os caminhos do olha na histÓria e na aquisiÇÃo · de operadores discursivos. tudo leva a crer...
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W e b - R e v i s t a S O C I O D I A L E T O • w w w . s o c i o d i a l e t o . c o m . b r Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho
1
OS CAMINHOS DO ‘OLHA’ NA HISTÓRIA E NA AQUISIÇÃO
Maria Cecilia Mollica (UFRJ/CNPq/IBICT)
Thaís Lofeudo (IC-PR-5/UFRJ)
Samara Moura (IC/CNPq)
Introdução
Segundo o www.dicio.com.br, o verbo olhar deriva do latim oculare (dar vista)
e, no português, toma várias acepções. Como verbo transitivo, pode significar `fitar os
olhos em`, `mirar`, `contemplar`, `encarar`, `examinar`, `observar`; `prestar atenção a`;
`sondar`: `somar conta de`; `examinar`; `tomar em consideração`. Como verbo
intransitivo, exprime ´estar voltado para`, `ocupar-se de`, `olhar com bons olhos`,
`considerar com benevolência`, olhar como, julgar`, `olhar por`, `proteger`, `cuidar de`;
`olhar de esguelha`, `votar desprezo ou aversão a`. Como verbo pronominal, pode
significar `mirar-se`, `ver a si próprio (ao espelho, p. ex.)`.
Ao estudar a expansão semântico-pragmática dos verbos olhar e ver e sua
mudança categorial em amostra sincrônica do VARSUL, Rost (2002b) conclui que:
"Após realizarmos um levantamento das macrofunções e
funções discursivas assumidas pelos itens no contexto de uso
dessas formas, observamos que, de modo geral, dos dois itens,
aparentemente, o mais distante de seu estatuto verbal e,
portanto, mais avançado no movimento de mudança categorial
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é olha. Por outro lado, o item veja parece o mais próximo de
seus traços verbais, portanto, menos avançado no processo de
mudança. Isso pode ser indício de possíveis percursos
diferenciados de gramaticalização das formas investigadas,
entretanto, novos estudos são necessários, incluindo dados
diacrônicos, a fim de verificar tal hipótese." (p.: 131).
Neste texto, verificamos se houve de fato o processo histórico de ressignificação
da forma verbal plena de olhar até seu emprego como marcador discursivo esvaziado de
sentido. Buscamos verificar algumas das macrofunções e as funções discursivas
apontadas por Rost (2002a; 2002b), focando a análise somente na forma olha e nos
empregos simplificados dele derivados. Atestamos a hipótese ao examinar vários
corpora, tais como português medieval (CIPM), do português antigo (CIPM), do
português do século XX (CORPUS DO PORTUGUÊS) e de crianças (PEUL). Além
disso, a contribuição do estudo compara os achados de Rost (2002a) com os múltiplos
empregos do verbo olhar (a) na trajetória da língua e (b) no processo de aquisição de
olha por crianças, tomando o português como L1.
A hipótese é a de que os processos em (a) e (b) se dão de forma diferente.
Buscamos demonstrar que, diacronicamente, ocorreu esvaziamento de sentido do verbo
olhar numa trajetória com traços plenos, na sua origem, a empregos discursivos com
função interacional, especialmente pela erosão fonética, até atingir as forma oh e o. Sob
perspectiva da aquisição da linguagem, apostamos na idéia de que o processo aquisitivo
opera de forma diferente, iniciando-se pelas formas fonologicamente mais simples
(Sicuro, 2006) de modo a comprovar o princípio segundo o qual as primeiras formas
adquiridas/fixadas são exatamente as simplificadas o e oia, até olha, sempre com valor
de operadores discursivos. Tudo leva a crer que olhar, com traços verbais plenos, se
fixa mais tarde no vocabulário das crianças.
Teoricamente, lançamos mão de pressupostos funcionalistas segundo os quais a
gramática emerge de necessidades comunicativas dos falantes (Givón, 1993 e 1995;
Heine et alli, 1991), de modo que os sistemas linguísticos devem ser compreendidos
como intrinsecamente dinâmicos. As regularidades da gramática têm origem na
sistematicidade das variáveis que pressionam os seus usos.
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Entendemos então que as construções linguísticas tornam-se regulares por força
de estratégias intencionais dos interactantes, com base nos modos pelos quais os
falantes desejam embalar a informação. Em última análise, o que prepondera é a
funcionalidade das estruturas gramaticais, em consonância com as situações de uso e em
conformidade com as metas comunicacionais a que o falante se propõe em diferentes
contextos. Processa-se, desse modo, o que compreendemos por gramaticalização, de
acordo com Heine et alli (1991), Traugot&Heine (1991) e Hopper&Traugot (1993),
Castilho (2010) e, por dircusivização (VALLE, 2000).
Rost (2002b) postula funções derivadas, que denominou de macrofunções.
Sincronicamente, elas seriam o espelho de uma trajetória de mudança se examinados os
empregos de olha diacronicamente. Interessante salientar que Rost verifica que todos os
dados analisados, ainda que com traços verbais, contêm forte contraparte pragmática,
uma vez que são usados com finalidade textuais e interacionais.
“Com base na trajetória postulada por Heine et alli. (1991),
para as mudanças via gramaticalização, é que julgamos
pertinente conduzir nossa análise, já que dados do nosso corpus
mostram que, desde sua atuação como verbos plenos até itens
discursivos, apresentam forte componente pragmático, seja
orientado para o ouvinte, para o próprio falante ou para o
texto.”
Segundo Rost (2002b), há indicadores na amostra VARSUL, no atual estágio do
português (portanto do ponto de vista sincrônico), de que, desde os primórdios da
língua, evidencia-se um quadro de multifuncionalidade nos empregos de olhar. Nosso
intuito neste estudo é o de justamente atestar a hipótese da multifuncionalidade ainda no
Português Medieval e compará-la à trajetória de aquisição que opera de forma diferente.
No trecho a seguir, Rost arrola as macrofunções que, na nossa análise, evidenciamos em
dados de outras amostras.
A macrofunção intitulada articulados intencional fica mais clara quando os itens
atuam em contextos de negociação de troca de ideias, de informações, de construção
do texto oral, sinalizando claramente a interação face a face e um maior grau de
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envolvimento interpessoal dos parceiros conversacionais. Essa macrofunção se
manifesta, na prática, a partir de um conjunto de funções, as quais denominamos:
a) função de advertência: o contexto em que olha ou veja aparece revela dúvida,
incredulidade ou advertência com relação à informação expressa
anteriormente pelo falante (cf. exemplo (4));
b) função interjetiva: o contexto em que olha ou veja atua demonstra, devido à
entonação, surpresa, alegria ou desapontamento (cf. exemplo (5);
c) função atenuadra= os itens olha e veja introduzem contextos que apresentam
um não comprometimento do falante com relação às informações, indicando
uma posição de incerteza em relação ao que será dito em seguida. Tais
elementos lingüísticos têm a finalidade de limitar ou neutralizar possíveis
reações desfavoráveis ou interpretações contrárias ou prejudiciais por parte do
interlocutor, ou ainda, podem revelar o não comprometimento do falante com
relação à informação (cf. exemplos (6) e (7);
d) função preficiado: os itens iniciam contextos em que o falante não desenvolve
imediatamente o tópico que o 1' turno propõe,adiando o atendimento imediato
do ponto relevante da informação suscitada pela pergunta do interlocutor. O
falante desvia o tópico da pergunta, ficando implícita, através do contexto
precedente, a resposta à pergunta do entrevistador (cf. exemplo(16);
e) função de planejamento verbal: o falante usa o item lingüístico na busca
simultânea da manutenção do contato e de tempo para a organização textual.
Olha e veja são enchimentos verbais que funcionam fundamentalmente para
manter o canal de interlocução aberto, visto que o falante nem sempre está
preparado para um pronto atendimento a cada nova questão, o que acarreta
uma exposição confusa (cf. exemplo (17.
A macrofunção articuladora textual pode ocorrer quando os itens auxiliam na
seqüencialidade do texto e ajudam a organizar a atitude do falante diante do próprio
texto (componente "orientado para o falante"), caracterizando um maior grau de
subjetividade. As funções retórica, exemplificativa, causal e concessiva são derivadas
dessa macrofunção.
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a) função retórica: os itens lingüísticos introduzem a resposta de uma pergunta
que o falante formula e ele mesmo responde na seqüência discursiva (cf.
exemplo (18);
b) (b)função exemplificativa: os itens olha e veja acrescentam imediatamente
informações que particularizam e/ou exemplificam o que está sendo dito pelo
falante ou o que foi questionado pelo entrevistador (cf. exemplo (19);
c) (c)função causal.' os itens olha e veja aparecem na conexão de duas orações,
uma das quais encerra a causa que acarreta a conseqüência, explicação ou
conclusão contida na outra. (cf.exemplos (9) e (10);
d) d) função concessiva: encontramos, em nosso corpus, apenas a expressão e
olhe lá como uma espécie de concessão, além da qual o informante não
pretende ceder sua opinião a respeito do que diz. Essa expressão parece atuar
normalmente no fechamento do turno desenvolvido pelo falante, devolvendo-o
ao entrevistador (cf. exemplo (20).
Evidências de funcionalidade na história do português
Os dados do português medieval já evidenciam a multifuncionalidade da forma
olha de que fala Rost, embora nos séculos XIII, XIV e XV, olhar é empregado em
quase todos os casos preferancialmente como verbo pleno.
Examine-se o exemplo em (1), português do século XIV, em que olha, ainda que
mantenha traços originais do verbo, já apresenta um emprego com base pragmática no
nível textual.
(1) Português Medieval - Século XIII
Cantigas de Escárnio e Maldizer 13 CEM024
((Afonso X))
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e outro meio filhou e peiteá-lo mandou [e] ao colo o atou, em tal que o nom
aolhasse ((V10)) quem-no visse e o catasse.
Neste trecho, olhar tem valor verbal, assim como em (2), (3) e (4).
(2) Português Medieval - Século XVI
Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB
Tanto que foy lida dise que, sem outro mais acordo, se fizesem prestes, que
elle detreminava de tomar do tall vimgamça; os do comselho lho disera~o a
elrey que per aquelle dinheiro lhe na~o parecya bem, que olhasse que se
diria, e fallarya pello mumdo, e se diria que, por ta~o pouca cousa, quebrava
a paaz ta~o antiga, que olhasse que em mouro na~o avia nem verdade, que
cullpa lhe avia~o os outros no mal que cide fezera, que se cide ouuesse de vir
aquella guerra que por se tomar vimgança d elle, que enta~o serya bem que
morresem os que ho acompanhasem, mas que elles sabia~o que cide se
goardarja bem de ssa armada; mas vemdo os do comselho que elrey estava
jaa de todo demovido a fazer guerra, lhe disera~o: Senhor, na~o na façaes por
essa via; mas day sobre Rachol, que agora he do ydallca~o, que antigamente
foy d este reyno, e o ydallca~o ha de vir a defemdello, enta~o tomaras
juntamente a vimgança de hu~u e de outro.1
(3)
1 O banco de dados do site do português medieval dispõe de uma adaptação grafemática para os símbolos
da transcrição. Assim, os trechos transcritos para este artigo devem levar em conta a seguinte convenção.
(i)Diacríticos que figuram sobre o grafema na edição encontram-se à direita deste (à excepção de ñ):
Exs.
ã→a~
á→a´
ê→e^
y com barra sobreposta→y~
y (= y nasal) → y
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Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB
Mamdou ho ydalca~o que se fizese allardo de sua gente, e que despois de
feyto verya o que se devia fezer; feyto ho allardo achou que tinha cento e
vimte mill home~s de pee, archeiros, e espimgardeyros, e adargueiros, e d
azaguncho, e dezoyto mill de cavallo, e cento e cincoenta alyfantes; feyto ho
allardo, e visto por elle, vemdo a gramde artelharya que tinha, dise que com
sua artelharya queria desbaratar o rao de Narsymga, e que fizesem prestes
que llogo querya passar o ryo, e hir se ver com elle, o quoall foy olhado pello
ydallca~o que se contentara em estar ally, e d ally mamdar da sua gente que
correra~o ao arayall d elrey na~o se perdera elle nem perdera Rachol.
(4)
Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB
Estamdo os mouros asy diante d elrey olhamdo a gente, vira~o Xpova~o de
Figueiredo, e disera~o a elrey que ho vencimento e tomada da cidade se dese
aquelle framgue, que elle matara a seu capita~o, e com a sua gente matara
muytos mouros, por omde fora a sua perdiça~o, elrey pomdo os olhos em
Xpova~o de Figueyredo, damdo a cabeça, se virou aos seus dyzemdo que
olhasem quoanto vallya hu~u bom homem.
Veja-se que, no trecho (4), o verbo já significa `prestar atenção`, com emprego
de base discursivo-interacional dentro do texto, como elemento coesivo.
(5)
Crónica dos Reis de Bisnaga 16 CRB
Capitullo da maneira que se faz a sallema a elrey, &c. A maneira da sua
salema, que os capitae~es fazem a elrey, cada dia, he esta, como he manhaa
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va~o os capita~es ao paço as dez ou as omze oras, as quoaes horas sabe;
elrey de dentro d omde esta~o suas molheres, e despois que se asenta, abrem
aos capita~es, e vem cada hu~u per sy, e abaixa a cabeça, e alevamta as
ma~os, ysto chama~o salema, e com elrey esta~o obra de dez ou doze
home~s, os quoaes tem carreguo de em emtramdo quoalquer capita~o, diz a
elrey: Olhe vossa alteza o vosso capita~o foa~o, que vos fez salema. E os
reis de Bisnaga sempre tevera~o por estado terem muytos cavallos em sua
estrebaria, e sempre tinha~o oytocentos, novecentos cavallos, e quoatro
centos e quynhentos allyffantes, com os quoaes, e com a gente que os
curava~o, tinha muy gramde gasto;
Em (6), nos dois trechos, o valor de interjeição é bem claro.
(6)
Português medieval - Século XV:
Demanda do Santo Graal -
Ora pensa oimais tanto que Nosso Senhor haja de ti a cortiça e o meolo, pois
que o demo de ti levou os ramos e as folhas e a fruita.
– Ai, donzela, por Deus, olhade: queredes vo´s que vos tenha eu companhia e
que me levedes algur u possa achar per que mate minha fame?
E eu olhando vi vi~ir a donzela po´s mim que nom ousava ficar na foresta
com medo de a prender algue´m. Assi nos aconteceu de preito desta donzela,
empero ainda no[m] fezemos ne~hu~a cousa que se lhe a prol torne, ca maior
medo ha´agora que dantes.
Nom hajades pavor de mim pero hei sabor de vos olhar assi ca, se vos eu
olho, nom e´ maravilha ca, assi Deus ajude, vo´s sodes a mais fremosa cousa
que eu nunca vi.
Como salientamos, nesta fase do português, a maioria dos empregos
correspondem ao verbo pleno que, aos poucos, vai apresentando outras acepções mais
abstratas como no trecho (7) em que olhar significa ´cuidar`, `entender`, `alimentar`, ou
no trecho (8) em que olhar toma os sentidos de ´apreciar´, ´desejar´.
(7)
Ca o Senhor Deus, pello amor que te ha, no~ te leixaria seer mi~guado e~no
corpo, se te no~ rreco~pensasse e e~tregasse e~ outros do~o~es de graça.
Onde diz o Senhor Deus: Eu no~ julgo segu~do a face do home~. Ca o
home~ uee aquellas cousas que parece, mas Deus oolha o coraço~.
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(8)
Demetrio, cegou a sy meesmo, porque no~ podia oolhar as molheres sem
cobiçando-as, e por tal que no~ uise como pasauam bem os maaos. Ca Deus
fez ho homem dereyto, e a cobiça o souerte e e~curua o home~
Em (9), o verbo passa a ter valor de ´espreitar´, `espiar`
E hia-se a hu~u~ orto e oolhauo-o per hu~a freesta de hu~a camara em que
ele estudaua, que saya a aquele orto. E aas uezes andaua perante ele descalça
co~ as pernas descobertas, mostrando-lhe per sinaes e per geestos que o
amaua.
Nos trechos em (10), (11), (12) e (13), observam-se as acepções de ´atender´,
´observar´, ´apreciar´, ´desejar´, respectivamente.
(10)
E este bispo husaua de sotilezas em suas preegaço~o~es e no~ aproueitou
nehu~a cousa. E ento~ enviaro~ outro bispo de mais pequena leteradura, que
husaua de exemplos e de sinplezes falame~tos e~ seu[s] sermo~o~es. E este
co~uerteo a mayor parte dYngraterra. Onde diz Sam Basilyo que o Senhor
Deus no~ oolha
(11)
Onde diz Seneca que os nobres baro~o~es desprezam os doestos e no~
cuyra~ das e~jurias, ca propriedade he da grandeza uerdadeyra no~ se sintir
ferido das e~jurias, assy como a grande besta fera, quando lhe ladro~ os
ca~a~es, olha-os ma~samente.
(12)
Esto se faz cada dia, e poucos anos ha que uimos esto con nossos olhos e~
estes regnos de Portugal depois da morte delrrey dom Fernando, e esso
meesmo ora e ennos regnos de Castella, e~no destruyme~to delrrey dom
Pedro, que aquelles que era~ tam poderosos, que parecia que auia~ poderio
sobre as estrellas, que andaua~ co~ as cabeças aleua~tadas e~ tal guisa que
aadur se co[n]te~ptaua~ oolhar a terra per que auia~ de andar, tosteme~te
foro~ derribados, delles per morte e delles per perda de be~e~s e outros per
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esterrame~to, en tal guisa que todo o poderyo que ante ouuero~ foy tornado
e~ amargura.
(13)
Onde diz Sancto Anbrosio: Asy como aquelles que [per] sandice som
e~alheados e~na me~te, ya no~ ve~e~ as cousas uerdadeyrame~te mas ve~e~
a fantasia da sua paixom e da sua sandice, bem asy a me~te que he apertada
con as priso~o~es da cobiiça do ouro senpre vee ouro e prata, senpre conta as
rendas, mais graciosamente oolha o ouro que o sol.
Procurando estabelecer paralelo com a classificação de Rost, seguem alguns
trechos do português antigo, classificadas de acordo com as funções sugeridas pela
autora segundo algumas funções extraídas da taxionomia que ela postula para o
português de hoje. Em (14), há resquícios de interjeição com valor de exemplificação.
(14)
Século XV
Leal Conselheiro151437/38LC
Olhaaeas aves do ceeo que nomsemeam, nem colhem, nem ajuntam em celleiros, e nosso padre cellestrial
as governa. Vos mais e melhores sooes que ellas?
Em (15), olha apresenta função de advertência, visto que o falante adverte o seu
interlocutor em relação ao casamento.
Corpus do português
FONTE:
.
Data (1575)
Título Contos & historias de proveito & exemplo
Autor Gonçalo Fernandes Trancoso
bë, & de a dar a marido antes que aquelles viços a leuassem a torpe peccado,
determinou dar a hum mancebo tudo o que a pobre velha tinha, porque
casasse com a filha: tendo Primeira parte das historias para si que o marido
lhe faria fazer com o castigo, o que ellanam podia com ensino,
reprehensoës& exemplos. E cõ certada cõelle no dote, quis o mancebo que
nam dessem conta à moça ate que elle a fosse ver o dia seguinte, seguindo o
conselho do rifam, que diz. Antes que cases olha o que fazes, foy a velha
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contente, & disse que assi o faria: porem porque a filha estiuesse sobre auiso,
&namcaisse em algûa fraqueza a tal tempo, crendo que para casar tomaria
seu conselho, lhe descobrioaquella noite tudo o que passaua, dizendolhe.
Em (16), é clara a função de advertência, pois o falante está chamando a atenção do
interlocutor em função da maneira como fala, grosseiramente.
FONTE: SÉCULO XVII
Data (1640?)
Título Apolo
Autor Francisco Manuel de Melo
da mercê que me fizerdes. Soldado - Graças são graças, e não indulgências...
Pois à fé que não é tão longe do Rossio ao Terreiro do Paço, para que não
saibais. Lá, como cá, se negoceia. Não vedes o que diz o nome, donde está,
antes que "Paço", "Terreiro"? Parece que ignoras o costume. Fonte Velha - E
qual costume é esse? Soldado - Pagar entradas e saídas, como portas de
Argel. Fonte Velha - Maldito seja quem tais a-la-modas nos trouxe à terra!
Soldado - Mulher, olha lá como amaldiçoas: não toques no campanário!
Fonte Velha - Ainda me não arrependo de trocar pragas por injúrias, porque o
dar agradecimentos por agravos mais pertence aos lisonjeiros que aos
prudentes. Já disse um discreto que afidelidade do cão toda consistia em
muito interesse e pouca-vergonha, porque sofrem o pau a troco do pão; e
aquele que, a poder de afrontas, vos não desampara, vos deixa logo o
primeiro dia que lhe não dais que roer.
. Em (17), olha é empregado como mecanismo de planejamento verbal.
Data (1608-1666)
Título Apólogos dialogais
Autor Francisco Manuel de Melo
andam, se nao achem enganados uns nem outros. Pois, se os grandes
mostram que naosao aqueles que se fingiam, vejam também que nem os
pequenos sao aqueles aue se lhes mostravam, e assim estes e aqueles, como
comediantes, cada qual em seus trajes naturais, se recolham a sua casa
própria, que vem a ser a sepultura, donde I cada qual vai entao só com o
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cabedal que lhe deu a natureza, despindo os faustos e as tramóias com que,
para representarem suas figuras, os adornou a ambiçao ou a soberba. Olha:
no cabo do ano, ditosos e mofinos, todos ficam iguais. Para todos houve
verao e inverno, frio e calma; e assim ou assim, jantar e cea. Os prósperos e
desgraçados comparo eu com os velhos e os moços por uma ladeira acima: os
moços, porque de ordinário sao ágeis e robustos, sobem dum fôlego; os
velhos, fracos, pesados e doentes como costumam ser, vao devagar,
assentam-se em uma parte, descansam em outra e enfim lá sobem taobem
Já em (18), as formas olha exercem função exemplificativa
FONTE:
.
Data (1635)
Título Poesia e Pintura
Autor Manuel Pires de Almeida
o sétimo emblema de Alciato, com título: Non tibi, sedreligioni; e como se vê
nas costas das medalhas dos imperadores, quando têm esculpido donativos ao
povo, ou práticas a soldados, em que há multidão de figuras humanas. Três
diferenças há entre o revés da medalha e o emblema. Primeira, o emblema
tem sempre intenção universal, o revés a tem particular à pessoa cujo retrato
tem esculpido. Segunda, o emblema, como contém advertência, olha o
porvir; o revés, como atende ao louvor, que contém ações obradas, olha o
passado. Terceira, o emblema não se faz à honra, nem em louvor de pessoa
alguma, mas para admoestação; o revés, pela maior parte, é para glória e
exaltação da pessoa em cuja honra se fez a medalha.
A função interjetiva, em (19), é empregada em olhade (verbo no imperativo).
Demanda do Santo Graal - Séc. XV
– Ai, donzela, por Deus, olhade: queredes vo´s que vos tenha eu companhia e
que me levedes algur u possa achar per que mate minha fame?
Em (20) e (21), encontramos o emprego do verbo com funções exemplificativa e
retórica.
(20)
Castelo Perigoso 15 Estremadura
Das molher[e]s vem //veem// muitas vezes que, po(r) suas
sandias pallav(ra)s e p(er) sinaaes que most(r)am, p(er) se(us) oolhares e
contenenças, e p(er) out(r)as maneiras, que os home~es asrreq(ue)rem. E por
isto todos os rrelligiosos que de bo~o coraçom querem prazer e amar ao seu
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doce amigo e verdadeiro esposo Jh(es)u (Christ)o, deviam de fogir a todas
ocasio~oes que podem trazer pecado, as q(u)aaes homem
pode sab(e)r p(er) rrazom e p(er) verdadeiro e puro amo(r), sem [e]sc(ri)pto.
(21)
Orto do Esposo 15 OE
Onde diz Sancto Anbrosio: Asy como aquelles que [per] sandice som
e~alheados e~na me~te, ya no~ ve~e~ as cousas uerdadeyrame~te mas ve~e~
a fantasia da sua paixom e da sua sandice, bem asy a me~te que he apertada
con as priso~o~es da cobiiça do ouro senpre vee ouro e prata, senpre conta as
rendas, mais graciosamente oolha o ouro que o sol. E a sua oraçom e a sua
suplicaçom que faz ao Senhor Deus ouro dema~da, mas nu~ca a sua cobiiça
sera farta ne~ auera fim.
No trecho (22), o emprego da forma olha equivale a prestar atenção, enxergar dentro
de si mesmo. De acordo com a classificação de Rost (2002b), trata-se da forma olha
com traços do verbo que já possui valor pragmático dentro do texto na direção do
emissor.
(22)
.
Data (1300-1400)
Título Barlaam e Josephat (1967)
Expanded context: Jamais uos todos no ueeredes amjnha fase E elles quando vyrom queo nõ
podiam deteer chorauom muyto ho sseu desenparo E ntom tomou elRey pella
maao barachias e disse Jrmaaos. este uos hordeno por uosso Rey E barachias
cotradizia ffortemente. mais elRey ho ffez sseer na cadeyra Real cotra ssua
vontade. e posselhe acora Real na cabeça E oanel na maao com o era de
custume fazer aoRey E tornousse Josaphate cotra ho oryente e ffez oraçõ
anosso ssenhor por el e por todoo ho poboo do Regno E enssynou abarachias
todas as cousas que coue aboo Rey E disselhe hirmaao o olha mentes em ty
meesmo e em todo este poboo e que te ospritu santo fez Rey perao Regeres E
assy como tu ante conheseste nosso ssenhor e o seruiste em linpa coçiensia
bem assy te esfforsa agora mujto mais pera prazeres ael. guardando sseus
mandamentos ca quanto mayor ssenhorio Resebeste de deus tanto lhe es
mays deuedor E agora hirmaaos em comendouos adeus que uos pode edificar
e dar ha erdade co todollos sseus ssantos E tanto que esto disse nhor co
mujtas lagrimas e tornousse abarachias e beygouo e todos os prinçepes.
Veja-se em (23) em que Olha equivale a cuidado, semelhante ao que Rost encontrou em
dados do português atual. Em (24), no século XVI, também se verifica o emprego da
forma olha com função semelhante.
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(23)
Antes que cases olha o que fazes, foy a velha contente, & disse que assi o
faria: porem porque a filha estiuesse sobre auiso, & nam caisse em algûa
fraqueza a tal tempo, crendo que para casar tomaria seu conselho, lhe
descobrio aquella noite tudo o que passaua, dizendolhe.
(24)
e abaixa a cabeça, e alevamta as ma~os, ysto chama~o salema, e com elrey
esta~o obra de dez ou doze home~s, os quoaes tem carreguo de em emtramdo
quoalquer capita~o, diz a elrey: Olhe vossa alteza o vosso capita~o foa~o,
que vos fez salema. E os reis de Bisnaga sempre tevera~o por estado terem
muytos cavallos em sua estrebaria, e sempre tinha~o oytocentos, novecentos
cavallos, e quoatro centos e quynhentos allyffantes, com os quoaes, e com a
gente que os curava~o, tinha muy gramde gasto.
Neste caso, olha equivale a uma alerta. Ainda que haja vestígio de interjeição, seu
emprego tem valor pragmático no texto.
O levantamento da fala das crianças identificou muitos casos de olha com valor
verbal, ainda como interjeição, principalmente na fala dos entrevistadores. Poucos
foram os casos encontrados nas crianças entrevistadas. Nelas, a predominância é de
estruturas de maior facilidade no processamento.
( 25 )
Falante: 06 Ale
Sexo: feminino
Idade: 4 anos e meio
Escolaridade: Não escolarizado
Bairro: Quintino
Profissão dos pais: –
Classe: C
E: Mas você tem gatinho! Olha aí a Sandra falando.
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I: Como é nome do nosso gato?
F: Fofinhu, o outro Miguel sumiu.
......................................................
F: Olha na ponta do lápis! Firmi!
E: E você olhava na ponta do lápis. E que mais?
F: Não. Olhava assim.
E: É?
F: Ela mandô assim.
E: Olha na ponta do lápis firme.
F: É. Firme!
Encontramos também empregos com valor interacional e de formas mais
simplificadas, como o, sempre expressas pelos entrevistadores
(26 )
Falante: 03 Luc
Sexo: feminino
Idade: 05 anos
Escolaridade: –
Bairro: Mesquita
Profissão dos Pais:
Pai: cabo da Marinha (Santa Catarina)
Mãe: estudante universitária (Petrópolis)
Classe Social: B
E: É... conta pra nós.
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F: Foi é... (risos) Ela toxe refesco de laranja, e a outra toxe refesco de laranja
e a ota de uva... Depois, o macaco, é falou: “olha o macaco!”. Então é, o
macaco trouxe bolo, também, razinho de refresco!
E: Hm?
F: Cum rajinho de refesco.
E: Jarrinho de refresco.
E: É precisa ser rica, é?
F: É. Sabe por causa de que eu sei? É por causa de que eles falaram ali ó.
E: Eles falaram?
F: Eles falaram.
E: Que que cê acha...
F: A bique aqui ó.
E: Você gosta... o que que você acha que é mais bonito... oh... calça
comprida com blusinha, ou um vestidinho?
F: A dele é mais... desse tamanhozinho assim, ó [...]
F: [Ali]- ali... ali, aquele pequenininho ali... aquele... ali... aquele verde ali.
Tua pega a minha lição, pegô a tua... Ó lá mãe.
E: O quê?
F: Ó, ele tá cuma coisa vermelha.
E: Que coisa?
F: Vermelha ali, óia. Ó aqui.
E: Que coisa?
F: Num sei.
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E: Um grampeador.
F: Ó, fala pá... Dona Carme, é, é, Dudu da Maria, [Maria da Paula], é, Maria
da Paula, é,... Maria do Gê e Vivi.
E: Mas...
F: E Nelci.
E: Não fizeram nada? E você, o que que foi que você fez?
F: Fiz nada. Aí, ó, mãe, aí o macaco, né?, chamou o Emmerson pra jogar
bola. [Quem foi?] Quem foi? Quem chamou?
E: Você não ficou com medo do Emmerson ir não? Ficar no meio dos
bichos? O macaco.
E: Por que você brigou com a Iara? Ela chamou você de não sei o quê lá.
F: Ó, eu e a Liane tava ali, eu fui chamá Liane, aí a Iara passou ali, ahhh, aí o
Cacá segurou a Liane, aí a Iara começou a bater na Liane. Então a Liane
ficou chorano.
E: É mermo, é... a Iara bateu na Liane... e a Liane ficou chorando. E você o
que fez?
As crianças preferem a forma simplificada o, predominante, como operador
discursivo em contextos interacionais. Há alguns usos da forma olha, no entanto, não
com os traços do verbo: a forma olha de valor discursivo alterna com a variante oia nas
crianças que ainda não conseguem operar a palatalização. O gráfico a seguir representa
a distribuição de tais empregos nesta amostra constituída de de 4 a 9 anos.
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Gráfico I: Distribuição de empregos das formas o, oia e olha em crianças.
Pelo gráfico I, a forma simplificada ó é fortemente prevalente. Os empregos de
olha, variando com oia, refletem um quadro de que nem todas as crianças processam a
palatalização. O domínio da operação de processo fonológico mais complexo, porém,
não revela relação necessária com a idade da criança, como se atesta no Gráfico II. Vale
um estudo mais aprofundado para verificar que variáveis atuam para que a palatalização
se processe nas crianças neste e em outros itens no vocabulário infantil.
89%
7% 4%
Ó
Olha
Oia
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Gráfico II: empregos de ó, oia e olha por idade
Segundo o Gráfico II, podemos afirmar que (a) ó é a forma preferida em todas as
idades dentre as três contabilizadas e (b) a forma oia desaparece a partir de 6 anos, o
que equivale a dizer que o processo fonológico de palatalização, em sujeitos típicos, é
adquirido finalmente, ao menos em comunidades urbanas, embora já comece a ser
operado a partir de 4 anos. Segundo os dados, a forma olha não é a preferida pelas
crianças. É de se supor que venha a ser empregada em idade mais adulta, quando o
verbo olhar venha a ser fixado no vocabulário do falante. Tal hipótese também merece
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
4 anos 5 anos 6 anos 7 anos 8 anos
Ó
Olha
Oia
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pesquisa em separado que compare o universo vocabular de falantes maduros com o de
aprendizes.
À guisa de conclusão
Neste artigo, reiteramos primeiramente os achados de Rost em dados do
português medieval e antigo. Atestamos a procedência da hipótese da
multifuncionalidade do verbo olhar desde os primórdios do português, proposta que a
autora lança com base em dados do português moderno. Assim, fica comprovado que a
forma olha, mesmo na origem do português, apresenta emprego com base pragmática
ainda que preserve, em alguns casos, valor de interjeição e dos traços de verbo pleno.
Além disso, oferecemos ainda achados novos à pesquisa ao examinar a fala de
crianças. A forma olha só se estabiliza mais tarde nos falantes maduros. A forma
prevalente é ó, sempre com forte base pragmática, seja empregada nos textos, seja em
situações interacionais (cf. gráficos I e II). A forma intermediária oia parece ser a que
emerge nas crianças quando elas ainda não operam a palatalização com segurança.
A nossa hipótese de que os processos históricos e aquisitivos são diferentes
ilustra-se com mais clareza no gráfico III.
Gráfico III: Competição entre as formas olha e ó na trajetória da língua
portuguesa.
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O gráfico III confirma a presença das formas olha e ó desde o século XIV. À
exceção do século XV, ambas as formas são usadas com frequência bem semelhante.
No século XX, após o pico de usos de ambas as estruturas no século XIX, há um
decréscimo no emprego de ó e olha se mantém num mesmo patamar de uso, superior ao
de ó.
A figura nos remete a algumas suposições: (a) ambas as formas são bastante
usadas com valor pragmático, com a presença ou não da base interjetiva; (b) a forma
olha com valor pragmático no texto e em contextos interacionais é preferida por ser
mais próxima do verbo de que deriva e assim manter alguns dos seus traços; (c) entre as
estruturas ó e olha, a forma mais sintética ó parece ser a menos formal, haja vista o fato
de as crianças utilizarem-na fartamente em detrimento das demais olha e oia. O que
estamos postulando em (a), (b) e (c), no entanto, são hipóteses que deveriam ser
confirmadas em investigações que levem, minimamente, em conta os contextos de uso,
a função das estruturas, os gêneros e tipos textuais de que emergem.
Século XIV Século XV Século XVI Século XVIISéculo XVIII
Século XIX Século XX
Olha 1 18 114 93 64 1626 1682
Ó 31 10 496 117 111 2190 918
0
500
1000
1500
2000
2500
Olha x ó
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Recebido Para Publicação em 28 de dezembro de 2011.
Aprovado Para Publicação em 23 de janeiro de 2012.