais

amplo que é o da intersubjetividade. A autonomia das sociedades de produzir seus

valores que as caracterizam provém de todos esses fatores onde a mítica, mais do

que latente, se mostra, pelos estudos de Weber, como uma de suas forças mais

ativas.

Assim, a religião é um dos fatores que influenciaram a construção das

identidades das sociedades modernas e dos regionalismos visto que uma das

características de tais sociedades é a organização em torno de símbolos religiosos

especialmente no Brasil onde muitas cidades importantes foram fundadas por

missionários acentuando ainda mais a importância da religião. Pensar na identidade

de uma sociedade a partir do papel religioso me leva, como mostra Pace (1990: 313-

314), a pensar na ideia de consenso interiorizado de Parsons na linha de Durkheim

e Weber sem o qual um sistema não pode existir, no sentido em que “a religião é

fonte da consciência coletiva da unidade do sistema, acima das diferenciações que

envolvem [...]. Neste sentido, ela cumpre fundamentalmente uma função integrativa

do sistema social”.

1 A mística do cartaz: entre o tecnológico e o tradicional

O cartaz do Círio de Nossa Senhora de Nazaré é um pôster de divulgação da

festa, situa-se no âmbito do catolicismo popular brasileiro que se expressa em

símbolos, ritos e preces fruto da espontaneidade popular. A cada ano a confecção

do cartaz é confiada a uma empresa publicitária que usa os mais modernos meios

de produção. São feitos vários cartazes inspirados no tema do Círio, o cartaz é

escolhido por votação entre os membros da Diretoria da Festa2, que são leigos, e

pelo clero responsável pelo Círio. A elaboração dos cartazes é um processo que

“deve ser simpático” a todos, como me disse um informante membro da Diretoria.

Assim, o cartaz tem função de conciliadora. Este processo de elaboração é

intencional, teleológico, sentimental, imaginário, artístico e artesanal, parecido com a

produção de um signo, como descreveu Croatto (2010: 97-99), pelo seu caráter

convencional e arbitrário de expressar algo conhecido, que precisa ser explicado e

experimentado que segue uma relação de “causa e efeito”, mas que pode converter-

se em símbolo.

O cartaz gira na órbita do símbolo principal do Círio que é Nossa Senhora de

Nazaré. A simbologia de Maria configura-se como elemento central e universal da

devoção, oficial e popular. Assim, Maria é o símbolo mais importante do evento,

aquela unidade simbólica que Turner (2005: 50) chama de “símbolo sênior”, ou

“dominante”, “que com maior importância, se referem a valores que são

considerados fins em si mesmos, quer dizer, a valores axiomáticos”.

Outro aspecto da imagem da Virgem de Nazaré enquanto símbolo dominante

é a quantidade de símbolo e rituais que nasceram em torno dela, o que Turner

(2005: 63) chama de “símbolos instrumentais” que compõe um sistema total de

símbolos de um ritual, cada símbolo instrumental tem uma teleologia própria e

funciona como meios para atingir propósitos. Assim como a dança das mulheres

ndembo o cartaz gera ação, visa objetivos e intenções em um processo ritual que

converge para Maria, a santa peregrina.

2 O primeiro Círio de Nazaré aconteceu em 1793 e foi organizado pelo Capitão Geral Dom Francisco de Souza

Coutinho, encargo que posteriormente foi confiado às irmandades para planejar, organizar e realizar a festa que

envolve celebrações litúrgicas, romarias, festa social, etc. A Irmandade de Nossa Senhora de Nazaré do Desterro

foi a primeira a assumir este trabalho. Em 1910 a Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré instituiu a Diretoria da

Festa para substituir as irmandades.

O cartaz do Círio nasceu com o objetivo de divulgar a festa, não se sabe ao

certo quando foi impresso o primeiro, especulações apontam o ano de 1882. Apesar

disso, o cartaz mais antigo que se tem notícia é o de 1901 (Figura 1). Em meados do

século XIX a expansão industrial deu vida à “era da reprodutibilidade técnica”, assim

como a fotografia e o cinema conseguiram espaço na esfera da arte após muitas

controvérsias, o cartaz, um produto tecnológico, conseguiu também espaço na

religião acompanhando o processo sócio-histórico, pois extrapola os objetivos de

marketing da festa a ponto de tornar-se objeto de culto ao reproduzir imagens

sacras. Com o desenvolvimento da tecnologia da informação e dos mass media, do

qual a festa do Círio não ficou de fora como mostrou Alves (2002), que a divulgação

do Círio acompanhou toda esta evolução da informação ao ponto de sua

transmissão,

[...] ser exibida pela TV Nazaré simultaneamente pela internet. A rede mundial de

computadores vai proporcionar, virtualmente, o acesso de todos ao Círio, rompendo-se a

Figura 1 - Cartaz de 1901. Fonte:http://www.or m.com.br/projetos/galeria/fotos/1259/index. asp. Acesso em: 14 jan. 2015.

restrição geográfica colocada pelo texto do anúncio da primeira transmissão da TV

Marajoara, em 1961, quando a televivência do Círio foi pela primeira vez garantida, mas

apenas a todos os que aqui moram. O material publicitário da transmissão de 1998

anuncia a globalização da festa: Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, poderá

assistir ao Círio pelo site da TV Liberal. (ALVES, 2002: 148).

No entanto, o cartaz não perdeu sua importância, come disse-me um membro

da Diretoria da Festa que o cartaz é a maior peça publicitária do Círio, pois ele

penetra em todos os ambientes, casas, órgãos públicos, veículos, embarcações,

empresas, comércios, são enviados a devotos distantes que vivem em outras

cidades, estado e até mesmo outros países, uma vez que são formas de divulgação

e de fé. A diretoria da festa distribui 900 mil unidades, mas somados com as cópias

não autorizadas a quantidade ultrapassa um milhão de cartazes. Com o objetivo de

ampliar a divulgação, a apresentação do cartaz, que acontece em uma celebração

solene na Basílica Santuário de Nazaré que foi antecipada de setembro para maio,

que é o mês mariano para os católicos.

O cartaz, lentamente, tornou-se objeto sacro, pois muitos fiéis não mais o

descartam, os emolduram para guardá-lo como relíquia ou “lembrança”, isto mostra

a sua progressiva aquisição de valor simbólico. Por isso, posso dizer que o cartaz,

como afirma Turner (2005: 63) sobre os símbolos instrumentais é um “modo de

relacionar-se como o símbolo”.

E importante perceber essa relação do cartaz com o símbolo dominante da

devoção que é Maria enquanto mãe que em Belém é venerada com o título de

Nossa Senhora de Nazaré que como mostra Maués (2013: 125),

[...] é santa peregrina. No mito de origem da devoção, isso se expressa claramente. A

imagem foi esculpida por São José, tendo como modelo a própria virgem, com seu filho ao

colo e “encarnada” (pintada) por São Lucas. Tempos depois, chegou às mãos de São

Jerônimo (na Terra Santa) e de Santo Agostinho (no norte da África), que doou a um

convento da Península Ibérica. Muito depois, peregrinou novamente nas mãos do monge

Romano e do rei Rodrigo, dos visigodos, derrotados pelos mouros na Batalha de

Guadalete (ano de 711). Na fuga empreendida pelo rei, foi escondida em uma gruta, tendo

ficado perdida por séculos até ser achada por pastores, próximo à povoação de Nazaré,

no litoral português. Seu culto tornou-se muito importante em Portugal nos séculos XVII e

XVIII, a partir da maior divulgação do famoso milagre de D. Fuas Roupinho, fidalgo salvo

de cair em abismo por intercessão da Santa.

O culto foi trazido para o Brasil e para a Amazônia ainda no século XVII e se estabeleceu

no Pará inicialmente na povoação que veio a se chamar mais tarde de Vila de Nossa

Senhora de Nazaré da Vigia. Algum tempo depois, a Santa teria sido também encontrada

nas cercanias de Belém, por um roceiro chamado Plácido José de Souza, no ano de 1700,

dando origem à devoção que, quase cem anos depois desse achado, resultou na

realização do primeiro Círio de Nazaré, em 1793 [...]. Hoje, mais de duzentos anos depois

do primeiro Círio, a Santa não mais deixou de “peregrinar” pela cidade, na chamada

Trasladação (véspera do acontecimento principal) e no Círio propriamente dito, que,

segundo cálculos recentes, reúne, numa única manhã, mais de dois milhões de pessoas.

Bem mais recentemente, porém, iniciaram-se novas formas de peregrinação da Santa

pelos bairros da cidade, precedendo e “preparando” a festa maior da grande romaria do

Círio e da Festa de Nazaré.

As peregrinações da santa não param de se expandir, hoje ela peregrina além

da região metropolitana de Belém, vai a outras cidades do Pará e também em outros

estados do Brasil. A peregrinação de Nossa Senhora de Nazaré tem algo particular

como mostra Ximemes Ponte (2011: 12),

Diferente do que indica o próprio nome “Peregrinação”, que é definido [...] como uma

viagem feita por um peregrino a um local sagrado: seja para cumprir promessa, ou buscar

benção. Nesta peregrinação, quem se desloca é a santa, ela é a peregrina. Ela é que

torna cada lar sagrado, um lugar de seu pouso e distribuição de bênçãos e dádivas.

São milhares de imagens – 5,5 mil em 2010 – de Nossa Senhora de Nazaré que

peregrinam [...].

Deste modo, o cartaz que trás sempre em primeiro plano a Imagem Peregrina

tem a função de continuar a peregrinação da santa, que inverte a lógica do

peregrino, pois é ela quem leva ao devoto aquilo que ele normalmente busca como

peregrino, ou seja, “pelo seu ideário de transformação interior e aperfeiçoamento

pessoal” (STEIL; CARNEIRO, 2008: 107) entre outros motivos. Os milhares de

cartazes que são distribuídos percorrem durante todo o ano o Brasil e o mundo não

somente divulgando a o Círio, mas transmitindo a mensagem de fé da mística

mariana. Dessa forma, a devoção e a peregrinação da santa tem um alcance

transnacional.

2 O cartaz do círio: expressão de identidade de um povo

Oscilando entre o regional e o universal, entre o popular e o oficial o cartaz

adquire significado e valor, isto acontece, por outro processo, o da construção

coletiva da devoção, que altera, reinterpreta e produz novos significados e novos

objetos simbólicos. Deste modo, o fenômeno aparicionista se reconstrói em um novo

contexto, se expressa em gestos, objetos e imagens que levam os fiéis a uma

relação com o sagrado constituindo uma nova experiência do fenômeno.

O cartaz do Círio passou por um processo de regionalização, processo

composto pelo imaginário do caboclo amazônico e pelo catolicismo popular e oficial,

elementos presentes neles. O processo de regionalização dos cartazes começou no

início da década de 1990, quando começou a retratar aspectos da religiosidade

Figura 2 - Cartaz de 1909 Fonte: https://edenice.files.wordpress.com/20 09/12/cartaz-19091.jpg. Acesso em: 04 mar. 2015.

Figura 3 - Cartaz de 1924 Fonte: http://www.orm.com.br/projetos/galeri a/fotos/1259/index.asp. Acesso em: 14 jan.

2015.

popular, até então os símbolos usados eram do catolicismo oficial, estas são as

fontes da mística presente nos cartazes nos quais percebe-se a espontaneidade da

mística popular, a tradição mística da igreja católica e o imaginário local. Assim, o

cartaz tem a função de harmonizar estes segmentos do catolicismo sob o manto de

Maria.

Com isso os primeiros cartazes retratavam aspectos do mito fundador da

devoção ressaltando o poder milagroso da de Nossa senhora de Nazaré como se vê

nos cartazes de 1909 e 1924 (Figura 2 e 3).

O processo de regionalização dos cartazes começou no início da década de

1990, quando começou a retratar aspectos da religiosidade popular, até então os

símbolos usados eram do catolicismo oficial. Isto é observável no cartaz de 1990

(Figura 4) que coloca a imagem da santa no meio do “mar de gente” que acompanha

o Círio. Desde então, segundo meu informane, começou a ser usada a imagem

Figura 4 - Cartaz de 1990. Tema: Festa de todos os irmãos. Fonte: http://www.orm.com.br/projetos/galeria/ fotos/1259/index.asp. Acesso em: 04 mar. 2015.

Figura 5 - Cartaz de 2007. Tema: Com a Rainha da Amazônia, formemos comunidades missionárias. Fonte: http://www.ciriodenazare.com.br/portal /cartazes.php. Acesso em: 16 jan. 2015.

peregrina em primeiro plano nos cartazes e que essa decisão tornou-se regra há

alguns anos, segundo ele, a imagem peregrina tem uma identificação maior com a

população, pois se trata de uma santa jovem, que se parece como o povo ao

contrário da imagem original3 que é uma senhora. No cartaz de 2007 (Figura 5)

percebe-se essa ideia, a imagem peregrina colocada no meio de uma paisagem

típica do lugar, em meio à Vitória Régia, com sua coroa reluzente a santa é colocada

como rainha da Amazônia.

Em se projeto pastoral a Igreja tomou a devoção mariana como um poderoso

instrumento de evangelização que demarcou a religião e a cultura amazônica. Nossa

senhora de Nazaré tornou-se a padroeira dos paraenses, a região amazônica

começou a estruturar características regionais próprias distinguindo-se das outras

regiões do Brasil, “N. Sra. de Nazaré, em Belém do Pará, centraliza as atenções no

Norte”, como afirmou Rubem César Fernandes (FERNANDES, 1988: 88). A devoção

ajudou estruturar uma identidade regional peculiar que se expressa em objetos

como o cartaz do Círio que através de sua visualidade oferece uma percepção da

interação social, pois o objetivo do cartaz, além de divulgar o Círio, é fazer com que

os devotos neles reconheçam sua fé e região, ou seja, que se reconheçam a si

mesmo.

3 A “Imagem Autêntica” ou “Imagem do Achado”, encontrada por Plácido em 1700, esculpida em madeira mede

28 centímetros, está exposta no “Glória” da Basílica Santuário de Nazaré. A “santa de feições portuguesas,

vestida de escarlate e azul, sustentando nos braços um menino a brincar com um globo terrestre, é uma cópia fiel

da imagem venerada em Portugal. Além da Imagem autêntica existe a “Imagem Peregrina” usada a partir de

1969 nas procissões por motivos de segurança, durante o ano fica na sacristia da Basílica.

Olhar para os cartazes do Círio é olhar para a identidade plural da sociedade

amazônica, identidade formada pela mestiçagem, produto europeu, indígena e

africano, que deu origem ao caboclo amazônico, homem típico do lugar. O caboclo

demarca um espaço geográfico de identidade cultural. Tal identidade é formada pela

pluralidade que é um aspecto típico das sociedades estruturadas na modernidade

que forjam uma ideia de identidade, diferente das sociedades tradicionais. Sobre a

ideia de identidade Hall (2006: 17-18), diz o seguinte:

As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela “diferença”;

elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma

variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos. Se

tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas

porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser

conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da

identidade permanece aberta. Sem isso, argumenta Laclau, não haveria nenhuma história

[...].

Figura 6 - Cartaz de 2011. Tema: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Fonte: http://www.ciriodenazare.com.br/portal /cartazes.php. Acesso em: 16 jan. 2015.

Figura 7 - Cartaz de 2015. Tema: Maria, Mulher Eucarística. Fonte: http://www.ciriodenazare.com.br/porta l/cartazes.php. Acesso em: 16 jul. 2015.

Ele desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre a possibilidades de

novas articulações: criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos e o que

ele chama de “recomposição da estrutura em tono de pontos nodais particulares de

articulação”.

São essas divisões e antagonismos sociais que estão presentes na

mestiçagem, que na Amazônia produziu a identidade cabocla, que marca uma certa

posição do sujeito. O caboclo foi uma invenção que formou uma identidade aberta,

ou seja, neste caso, ao mesmo tempo em que o caboclo define a todos, não define

ninguém, pois é produto da mestiçagem uma classificação social de inferioridade. O

termo caboclo pode agradar ou desagradar, como diz Hall (2006: 19), segundo “o

jogo das identidades”.

Um bom exemplo é o cartaz de 2011 (Figura 6) que tentou mostrar a

composição do povo paraense. O objetivo de seus idealizadores era promover ainda

mais a identificação dos devotos fazendo-os participar ativamente da confecção do

cartaz, em forma de um mosaico de rostos. Para isso, foi lançada uma campanha

em que se podiam enviar fotos respondendo à pergunta: porque você quer sua foto

no cartaz? As melhores respostas eram selecionadas. Segundo um membro da

diretoria da festa tal cartaz não foi bem recebido pelos devotos. Uma hipótese do

insucesso do cartaz de 2011 é que ele expressou mais a identidade nacional, pois o

Brasil é um país formado de muitos rostos, que a identidade paraense que tem como

estereótipo o “caboclo”. Outra hipótese é que pela simbologia étnica pejorativa do

termo, como afirma Motta Maués (MAUÉS, M., 1989: 203), ninguém quer ser

identificado como o caboclo, ou com as ‘coisas de caboclo’ – a chamada “caboclice”.

Portanto, o caboclo é uma identidade construída para o homem amazônico, mas

rejeitada por ele próprio, produto de uma elite intelectual movida pela crença da

superioridade do branco, fruto da ideologia racista. No entanto essa identidade

mestiça não é totalmente negada, isto acontece ou não, como disse Hall (2006: 18),

depende de “uma situação concreta e do que está ‘em jogo’ nessas contestadas

definições de identidade e mudança”. O cartaz de 2011 anulou a hierarquia social ao

nivelar todos os rostos como uma única massa de devotos, pois dependendo da

situação a identidade cabocla pode ser aceita ou não como “termo de auto-

designação” como disse Lima (1999: 11).

O cartaz de 2015 (Figura 7) é centrado no tema do Círio: “Maria, Mulher

Eucarística”. Da Imagem Peregrina resplandece raios de “fitinhas” que dão a ideia

de um ostensório para expressar Maria como Eucaristia, onde é fácil perceber

elementos da religiosidade popular. Tais elementos que fazem dos cartazes um

modo de perceber as peculiaridades do povo paraense, longe de serem uma

interpretação subjetiva eles comunicam através da representação e da imagem a

forma da cultura amazônica.

3 Considerações finais

Para concluir esta reflexão sobre como o cartaz do Círio consegue exprimir

através da religiosidade popular a relação com o sagrado ao mesmo tempo em que

mostra aspectos característicos das sociedades modernas, como a reprodutibilidade

técnica, e sua relação com o tradicional, como as festas de santo, basta pensar no

modelo peculiar de peregrinação que nasceu da devoção a N. S. de Nazaré, ou seja,

uma santa que peregrina ora sob a forma de imagem, ora sob a forma de cartazes.

Isto é indício do imaginário sedimentado sobre a santa que “foge” como em seu mito

fundador que fugiu da casa de Plácido, como do palácio do governador. Narrativas

semelhantes de santos que caminham ainda podem ser ouvidas no interior do

estado, santos que ao amanhecer estão com os pés sujos, indícios de suas

“caminhadas”. Em uma metrópole moderna como Belém este imaginário continua

presente, mudando somente os meios de peregrinação, não mais os caminhos

enlameados, mas os caminhos da tecnologia da informação como a televisão, o

rádio, a internet, a impressa escrita, o marketing e também os cartazes. A

peregrinação utiliza-se desses meios harmonizando modernidade tecnológica e

devoção popular.

Referências

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