origem das idéias morais (manuel s. porteiro)

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Origem Das Idéias Morais (Manuel S. Porteiro)

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  • ORIGEM DAS IDEIAS MORAISMANUEL S. PORTEIRO

    PENSE - PENSAMENTO SOCIAL ESPRITA

  • Manuel S. Porteiro u Origem das Ideias Morais

    Origem das Ideias Morais Autor: Manuel S. Porteiro (1881-1936) Ttulo original: Origen de las Ideas Morales Edio em castelhano: Obra pstuma lanada juntamente com o livro Conceito Esprita de Sociologia (Concepto Esprita de la Sociologia), pela Ediciones Cima (Venezuela), em dezembro de 1998. Edio Digital: PENSE u Pensamento Social Esprita

    www.viasantos.com/pense Traduo: Jos Rodrigues Imagem da capa: Black Circle (1924), de Wassily Kandinsky (1866-1944). Reviso, notas e produo grfica: Eugenio Lara

    maio de 2009

    PENSE u Pensamento Social Esprita 1

  • Manuel S. Porteiro u Origem das Ideias Morais

    PENSE u Pensamento Social Esprita

    2

    3ndice Apresentao 3 Prlogo 5 Consideraes Gerais sobre a Moral Estabelecida 16 Consideraes Gerais sobre a Moral de Princpios 39

  • Manuel S. Porteiro u Origem das Ideias Morais

    PENSE u Pensamento Social Esprita

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    Apresentao

    Com esta obra, o Pense d mais um passo para a expanso do pensamento de Manuel S. Por-teiro, de nacionalidade argentina, com profunda influncia sobre a construo esprita, em seu as-pecto sociolgico.

    Por serem seus originais em espanhol, e dada

    a linha filosfico-social de Porteiro, sua contribuio a uma estrutura dinmica e progressista do espiri-tismo permaneceu, por dcadas, de conhecimento restrito de espritas de lngua portuguesa.

    O Pense, orgulhosamente, contribui para o

    renascer do pensamento porteiriano, fazendo-o cerca de 70 anos aps sua desencarnao. um esforo idealstico e voluntrio, uma reafirmao de que as boas obras se propagam no tempo, inde-pendentemente de sectarismos, interesses comer-ciais ou individuais.

    Eximimo-nos de apresentaes biogrficas do

    autor, que os interessados encontraro em outros trabalhos no site Pense, para nos situarmos em fun-damentos de suas ideias, com vistas a acertar em cheio, hipocrisias, desmandos, presses do poder econmico sobre conceitos de justia, enquanto for-mados por objetivos grupais e temporais.

    Como crtico implacvel das causas das guer-

    ras, Porteiro ataca: Na suposio de que a guerra

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    inevitvel coisa que no podemos admitir faz-na quem tem interesse nela, mas ningum est moralmente obrigado a secund-la, convertendo-se em um criminoso, autmato, ou num monstro san-guinrio disposto a fazer tudo o que em tal sentido se lhe ordena.

    O transcurso dos cerca de 70 anos decorridos

    entre os momentos vividos por Porteiro e os atuais, de nenhuma forma tornam suas teses vencidas. ti-ca, moral, justia, imortalidade, so conceitos con-frontados e debatidos com autores ilustres da poca, naquela linguagem firme e vigorosa que costuma-mos ver no autor.

    Em seu retoque final de Origem das Ideias Mo-

    rais, Porteiro sustenta que A nova moral que emana do espiritismo cientfico vem, pois, transformar por completo a sociedade, e a sua influncia estar liga-da ao desaparecimento de muitos crimes, de muitas injustias, mentiras e imoralidades que se tm hoje por morais e sagradas.

    Jos Rodrigues maio de 2009

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    Prlogo Seria sem dvida proveitoso fazer, como incio

    de nosso estudo, uma terminologia das inumerveis definies que se tm dado moral, analisadas de-tidamente e, depois de um extenso exame, escolher entre elas a que mais se ajustasse ao nosso critrio.

    Assim, formaramos uma ideia cabal da diver-

    sidade de opinies que existem em matria de moral e evitaramos o trabalho de adicionar uma definio alm das muitas j dadas. Mas esta exposio e es-ta anlise, alm de resultar em tarefa pesada, no faria mais que confundir a inteligncia do leitor e, provavelmente, no satisfizesse nosso desejo.

    Por outra parte, no curso deste trabalho, o leitor

    encontrar, embora em forma menos esquemtica, a exposio dos principais sistemas ticos e a sua crtica arrazoada.

    Para o sentido deste trabalho e a finalidade a

    que nos propomos, basta dizer que entendemos por moral a cincia que trata da conduta que deve seguir o homem como ser socivel, em relao com sua dupla natureza, material e espiritual e de acordo com as leis ideais que regem seu destino superior.

    Entendemos por moralidade esta mesma con-

    duta inspirada no bem de nossos semelhantes e quanto seja possvel nos demais seres que nos

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    rodeiam, na justia dos direitos prprios e alheios, na verdade e na beleza moral das aes.

    Etimologicamente, moral (do latim mores; do

    grego tica), significa costume e, desde logo, se te-mos de tomar o termo em seu sentido estrito, to mo-rais resultariam as aes boas ou ms, e o negativo imoral s significaria o contrrio aos costumes e de nenhum modo a anttese da moralidade, posto que entre os costumes estabelecidos pela sociedade e a moral propriamente dita, costuma haver, ou melhor dizendo, h, em muitos casos, verdadeira antinomia.

    O mesmo poderamos dizer da palavra amoral,

    termo neutro, entre o moral e o imoral que, em sua verdadeira acepo, significaria o indivduo sem cos-tumes e em sentido mais lato, o que indiferente aos costumes estabelecidos pelo meio social e as leis civis.

    No obstante, poucas vezes se usa esta pala-

    vra em seu sentido direto; em geral, emprega-se pa-ra qualificar as pessoas que se supem incapazes de distinguir o bem do mal, a justia da injustia, a virtude do vcio, aos que carecem de elevado senti-do moral ou de moralidade.

    Mas, por regra geral, habitualmente, escravo dos

    costumes e das leis civis, tem apenas rudimentos de moralidade e as noes de caridade e de justia que possui esto muito abaixo dos costumes e obrigaes legais que pratica e, no revs, em muitos casos, aque-

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    le que se afasta da rotina e no aceita as imposies legais est, amide, acima desse nvel moral.

    Assim, para no cair em lamentveis confuses

    e ainda usando esses vocbulos no sentido corren-te, fazemos notar que entendemos por moral, mora-lidade, justia, deveres e direitos etc. coisas, na mai-oria dos casos, muito distintas e at certo ponto anti-nmicas s que, com estes nomes, tm estabelecido os convencionalismos sociais e a legalidade.

    Portanto, quando a claridade e a verdade do

    assunto o requeiram, no vacilaremos em aplicar termos apropriados e convenientes, chamando as coisas pelos seus nomes verdadeiros.

    Esta distino que estabelecemos no de

    nenhum modo arbitrria nem caprichosa. Tem, pelo contrrio, um alto valor filosfico e moral desconhe-cido somente pelos professores de filosofia escols-tica, apegados aos preconceitos sociais, encarrega-dos de produzir textos para as aulas universitrias, voltados para os interesses criados pela constituio econmica e poltica da sociedade e de acordo, em alguns casos, com a autoridade eclesistica.

    Em primeiro lugar, pretendemos no cair na

    confuso e no engodo intencional ou no dos casustas e moralistas a que aludimos, que estabe-lecem deveres e direitos circunstanciais, em conflito, as mais das vezes, com os preceitos da lei moral e em aberta oposio ao direito natural, justia e a toda verdadeira caridade e que usam e abusam de

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    seus to manuseados deveres, receitando-os com to minuciosa prodigalidade para todas as situaes da vida como fazem maus mdicos que, incapazes de conhecer a origem e a natureza das enfermida-des, para toda doena receitam o mesmo paliativo sem compreender, ou compreendendo, o seu proce-dimento arbitrrio.

    Em segundo lugar, para significar que os cos-

    tumes e a legalidade, a moral de fato, nem sempre est em boa parceria com a moralidade, ou seja, com a moral de direito.

    A cincia dos deveres e a arte de bem viver

    que os filsofos escolsticos estabelecem em suas definies da moral resultam demasiado ambguas para que lhes concedamos um valor absoluto e as adotemos como termos conciliatrios entre o direito legal e o direito natural.

    Se toda cincia o conhecimento das coisas

    por suas causas ou princpios retos e racionais, em matria de moral todo escritor honrado est na obri-gao de mostrar os princpios sobre os quais se assentam esses deveres que postulam e conhecer a sua legitimidade. A arte de bem viver no to pre-ciosa e decisiva para traar-nos normas de conduta inequvocas.

    Pode-se viver muito bem, mesmo s expensas

    dos demais e fazendo-lhes todo o dano possvel e viver muito mal fazendo todo o bem imaginvel, le-vando o altrusmo e a virtude at o limite da santida-

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    de. Quem ousar dizer que o rico avaro, o capitalista acumulador, o comerciante inescrupuloso, o credor mesquinho, o agiota indecoroso etc. no praticam a seu modo a arte de bem viver?

    Devemos, pois, delimitar posies baseando os

    preceitos morais sobre o direito natural e a lei ideal de nossa vida e de acordo com eles formular nossa crtica raciocinada dos deveres e direitos estabelecidos por sua fora legal e os convencionalismos sociais.

    Para os que creem que as ideias e sentimentos

    morais tm uma origem exclusivamente emprica, que so mero produto mesolgico, uma criao do meio ou um reflexo da economia, nossa distino carecer de verdadeiro fundamento, posto que para eles toda moral manifestamente objetiva e neces-sariamente varivel, um epifenmeno, um efeito pro-duzido por uma infinidade de causas materiais e ce-gas que contribuem fatalmente para sua formao.

    Mas ns que cremos que os princpios morais

    so imanentes na conscincia humana, que esto su-jeitos s leis ideais de nossa vida individual e social e que atuam em concordncia com nossa natureza, pa-ra ns, dizemos, tem um significado muito preciso: estabelece diferenas fundamentais entre a moral con-trariamente aplicada e a moral de princpios.

    Esta distino no pode, em boa lgica, ser es-

    tabelecida pelas escolas filosficas que atribuem uma origem extrnseca s ideias morais, que creem que a estrutura econmica da sociedade, o meio social, a lei

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    civil e a educao so as nicas fontes da moralidade, pois sendo estas causas alheias nossa conscincia e nossa vontade, e em muitos casos contrrias a elas, de fato seramos arrastados a um fatalismo moral anlogo ao fatalismo psicolgico ou histrico.

    E neste caso, a que ficam reduzidos a justia e

    o direito? A liberdade e a responsabilidade? E nesta ltima anlise, que vem a ser a moralidade? Que esse desejo natural e constante de bem comum e de aperfeioamento, essa tendncia para a fraternidade e igualdade humanas? Por acaso, um hbito men-tal fixado por herana? Uma aquisio acidental da espcie humana, enganosa fico pelo caos da matria eventualmente organizada, feito pensamen-to de si mesma, lutando arbitrariamente contra seus desejos e paixes e crendo-se mais digna de sua prpria origem?

    Repetimos: para distinguir a justia e a morali-

    dade e apreciar o valor das aes, mister partir da imanncia dos princpios morais, considerando-os prprios do esprito; e toda doutrina que prescinda destes princpios e de sua natureza, ou os subordine s convenes sociais e s influncias do meio, con-fundindo a moral com a cincia dos costumes, con-duz fatalmente ao amoralismo ou ao fatalismo moral.

    * * *

    Cometeria um equvoco aquele que imagina en-contrar nesta obra uma tica fundamentada nos dog-mas de uma determinada religio, mas se equivocaria

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    igualmente quem pretendesse v-la alicerada sobre a areia movedia do materialismo.

    Se as religies positivas, escudando-se em pre-

    ceitos de moral s que esto muito longe de seguir e cuja antiguidade se perde na noite da histria torcem as inclinaes naturais do homem e afogam as pai-xes e as necessidades mais legtimas de sua vida; se, por ignorncia, fanatismo ou adaptao, proces-sam suas ideias e sentimentos morais por caminhos tortuosos e falsos, desvinculando-os da natureza e de suas leis e convertendo-o em um ente insocivel, mo-ralmente deprimido, em um solitrio ou em um hipcri-ta, intil para si e para seus semelhantes, imprestvel para Deus e para o mundo; se as religies positivas, enfim, partindo de princpios morais, eternos e imut-veis chegam, por seu abrandamento, imoralidade e corrupo, o materialismo, no obstante a recomenda-o dos mesmos preceitos de moral s, partindo da amoralidade de suas concepes filosficas, formula diversos sistemas ticos, sem lgica e sem verdadeiro fundamento cientfico que conduzem fatalmente ao niilismo moral.

    Levado por um incompreensvel zelo moraliza-

    dor, pretende fazer do homem um super-homem, con-verter o egosmo em altrusmo e a sociedade em um den paradisaco, e o nico que consegue com sua estreita concepo da vida quando a ele se opem os sentimentos morais que, por razes no materialis-tas, costumam estar em luta com suas doutrinas fazer do homem uma fera incontinente e desenfreada, ou um suicida, converter o egosmo natural em um

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    egosmo artificial e dissimulado e fazer da fora da astcia a suprema lei do direito.

    Se para ser bom no se necessita crer em

    Deus, nem ser necessariamente mau para neg-lo; Se como diz L. Viardot a crena na vida futura

    no necessria para a manuteno da sociedade nem para a prtica da virtude;

    a negao ateu-materialista tampouco necessria e sob nenhuma hiptese pode considerar-se prefer-vel afirmao cientfica do espiritualismo moderno para fundamentar a justia e a moralidade e, por conseguinte, com a mesma ou com maior razo po-de prescindir-se dela sem menosprezo das leis da sociabilidade e da prtica da virtude.

    A lei moral afirmamos com Plato precede a lei

    religiosa e acrescentamos com ele, o santo no santo seno porque justo. O sentimento do bem e da justia um fato

    primitivo na natureza humana, anterior a toda cren-a, seja esta afirmativa ou negativa, mas no exclui o raciocnio nem a finalidade que, por lgica, se de-duzem das aes.

    Uma moral raciocinada e consciente da finali-

    dade que persegue ser sempre superior a uma mo-ral instintiva interesseira, rotineira ou inconsciente.

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    E desde logo, para ser lgica e conscientemente moral, necessrio crer nas ideias e sentimentos mo-rais, no como uma aquisio acidental acumulada pela experincia da espcie e transmitida por herana, subordinada fatalmente s influncias de ordem exte-rior, no como manifestao surgida do caos e do na-da, exposta a toda classe de eventualidades, nem co-mo mero instinto orgnico e cego, alheio vontade e razo, como pretendem as diversas escolas materialis-tas, seno como princpios uniformes e invariveis, inerentes nossa natureza psquica e de todo ser irracional, sujeitos nossa vontade e nossa razo, dentro do limite da capacidade e do poder de cada indivduo; necessita-se conhecer a razo de ser moral, o fundamento ltimo sobre o que se apia a moralida-de; saber porque temo-nos de inclinar ao bem, ver-dade e justia, ainda que isto nos prejudique, e no ao mal, injustia e mentira, ainda que com isto nos beneficiemos; necessrio, enfim, admitir uma justia suprema, eterna e imutvel, equnime e previdente da finalidade moral que perseguimos, que nos justifique a razo e o porqu das nossas aes moralmente boas e que, tendo estabelecido desde toda eternidade a lei de compensao e consequncia, d a cada ser a jus-ta sano de seus atos, tendo em conta, alm de sua natureza e sua capacidade, os motivos e as intenes que escapam da justia humana.

    No entendemos a referncia a prmios e

    castigos das religies positivas, incompatveis com a justia natural e divina que achamos nas mesmas leis da evoluo e do aperfeioamento de cada ser e que atua de acordo com sua natureza perfectvel.

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    Os prmios e castigos teolgicos, sendo a mani-festao expressa de uma vontade arbitrria, oposta natureza do homem, so prprios de um deus brbaro, antropomorfo e pessoal que, por inverso lgica e cro-nolgica, cria antecipadamente os lugares de suplcio e de bem-aventurana, o mal e o bem e assim formam as criaturas imperfeitas, propensas ao pecado e dota--as de um livre-arbtrio que, em tal caso, de nada lhes valer, se se tem em conta que ele, cuja oniscincia se reconhece como principal atributo, tem previsto desde toda a eternidade o fim eternamente feliz ou desgraa-do que a cada uma delas espera.

    parte do bem pelo bem em si mesmo em que

    devem inspirar-se nossas aes, necessita-se de uma razo lgica, um fundamento ltimo, uma base cientfi-ca inamovvel sobre a qual se assentam as ideias mo-rais. E esta garantia encontramos no espiritualismo cientfico, nas doutrinas reencarnacionistas isentas de todo dogma religioso, na evoluo ascendente de nos-so esprito, em seu progresso eterno e indefinido.

    Se as crenas no fundamentam a moral, no

    se pode negar que influem sensivelmente nas aes humanas, segundo as inclinaes do homem. Negar isto negar os dados da psicologia, da sociologia e da histria e omitir a influncia que tm exercido nas reformas e nas revolues sociais.

    Inutilmente diz Emile Saisset a experincia de

    vida vem aumentar a noo do bem sensvel e a trans-form-la na noo mais geral de bem-estar; este , toda-via, um bem relativo que no leva em si a razo de sua

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    existncia. Para encontrar-se um bem que seja verda-deiro por si mesmo mister que o homem saia de si, e perceba que seu destino se liga a um princpio superior que o domina e abraa. Ento s capaz de atuar mo-ralmente; s assim estar de posse da lei de seu desti-no). (Moral, pg. 333)

    E este vnculo, que existe entre o destino do

    homem e seu princpio superior, o encontramos no espiritualismo.

    O nobre ensinamento de Herbert Spencer de que

    os homens so melhor educados deixando-os sofrer as consequncias naturais de suas aes, o mesmo do espiritualismo moderno acerca da transio a outra fase da vida. No haver prmios nem castigos impostos; ca-da um sofrer as consequncias naturais e inevitveis de sua vida bem ou mal empregada. (Alfred Russell Walla-ce, Defesa do Espiritualismo Moderno, pg. 104).

    Damos por terminada aqui estas consideraes

    preliminares, feitas guisa de prlogo, expressando nossa posio franca nesta rdua matria em que cada filsofo tem deixado seu valioso caudal de re-flexes, ainda que pouco ou nada reste para acres-centar mas sim, muito, muitssimo que aprender e refletir e tambm muito que analisar e criticar.

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    Consideraes Gerais sobre a Moral Estabelecida

    um fato universalmente conhecido que onde h sociedade h costumes e convenes, reciproci-dade e interesses e que, onde estes existem, h tambm direitos e deveres e, assim, poderes legisla-tivos e jurdicos que ditam e sancionam leis, julgam as aes individuais e coletivas, condenam, absol-vem, premiam ou castigam, inspirados em cdigos feitos ex-profeso (de forma magistral, no latim), de acordo com a estrutura econmica e poltica da so-ciedade em cada povo e poca da histria.

    A tudo isto se tem dado o nome de moral. Mas

    como os costumes e as leis da sociedade no esto baseados em princpios eternos e invariveis, nem alicerados sobre verdades absolutas, seno sobre convenincias momentneas e verdades relativas, resulta que a moral social no uniforme nem satis-faz razo e ao sentimento universais.

    No poderia ser de outro modo, posto que, sen-

    do a sociedade suscetvel de modificaes, sujeita lei de evoluo e do progresso, composta de elemen-tos heterogneos, tanto em interesses como em cos-tumes, em crenas e aspiraes, com cultura e educa-o desiguais, e de certo modo contraditrias, no po-de estabelecer uma tica estvel e de alcance univer-sal, ainda mais quando esta se baseie sobre o privil-gio e se formula para regulamentar interesses opostos, para prescrever unilateralmente falsos deveres, exclu-

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    indo a verdadeira lei moral cujos fundamentos no es-to nem nos cdigos, nem no meio social.

    Que a moral estabelecida pelos costumes e leis

    civis uma moral de circunstncias e de interesses opostos, incapaz de traar ao homem normas de conduta em concordncia com o direito natural e com o verdadeiro objeto de sua vida que no certamente viver por viver e dar-lhe uma lei uni-forme e de preferncia sobre as aes morais, uma verdade que se evidencia por si mesma e seria atrevido quem pretendesse neg-la.

    Pois a moral social e a legalidade inclusive, no

    so mais que um conjunto de contradies, mescla hbrida de hbitos, costumes, crenas e de interesses, um sincretismo de doutrinas cujos pontos de vista so heterogneos e antinmicos, como diversas e opostas so as aes individuais. Em vo buscamos em nos-so mundo chamado civilizado as bases morais da vida. como se no existissem, disse o grande Tolsti.

    H, com efeito, neste mundo de interesses e de

    relaxados costumes, infinidade de religies, de ideo-logias e de sistemas filosficos, cujos preceitos mo-rais so impossveis de conciliar.

    Ao lado da doutrina mais conservadora e aco-

    modatcia, se encontra a mais evolucionista ou revo-lucionria. Umas propagam a submisso e a mansu-etude; outras, a altivez e a rebeldia: estas ensinam o sacrifcio e o herosmo; aconselham seus antpodas, o egosmo e o interesse.

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    O que virtude para umas aviltamento para outras; junto s que nos prescrevem deveres e obri-gaes, como moralmente bons, esto os que nos eximem deles, por consider-los moralmente maus e, por outro lado, nos cedem direitos que negam os ou-tros por idnticas razes.

    Quanto ao fim moral das aes, existe a mes-

    ma divergncia. Veja-se, por um lado, as que redu-zem a felicidade e o objeto da vida na acumulao de riquezas materiais, no gozo efmero que estas proporcionam, e o mrito na habilidade para conse-gui-las: aos que no encontram outro fim que a satis-fao dos apetites sensuais, que o gozo inconsisten-te como nico objeto digno da vida: tudo o que nos aproxime deles moralmente bom; o que deles nos afaste mau e, portanto, imoral.

    O mrito consiste em saber desfrutar sem risco

    nem pesares. Em contraposio a estas correntes doutrinrias infiltradas nas artrias da sociedade, cor-rem, paralelas, mil doutrinas idealistas e outras que podemos qualificar de extra-humanas: umas buscam prazeres mais espirituais; as outras lhe superam: re-negam todos os prazeres da vida e aconselham a re-nncia dos gozos sensuais e de todas as riquezas e comodidades: cnicos, esticos e cristos. O prazer ensinam os primeiros um mal, o padecimento um bem. Suporta e abstm-te, repetem os segundos. O sexto, no fornicar preceitua a lei crist: mais vale casar-se do que abrasar-se, acrescenta So Paulo. Vende o que tens e d o resultado aos pobres. Ao que te bater na face esquerda, oferece-lhe a direita. E

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    a regra dos agostinianos termina: Um religioso deve deixar-se guiar como um animal de carga pela correia da obedincia. E outras mil doutrinas que gravitam ao redor do corpo social, respondem por sua vez: Isto imoral; isto agrada aos poderosos, alegra aos tiranos, humilha os indivduos e os povos; isto rebaixa a mo-ral, atenta contra a natureza e contra a espcie huma-na, vai contra a justia, forma escravos e gera Neros.

    A cada passo que damos na sociedade nos

    deparamos com um dogma, uma sentinela moral, que guisa de arma, leva um mandato no ombro, disposto a fazer disparos em qualquer direo; to logo nos veja, adverte: Daqui no se pode passar; este o limite. Retrocedemos. E topamos com outro que nos diz o mesmo, e assim em todas as direes.

    Mas se foramos o passo, vemos que s suas

    costas e fora de seu domnio aparece outro guardio de ordem moral de distinta indumentria e disciplina oposta que, longe de dificultar-nos o passo, apenas lhe damos aceno, diz-nos, enquanto burla seu vizinho contrrio: Adiante! Por aqui no h perigo. Em mat-ria de moral, por todas as partes estamos rodeados de dogmas e preceitos nocivos que se mostram dceis e complacentes, assim que aceitamos a sua causa.

    Folgo dizer que deste mar de opinies, de dog-

    mas e de matizados costumes, no pode nascer a lei moral universal que sirva ao indivduo para valorizar seus atos e estabelecer suas prprias preferncias.

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    Quando no se faz mais que considerar os costu-mes dos outros homens diz Descartes quase no se encontra um em que se apoiar, notando-se neles tanta diversidade como entre as opinies dos filsofos.

    O mesmo podemos dizer das leis civis: estas,

    alm de ser contraditrias, so estticas e naturais; esto fundamentadas em bases econmicas da so-ciedade; so o reflexo de uma poca, do modo de produo e repartio da riqueza social; esto a fim de manter a ordem estabelecida, que est fundada na injustia, sobre a desigualdade e a explorao do homem; no se inspira no direito natural, nem na fraternidade, nem na solidariedade, mas no interesse particular e no egosmo; no se estabelece sobre a fora da razo, mas sobre a razo da fora. Por isso, a ordem social no pode se manter seno por fora dos exrcitos, das metralhadoras e das baionetas.

    Ao amparo da justia codificada em nome da

    lei, cometem-se crimes os mais horrorosos, as maio-res imoralidades. No ser demais um pouco de a-nlise para demonstrar aos casustas e demais mo-ralistas preconceituosos, quo longe esto da ver-dadeira lei moral que tanto apregoam, ao estabele-cer deveres apoiados nos absurdos e despropsi-tos da legalidade e aconselhar sua obedincia.

    Analisemos: a lei civil castiga o homicdio no

    indivduo que, por motivos e razes prprias, mata um semelhante; penaliza o roubo, o assalto, a viola-o da propriedade privada e da mulher, o porte de armas, o abuso do lcool, a embriaguez etc.

  • Manuel S. Porteiro u Origem das Ideias Morais

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    Bem, isto acontece em tempo de paz. Estoura a guerra e a justia legal, a lei codificada veste a toga do avesso. Existe um dever, mais, uma obrigao. Em que consiste? No porte de armas um arsenal no basta , de venenos, de gases asfixiantes etc. em al-coolizar-se para ter mais valor, menos reflexo e piedade na execuo do grande crime violar domic-lios e estuprar mulheres, em assaltar, matar, assassi-nar, destripar, mutilar, envenenar, asfixiar, roubar etc.

    A extravagncia humana deste planeta disse

    Flammarion est disposta de tal maneira que em lugar de se levar uma vida tranquila, laboriosa, intelectual e feliz, se suicida perpetuamente, abrindo-se veias e jorrando seu sangue em frenticas convulses. Vejam o que faz essa humanidade: escolhe seus filhos mais fortes, cria-os, ali-menta-os, rodeia-os de cuidados at a plenitude de sua idade viril e logo os enfileira metodicamente. Como no dispe mais de que 35.525 dias por sculo e necessita es-faquear 40 milhes de indivduos, nem um s dia solta sua faca, degolando, sem cansao 1.100 dirios, quase um por minuto, 46 por hora! No h tempo a perder, porque se por casualidade descansa apenas um dia, o trabalho dobra no dia seguinte e 2.200 condenados esperam sua vez.

    A faca de Marte tira sem trgua o sangue das veias:

    e se tm derramado 18 milhes de metros cbicos. Os recursos ganhos penosamente pelos trabalhadores no bastam e j faz muito tempo. necessrio o emprstimo, tomar emprestado sempre e descontar no futuro.

    A dvida pblica das diversas naes do mundo se

    eleva a centenas de bilhes que gravitam sobre a huma-nidade entorpecendo seu progresso e arrastando os po-vos bancarrota.

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    E essas dvidas, esses sacrifcios, esses impostos de todo gnero, esse aumento constante do mal-estar pblico, a quem interessa? Para que serve? Para tirar braos da agricultura, esterilizar a terra, preparar a fome universal e para matar-se mutuamente.

    E tudo isto entra no dever ineludvel da ptria,

    que nos impe a justia legal e nos ensinam os tex-tos de filosofia escolstica e considerado como uma das virtudes sociais mais meritrias, como a-es moralmente boas, dignas de ser premiadas com o distintivo da honra e do herosmo!...

    Experimente o leitor embora o faa contraindo

    seus dois hemisfrios cerebrais conciliar este hor-rendo crime legal com a verdadeira moralidade, com a caridade, com o direito natural e com a justia; e diga, de acordo com a sua conscincia e com a magnitude de um Deus justo e bom, depois de obrigar a cometer tais atos de barbrie em nome da lei e premi-los co-mo meritrios, se, em nome desta mesma lei, pode-se condenar ao presdio um homem que rouba um po para sua subsistncia, ao que em um momento de perturbao, por motivos prprios ou razes justifica-das, mata a um semelhante, ou ao que, levado pelo seu temperamento sensual, ou de uma paixo desen-freada, violenta uma mulher etc.

    Dir-se- que tudo isto sucede em tempo de

    guerra e que, portanto, o indivduo no respons-vel pelo mal que faz; que a guerra um fenmeno social inevitvel e que as naes, para salvaguarda de seus interesses, tm estabelecido esse dever.

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    Na suposio de que a guerra inevitvel coisa que no podemos admitir faz-na quem tem interesse nela, mas ningum est moralmente obri-gado a secund-la, convertendo-se em um crimino-so, autmato, ou um monstro sanguinrio disposto a fazer tudo o que em tal sentido se lhe ordena.

    Se a guerra fosse um fenmeno social inevit-

    vel, tambm o seriam todas as aes humanas. Que razo haveria, ento, para castig-las ou premi-las? O fatalismo histrico se cumpriria a despeito de to-das as prevenes, de todas as leis e de toda a pru-dncia e sabedoria humanas.

    Se a sociedade, como entidade nacional, estabe-

    lece esses deveres para salvaguardar seus interes-ses, perguntamos: quem concedeu sociedade, ou melhor dizendo, ao Estado, o direito selvagem e per-verso de servir-se de um ser humano como instrumen-to do crime, do assassinato e do roubo? E que interes-ses so esses que requerem o sacrifcio e a morte de todo um povo, de milhes de pessoas e apenas bene-ficiam a uma dezena ou uma centena de indivduos? Valem esses interesses mais que uma vida, mais que mil vidas, mais que um milho, dez milhes de vidas?

    Malgrado todos os sofismas do ensinamento

    legal e todos os paradoxos da filosofia escolstica, no cabe aqui mais que esta contestao: na socie-dade, tal qual est constituda, a fora impe o dever e se arroga no direito, e na fora sem razo, como manifestao da prepotncia, origina a desigualdade

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    e esta a imoralidade e a injustia em todas as ordens da vida social.

    Se alegar que a justia legal est inspirada na

    justia divina e que se as naes, esquecendo o es-prito religioso de suas leis, fazem a guerra, por igno-rncia ou por interesses contrapostos sua vontade, a religio oficial, ou de Estado, ope-se a semelhan-te crime, considerando-o contrrio lei de Deus.

    Mentira, hipocrisia e sofisma: a religio oficial,

    seja esta catlica, protestante, budista, maometana ou o que seja, longe de condenar a guerra, aconse-lha a sujeio lei de servio militar (a arte de as-sassinar), bendiz os exrcitos e as armas.

    E curioso ver at que ponto chega a contradi-

    o e a imoralidade: enquanto os pases beligeran-tes se destrem mutuamente, os representantes de uma mesma religio nos pases em guerra celebram missas e rogam a Deus pedindo-lhe o triunfo de seus respectivos exrcitos.

    Em tempo de paz nos dizem: Amai-vos uns

    aos outros e preceitos semelhantes. Em que evasi-vas andam estes falsos representantes da divindade e como se veria o Pai Eterno se houvesse de dar ouvidos a tais rogos. Quo distinta a opinio dos espritos profundamente religiosos e genuinamente espiritualistas:

    A atitude religiosa diz o autor de O Grande Crime

    obriga ao que recrutado entregar-se ao assassinato, a

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    suportar todos os castigos que o governo lhe aplique pela negativa ao servio militar.

    Esta contradio da justia legal no s se v em

    tempo de guerra, como em tempos de paz. Alguns exemplos ilustraro nossa afirmao: dois homens, em um momento de exaltao, por razes e motivos pr-prios, trocam socos na via pblica: o agente da lei os prende, a justia os penaliza, pois uma briga em pbli-co um espetculo imoral e promove desordem. Bem: nessa mesma sociedade, dois homens treinados que lucram com seus punhos e exploram a imbecilidade humana exibem-se ante um pblico de milhares de pessoas: golpeiam-se brutalmente, quebram as man-dbulas, machucam o corpo, aturdem o esprito e, ante a ferocidade de seus golpes formidveis, um deles cai ao solo sem sentido. Isto se faz com o beneplcito, a presena, as apostas e at o patrocnio dos represen-tantes da justia legal e com o consentimento tcito e expresso da lei: a moral social e as autoridades legais aplaudem, a educao o exige, a imprensa defensora da moral e da ordem estabelecida estimula, prestigia e tambm aplaude.

    Por sua vez, o empresrio explorador deste

    comrcio vil conta os dlares e reparte o produto da explorao com seus protagonistas. Isto, do ponto devista da justia legal, no imoral nem atentatriocontra a ordem.

    Nos pases mais civilizados a mendicncia

    considerada imoral, persegue-se e castiga os men-digos que pululam pela cidade e, em troca, para a

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    ostentao do luxo desmedido, escandaloso e imoral e a riqueza acumulada s custas da misria, no h proibio nem castigo algum, sendo que neles est a causa da mendicncia.

    A lei civil castiga o alcoolismo por imoral, mas

    permite a fabricao e o consumo sem restrio de bebidas alcolicas mediante bons impostos (do contr-rio o negcio imoral). O mesmo sucede com a prosti-tuio, esse comrcio vil e degradante que em todas as naes chamadas civilizadas ampara e fomenta o Estado: tal comrcio considerado como lcito desde que seja registrado e pague elevados impostos.

    rdiculo como a justia legal pretende reparar

    ou condenar os delitos: o homem que rouba, mata, prejudica outra pessoa ou que delinque em qualquer outro sentido, preso, castigado, se faz passar fo-me, se humilha, probe-se de realizar funes natu-rais, expondo-o a vcios vergonhosos e a aes mil vezes mais vis e prejudiciais sociedade que seus prprios delitos, tira-se-lhe a vida.

    Como o delinquente repara o mal feito? Con-

    segue-se com isto que seja melhor? A justia busca a reabilitao do culpado? No, mil vezes no: simplesmente uma vingana da sociedade contra um de seus membros talvez menos culpado que ela; a condenao de um regime social representado por uma minoria de homens que desaprovam em um semelhante os erros, vcios e transgresses que se toleram e se perdoam a si mesmos.

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    a sano de uma lei que os mesmos legislado-res, magistrados, juzes e advogados repudiariam vendo-a aplicada a seus prprios crimes; , enfim, o repdio e a condenao do delinquente, no do delito.

    Por outro lado, que relao guarda a pena apli-

    cada com o delito ou falta cometida? Sob o rigor da justia e j que a sociedade se sente no direito de faz-lo deveria-se, por exemplo, condenar fome ao que retm e monopoliza os produtos do trabalho e da indstria em detrimento de seus semelhantes; ao que especula com a misria e a fome dos de-mais; a trabalhos forados aos que vivem da explo-rao humana sem trabalhar; aos homicidas culp-veis a carregar as obrigaes do morto e aos que vivem do errio pblico sem fazer nem produzir nada de til; aos que malversam as finanas da nao em empresas inteis, em aquisies blicas prejudiciais; aos que dissipam os bens da sociedade em doa-es, em banquetes, recepes, festas e passeios para vangloriar suas personalidades e satisfazer seus prprios gozos, enquanto o povo que trabalha vive na indigncia e carrega sobre as costas os ex-cessivos encargos de uma lei inqua e dissoluta.

    Enfim, aos que, em nome do patriotismo impul-

    sionam os povos guerra e runa, deveria-se con-den-los ao exlio, a sofrimentos anlogos ao que produzem, at que purgassem seus crimes e corri-gissem suas imoralidades.

    Com essa forma de aplicar a justia, se conde-

    naria o delinquente a sofrer a consequncia lgica

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    de seus delitos e experimentaria o merecido estigma da sociedade. Se bem que seria mais humano per-suadir e educar do que castigar; suprimir, se for pos-svel, as causas dos delitos para evitar suas funestas consequncias.

    Isto no seria a lei de talio degenerada em es-tpida vingana, como que se aplica aos membros mais fracos e indefesos em nossas sociedades mal-chamadas (mal chamadas de) crists, ou simples-mente civilizadas: a um mal produzido, um mal mais intenso e extensivo; a um delito menor, uma mons-truosidade jurdica maior, que , sem dvida, a ex-presso legal de nossa justia aplicada.

    No, a lei civil no castiga o delinquente para evi-

    tar ou suprimir o delito nem para persuadir ou reabilitar o condenado. Se fosse assim e se inspirasse em uma sbia ainda que relativa justia, trataria de suprimir as causas do crime e da delinquncia, ao menos as que so exequveis ao domnio humano. Longe disto, d origem e acesso ao crime, estimula o egosmo, en-gendra o dio, desperta a inveja e rivaliza o vcio e a corrupo, opondo-se verdadeira justia, verdadei-ra virtude, ao direito e paz, moralidade, em suma, por meio de uma legislao unilateral, de uma educa-o absurda que leva consigo o germe de todas as iniquidades, pela fora das armas e pelas mais cruis penalidades carcerrias etc.

    Quanto mais virtual o fator palingensico,

    quando mais eficaz resulta a iniciativa moralizadora

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    para fazer desaparecer as causas do crime, mais cruel e punitiva a lei civil, a autoridade legal que as defende, porque sua misso no velar pelos foros da justia, do direito e da moralidade, se no manter e perpetuar o descaso, a explorao, a desordem, a injustia e a imoralidade, ou seja, o que ela chama de ordem social.

    Ainda esto em vigncia os tormentos inquisito-

    riais da lei e a pena capital para castigar delitos me-nores e em muitos casos aes hericas e merit-rias, dignas da imortalidade e da glria. Mas, por acaso no sobrepuja a tudo isto os massacres cole-tivos de famintos e indefesos trabalhadores que pe-dem algo mais que po e justia?

    E no se diga, para salvaguardar a responsabi-

    lidade jurdica, que isto ilegal, porque nos cdigos no esto especificadas estas matanas humanas executadas com verdadeiro furor. Pois h tanta lega-lidade e ainda poderamos agregar tanta moralida-de nisto como a que h no fato consumado do in-dustrial laborioso que, valendo-se de um direito legal e de sua autoridade de patro, por explorar mais que o devido de uma mulher, absorve, nas foras que lhe explora o lquido lactante que, sendo me, devia re-servar ao filho e que, em ltima anlise, ele conver-te-se no verdadeiro chupo perfeitamente legal.

    Estamos agora aqui ante a lei civil, no que esta

    tem de mais unilateral e interesseira, que nosso genial poeta Jos Hernndez qualificou com um ter-mo feliz: a lei do funil.

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    A justia legal no alcana o rico quando sabe conservar suas finanas a uma altura invejvel para os advogados, os juzes e os trapaceiros. Quando o de-linquente homem de fortuna, castiga-se-lhe o bolso, no a ele nem sua falta, por grave que esta seja.

    Um endinheirado, salvo casos excepcionais,

    no faz cama no crcere nem envelhece no degre-do, sempre que a natureza de seu delito no seja contrria a outras fortunas maiores que a sua ou que este no prejudique os interesses criados da socie-dade o que para um rico algo difcil ou quando a justia de princpios que constitui o mais grave delito no se impe justia de interesses.

    De outra parte, um pobre purgar seu erro ou

    sua culpa com sua disposio ou com o sacrifcio que se imponha pra pagar sua liberdade, e se o deli-to dos chamados de ordem social, sofrer todas as torturas e vexames com os quais se martiriza nas prises e nos degredos aos rebeldes e proscritos que, por razes de verdadeira justia, no se do-bram ante as imposies da lei inculcada mil vezes pelos mesmos defensores nem se ajustam s ab-surdidades da moral estabelecida.

    Tem-se dito, mais de uma vez, que os crceres

    foram feitos para os homens; mas os pobres so os nicos que os ocupam.

    No nossa inteno lastimar a boa reputao

    e a honradez a toda prova desta parte culta da soci-edade que por sua vantajosa situao econmica e

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    financeira leva uma vida branda, muito mais espiritu-al que a do pobre e s vive para pensar na caridade que deve fazer a estes. um fato de observao, nada mais, o apontado. E isso dito, diga-se de pas-sagem, em honra verdade.

    A lei civil no castiga o libertino nem premia o

    recatado: estes no caem sob a sano da justia. S so responsveis os pobres e os ignorantes que no sabem gozar nem resvalar pelos despenhadei-ros da lei.

    A equidade e a solidariedade tampouco caem

    sob a sano legal: a lei civil no impe ao rico a caridade; a esmola aos necessitados voluntria, nossos cdigos no prescrevem nenhum castigo para aquele que pratica a filantropia.

    A riqueza, bem ou mal adquirida luxo e o

    desperdcio legal, e a pobreza a fome e a des-nudez tambm: so os direitos de estrita justia humana; e assim como o rico no tem qualquer direi-to legal para exigir nada do pobre no sendo o de explorao sobre seu trabalho que a lei lhe concede do mesmo modo o pobre no tem o direito de viver da caridade do rico. Neste caso a lei similar...

    Assim, disse Lahr eu tenho o dever de justia

    de pagar uma dvida, e meu credor tem o direito estrito de exigir-me o pagamento, at pela fora, em caso de neces-sidade. Ao contrrio, tenho o dever de caridade de fazer esmola, mas o pobre, com o qual me considero obrigado,

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    no tem o direito de me cobrar, e a lei civil no pode me obrigar a socorr-lo. (Filosofia, p. 204).

    A esta argumentao seguem as razes con-

    sequentes que nunca faltam aos filsofos escolsti-cos para justificar o egosmo e a injustia. Tudo est em tomar uma mentira convencional como base de uma filosofia, para depois edificar erros sobre erros, sofismas sobre sofismas.

    Temos visto o que a lei civil, sobre o que se

    fundamenta, para que se faz e como se aplica. A delinquncia alcana a todos os membros de

    uma sociedade em grau mais ou menos superlativo, segundo se escale as alturas do poder e da fortuna ou se desa aos ltimos degraus da impotncia e da misria; o crime e a imoralidade tanto vestem black tie (gravata) ou avental, isto verdade; mas tambm uma verdade que a vara da justia se deleita nos debaixo e poucas vezes chega aos de cima.

    Temos, pois, em ltima anlise que, em pro-

    poro, h menos delinquentes entre os reclusos nos crceres e nos desterros e condenados como tais pela justia legal, que na sociedade gozando de prestgio e renome. E no h paradoxo nisto, posto que esta concluso est no mago de todos, ainda que muitos aparentem ter opinio contrria.

    Do ponto de vista legal, no h vcio nem injus-

    tia que no possa converter-se em virtude, nem verdadeira virtude que, em determinada circunstn-

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    cia no seja atentatria moral e ordem estabele- cida. O mesmo podemos dizer da moral das religies que, com frequncia, confunde a moral com o vcio, o crime com o herosmo, o assassinato com o dever, a hipocrisia com a caridade e a usurpao com o direito. Com justssima razo pde dizer E. Renan:

    Em geral, na histria, o homem se v castigado

    pelo bem que tem feito e recompensado pelo mal. O que expusemos sobre os costumes e a lega-

    lidade podemos aplicar educao: esta resulta a-inda mais heterognea e contraditria; seus elemen-tos ticos so to diversos e antagnicos que toda conciliao resultaria num atentado contra a lgica e o bom sentido.

    Tal , em geral, a moral objetiva, ou seja, aquela

    que se depreende da estrutura econmica, dos inte-resses opostos, da legislao e do meio social. Se a isto juntamos a variedade etnolgica de todos os po-vos da terra, com seus costumes, suas convenes, suas leis, sua educao e suas crenas antinmicas, teremos uma Babel universal de morais contraditrias, um verdadeiro caos moral em constante conflito.

    E seria insensatez fazer proceder a lei moral de

    elementos to instveis e carentes de uniformidade, pois como disse Pascal no se v quase nada, justo ou injusto, que no mude de qualificativo ao mudar de clima. Trs graus de elevao do plo, muda toda a legislao... Vigorosa justia essa, limi-

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    tada por um rio; o que deste lado dos Pirineus ver-dade, resulta errado do outro.

    Tem-se dito, no entanto, sem medir o alcance

    dessa afirmao um tanto ambgua, que o fato social engendra o fato moral. A partir da, tem-se aceitado, erroneamente, que as ideias morais tm sua origem nas relaes sociais; que no existe outro direito, nem outra justia, nem outra verdade, nem outro supremo bem do que aqueles que em cada povo e em cada momento da histria emanam ou emergem da sociedade e da sua legislao. Com isto se reduz a moral a uma questo de moda, e Pascal teve ra-zo ao dizer que a moda impera no s nos ador-nos, como tambm na justia.

    Eis como se faz da conscincia uma tbua rasa,

    subordinam-se os princpios morais influncia do meio, se acaba por aconselhar a sujeio incondicional lei civil e autoridade e, nesta iminente renncia a todo direito natural no estabelecido ou ferido pelas leis, e a toda dignidade pessoal, chega-se logicamente justificao de todos os despotismos e arbitrarieda-des legais e termina-se repetindo com Hobbes que

    o que o soberano ordena deve reputar-se como

    bom; o que probe, mau; (...) as regras do bom e do mau, do justo e injusto, ho-

    nesto e desonesto, so leis civis etc. (De Cive, cap. XII). uma verdade histrica inegvel que apenas

    emerge uma sociedade e com ela surge certa reci-

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    procidade afetiva, certas necessidades e conven-es que do forma a uma moral rudimentar, aquela que, no transcurso da evoluo social faz-se cada vez mais complexa e antinmica devido s leis opos-tas que a determinam.

    Nos primitivos agrupamentos humanos, se te-

    mos de dar crdito aos dados da histria e da etno-logia, a vida em comum harmonizou os sentimentos e os interesses, o egosmo instintivo e o ego--altrusmo inconsciente e fez, em certo modo e at certo limite os homens solidrios, dando-lhes uma moral que, se distanciava muito da do homem ver-dadeiramente civilizado, se carecia de preceitos e de ideal, tinha, por outro lado, o mrito de ser prtica e a virtude de estar em concordncia com a natureza e as necessidades do homem em sua condio de animal socivel. Mas quando este comeou a fazer distino entre o denominado meu e teu e acumulou despojos sobre despojos, bens sobre bens e arro-gou-se no direito de propriedade privada em detri-mento da comunidade, quando a posse desigual da riqueza tomada e mantida pela fora determinou leis favorveis ao privilgio e estas criaram direitos e deveres arbitrrios e antinaturais quando, enfim, se substituiu a moral dos interesses em conflito, fica-ram, ipso facto, desligados dos vnculos da solidari-edade e instituda a antinomia entre a legalidade e a moralidade, ou seja, entre a lei civil e a lei moral.

    H que se ter em conta, tambm, o papel impor-

    tante que nesse sentido desempenharam as religies. O sentimento religioso, indefinido no comeo das pri-

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    mitivas sociedades humanas, mas isento de ritos e de absurdas cerimnias, deixou de ser uma inclinao natural piedade e comunho de interesses, uma exaltao dos sentimentos morais, para converter-se numa teologia autocrtica posta a servio dos podero-sos, que apenas entreviu a convenincia do poder temporal que ambicionavam seus falsos representan-tes e da ter contribudo para a subordinao das conscincias s leis que lhes favoreciam.

    De tudo o que expusemos, pode inferir-se que

    o fato social cria necessidades e interesses comuns, convenes, direitos e deveres que no so legti-mos fenmenos morais, no se ajustam aos princ-pios de justia e de moralidade e no passam pelo crivo da conscincia.

    E ainda que se tratasse de fenmenos morais

    autnticos e estes fossem gerados por associao, o nico que ficaria provado que o fato social engen-dra o fato moral, mas no a idia potencial, os prin-cpios morais gensicos, nem a lei ideal que os rege, nem a faculdade que os distingue, porque estas so anteriores ao fato, esto na natureza psquica do indivduo antes que na sociedade: so a condio sine qua non do fato social; este no pode verificar-se se carece dessa lei e desses princpios em abso-luto, assim como no pode existir associao atmi-ca ou molecular se falta afinidade e coeso.

    A sociedade cria obrigaes, com ajuste s ne-

    cessidades e convenincias circunstanciais, mas no engendra as ideias morais nem as leis da mora-

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    lidade; pelo contrrio, supe-nas no indivduo, em sua conscincia reflexiva, e disto as reclama para lhe exigir o cumprimento dos deveres que lhe impe.

    A autoridade legal promulga leis e exige seu

    cumprimento de acordo com a moral estabelecida, que o reflexo de sua constituio econmica e pol-tica, mas no de acordo com o direito natural, nem com as leis ideais da justia; no tm em conta o fim ulterior de nossa vida, nem o aperfeioamento, a feli-cidade do indivduo com ajuste sua natureza e ao seu verdadeiro destino, seno o interesse social ime-diato de uma minoria privilegiada, em detrimento dos demais, o xito dos que melhor se adaptam ao meio social, que a injustia e a imoralidade, embora va-lendo-se da ignorncia e da dor do prximo.

    Em suma: a moral estabelecida pelos costumes

    e sancionada pela lei civil , em geral, um conjunto de iniquidades, de mentiras e convencionalismos, de simulao, de enganos, de roubos e escamoteaes escandalosas, de crimes e assassinatos, de vcios e corrupes; , enfim, uma moral de fim de semana:

    A ordem como disse Tolsti a desordem or-

    denada com suas habituais vtimas. A adoo de uma norma de conduta inspirada

    em semelhante moral nos colocaria no seguinte di-lema: buscar um refgio no cepticismo materialista, ou cair no egosmo mais estreito e dissimulado, na mais refinada hipocrisia, no roubo e no despudor mais legtimo, considerando-os apesar das repro-

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    vaes de nossa conscincia como os homens mais justos e virtuosos.

    Mas no; no vos inquieteis, senhores filsofos e

    moralistas, ideolgos, pensadores e filantropos que advogais pela justia e a fraternidade humana, que pregais a excelcitude das virtudes cvicas e a recipro-cidade afetiva da famlia, que defendeis o direito e a solidariedade entre os homens, que aspirais a justa sano das aes humanas; o exposto at aqui no mais que um aspecto do problema a que nos temos proposto ou, pelo menos, tido a inteno de resolver; como a prtase de uma proposio que, na falta de sua apdoseF1F, daria uma falsa ideia da verdade.

    O aspecto contrrio, e neste caso afirmativo, fala-

    r muito alto em favor desses sentimentos que tanto honram a espcie humana, apesar de encontrar-se sob o domnio da animalidade, escrava de paixes e vcios deprimentes que, como o Prometeu da lenda, os encadeiam rocha dos interesses materiais, enquanto o egosmo lhe devora as entranhas.

    1 Prtase a primeira parte de um perodo gramatical e apdose, a segunda parte, complementar primeira.

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    Consideraes Gerais sobre a Moral de Princpios

    O fenmeno moral mais caracterstico na vida dos povos , sem dvida, a luta constante entre o bem e o mal. O comeo desta luta se perde na noite de nossa histria, envolto nas trevas de nossa pr-pria origem.

    Esta no uma afirmao a priori: os anais da

    histria no registram uma data na evoluo humana de completa amoralidade, em que o homem no ti-vesse noo do bem e do mal, ou que houvesse permanecido indiferente em absoluto a este senti-mento. Pelo contrrio, a luta entre estes dois princ-pios deduz-se logicamente do fato social, que no pde subsistir e desenvolver-se em meio ao caniba-lismo e aos excessos do selvagem primitivo sem um sentimento afetivo necessrio.

    Quando o homem da caverna ou da selva, firme

    em sua fora, arrebatou de uma me seu filho para destro-lo entre suas garras de smio, esta o defen-deu com seus rogos ou arriscando sua prpria vida.

    Quando um homem diz Volney correu perigo

    de ser morto pelas feras, muitos o ajudaram e socorre-ram; quando um careceu de subsistncia, outro lhe deu parte da sua.

    E quando o forte subjugou os fracos, estes se

    uniram para derrub-lo.

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    A luta constante do bem e do mal est calcada nas mitologias de todos os povos da antiguidade. Todos eles tiveram gnios protetores e gnios tira-nos, deuses benfazejos e diabos astutos e daninhos a quem se lhes tm antropomorfizado, atribuindo-se-lhes inclinaes e qualidades do homem e mesclan-do-os nos assuntos humanos. O Egito teve seu Os-ris e seu Tifo; a Prsia, seu Ormuz e seu Ahriman; a ndia, Bermack e Cliven; a Palestina, Jeov e Sa-tans; Grcia, Zeus e Pluto, e assim todos os de-mais povos da Terra, tanto os imprios, como as tribos personificaram este sentimento dualista, ora nos astros, ou nas foras naturais, ou nas reaes de sua obtusa fantasia, vivendo em contnua luta entre o bem e o mal, j providos estes de suas natu-rais inclinaes, ou resultassem das anomalias, ou das influncias benficas da natureza.

    No h nenhuma cincia emprica que contradi-

    ga a verdade desta afirmao, mostrando-nos uma poca da histria em que o ser humano haja perma-necido indiferente em absoluto ao mal e ao bem, pr-prios de seus semelhantes.

    A antropologia, que a histria natural do ho-

    mem segundo a definio de QuatrefagesF2F no somente os faz remontar aos primeiros dias de nossa vida antropolgica, como os faz descender a nossos antepassados, os animais. Veja-se Haeckel, O Mo-nismo, pg. 152).

    atu-2 Jean Louis Armande de Quatrefages de Brau (1810 - 1892), n

    ralista francs.

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    De fato, tm existido sempre na sociedade du-as tendncias opostas, inconciliveis: uma coercitiva e de adaptao; a outra, evolucionista e de iniciativa. A primeira tem sua origem nas paixes mais baixas da alma humana, arraigadas estrutura econmica e poltica da sociedade, em seus costumes e hbitos inveterados, em seus convencionalismos, crenas absurdas e negativas, em suas leis anacrnicas e injustas. A segunda tem seu nascimento nas ideias de justia, nos sentimentos mais nobres e generosos de nossa alma.

    Estas ideias e sentimentos so universais, ine-

    rentes nossa natureza psquica; encontram-se nos selvagens e no homem civilizado, no crente e no incrdulo.

    Tambm os encontramos em todos os povos,

    em todas as pocas; so da essncia mesma de nossa alma, os fundamentos de toda a sociedade ou agrupamento humano.

    Subtrados da conscincia do homem estes

    princpios morais, e a sociedade desaparece, ou se converte numa horda de selvagens que perdero sua reciprocidade afetiva, seu carter psicolgico espec-fico, o respeito mtuo e at a dignidade pessoal e acabaro por destruir-se mutuamente, sem a menor piedade nem remorso.

    A histria em geral e a etnologia em particular,

    demonstram-nos a uniformidade e universalidade dos princpios morais. As religies e as legislaes

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    de todos os povos os tm tomado por fundamento natural para estabelecer os deveres e direitos sociais e afianar a sano penal. Sua origem no orgni-ca, seno espiritual, no social, seno psicolgica, no hereditria, mas prpria e caracterstica da substncia psquica universal que anima a todos os seres orgnicos em relao a cada espcie e ao de-senvolvimento de cada indivduo; desenvolvem-se, certo, na sociedade, sob a influncia do meio, da educao e outros fatores extrnsecos, mas estes no os geram nem tiram seu carter de princpios orientadores.

    As prescries morais, as mximas, apotegmas

    e preceitos disseminados nos livros sagrados e de filosofia tica so a manifestao formal dos princ-pios que regulam a conscincia, os caracteres inde-lveis da lei moral, que o tempo, com sua contingn-cia de costumes e leis pervertidas no pde apagar.

    Ainda que obscurecidos e falseados pelas mito-

    logias, supersties, crenas e costumes caracters-ticos de cada povo, encontram-se em todas as po-cas da histria.

    Seis sculos antes da Era Crist (551 a 479

    AC), Confcio, o clebre filsofo e historiador chins, formulou-os em suas obras fundamentais: Y-King, Chi-King e Chi-Kinz (livro das metamorfoses, livro dos anais e livro dos cantos, respectivamente), e em alguns tratados de filosofia tica. Antes dele, o filso-fo mstico Lao Ts, em seu clebre Tao Ke King (O Livro das Virtudes). Trinta e cinco sculos antes

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    dois depois de Moiss formulou-os o clebre filso-fo e astrlogo persa ZoroastroF3F, no Zend Avesta (lei e reforma), magnfico livro em cujas pginas cam-peiam as mximas mais profundas, os preceitos mais elevados, brilhos de uma moral sublime que se estendeu desde a Prsia at a Media e a Baetria-naF4F, reformando os costumes introduzidos pelo sis-tema idoltrico dos egpcios. Diz-se que o Zend A-vesta estava escrito em doze mil couros de vaca, que foram destrudos pelos muulmanos quando invadiram a Prsia. Mas o certo que esta obra, cu-jo mrito maior consiste em suas mximas morais, ficou sepultada por muitos sculos entre os amare-lados manuscritos das bibliotecas orientais e que hoje, graas imprensa e percia dos tradutores, se fez disponvel a todos os pases do mundo. considerada uma verdadeira relquia histrica e lite-rria, consultada com mais interesse e proveito que o Pentateuco e o Declogo do legislador hebreu.

    Com anterioridade a estes (cuja data no

    possvel precisar), foram escritos no Livro dos Mortos dos egpcios, que acompanhava as m-mias em sua viagem eternidade e servia a alma como salvo-conduto para sua defesa ante o tribu- 3 Zoroastro (630-550 a.C.), ou Zaratustra, profeta da religio persa, fundador do zoroastrismo. 4 Baetriana , na verdade, Bactriana, nome dado ao antigo pas situa-do entre as montanhas Kush (Paropamisus) e o rio Amu Darya (Oxus), sendo a sua capital, Bactria, tambm denominada Bactra-Zariaspa. No perodo islmico, a rea era conhecida como Turquesto, aps os turquestanos terem se estabelecido ali no sc. I d. C. Fonte: Infopdia - Enciclopdia e Dicionrios Porto Editora Hhttp://www.infopedia.pt/$bactriana

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    nal de Osris. Foram escritos tambm em papiros por autores desconhecidos e posteriormente por Phtah Nathon e pelo escriba Ani em suas prescries e apotegmas5 morais.

    Muito antes ainda os encontramos dissemina-

    dos nos Vedas, atribudos a Vyasa (a este se deve o Mahabarata), mas cuja verdadeira origem segundo vrios autores remonta-se aos tempos patriarcais da ndia. Os Vedas so um composto de poemas, de cdigos e tratados, uma recompilao de oraes e hinos escritos em vrias pocas e por diferentes au-tores e constituem o fundo moral, poltico e religioso dos povos do Hindusto. H nos Vedas passagens e episdios de uma beleza original que sucedem por seu sabor evanglico e a riqueza de colorido, pela docilidade e espiritualidade das ideias e sentimentos morais, que se manifestam como verdadeiras foras diretrizes entre os enfeites de linguagem e a fico de suas lendas seculares. Nosso Jesus Cristo, com seu apostolado, seus ensinamentos e seu exemplo moralizador, no mais que um genrico de Jezeus Krishna, e o Novo Testamento no outra coisa que uma transcrio quase fiel da vida e milagres do re-dentor hindustnico, e se no temssemos o ante-ma da igreja e o papa que nos perdoe diramos que o Antigo Testamento no mais do que uma imitao dos Vedas; ou melhor, um plgio da hist-ria. Tem-se dito que nada h de novo sob o sol (nil novi sub sole), e estas palavras do sbio Salomo

    5 Apotegma: mxima ou palavra memorvel, lapidar, proferida por personagem clebre. Fonte: Dicionrio Houaiss 2001

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    talvez sejam as nicas que intercedam pela boa re-putao literria de Moiss e dos quatro evangelistas que lhe seguiram. Ns, voltando pelos foros de nos-so bom Jesus, daquele Jesus que teve o valor moral de chicotear os mercadores do templo (e livre-nos Deus se o dizemos pelos reverendos pais da Igreja) e que sentiu a frustrao desta sua primeira campa-nha evanglica, diremos que a histria se repete, que cada ciclo da evoluo humana tem seu gnio do mal e seu gnio do bem encarnados em um Cristo, ou em um Krishna, em um Herodes, ou em um Kan-sa6, em um regime de afronta e em um ideal de re-deno. Seis sculos antes de nossa era, pouco de-pois de Confcio, encontramos estes princpios mo-rais no Latita-Vistara e no Lotus de Buda, o novo re-dentor indochins. Encontramo-los um sculo antes no Livro de Isaas, o mais sublime dos poetas semti-cos. E, um sculo depois, essa mxima se colocava ao lado de cada mmia para justificar a boa conduta ob-servada em vida.

    L-se: - Eu no roubei. - No enganei. - No blasfemei. - No menti em justia. - No cometi fraude contra os homens. - No atormentei a viva.

    6 Kansa o nome de uma tribo indgena extinta, cuja lngua, homnima, do tronco sioux, era falada no estado de Oklahoma, nos EUA. No ano de 1990, segundo um censo, havia 19 falantes de kansa. Fonte: Wikipdia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Kansa

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    - No exigi de um chefe de trabalhadores mais tra- balho do que ele podia fazer.

    - No exercitei nenhuma perturbao. - No fiz ningum chorar. - No fui preguioso. - No fui negligente - No me embriaguei. - No dei ordens injustas. - No tive uma curiosidade indiscreta. - No soltei minha boca charlatanice. - No contagiei ningum. - No matei. - No ordenei assassinato ou traio. - No causei temor a ningum. - No fui maledicente. - No ro meu corao de inveja. - No intentei falsas acusaes. - No usurpei a terra de ningum. - No separei um canal. - No privei de seu leite um recm-nascido. Sou puro! Sou puro! Sou puro! E como se a absteno destas ms aes no

    fosse suficiente para justificar uma boa conduta, a alma do morto apelava s boas aes realizadas durante sua vida, e dizia:

    Dei de comer ao que tinha fome; dei de beber ao

    que tinha sede; vesti o nu; dei uma barca ao que se a-chava detido no caminho.

    Em um tratado de Phtah Hatpon interpretado

    por Prisse segundo Paul Gille e que remonta a 3.700 anos antes da era vulgar, l-se:

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    Se fores prudente, abastece bem tua casa, ama a tua mulher sem queixas, alimenta-a, adorna-a; o luxo de seus membros. Perfuma-a, regozija-a o tempo que vivas; um bem que deve ser digno de seu possuidor. No sejas brutal.

    Ani do qual j temos falado escreve: No percas jamais de vista o parto doloroso que cus-

    taste a tua me, nem todos os cuidados saudveis que teve contigo. No ds lugar a que se queixe de ti por temor que eleve suas mos Divindade e que esta escute sua queixa.

    No mesmo esprito, seja pacfico, fala com doura

    ao que falou brutalmente, foge de pleitos e disputas, trata bem a teu hspede, seja discreto; no sejas murmurador nem charlato. Seja moderado, constante e paciente em todas as empresas.

    No trate teu companheiro como um homem mau. No trabalhes segundo os conselhos de um estulto. No se porte como um insensato. No se prive de escutar suas palavras. Se s puro, no pervertas o corao de teu companheiro. Que no haja no corao de uma me, lugar para a amargura. No maltrates a mulher, cuja fora menor que a tua; encontre ela em ti um protetor. No faas sofrer a um filho por sua debilidade, presta-lhe ajuda. No salves jamais tua vida custa da de outro. Eis aqui alguns fragmentos das sublimes poe-

    sias de Isaas, destinadas a corrigir e moralizar os costumes e prticas religiosas do povo hebreu:

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    ... disse o Eterno... No posso ver o crime sentar-se nas solenidades; Minha alma odeia vossas luas novas e vossas festas; So-me pesadas; Estou cansado de suport-las. Quando estendeis as mos, aparto meus olhos de vs; Quando multiplicais vossas rogativas no vos escuto. Vossas mos esto cheias de sangue. Lavai-as e purificai-as. Tirai da frente de meus olhos a malcia de vossas aes. Cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; buscai a justia. Protegei o oprimido. Fazei o direito ao rfo. Defendei a viva. ... Os que hajam amassado o trigo, o comero. E louvaro o Eterno. Os que tenham colhido o vinho o bebero. Nas moradas de meu santurio. ... Construiro casas e as habitaro. Plantaro vinhas e comero seu fruto.

    ...No trabalharo em vo. No tero filhos para v-los perecer. Porque formaro uma raa bendita pelo Eterno. E seus filhos estaro com eles. No se causar dano nem prejuzo. Em toda minha santa montanha, Diz o Eterno.

    Quem que ao ler estas sentenas plenas de amor e de justia, no sente profunda admirao e

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    se pergunta se nossos poetas libertrios cantaram algo melhor?

    Vejamos agora como os Vedas pem de mani-

    festo os princpios morais em suas prescries e parbolas, expressadas pela boca de Krishna. Eis aqui os ensinamentos do profeta de Madura:

    ... Os homens que no tm domnio sobre seus

    sentidos no so capazes de cumprir seus deveres. - preciso renunciar aos prazeres e riqueza quando

    estes no so aprovados pela conscincia. As obras que tm por princpio o amor a seus se-

    melhantes, devem ser ambicionadas pelo justo e pesaro na balana celeste.

    Aquele que humilde de corao e de esprito,

    amado por Deus. Do mesmo modo que o corpo est fortalecido pelos

    msculos, a alma est fortalecida pela virtude. De igual maneira que a terra sofre pelos que a pi-

    sam com os ps e abrem suas entranhas trabalhando-a, devemos devolver o bem pelo mal.

    Quando morremos, nossas riquezas ficam em casa,

    nossos parentes, nossos amigos no nos acompanham mais que at a tumba; mas nossas virtudes e nossos vcios, nossas obras e nossas faltas, seguem-nos outra vida.

    A cincia to til ao homem sem discernimento, como um espelho a um cego.

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    O homem que no aprecia os meios mais que seu desejo de chegar ao fim, perde logo a noo do justo e das doutrinas ss.

    Que saiba que o que est acima de tudo o respei-

    to por si mesmo e o amor ao prximo. Que tema toda honra mundana mais que o veneno. Que sua casa, seus alimentos e suas vestes sejam

    sempre humildes. Que constantemente tenha a mo direita aberta para

    os desgraados e nuca se louve de suas obras benficas. Os males com que afligimos a nosso prximo, nos

    perseguem como a sombra de nosso corpo. Se convives com os bons, teus exemplos sero in-

    teis; no temas viver entre os maus para atra-los ao bem. O homem virtuoso se assemelha rvore gigantes-

    ca, cuja sombra benfazeja d vida e frescor s plantas que a rodeiam.

    O homem honrado, ao cair sob o golpe dos maus,

    deve faz-lo como o sndalo, que quando derrubado perfuma o machado que o fere.

    No terminaremos a exposio dos pontos fun-

    damentais da filosofia tica de Krishna sem antes transcrever uma das parbolas (ou parte dela) que, fora de todo exagero, parece escrita pelo genial Tolsti em pleno sculo 20. Nesta parbola, o redentor hindu aconselha o lema comunista: cada um que produza segundo suas aptides e que consuma segundo suas

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    necessidades. Aqui poderamos repetir que no h na-da de novo sob o sol e que a histria... se repete. E se no, constate-o o leitor:

    Um homem rico do pas de Mithila havia contratado

    numerosos trabalhadores para fazer em suas terras a colheita do arroz e do milho.

    Ao canto do tehocravaca, pssaro dos pntanos

    que aturde o dia com seus gritos, hora em que o pastor faz sair os rebanhos dos estbulos, todos os trabalhado-res receberam do administrador uma poro igual do campo para colher.

    Depois de haver trabalhado quanto puderam, du-

    rante o dia, cada um na gleba que lhe havia assinalada, reuniram-se de novo tarde para recolher seu salrio.

    O mordomo havia distribudo a parte de cada um,

    em proporo a seu trabalho e todos acharam justo; ha-viam recebido sem queixar-se o que lhes correspondia.

    Mas o dono vendo isto disse a seu servidor: Por

    que h trabalhadores que recebem menos que os outros? Chegaram mais tarde ao campo, ou descansaram mais tempo durante o dia?

    E aquele lhe respondeu: Todos os trabalhadores

    vieram juntos ao campo e trabalharam durante o mesmo tempo, com o mesmo ardor, s que os fracos no pude-ram colher tanto arroz como os fortes.

    E o dono disse: Vais dar a todos o mesmo sal-

    rio; no seria justo fazer diferena entre eles, posto que todos trabalharam no campo o mesmo tempo e com o mesmo ardor. E vendo quo justo e bom era este ho-

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    mem, alguns vagabundos se aproximaram e reclamaram tambm uma parte.

    Vocs trabalharam na colheita? Perguntou. E eles

    responderam: Senhor, ns no sabemos manejar a foice, mas temos encorajado os trabalhadores cantando suas glrias e as dos deuses.

    E o dono disse ao administrador: D a essa gente 50 pores de arroz para seu

    jantar; assim como o pssaro no faz mais do que cantar quando as ceifas esto amarelas no campo, deve receber seu alimento, mas no tem direito a nenhum salrio; no so as canes que pem os gros no celeiro.

    Eu vos digo, habitantes de Madura, Golkulan, Brat-

    marvata7 e outros lugares e repitam a vossos prximos, a vossos amigos e aos andarilhos que encontreis no cami-nho, a fim de que a palavra daquele que me enviou seja conhecida sobre a terra:

    Recebereis vosso salrio como os trabalhadores

    tm recebido o seu. Por suas boas aes, em si mesmas, e no pela

    quantidade, pelo que sereis julgados.

    A cada um segundo suas foras e suas obras. No se pode pedir formiga o mesmo trabalho que ao elefante.

    7 Madura, ilha situada no sudoeste da Indonsia, na provncia de Java Oriental. Est separada da ilha de Java pelo estreito de Madura. Krishna nasceu a. Golkulan e Bratmarvata so regies da ndia. Os trs lugares so regies do continente asitico, prximas da atual ndia.

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    tartaruga a mesma agilidade que a cora. Ao pssaro que nade; ao peixe que se eleve nos ares. No se pode exigir do filho a prudncia do pai. Mas todas essas criaturas vivem para um fim e a-

    queles que cumprem em sua esfera o que lhes foi pres-crito se transformam e se elevam segundo todas as s-ries de transmigraes dos seres. A gota dgua, que mantm um princpio de vida que o calor fecunda, pode chegar a ser um Deus.

    Mas, saibam todos, ningum de vs chegar

    compreenso de Deus somente por uma orao; e o mis-terioso monosslabo no apagar vossas manchas, se no quando chegueis ao limiar da vida futura, carregados de boas obras e as mais meritrias dentre essas sero aquelas que tenham por mvel o amor ao prximo e a caridade.

    Santificai vossa vida pelo trabalho, amai e socorrei

    a vossos irmos, purificai vosso corpo por meio de ablu-es e vossas almas com a confisso de vossas faltas, e esperai sem temor a hora da transformao suprema.

    Esta parbola e outras que omitimos para no

    nos estendermos em demasia, demonstram que os sentimentos de caridade e de justia estavam, mui-tos milhares de anos antes de nossa era, to desen-volvidos como hoje.

    Vejamos agora o que diz Buda, o continuador

    de Krishna:

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    O Brahma tanto filho de uma mulher como o p-

    ria: por que um h de ser nobre e outro vil?

    * * * Muitos filsofos e escritores eminentes, ainda

    que admitindo a imanncia das ideias e sentimentos morais, no fazem distino entre a moral que deles depende e a que procede das relaes sociais; eis que, depois de grandes e bem documentados traba-lhos em prol da imanncia, por temor de cair no que eles chamam misticismo, vo dar corpo e alma ao amoralismo ou ao fatalismo que eles repudiam com todo o vigor e a lgica de seus argumentos.

    Tomaremos como objeto de nosso estudo Paul

    Gille, autor de Origem das Ideias Morais: A associao diz uma condio de vida para

    o ser humano, e ao mesmo tempo o obriga a contar com o outro e lhe impe obrigaes gerais cujo conjunto cons-titui a moral considerada assim com a resultante de toda sociedade ou como o mesmo lao social (pg. 20).

    Que a associao seja uma condio de vida

    para o ser humano e que lhe imponha obrigaes gerais, ou seja, direitos e deveres recprocos, uma verdade incontestvel, mas no que o conjunto des-sas obrigaes impostas constitua a moral, nem que esta seja o resultado de toda sociedade.

    Isto estaria perfeitamente enquadrado na ver-

    dade se Paul Gille se referisse a uma sociedade cu-

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    jas obrigaes estivessem baseadas de fato e de direito nos princpios de justia, igualdade econmi-ca e social e que esta sociedade se estendesse a todos os habitantes da Terra.

    Se tomssemos como fundamento de nossas

    aes as obrigaes impostas pela sociedade, a mo-ral j no seria uma

    questo de conscincia, de dever, de bem, de san-

    o ntima,

    como, em boa lgica, sustenta o autor citado, seno e isto o que ele refuta de

    leis sociais, de costumes, de ritos, de relaes e-conmicas (obra citada, pg. 36).

    E esta precisamente a moral resultante de to-

    da sociedade no que tem de real e objetivo, enquanto a moral ideal e subjetiva a que estabelece de modo efetivo os verdadeiros deveres e direitos sociais, a despeito das relaes econmicas, dos costumes, dos ritos etc. e impulsiona os indivduos e os povos realizao de um ideal.

    Se a moral fosse o resultado de toda a socie-

    dade, ela variaria segundo os povos e as pocas; e as obrigaes que ela impusesse estariam em con-sonncia com seu modo de produo e distribuio da riqueza social; Mas, se a alma da moralidade... a autonomia (pg. 37), o conjunto de obrigaes

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    impostas pela sociedade no constitui a moral. E nisso concordamos.

    de lamentar que o autor de Origem das Idei-

    as Morais, depois de sustentar a sua imanncia e consider-las como foras propulsoras e determinan-tes do fato moral, ande para trs por temor de cair no imperativo categrico e afirme que as ideias morais

    tm por base e medida o homem mesmo, que se

    modificam sem cessar, segundo o estado dos meios e o grau das conscincias individuais, de conformidade com as leis da hereditariedade modificadas por influncias ambientais (pg. 35).

    Paul Gille confunde aqui os princpios morais

    que so, por sua essncia mesma, imutveis e uni-versais, com o sujeito moral, que modificvel e per-fectvel.

    O homem, no que se refere s suas virtudes

    psico-potenciais para a realizao de seu fim, a medida exata e invarivel de suas ideias e sentimen-tos morais; perfeito, porquanto no h moral fora de seu eu que no seja assimilvel natureza dele mesmo; mas no no que tem de objetivamente mo-ral: seus atos so a medida relativa de sua possibili-dade, e esta possibilidade est em relao com o grau de seu desenvolvimento.

    As ideias e sentimentos morais rebaixam esta

    medida: pode a conscincia estar falseada (o re-

  • Manuel S. Porteiro u Origem das Ideias Morais

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    morso o prova) pela educao, pelo mau exemplo ou pelo hbito; pode estar obscurecida pelo egos-mo ou pervertida pelo vcio e a influncia do ambi-ente; mas coloque o homem ante cenas patticas em que a justia se debata com a iniquidade, a ver-dade com a falsidade e a mentira, o bem com o mal e a virtude com o vcio e a degradao e tereis a absoluta convico de que h princpios fixos na conscincia humana.

    A novela e o drama emotivos, os episdios his-

    tricos de herosmo e de sacrifcio em altares da jus-tia, da verdade e do bem, dos flagelos e cataclis-mos que lesionam e afligem a humanidade, revelam no homem, embora o mais depravado ou indiferente, sentimentos morais que pareceriam no existir nele e que esto muito acima de sua conduta habitual.

    O remorso a prova mais cabal de que o ho-

    mem no a medida exata dos princpios morais que regem sua conscincia. Por que haveria de sen-tir remorso e arrepender-se de seus atos e de suas intenes e pensamentos malvolos, se estes so a medida de seu prprio ser?

    No vemos, ento, porque razo o homem de-

    va reprovar sua conduta e lamentar-se de no poder seguir outra melhor, se sua pessoa, no que tem de varivel e objetivamente moral, a medida de suas ideias e sentimentos. A nosso juzo, porque a conscincia, regida por esses princpios diretrizes, acusa-o e reprova-o por ter-se desviado da lei moral. No se pode negar o conflito que existe entre nossa

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    conscincia e nossa conduta, quando esta se desvia da moralidade e da justia.

    Por outro lado, se h ideias diretrizes na cons-

    cincia humana, estas no podem estar subordina-das em nenhum sentido s circunstncias nem ser modificadas continuamente pelas influncias ambi-entais, porque, neste caso, perderiam seu carter e, de dirigentes, se converteriam em dirigidas.

    Veja-se, por exemplo, o princpio ou ideia de

    justia guiando o homem por intermdio de sua conscincia: um fator de ordem exterior, contrrio, vai ao seu encalo e lhe ordena que se submeta ao seu domnio que, no caso, seria uma iniquidade. Se a ideia ou princpio de justia modificvel e se submete s ordens de seu adversrio, o homem no apenas haver perdido a noo de justia e cado na escravido voluntria, mas sim que esta noo ter sido substituda pela noo de iniquidade, e sua conscincia ter a ela se ajustado, que ser enquan-to o domine, a reguladora de todos seus atos. E nes-te caso, a lei moral no existiria.

    Mas, suponhamos e esta a verdade incon-

    testvel deste fato psicolgico que, dado o carter eterno e invarivel do princpio de justia se este resiste a seu contrrio, e fiel lei moral que o carac-teriza, protesta e luta contra o fator exterior, exer-cendo sobre a conscincia seu poder de ideia dire-triz, aconselhando-o, estimulando-o, reagindo contra a inclinao oposta, inquietando-o ou despertando nela uma satisfao proporcional vantagem alcan-

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    ada sobre a injustia, e teremos que, ainda que o homem tenha sido vencido momentaneamente, ja-mais se sentiu abandonado pela idia de justia e nem perdeu seu carter de idia diretriz, eterno e invarivel.

    Ns afirmamos com Leibinitz que Se os homens so sempre piores que suas ver-

    dades, so tambm sempre melhores que seus erros. O que implica dizer que o homem, manifesto

    moralmente, no a medida de suas ideias e sen-timentos.

    Tampouco, no possvel admitir, com Paul Gille, a procedncia hereditria das ideias morais. A moral j o temos dito para ns de origem an-mica, psquica; sua gnese no est no organismo, nem em seu sangue, nem em suas funes, se no em nosso esprito ou, dito com mais propriedade, em ns. A hiptese da herana moral pela gerao tem menos fundamentos ainda que a crena teolgica de que Jeov criou o mundo do nada. Se inquirindo nossos originalssimos testamenteiros, fisilogos e naturalistas, quem herda a quem, remontamos at a origem primeira desta herana, veremos que, em ltima anlise, esta de procedncia duvidosa... No h, pois, gerao de almas.

    * * * Proudhon, o mais ardente defensor da

    imanncia da idia de justia e da dignidade pessoal, como contemporneo de um sculo

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    como contemporneo de um sculo incrdulo e materialista por oposio ao despotismo ideol-gico , embora revolucionrio de boa estirpe, no pde evitar de cair em anlogas contradies e confuses lamentveis, prprias de toda filosofia que rechaa a sano de uma justia superior humana. Se por uma parte estabelece a preemi-nncia da justia como emanao da conscincia individual e rechaa toda sano externa de ori-gem divina ou social (Sano Moral, pg. 30), por outra parte concede prerrogativas justia social, em ateno lei do nmero, ou de quantidade, e intenta, como nico recurso de seu sistema, anular as suas dificuldades e conciliar estas duas prerro-gativas, identificar a conscincia individual com o conjunto de costumes e apreciaes coletivas, ou seja, com o que ele chama conscincia comum.

    Veja-se, por exemplo, as duas seguintes pro-

    posies: Afirmativa: O homem, diz, no admite, em ltima anlise, mais

    que sua razo e sua conscincia; todo acatamento de sua parte, baseado sobre outras consideraes, um indcio de imoralidade. (Sano Moral, pg. 10)

    Negativa: De igual sorte que o todo maior que a parte, e o

    organismo vale mais que qualquer de seus rgos, assim tambm a sociedade superior ao indivduo e mais ex-celsas suas prerrogativas. (A Justia, pg. 131)

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    Estas duas proposies encerram uma flagran-te contradio: se o homem no admite mais que sua razo e sua conscincia individual e esta cons-cincia est regida por princpios imanentes, toda imposio da sociedade que no seja voluntaria-mente aceita, implica numa arbitrariedade e injustia, e o indivduo no pode considerar-se inferior soci-edade nem esta deve ter prerrogativas mais excel-sas, pois todo privilgio, seja de parte do individuo ou da sociedade, significa a restrio de um direito e o descumprimento de um dever.

    Por outro lado, a justia no se baseia na lei do

    nmero, no quantitativa, mas qualitativa, e um princpio de imoralidade sacrificar a qualidade quantidade, abdicando da prpria conscincia. A primeira e mais injuriante injustia social consiste em submeter o indivduo suposta excelcitude dos privi-lgios sociais.

    Uma sociedade fundada sobre a justia e o di-

    reito natural estabelece deveres e direitos idnticos tanto para o indivduo como para a mesma socieda-de, e em caso de serem espezinhadas as leis da justia, por um ou por outra, ambos devem ter o mesmo direito sano e ao castigo. Se o indivduo no pode castigar a sociedade quando esta falta a seus deveres ou pisoteia seus direitos e sua digni-dade, tampouco a sociedade deve castigar o indiv-duo nem subordin-lo a seus interesses se estes no so tambm os dele. A sociedade, neste caso, no tem outro direito que a fora e a fora, como princpio do direito, a injustia, a imoralidade.

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    Aqui comea a fracassar a justia humana, e

    mal que pese aos seguidores da escola materialista, a justia, a verdadeira e estrita justia, reclama outra sano, que escapa ao domnio das leis sociais.

    Para justificar a subordinao do indivduo

    sociedade, Prou