os caminhos do olha na histÓria e na aquisiÇÃo · de operadores discursivos. tudo leva a crer...

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Web - Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 1 Número 6 fevereiro 2012 Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho 1 OS CAMINHOS DO OLHANA HISTÓRIA E NA AQUISIÇÃO Maria Cecilia Mollica (UFRJ/CNPq/IBICT) [email protected] Thaís Lofeudo (IC-PR-5/UFRJ) [email protected] Samara Moura (IC/CNPq) [email protected] Introdução Segundo o www.dicio.com.br , o verbo olhar deriva do latim oculare (dar vista) e, no português, toma várias acepções. Como verbo transitivo, pode significar `fitar os olhos em`, `mirar`, `contemplar`, `encarar`, `examinar`, `observar`; `prestar atenção a`; `sondar`: `somar conta de`; `examinar`; `tomar em consideração`. Como verbo intransitivo, exprime ´estar voltado para`, `ocupar-se de`, `olhar com bons olhos`, `considerar com benevolência`, olhar como, julgar`, `olhar por`, `proteger`, `cuidar de`; `olhar de esguelha`, `votar desprezo ou aversão a`. Como verbo pronominal, pode significar `mirar-se`, `ver a si próprio (ao espelho, p. ex.)`. Ao estudar a expansão semântico-pragmática dos verbos olhar e ver e sua mudança categorial em amostra sincrônica do VARSUL, Rost (2002b) conclui que: "Após realizarmos um levantamento das macrofunções e funções discursivas assumidas pelos itens no contexto de uso dessas formas, observamos que, de modo geral, dos dois itens, aparentemente, o mais distante de seu estatuto verbal e, portanto, mais avançado no movimento de mudança categorial

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W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012

Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho

1

OS CAMINHOS DO ‘OLHA’ NA HISTÓRIA E NA AQUISIÇÃO

Maria Cecilia Mollica (UFRJ/CNPq/IBICT)

[email protected]

Thaís Lofeudo (IC-PR-5/UFRJ)

[email protected]

Samara Moura (IC/CNPq)

[email protected]

Introdução

Segundo o www.dicio.com.br, o verbo olhar deriva do latim oculare (dar vista)

e, no português, toma várias acepções. Como verbo transitivo, pode significar `fitar os

olhos em`, `mirar`, `contemplar`, `encarar`, `examinar`, `observar`; `prestar atenção a`;

`sondar`: `somar conta de`; `examinar`; `tomar em consideração`. Como verbo

intransitivo, exprime ´estar voltado para`, `ocupar-se de`, `olhar com bons olhos`,

`considerar com benevolência`, olhar como, julgar`, `olhar por`, `proteger`, `cuidar de`;

`olhar de esguelha`, `votar desprezo ou aversão a`. Como verbo pronominal, pode

significar `mirar-se`, `ver a si próprio (ao espelho, p. ex.)`.

Ao estudar a expansão semântico-pragmática dos verbos olhar e ver e sua

mudança categorial em amostra sincrônica do VARSUL, Rost (2002b) conclui que:

"Após realizarmos um levantamento das macrofunções e

funções discursivas assumidas pelos itens no contexto de uso

dessas formas, observamos que, de modo geral, dos dois itens,

aparentemente, o mais distante de seu estatuto verbal e,

portanto, mais avançado no movimento de mudança categorial

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é olha. Por outro lado, o item veja parece o mais próximo de

seus traços verbais, portanto, menos avançado no processo de

mudança. Isso pode ser indício de possíveis percursos

diferenciados de gramaticalização das formas investigadas,

entretanto, novos estudos são necessários, incluindo dados

diacrônicos, a fim de verificar tal hipótese." (p.: 131).

Neste texto, verificamos se houve de fato o processo histórico de ressignificação

da forma verbal plena de olhar até seu emprego como marcador discursivo esvaziado de

sentido. Buscamos verificar algumas das macrofunções e as funções discursivas

apontadas por Rost (2002a; 2002b), focando a análise somente na forma olha e nos

empregos simplificados dele derivados. Atestamos a hipótese ao examinar vários

corpora, tais como português medieval (CIPM), do português antigo (CIPM), do

português do século XX (CORPUS DO PORTUGUÊS) e de crianças (PEUL). Além

disso, a contribuição do estudo compara os achados de Rost (2002a) com os múltiplos

empregos do verbo olhar (a) na trajetória da língua e (b) no processo de aquisição de

olha por crianças, tomando o português como L1.

A hipótese é a de que os processos em (a) e (b) se dão de forma diferente.

Buscamos demonstrar que, diacronicamente, ocorreu esvaziamento de sentido do verbo

olhar numa trajetória com traços plenos, na sua origem, a empregos discursivos com

função interacional, especialmente pela erosão fonética, até atingir as forma oh e o. Sob

perspectiva da aquisição da linguagem, apostamos na idéia de que o processo aquisitivo

opera de forma diferente, iniciando-se pelas formas fonologicamente mais simples

(Sicuro, 2006) de modo a comprovar o princípio segundo o qual as primeiras formas

adquiridas/fixadas são exatamente as simplificadas o e oia, até olha, sempre com valor

de operadores discursivos. Tudo leva a crer que olhar, com traços verbais plenos, se

fixa mais tarde no vocabulário das crianças.

Teoricamente, lançamos mão de pressupostos funcionalistas segundo os quais a

gramática emerge de necessidades comunicativas dos falantes (Givón, 1993 e 1995;

Heine et alli, 1991), de modo que os sistemas linguísticos devem ser compreendidos

como intrinsecamente dinâmicos. As regularidades da gramática têm origem na

sistematicidade das variáveis que pressionam os seus usos.

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Entendemos então que as construções linguísticas tornam-se regulares por força

de estratégias intencionais dos interactantes, com base nos modos pelos quais os

falantes desejam embalar a informação. Em última análise, o que prepondera é a

funcionalidade das estruturas gramaticais, em consonância com as situações de uso e em

conformidade com as metas comunicacionais a que o falante se propõe em diferentes

contextos. Processa-se, desse modo, o que compreendemos por gramaticalização, de

acordo com Heine et alli (1991), Traugot&Heine (1991) e Hopper&Traugot (1993),

Castilho (2010) e, por dircusivização (VALLE, 2000).

Rost (2002b) postula funções derivadas, que denominou de macrofunções.

Sincronicamente, elas seriam o espelho de uma trajetória de mudança se examinados os

empregos de olha diacronicamente. Interessante salientar que Rost verifica que todos os

dados analisados, ainda que com traços verbais, contêm forte contraparte pragmática,

uma vez que são usados com finalidade textuais e interacionais.

“Com base na trajetória postulada por Heine et alli. (1991),

para as mudanças via gramaticalização, é que julgamos

pertinente conduzir nossa análise, já que dados do nosso corpus

mostram que, desde sua atuação como verbos plenos até itens

discursivos, apresentam forte componente pragmático, seja

orientado para o ouvinte, para o próprio falante ou para o

texto.”

Segundo Rost (2002b), há indicadores na amostra VARSUL, no atual estágio do

português (portanto do ponto de vista sincrônico), de que, desde os primórdios da

língua, evidencia-se um quadro de multifuncionalidade nos empregos de olhar. Nosso

intuito neste estudo é o de justamente atestar a hipótese da multifuncionalidade ainda no

Português Medieval e compará-la à trajetória de aquisição que opera de forma diferente.

No trecho a seguir, Rost arrola as macrofunções que, na nossa análise, evidenciamos em

dados de outras amostras.

A macrofunção intitulada articulados intencional fica mais clara quando os itens

atuam em contextos de negociação de troca de ideias, de informações, de construção

do texto oral, sinalizando claramente a interação face a face e um maior grau de

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envolvimento interpessoal dos parceiros conversacionais. Essa macrofunção se

manifesta, na prática, a partir de um conjunto de funções, as quais denominamos:

a) função de advertência: o contexto em que olha ou veja aparece revela dúvida,

incredulidade ou advertência com relação à informação expressa

anteriormente pelo falante (cf. exemplo (4));

b) função interjetiva: o contexto em que olha ou veja atua demonstra, devido à

entonação, surpresa, alegria ou desapontamento (cf. exemplo (5);

c) função atenuadra= os itens olha e veja introduzem contextos que apresentam

um não comprometimento do falante com relação às informações, indicando

uma posição de incerteza em relação ao que será dito em seguida. Tais

elementos lingüísticos têm a finalidade de limitar ou neutralizar possíveis

reações desfavoráveis ou interpretações contrárias ou prejudiciais por parte do

interlocutor, ou ainda, podem revelar o não comprometimento do falante com

relação à informação (cf. exemplos (6) e (7);

d) função preficiado: os itens iniciam contextos em que o falante não desenvolve

imediatamente o tópico que o 1' turno propõe,adiando o atendimento imediato

do ponto relevante da informação suscitada pela pergunta do interlocutor. O

falante desvia o tópico da pergunta, ficando implícita, através do contexto

precedente, a resposta à pergunta do entrevistador (cf. exemplo(16);

e) função de planejamento verbal: o falante usa o item lingüístico na busca

simultânea da manutenção do contato e de tempo para a organização textual.

Olha e veja são enchimentos verbais que funcionam fundamentalmente para

manter o canal de interlocução aberto, visto que o falante nem sempre está

preparado para um pronto atendimento a cada nova questão, o que acarreta

uma exposição confusa (cf. exemplo (17.

A macrofunção articuladora textual pode ocorrer quando os itens auxiliam na

seqüencialidade do texto e ajudam a organizar a atitude do falante diante do próprio

texto (componente "orientado para o falante"), caracterizando um maior grau de

subjetividade. As funções retórica, exemplificativa, causal e concessiva são derivadas

dessa macrofunção.

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a) função retórica: os itens lingüísticos introduzem a resposta de uma pergunta

que o falante formula e ele mesmo responde na seqüência discursiva (cf.

exemplo (18);

b) (b)função exemplificativa: os itens olha e veja acrescentam imediatamente

informações que particularizam e/ou exemplificam o que está sendo dito pelo

falante ou o que foi questionado pelo entrevistador (cf. exemplo (19);

c) (c)função causal.' os itens olha e veja aparecem na conexão de duas orações,

uma das quais encerra a causa que acarreta a conseqüência, explicação ou

conclusão contida na outra. (cf.exemplos (9) e (10);

d) d) função concessiva: encontramos, em nosso corpus, apenas a expressão e

olhe lá como uma espécie de concessão, além da qual o informante não

pretende ceder sua opinião a respeito do que diz. Essa expressão parece atuar

normalmente no fechamento do turno desenvolvido pelo falante, devolvendo-o

ao entrevistador (cf. exemplo (20).

Evidências de funcionalidade na história do português

Os dados do português medieval já evidenciam a multifuncionalidade da forma

olha de que fala Rost, embora nos séculos XIII, XIV e XV, olhar é empregado em

quase todos os casos preferancialmente como verbo pleno.

Examine-se o exemplo em (1), português do século XIV, em que olha, ainda que

mantenha traços originais do verbo, já apresenta um emprego com base pragmática no

nível textual.

(1) Português Medieval - Século XIII

Cantigas de Escárnio e Maldizer 13 CEM024

((Afonso X))

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e outro meio filhou e peiteá-lo mandou [e] ao colo o atou, em tal que o nom

aolhasse ((V10)) quem-no visse e o catasse.

Neste trecho, olhar tem valor verbal, assim como em (2), (3) e (4).

(2) Português Medieval - Século XVI

Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB

Tanto que foy lida dise que, sem outro mais acordo, se fizesem prestes, que

elle detreminava de tomar do tall vimgamça; os do comselho lho disera~o a

elrey que per aquelle dinheiro lhe na~o parecya bem, que olhasse que se

diria, e fallarya pello mumdo, e se diria que, por ta~o pouca cousa, quebrava

a paaz ta~o antiga, que olhasse que em mouro na~o avia nem verdade, que

cullpa lhe avia~o os outros no mal que cide fezera, que se cide ouuesse de vir

aquella guerra que por se tomar vimgança d elle, que enta~o serya bem que

morresem os que ho acompanhasem, mas que elles sabia~o que cide se

goardarja bem de ssa armada; mas vemdo os do comselho que elrey estava

jaa de todo demovido a fazer guerra, lhe disera~o: Senhor, na~o na façaes por

essa via; mas day sobre Rachol, que agora he do ydallca~o, que antigamente

foy d este reyno, e o ydallca~o ha de vir a defemdello, enta~o tomaras

juntamente a vimgança de hu~u e de outro.1

(3)

1 O banco de dados do site do português medieval dispõe de uma adaptação grafemática para os símbolos

da transcrição. Assim, os trechos transcritos para este artigo devem levar em conta a seguinte convenção.

(i)Diacríticos que figuram sobre o grafema na edição encontram-se à direita deste (à excepção de ñ):

Exs.

ã→a~

á→a´

ê→e^

y com barra sobreposta→y~

y (= y nasal) → y

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Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB

Mamdou ho ydalca~o que se fizese allardo de sua gente, e que despois de

feyto verya o que se devia fezer; feyto ho allardo achou que tinha cento e

vimte mill home~s de pee, archeiros, e espimgardeyros, e adargueiros, e d

azaguncho, e dezoyto mill de cavallo, e cento e cincoenta alyfantes; feyto ho

allardo, e visto por elle, vemdo a gramde artelharya que tinha, dise que com

sua artelharya queria desbaratar o rao de Narsymga, e que fizesem prestes

que llogo querya passar o ryo, e hir se ver com elle, o quoall foy olhado pello

ydallca~o que se contentara em estar ally, e d ally mamdar da sua gente que

correra~o ao arayall d elrey na~o se perdera elle nem perdera Rachol.

(4)

Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB

Estamdo os mouros asy diante d elrey olhamdo a gente, vira~o Xpova~o de

Figueiredo, e disera~o a elrey que ho vencimento e tomada da cidade se dese

aquelle framgue, que elle matara a seu capita~o, e com a sua gente matara

muytos mouros, por omde fora a sua perdiça~o, elrey pomdo os olhos em

Xpova~o de Figueyredo, damdo a cabeça, se virou aos seus dyzemdo que

olhasem quoanto vallya hu~u bom homem.

Veja-se que, no trecho (4), o verbo já significa `prestar atenção`, com emprego

de base discursivo-interacional dentro do texto, como elemento coesivo.

(5)

Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB

Capitullo da maneira que se faz a sallema a elrey, &c. A maneira da sua

salema, que os capitae~es fazem a elrey, cada dia, he esta, como he manhaa

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va~o os capita~es ao paço as dez ou as omze oras, as quoaes horas sabe;

elrey de dentro d omde esta~o suas molheres, e despois que se asenta, abrem

aos capita~es, e vem cada hu~u per sy, e abaixa a cabeça, e alevamta as

ma~os, ysto chama~o salema, e com elrey esta~o obra de dez ou doze

home~s, os quoaes tem carreguo de em emtramdo quoalquer capita~o, diz a

elrey: Olhe vossa alteza o vosso capita~o foa~o, que vos fez salema. E os

reis de Bisnaga sempre tevera~o por estado terem muytos cavallos em sua

estrebaria, e sempre tinha~o oytocentos, novecentos cavallos, e quoatro

centos e quynhentos allyffantes, com os quoaes, e com a gente que os

curava~o, tinha muy gramde gasto;

Em (6), nos dois trechos, o valor de interjeição é bem claro.

(6)

Português medieval - Século XV:

Demanda do Santo Graal -

Ora pensa oimais tanto que Nosso Senhor haja de ti a cortiça e o meolo, pois

que o demo de ti levou os ramos e as folhas e a fruita.

– Ai, donzela, por Deus, olhade: queredes vo´s que vos tenha eu companhia e

que me levedes algur u possa achar per que mate minha fame?

E eu olhando vi vi~ir a donzela po´s mim que nom ousava ficar na foresta

com medo de a prender algue´m. Assi nos aconteceu de preito desta donzela,

empero ainda no[m] fezemos ne~hu~a cousa que se lhe a prol torne, ca maior

medo ha´agora que dantes.

Nom hajades pavor de mim pero hei sabor de vos olhar assi ca, se vos eu

olho, nom e´ maravilha ca, assi Deus ajude, vo´s sodes a mais fremosa cousa

que eu nunca vi.

Como salientamos, nesta fase do português, a maioria dos empregos

correspondem ao verbo pleno que, aos poucos, vai apresentando outras acepções mais

abstratas como no trecho (7) em que olhar significa ´cuidar`, `entender`, `alimentar`, ou

no trecho (8) em que olhar toma os sentidos de ´apreciar´, ´desejar´.

(7)

Ca o Senhor Deus, pello amor que te ha, no~ te leixaria seer mi~guado e~no

corpo, se te no~ rreco~pensasse e e~tregasse e~ outros do~o~es de graça.

Onde diz o Senhor Deus: Eu no~ julgo segu~do a face do home~. Ca o

home~ uee aquellas cousas que parece, mas Deus oolha o coraço~.

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(8)

Demetrio, cegou a sy meesmo, porque no~ podia oolhar as molheres sem

cobiçando-as, e por tal que no~ uise como pasauam bem os maaos. Ca Deus

fez ho homem dereyto, e a cobiça o souerte e e~curua o home~

Em (9), o verbo passa a ter valor de ´espreitar´, `espiar`

E hia-se a hu~u~ orto e oolhauo-o per hu~a freesta de hu~a camara em que

ele estudaua, que saya a aquele orto. E aas uezes andaua perante ele descalça

co~ as pernas descobertas, mostrando-lhe per sinaes e per geestos que o

amaua.

Nos trechos em (10), (11), (12) e (13), observam-se as acepções de ´atender´,

´observar´, ´apreciar´, ´desejar´, respectivamente.

(10)

E este bispo husaua de sotilezas em suas preegaço~o~es e no~ aproueitou

nehu~a cousa. E ento~ enviaro~ outro bispo de mais pequena leteradura, que

husaua de exemplos e de sinplezes falame~tos e~ seu[s] sermo~o~es. E este

co~uerteo a mayor parte dYngraterra. Onde diz Sam Basilyo que o Senhor

Deus no~ oolha

(11)

Onde diz Seneca que os nobres baro~o~es desprezam os doestos e no~

cuyra~ das e~jurias, ca propriedade he da grandeza uerdadeyra no~ se sintir

ferido das e~jurias, assy como a grande besta fera, quando lhe ladro~ os

ca~a~es, olha-os ma~samente.

(12)

Esto se faz cada dia, e poucos anos ha que uimos esto con nossos olhos e~

estes regnos de Portugal depois da morte delrrey dom Fernando, e esso

meesmo ora e ennos regnos de Castella, e~no destruyme~to delrrey dom

Pedro, que aquelles que era~ tam poderosos, que parecia que auia~ poderio

sobre as estrellas, que andaua~ co~ as cabeças aleua~tadas e~ tal guisa que

aadur se co[n]te~ptaua~ oolhar a terra per que auia~ de andar, tosteme~te

foro~ derribados, delles per morte e delles per perda de be~e~s e outros per

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esterrame~to, en tal guisa que todo o poderyo que ante ouuero~ foy tornado

e~ amargura.

(13)

Onde diz Sancto Anbrosio: Asy como aquelles que [per] sandice som

e~alheados e~na me~te, ya no~ ve~e~ as cousas uerdadeyrame~te mas ve~e~

a fantasia da sua paixom e da sua sandice, bem asy a me~te que he apertada

con as priso~o~es da cobiiça do ouro senpre vee ouro e prata, senpre conta as

rendas, mais graciosamente oolha o ouro que o sol.

Procurando estabelecer paralelo com a classificação de Rost, seguem alguns

trechos do português antigo, classificadas de acordo com as funções sugeridas pela

autora segundo algumas funções extraídas da taxionomia que ela postula para o

português de hoje. Em (14), há resquícios de interjeição com valor de exemplificação.

(14)

Século XV

Leal Conselheiro151437/38LC

Olhaaeas aves do ceeo que nomsemeam, nem colhem, nem ajuntam em celleiros, e nosso padre cellestrial

as governa. Vos mais e melhores sooes que ellas?

Em (15), olha apresenta função de advertência, visto que o falante adverte o seu

interlocutor em relação ao casamento.

Corpus do português

FONTE:

.

Data (1575)

Título Contos & historias de proveito & exemplo

Autor Gonçalo Fernandes Trancoso

bë, & de a dar a marido antes que aquelles viços a leuassem a torpe peccado,

determinou dar a hum mancebo tudo o que a pobre velha tinha, porque

casasse com a filha: tendo Primeira parte das historias para si que o marido

lhe faria fazer com o castigo, o que ellanam podia com ensino,

reprehensoës& exemplos. E cõ certada cõelle no dote, quis o mancebo que

nam dessem conta à moça ate que elle a fosse ver o dia seguinte, seguindo o

conselho do rifam, que diz. Antes que cases olha o que fazes, foy a velha

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contente, & disse que assi o faria: porem porque a filha estiuesse sobre auiso,

&namcaisse em algûa fraqueza a tal tempo, crendo que para casar tomaria

seu conselho, lhe descobrioaquella noite tudo o que passaua, dizendolhe.

Em (16), é clara a função de advertência, pois o falante está chamando a atenção do

interlocutor em função da maneira como fala, grosseiramente.

FONTE: SÉCULO XVII

Data (1640?)

Título Apolo

Autor Francisco Manuel de Melo

da mercê que me fizerdes. Soldado - Graças são graças, e não indulgências...

Pois à fé que não é tão longe do Rossio ao Terreiro do Paço, para que não

saibais. Lá, como cá, se negoceia. Não vedes o que diz o nome, donde está,

antes que "Paço", "Terreiro"? Parece que ignoras o costume. Fonte Velha - E

qual costume é esse? Soldado - Pagar entradas e saídas, como portas de

Argel. Fonte Velha - Maldito seja quem tais a-la-modas nos trouxe à terra!

Soldado - Mulher, olha lá como amaldiçoas: não toques no campanário!

Fonte Velha - Ainda me não arrependo de trocar pragas por injúrias, porque o

dar agradecimentos por agravos mais pertence aos lisonjeiros que aos

prudentes. Já disse um discreto que afidelidade do cão toda consistia em

muito interesse e pouca-vergonha, porque sofrem o pau a troco do pão; e

aquele que, a poder de afrontas, vos não desampara, vos deixa logo o

primeiro dia que lhe não dais que roer.

. Em (17), olha é empregado como mecanismo de planejamento verbal.

Data (1608-1666)

Título Apólogos dialogais

Autor Francisco Manuel de Melo

andam, se nao achem enganados uns nem outros. Pois, se os grandes

mostram que naosao aqueles que se fingiam, vejam também que nem os

pequenos sao aqueles aue se lhes mostravam, e assim estes e aqueles, como

comediantes, cada qual em seus trajes naturais, se recolham a sua casa

própria, que vem a ser a sepultura, donde I cada qual vai entao só com o

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cabedal que lhe deu a natureza, despindo os faustos e as tramóias com que,

para representarem suas figuras, os adornou a ambiçao ou a soberba. Olha:

no cabo do ano, ditosos e mofinos, todos ficam iguais. Para todos houve

verao e inverno, frio e calma; e assim ou assim, jantar e cea. Os prósperos e

desgraçados comparo eu com os velhos e os moços por uma ladeira acima: os

moços, porque de ordinário sao ágeis e robustos, sobem dum fôlego; os

velhos, fracos, pesados e doentes como costumam ser, vao devagar,

assentam-se em uma parte, descansam em outra e enfim lá sobem taobem

Já em (18), as formas olha exercem função exemplificativa

FONTE:

.

Data (1635)

Título Poesia e Pintura

Autor Manuel Pires de Almeida

o sétimo emblema de Alciato, com título: Non tibi, sedreligioni; e como se vê

nas costas das medalhas dos imperadores, quando têm esculpido donativos ao

povo, ou práticas a soldados, em que há multidão de figuras humanas. Três

diferenças há entre o revés da medalha e o emblema. Primeira, o emblema

tem sempre intenção universal, o revés a tem particular à pessoa cujo retrato

tem esculpido. Segunda, o emblema, como contém advertência, olha o

porvir; o revés, como atende ao louvor, que contém ações obradas, olha o

passado. Terceira, o emblema não se faz à honra, nem em louvor de pessoa

alguma, mas para admoestação; o revés, pela maior parte, é para glória e

exaltação da pessoa em cuja honra se fez a medalha.

A função interjetiva, em (19), é empregada em olhade (verbo no imperativo).

Demanda do Santo Graal - Séc. XV

– Ai, donzela, por Deus, olhade: queredes vo´s que vos tenha eu companhia e

que me levedes algur u possa achar per que mate minha fame?

Em (20) e (21), encontramos o emprego do verbo com funções exemplificativa e

retórica.

(20)

Castelo Perigoso 15 Estremadura

Das molher[e]s vem //veem// muitas vezes que, po(r) suas

sandias pallav(ra)s e p(er) sinaaes que most(r)am, p(er) se(us) oolhares e

contenenças, e p(er) out(r)as maneiras, que os home~es asrreq(ue)rem. E por

isto todos os rrelligiosos que de bo~o coraçom querem prazer e amar ao seu

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doce amigo e verdadeiro esposo Jh(es)u (Christ)o, deviam de fogir a todas

ocasio~oes que podem trazer pecado, as q(u)aaes homem

pode sab(e)r p(er) rrazom e p(er) verdadeiro e puro amo(r), sem [e]sc(ri)pto.

(21)

Orto do Esposo 15 OE

Onde diz Sancto Anbrosio: Asy como aquelles que [per] sandice som

e~alheados e~na me~te, ya no~ ve~e~ as cousas uerdadeyrame~te mas ve~e~

a fantasia da sua paixom e da sua sandice, bem asy a me~te que he apertada

con as priso~o~es da cobiiça do ouro senpre vee ouro e prata, senpre conta as

rendas, mais graciosamente oolha o ouro que o sol. E a sua oraçom e a sua

suplicaçom que faz ao Senhor Deus ouro dema~da, mas nu~ca a sua cobiiça

sera farta ne~ auera fim.

No trecho (22), o emprego da forma olha equivale a prestar atenção, enxergar dentro

de si mesmo. De acordo com a classificação de Rost (2002b), trata-se da forma olha

com traços do verbo que já possui valor pragmático dentro do texto na direção do

emissor.

(22)

.

Data (1300-1400)

Título Barlaam e Josephat (1967)

Expanded context: Jamais uos todos no ueeredes amjnha fase E elles quando vyrom queo nõ

podiam deteer chorauom muyto ho sseu desenparo E ntom tomou elRey pella

maao barachias e disse Jrmaaos. este uos hordeno por uosso Rey E barachias

cotradizia ffortemente. mais elRey ho ffez sseer na cadeyra Real cotra ssua

vontade. e posselhe acora Real na cabeça E oanel na maao com o era de

custume fazer aoRey E tornousse Josaphate cotra ho oryente e ffez oraçõ

anosso ssenhor por el e por todoo ho poboo do Regno E enssynou abarachias

todas as cousas que coue aboo Rey E disselhe hirmaao o olha mentes em ty

meesmo e em todo este poboo e que te ospritu santo fez Rey perao Regeres E

assy como tu ante conheseste nosso ssenhor e o seruiste em linpa coçiensia

bem assy te esfforsa agora mujto mais pera prazeres ael. guardando sseus

mandamentos ca quanto mayor ssenhorio Resebeste de deus tanto lhe es

mays deuedor E agora hirmaaos em comendouos adeus que uos pode edificar

e dar ha erdade co todollos sseus ssantos E tanto que esto disse nhor co

mujtas lagrimas e tornousse abarachias e beygouo e todos os prinçepes.

Veja-se em (23) em que Olha equivale a cuidado, semelhante ao que Rost encontrou em

dados do português atual. Em (24), no século XVI, também se verifica o emprego da

forma olha com função semelhante.

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(23)

Antes que cases olha o que fazes, foy a velha contente, & disse que assi o

faria: porem porque a filha estiuesse sobre auiso, & nam caisse em algûa

fraqueza a tal tempo, crendo que para casar tomaria seu conselho, lhe

descobrio aquella noite tudo o que passaua, dizendolhe.

(24)

e abaixa a cabeça, e alevamta as ma~os, ysto chama~o salema, e com elrey

esta~o obra de dez ou doze home~s, os quoaes tem carreguo de em emtramdo

quoalquer capita~o, diz a elrey: Olhe vossa alteza o vosso capita~o foa~o,

que vos fez salema. E os reis de Bisnaga sempre tevera~o por estado terem

muytos cavallos em sua estrebaria, e sempre tinha~o oytocentos, novecentos

cavallos, e quoatro centos e quynhentos allyffantes, com os quoaes, e com a

gente que os curava~o, tinha muy gramde gasto.

Neste caso, olha equivale a uma alerta. Ainda que haja vestígio de interjeição, seu

emprego tem valor pragmático no texto.

O levantamento da fala das crianças identificou muitos casos de olha com valor

verbal, ainda como interjeição, principalmente na fala dos entrevistadores. Poucos

foram os casos encontrados nas crianças entrevistadas. Nelas, a predominância é de

estruturas de maior facilidade no processamento.

( 25 )

Falante: 06 Ale

Sexo: feminino

Idade: 4 anos e meio

Escolaridade: Não escolarizado

Bairro: Quintino

Profissão dos pais: –

Classe: C

E: Mas você tem gatinho! Olha aí a Sandra falando.

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I: Como é nome do nosso gato?

F: Fofinhu, o outro Miguel sumiu.

......................................................

F: Olha na ponta do lápis! Firmi!

E: E você olhava na ponta do lápis. E que mais?

F: Não. Olhava assim.

E: É?

F: Ela mandô assim.

E: Olha na ponta do lápis firme.

F: É. Firme!

Encontramos também empregos com valor interacional e de formas mais

simplificadas, como o, sempre expressas pelos entrevistadores

(26 )

Falante: 03 Luc

Sexo: feminino

Idade: 05 anos

Escolaridade: –

Bairro: Mesquita

Profissão dos Pais:

Pai: cabo da Marinha (Santa Catarina)

Mãe: estudante universitária (Petrópolis)

Classe Social: B

E: É... conta pra nós.

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F: Foi é... (risos) Ela toxe refesco de laranja, e a outra toxe refesco de laranja

e a ota de uva... Depois, o macaco, é falou: “olha o macaco!”. Então é, o

macaco trouxe bolo, também, razinho de refresco!

E: Hm?

F: Cum rajinho de refesco.

E: Jarrinho de refresco.

E: É precisa ser rica, é?

F: É. Sabe por causa de que eu sei? É por causa de que eles falaram ali ó.

E: Eles falaram?

F: Eles falaram.

E: Que que cê acha...

F: A bique aqui ó.

E: Você gosta... o que que você acha que é mais bonito... oh... calça

comprida com blusinha, ou um vestidinho?

F: A dele é mais... desse tamanhozinho assim, ó [...]

F: [Ali]- ali... ali, aquele pequenininho ali... aquele... ali... aquele verde ali.

Tua pega a minha lição, pegô a tua... Ó lá mãe.

E: O quê?

F: Ó, ele tá cuma coisa vermelha.

E: Que coisa?

F: Vermelha ali, óia. Ó aqui.

E: Que coisa?

F: Num sei.

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E: Um grampeador.

F: Ó, fala pá... Dona Carme, é, é, Dudu da Maria, [Maria da Paula], é, Maria

da Paula, é,... Maria do Gê e Vivi.

E: Mas...

F: E Nelci.

E: Não fizeram nada? E você, o que que foi que você fez?

F: Fiz nada. Aí, ó, mãe, aí o macaco, né?, chamou o Emmerson pra jogar

bola. [Quem foi?] Quem foi? Quem chamou?

E: Você não ficou com medo do Emmerson ir não? Ficar no meio dos

bichos? O macaco.

E: Por que você brigou com a Iara? Ela chamou você de não sei o quê lá.

F: Ó, eu e a Liane tava ali, eu fui chamá Liane, aí a Iara passou ali, ahhh, aí o

Cacá segurou a Liane, aí a Iara começou a bater na Liane. Então a Liane

ficou chorano.

E: É mermo, é... a Iara bateu na Liane... e a Liane ficou chorando. E você o

que fez?

As crianças preferem a forma simplificada o, predominante, como operador

discursivo em contextos interacionais. Há alguns usos da forma olha, no entanto, não

com os traços do verbo: a forma olha de valor discursivo alterna com a variante oia nas

crianças que ainda não conseguem operar a palatalização. O gráfico a seguir representa

a distribuição de tais empregos nesta amostra constituída de de 4 a 9 anos.

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Gráfico I: Distribuição de empregos das formas o, oia e olha em crianças.

Pelo gráfico I, a forma simplificada ó é fortemente prevalente. Os empregos de

olha, variando com oia, refletem um quadro de que nem todas as crianças processam a

palatalização. O domínio da operação de processo fonológico mais complexo, porém,

não revela relação necessária com a idade da criança, como se atesta no Gráfico II. Vale

um estudo mais aprofundado para verificar que variáveis atuam para que a palatalização

se processe nas crianças neste e em outros itens no vocabulário infantil.

89%

7% 4%

Ó

Olha

Oia

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Gráfico II: empregos de ó, oia e olha por idade

Segundo o Gráfico II, podemos afirmar que (a) ó é a forma preferida em todas as

idades dentre as três contabilizadas e (b) a forma oia desaparece a partir de 6 anos, o

que equivale a dizer que o processo fonológico de palatalização, em sujeitos típicos, é

adquirido finalmente, ao menos em comunidades urbanas, embora já comece a ser

operado a partir de 4 anos. Segundo os dados, a forma olha não é a preferida pelas

crianças. É de se supor que venha a ser empregada em idade mais adulta, quando o

verbo olhar venha a ser fixado no vocabulário do falante. Tal hipótese também merece

0

2

4

6

8

10

12

14

16

18

4 anos 5 anos 6 anos 7 anos 8 anos

Ó

Olha

Oia

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pesquisa em separado que compare o universo vocabular de falantes maduros com o de

aprendizes.

À guisa de conclusão

Neste artigo, reiteramos primeiramente os achados de Rost em dados do

português medieval e antigo. Atestamos a procedência da hipótese da

multifuncionalidade do verbo olhar desde os primórdios do português, proposta que a

autora lança com base em dados do português moderno. Assim, fica comprovado que a

forma olha, mesmo na origem do português, apresenta emprego com base pragmática

ainda que preserve, em alguns casos, valor de interjeição e dos traços de verbo pleno.

Além disso, oferecemos ainda achados novos à pesquisa ao examinar a fala de

crianças. A forma olha só se estabiliza mais tarde nos falantes maduros. A forma

prevalente é ó, sempre com forte base pragmática, seja empregada nos textos, seja em

situações interacionais (cf. gráficos I e II). A forma intermediária oia parece ser a que

emerge nas crianças quando elas ainda não operam a palatalização com segurança.

A nossa hipótese de que os processos históricos e aquisitivos são diferentes

ilustra-se com mais clareza no gráfico III.

Gráfico III: Competição entre as formas olha e ó na trajetória da língua

portuguesa.

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O gráfico III confirma a presença das formas olha e ó desde o século XIV. À

exceção do século XV, ambas as formas são usadas com frequência bem semelhante.

No século XX, após o pico de usos de ambas as estruturas no século XIX, há um

decréscimo no emprego de ó e olha se mantém num mesmo patamar de uso, superior ao

de ó.

A figura nos remete a algumas suposições: (a) ambas as formas são bastante

usadas com valor pragmático, com a presença ou não da base interjetiva; (b) a forma

olha com valor pragmático no texto e em contextos interacionais é preferida por ser

mais próxima do verbo de que deriva e assim manter alguns dos seus traços; (c) entre as

estruturas ó e olha, a forma mais sintética ó parece ser a menos formal, haja vista o fato

de as crianças utilizarem-na fartamente em detrimento das demais olha e oia. O que

estamos postulando em (a), (b) e (c), no entanto, são hipóteses que deveriam ser

confirmadas em investigações que levem, minimamente, em conta os contextos de uso,

a função das estruturas, os gêneros e tipos textuais de que emergem.

Século XIV Século XV Século XVI Século XVIISéculo XVIII

Século XIX Século XX

Olha 1 18 114 93 64 1626 1682

Ó 31 10 496 117 111 2190 918

0

500

1000

1500

2000

2500

Olha x ó

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Referências

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Contexto, 2010.

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HEINE, B. & REH, M. Grammaticalization and reanalisys in African Languages.

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HEINE, B.; CLAUDI, U. & HÜNNEMEYER, F. Grammaticalization: a conceptual

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TRAUGOTT, E. & HEINE, B. (eds.) Approaches to grammaticalization: fixus on

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ROST, C. A. Olha e Veja: multifimcionalidade e variação. Dissertação deMestrado:

UFSC, 2002a.

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SICURO, L. (org.) Aquisição da linguagem e problemas do desenvolvimento

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Recebido Para Publicação em 28 de dezembro de 2011.

Aprovado Para Publicação em 23 de janeiro de 2012.